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SUELY FRAGOSO
O ESPAÇO EM
PERSPECTIVA
ISBN 85-7650-054-X
Revisão
Maria Cândida Lucca di Primio
Elisa Sankuevitz
Helô Castro
Fragoso, Suely.
CDD 750
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO, 5
INTRODUÇÃO, 13
1. PERSPECTIVA, 17
2. PERSPECTIVA ARTIFICIALIS, 29
3. A NATUREZA DO ESPAÇO, 43
4. AS MOLDURAS, 57
5. A RESSIGNIFICAÇÃO DA PERSPECTIVA, 67
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, 83
APRESENTAÇÃO
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 5
nhecimento de seus cânones teóricos, de suas bases filosó-
ficas e ideológicas e de seus princípios matemáticos está
longe de ser alguma coisa restrita apenas a uma especiali-
dade, mas é o próprio princípio de qualquer discurso sério
sobre o modo como “falam” as imagens e como percebe-
mos o mundo através delas. Este livro de Suely Fragoso
pode ser um guia precioso àqueles que necessitam obter
uma formação fundamental nessa matéria, sem necessitar
de passar por toda a bibliografia pertinente ao assunto.
De fato, o que caracteriza a representação visual que se
constitui a partir do Quattrocento é a convergência para um
ponto de fuga único de todas as linhas que representam os
planos perpendiculares à tela. Esse ponto, metáfora óptica do
infinito, situa-se na ponta de uma reta cujo oposto diametral é
um outro ponto, localizado fora do quadro, no qual está o
olho doador da cena, numa palavra, o ponto de vista do sujei-
to da figuração. O ponto de vista é, portanto, a inscrição do
local de onde se olha a cena, ponto de fixação dos aparelhos
utilizados pelo artista para dispor a imagem em perspectiva.
Com a sistematização do código perspectivo renascentista nas
câmeras fotográfica, cinematográfica e videográfica, ele pas-
sa a coincidir com a posição da câmera em relação ao objeto
focalizado. Malgrado não seja materialmente mostrado no
quadro, permanecendo, na maioria das vezes, um lugar invi-
sível para o espectador, o ponto de vista está inscrito na tela
através do afunilamento dos planos em direção ao ponto de
fuga. Em outras palavras, o sujeito, embora ausente da cena,
encontra-se nela embutido pelo simples fato de que a topo-
grafia do espaço está determinada pela sua posição: as pro-
porções relativas dos objetos variam conforme esses objetos
e se aproximam ou se afastam do ponto originário que orga-
niza a disposição da cena.
O que importa, portanto, é observar que a noção de
“ponto de vista” e, por extensão, a de “sujeito da represen-
tação visual”, nascem em decorrência dos cânones do có-
digo perspectivo renascentista. A partir dessa perspectiva,
6 APRESENTAÇÃO
todo quadro torna-se uma visão organizada por um ponto
originário, um olho único e imóvel (o “centro visual”) que
dá total coerência aos objetos dispostos no espaço. O mun-
do visível passa a ser exposto sob o prisma incontornável
da subjetividade: ele não é apenas uma paisagem que se
abre ao nosso olhar, mas uma paisagem já olhada e domi-
nada por um outro olho que dirige o nosso. O casamento
da pintura com a geometria euclideana trouxe, portanto,
uma contradição fundamental nos sistemas figurativos: de
um lado, a representação visa a objetividade científica, a
impessoalidade, não raro mediando a visão com apare-
lhos de reprodução automática, de que a câmera é o exem-
plo mais evidente; de outro, entretanto, ela impõe a deter-
minação de um olho totalizador, submetendo o mundo
visível ao arbítrio de um sujeito.
Pode-se conceber a história da perspectiva como
um triunfo do sentido de real, constitutivo de
distância e objetividade, mas também como um
triunfo desse desejo de poder que habita o ho-
mem e que anula toda distância; como uma sis-
tematização e uma estabilização do mundo ex-
terior, ao mesmo tempo que como um alarga-
mento da esfera do Eu.(Panofsky, 1975, p.160).
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 7
ses protagonistas invisíveis; é uma paisagem subjetiva no
sentido próprio do termo, ou seja, preenchida, dominada
pela verdade constitutiva do sujeito. Nesse dispositivo cêni-
co, o espectador é cooptado pela trama de desdobramen-
tos: ao fazer coincidir o seu olhar com aquele do sujeito
invisível que vê a cena, ele se deixa também “assujeitar”,
identificando-se com a instância vidente. Assim, sempre que
contempla Las Meninas, o espectador encarna o papel dos
monarcas representados por elipse e experimenta o gozo
desse lugar privilegiado de onde e para onde se descortina a
cena. Ele é, nesse momento, senão o próprio sujeito da figu-
ração, pelo menos o seu procurador legal.
O código da perspectiva renascentista faz do olho
do sujeito o elemento fundante e central da representação.
Princípio de ordem que dá coerência ao mundo visível,
ele organiza o universo inteiro em função da posição ideal
do olho enunciador. Na maior parte das vezes, entretanto,
o sujeito não está marcado explicitamente como na cena
de Velasquez. Ele se encontra desterrado num lugar
impalpável, num lugar privilegiado de contemplação, num
lugar panóptico, de no qual o mundo aparece como uma
paisagem visada por uma onividência. Isso tudo tem a ver,
é claro, com as reformas políticas e os deslocamentos gno-
siológicos que se verificam nas imediações do século XV
no ocidente: nesse contexto ideal de “humanização” da
cultura, o mundo passa a ser considerado em função das
significações que lhe dá um sujeito transcendente.
Com isto, [o código da perspectiva central] ofe-
rece uma representação sensível da metafísica
ocidental que, desde pelo menos Descartes,
opera a partir da oposição sujeito (da represen-
tação) objeto (representado), e que a consciên-
cia se vê diante do mundo, separada dele, a ele
transcendente, podendo tomá-lo como objeto
(Xavier, 1983, p.360).
8 APRESENTAÇÃO
O universo representado na tela já não é mais uma
paisagem aberta, impessoal e indeterminada. Composto
no interior do enquadramento, visado por um olho e dis-
posto em relação a ele em termos de distância e ângulo de
mirada. O universo se transfigura em objeto dotado de
sentido, objeto intencional, implicado pela ação do sujeito
que o visa. No fundo, o grande problema, que deve ser
resolvido pela pintura perspectivada, segundo o modelo
renascentista é justamente o de posicionar o espectador no
seu espaço, para que ele se possa constituir como o sujeito
unificante da visão, equivalente plástico daquilo que Lacan
chama de o “sujeito da certeza” (Descartes).
Edmond Couchot talvez tenha sido o pensador que
melhor formulou a condição do sujeito desde o Renasci-
mento até o ciberespaço e se uma teoria geral dos modos
de enunciação visual pode ser hoje formulada, ela deverá
ser buscada em alguns pontos fundantes de seu La technologie
dans l’art. O conceito-chave de Couchot para se entender
o modo particular como a subjetividade é construída nos
meios visuais é o de sujeito-SE (sujet-ON, em francês). Fa-
zendo acoplar à palavra sujeito o pronome indefinido on
(equivalente a se em português, como em on dirait que.../
dir-se-ia que...), Couchot busca exprimir uma outra experiên-
cia de subjetividade, aquela que deriva não de uma vonta-
de, de um desejo, de uma iniciativa, de um lapso de um
sujeito constituído (ainda que ausente), mas dos automatis-
mos do dispositivo técnico, “questão-chave – explica ele –
num momento em que o numérico parece, aos olhos de
muitos, desapossar o criador de toda singularidade e de
toda expressividade e reduzir o ato criador aos puros auto-
matismos maquínicos” (Couchot, 1998, p.8). O conceito
foi inspirado em Merleau-Ponty (1999, p.322) – “a percep-
ção existe sempre no modo do se” – mas foi apropriado
por Couchot numa perspectiva bastante particular, visan-
do dar conta das relações existentes entre a subjetividade
e a automatização do gesto enunciador. A idéia de
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 9
automatização vem evidentemente de Simondon (1969,
p.120s), o primeiro a pensar o acasalamento homem-má-
quina e a transferência de parte dos procedimentos produ-
tivos à tecnologia.
De uma forma bastante simplificada, podemos resu-
mir como se segue o pensamento de Couchot sobre o sujei-
to-SE. Com a evolução das tecnologias de produção simbó-
lica, há um momento em que os procedimentos de constru-
ção ganham autonomia: eles podem funcionar sem a inter-
venção (ou com um mínimo de intervenção) de um opera-
dor. No campo das técnicas figurativas, essa automatização
do gesto enunciador aparece pela primeira vez de forma
suficientemente poderosa e complexa com o surgimento da
fotografia no século XIX, mas as suas primeiras tentativas
remontam às técnicas de codificação óptica e geométrica da
perspectiva renascentista por Leon Baptista Alberti. De fato,
é com a perspectiva de projeção central, em primeiro lugar,
e logo depois com os vários aparelhos que automatizam par-
cialmente o processo pictórico (o intersetor de Alberti, a
tavoletta de Brunelleschi, o prospettògrafo reticolato de Dürer
etc.) que a pintura começa a se liberar do olho e da mão do
pintor, transferindo parte do processo construtivo a disposi-
tivos ópticos e a uma série hierarquizada de operações ma-
temáticas, que corresponde a uma espécie de algoritmo geo-
métrico. “A perspectiva – observa Couchot (1988, p.35) – é
portanto uma máquina de ver no sentido mais completo do
termo: perceber e figurar, registrar e inventar”. É, portanto,
no Renascimento, em primeiro lugar, com a sistematização
albertiana da perspectiva, e com maior ênfase no começo
do século XIX, com a invenção da fotografia, que nasce
aquilo que Couchot chama de “o sujeito aparelhado” (le sujet
appareillé), fortemente dependente de uma máquina que reali-
za boa parte das operações de ver e representar.
Esse sujeito aparelhado que nasce com a perspectiva e
a fotografia passa a funcionar sob um modo indefinido, im-
10 APRESENTAÇÃO
pessoal e anônimo (nele, o eu se ausenta), sob o modo do SE,
para retomar a expressão de Merleau-Ponty. “Essa indefinição
– adverte Couchot – não significa, entretanto, que esse SE
perde suas qualidades de sujeito e se torna objeto. SE perma-
nece sempre sujeito, sujeito do fazer técnico, mas um sujeito
despersonalizado, fundado numa espécie de anonimato”
(1998, p.8). Assim, à medida que vai sendo substituído por
processos de automatização, o olhar é colocado a funcionar,
a partir do século XV, sob o modo impessoal do SE. Mas ele
não perde, com isso, a sua função mais propriamente subjeti-
va (definidora da ação de um sujeito). Pelo contrário, grande
parte desses procedimentos técnicos vão, na verdade, ampliar,
reforçar o seu papel agenciador da visão. O sujeito se torna
anônimo, sem identidade (porque, em essência, é um algo-
ritmo que “vê” e enuncia), mas o seu papel estrutural, o seu
papel “assujeitador” é potencializado. Em lugar de apagar-se
e perder a sua função, o sujeito torna-se a razão plena do ato
da figuração: não se trata mais simplesmente de uma ima-
gem, mas de uma imagem vista, de uma imagem que é visada,
a partir de um lugar originário de visualização, por algo/al-
guém, que é uma espécie de sujeito-máquina.
