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ning uém

comprou
ing resso
para
o meu
enterro.

nicolas nardi
©2016 nicolas nardi
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e seja citada a fonte (autor e editora).

daniel minchoni designou e diagramou.

nicolas nardi designou.

larissa schmitz rodrigues fotografou.


ning uém
comprou
ing resso
para
o meu
enterro.

selo doburro 2016


minha cabeça saiu pra tomar café
to esperando ela voltar
q uem achar primeiro
pode levar
7

O R AÇ Ã O N EO CR I S T Ã

e se jesus voltasse
de peitos abertos
e cada peito tivesse 350 mL de silicone
e a purpurina passasse a ser item obrigatório
[ para q uem ousasse citar seu nome
os apóstolos todos escolhidos em um prostíbulo cheio de putas,
[ travestis e vagabundos
e os milag res fossem cegos voltando a enxergar tudo
[ em tons de rosa
os aleijados capazes de andar somente em cima de salto 15
a ág ua não viraria vinho, seria gasolina
[ – e q uem q uisesse q ue ateasse fogo em si mesmo

e se jesus voltasse
achando jesus um nome muito brega
q uerendo ser chamado de maria madalena
e estivesse num salto alto
com a cara toda maq uiada
num vestido decotado

você ainda iria à ig reja


aos domingos?
9

B E M - V I N D O A P OR T O A L EG R E * D O S M I L AG R E S

Porto Aleg re é um perfume de peixe morto


[ vendido num frasco orig inal de channel
[número cinco no terceiro andar do mercado público
Porto Aleg re é um vira-lata perneta
[ comendo a perna de um pedig ree
Porto aleg re é um leite azedo com sucrilhos no café da manhã
Porto Aleg re pegou fogo e foi reconstruída
[ com cinzas e super bonder
Porto Aleg re foi crucificada ao lado de Jesus Cristo no gasômetro
Porto Aleg re não sabe ressuscitar
Jesus Cristo hoje vende artesanato no centro
Porto Aleg re é um homem bomba q ue esq ueceu
[ o botão q ue aperta pra explodir
Porto Aleg re encomendou esse poema
e disse q ue você q ue vai pagar
Porto Aleg re merg ulhando no Guaíba em pleno por do sol
Porto Aleg re é um suicídio coletivo na Redenção
vai ser nesse domingo
cheg ue cedo para escolher a melhor árvore

*a cidade e os pontos turísticos podem mudar conforme a necessidade do leitor.


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choveu noite passada


a prefeitura reg istra o maior número de árvores mortas
[ desde o big ben
a suspeita é suicídio em massa mas salva-vidas locais
[ apontam para a possibilidade de afogamento
os moradores se preocupam com possível serial killer de árvores
mas a polícia descarta

seu netinho, dono de uma funerária no centro da cidade


af irma q ue a tragédia foi boa para o aumento das vendas
mas diz estar preocupado com a ideia
[ de não conseg uir maq uiar todas as árvores para os enterros
o tempo para começar a decomposição é rápido
- será melhor um velório sem maq uiagem
[ do q ue uma árvore maq uiada fedendo a carniça
13

faltou luz lá em casa


e eu q uerendo olhar tv
carregar meu celular
tomar um banho q uente

ainda vou inventar uma vela pós-moderna


q ue gera energ ia
lava roupa
e tem wi-fi
15

gosta de fumar maconha


tomar bala
chazinho de cog umelo

mas q uando bate a febre


nem deixa o corpo delirar
e já sai tomando tylenol
17

q uem diz q ue a lesma é lenta


nunca viu aq uele corpo
atirado no meio do asfalto
q ue faz hora q ue nem sai do lugar
19

eu pref iro matar homens


mas confesso
alg umas blusas de mulheres
me caem bem

tenho uma regata de rendinha branca


q ue o sang ue escorreu
deixando pintada uma f lor
como se antes de morrer
a mulher me ag radecesse
por tê-la tirado desse inferno

matar é salvar alg uém de morrer depois


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meu f ilho q uerido


me diz
o q ue tu vai fazer
q uando a mãe morrer hein
meu deus
santa virgem maria
onde foi q ue errei
nesse filho
lindo lindo mas
vagabundo
coitado
artista meu filho não dá
poeta não dá
nada dessas coisas dá
não dá dinheiro
acredita na mãe
q ue q ue tu vai fazer
q uando eu morrer
podia ser engenheiro
org ulho da mamãe
faixa de bixo em frente de casa
mas literatura
q ue q ue a mãe te ensinou hein
dinheiro, money, cash
essas coisas filho
não fazer livrinho
q uem te ensinou essas besteiras
conta pra mãe
o q ue tu vai fazer
q uando eu morrer
vou ler esse poema no enterro mãe
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ACA D E M I A B R A S I L E I R A
FOR MOL DE LET R A S

machado de assis
é terra fértil
tanto q uanto a terra
q ue tu enterrou teu gato

josé de alencar
sobrou uns pedacinhos de osso romântico
q ue cairia bem numa sopa
- q uer jantar lá em casa?

