Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Amar Trair Quase Uma Apologia Da Traição - Carotenuto PDF
Amar Trair Quase Uma Apologia Da Traição - Carotenuto PDF
TRAIR
quase uma apologia da traição
Aldo Carotenuto
PAULUS
AMAR
TRAIR
quase uma apologia da traição
~
PAULUS
Carotenuto, Aldo
Amar trair: quase uma apologia da traição / Aldo Carotenuto ; tradução Benôni
Lemos. - São Paulo: Paulus, 1997. - (Amor e psique) Título original: Amare
tradire : quasi un'apologia dei tradimento.
Bibliografia.
ISBN 978-85-349-0658-6
95-5007 DD-158.2
5
mesma, à sua própria originalidade. Ela nasceu de refle- NOTA À NOVA EDIÇÃO
xões durante a prática psicoterápica, e está começando
a renovar o modelo e a finalidade da psicoterapia. É
uma nova visão do homem na sua existência cotidiana,
o seu tempo, e dentro de seu contexto cultural, abrindo
dimensões diferentes de nossa existência para podermos
reencontrar a nossa alma. Ela poderá alimentar todos
aqueles que são sensíveis à necessidade de colocar mais
alma em todas as atividades humanas.
A finalidade da presente coleção é precisamente
restituir a alma a si mesma e "ver aparecer uma geração
de sacerdotes capaz de entender novamente a linguagem Levar o leitor à descoberta deste livro, agora em
da alma", como C. G. Jung o desejava. nova edição, oferece-me a oportunidade de abordar no-
vamente o tema da traição, mas com o vigor que me vem
Léon Bonaventure da aceitação que essa obra teve entre os leitores. Obra
que queria e quer sacudir e - por que não? - suscitar
polêmicas entre os que, embora sabendo que a "~raição"
é fenômeno antigo como o mundo, consideram reprová-
vel levantar o véu que o oculta ao olhar da consciência.
Eu, ao contrário, penso que o que cria maiores danos são
justamente o desconhecimento e a indiferença, ao passo
que sondar e tentar esclarecer os movimentos psíquicos
que geram, fomentam ou rejeitam a traição é de grande
utilidade para se viver cada experiência (porque, como
o leitor terá ocasião de constatar, a traição assume mil
aspectos), compreendendo-a e elaborando-a, e não só
deixando-se dominar por ela.
A violência e a cegueira que acompanham a trai-
ção em todas as suas formas - desde a da família em
relação ao filho àquela amorosa - são prova de nossa
ingenuidade psicológica, isto é, o indivíduo quase nunca
tem consciência das forças que g(}vernam seus impulsos
para o crescimento ou para a individuação, de forma que
permanece um agente passivo de suas pulsões destrui-
doras. Essa forma particular de resistência testemunha
6 7
que o desenvolvimento da consciência psicológica é, como de sofrimento, dá início ao nascimento da consciência,
sustentava Jung, um opus contra naturam (uma "obra com a expectativa - é essa a promessa de toda doutrina
contra a natureza"), um caminho difícil e cheio de peri- soteriológica - do pleno despertar, isto é, da aquisição
gos; ninguém conhece melhor que o autor dessas linhas, de uma consciência interior que torne o homem capaz de
por causa de sua profissão, o tributo de sofrimentos que reconhecer as forças que o dirigem e de mudar em seu
a pessoa deve pagar para libertar-se das ilusões neuró- favor também o conhecimento do mal.
ticas, dos equilíbrios de compromisso e das satisfações Porque a traição é essencialmente "passagem" - é
alucinatórias do desejo. esse seu significado ~o1.ºgico .-, "~~r~gEt"a outrem,
A primeira e fundamental forma de traição é jus- a qual sempre se traduz em confissão de fraqueza e em
tamente a que o indivíduo sofre para tornar-se sujeito pedido de ajuda, e, portanto, inclui sempre o risco da
responsável por seus desejos e por seus atos: a perda da perda, do abandono. Mas para se viver em plenitude a
inocência, a expulsão do Paraíso da indiferenciação psí- existência própria é necessária essa "passagem" pela
quica e a queda. Transgredindo o pacto originário com a morte, esse reconhecimento do limite, da. fin,itude, esse
mãe natureza, o indivíduo fica inevitavelmente exposto saber-se traidor e traído.
à fadiga da procura de sentido, procura que, no entanto, Os cenários da traição são muitos; parece-me, porém,
o constitui como sujeito da história. que a cena original se abre no interior relacional mais
A perda da inocência certamente na culpa e na precoce, sendo a .I?!imeir~_~.rªi.Ǫ9 a que é praticada em
punição; assim, muitas vezes nós nos condenamos a ser relação ao nasciturõ;<iuando, com o nome, é-lhe atribuída
verdugos inexoráveis de nós próprios e nos expomos aos a projeção imaginária elaborada pelos pais. É um destino
pio:es vexames para expiar culpas hipotéticas, sem ja- inevitável, inscrito na história da existência humana, pelo
maIS conseguir pagar completamente o grave pecado de qual somos condenados a encarnar o desejo de outrem e a
termos vindo ao mundo e de o termos feito da maneira . suportar grandes fadigas para separar-nos de seu/nosso
menos discreta possível, com um pedido intolerável de fantasma.
amor, sempre gritado. Se o homem fosse livre, não teria necessidade de trair;
Nascemos traídos e com a necessidade de trair para entretanto, é verdade também que se o homem não fosse
cre~cermos: é uma lei cármica, que soa como condenação, livre, não poderia trair ..
se, Justamente através das vicissitudes da traição, não
fosse pedido ao indivíduo o encargo de confrontar-se com Aldo Carotenuto, abril de 1994
sua ambivalência constitutiva e de assumi-la consciente-
mente, de modo a transformar a orientação natural das
pulsões e a tornar-se, de alguma forma, artífice profundo
de se~ destino de individuação.
E esse o significado profundo que o mito hebraico da
expulsão do Paraíso terrestre representa simbolicamen-
te, expulsão que, se entrega o homem a todas as formas
8
9
AGRADECIMENTO
1Q
alto e profundo; sacer, sagrado e sacrílego" (Freud, 1910, provavelmente .tenha algo a ensinar _~~~-ve~xuru.camente
'à:uel e que tram com plena e total conSCIenCIa. Como
p. ~8~). Na conc~rdância entre praxe onírica e praxe lin-
gUls~lCa Freud VIU a confirmação do "caráter regressivo e -aialogamente diz Hillman (1964 b, p. 99):
arcruco da expressão do pensamento no sonho", e concluiu '., nossa conclusão ao problema: "que significa a traição
sua recensão sustentando que o conhecimento da evolu- p~ra o pai?" é esta: a capacidade de trair os outros é afim
ção da língua certamente melhoraria a compreensão e a da capacidade de guiar os outros.
tradução da linguagem onírica (ibid., p. 191).
Com o tempo, "trair" passou a significar, de fato.' o
Considerações semelhantes podem ser apresentadas
oposto, perdendo ou, talvez melhor, ocultando as valênCIas
a respeito da palavra "traição". De fato, examinada aten-
originais. Devemos então perguntar-nos como sucedeu
tamente, ela se nos revela ambígua, não só etimológica
que dos significados "positivos" se 'pa~sou à ace~ção_ co~~
mas também semanticamente. Sabemos que o latim tra-
rente "negativa". A inversão de SIgnIficado se Impoe Ja
d'ire significava somente ~'entregar". Sabemos também
na latinidade, e muito provavelmente também a partir
que os evangelhos, escolhendoesse 'verbo para design~r.
o ato de Judas de entregar Jesus aos seus inimigos, car- da linguagem militar. D~fª~~,º._~fic~dQ_ori~a~,de,
regavam-no de conotações éticas, obviamente negativas. "Eas~~g~IJ!:~.:~e~~!'.e..ga", pode ter com~ ~bJ~to o mlmIg~,
conotando então o ato de entregar ao mImIgo (armas, CI-
Mas, com o tempo, o mal-entendido inicial originou outros
dades etc.) e de fazê-lojusta:mente'traindo. Já observei, a
mal-entendidos e ambiguidades: o itinerário semântico
propósito da afinidade entre a linguagem amorosa e a lin-
desse verbo "condenado" levou-o a significados diferentes
distantíssimos entre si e às vezes nos antípodas, literal~
guagem militar, que, na língua latina, o "nomem agentis"
desultor conota tanto aquele que passa de uma mulher
mente opostos. "Traio" deriva do latino trado, que é com-
a outra _ nesse sentido Ovídio, por exemplo, negava ser
~ost~ de dois morfemas, trans e do (= dar). O prefixo trans
traidor (Amori I, 3.15) - como aquele que passa para o
ImplIca passagem; de fato, todos os significados originais
lado do inimigo (Carotenuto, 1990, p. 33). "Tra~o:~.~p. em
de trado ~~t~m,~,i~eia de dar alguma coisa que passa de
grego um equivalente perfeito,paradídomi. De fato, trans
,umªIp.~<:>_~.Q.!:!b:'a~ Assim, trado significa o ato de entr~gar" ;:dó ;, pará + dídomi. Paradídomi é justamente o verbo
~as.n:lãos de alguém (para guarda, proteção, castigQ),'o
ato de confiar para o governo ou o ensinamento , o dar --_ em que designa a traição de Judas nos evang~lhos. O prefixo
..
pará, do memo modo que trans, pode implicar o ato da ,
esposa, o vender, o confiar com palavras ou o transmiti~,
"tra(n)s-gressão" (= pará-basis = ir além). O substantivo
,o narrar. Na forma reflexiva, s~ tradere, o verbo signIfica
correspondente,parádosis, equivalente de traditio, signi-
aban<ionar-.se a alguém, dedicar=sea·uma atividade. O
!!c::i traição, prisão, mas também a doutri11.ª.tra n smitida.
substantivo correspondente, traditio, significa "entrega"
com autoridade, ou a tradição preservada de várias formas.