A perspectiva – sobretudo aquela que nos vem regen-
do durante pelo menos os últimos 500 anos – inaugura, por-
tanto, novas bases culturais, científicas, epistemológicas a até
mesmo políticas de se pensar e praticar as imagens. E se é
verdade que vivemos hoje uma “civilização das imagens”,
qualquer conhecimento sério dessa civilização deve começar
por aquilo que a funda: a perspectiva. Quiçá possa este livro
de Suely Fragoso servir de farol para todos aqueles que dese-
jam fincar âncoras firmes nas águas turbulentas dos estudos
das imagens, sejam elas clássicas ou contemporâneas, artesa-
nais ou tecnológicas, canônicas ou alternativas.
Arlindo Machado
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 11
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COUCHOT, Edmond (1998). La technologie dans l’art.
Nîmes: Jacqueline Chambon.
FOUCAULT, Michel (1968). As palavras e as coisas. Lisboa:
Portugália.
MERLEAU-PONTY, Maurice (1999). Fenomenologia da per-
cepção. São Paulo: Martins Fontes.
PANOFSKY, Erwin (1975). La perspective comme forme
symbolique. Paris: Minuit.
SIMONDON, Georges (1969). Du mode d’existence des objets
techniques. Aubier: Montaigne.
XAVIER, Ismail, org. (1983). A experiência do cinema. Rio
de Janeiro: Graal.
12 APRESENTAÇÃO
INTRODUÇÃO
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 13
palavra “cadeira”. Em ambos os casos, temos representa-
ções (o desenho, a palavra) formuladas conforme um códi-
go (a projeção bidimensional, a língua portuguesa) que es-
tão substituindo um outro objeto (no exemplo, a cadeira
“de verdade”).1 Descobri ainda mais: um particular estudio-
so da imagem construiu grande parte de sua considerável
notoriedade com uma obra pioneira, na qual ele denuncia-
va justamente o caráter “artificial” (culturalmente construído
e acordado) da perspectiva central. Finalmente! Um grupo
respeitável de estudiosos me oferecia o consolo de que o
desenho de observação não consiste mesmo em “desenhar
aqui o que se vê ali”. Representar aqueles prédios do Largo
São Francisco, no centro da cidade de São Paulo, nunca foi
apenas uma questão de rabiscar no papel o que eu via, era
preciso aprender um código, uma linguagem. Um passo fun-
damental teria sido eu deixar de prestar atenção nas incon-
gruências da perspectivação e passar a me concentrar na-
quilo que “fica igualzinho” no desenho – mas meu espírito
“do contra” não me deixou fazer isso. Como também não
conseguiu evitar que eu passasse para o próximo estágio de
questionamento: afinal, se um bom desenho em perspecti-
va não é menos artificial do que, digamos, os desenhos de
observação que eu era capaz de produzir, por que é que
ninguém (nem eu mesma) diria que um desenho meu tam-
bém “ficou igualzinho” ao original?
Ao longo dos anos, as questões a respeito das repre-
sentações visuais do espaço foram se sucedendo – para
cada resposta encontrada, sempre apareceu no mínimo
mais uma nova pergunta. Meu conhecimento sobre o as-
14 INTRODUÇÃO
sunto foi se tornando mais encorpado (e, espero, mais refi-
nado) num processo que culminou numa pesquisa acadê-
mica. Este livro apresenta parte dos resultados daquela
pesquisa, desenvolvida entre os anos de 2001 e 2004 junto
ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comuni-
cação da Universidade do Vale do Rio do Sinos, Unisinos,
no Rio Grande do Sul, onde atuo como professora e pes-
quisadora desde 1999. A pesquisa recebeu o apoio finan-
ceiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científi-
co e Tecnológico, CNPq, e da Fundação de Amparo à Pes-
quisa do Rio Grande do Sul (FAPERGS). Graças a esta
última pude contar com a atuação da aluna Luciana
Carboni Ceccon como bolsista de Iniciação Científica, a
qual contribuiu bastante para a realização do projeto.
A bibliografia sobre as representações visuais do es-
paço, especialmente a perspectiva central, é ampla e diver-
sificada. Localizar e consultar essas obras pode, no entan-
to, ser uma tarefa difícil, já que os textos estão dispersos
por diversas áreas do conhecimento e apenas a minoria
existe em língua portuguesa. Por essa razão, optei por re-
tomar algumas colocações fundamentais da literatura
preexistente. Isso foi feito com muita parcimônia, inclusi-
ve porque a intenção era apenas garantir que os raciocínios
aqui apresentados pudessem “fazer sentido” para os leito-
res de diferentes filiações sem que os mesmos fossem obri-
gados a percorrer a literatura de referência, de antemão.
Certamente, há muito mais a aprender sobre as imagens
em perspectiva nas obras referidas neste texto e em ou-
tras, correlatas (já que, apesar de extensa, a bibliografia
deste livro está longe de esgotar o tema).
Pretendi fazer um livro que não fosse legível apenas
para outros acadêmicos interessados no assunto, mas que
pudesse interessar a um público mais amplo. Ao final da
redação percebo que, em alguns momentos, em especial
diante de aspectos particularmente áridos da questão, o tex-
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 15
to ficou bastante menos palatável do que eu gostaria. A esta
altura do caminho, só me resta pedir ao leitor que percorra
essas passagens munido especialmente de paciência.
Finalmente, alerto que algumas passagens deste li-
vro coincidem (por vezes ipsis literis) com o conteúdo de
artigos científicos publicados anteriormente. Todos eles
estão listados entre as referências bibliográficas, ao final
do texto. O argumento completo, por sua vez, desde as
considerações mais fundamentais sobre a perspectivação
até as conclusões finais da pesquisa, está sendo apresenta-
do pela primeira vez neste volume.
16 INTRODUÇÃO
1.
PERSPECTIVA
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 17
de fuga, não são paralelas a profundidade e a largura, e na
perspectiva com três pontos de fuga o objeto não é paralelo
ao plano de projeção em nenhuma das três dimensões (altu-
ra, largura, profundidade).
A convergência das linhas paralelas em uma (ou mais)
das três dimensões espaciais não implica apenas alteração
da “escala” dos objetos representados mas, em uma série de
circunstâncias, modifica também as “formas” dos mesmos.
Muitas vezes as representações perspectivadas de objetos
redondos, por exemplo, assumem a forma de elipses. O fato
de que consideramos essas figuras corretas e verossímeis
sem jamais perder de vista que os pratos, tigelas e gargalos
de garrafas assim representados são efetivamente redondos,
constitui um paradoxo importante para o argumento apre-
sentado neste livro. Retornaremos, portanto, nos capítulos
posteriores, a esta peculiaridade. Por enquanto, é suficiente
perceber que os esquemas abaixo revelam uma condição
fundamental da perspectivação, que é a presunção de que
os raios de luz viajam em linha reta. Observações nesse sen-
tido teriam sido realizadas já há milhares de anos, tanto pe-
los chineses (em especial pelo filósofo Mo Ti, que viveu no
século V a.C.) quanto pelos gregos. Embora discordassem
quanto ao sentido percorrido pelos raios de luz, tanto Platão
quanto Aristóteles postularam que os mesmos se movimen-
tam em linha reta: para o primeiro, indo dos olhos para os
objetos; para o segundo, dos objetos para os olhos. A Óptica
18 PERSPECTIVA
de Euclides de Alexandria,1 que costuma ser considerada
um dos mais antigos tratados sobre a perspectiva, parte da
proposição platônica de que “raios de visão” emanam dos
olhos para as coisas. Diversas proposições daquela “óptica”
reafirmam a relação entre o tamanho aparente dos objetos
e a distância entre os mesmos e o olho que os observa. Isso
devido a um debate que, para nossas mentes contemporâ-
neas, chega a ser engraçado: um dos objetivos principais de
Euclides ao redigir a Óptica era contrapor certas correntes
filosóficas,2 para as quais cada objeto é exatamente do ta-
manho que o vemos – ou seja, Euclides estava empenhado
em defender a hipótese de que nós vemos pequenas as coi-
sas distantes porque estão longe, não porque sejam de fato
menores do que as que estão mais próximas como propu-
nham alguns de seus contemporâneos.
É preciso ressaltar, no entanto, que, para os gregos,
a idiossincrasia que implica nas coisas mais distantes nos
parecem menores consistia numa instância de “deforma-
ção” do mundo imposta por nossa condição humana. Não
era o caso, portanto, de multiplicar representações afina-
das com essa nossa peculiaridade, como viria a tornar-se
comum a partir do Renascimento. Na Antiguidade Clássi-
ca, tratava-se justamente de corrigir essa “deficiência” sem-
pre que possível, de modo a aliviar a disparidade entre o
mundo percebido e o mundo das realidades ideais (o qual
constituía, para Platão e seus seguidores, o mundo real por
excelência). A aplicação mais famosa desse tipo de corre-
ção é o templo de Palas Atena, conhecido como Partenon.
A impressão de perfeição e solidez que fez a fama do
Partenon decorre de um complexo conjunto de subterfú-
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 19
gios, entre os quais é corriqueiro destacar as alterações na
forma e posição das colunas e a elevação da parte traseira
do templo. O resultado é um edifício cujas linhas nos pare-
cem absolutamente retas justamente porque não o são
(Howland, 1999, p. 5-6).
RENASCENÇA
Para além do aparente abandono das tentativas de corre-
ção da deformação visual, o conhecimento sobre a visão e
a geometria não avançou muito no continente europeu
durante a Idade Média. No século XIII, Vitelo de Silesia
desenvolveu um extenso tratado sobre óptica, ao qual
intitulou justamente Perspectiva.3 Grande parte do conteú-
do dessa obra concorda com o senso comum dos dias de
hoje, a começar pela rejeição da idéia (platônica e eucli-
deana) de que os olhos emitem raios de luz. Para dizer que
o fenômeno da visão consiste na recepção de raios de luz
refletidos pelos objetos à nossa volta, Vitelo teria se inspi-
rado sobretudo no matemático árabe Alhazen, que viveu
por volta do ano 1000 d.C. Munindo-se de astrolábios, es-
pelhos e quadrantes, Vitelo ocupou-se de questões relati-
vas aos reflexos e refrações e inaugurou, com alguns sécu-
los de antecipação, alguns critérios de cientificidade que
entrariam em vigor a partir do Renascimento e que, em
grande parte, permanecem vigentes ainda nos dias de hoje.
K. H. Veltman (1998, s.p.) nota a semelhança entre
os experimentos em que Vitelo utilizou espelhos planos
para observar o que acontecia do lado de fora de salas
20 PERSPECTIVA
fechadas e a série de experiências com imagens em pers-
pectiva que o arquiteto florentino Filippo Brunelleschi vi-
ria a realizar quase 150 anos mais tarde. A mais famosa
dentre essas experiências foi realizada em frente ao batis-
tério de Florença, onde Brunelleschi posicionou uma tela
quadrada, na qual se via uma representação perspectivada
do próprio batistério. Um pequeno orifício fora previamen-
te aberto num ponto da tela. Entre a tela e o batistério,
voltado para a primeira, Brunelleschi colocou um espelho.
Olhando por detrás da tela, através do orifício, a pintura,
refletida no espelho, surgia como uma cópia exata do Ba-
tistério ao fundo (Figura 2).
É verdade que o sucesso de um tal experimento
depende de muitos condicionantes, o mais elementar dos
quais é a simetria vertical do edifício escolhido para a
demonstração, essencial para neutralizar a reversão es-
querda/direita pelo espelho. Em segundo lugar, é preci-
so que as distâncias entre a tela, o espelho e o edifício
sejam rigorosamente calculadas, evitando desproporções.