carlos drummond de andrade


é um pedaço de carne
podre fedida
mistura com gordura gosmenta

e você
q uerendo falar do último romance daq uele
escritor contemporâneo
q ue cheira a perfume importado
e tem os dentes branq uinhos
25

machado de assis me dá sono


e q uem q uiser
q ue venha dormir comigo
27

seus lindos olhos servidos


com creme de leite
seus dedos fritos em um palito de churrasq uinho
tua boca recheada com parmesão
teu rim assado numa fog ueira
teu pulmão defumado num molho de cachorro q uente

q uem proibiu a
antropofag ia
nunca amou ning uém
como eu
te amo
29

foda-se o
rímel
blush
batom
lápis

corretivo
base
sombra
delineador
as partes mais bonitas do teu corpo
não tem
maq uiagem
31

eu gosto de você
assim como gosto de coca-cola
e f ico pensando q ue se parassem de produzir coca-cola
eu f icaria triste

eu gosto de você
assim como gosto do q uindim da padaria da esq uina
e f ico pensando q ue se a tia q ue faz o q uindim da padaria
[ da esq uina morresse
eu não iria no enterro

eu gosto de você
assim como gosto dos meus cabelos compridos
em como uso eles de fio dental
q uando como bolo de chocolate
e f ico pensando q ue se eu fosse careca
meus dentes ficariam sujos toda vez q ue eu comesse
[ bolo de chocolate

eu gosto de você
e f ico pensando q ue se você sumisse q ualq uer dia
eu espalharia seu rosto por todas as ruas
perg untando se ning uém viu você passar por ai

eu gosto de você
mas tem coisas q ue eu não consigo entender
o q ue aconteceu com as notas de um real
e porq ue o cheiro da pessoa não conseg ue ir junto com ela
q uando ela vai embora
33

não q uero amor


só q uero sexo
atração
um pedaço de carne
não q uero amor
nem embalado pra presente
em plástico bolha
marmita pra levar
jogo no primeiro lixo q ue aparecer
não q uero amor
jantinha romântica
luz de velas
promessinhas do fundo do meu coração
não q uero amor
q uero só alg uém q ue saiba
fazer café
transar
e abrir a porta sem beijo de tchau
só q uero alg uém q ue
depois do sexo
deite longe de mim
pode dormir aq ui
dorme logo
mas f ica longe
conchinha é a mãe caralho
não q uero amor
e se você não entendeu
se você insistir
se você insistir, meu bem, q ue eu te ame
é melhor a gente transar mais uma vez
antes de você
sumir
35

Larissa nunca disse q ue me ama


nem depois do beijo
nem depois do sexo
nem q uando cega o dia
Larissa nunca disse q ue me ama
nem no café da manhã
nem na hora de sair
nem q uando lhe trago gérberas
Larissa nunca disse q ue me ama

Larissa só me disse q ue não conseg ue me amar


não nessa líng ua usual
não com palavras de dicionário
Larissa disse q ue não me ama em portug uês coloq uial
Larissa disse q ue me ama em Larissês
e q uem ama em Larissês ama diferente
ama dentro do olho da gente
no sorriso q ue veste a nudez
Larissa me ama na ponta dos dedos

e eu amando Larissa aos berros


q uerendo dizer pra ela todo dia
depois do sexo
q uando durmo, q uando acordo
em cada beijo, cada abraço
enchendo Larissa de palavras

ah Larissa,
às vezes acho q ue te amo de um jeito comum demais
37

7 O U M E N O S E TA PA S D O A M O R

a primeira tu nega q ue teu corpo caga


tu não fala em cocô perto do teu amor
ou melhor, até fala
codifica
- vou tomar banho
ai liga o chuveiro
e caga
depois lava

a seg unda etapa é aceitação


- amor, vou cagar e já volto
e vai
e não liga o chuveiro
e não toma banho depois
volta com um sorriso
e diz q ue agora q uer fuder

na outra etapa
tu caga de porta aberta
e f ica conversando com teu amor
enq uanto ouve teu dejeto
acertar na ág ua

mas nada disso ainda é amor

isso só vai ser verdadeiro q uando


tu olhar no olho do teu amor
cagando
com aq uele cheiro de merda em volta
e ainda assim conseg uir dizer
- eu te amo.
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cocô é um filho
q ue tu alimenta
cuida
espera
uma hora ele vem
uma hora tu vai parir
bebê coisa linda
fruto teu
vida rápida essa q ue deus lhe deu

puxa a descarga
q ue os f ilhos são pro mundo
não pra gente
41

depois q ue ela me deixou


não tenho comido mais direito
feijão arroz carne
vomito tudo na primeira garfada
nem gelatina adianta
chazinho
ág ua
eu cada vez mais mag ro
daq ui a pouco nem esse ar mais me serve
e eu acabo virando comida de alg uém