::ensi~~~:mto", ~~~:r:.r~ç~?", "transmissão de n~rrações"~ e transmitida separadamente pelos pagãos, pelos.escribas
tradIçao . Note-se que o nomem agentis" (nome do agen-
e pelos fariseus (os predecessores dos rabinos), :por Paulo
t,e) traditor significa tanto "traidor" como "quem ensina';.
e pelos bispos da Igreja. Para os gnósticos, hereges do
E bom lembrar esse duplo sentido na introdução ao nosso
começo do cristianismo, existiria uma doutrin!l secreta., '
trabalho porque, como teremos ocasião de ver melhor,
20
oral, transmitida. por Cristo aos apóstolos e considerada
superior à Escritura. De tal transmissão secreta ~ o
por que me abandonaste?"). N~ssas últim~s e t~ágicas
palavras da vida terrena de CrIsto, Jung VlU o smal de
I
j
I
ato dessa transmissão é indicado com o verbo paradí- um malogro radical. Segundo o que ele afirmou em uma \
domi - fala-se também em campo ortodoxo. Clemente ~ i
conferência em Londres, em 19 de outubro de 1936, e que :j
de Alexandria, no livro Stromata (l, 1.13.4), afirrnª que traz como título a intrigante interrogação: A psicologia
"aêcoisas ocultas" (ele diz "místicas") são transmitidas analítica é uma religião?, gri_~tQ-, __ na ~!u.~_ e. J)~óximo
'I
.(paradiiotai) de modo oculto" (ele diz "de modo místic~") .. da passagem final, te:ria tomado consc~ência. de que a
Üsgnósticos, por sua ve~,çoIls.ideravaIILª si próprios os_ sua 'vida, consagra<ia à veI"dade e ao amor, revelara-se
únicos depositárioscl~ yerdadeira tradição: AIgrejapri- "terrível ilusãd'(Jung, 1937, p. 108). Esse grito lançado
mitiva precisou lutarcontra~ss_a.Í>retensão. Naliteratura (fâcruz significa ,a .trágica compreensão de haver sido
gnóstica (no Evangelho de Judas, -que não chegou até traído, e exatamente por isso constitui a exceção extre-
nós), fala-se também de um "mistério (= sacramento) da m-a' ao fato de que Cristo, segundo Jung, "nunca parece
traição", que era praticado por alguns grupos gnósticos. ter-se posto diante de si próprio" (Jung, 1952, p. 388)~~~ .
~egundo eles,.traindQ Cristo, Judª$ teria favorecido a traição nos põe, portanto, diante de nós próprios; antes,
economia da salvação. Portanto, para eles, a traição era parece que é só na traição que se torna possível esse pôr-
necessária, e eles a celebravam como sacramento. Segun- -nos diante de nós próprios, esse cessarmos de viver em
do a opinião de outros autores, Judas haveria julgado qll<:l reflexos que desconhecemos. T.ª:rnbém nós, como Jung,
Cristo estava pervertendo ou traindo a verdade. Traindo nao consegllimos ficar sem levantar interrogações sobre
Cristo, Judas haveria evitado essa perversão da verdãde. _;;P~l(ibid.,p. 398):
Hillman observou que a traição é central no cristiani~mo
(Hillman, 1964 b, pp. 90-91): Que Pai é esse que prefere dE:lixaro filh.g lPoITer :;t. pE)rd()~r
magnanimamente às suas criatll.I"!:l.s ,mal ac!)nselhadas e
Na história de Jesus, ficamos imediatamente impres~iona pervertidas por seu Satanás?
dos com o motivo da traição. O esquema ternário (traição de
Judas, dos discípulos adormecidos e de Pedro - repetida Não obstante, a dialéticainer.en~_e àtraiçij,Q é taJ _qu.~,
nas três negações do mesmo discípulo -) nos fl!la.dE:ll'l.lgo ~~~a luz, compreeIl~emºs o..s~nt~~o qºI~t:qf?Qªªgdelicl.ª<l~.,
fatal, mo~tra-nos que a traição é essenciafa- dinâmica da E verdade, com efeito, que Cristo foi abandonado à agonia
história de Jesus· e;pÓr-isso, a traiçao está no cent:ro-ao .
mistério cristãeJ. . da cruz e, portanto, traído e entregue ao desnudamento
de uma ilusão que o sustentara durante sua vida terrena.
Mas foi justamente essa fidelidade completa, essa fidelida:-
Enfim, continua Hillman, podem ser lidos segundo ~â-ev()ta, essa fidéWrã.oe dedicada à experimentação da
a mesma chave de leitura, como em parte já vimos, yjda, foi justamente essa fidelidade traída que permitiu
outros aspectos "críticos" da vida terrena de Cristo: a a Cristo aceder ao "corpo da Ressurreição" (Jung, 1937,
sua tristeza na última ceia e a que se abate sobre ele P.108).
no Getsêmani. ("A minha alma está triste até a morte") , Como vimos, parece que também na área pensante
o grande grito lançado da cruz ("Deus meu, Deus meu, do gnosticismo houve verdadeiro trabalho de elaboração
22 G"
da traição em seu~ aspectos mais radicais. Pensemos, por A mulher carnal tomou da árvore. Comeu e deu dele a seu
ex~m~lo, na doutrIna, sustentada de modos diversos pelos marido com ela ... Os psíquicos comeram, e sua malícia se
gnostIcos, a qual, atribuindo a criação deste mundo a um revelou em sua ignorância.
demiurgo imperfeito, homólogo do Javé hebraico e não ao
sumo Deus, considerava, em certos casos a ne~essidade Na Interrogatio Iohannis, a perspectiva da traição
d~ trair pontualmente todos os mandame~tos. Essa dou- praticada pela divinda~e contra o home~ a~quire r~sso
trIna gnóstica fala de uma traição cometida ani~sde nás~ nância talvez ainda maIOr. Trata-se de apocnfo de OrIgem
cermos, e também de sua solução. Permanecendo nessa bogomila, isto é, de um texto, uma espécie de catecismo,
perspectiva "herética", pensemos na inversão de sinal à pertencente à heresia dualista conhecida pelo nome de
qualjá alu~imos, efetuada na figura da serpente, na óti~a bogomilismo, surgida na segunda metade do século X,
de uma crIação não divina, mas demiúrgica do mundo heresia que conservou muitos pontos de contato com o
dos homens .. Foi a s~rpente maligna ou,para exprimir- gnosticismo e com suas ramificações; é um texto ao qual
-nos com maIS proprIedade, foi Satanás - que entrou na faziam referência alguns grupos heréticos medievais,
serpente que se arrastava pelo Éden e era preexistente como os cátaros. Nesse texto, o apóstolo João, repousan-
à criação do homem e da mulher - que concedeu a Adão do no peito de Cristo, dirige-lhe perguntas a respeito de
e Eva o dom do conhecimento através da transgressão e Satanás.
portanto, que difundiu a traição da proibição divina d~ ~€l!a narração ,ficamos sabendo de uma espécie de
se ~o~er aquele fruto. Pensemos ainda no que diz o texto compromisso entre Deus e Satanás,_ antes que fossem cria-
gn~stIco encontrado em dezembro de 1945, junto com dos o mundo e o homem, um compromisso que apresenta
mUltos outros, gnósticos e não gnósticos, na localidade semelhanças com a história bíblica narrada no livro de
d~ ~ag Hammadi, no alto Egito, e que tem como título Jó. Caído por causa de seu desejo de elevar-se até o Pai e
H~postase dos arcontes. "Hipóstase" significa realidade de tornar-se semelhante a ele, Satanás desce do céu para
x:~a,Edad!=tª-lJPt~~~~~. Os arcontes, dominadores do ~und; o firmamento e não podendo encontrar descanso nele,
sub,~u~ar, os mesmos que Jung equiparou aos "comple- junto com seus anjos, obteve-o do Pai. Como diz o texto,
xo~ : sao, portanto, seres reais e malignos. A eles estão oPai lhe permitiu '~fazer o que querig.atéosétimo dia"
S?J.~~tos os homens que não sabem transcendê-los', ist-;;T CInterrogatio Iohannis V, 65, in Bozóky, 1980, pp. 54-55).
os ~omen~ que se deixam trair por suas más ações eqlle: ..~ste mundo é, pois, o reino deSatanás. Ademais, também
. ~~~lm tr~Id()$"se entregam a um destino aparentemente ~_~vangelho segundo João fala do "príncl:pe 4este:rpundo" .
, Irr:versIv:l.. O ~scrito gnóstico citado dá uma interpre- Mas o que perturba é que, no texto dos hereges bogomilos,
taç~~ esoter~ca as passagens do Gênesis que, na ótica da o reino de Satanás de certa forma é promovido por Deus.
t~aIça~, ~os Interessam mais. Portanto, segundo o que ele ;Portanto, antes de nascermos, o drama da traição encon-
dIZ (H~postase dos arcontes, in Erbetta, 1982, p. 189): trou sua celebração cosmológica, mitológica. Encontrou
A se~ent~, a instrutora, disse: "Não morrereis de morte' ele sua celebração, como dissemos, também a solução desse
vos.d~sse ISS~ porque é invejoso. Antes, os vossos olho~ se drama, solução não definitiva, é óbvio, mas traduzida
abnrao e sereIS como os deuses, conhecendo o mal e o bem"... na necessidade de os homens da história - da mesma
24
. d' t stemunh(Lp:reciso,,dessaantítese,dial~t~ca
forma que Adão e Eva, que os introduziram na história com;qIJ;L, a. "e. , , A t' da tr8.lçaor'
;::=- . gnificados inerentesa . arease.man ICa.. . .