Acima de tudo, para que a ilusão fosse suficientemente
poderosa era imprescindível que o observador estivesse
num determinado local e que observasse a cena através
de um orifício especificamente posicionado. O ponto-cha-
ve de Brunelleschi era, de todo modo, o fato de que ape-
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 21
nas com uma pintura construída em exata perspectiva
central seria possível criar uma ilusão tão poderosa – e o
poder de convencimento de uma demonstração empírica
desse porte e sucesso naquele específico momento da his-
tória ocidental não pode ser subestimado. Não é à toa,
portanto, que cerca de 10 anos mais tarde Leon Baptista
Alberti dedicaria a Filippo Brunelleschi o tratado Da Pin-
tura4 (1435), considerada a primeira obra ocidental a to-
mar a pintura como objeto de teoria sistematizada. Ao
longo de todo o tratado, Alberti prega a “figuração realis-
ta da natureza”, o que se traduz, em grande parte, na re-
comendação para que os artistas obedeçam ao código da
perspectiva. Curiosamente, Alberti retoma a proposição
euclideana de que os olhos emitem raios visuais ao des-
crever o mecanismo da visão em termos da
...opinião dos filósofos, os quais afirmam que as
superfícies são medidas por alguns raios, uma
espécie de agentes da visão, por isso mesmo cha-
mados visuais, que levam ao sentido as formas
das coisas vistas. E nós imaginamos estes raios
como se fossem fios extremamente tênues, liga-
dos por uma cabeça de maneira muito estreita
como se fosse um feixe dentro do olho, que é a
sede do sentido da vista. E daí, como tronco de
todos os raios, aquele feixe espalha vergônteas
diretíssimas e tenuíssimas até a superfície que
lhe fica em frente (Alberti, 1989, § 5, p. 75).
22 PERSPECTIVA
particularmente importantes. Com isso, afortunadamente,
acaba por reduzir a importância da direção atribuída aos
raios visuais e acentua a importância da figura hipotética
que seria produzida pelo conjunto daqueles raios, à qual
denomina “pirâmide visual”:
Investiguemos como cada raio age sobre a vi-
são. Em primeiro lugar, falaremos dos raios ex-
tremos, depois dos médios e finalmente do
cêntrico. Com os raios extremos medem-se as
quantidades. Chama-se quantidade todo espa-
ço da superfície entre dois pontos da orla. E o
olho mede essas quantidades com raios visuais
quase como um par de compassos... Por isso, se
costuma dizer que, quando se vê, produz-se um
triângulo cuja base é a quantidade vista e os la-
dos são esses raios, os quais se estendem dos
pontos da quantidade até o olho (Alberti, 1989,
p. 76, § 6).
E ainda:
Esses raios extrínsecos, circundando a superfí-
cie e tocando um no outro, envolvem toda a
superfície como as varas de vime de um cesto, e
produzem, como se diz, aquela pirâmide visual...
(Alberti, 1989, p. 77, § 7).
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 23
qual se vê a cena retratada,5 mas de vários dispositivos desen-
volvidos para auxiliar a tarefa de desenhar em perspectiva.
Um conjunto particularmente conhecido de ilustrações de
Albrecht Dürer representa artefatos e artifícios desse tipo,
desde o simples (porém eficiente) reticolato (uma superfície
transparente e quadriculada que, quando interposta entre o
pintor e a cena representada, tem o efeito de “planificar” a
visualização) até a elaborada “máquina de perspectiva”, re-
presentada na famosa gravura Artista Pintando um Alaúde.6 Esta
obra mostra um artista ligando um ponto na superfície de um
alaúde a um pino preso em uma parede. Entre a parede e o
alaúde encontra-se uma moldura vertical, na qual um auxili-
ar demarca o local em que o fio cruza a superfície. Quando o
fio é retirado, a tela é posicionada junto à moldura e o ponto
determinado é marcado. Isto feito, a tela é novamente
deslocada para o lado e um novo ponto no alaúde é ligado ao
pino na parede – e assim sucessivamente –, até que o conjun-
to de pontos demarcados na tela permite visualizar a imagem
perspectivada do alaúde (Figura 3).
Perspectógrafos cada vez mais elaborados apoiaram
o desenho em perspectiva ao longo dos séculos, culminan-
do, no século XIX, com a camera lucida. A camera lucida
consiste de um prisma ou um jogo de espelhos arrumados
em um suporte de forma a refletir, sobre uma folha de
papel, a imagem de um objeto situado em frente ao dispo-
sitivo. A denominação camera lucida é claramente uma alu-
são ao mais longevo de toda essa família de aparelhos: a
camera obscura.
24 PERSPECTIVA
Figura 3. Representação esquemática do perspectógrafo representado na
gravura Artista Pintando um Alaúde, de A. Dürer, circa 1525.
CAMERA OBSCURA
Os fundamentos da tradução da tridimensionalidade em
superfícies planas por aparelhos do tipo camera são conhe-
cidos há milhares de anos. Sua mais antiga descrição é atri-
buída ao (anteriormente mencionado) filósofo chinês Mo
Ti que, refletindo sobre a natureza das sombras, teria ex-
plicado como em um quarto muito escuro, no qual a luz só
possa penetrar através de um pequeno orifício, observa-se
a formação, na parede oposta, de uma imagem que corres-
ponde à cena exterior ao orifício, verticalmente invertida
(Figura 4). Registros da observação de um ou vários aspec-
tos do funcionamento do mesmo dispositivo aparecem nas
obras de outros autores que também já foram referidos
neste capítulo, como Aristóteles, o matemático Alhazen e
Leonardo da Vinci. O termo camera obscura foi cunhado
por J. Kepler no século XVII, para denominar uma sala,
tenda ou caixa escura, com uma abertura (já então equipa-
da com lente para melhorar a qualidade da imagem). Essa
era a versão da camera obscura então comumente utilizada
por artistas como ferramenta auxiliar de desenho.
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 25
Figura 4. Representação esquemática da camera obscura.
26 PERSPECTIVA
tampassem de forma durável, e permanecessem fixas no
papel. Assim, nasceu o conceito da fotografia” (Schaaf,
2004, s.p.).
O referido texto de Talbot, enviado à Royal Society of
London, em 1839, trazia as especificações de um seu invento
(o calótipo) dedicado justamente a capturar, com o auxílio de
câmera, as imagens da natureza. É verdade que, embora esse
registro pareça ter precedido por alguns meses o processo de
patente do daguerreótipo, o segredo da fixação fotoquímica
de imagens produzidas com câmeras já havia sido inaugura-
do 12 anos antes, pelo francês N. Niépce (que em 1829 se
tornaria parceiro de negócios de Louis Daguerre). O calótipo
e o daguerreótipo diferiam em uma série de aspectos,7 mas
eram idênticos naquilo que concerne aos interesses da pre-
sente discussão, que é o dispositivo óptico que estabelece um
vínculo luminoso entre a superfície de registro e os elemen-
tos de uma cena qualquer, viabilizando o congelamento de
um momento específico na existência do mundo dito “real”
para sua posterior reenunciação: a camera obscura.
Ocorre que os mesmos princípios embasam o funcio-
namento da camera obscura e a perspectiva central e, por-
tanto, as representações perspectivadas estão no cerne do
movimento de proliferação da informação visual inaugu-
rado pela popularização da fotografia (e posteriormente
de outras tecnologias igualmente baseadas no uso de
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 27
câmeras, como o cinema e o vídeo). Em outras palavras,
todas as imagens criadas e reproduzidas com o auxílio de
câmeras são formuladas de acordo com o código da pers-
pectiva – mais particularmente a perspectiva linear com
um ponto de fuga.8 Até mesmo as representações de am-
bientes modelados digitalmente, sem necessidade de in-
terferência da luz, tendem a ser formuladas conforme o
código da perspectiva central: não é por coincidência que
a localização do ponto de vista para enunciação é referida,
no jargão da computação gráfica, como “posicionamento
da câmera virtual”. Nos dias atuais, portanto, imagens em
perspectiva (executadas com técnicas que variam do dese-
nho à simulação digital, passando pela fotografia, cinema
e vídeo) circundam-nos todo o tempo. Espalhadas por jor-
nais, revistas, outdoors e telas eletrônicas, tais representa-
ções tornaram-se parte indissociável da paisagem cotidia-
na ocidental. A reputação de fidelidade representativa de
que gozam essas imagens encontra-se exemplarmente
materializada na expressão “realismo fotográfico”. O pró-
ximo capítulo problematiza justamente esse estatuto de fi-
dedignidade.
28 PERSPECTIVA
2.
PERSPECTIVA
ARTIFICIALIS
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 29
perspectiva como a “arte de representar os objetos sobre
um plano tais como se apresentam à vista” (Holanda Ferreira,
1999, p. 1.553, ênfase adicionada). Um significativo con-
junto de estudiosos da imagem argumenta, por outro lado,
que a aparente identidade entre a representação pers-
pectivada e nossa percepção visual do espaço decorre me-
nos de uma coerência intrínseca ao código da perspectiva
e mais a um longo processo de naturalização que, ao longo
de séculos, acabou por relegar a segundo plano outras for-
mas de representação bidimensional do espaço igualmen-
te eficientes e amplamente empregadas em outros tempos
e/ou por outras culturas.
A credibilidade sem precedentes atribuída ao có-
digo da perspectiva decorre, em grande parte, do cará-
ter empírico das demonstrações de Brunelleschi, mencio-
nadas no capítulo anterior. Embora haja evidência de
que os pintores continuaram, mesmo após aquelas expe-
riências, a praticar sua arte baseando-se sobretudo em
sua experiência pessoal do mundo (e não em formula-
ções totalmente racionais ou em proporcionalidades es-
tritas) (Pérez-Gómez e Pelletier, 1997, p. 31-33), certa-
mente fizeram-no sob a influência cada vez mais
marcante de um esforço de racionalização altamente re-
presentativo do modo moderno de conhecer – e abor-
dar – o mundo. Voltaremos a este ponto mais adiante.
Por enquanto, é suficiente ressaltar que a naturalização
das crenças modernas fez-se acompanhar pela generali-
zada aceitação da perspectiva não como um modelo (ne-
cessariamente simplificado) do mundo sensível, mas
como o retrato fiel daquele mesmo mundo. É por isso
que, embora apenas reafirmasse algo que aparece recor-
rentemente em textos sobre a perspectiva, anteriores ao
século XVII, Erwin Panofsky causou polêmica ao desta-
car as arbitrariedades da perspectivação em sua – hoje
paradigmática – obra de 1927, A perspectiva como forma
30 PERSPECTIVA ARTIFICIALIS
simbólica.1 Naquele texto, Panofsky aponta diversas in-
consistências das imagens em perspectiva e desafia a pro-
priedade daquele código para a representação plana da
experiência espacial tridimensional destacando que
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 31
... a perspectiva transforma o espaço psicofisio-
lógico em espaço matemático. Ela nega a dife-
rença entre frente e trás, entre direita e esquer-
da, entre corpos e espaço intermediário (espa-
ço “vazio”) (Panofsky, 1997, p. 31).
32 PERSPECTIVA ARTIFICIALIS
O autor argumenta que essa peculiaridade implica tanto em
deformações nas grandezas percebidas quanto em uma ten-
dência a ver como curvas linhas que, na verdade, são retas.