os vermes não tem problemas alimentares


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mijo de rato dedo na tomada


falta de ar acidente de carro
afogamento

tiro na cabeça corda no pescoço


veneno de barata prédio nove andares
vazamento de gás
congelamento

ataq ue cardíaco mordida de bicho


cabeça decepada
enciclopédia de câncer
pé ovário rim pulmão testículo
deng ue nova de cada ano

o avião caindo a veia estourando

e você continua andando por ai


sem nenhum aviso prévio
podendo cair morto
a q ualq uer momento
no pé de q ualq uer um
você já reparou q ue se você morrer
de um ataq ue cardíaco no meio da sala
o máximo q ue você vai conseg uir no outro dia
vai ser uma notinha no jornal
falando da missa na capela da cidade
e do velório q ue vai ser meio dia
todo mundo chorando
não vão nem lembrar q ue você escrevia alg umas coisinhas
q ue só você entendia

você já reparou q ue se você morrer


com um tiro na cabeça na frente da prefeitura
enq uanto vendia seus livrinhos de poesia autoral
o jornal vai ter dar a capa inteira
dizendo q ue pena
e seu livro vai ser mais vendido q ue o último livro do paulo coelho
todo mundo chorando
lendo seus poemas
a companhia das letras revirando sua cama
pra ver se não acha mais nenhum poema bacana
pra colocar na sua antolog ia de capa dura
com prefácio daq uele artista cabeludo do tropicalismo
dizendo você foi um artista mal compreendido do
experimentalismo contemporâneo
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você já reparou q ue se você morrer


do jeitinho certo
da pra você acabar sendo aq uele escritor famoso
q ue dá gozo em q ualq uer estudante de literatura
escrevendo artigo sobre a ruptura da sua poesia
q ue lembra muito manuel bandeira
na semana de arte moderna brasileira
e diria ainda
q ue se não você morresse tão cedo
machado de assis teria medo
de perder o posto de maior escritor brasileiro de todos os tempos

você já reparou q ue se você morrer


antes da hora
as pessoas vão reparar q ue você foi embora
bem mais do q ue reparariam
se você f icasse velhinho
com um monte de livro publicado

você já reparou q ue você só não morre


porq ue ainda acha q ue vão descobrir seus poemas num
blog da internet
e vão publicar seu livro q ue vai ser o mais vendido seg undo a
revista veja
não vai ter evento de literatura
ousando não ter seu nome na abertura
falando da geração da novíssima poesia brasileira
q ue ning uém q uer saber
mas o importante mesmo é ver
aq uele monte de gente sentada
pronta pra bater palmas
depois q ue você dizer q ue o poema acabou
e era só isso mesmo
obrigado
47

virei hippie
to usando umas roupas mais doidas
de brechó
abandonei minhas g rifes

virei hippie
uso esses negócios doido na cabeça
aprendi a fazer o paz & amorzinho e a sorrir
pros mendigos

virei hippie
e não bebo mais vodka importada
só cházinho natural
desses q ue dá barato doido

virei hippie
abandonei o cigarro a cinco pila a carteira
compro o saq uinho de fumo
e ainda economizo uns pila

virei hippie
agora a vida é mais natural
e mais barata
sem esses papos de encher a cara na balada
estourar cartao de credito no fim de semana
- abandonei meu cartão agora
porra capitalista de merda

virei hippie
e logo logo
economizo dinheiro o suficiente
pra comprar o iphone novo
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debaixo dessa bermuda


desse terno
do macacão q ue de vez em q uando volta
pra moda

debaixo dessa regata


desse capuz na tua cabeça
da jaq uetinha jeans
do sapato de couro sintético

debaixo dessa calcinha de renda


da cueca boxer
desse sutiã preto
da meia
calça

debaixo de tudo isso


todo mundo
tá pelado
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de q ue me adianta tudo q ue escrevo


se amanhã ou depois
atravessando uma esq uina
um carro me acerte e me deixe atirado no meio do asfalto
minha mãe deixe eu levar tudo q ue escrevi
coloca meus cadernos do meu lado no caixão
para q ue os vermes se deliciem com o q ue não deixei
[ para a humanidade

talvez não seja um carro q ue me mate


mas minha casa pegando fogo
fazendo tudo virar pó
meus cadernos virando carvão
meu corpo todo decomposto
não sendo nem mais possível identificar
q uem sabe até
eles enterrem os destroços do meu g uarda-roupa pensando
[ q ue era eu
ag radecimentos:
ao marcelino pela g uirlanda;
ao fernando r. pelo convite do velório
a lari pelas fotos do enterro;
a mãe por ter pago o caixão;
ao nicolas behr pela epíg rafe;
ao minchoni por ter publicado meus poemas póstumos;

a você
q ue fez café para os convidados.
este livro foi composto
em tipolog ia nilland 9
e impresso na g ráfica psi7
em novembro de 2016
em papel pólen 90g/m 2
para o selo do burro.

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