- assumirem sobre si esse drama. O fato de os nossos gm tSI . , . '10' . que o tradutor traiu o pensamento .
progenitores, depois de sua transgressão ou de sua traição D'1 eroo s por exemp, .. '. d
"'"'d ?! "tor' ou q~e o entrevistador traiu o pensame.nto o.
do pacto firmado com Deus ou com o demiurgo, haverem ,.'o au . t do em suma . ' que o d eturpou, o I-ha1seou. DIzemos
sido expulsos "para baixo, na terra", sugere a ideia de que entreVlS a " . nto
.' b' legitiroamente que uro gesto traIU o pensame .
a tomada de .consciência da traição e,na Ótica qu,e estamQs tallllternd' alguém que ~ revelou e nos disse a verd.a~e.
'para abraçar, a tomada de consciência simp~e_sÍn_ep.te, ocu o e , tA t'
~'~"rt' t o calso corno traição, e o au en ICO co. ..
roo tralçao .
devam necessariamente passar pela elaboração do maJ ~ Po an o, l.
F" . staroente essa desconcertante arn IgUl a e • b' 'd d que
da inferioridade._ d~~lt roa forma, acabou por restit~ir a essev~rb.o urn
O 'tema da inferioridade nos leva à consideração , ~e sua neutralidade original. E essa arnblgulda~e .
desenvolvida por Borges, em suas Ficções, sobre a figura pouco 'te afirmar que se pode "trair" sem tralr,_
de Judas. Poderíamos dizer que são muitas as versões que nos perrol .d d .
f~ltar a um pacto, mas ero noroe de uma .fideh .a e maIS,
de Judas. De Quincey julga que é destituído de verdade
o que a tradição atribui a Judas (Borges, 1944, p. 142). alta ou roais profunda,
Borges fala de "três versões de Judas", referindo-se aos
estudos sobre o assunto realizados por Nils Runeberg, ao
qual Deus, escreve Borges, entregou o século XX e a cida-
de universitária de Lund, mas em Alexandria ou na Ásia
Menor do século II ele "teria dirigido, com singular paixão
intelectual, um conventículo gnóstico" (ibid., p. 141). Uma
das três versões referidas por Borges nos parece digna,
de modo especial, de ser mencionada, a saber, aquela
na qual as problemáticas da inferioridade e da traição
parecem fundir-se e, fundindo-se, adquirir aparência
divina. Segundo essa versão, Deus escolheu encarnar-se
em Judas. Escreve Borges (ibid., pp. 145-146):
Deus se fez inteiramente homem, mas homem até a in-
fâmia, homem até a condenação e o abismo. Para salvar-
-nos, poderia ter escolhido qualquer um dos destinos que
tramam a entrelaçada rede da história; poderia ter sido
Alexandre, Pitágoras, Rurik ou Jesus, mas escolheu um
destino ínfimo: foi Judas.
26
2 ,. significar uma traição. Isso vale paradoxalmente tam-
·'bém e sobretudo para um escrever que tenha escolhido a
UM "ALEGRE ACONTECIMENTO" traição como objeto.
FUNESTO No plano ontogenético - o plano no qual cada
um percorre, no nível de sua existência, as passagens
evolutivas que foram vividas por toda a humanidade -,
é ainda no momento do nascimento que toda criatura
-;:;xperimenta a traição pela primeira vez. Essa palavra
àssume seu conteúdo emotivo mais eficaz, se dissermos
que com a traição é violado um pacto, o pacto do Gênesis,
entre Deus e o homem, o pacto de amor ~.. solidariedade
nas'Vicissitudes humanas. Se não temos m..edo de.olhar as
êõisas do lado escuro, podemos ver também o nasçiwento
êiwp uma traição, É fóra. 'de d:àv{Ciã'que-- efe-~~~siste em
No mundo dos homens . um acontecimento traumático, digamos até "violento".
.~ a ~xperIenCIa da separação
A •
constitui a ,.
.. proprIa experIenCIa de viver Até Referindo-se ao narcisismo primário, isto é, àquela
:oc:eov~dr. este li~ro bParece uma manifestaç·ão de ~::~~ unidade original na qual mãe e filho estão contidos,
. Iscurso so re alguma COIsa
~'-~"
. ,e pensamento e Freud falou de "sensação oceânica", de inserção no fluir
pensamento mexoravelmente causa separação .'. o ininterrupto da vida. Partindo dessa condição, através do
desap.:go~ e. distâncias e revela-se inefável tr~io~~~a ..at9 do nascimento, mãe e filho experimentam a angústia
experIencIa Imediata, para não falarmos da uel; mod~ Jyndamental de separação. Para a criança, é trauma
~e escre~er q~e trai o leitor, levando-o desenv~tamente a .!.~rrível vir à luz, é trauma terrível ser expelida daquela
~ga~es a pSIque não adequadamente "experimentados". ~imensão "oceânica". O cessar, o interromper-se, o partir-
er egaard lamentava a queda para baixo d ~e dasimbiose constitui-se como experiência de angústia,
livros Algu b o escrever como experiência que não pode ser verbalizada nem
. ns, o servou o grande filósofo dinamar uês
~m seu ~xtenso diário, escrevem sobre assuntos a resieito formulada ou elaborada intelectualmente pela criança.
os quaIS nunca "refletiram nem viveram" E Ainda que disséssemos que essa experiência é "sentida"
(Kierkegaard, 1834-55, p. 97); . acrescentou ou "notada" por ela, estaríamos usando expressões
inadequadas para descrever algo muito global, um
Deci~i ~er SÓ?S escritos dos justiçados ou dos
um seno pengo. que correram acontecimento que permeará de si e de sua indicibilidade
~Q.nstitutiva toda a existência e personalidade do
indivíduo.
fi E~tre os ')ustiçados" dos quais fala Kierkegaard Otto Rank considerava o "trauma do nascimento"
gurarI~m, talvez, a seu modo, os psicólogos. Considere
bem o leItor que escrever o p' . t d .... ,.- ,. comó'ô acontecimento decisivo da exi~tência de cada um,
. ' roprIO a o e escrever, pode Como a experiência original capaz de determinar seus
~ - ')Q
destinos.,~essa óÊ..ca, que que:r:,PE~Ef)r:-s_e_à_:Qºssa.Qº!ll?i de Pierre Vidal-Naquet (1977) que dá o título a ~m li:ro
~~!~ºs.Q:m..Qglobal-,-Sex..:aalidade-e-mito.,. arte.,e. neurose
seu dedicado a Flávio Josefo, autor da Guera judaLca,
confli tQs ..e· perversõe&-par@cemjIDilllm~,nte r~dutí:;;fs também um
ao_ .,"
momento-.<}gc:isiv.o-da-s
_ - ..c!9_ ventre
eparaçaQ ------'- , --
materno. bom uso da traição.
A própria "análise" parece ligada de m~d'õ' p~of~;:~d;;~ --~--'-~-
trauma do nascimento. Antes, como escreve Rank ela
A traição do nascimento cos~~t~~~E.=:iram~_I!.~
constitui s.ua "realização supletiva" (Rank, 1924, p.' 26).
um-acontecimento f'undamental:to!:_r:t!lE=-~~Ol!-êÇ}~,~P.tEl§-,
C~mo exp~lCar semelhante expressão? Rank constatou que
~.?ns~~~~n~~_repr~f?E)~t?~.pJ:'~~~<?_de cu:rs_me:-~
Iíõ pià.n.<?_ dil_hi~t.()Ii~p~s~2~1~"slgnifica apropriar:n9 s ª~
CódIgos, sinais e conteúdos lªt~p·j;~%«q~e nos ajugama,
,~sI~6õlis.~º _<!~cimen~º,~, _~~~~Ü~.Jruls,_ªçresçeIltª:t... CoiílprgEmdeJ'Q~ mod,olI).~it() m~i.~ si@!fiçativo também
_~f)~I'~n~~ÇJme,.nto. O paciente renasce do analista como
(;;'~contecimentos manifestos da vida adulta; Não po-
9.~~~~_~ritual e çom i-ªêQ. ~~~rrvrãTIa~d~:fh:ação edípi~~~ deremos, porém, falar da experiência real e vivida da
Escreve Rank (ibid., p. 25): . ,- ,--
traição, se não conseguirmos indentificar e personalizar
O aciente renuncia ~o fantasma da criªu,çª-~ de_fl~jaria os dois papéis, os dois protagonistas do trair. Devemos
- com? se o~se ~ ~<-;:- presentear o paifU;lElJ:!QDsidera então perguntar-nos quem é o traidor e quem o traído.
uma cnança esm.utJlW r~{!é!ll:-~as~jAa_ ~o ap:aJ,isJa.." --Embora pareça duro e injust(),a.Y~cl§l df).JraiªºI...~.. acJ-º .
. A respeito disso, Rank fala do "caráter artagógico
ª
traído se revelam. se.mpre :rp._~.§.ma,ç9I1lºse_o~-cloi~ -
fu:§§.~mjnt~rp~r;:~táveis:~~r:aíd() merece ser traído, e .
da Imagem do segundo nascimento". Eara nascer ver-
@.deiramente, portanto, é ml~aS€EW. E inte-
;I(. o tr~!cl.0r é ol:>I'~ga_qo_ª.trl,Úr.. Desde o primei::o encontr~,
a mãe espreitará no filho os sinais de um CrIme, suspeI-
ressante que Rank exprima essas concepções no texto
tará e procurará nele o traidor, e o filho verá na mãe
O trauma do nascimento (1924), no qual se consum~
alguém que o traiu. Falo evidentemente de experiências
sua ':traiç?.9" a Freud. Ademais, no capítulo dedicado ao
que não são verificáveis, mas impõem sua realidade.