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 33
FORMA SIMBÓLICA
Panofsky foi provavelmente o primeiro autor a propor de
forma objetiva que a ampla aceitação da perspectiva cen-
tral como forma ótima de representação do espaço deriva
sobretudo de sua grande afinidade com a organização so-
cial e o paradigma cultural do período renascentista. Para
ele, o espaço infinito e homogêno das representações em
perspectiva corporifica a visão antropocêntrica, uniformi-
zadora e sistematizadora que caracteriza a cultura ociden-
tal moderna, em oposição às formas de representação do
espaço características das culturas greco-romana e medie-
val, que seriam “a expressão de uma visão de espaço espe-
cífica e fundamentalmente não-moderna... e portanto a ex-
pressão de uma concepção de mundo igualmente específi-
ca e não-moderna” (Panofsky, 1997, p. 43). A essas duas
concepções de espaço Panofsky denominou respectivamen-
te “espaço sistematizado” (Systemraum) e “espaço agrega-
do” (Aggregatraum). Sublinhando a diferença entre o espa-
ço representado nas imagens em perspectiva e nossa per-
cepção cotidiana do espaço, Panofsky introduz a discussão
do quanto é culturalmente condicionada a generalizada
aceitação da perspectiva como forma ótima de represen-
tar a tridimensionalidade em superfícies planas.
A estrutura de um espaço infinito, imutável e ho-
mogêneo – em poucas palavras, um espaço pu-
ramente matemático – é bastante dissimilar da
estrutura do espaço psicofisiológico. A percep-
ção desconhece o conceito de infinitude; desde
sempre é confinada a certos limites espaciais
impostos por nossas faculdades. Em conexão com
o espaço percebido, não se pode falar mais em
homogeneidade que em infinitude. A homoge-
neidade do espaço geométrico se encontra defi-
nitivamente embasada na pressuposição de que
34 PERSPECTIVA ARTIFICIALIS
todos os elementos do espaço, os “pontos” que
são reunidos nele, sejam meros determinadores
de posições e não possuam conteúdo indepen-
dente fora desta relação, desta posição que ocu-
pam uns em relação aos outros. Sua realidade é
exaurida nessa relação recíproca: é puramente
funcional e não uma realidade substantiva. Por-
que fundamentalmente destituídos de conteúdo,
porque se tornaram meras expressões de rela-
ções ideais... sua homogeneidade não significa
nada mais que esta similaridade estrutural, fun-
damentada sobre... seu propósito e significado
ideais. Portanto, o espaço homogêneo não é ja-
mais um espaço dado, mas espaço [culturalmen-
te] construído (Panofsky, 1997, p. 30).
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 35
mental entre aquelas duas práticas. Na mesma linha, Martin
Jay defende a afinidade entre a perspectiva e a ética bur-
guesa a partir das similaridades entre os procedimentos de
perspectivação e diversas práticas capitalistas. Mais especi-
ficamente, este último autor indica a correlação entre o
mundo numérico, aritmético e organizado dos livros-caixa
e a ordem visual igualmente limpa e matemática proposta
pela perspectivação e também a coincidência temporal en-
tre a invenção (ou a redescoberta) da perspectivação e a
emergência do comércio de pinturas a óleo (1998, p. 9).
Acima de tudo, a perspectivação exemplifica, de modo pri-
vilegiado, a síntese entre teoria e observação que é caracte-
rística da ciência ocidental moderna: toda a teoria da pers-
pectiva se baseia na pressuposição de que o mundo das
coisas sensíveis (o mundo que podemos ver) repousa sobre
uma ordem ideal (matemática) que a pesquisa e sistemati-
zação podem dar a conhecer. Assim, não pode passar des-
percebida a relevância da possibilidade de codificar nume-
ricamente a perspectivação e seus resultados (traduzindo-
os em proporções e triangulações) num período histórico
em que a ciência “abandonou a leitura hermenêutica do
mundo como um texto divino, preferindo vê-lo como situa-
do numa ordem espaço-temporal matematicamente regu-
lar, preenchida com objetos naturais que somente poderiam
ser observados desde fora, pelo olho desapaixonado do
pesquisador neutro” ( Jay, 1988, p. 9).
Se a naturalização da perspectiva é parte de um pro-
cesso de aculturação dos valores fundamentais da socieda-
de moderna ocidental, convencer-se de que as imagens em
perspectiva representam o espaço físico e os objetos que o
habitam conforme percebidos pelos sentidos humanos cor-
responde a um passo definitivo em direção à aceitação de
uma determinada compreensão do mundo, na qual o ho-
mem funciona como ponto focal e escala fundamental de
todas as coisas, estas organizadas em termos sistemáticos e
proporcionais, numa específica forma de harmonia e equilí-
36 PERSPECTIVA ARTIFICIALIS
brio que é impossível perturbar ou mesmo questionar. Vale
a pena destacar esta proposição de que os produtos cultu-
rais (no caso, as imagens em perspectiva) expressam uma
determinada percepção do mundo, não implica negar (nem
afirmar) a existência de uma realidade objetiva anterior à
nossa percepção – e independente dela. Afirma-se aqui,
apenas, que nossa experiência do mundo dito “real” acon-
tece sempre e necessariamente sob a influência de nosso
ferramental anatômico-fisiológico, sob a tutela de nossos
interesses e preconceitos e, ainda, sob a égide de nossas sus-
peitas e convicções. Sendo assim, considera-se que a ampla
aceitação da perspectiva como modo ótimo de representar
a tridimensionalidade corresponde à disseminação de um
específico conjunto de crenças como se fossem “leis da na-
tureza e da razão”, culminando na conformação da experiên-
cia espacial às formas de ser e organizar o mundo que ca-
racterizaram a ideologia dominante em um dado período
da história ocidental do conhecimento.
Ao olhar para um quadro construído em pers-
pectiva, o espectador parece ver tão-somente o
“reflexo” especular de uma realidade que se abre
para ele como numa janela; o que ele não per-
cebe, na maioria das vezes, é que esse quadro já
está visto por um olho hegemônico que lhe di-
rige o olhar. Essa contradição apenas reproduz
o paradoxo que habita toda ideologia dominan-
te: as determinações particulares, o ponto de
vista específico, a intencionalidade que dita cada
estratégia se encontram reprimidos ou oculta-
dos por mecanismos de refração, de modo a per-
mitir que a subjetividade de uma visão particu-
lar possa aparecer como a objetividade de um
sistema de representação universal (Machado,
1984, p. 73).
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 37
A naturalização de um conjunto de crenças e valo-
res não é exclusividade das imagens em perspectiva – es-
tas apenas ajudam a compor a “ideologia anônima” que se
manifesta constantemente “nas representações da cultura
[e] mostra-se também, de modo ainda mais “espesso”, na
cultura cotidiana, ...nas normas não escritas da vida em
sociedade” (Gomes, 2000, p. 62). No caso das representa-
ções do espaço, uma entidade abstrata a respeito da qual
não estamos habituados a refletir e cuja efetiva natureza a
ciência contemporânea reconhece desconhecer, parece
particularmente fácil proceder a esse processo de identifi-
cação do arranjo dos elementos conforme os pressupostos
de uma dada ideologia como “ordem natural das coisas”.
SIGNO INDICIAL
Um importante argumento dentre os usualmente mobili-
zados em defesa da perspectiva como a forma correta (ou
a mais correta) de representar o espaço em superfícies pla-
nas permaneceu, pelo menos até recentemente, em gran-
de parte, inquestionado. Para compreendê-lo, vale a pena
recuperar – e estender – uma passagem do tratado de
Alberti já reproduzida no capítulo anterior. Trata-se dos
parágrafos em que, ao detalhar os diferentes tipos de “raios
visuais”, ele os descreve conectando, ponto-a-ponto, os
objetos do mundo e o olho que os vê:
Investiguemos como cada raio age sobre a vi-
são. Em primeiro lugar, falaremos dos raios ex-
tremos, depois dos médios e finalmente do
cêntrico. Com os raios extremos medem-se as
quantidades. Chama-se quantidade todo espa-
ço da superfície entre dois pontos da orla. E o
olho mede essas quantidades com raios visuais
quase como um par de compassos... Por isso se
costuma dizer que, quando se vê, produz-se um
triângulo cuja base é a quantidade vista e os la-
38 PERSPECTIVA ARTIFICIALIS
dos são esses raios, os quais se estendem dos pontos
da quantidade até o olho (Alberti, 1989, p. 76, § 6,
ênfase adicionada).
E ainda:
Esses raios extrínsecos, circundando a superfí-
cie e tocando um no outro, envolvem toda a
superfície como as varas de vime de um cesto, e
produzem, como se diz, aquela pirâmide visual...
Passemos a falar dos raios médios, uma multi-
dão dentro da pirâmide, cercada pelos raios
extrínsecos. Eles fazem o que se diz do cama-
leão, animal que toma as cores de todas as coi-
sas que lhe estão próximas. Esses raios, da su-
perfície que eles tocam até o olho, de tal forma se apro-
priam das cores e da luz existentes na superfície, que,
se interrompidos num ponto qualquer, seriam
sempre iluminados e coloridos da mesma ma-
neira.... (Alberti, 1989, p. 77-78, § 7, ênfase adi-
cionada).
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 39
crição bastante precisa do raciocínio em questão pode ser
encontrada nas considerações com que C. S. Peirce atribui
às fotografias o caráter de índices:
[a]s fotografias, especialmente as fotografias ins-
tantâneas, são muito instrutivas porque nós sa-
bemos que elas são, de certo modo, exatamen-
te como os objetos que representam. Mas essa
semelhança é devida ao fato de que as fotogra-
fias foram produzidas sob circunstâncias que fi-
sicamente as forçaram a corresponder ponto a
ponto à natureza. Nesse aspecto, então, elas
pertencem à segunda categoria dos signos, aque-
les por conexão física2 (Peirce, 1994, v. I, § 281).
40 PERSPECTIVA ARTIFICIALIS
modo errôneo) associada à “eliminação” da possibilidade
de intervenção autoral graças à automatização do proces-
so produtivo. A partir daí se recompõe a suposição de fi-
dedignidade em relação a esse tipo em particular de repre-
sentação em perspectiva, levando, no limite, o observador
a confiar (indevidamente) na imagem fotográfica tanto
quanto confia em seus próprios olhos. Contrapondo-se a
esta postura, A. Machado descreve e discute, em sua obra
A ilusão especular, a dupla vinculação do signo fotográfico,
ao qual considera simultaneamente motivado e arbitrário:
... “motivado” porque, de qualquer maneira, não
há fotografia sem que um referente pose diante
da câmera para refletir para a lente os raios de
luz que incidem sobre ele; “arbitrário” porque
essa informação de luz que penetra na lente é
refratada pelos meios codificadores (perspecti-
va, recorte, enquadramento, campo focal, pro-
fundidade de campo, sensibilidade do negativo
e todos os demais elementos constitutivos do
código fotográfico...) para convertê-los em fa-
tos da cultura, ou seja, em signos ideológicos
(Machado, 1984, p. 159).
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 41
Uma vez que o espaço matematizado da perspectiva não
corresponde à nossa percepção do espaço, parece haver
uma consonância entre o espaço das representações
perspectivadas e a “verdadeira” natureza do espaço físico.
A solidez desta hipótese demanda uma discussão sobre a
afinidade entre o espaço de nossa vivência cotidiana e o
“receptáculo” homogêneo, tridimensional e potencialmente
infinito construído pela perspectiva central. A esta questão
é dedicado o próximo capítulo.
42 PERSPECTIVA ARTIFICIALIS
3.
A NATUREZA
DO ESPAÇO
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 43
de conceber o espaço que têm estado presentes no pensa-
mento ocidental pelo menos desde a Antiguidade Clássica.