"saber an al't'"
IICO, mostra-se plenamente consciente des-
Quando, mais adultos, somos arrastados pelo vórtice da
sa problemática, particularmente na passagem na qual
vida, será o silêncio que nos fará compreender que somos
f~l~ de emancipações do discípulo em relação ao mestre
testemunhas de uma traição; não haverá necessidade
6bId:, p. 197 da ed. italiana). Diríamos Q.M..QJ!JJJlma do
de palavras nem de fatos, porque compreenderemos que
'1:C!~~!!!!!!.!!.to, ~gLnU-qual.R~Freud-ou.condl)z..
está ocorrendo alguma coisa na qual traído e traidor
s1!-ª§. ~ºP:ç~.P_çÕ.es-em-outra.djreçãOrcoa--espeade..ao.Jllg1!r.
revivem uma experiência fundamental. A mãe, que es-
r~~~J?:~\i~].!p_ento do p~óp-IiºRa.nk, Em out~~~_,paJay'!ªs,_ preita o filho, é dominada pela angústia e só consegue
rnrr.p-º-JLs-êrJJIIlJnodo,..senão uJllodo.,-de.:r-enascer. Con-
vê-lo, só consegue "concebê-lo".-atr avés....de-suaS. Pr9-Pri as.
siderações semelhantes poderiam talvez ser formuladas
a respeito do escrito de Jung Símbolos da transformação, P.r~~ões. ~ª.angJi.J3..tia se t-ºrl!.ª~§g~~t.9Xiª;,.no.pr9prig ,
ato do nascimento o filho se configura como inimigo da,
no qual fala, entre outras coisas, do "duplo nascimento
~-()po~tuno '~ergunt;r~n~~-po; qll~,'~certa'altüra"
do herói". Existe, portanto, para usarmos a expressão
~1
30
verifica-se essa circunstância tão estranha e tão diferen- . translIlissão da.~~.8:ição~, é, eIIl.s~:rr:tª, ine:xo!áv~l ~o.longQ .
J!-d -'-g"er.ações. Nessa ótIca, aqUIlo que Murray Bowen"
t;-d-;;i~?g~~~_qli~o)ugar-com~~, mas nã~ a int:!:!i.Ção aS . ...... f: '1' h "processo
=---d~s pioneiros da terapi~_ªlP:l.lªr, c a~a. .... . ....
'p.skQ1Qgtç_~g9.s oferece. Tràtã~se de circunstância só ~.
aparentemente estranha, porque sabemos que toda mãe,
'1' ,,'. t '
de projeção <ia faIlll.la , IS o e,. o pr
ocesso "pelo qual os
. -,;"7-'--'; '.='
na tentativa de compreender o que se passa com ela, -" blemas dos pais se transmüem~os__!i}l1os,_e I~J~.1.tl ~
percebe que, junto com a criança dada à luz, expulsou E?-r' ente i~éorpôrado'por e!~' aO êÕÍlceito mais global.d~~ ..
~::rdependência mültigeneracional dos campos e~otI-,
uma parte de si, de sua vida, interrompendo a simbiose
que a sustentava. Na mãe, essa expulsão se transforma t Vos'; (Bowen, 1966, p. 33). Basta pensar na afirmaçao de
em verdadeira e própria ferida narcísica: ela é subtraída B;';en (ibid., p. '0, s~g:1:md.o!:l9.l:lªI- ...... ---- ----------,,\
t , , · . . .... '.
do estado que tornava possível a condição simbiótica. lN;; arco de apenas 150-200 anos um indiv~duo é descen-\'
Nessa altura, o filho se torna inimigo, traidor. Mas no I d t de 64-128 famílias, cada uma das quaIS lhe deu u~a
, âmbito dessa constelação psicológica, que resta ao filho, I c~~t~buiçãO. Com todos os mitos, ~s~ificaçõ~s, :~c?rdaçoes
e opiniões influenciados pela emotIvIdad~, e dlÍlCü conhe-
o qual, além de tudo, não esqueçamos, sente-se também
traído? Não muito, infelizmente. Só pode empregar es- ! cer o si-mesmo ou os membros da faIIDua no pessoal, no
\ presente ou no passado recente. Qua~do ~e r~c.onstroem
tratégias para sanar de alguma forma ou "suavizar" a
ferida narcísica que seu nascimento causou à mãe. Esses~
~tema~_c~)]}Sist~JIlJla tentativa de co!'r.esponder às fan-_
),('9:) ..!i=!~!ª.s º=.a..:rn.ãe, de "encarnar" o filho fanta~ia<lo~ !l0r ela. "_
os mitos e ser "realista".
.- ----
atos passados há um ou dois séculos, e maIS facIl superar
l:- - - - _ .
Essa afirmação nos remete aos possíveis par~lelos
_
I, JY~ Temos. aí u . m as.pec.tO.d.a tr. aição.. re..lativ.o ao nascimento constituídos pelas noções de "carma"e"pecad o ongma
. 1" .
'r.,tl que co.Il.~!d~!º de.importância fupJlam~:rttal. Ainda antes Nessa ótica parece mover-se Jung, quando afirm~, ~m
, ) . de nascer, s~mos fàntãsÍados. Tº.dª-~.ª.~Jili§e.!y'ª~ sua introdução ao texto de F.G. Wickes, Il mondo pSlchlCO
. sua experiência o que estamos dizendo: quando.ela fica_ dell'infanzia (Jung, 1927-31, p. 19):
sªbenao que
esÚí'esperando um filho, começa a fantasiaI-.
r
(
ql!_e ainda antes denascermõs~o:mos imf.tginados,_quEZ,
'airida:'ãntes de descobrirmos quem somos e como SOmQfL
'p~d.~;-~e-ia dize~ que foram os antepassados, os .bisavôs \1
e as bisavós os avôS e as avós que geraram a cnança, e :
-olhªÍl([oAeIltro de nós ou em um espelho -,-ª.l@ém_ que a sua individualidade de~end~ :rD:ais d.eles do que, por .
já o fez por nós. A nosªae:xistência e.a-nos@..autonomia assim dizer de seus ocasionaIs paIS ImedIatos.
~ . '--_.-._ .... _._-_._-_._--_..... .. .--' ......._- .._-. .
sãõêõndicioiíad~~:na hora de virmos ao mund~:JáfoIDOS-=
_,./
32,
pessoa, de alguma forma, escolheu não viver, mas tam-
um estilo de ~idlld~Enql1:E:l~~illl, lllªS fun<laIUeJlt.al~eutJL"
bém deriva de uma "ética natural", de uma "ética querida
pelo destino" e que, como tal, transcende a capacidade aiVers()~-É muito ~fíc~ão perc:~:,~.~ll~.~r~!~.~~.v~::~: ~
~a vida, ,pela sua Im~a~1.l!aça().a YIda.,.J~_ e_consIª~~~~Q.
de entender dos homens, uma ética que se exprime como u~a culpa pelo Qli:tro, Jung procura. explIcar pe!a IdeIa
,; "lei de compensação". 9 "carma" familiar decorre em
c"\~c',s.~,~,~? ta!ll.l>~!!l,.<J~.1:l!.E:a ."culpa iITípesêoai;', de um~'~~~
-r" culpa impessoal, mas todo ato rUInOSO cometIdo pelo
fi~ho violenta essa presumida impessoalidade e proj~ta-o
';,' )6 P?rt::l!!'~.Q~J1oderiªm.illu:!i~~EI.,,!!.ªP com.etidª ~L<lue ... em.tml!L o mais triste desespero. São esses os casos nos qUaIS os
t· ~I:l~<?! aInd_a,J~!1_~~lle p.ªis,e filho.s venham aomundQ,-.. ~ais, fortes e poderosos, sentem a chamada "impotência".
~P~êll:rde.t.udíLdiU~sp~i!~.também a ele$. Escreve Jung Com ela,~ tQc-ª-P-!:~~.º§Jjn,lit~~. d~.'y_~_~.l:l!. ~, I).E,lê§~ .G~§'º., tlldo.
Übld., p. 20):
~rece ligado aode$tiAo. ~ão obstante~ :ambém nessa
Tendências proletárias em descendentes de estirpes 'impessoalidade parece verIficar-se a traIçao, e, provayel-
no~res,.instintos criminosos em filhos de gente honesta, mente é ainda a es!,a "inculpável" impessoalidade ql,l8se
ate mUlto boa, uma preguiça singular nos herdeiros de de~em atribuir, de ªlguIll!l maneira, as im,aginações dos
pessoas enérgicas, que sempre tiveram sucesso não só são pais a respeito de. s~p.s fl,l,t'qr.os filhps ..
consequências de uma vida que voluntariame~te não foi .. er imaginado e pensado ainda antes de nascer é
vivida, .mas tam?ém derivam de uma lei d~eompensação
~~~e~tm~, condIze,ntfLC..o.:rt!J!mª.ética.natural.que tende a visto por cada um, mais ou menos inconscientemente,
aomxar q~e.~ e~tava ~?~lt() e_e.1evªr quemestavª~IP-b~ como um "rapto", como ser roubado, despojado, porque
E contra ISSO nao .va1em nem educação nem psicoterapia. a nossa individualidade, a nossa particularidade de
Se forem bem aplIcadas, elas somente ajudarão na tarefa homens, a no§.§gJisionomia psíqui~~)l~Q.~.~ertencem
que o "Ethos" natural requer de nós na vida. Trata-se de senão com«~ultadQ de' Ílõsso p~rio._esforço)~ n:w,m.c;ª-,
.(!ylpaimp-e~êQ..~.Lçl()ê.pais_queos filhos devElrÜmLP.a@,I. dê"
modo tambem Impessoal. .' como dom régio dos ou~ros. Os deseJOS, as fantasIas e os
---"c _
T_."_ , __ ~._ ~~-~, ,
J
I,
':-- <J::::::'J'1j."ni!.siin"';ô"it~;t.'!,S~di""t,,~y-i_"'.~srn~
ao nosso encontro e a morte que escolhemos encontrar.