Para Platão, o espaço constituiria um meio sem qua-
lidades próprias, no qual os objetos existem e os processos
acontecem. Sendo também homogêneo, imutável, esféri-
co, finito e isotrópico, o espaço platônico guarda similari-
dade com (embora não equivalha a) o espaço sistemático
de Panofsky.1 Embora não tenha formulado uma teoria do
espaço de forma tão direta quanto Platão, Aristóteles fez
algumas colocações que permitem compreender um pou-
co de sua concepção espacial. Sua negação da existência
do vazio (horror vacui), por exemplo, permite entender que
o espaço aristotélico não preexiste aos objetos que o ocu-
pam. Também suas colocações sobre o conceito de “lugar”2
permitem depreender algumas propriedades do espaço
conforme ele o concebia. A partir das considerações de
Aristóteles sobre o espaço, M. Bradie e C. Duncan enume-
ram uma série de propriedades do espaço aristotélico:
heterogeneidade, finitude, anisotropia, continuidade,
imutabilidade, incorporeidade (1997, Capítulo 5, s.p.). É
relevante notar ainda que, uma vez que o conceito aris-
totélico de espaço emerge de sua definição de “lugar” e
que, para Aristóteles, um lugar não poderia subsistir sem
estar ocupado (não existem lugares vazios), então a própria
existência do espaço é definida pela existência dos corpos.3
Heterogêneo e relativo aos objetos que o ocupam, o espaço
44 A NATUREZA DO ESPAÇO
aristotélico guarda estreita semelhança com o conceito de
espaço agregado proposto por Panofsky.
Retornando à questão das representações perspec-
tivadas do espaço, é particularmente interessante notar que,
ao recusar a possibilidade de existência do vazio, a con-
cepção aristotélica inviabiliza a tridimensionalidade do
espaço propriamente dito.4 Para Aristóteles, “apenas os ‘ob-
jetos materiais’ concretos têm profundidade, não o espaço
per se. Este fato simples teve profundas implicações... por-
que implicava que apenas os objetos individuais poderiam
ser pintados com ilusão de profundidade, não as ‘áreas in-
termediárias’ entre os objetos” (Wertheim, 1999, p. 100). A
prevalência das proposições de Aristóteles a respeito da
natureza do espaço durante a Idade Média ajuda a com-
preender porque, mesmo nas pinturas de um artista do
medievo tardio claramente interessado em retratar realis-
ticamente corpos tridimensionais, como é o caso do pintor
florentino Giotto di Bondone, os espaços entre os objetos
e figuras representados continua a parecer “achatado”. “De
certo modo, [é possível dizer que, nessas obras] os objetos
são euclideanos, mas o espaço que os circunda permanece
aristotélico” (Wertheim, 1999, p. 100). Decorre também
da preponderância da visão aristotélica do espaço até o
final da Primeira Renascença a identificação, por Panofsky,
do espaço agregado com a conjuntura sociocultural pré-
moderna (Panofsky, 1997, p. 43).
O horror ao vazio a partir do qual as hipóteses aristo-
télicas sobre o espaço foram construídas viria a ser cientifica-
mente desafiado na passagem para o século XVII. Para Galileo
Galilei, “o ‘vazio’ não era mais assunto para debate; era a
fundamentação ontológica da própria realidade, a ‘arena’ neu-
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 45
tra que contém todas as coisas e na qual tudo se move”
(Wertheim, 1999, p. 117). Todavia, apenas no século XVIII,
com a proposição, por I. Newton, de uma cosmologia
justificada em termos religiosos e estruturada sobre noções
absolutas de espaço, tempo e movimento, a visão aristotélica
do espaço perdeu definitivamente a precedência. Dada a ex-
trema aplicabilidade da física newtoniana, a concepção de
espaço que a sustenta tende a ser aquela a que nos remetemos
quando questionados abstratamente sobre o assunto. O espa-
ço que Newton denomina “absoluto” seria um vazio homo-
gêneo, infinito, contínuo, isotrópico e cuja existência independe
da presença dos corpos. É justamente essa a concepção de
espaço materializada nas representações perspectivadas, à qual
Panofsky denomina “espaço sistematizado”.
Assim como a de Aristóteles, outras importantes con-
cepções do espaço divergem da de Newton. Descartes,
como Aristóteles, refuta a existência de vazios. Descartes
propôs, no entanto, que o espaço seria um existente mate-
rial, o que viabilizou a hipótese da tridimensionalidade do
espaço físico implicada na geometria euclideana e na
cosmologia aristotélica.5 A tridimensionalidade do espaço
tornou procedente sua representação geométrica em ei-
xos coordenados, no modo que hoje é conhecido como
sistema de coordenadas cartesianas.6
46 A NATUREZA DO ESPAÇO
A concepção espacial de G. W. Leibniz, usualmente
denominada “relacional” guarda importantes semelhanças
com o conceito panofskyano de “espaço agregado”. Para
Leibniz, o espaço corresponderia “ao conjunto de lugares
(posições relativas) que os corpos ‘podem’ ocupar uns em
relação aos outros” (Bradie e Duncan, 1997, Capítulo 8,
s.p., ênfase adicionada). Conforme Leibniz, o espaço seria
um ideal (não real) não-vazio, infinito, contínuo, homogê-
neo, isotrópico e que emerge das relações entre os objetos.
Os pontos de convergência entre a geometria eucli-
deana, a representação cartesiana do espaço e as concep-
ções espaciais de Leibniz e Newton parecem indicar a per-
tinência científica das representações perspectivadas. De
fato, a homogeneidade do espaço materializado nas ima-
gens em perspectiva corporifica uma hipotética caracterís-
tica do espaço físico em torno da qual convergem as con-
cepções de Leibniz e Newton. A estreita afinidade da for-
mulação em perspectiva central com a geometria eucli-
deana e o sistema de coordenadas cartesianas, por sua vez,
parece indicar a correção da construção perspectivada em
relação à tridimensionalidade do espaço físico.
Antes de afirmar que a fidedignidade das imagens
em perspectiva deriva de sua consonância com a “verda-
deira espacialidade do mundo”, no entanto, é fundamen-
tal verificar que uma profunda crise instalada no seio da
física newtoniana e da geometria euclideana, ainda no sé-
culo XIX, parece haver conduzido as hipóteses científicas
a respeito da natureza do espaço que habitamos para lon-
ge dos conceitos de homogeneidade e tridimensionalidade.
Tanto a emergência das geometrias não-euclideanas,
ainda no século XIX, como a proposição da geometria
fractal no final do século XX, colocaram em cheque postu-
lados euclideanos que embasam as formulações perspec-
tivadas. A grande novidade da geometria fractal, por exem-
plo, consiste justamente na possibilidade de trabalhar com
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 47
dimensões fracionárias ou irracionais em oposição às di-
mensões inteiras euclideanas.7 A inegável capacidade da
geometria fractal para descrever matematicamente fenô-
menos naturais diversos torna difícil descartar como uma
mera abstração absurda a proposição de objetos com di-
mensões “intermediárias”, por exemplo um “semiplano”
de dimensão 1,26666. Também as chamadas “geometrias
não-euclideanas” desafiam diversos postulados de Eucli-
des. A partir das proposições de Gauss, Bolyai e Lobats-
chevskii, Beltrami e, posteriormente, Riemann propuse-
ram modelos geométricos coerentes nos quais, por exem-
plo, linhas paralelas se cruzam e a soma dos ângulos de
um triângulo pode resultar diferente de 180 graus.
Embora inicialmente as geometrias não-euclideanas
possam ainda hoje parecer meras curiosidades matemáti-
cas, incapazes de serem aplicadas ao mundo físico observa-
do, é preciso estar atento para o fato de que foram justa-
mente as proposições de Riemann que permitiram a Albert
Einstein generalizar sua Teoria da Relatividade Espacial.
Anomalias decorrentes dos postulados básicos da física
newtoniana conduziram a uma crise que culminou no desa-
fio, por Einstein, da própria noção de espaço absoluto. O
resultado do trabalho de Einstein é a emergência de uma
teoria geométrica do espaço, que deixa de ser concebido
como vazio, infinito, homogêneo e tridimensional. “Na físi-
ca newtoniana, o espaço é essencialmente uma caixa vazia
– três dimensões lineares que se estendem infinitamente
como um vazio sem limites. Em contraste, o espaço da Re-
latividade Geral é uma vasta membrana” (Wertheim, 1999,
48 A NATUREZA DO ESPAÇO
p. 172). Embora a analogia com uma membrana sugira um
existente com duas dimensões, o espaço, conforme conce-
bido por Einstein, seria quadridimensional (sendo três di-
mensões associadas às euclideanas e uma ao que costuma-
mos chamar tempo). Deformado pela presença de matéria,
o espaço einsteiniano é também uma categoria primária da
realidade, e não apenas um “pano de fundo” contra o qual
se desenrolam as existências.
Mais recentemente, a partir da tentativa de resolu-
ção de ainda mais um paradoxo (a propagação da luz
através do vácuo), outros físicos propuseram a viabilida-
de de um número maior de dimensões espaciais. Na últi-
ma década do século XX, a chamada “Teoria das Cor-
das” apontava para um espaço com 10 dimensões, qua-
tro macroscópicas e seis microscópicas (Wertheim, 1999,
p. 211 e Kaku, 2000, especialmente p. 131-213). A capaci-
dade da Teoria das Cordas para explicar não apenas a
natureza do espaço-tempo, mas também a das partículas,
promovendo finalmente a unificação entre a Teoria da
Relatividade Geral e a Física Quântica (Kaku, 2000, p.
173) faz do espaço com dez dimensões uma visão particu-
larmente coerente. “Assim como Copérnico simplificou
o sistema solar com sua série de círculos concêntricos e
destronou a Terra de seu papel central no céu”, hipótese
que deve ter parecido bastante complicada para os con-
temporâneos daquele cientista, também “as teorias de 10
dimensões prometem simplificar vastamente as leis da
natureza e destronar o mundo familiar de três dimensões”
(Kaku, 2000, p. 337).
Mais uma vez, é preciso reconhecer que as discrepân-
cias entre o espaço materializado nas imagens em perspecti-
va e essas concepções de espaço afinadas com o paradigma
científico contemporâneo, parecem apontar para as repre-
sentações perspectivadas como grandes arcaísmos. Adicio-
nada às vinculações com modos de organização social e con-
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 49
juntos de crenças característicos do Renascimento e do
mercantilismo capitalista apontadas por Panofsky, Rotman e
outros, as quais discutimos no capítulo anterior, a constatação
da afinidade da perspectiva com o hoje desacreditado con-
ceito de espaço absoluto, desafia a pressuposição de que al-
guma consistência inerente às representações perspectivadas
teria facilitado o processo de idealização da ideologia que
aquelas imagens carregam em seu bojo. Em outras palavras,
diante de uma conceituação do espaço físico que é, no míni-
mo, tão consistente quanto a noção de “espaço absoluto”
porém mais afinada com o paradigma científico e cultural
contemporâneo, fica extremamente fragilizada a hipótese de
que o “ponto de apoio” para o extraordinário sucesso da na-
turalização da perspectiva como forma “correta” de repre-
sentar o espaço, seria sua afinidade com a natureza do espaço
que nos circunda. Aparentemente, a presença marcante e a
constante proliferação de imagens em perspectiva na paisa-
gem midiática ocidental apenas reforçam crenças incompatí-
veis não apenas com o paradigma sociocultural contemporâ-
neo mas, também, com o estado-da-arte do conhecimento
científico.
É preciso destacar, no entanto, que as noções con-
temporâneas sobre o espaço afrontam diretamente nossa
vivência cotidiana. Tanto nossos sentidos quanto nossa
compreensão desafiam a afinidade entre o espaço e o tem-
po e não parecem nos dar indicações da existência de mi-
núsculas supercordas que, vibrando, constituem o univer-
so. Se é verdade que o espaço que habitamos pode ser
bastante diferente do espaço que percebemos, a intenção
de discutir justamente a fidedignidade de representações
imagéticas do espaço demanda um retorno às questões da
conceituação e da percepção da espacialidade nos termos
da prática dos sujeitos da contemporaneidade ocidental.