Antes de tudo, obviamente, a traição do nascimento. A
relação entre a criança e a mãe equivale a uma relação
.. ,'0- -" , .. ,..... .... • <:1'7
36
É essa a maior obra de arte que podemos realizar;
embora trabalhemos e apliquemo-nos em todos os campos, . mito· seJlx~lªção entre oshomensse?aseia soment:.-no.
ao~ra da qual somos os grandes artistas e os verdadeiros ~fi
con ron''''to , na competição
... ...... e no.antagonIsmo
'. das
d atuaç()es,.
r.
( mestres é a nossa ~Üidividuar d 'd
....,:"\.. .,_.....-, - ~ y. não se trata de relaçti9 de sohdanedade,IIl~.s e cump~cI-
(:der;;~;=;ti;;g;;~-~~;~-d1~*~i~e~~if~~6f~:â~fl~7a d;de il}c(msciente na perpet~ação d~ u~ Sls.t~Ina d~ vIda .
. affeâEtcada um ·de·-tomar-gee1eProprTh nao"e'eiiêoraja_ -ê-ênvilece cada um e sual.rrepetlvel.1ndIYlduahdade.
da pela lógica coletiva, porque a lógica coletiva, voltada
9.!!!.. . ~ IIle,nte._os
Vêm-me . que ~.~c::oII!9vem com os terremotos
. , .., _:_ .
à manutenção da uniformidade, vê na diversidade e na ut ro lado da terra e são incapazes de ~stender a mao .
no o . t d
~o vizinho de casa. Quem ousa opor-se a esse SIS ema e
diferenciação o peso da ameaça. É por isso que desde o
nascimento experimentaríamos estranha sensação como -m--portamento é sempre e facilmente condenado pelo ho-
co . t A
indivíduos separados: a sensação de sermos intrusos, de mem comum, porque a sua periculosidade ç0!1:ê~s _e;e~ p()r,
não termos direito ~adª!li-ª..na...re~idad=e~_ _ __ radicalmente em luz a inconsciência do home~~edlO" do
A medida que as relações se multiplicam em nossa . . .homem que vive somente para entregar-se acr:tlCamente
existência, pode intensificar-se a impressão de não termos aos valores vige~te,ê,-,~~I!!,~1J.Q:m~ter êJ!ªJJ}9:rahdaª~~ u~
direito a um espaço, ao espaço próprio; o indivíduo pode exame deconsc.iên~ia pessoal, fundado na expenenCIa
sentir-se, como quase todas as personagens de Kafka, sem interi~~:n~escutadas "vozes de dentro" ...) . .
"os papéis em ordem". Não obstante, a consciência dessa ----'Quãndo a sabedoria a.~ti~a e ~~~~_E!!:?~ ..E~~~~~()~l3:_
}!!,arginalização, a reivindicação do próprio "lugar ao sol" e profunda, .com acentos e contornos ~lversos..?._~~s~ot~
(~;cC~l]..ê~~i~~:~.:?-:~;g~~Si1~ggstgiYElrSiéladepiQQr.i~s ind~ clãs de analogias substanci~i,~,.nos,..d!~~rpqu~ tor:nar-se
"frldlvíduos'; é a-tarefa de nossa existêncIa, nao devemos
raop)5êrcurso d-ª.JJ1diY!Q:!:!e®)E necessário, com efeito,
perC8ber que foi subtraída alguma coisa da identidade pensar que os outros tenham o que não temos. ~sse ~ u~
própria, porque assim se configura a traição primária erro no qual caem fatalmente muitos de nós. Nao, a mdl-
a mais árdua de enfrentar e de cuja ameaça ninguém é cação dess§ls disciplinas reside em outro l~gar: ~rata-se,
para elas{de..-cad,a um torna.r-se o que"~le e, .e nao outro .
~ poupado. Dev~~~ to~ª!:.-ng~.cªnscios <ie que à pet:.Ç&.gção
7i/~:.~~r~0s.~ido esperados "~i~erel1tes" dq que somo§jwlta- .~, f'Tem força salut~r';:j escreve Jung, ~~.~9:~I!<:)" qu~ cada
-~e 9.esluPQfde.sermos..reJeItados pelo q:ue somos. Esse ':.\Cr~·'efetiVamente"~ Ser fiel à p1:'_Qprül. u,nic:idade IlllPõe,
desconhecimento original se encontra também na base 'c'JI ~~tudo, custoaltíssi~õ':'9Cust~ da solidão edaexclus!i0.
de uma visão supersticiosa da existência pessoal, aquela ~ Dostoievski, que pode ser consIderado um precursor da
que nos faz sentir-nos afortunados ou desafortunados de ~ psicologia profunda, como justamente notou ~re.g:r (19~9:
acordo com as atuações que conseguimos oferecer e do \~...\ pp. 6-12)
, intuiu a dificuldade -- do processo de mdlVlduaçao,
sucesso que elas conseguem no mundo externo. Muito ~; ~~~ta pensar no percurso de solidão: isolamen:o, neurose,
. IlJ,ais difíci1~..has.ear. a.pr6pria ~§JimanaYerdade,~ ~ ,~perda do sentido, ali~nação, cul~a e madequaçao que suas
sQIIlo,sE:lse!Lt!P.:to~. Devemos ter a coragem de admitir que, ~~ personagens são obrIgadas ~ tnl?ar ~ntes de. cheg~rem a
~
sob o re~me p~icol?gico dessa superstição, ~~~~ h~ Um momento autêntico de Ilummaçao e paclficaçao com
v..er~I:l~!Xªê~!!~aneªAdeJ~nt:r:e .ªs.pessoas------,,"--..
a n~o ser "-"-
como ~ , a vida. As personagens de Dostoi:vs~m.ostram,~a~b~~
" ",' . '., - ~.,,-._-- 9:ue não é garantida a superaçao CrIatIva da trmçao
38
<ln
, I temoS verdadeiramente necessidade, a morada na
da identidade: só alguns, misteriosamentE:l,atravessam qu a . , proprlOs,
"
quãl somos verdadeiramente nos est'a em out ro
o desconhecido desse caminho e volta~ "mais" vivos' " O espaço fundamental, o tesouro do qual falam os
"mais" capazes de continuar a vida. São os que conse~ ugar. ". d ,"
-1 't s em suas múltiplas variações, o remo os ceus
gu:m aproveitar o feixe de luz qlle hÓ1hou sobre eles: a nll 0 , , d d
, do qual fala o evangelista Lucas encontram-se entro. e
ferIda aberta pela consciência da individuàlldade e da~ , A pedra filosofal o cálice do santo Graal, o velocmo
extrema dificuldade de realizá-la torna-os infinitament~ nos. , ' .
mais humanos. .~ de ouro, a morte do dragão, como cammho p~ra ~e chegar
ão tesouro, representam aventuras que nao tem como
Antes ainda do nascimento, acendem-se sobre nós
teatro o mundo das coisas visíveis, a r~àlidade externa.
esperanças e hipotecas. De algum modo subterrâneo so- Ai de nós se nos detivermos na letra, na Imagem concreta
mos hipotecados e despojados de nosso valor de indivíduos
que o mito nos propõe. Literaliza~ é um modo excelente
quando os pais - e não só a mãe - confiam à nossa vinda
de trair a experiência. VerdadeIramente, como lemos
no apóstolo Paulo, a.lfl~~~.~<~~~· to reI>resent~ '~-~J1l
ao mundo o dever de satisfazer alguma de suas necessi-
dades - por exemplo, a de mostrar sua capacidade de .9rni
procriar. Ou a necessidade de preencher um vazio na vida
É!ll!K~m" o destilado da sabedorIa ~umana atraves dos
milênios: diz-nos que o homem esta sempre procurando
do casal. Ou a ilusão de recuperar um matrimônio que não ~·~erdade. A necessidade de superar provas específicas
se te~ a coragem de reconhecer como falido, ou quando
'ê perigosas remete às provas que nós, como indiví~u?o~ ,.
os pa:s nos delegam conquistas e revanches que não con- e nos diferentes níveis em que viermos a encontrar-nos,
s:guIram. ~m suma, projeta-se na criança um problema odeveremos superar. Jasão andava à procura do velocino
nao resolvIdo, e com isso ela é isolada, segregada. Mas de ouro Persival e 'os cavaleiros da Távola Redonda an-
a onda da traição que submerge o filho não se detém aí'
a própria vida dele se torna uma "coisa" fastidiosa. Iss~
à
davam procura do santo Graal, mas cada um de, nó.s,
s.egundo sua história individual e no arco de sua propna
significa que, a partir do nascimento, conquistamos tra-
existência, dev:erá.procurar llInoobjeto decisivo e ifrenun:.
balhosamente um espaço autenticamente nosso' e a sen- ~áve( cuj~ conquista preludia a consecução do espaçO
sação de sermos excluídos se funda na traição pri~ária. A iliterior. É essa, creio, a única resposta que podemos dar.
nossa tarefa é então a dElencontrar ou "inventar" o nosso....- -"áo evento trágico, e fundamental, de nossa existência que
espaço, o qual não se encontra ao alcance da mão nem é
. ~
concedido como imediatamente visível, mas é alg~ de in-
definível, abstrato e fugidio. Ora, se sentimos necessidade
-- 'é a traição do nascimento."
.....,~-" .......- -~- - '
40
I'
48 AO
v_~rda<leiro desa.fio está na confiança, <ie que alguma coisa 'eles sobrevivam psicologicamente sem muitos conflitos.
maior age dentro de 'nós,algUma' COi.~~l ~aioi'do que o ê~= Quantos de nós ainda são filhos nesse sentido, de mãos
)~ lllais espaçosa doqlie o "meu", al~~~c::oisa~~ em..... e pés atados a um invisível incesto psicológico?
t!.@quil;;;t9POS!Ǫ.o.à. ~oral <:l_e..!1Q§§9ê,painéis pll,l?liçjj;á.ci.as.-,~ Vêm-me à mente as últimas páginas daquela obra-
nos un~ em uma subst.?iiciª-L~Jlatural igualdade. Então prima de Rainer Maria Rilke que são seus Cadernos de
~Trã,ição, em suâs~il' formas ~ -'dlsfâic~s',"d~i~ª-,de~'s~~r Malta. O poeta elabora sua versão da parábola do filho
somente uma desventura:"""'" ,-' - pródigo e escreve (Rilke, 1910, p. 263):
Crescendo"e'superando toda uma série de obstá- Na parábola do filho pródigo obstino-me a ver, a lenda",
culos, tornar-se-á claro que conseguimos uma autenti- 'da<iuele qu~ não queria ser 3;;mado. E seria difícil dissuadir-
cidade maior justamente evitando identificar-nos com '-me disso.
o que os outros pensam de nós. O que os outros sabem
de nós? Em geral somos impelidos a um papel coletivo Não é fácil entrar plenamente nesse escrito de Rilke,
e estreito, que, além de tudo, é um modelo "cultural" e, porque ele contém, em linguagem poética, um significa-
por isso, "datado" e ancorado em determinada geração. do psicológico absolutamente revolucionário. Para ele,
Sem dúvida custa muito mais, em energias e sofrimentos, o filho pródigo é aquele que é forçado a deixar):1 C1!,~~t, ,
procurar uma confirmação autêntica, a qual só pode ser paterna porque percebe que aquele que é amado, nela.. ,
interior. Essa conquista se torna mais difícil quando a chamado com seu nome, esperado para a ceia eJestejado,
vida dos pais que não puderam efetuar esse percurso se 'pelo seu aniversário não é ele,. O filho pródigo rejeita
nutre da dependência dos filhos. Muitos filhos, não mais 'esse amor, que não é para ele, esses presentes, que não
jovens, ainda vivem com a mãe e não sentem o conflito são para ele; nesse sentido, a parábola é "daquele que
que o impulso para a individuação deveria tornar explo- _l!ãQ quisser amado". Analogamente, Kierkegaard, .em
sivo e incoercível. Muitos jovens vivem em um limbo de seu comentário da parábola evangélica do filho pródIgo,
possibilidades, como barcos de luxo que se deterioram afirma que os pais "não têm magnanimidade bastante,
no ancoradouro. Para eles, o universo se reduz ao meio para dizer ao filho que parta ou para compreender que"
familiar, ao "conhecimento" dos pequenos prêmios e re- ele deve partir", e acrescenta que, sendo assim, "não
compensas, dos pequenos e grandes delitos psicológicos, há solução" (Kierkegaard, 1934-55, p. 42). Rilke narra
herança dos avôs e antepassados, que serão transmitidos errrseguida, com arte esplêndida, as peripécias daquele
para as gerações futuras. Permanecem encalhados nos jovefli'''ã''pr'ocura de si mesmo, o contatocom a natureza,
"baixios" dos códigos existenciais e comunicativos de ii espera do amor de Deus e o retorno a casa. O retorno
origem, dominados por seus preconceitos e completa- do filho pródigo a casa não é apresentado por Rilke como
mente inconscientes do oceano imenso e novo em torno ato de renúncia à sua procura, mas como superação da '
de si. Ter em seu poder a dimensão psíquica dos filhos traição. Como se ele compreendesse que a casa paterna, '
permite aos pais garantir para si uma importância e na quàl a pessoa é desconfirmada daquilo que ela é mais ,
um papel preciosos, o que é possível somente quando intimamente, é uma manifestação da vida, da traição da ~
o filho continua sendo aquele filho que serve para que vida(Rilke, 1910, p. 271):
1':1
50
Então deteve-se.
Porque lhe sucedeu compreender cada vez mais que aquele retação dada por Wilde à parábola evangélica? Liga ele,
p
talvez, . reco?h ecer o "sagrad o"
o fato de o filho pro, dIgO
amor, do qual os outros se mostravam tão vaidosos, esti-
mulando-se a porfia, não dizia respeito só à sua pessoa. de sua própria vida ao seu arrependImento e ao seu re-
Ele teria quase sorrido de piedade, vendo-os atarefados torno ao seio da família? Ou podemos e, talvez, devemos
por nada.
ensar que o reconhecimento veio justamente por ter ele
Parecia claro que não pensavam no Retornado.
O que sabiam dele? ~onsumado a experiência da traição e, ainda melh?:, q~e
Amá-lo era agora terrivelmente difícil. o "sagrado" de sua vida corresponde a essa expenenCIa,
Ele sentia que Um só seria capaz de fazê-lo. e não a acontecimentos posteriores a ela? Enfim, como
Mas - esse Um - ainda não queria. devemos entender a reconciliação do filho ~ródigo c~~ o
pai, que ele traiu, abandonando-o? ~ n~rraçao evangehca
Rilke compreendeu a traição do filho, a tragédia de foi redefinida a seu modo por Andre Glde em um de seus
não ser amado, de ser entendido mal pelo "amor" dos pais. Poemas em prosa (Bergonzi, 1990, p. 110):
~ compreendeu t,ªIllbém ?,resposta mais humana E}mills Aqui o retorno do filho pródigo é uma ad.missão de malo-
sábia quese possa dar e esse-equlv-ocoferríveJ: ir embora gro; procurou a independência pelos c~mmhos ~o mundo,
'ê'V:óitar, isto
...--'" ......
é,emÚirmos psicológicos, diferenci~~~se
.
dos
-~--, ......... _ ' - . - mas não foi capaz de suportar o conflIto, a. ansIedade e a
aspec!os.,malsãoR daquele amor e depois perdoai":-sentir frustração inseparáveis da liberdade, por ISS? vo~t~ ~,ara
J>i.E:lMde daqueles pais q~e se "afadigam por. nada". Iê.ª9 casa "por preguiça" ... Incapaz de suportar a traIçao da
significa que o pÇli, capaz de âmá-Io, tornou-se figw:ainter- família, preferiu trair a si próprio ...
nâ,diyi,I1ª,~HIu~le "!LIIl".ª-<? qual fala Rilke, cuja disponi-
bilidadepªra sairfora é lenta,lentíssima, uÍnverdadeiro _'. Outra é a apreciação de Kierkegaard, que viu no
~~riô. Analogamente, em seu escrito De profu~dis1.que retorno do filho pródigo - ao menos nisso não diversa-
é u~,~ !qrigiiç:~i!~~ Lord Aifred Douglas, o joverri por ele mente de Rilke - um "retorno a si m.~smo" (Kierkegaard,
1834-55, p. 42): - - - - ' - - ' - - -
amado, Oscar Wilde sustenta, a propósito da parábola
evangélica do filho pródigo (Wilde, 1949, p. 94): "~mJ?egt1iqaele,:r_etornou a SI. mesmo. "S'lill, a_vlag~~;=t_Q".
.
!
I
Estou certo de que se lhe tivessem perguntado, Cristo
responderia que no momento em que o filho pródigo caiu
'éxterior terminou; terminou não com seu retorno a casa,...,...
mas com seu retorno, asi.mesmo ..
: de joelhos e chorou, transformou o ter dissipado seus bens
! com mulheres de má vida, o ter-se feito guarda de porcos Kierkegaard mostrou também que, concentrand~-se
e ter-se alimentado das bolotas comidas pelos porcos nos toda a atenção no filho pródigo, o pai fica quase esquecld~.
momentos mais belos e sagrados de sua vida. Ora, para Kierkegaard, o pai citado na parábola evange-
lica é "Deus nos céus" (ibid, p. 43). ,P.eY&riamo.s..._tals..e.z,._r'
"Para muitos", continua Wilde, refletindo sobre sua ~eduzir disso que o retorno do filho pródigo signi~ca seu,
própria experiência, "é difícil compreender isso; talvez retorno a si mesmo no sentido de que o protagomsta.da. '
, parábola evangélic~ se tornou pai, melhor, pai e mãe-de"
seja necessário viver no cárcere. Nesse caso, talvez valha
a pena ser encarcerado" (ibid.). Como entender a inter-
.!.~,~esmo. Na parábola, tratar-se-ia, em. suma, ..d.e..~umª..
52
funçã(}, çleparada diante do passar de um de~tino imp~ó
~~~~~~~p:1çlo."pfli" ElO "Pai" ~ª~ uma passagem da dimensão pfiô~ ela é umadoençaeuj.oescopo,é d!=lPUIlcIar o conflIto
lIt~I'al;à di~~~_sãos~m.!:>j~~~.: ~ig~-e-,~s,s~p(}de serreferi~ "psidulco resultante da cumpli~i~adegª~ipdinaçõ.e,s,Ilr6~
ao proJeto micIaI des~ª p~s~agem, afirmou (Jung;-nn7:;f3,
p. 61) que em tais casos ' ,-" ," pn as com os dita~es .d~ cole!~VI;çl!:Hle".,,,"- ., .