50 A NATUREZA DO ESPAÇO
A PERCEPÇÃO DO ESPAÇO
Em uma obra bastante conhecida,8 Michel De Certeau iden-
tifica o dinamismo com que a experiência cotidiana organi-
za o espaço a partir das operações que o orientam, circuns-
tanciam e temporalizam (De Certeau, 1994, p. 201-203). As
“descrições de percurso”, mais comumente encontradas por
De Certeau, são fortemente vinculadas à percepção espacial
a partir do ponto de vista de cada sujeito. Revisando, na
mesma obra, um trabalho de C. Linde e W. Labour, De
Certeau verifica que é a cientificização do discurso que faz
emergir a idéia de “mapa” (De Certeau, p. 204), fundamen-
talmente caracterizada como a descrição do espaço inde-
pendente de um ponto de vista orientador. Com base nes-
sas colocações, é possível dizer que os conceitos de espaço
absoluto e relacional parecem convergir para formar o que,
nos dias atuais, corresponde à conceituação de espaço a partir
da qual opera a maioria das pessoas. Em outras palavras,
nós, sujeitos da cultura ocidental contemporânea, parece-
mos conceber o espaço no sentido absoluto, conforme os
pressupostos teóricos com os quais operamos a maior parte
do tempo (por exemplo, a física newtoniana). Percebemos o
espaço, no entanto, a partir das relações que os elementos
dentro de nosso campo de visão estabelecem entre si e com
nosso corpo, por conseguinte de forma mais afinada com o
conceito (leibniziano) de espaço relacional.
Uma disparidade semelhante entre concepção e per-
cepção pode ajudar a compreender as implicações dessa
dualidade apontada por De Certeau. A despeito do que
aprendemos ainda nos primeiros anos de escola, todos os
dias nos parece que é o Sol que se levanta e se move através
do céu até cair abaixo da linha do horizonte quando a noite
chega. Justamente porque contradiz nossa percepção coti-
diana, sabemos que a noção de que é a Terra que está em
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 51
movimento ao redor do Sol nos foi ensinada. Quando ques-
tionados em termos genéricos, todavia, respondemos con-
forme a “versão científica” e não de acordo com o que nos
diz a experiência pessoal. Assim também, não importa
quantas leituras já fizemos e ainda iremos fazer sobre a
multidimensionalidade e a teoria das supercordas, nossa per-
cepção do espaço continua a se dar em termos bastante pró-
ximos dos postulados de Euclides e, majoritariamente, de
forma relacional.
Embora o conceito de infinitude seja bastante estra-
nho à percepção, boa parte do espaço que materializamos
nas descrições do tipo “mapa” parece estar de acordo com
nossa vivência espacial cotidiana. Este fato aponta para
uma diferença importante entre o grau de “artificialidade”
das noções da Terra em movimento ao redor do Sol e do
espaço tridimensional que prescinde do olhar do sujeito
para organizar-se. Enquanto a maior parte das pessoas é
capaz de desenhar um mapa, e portanto de organizar o
espaço sem incluir-se como observador, são muitos os que
esbarram na demonstração empírica de que nosso planeta
está em movimento. Se tanto o conceito de um espaço in-
dependente do olho do sujeito quanto o de um planeta
que se move são estranhos à nossa percepção, por que o
segundo nos parece tão mais intangível que o primeiro?
Uma outra formulação consistente a respeito de nossa
percepção espacial, afinada com a de De Certeau e forte-
mente análoga aos conceitos de espaço absoluto e relacio-
nal, propõe a existência simultânea de dois tipos de “re-
presentação mental” do espaço físico. Essas duas formas
de perceber e conceber o espaço são comumente denomi-
nadas “representação alocêntrica” e “representação egocên-
trica”. As representações espaciais de tipo alocêntrico
correspondem a uma concepção em que o mundo físico
“é o que é”, independente de nossa observação ou vonta-
de. Desvinculadas da localização e dos movimentos do
52 A NATUREZA DO ESPAÇO
sujeito, essas representações são também sugestivamente
chamadas “em mapa”.9 As representações espaciais egocên-
tricas, por sua vez, são relativas ao sujeito perceptivo, com-
preendido como parte constitutiva do mundo que ha-
bita (Eilan et. al., p. 9). Uma hipótese particularmente inte-
ressante para a questão da fidedignidade das representa-
ções em perspectiva sugere que, a partir dos dados sensó-
rios, o cérebro humano realiza representações espaciais
de ambos os tipos. Procedimentos empíricos destinados a
identificar os tipos de representações mentais do espaço
que as pessoas normalmente utilizam sugerem que, na
imensa maioria das vezes, os sujeitos contemporâneos ten-
dem a localizar elementos variados em relação a partes de
seus próprios corpos (particularmente os olhos e a cabeça)
ou do corpo como um todo. Em consonância com as pro-
posições de De Certeau, predominam, portanto, as repre-
sentações espaciais do tipo egocêntrico.
A freqüente constatação de “pelo menos uma” cate-
goria de representação mental do espaço de tipo alocên-
trico, em que os objetos eram organizados em função do
próprio ambiente, conduziu um grupo de pesquisadores a
investigações mais detalhadas sobre uma possível identi-
dade entre essa forma de conceber o espaço e a natureza
do mundo físico. Inicialmente sem levar em conta a possi-
bilidade de indução cultural desse tipo de apreensão da
espacialidade, O’Keefe abraçou a hipótese de que “a natu-
reza do espaço psicológico10 é devida a propriedades do
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 53
sistema cerebral que constrói a representação do espaço e
não a qualquer coisa a respeito do mundo físico propria-
mente dito” (O’Keefe, 1993, p. 59).
Experimentos, no sentido de mapear as operações de
representação espacial em relação às áreas do cérebro mais
proeminentemente ativadas, durante o processo de apreen-
são da espacialidade permitiram a identificação de regiões
do cérebro dedicadas às diferentes formas de representação
mental do espaço. Particularmente, as representações ego-
cêntricas parecem estar centradas nos lobos parietais (ou
pelo menos no neocórtex) enquanto a(s) representação(ões)
alocêntrica(s) parece(m) localizar-se no hipocampo. Argu-
mentando que o hipocampo e as áreas imediatamente
circundantes possuiriam todos os componentes necessários
para operar como um sistema de mapeamento espacial,
O’Keefe propõe que diversos aspectos identificados com o
espaço materializado nas representações em perspectiva
poderiam decorrer de propriedades estruturais do hipo-
campo. Assim, características do espaço absoluto como a
continuidade e a homogeneidade, e elementos fundamen-
tais da geometria euclideana como a tridimensionalidade,
estariam em consonância com o sistema neurológico huma-
no, responsável pela compreensão e representação mental
da espacialidade do mundo físico.
Mesmo que não corresponda à efetiva natureza do
espaço que habitamos, de acordo com essa proposição o
espaço materializado nas representações em perspectiva
estaria em consonância com um importante tipo de repre-
sentação mental que fazemos do espaço circundante. Adi-
cionando a esta possibilidade o caráter dual da perspecti-
va, que organiza esse espaço fundamentalmente absoluto
e alocêntrico em torno de um ponto focal que permite a
localização egocêntrica, é possível postular que parte da
adequabilidade das representações perspectivadas decor-
re de uma combinação de características associáveis às re-
54 A NATUREZA DO ESPAÇO
presentações alocêntricas e egocêntricas, similar àquela
prefigurada no sistema nervoso central humano.
É bastante provável que essa mesma combinação
peculiar e poderosa esteja também na base de um proces-
so de autonomização do olhar que conduziu, ao longo dos
séculos, a alterações importantes na apreensão das ima-
gens em perspectiva. Esse processo e essas alterações são
o tema central do próximo capítulo.
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 55
4.
AS MOLDURAS
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 57
gradual e crescente distanciamento entre o observador e a
cena figurada. No processo, os corpos do pintor e do ob-
servador perderam importância em favor de um olhar
desencarnado, absoluto. Ao mesmo tempo, a função discur-
siva da pintura também perdia força devido à crescente
ênfase em aspectos estritamente figurativos:
Isto é, conforme o espaço abstrato, quanti-
tativamente concebido, se tornou mais interes-
sante para o artista do que os sujeitos qualitati-
vamente diferenciados que o ocupavam, a
enunciação passou a ser vista como um fim em
si mesma. Alberti, é certo, havia enfatizado o
uso da perspectiva para representar istoria,1 es-
tórias nobres, mas com o tempo elas pareciam
menos importantes do que o talento demons-
trado na ação de dá-las a ver ( Jay, 1988, p. 8).
1. Em italiano no original.
58 AS MOLDURAS
Ao invés disso, ela coloca seu olho atento na
superfície fragmentária, detalhada, e ricamente
articulada de um mundo que está contente em
descrever ao invés de explicar ( Jay, 1988, p. 13).
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 59
de Alberti). Como essa condição em geral não
é e nem pode ser observada, o efeito produzido
pela perspectiva torna-se absurdo: eu me colo-
co à esquerda e abaixo do objeto representado
pela foto e, no entanto, esse mesmo objeto me é
mostrado como se fosse visto de cima e da di-
reita. O observador só não se dá conta dessa
alucinação topográfica porque, diante do qua-
dro ou da foto, ele penetra num espaço simbó-
lico: ignora o seu próprio lugar e se imagina no
mesmo ponto privilegiado do espaço que orga-
nizou a imagem (Machado, 1984, p. 95).
60 AS MOLDURAS
por parte das instâncias produtoras na tentativa de “con-
trolar e disciplinar” a apreensão das imagens perspecti-
vadas, evitando a realização de leituras “desviantes”. As-
sim, o desenvolvimento dessa habilidade de decodificação
das imagens em perspectiva foi acompanhado pela cria-
ção de uma série de mecanismos que tentam forçar o ob-
servador a posicionar-se em locais suficientemente próxi-
mos do ponto de vista determinado pela projeção pers-
pectivada, evitando as distorções que decorrem de um des-
locamento muito exagerado em relação àquele lugar abs-
trato. Exemplos cotidianos (não por acaso, de um modo
geral, hoje obsoletos) desse tipo de mecanismo seriam os
monóculos para visualização de fotografias,2 os estereoscó-
pios3 (já mencionados no Capítulo II) ou, embora abrigan-
do uma margem de erro maior, a localização das cadeiras
nas salas de cinema. A esse respeito, diz Arlindo Machado
que, ainda hoje, pode-se perceber distorções significativas
“quando nos sentamos muito perto da tela [de cinema], ou
então, quando olhamos para um outdoor exatamente de-
baixo dele” (Machado, 1984. p. 95). Parece-nos, no entan-
to, que mesmo nessas condições extremas, o público con-
temporâneo é capaz de realizar o movimento de projeção
simbólica para o ponto de vista determinado pelas instân-
cias produtoras – na verdade, muitas vezes é incapaz de
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 61
“não” realizá-lo. Ocorre que, circundados por uma profu-
são de imagens em perspectiva desde os primeiros dias de
nossas vidas, sabemos nos deslocar simbolicamente para
o ponto ideal de observação com enorme facilidade. A
princípio, esse “talento” parece favorecer ainda mais o pro-
cesso de naturalização da perspectiva, uma vez que impli-
ca, em contrapartida, a redução da capacidade de perce-
ber as distorções causadas pela perspectivação mesmo a
partir de localizações físicas desfavoráveis.