.' A estrada da mdIvIduaçao e, portanto, difICIl e dolo-
A terapia começa substancial e realmente somente g.uando rosa; ªtravés dela o crescimento não proced~e~._".~~~d~.,
,~:)?:í=ié~e?te ~êq~ê§:qlI,!ô~enibâraça j~nãô é oPâí'~'à'm~~-,-- de aquisiçõesín.têileCT'uats·:-1\:'ihrs"ã<f"dê'que 'o '''amadure-
/ !!1.mLill~.QP.I'l.o, I§1&_e-,~1,LIQaparte I~conscieIlte ,de sua "amento psicológico" é adquirido por meio do acúmulo de
,I?w.so.nalida.de,aqJ.!~J assumiu e continua ii'iIterpretar
f!~P.rl..de...Il~.uul1ã~_ ' ",',,'
o
"-" conhecimentos teóricos, ou através de um treinamento r
especial em moda, cria milhões de ~ítimas. Ge~almEl~t.e, ~
o resultado dessas indigestões d El çlIêÇ9T'§Qc~~p~IcB;!lal~g - l.-
. A condição de filho dependente não está ligada à
Idade cronológica; alguém pode ser filho dependente aos ·cos é que a pessoanão rn,uda eUl nada,sorne.Jo1t~tê~ tOf..:,na, ',",~
setenta anos, quando seus pais reais já desaparece~am' muito mais sabichona e presumida. b-s_.rac}coA~lI~~SQ~!.'... "
engenhosas também síl~ "t:raiç<?~.§l" que ~11l~~tee~wete, :::c":.
com efeito, ~~~~~~1lldeles pode permanecer no psiqy.i§..I!1,~
cbmpreill:!zó,<ló coraç,ã(}: .a, ,p~,ssgªf:)_e..ê,~!!!~,Jl1).mgV:lgª,. , '.;,-,;
d_o.}:iJ.~~, e, não tendo ele consciência disso, ela condicio-'
na com müÍtâ.' eficácia' os comportamentos e as és~~lh;~'> p~receqúe cOrnpreend~u ~ll~o.~mld!l ~o:g:uH:e~t.~k.nrº":
,eoriséientesdele. Por exemplo, se a figura materna"iíâbi~" ~: Em. geral a vida se enc.arrega de esvaziar esses ba-
lões e ela certamente é maIS engenhosa do que eles em
t~r prepotente e nagativamente a nossa psique, ela pode
lIteralmente impedir-nos de viver de modo autônomo e des~ncantá-Ios. Na origem da presunção ta~bém existe"_
criativo, o que somente o desapego psicológico da mãe uma traição. Se aJ!i§i(iã]rie.s.se.,mªl§e~êIl~~~A~,~ll:,~, \/
permitirá. Muitas vezes umhomem apegado anacronica- emotiVíàâàe teri~ menos necessidade de entrinch~~:.~~:~~ . ~.~
"-"'C',"_ , .. ,' .... '.~ i Áiiôs sIC analistas de IIiod,o 1\
mente à mãe encontra muit,~ dificuldade em estabelecer" ~tr!ls,decertezas raCIOnas. ......c,P ........ ""'o"" " '
ligàção' afetiva e's'exual satisfatória com outra mulher-ã" be~ mais concreto dó que se acredita,p(}delIl eS~J!pd~r~se
at:rás de sua'personalidade terapeuta, identificar~se com
impotência,o homossexualismo, um dom-juanismo ex~s-'
peradb são sintomas de relação perturbada com a figur~~
àescola na qual seformaram e não sercãpazesae tóler~r ,~
m.aterna. O tra~alho analítico consiste então em a pessoa
oriovo, nem em si nem em seus pacientes. ~sabedorIa
~sôcrática da d'Ú.vida não benefiCia esses indivíduos, cuja,
tornar-se conscIente dessas imagens internas tirânicas
enférrnldade mais' triste é a presunção intelectual e a
e prevaricadoras. O nascimento cronológico não coincide,
iilêonsciência do nível emotivo de sua vida. Estamos fa-
,com o nascimento psicológico. A aquisição de'umi'é~Ülo"
hmdo novamente da dificuldade do' desapego dos"pãísé
existencial conforme e fiel à nossa personalidade parece
da traição que eles, mais ou menos inconscien,temente, .I ,
ser? resultado necessário de longo trabalho psicológico
2infligem a seus filhos. A atitude de um psiç,ªnalista rela~
de diferenciação. Jung dizia que os neuróticos são homens
~ivamente à sua escola de formação pode, com efeito"ser .'
propriamente superiores, homens que não suportaram
permanecer em uma situação existencial muito estreita
.,~uito semelhante à da criança em relação à sua família ..
A comodidade de transferir toda a responsabilidade à
e destituída de significado. A, -
~~urose tem justamente,a,
_--' . ...
-~-----_ .. '-'.~._ "
54
"escola" e às teorias dos pais fundadores torna a prática , necessária para que o filho ponha em dúvida se esse é
profissional muito estéril e inadequada para enfrentar as ;ealmente o seu caminho. E, principalm~nte, que possi?i-
situações tão diferentes que a relação analítica suscita lidade de autorreconhecimento tem um Jovem de.dezOIto
também no terapeuta. Uma explicação desse fenômeno anos que terminou o colégio para opor-se a um projeto ~ue
é a de atribuí-lo também à tendência infantil de salvar não corresponde às sua inclinações? Nesse caso, a saude
sempre a imagem dos pais, isto é, no caso da família psi- psíquica consiste em conceder-se o luxo de dizer "não" a
canalíti~a, dos pais fundadores. C0II?-~~~~ê, é necessári~ essa troca paradoxal de papéis entre o passado e o futuro,
uma traIção também e principalmente da parte dos filhos de recusar como "projeto" alguma coisa que já foi feita
uma traição daquelas instâncias que não sentimo~m.'ai~ por outros. Metaforicamente, é uma espécie de s~gundo
corresponder a nós e que dificultariam o desenvolvimento corte do cordão umbilical, consistindo a nova fenda em
.de nosso "estilo" pessoaL .. , .__,e~~_
ver a "segurança" do passado como um abraço mortal. As
É importante e digno, em si, o fato de cada um procu- interrogações, no caso, são, pois: trair o futuro, isto é, a
. / . ?
rar inspirar-se em modelos que considera positivos e afins nós próprios, ou trair o passado, IstO e, os paIS. .
de suas inclinações; também Napoleão lia as vidas dos A traição é uma das experiências mais dramátIcas,
homens ilustresLAS$im, embora um psican-ªJist,.§l ip.spire- porque é a experiência da separação. A vida é uma longa
~se ~~pl09-0 particular em Rogers, em Jung.o.:ue_~ série de separações, porque a nossa existência é pontilha-
~?ec~ssári.~ qll.e teI1,ha seu modo. próprio de ~traha]har, da, até o fim, de laços afetivos (em relação a ~ma pessoa
segJ:lstilo, únicoeirrepetücel Quando não ç()1J:seguimos_ ou também a algum bem), e não há laço afetlVo sobre o
ter Ilo.ss,o e$tilo, somos traídos pelas nossas possibilidades qual não se projete a sombra inquietante da perda, da se-
,exp!,:essivas.,E se essa traição se atribui, na infânchl, 'à paração. Separar-se de alguém ou de alguma coisa n~ qual
figura dos pais, é necessário dizer que, na vida adulta, aplicamos nossa capacidade afetiva provoca, sem dUVIda,
ela se torna nossa autotraição. O crescimento se dá em os maiores sofrimentos; entretanto, a esses sofrimentos
condições de inferioridade, porque somos vítimas de uma não podemos e não devemos subtrair-nos; ao contrário,
dependência emotiva e econômica; quando decidimos "sair devemos abrir-nos a eles e vivê-los até o fundo; trata-se
de casa", devemos, depois, haver-nos com o sentimento de do que Freud chamava trabalho de luto, "trabalho" que
culpa e com a chantagem econômica, sempre à espreita, consiste em se saber viver a separação, concedendo-lhe
em uma relação de forças fatalmente desigual. Como fi- tempo e espaço para ser elaborada. Como psicólogo,
lhos, vemo-nos entre dois pólos, melhor, entre dois fogos: creio que a escolha deve ser sempre para a frente, que o
atrás, o incêndio dos valores e dos preconceitos familiares· desafio deve ser acolhido, porque abre-se para nós uma
adiante, uma luz fraca, a chamazinha de nosso projet~ nova dimensão. Ninguém poderá perguntar-nos por que
de vida, luz que deve ser alimentada com impertérrita não somos diferentes do que somos, mas é provável que,
confiança. Pensemos em todos aqueles casos nos quais o passando os anos, nós próprios nos perguntemos o que
filho nasce em uma situação familiar na qual a orientação realizamos da vida que nos foi dada. Se a tivermos usado
profissional está predeterminada há gerações: o comércio, para proteger-nos dos imprevistos e das mudanças, não
a carreira de médico, de advogado etc. Quanta coragem conseguiremos nem preparar uma resposta, não teremos
56 I~J7
elementos ~e~ pontos de referência, porque será como 4
nunc~ nos ~Ive~semos aventurado pelo caminho que leva se
do remo da Ilusao para a verdadeira vida. Se não tiverm PAPÉIS E CONFIANÇA
usado noss~s energias em uma espécie de interminá os
surplace, nao menos fatigante do que uma corrida vel
trarem~s uma resposta da qual não nos enverg~:~~~~
~lOs,_SeJ~ ela qual for, resposta que não trairá a tristez~ .. , os corações foram feitos para ser despedaçados ...