62 AS MOLDURAS
Antes de prosseguir com essa denúncia do caráter re-
trógrado das imagens em perspectiva, no entanto, é pru-
dente operar um deslocamento de outra ordem, que impli-
ca em reconhecer que tais afirmações consideram que o
caráter ilusionista da representação do espaço segundo o
código da perspectiva tem como função a simulação de trans-
parência proposta por Alberti em Da Pintura, comumente
referida a partir da metáfora do quadro como uma janela
através da qual se vê o espaço representado. Por isso mes-
mo, os estudos que tendem a conclusões desse tipo são aque-
les que se detêm nos limites da “paisagem albertiana”:
Panosfky, por exemplo, inspirou-se fortemente na aborda-
gem estruturalista de seu mestre Alois Riegl4 (ao lado de H.
Wöfflin, um dos pioneiros do formalismo histórico) e bus-
cou isolar as representações que constituíam seu objeto de
estudo do ambiente de sua ocorrência e das funções que
possam ter desempenhado. “A estratégia era isolar tempo-
rariamente a obra para apreender mais claramente seus sen-
tidos estruturais mais profundos” (Wood, in Panofsky, 1997,
p. 8) evitando assim a tendência a formular proposições gros-
seiras sobre as relações entre a obra e o mundo. “Este era
um risco calculado. Mas os delimitadores iniciais freqüente-
mente tornaram mais difícil, ou mesmo desnecessário, en-
contrar um caminho de volta ao mundo cotidiano” (Wood
in Panofsky, 1997, p. 11).
Enquanto as representações em perspectiva perma-
neceram relativamente raras, talvez tenha sido razoável
tecer considerações sobre os contrapontos socioculturais
das imagens perspectivadas a partir de verificações circuns-
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 63
critas aos limites materiais de cada enunciação. Em nossos
dias, por outro lado, parece imprescindível considerar o
fato de que essas imagens não são apreendidas isolada-
mente, mas como parte de uma paisagem visual à qual
estão inexoravelmente associadas. Para fazer isso, é preci-
so ampliar o escopo da abordagem, operando um desloca-
mento em direção à experiência dos sujeitos para os quais
as imagens perspectivadas dão-se, hoje, a ver.
Já é lugar-comum dizer que vivemos tempos de in-
tensa inflação imagética. De fato, o movimento de prolife-
ração da informação visual que a fotografia inaugurou ao
automatizar a antiga técnica da camera obscura e permitir a
reprodução de uma mesma imagem em incontáveis uni-
dades indiscerníveis, ainda parece longe de um eventual
ponto de inflexão. Nos dias atuais, as imagens técnicas es-
tão em toda parte: espalhadas por jornais, revistas, outdoors
e telas eletrônicas, tornaram-se parte indissociável e mar-
ca fundamental da paisagem cotidiana ocidental. O resul-
tado é que, neste específico momento social e histórico, na
atual configuração cultural fortemente dominada pela pro-
dução tecnológica de imagens, o que os olhos “de carne e
osso” encontram cotidianamente não são imagens isola-
das, cada uma cuidadosamente afastada das demais e dis-
posta contra fundo neutro. Uma profusão de imagens de
diferentes tipos se oferece aos olhos de cada cidadão urba-
no ocidental – algumas vezes umas em sucessão às outras,
cada vez mais intensamente muitas ao mesmo tempo. Em
nossas casas, as imagens na tela da TV convivem, na sala
iluminada, com a vida para além dos limites do aparelho
televisor, compondo um mosaico em que as figuras eletrô-
nicas se harmonizam com quadros, fotografias, mobiliário
e outros tantos tipos de elementos.5 Nas ruas, o espaço pro-
64 AS MOLDURAS
priamente dito é percebido ao mesmo tempo que um tur-
bilhão de representações espaciais as mais diversas: grafi-
tes, pichações, placas de trânsito, letreiros, painéis publici-
tários, mobiliário urbano, veículos, rostos, edificações...
Mais ainda: todo esse cenário multifacetado passa diante
de nossos olhos tão rápido quanto o impõe a contempora-
neidade, pois a aceleração crescente (assim como a visua-
lidade) é uma marca de nosso tempo.
Incrivelmente hábil na tarefa de deslocar-se simbo-
licamente para o ponto de observação “ideal” determina-
do pela representação em perspectiva, o olhar contempo-
râneo indubitavelmente decifra as muitas imagens com que
se defronta cotidianamente. Não as enxerga, no entanto,
isoladamente: cada uma delas se oferece em meio a todas
as demais, e cada uma é “lida” como parte (que é) de um
conjunto. Assim, é preciso levar em conta não apenas o
que está contido nos limites de cada uma das “janelas
albertianas” que compõem a paisagem contemporânea,
mas também as relações destas janelas entre si e com os
elementos que as circundam.
Inclusive, no que concerne ao constante movimen-
to, o cenário contemporâneo se parece mais com um cali-
doscópio do que com uma paisagem pintada por um artis-
ta da Renascença. Nas ruas de qualquer grande cidade
ocidental, por exemplo, em meio aos volumes arquite-
tônicos, ruas, postes e fios se combinam e disputam nossa
atenção com sinalizações de trânsito, outdoors e placas de
lojas, “achatando” a profundidade de campo e fazendo
desaparecer a linha do horizonte. Assim contextualizadas,
as imagens em perspectiva encontram-se tensionadas até
o limite de suas condições de reconhecimento. Enquanto
para Alberti a perspectivação deveria corresponder a uma
superfície de vidro translúcido que atravessasse a pirâmi-
de visual (Alberti, 1989, p. 82) hoje cada objeto, sendo
“translúcido, está penetrado em todas as suas partes por
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 65
uma infinidade atual de vistas que se cortam em sua pro-
fundidade e nada deixam oculto” (Gullar, 1985, p.78). Basta
acrescentar à equação o caráter fluido e fugaz da vida de
nossos dias para que, na vertiginosa calidoscopia que as
encompassa, as imagens em perspectiva ressurjam fulgu-
rantemente ressignificadas.
O próximo capítulo apresenta os resultados de um
esforço sistematizado de compreensão do espaço materia-
lizado pelas representações em perspectiva levando em
conta exatamente sua condição de componentes da paisagem
midiática contemporânea.
66 AS MOLDURAS
5.
A RESSIGNIFICAÇÃO
DA PERSPECTIVA
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 67
O fato de que a apreensão desses elementos se dá ao
longo do tempo não invalida a unidade com que se apre-
sentam: ao contrário do que prega a muito difundida Teo-
ria da Gestalt,1 diagramas representando os movimentos
dos olhos humanos durante a visualização de diferentes
tipos de elementos indicam que o reconhecimento e a apre-
ciação estética de imagens é um processo seqüencial. Em
outras palavras, mesmo quando mantemos nosso olhar
confinado aos limites de uma única pintura em perspecti-
va, apreendemos seus vários componentes um após o ou-
tro e não todos ao mesmo tempo. Um dos pioneiros dos
estudos que levaram a tais descobertas foi Alfred L. Yarbus,
que procedeu um dos primeiros estudos sistemáticos das
alterações de posição dos olhos durante a observação de
objetos complexos, contemplando inclusive os movimen-
tos sacádicos.2 Seus diagramas dos padrões de movimen-
tação dos olhos durante a visualização de figuras ajudam a
perceber como mesmo as imagens estáticas são apreendi-
das de forma dinâmica e progressiva (Figura 1).
Complexificando essa constatação, é interessante per-
ceber que, atualmente, mesmo dentro dos limites da su-
perfície bidimensional em que se encontra uma dada re-
presentação perspectivada (por exemplo, dentro da tela
do computador, dentro de uma página de revista etc.),
outras formas de representação do espaço muitas vezes
desafiam e colaboram para ressignificar as imagens em
perspectiva. Este fator adquire ainda maior importância
quando se percebe que, numa tendência claramente inspi-
68 A RESSIGNIFICAÇÃO DA PERSPECTIVA
rada pelas interfaces gráficas dos microcomputadores pes-
soais, até mesmo a tela de televisão, antes comumente tra-
tada como uma indivisível “janela albertiana”, passou a
ser subdividida sem grande cerimônia. É ainda mais co-
mum que, nas páginas de jornais e revistas, o olhar con-
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 69
temporâneo se defronte com vários pontos simbólicos de
observação e não com um único. Esta afirmação é ilustra-
da pela Figura 2, na qual se procura evidenciar como, mes-
mo dentro dos limites de uma única superfície de enuncia-
ção, as imagens em perspectiva encontram-se muitas ve-
zes circundadas e ressignificadas por outros elementos.
Mais agudamente, em grande parte das situações
cada conjunto de imagens que se oferece aos olhos abriga
componentes de diferentes dimensionalidades: são textos
70 A RESSIGNIFICAÇÃO DA PERSPECTIVA
escritos, linhas e planos coloridos, diversas imagens (está-
ticas ou em movimento, em perspectiva ou não), que se
articulam para compor um espaço multidimensional. As-
sim, em um dos mais interessantes paradoxos da perspecti-
vação, as próprias superfícies de inscrição das representa-
ções perspectivadas compõem um contexto de apreensão
e leitura que desafia certas proposições que, como vimos
nos capítulos anteriores, são fundamentais para a atribui-
ção de realismo e objetividade às imagens em perspectiva.
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 71
Deslocando-se em meio às diversas espacialidades
encontradas em cada superfície de representação (e, vale
lembrar, vagueando também para fora dos limites das
mesmas superfícies), o olhar contemporâneo não se de-
fronta com um único ponto simbólico de observação, mas
com vários. Mais ainda: depara-se com elementos de di-
ferentes dimensionalidades, aos quais articula em uma
representação ao mesmo tempo unitária e complexa. Con-
figura-se então uma espacialidade que prescinde de for-
ma ainda mais acentuada das qualidades inerentes aos
princípios das construções perspectivadas: não se trata
mais de um espaço abstrato, vazio e homogêneo. Em subs-
tituição àquele “espaço indiferente, entregue à mensu-
ração e à reflexão do geômetra” (Bachelard, 1992, p. 19),
até aqui considerado inerente às imagens em perspecti-
va, emerge uma representação bastante mais próxima da
“experiência da reversibilidade das dimensões, de uma
‘localidade’ global onde tudo é ao mesmo tempo, da qual
altura, largura e distância são abstraídas, de uma volu-
minosidade que se exprime com uma palavra” à qual
Merleau-Ponty identifica com uma noção de profundida-
de que leva em conta a inextricável corporeidade da vi-
são humana (1997, p. 54).
Ressignificadas por seus contextos de apreensão, as
imagens em perspectiva se libertam da especularidade
implícita no projeto de sua sistematização e, por conse-
guinte, distanciam-se da concepção de mundo característi-
ca da Era Moderna: nos dias de hoje, não se olha mais a
tela de Brunelleschi refletida no espelho para ficar pasmo
com sua semelhança com o edifício “real” do Batistério.
Muito pelo contrário: os mosaicos multidimensionais com
que nos deparamos cotidianamente nos falam de uma frag-
mentariedade que não consiste sequer na ruptura com uma
totalidade orgânica preexistente, mas que é resultado da
emergência de uma multiplicidade de formas díspares e
72 A RESSIGNIFICAÇÃO DA PERSPECTIVA
inesperadas. A configuração ao mesmo tempo caótica e
exuberante que assim se constitui é muitas vezes apontada
como prototípica da pós-modernidade, na qual reina um
“pluralismo absoluto e absolutamente aleatório” e assiste-
se à “coexistência nem mesmo de mundos múltiplos e al-
ternativos, mas de estranhos conjuntos não-relacionados,
e de sistemas subautônomos cuja superposição é mantida
perceptualmente como os panos de fundo alucinógenos
em um espaço de tantas dimensões...” ( Jameson, 371).
Como tudo que diz respeito à estética pós-moderna, essa
espacialidade tem raízes firmemente assentadas em pro-
postas associadas às vanguardas artísticas modernistas. Vale
a pena, então, fazer uma breve digressão para retomar e
compreender melhor tais proposições.
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 73
Apesar das muitas confusões que inevitavelmente de-
rivam da denominação coincidente, este período da histó-
ria do conhecimento ocidental não coincide com a época
da criação das manifestações visuais que costumamos cha-
mar de Arte Moderna.3 Nascida sob a égide da tomada de
consciência sobre o caráter cultural (e estético) do antigo
dilema da representação mimética, a arte modernista bus-
cou justamente adequar-se à crise da noção de realismo
até então vigente. O Modernismo é
... a arte decorrente do “princípio de incerteza”
de Heinsenberg, da destruição da civilização e
da razão na Primeira Guerra Mundial, do mun-
do transformado e reinterpretado por Marx, Freud
e Darwin, do capitalismo e da contínua acelera-
ção industrial, da vulnerabilidade existencial à
falta de sentido ou ao absurdo. (...) É a arte deri-
vada da desmontagem da realidade coletiva e das
noções convencionais de causalidade, da destrui-
ção das noções tradicionais sobre a integridade
do caráter individual, do caos lingüístico que so-
brevém quando as noções públicas da linguagem
são desacreditadas e todas as realidades se tor-
nam ficções subjetivas (Bradbury e McFarlane,
1989, p. 19).
74 A RESSIGNIFICAÇÃO DA PERSPECTIVA
gem, uma imagem imaculada pela liberdade de interpre-
tação do artista ou pela irreversibilidade do tempo” (Bazin,
1992, p. 36). Assim é que a fotografia, por exemplo, teve
um papel importante na emergência e desenvolvimento
das abstrações vanguardistas – inclusive porque deu conta
da tarefa de registrar imagens do mundo em planos bidi-
mensionais de forma tão eficiente e com tamanha presteza
que parecia haver tornado injustificáveis os lentos e árduos
esforços que a realização de pinturas em perspectiva de-
manda. Seria uma temeridade, no entanto, atribuir todas
as descobertas das vanguardas modernistas meramente ao
advento e popularização das técnicas de fixação foto-
química de imagens produzidas com dispositivos do tipo
camera obscura. Mais ainda, seria uma simplificação imper-
doável atribuir a qualquer fator em separado as específicas
configurações que uma revolução visual deflagrada em um
momento histórico tão complexo e plural viria a assumir.
Posto que as representações perspectivadas conti-
nuam sendo nosso objeto de análise, e que a vocação figu-
rativa das mesmas é indubitável, não nos interessa perder
de vista as representações com finalidade realista. Não cabe,
portanto, enveredar demais pelos caminhos do abstracio-
nismo modernista: para as finalidades do presente texto,
será suficiente nos determos nos primeiros confrontos com
os paradoxos da intenção mimética, visitando algumas ini-
ciativas pioneiras e ainda norteadas pelas questões da re-
presentação e do realismo. Também, não devemos perder
de vista a questão da representação espacial em superfícies
planas – afinal, o que nos interessa é ainda a espacialidade
que as representações perspectivadas ajudam a construir
quando contextualizadas por outros elementos da paisa-
gem cultural contemporânea.
Comecemos, então, pelo Impressionismo, que foi um
dos primeiros movimentos artísticos do século XIX a rom-
per em grau significativo com o paradigma renascentista
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 75
de representação espacial. Sem abandonar a intenção
mimética, os artistas daquela tendência procuraram incor-
porar a suas realizações algumas descobertas, então recen-
tes, sobre os mecanismos da visão e a formação e percep-
ção das cores. O intento de capturar a atmosfera fugidia da
vida moderna e as transitórias variações da luminosidade
conferiu às obras do Impressionismo uma certa imateria-
lidade, com a qual pelo menos um dentre os pintores da-
quele movimento não estava satisfeito: para Paul Cézanne,
a fugacidade das pinturas impressionistas era tão inade-
quada quanto a firmeza petrificada das imagens, produzi-
das pelas escolas artísticas, que o Impressionismo viera
criticar. Em busca de uma solução capaz de fazer conver-
gir a fluidez das impressões visuais momentâneas e a indu-
bitável solidez dos existentes do mundo que chamamos
real, Cézanne buscou capturar a “geometria das próprias
coisas”.4 O resultado foi uma nova estratégia de represen-
tação do espaço em superfícies planas, em que a organiza-
ção da imagem não se dava mais conforme um único ob-
servador, como ocorria nas representações perspectivadas,
mas criando múltiplos pontos de observação.
O esforço de Cézanne para captar a forma plás-
tica das coisas e conferir-lhes seu peso e sua subs-
tância o impulsionava inexoravelmente a olhar
os objetos não desde um só ponto de vista, se-
não de vários. Só assim, conseguia captar me-
lhor os planos e os volumes. Deste modo, um
mesmo objeto no interior do quadro surgia em
perspectivas diversas que o deformavam no sen-
tido vertical, longitudinal ou de cima para bai-
xo, e da mesma maneira a linha do horizonte
76 A RESSIGNIFICAÇÃO DA PERSPECTIVA
perdia com freqüência sua horizontalidade para
inclinar-se segundo as exigências plásticas do
quadro (De Micheli, 1989, p. 207).
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 77
Tendo as realizações de Cézanne como um de seus
pontos de partida,6 os cubistas levariam ainda mais longe o
abandono do ponto de vista único. Multiplicando e diferen-
ciando cada vez mais os diversos ângulos de observação que
se faziam materializar no quadro, o Cubismo promoveria
... uma ruptura radical com a tradição do espa-
ço figurado desde o Quattrocento: este se confi-
gurava no plano pictórico como referente de
uma mirada. É certo que, ocasionalmente, al-
guns pintores empregaram dois ou mais pontos
de vista e os correspondentes dois ou mais pon-
tos de fuga, mas também o é que estes nunca
foram excessivos e sempre se articularam de
maneira convincente a partir dos motivos ane-
dóticos representados (Bozal, data, p. 20).
78 A RESSIGNIFICAÇÃO DA PERSPECTIVA
[o]s pintores novos, como seus antecessores, não
se propuseram geômetras. Mas pode-se dizer
que a geometria é para as artes plásticas o que a
gramática é para a arte do escritor. Hoje, po-
rém, os sábios não se atém mais às três dimen-
sões da geometria euclideana. Os pintores
[cubistas] foram levados, naturalmente, e, por
assim dizer, por intuição, a preocupar-se com
as novas medidas possíveis do espaço, que na
linguagem dos ateliês modernos, se designam,
em conjunto e abreviadamente, com o nome
de quarta dimensão (De Micheli, 1981, p. 198).
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 79
trigonometria, química, psicanálise, música e não sei que
mais têm sido aproximadas do cubismo para explicá-lo.
Tudo isso não é mais do que literatura, para não dizer in-
sensatez, e tem resultado em cegar as pessoas à base de
teorias” (Picasso apud De Micheli, 1989, p. 210).
O fato é que a disposição de imagens compostas por
elementos fraturados estabelecia uma espacialidade extre-
mamente peculiar, que se complexificaria ainda mais quan-
do, numa etapa mais avançada do movimento, os cubistas
passaram também a tomar materiais do mundo concreto e
colá-los na tela. Uma variedade significativa de coisas, des-
de fragmentos de jornal até pedaços de espelho, passando
por areia, cartões de visita, estopa e prego, foram então
combinadas a desenhos de algarismos e letras, bem como
às imagens fragmentadas de figuras humanas ou objetos.
As representações visuais qualitativamente complexas e
multidimensionais assim compostas guardam profundas se-
melhanças com as composições caleidoscópicas que en-
contramos ao examinar as representações em perspectiva
em seus contextos de inserção no mundo contemporâneo.
É bem verdade que os materiais do mundo concreto
anteriormente mencionados só aparecem nas composições
cubistas da fase sintética, quando a intenção mimética já
teria sido abandonada em prol “da livre reconstituição da
imagem do objeto, libertado definitivamente da perspecti-
va: o objeto já não é analisado e desmembrado em todas
as suas partes constitutivas, mas se resume a sua fisionomia
essencial sem nenhuma sujeição às regras da imitação” (De
Micheli, 1989, p. 211). O mesmo não é verdade para as
composições que aqui nos interessam: o que caracteriza as
ocorrências de imagens perspectivadas na paisagem con-
temporânea é justamente a manutenção da capacidade
mimética de cada figura, independentemente da complexi-
ficação do contexto de sua apreciação. Tendo verificado a
semelhança entre as composições que nos circundam e as
80 A RESSIGNIFICAÇÃO DA PERSPECTIVA
obras do cubismo analítico, é tentador imaginar que assis-
tiremos, no futuro, a um encaminhamento da visualidade
midiática em direção aos formatos e soluções do cubismo
sintético. É preciso, no entanto, proceder com cautela: nossa
própria capacidade de projetarmo-nos simultaneamente em
diversos pontos simbólicos de observação (discutida no
Capítulo 4), combinada com o poder de convencimento
das imagens dotadas de “realismo fotográfico”, apontam
com bastante mais intensidade para a preservação, ainda
por muito tempo, de uma inteligibilidade mais “tradicio-
nal” nas composições midiáticas e urbanas.
Certamente não se está propondo aqui que as com-
posições espontâneas que encontramos na paisagem visual
contemporânea (quer elas incluam ou não imagens perspec-
tivadas) sejam obras cubistas. Antes de mais nada, não se
tratam de realizações artísticas strictu sensu, nem foram cria-
das no contexto, com as propostas ou finalidades que de-
ram origem às pinturas daquele movimento. O que se quer
é apenas constatar uma série de ocorrências visualmente
assemelhadas às obras de um particular movimento mo-
dernista. A situação é análoga a outros casos exemplares
... apresentados para comprovar a identidade
entre o modernismo e o pós-modernismo, uma
vez que, em suas obras, pequenas mudanças,
uma mera troca perversa de posições, transfor-
mam o que deveriam ser os valores estéticos do
mais clássico alto modernismo em algo descon-
fortável e remoto (porém mais próximo de nós!)
( Jameson, 1997, p. 307).
O ESPAÇO EM PERSPECTIVA 81
mar, a partir de análises restritas aos limites de cada elabo-
ração, que a perspectiva renascentista incorpora crenças
sobre o espaço e sobre a sociedade e a cultura incompatí-
veis com o conhecimento e o modo de organização socio-
cultural contemporâneos. Não parece mais possível igno-
rar, no entanto, que a profusão de imagens perspectivadas
que encontramos na cultura contemporânea ocidental não
constitui necessariamente um arcaismo. Afinal, essas ima-
gens não ocorrem isoladamente, mas fazem parte de uma
paisagem visual à qual estão inexoravelmente associadas.
Quando as representações em perspectiva são considera-
das em meio a seus contextos de apreensão, já não se trata
de adicionar profundidade às duas dimensões de uma su-
perfície de representação, ou de organizar uma ilusão ca-
paz de enganar um olhar idealmente concebido, mas de
conviver com uma espacialidade heterogênea e comple-
xa, que mistura elementos de diferentes dimensionalidades,
que admite múltiplos olhares e, diante de cada um deles,
se transfigura.
82 A RESSIGNIFICAÇÃO DA PERSPECTIVA
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