(O. Wilde, De profundis, p. 75)
e nao. dIspormos de outra existência para trocar Est'
certo dIzermos que não sabemos por que fomos postos na
mun~o, m~s sabemos que não foi para olharmos em torno
de nos e nao fazermos nada. o
Jung observ~u ue oIlJ,utges que t~m paralelismo onírico, O fato de haver sido não o consciente, mas o incons-
relações pais filh mUI as_vezes ISSO ocorre t am b'em nas ciente dos pais que exerceu a maior e decisiva influência
- os, e entao são filh
~ sonham com os problemas d~: ,os, P?r exemplo, sobre os filhos era considerado por Jung "problema espan-
conferência em 1923 Jung (1923 paIS, Ahas em uma toso" (ibid), Será necessário, contudo, procurar a solução
, p, 53) sustentou que do problema, ou, segundo a expressão de Hõlderlin, "aqui-
os sonhos das crian as muitas vez lo que salva", justamente da parte do perigo, Outrossim,
paIS o que as próprias cnanças,
' es se referem mais aos
sabemos da mitologia que só aquele que feriu é que está
em condições de curar, Diremos então que..t.ornar-se ca-
O mesmo Jung conta o d
nove anos que sonhava cas~ e ,um menino de az de construir a própria vida sobre o pressuposto da
do pai, ou os sonhos ' por ,assIm ,dIzer, os sonhos sagrada fidelida e as próprias inclinações individuais
termos, os sonhos q~~e o p~~ deverIa ter, em outros [Possibilidade fundada sobre a "confiança primária"
eróticos e reliaiosos O e~pe avam seus problemas !.nquanto experiência originária de nutrição, espelha-
b~, paI, conta Jung - mento e empatIa que uma mãe sã consegue dar à criança,
d e recordar seus sonho J ' ,.' nao era capaz
o pai através dos sonho:' dou~1 d,ecldm então a~alisar Se a "violêncIa contra os menores" se compõe de tantas
pai voltou a recordar-se de s o, ohresultado fOI que o faces, incluída infelizmente a da agressão física, mais
eus son os ao passo frequente do que se pensa, em nosso caso, isto é, no caso
sonh os d o filho cessaram ('b 'd) O f : ' que os
não resolvidos dos pais s~ ~ ii f ato de os problemas em que é a confiança primária que é traída, encontramo-
~uica dos filhos d e e Irem na saúde física -nos diante de uma violência mais sútil, impalpável nas
encontram em reI _se eve ~ q~e estes últimos se - modalidades e transbordante nos êxitos, uma violência
, açao aos p r I m e l r - - - que se serve de meios psicológicos, Somente se não fomos
partwtpatzon mystique ("p t" os, em estado de
empregarmos 't . ar IClpação mística"), para-- ~s, mas amados, nessa fase prec-ocíssima e crucial de
o SIll agma de Lévy B ,. hl ,- ---- ~sa existência, é gue podemos ter a confiança primá-
~r;u;;-:n~g;:;:-,-=o-=-u:--e-m-e-s-'-t'::":a:':;d::":o~de-fden t' d d - r~ ,~ceIto RQT_
- I a e prImItIva com o ria, a qual funcionará mais tarde como uma espécie de
62
63
plataforma, de fundamento ou depositário, em suma, de harmonia com o mundo. Constatamos, portanto, que é
referente estavermente mteriorizado para o trabalho não uma condição psicológica, mais que puramente intelec-
fácil de fazermos de nós alguma coisa. A confiança con--=- tual, que garante a nossa experiência cognitiva, porque
quistada graças à relação primária suficientemente boa é somente admitindo-se a existência de ordem na natu-
é a premissa da solidez interna e da percepção unitária;- ())reza e no mundo que a aventura humana do pensamento
não fragmentada, da Identidade, em comparação com a- \lI ~científico encontra.sentido. Erikson, psic~nalist~ alemão
qua as como I a es materiais a cuja som ra po em os \~ ~ de formação freudIana, afirmava que a sa relaçao com a
ter crescido tem relevância marginal. O trabalho psico- ~ mae leva a mtegração não só da confian a de base mas
lógico, do Extremo-Oriente a todo o Ocidente, funda-se ~~\\ am em a esconfian a de base", enqu~to capacidade _
na procura dessa plataforma,
, e, quando ela está ausente , ~ \' e o erar a rustração, de tomar conhecImento da au-_
em sua reconstrução. E isso que significa a expressão da ~ 1'.'''' sência da mãe sem ser destruído. Também a esperança, _
linguagem corrente "devo readquirir a confiança, devo ~1 que ele reconhece como "a primeira e a mais indispen-
voltar a acreditar". Por outro lado, é verdade também que ~. sável virtude inerente à condIção vIvente", pertence ao
a traição cresce, e só pode crescer, no terreno fecundo da I ~ domínio do materno e é uma modulação da confiança-
confiança. Nessa ótica, ao menos em parte,.Kierkegaard "'-desconfiança de base./A presenç~_~_~_~_a~ê.~1?:~-iacl~~êa
tomou em consideração a traição de Judas a Jesus. Não
tem sentido, escreve ele, censurar Cristo por "escolher
para seu caixa um homem como Judas, que era inclinado
ao furto", e continua afirmando (Kierkegaard, 1834-55,
i disposição interna r.epres. e.nt.a, po. rtanto, a ve~d~~eI~a .
diferel!çJL,ª-~1:r~Lº;:;_§l~;r~s-h:UIPªIlOS. Quando a mae Ja nao
êSti~~ presente fisicamente, protegendo a indagação de
voI. 5, p. 234) que seu filho, ~ ima~m_~:Kê;r_C.~r~ ~_ Il1esm~JuJ;lç~o. Mas
há exceção: essa plataforma sólida e compacta tem seu
~~io mais perigoso, mas também o melhor para salvar calcanhar de aquiles, isto é, um aspecto que a expõe e
-.!lm homem como ele (Judas), é justamente demonstrar-lhe ~1 a torna vulnerável, a saber, ª-ª-i~~!!ª-ª2Q()_~enV~_e.!1t()~_
c~f!ança mcondIcIOnal. Fora ela, em geral não-há ouiri-~_ I(; -\ N ~9_.fosse-assim.-nãote:ríª:mos_nenhuma possIbIlIdade
POSsIbIhdade de s a l v á - l o : - - - - - - - -
~de entrar em relação com os outros, porque é_somente,
~ 'através dessa abertura que compreendemos a emotivi-
_~ma, a dialética confiança-traição, tão central ~ .,;a'ifde do outro dando vida a um sentimento novo. Essa
- em nosso mIto crIstão, é o próprio fundamento, um fun: '~;:::área fluida pode constituir o terreno no qual se aninhe
damento móvel, portanto, de toda aspiração humana à
ê.a1vação. ~ outras palavras, parece que não pode haver
J r~ à-traição; nela estamos indefesos como quando crianças,
~{\'mas é um risco que devemos correr, ainda que ele nos
~urso soteriológico, discurso de salvação, a não ser -~ ~ause sofrimento.
Eermanecendo-se no perigoso trajeto que leva da confiança - Escrevia Rilke (1929, p. 61):
à traição e desta à reconquista da confiança.
Newmann~stentava que a possibilidade de a crian- Por que quereis excluir de vossa vida algu~a inq~ietaçã?,
a perceber o mundo como conjunto harmonioso depende algum sofrimento, alguma amargura, se amda nao sabe~s
o que tais estados estão operando em vós? Por que quereIs
~ o senso e acolhida, o sentimento de estar em perseguir-me com a pergunta de onde viria tudo isso e
64
, .a imagem Primeiro tentou abraçar
onde terminará, visto que sabeis o que estais passando enamorou de s~a propn 'h diante de si; depois, reco-
e que nada desejastes tanto quanto transformar-vos7,S.e_ e beijar o ~elo Jovem que t:e~eu horas fixando o espelho
algo dos vossos processos temo aspecto de doença, refleti nheceu a SI mesmo e penn ntado O amor lhe era, ao
' a da fonte como se e n c a ,
d a agu , d
que a doença é o meio pelo qúaloorganlsmo'se libertã-dô"-" d' d e negado' ele se consumIa e
estranho; é necessário, então, somente ajudá-lo a adoecer; .~ mesmo tempo, conce 1 °ozava de s~u tonnento, sabendo
para que estoure, porque esse é o seu progresso, ' .. ".... dor e, ao mesmo ~e~~~iJa a si próprio, acontecesse o que
que, ao menos, nao
acontecesse,
As pessoas que se mostram secas, rígidas, inaces- "\
síveis ao rElla~i'onamento rejeitam a dor ligacÍa a esse ~ Portanto, na narração de Robert Gr~ve~, Narciso
risco, mas, rejeitando-a, desperdiçam a riqueza da vida, .
sabIa qu ,
r:
e não trairia a si próprio. Mas que SIgm~ca, esse
. , . .,,? Significa a determmaça(> Çle
O nosso amadurecimento coincide com o abandono das não "traIr a SI proprIO . .' . . t
defesas; é nessa área de fluidez do sentimento que po- ~a::~eparar-se daprópria imagem e, conseque~temen ~.
demos julgar da verdade de um homem, Estamos con- _. _ fr tá-la com outras imagens ou, na hnguag~
nao con on t outras m-
tinuamente sujeitos ao desafio da aventura emocional; ..' Emmanuel Lév:inas, com outros ros o~, .COI~, " .
antes, é através dela que continuamos jovens. Evitando ~. l'd d~s com outras "presenças etIcas (Levmas,
identificar-nos completamente com o papel, isto é, não tenCIOna 1 a , " ('b'd 199)'
-1971, pp. 191ss), Escreve Levmas 1- 1- ,p. '
assumindo-o como couraça defensiva com a quai tornar-
-nos impermeáveis à existência, mantendo-nos descobertos O rosto está presente em sua recusa de se;;0fo~~~~N~::
e disponíveis à experiência, que poderá ser orá agradável, sentido, não poderia ser ence::~~:S:ãO v1siva o~ tátil,
ora frustrante. Percorrer o caminho próprio significa, em visto, nem tocado - porqdue, lteridade do objeto que se
a identidade do eu escon e a a
suma, necessariamente tomar distância do coletivo. Não torna contido,
é por acaso que emprego a expressão "tomar distância",
porque a el~J:)9:r-ªção da própria individualidade implica sto do outro põe em discussão o eu que é
Se o r o , . t que Lévinas define
lima-experiência d.e separação: ~ traição se torna, então, . lançado nele - e esse mOVImen o " I -
uma via deacessQ à morte. É somente atravessando-a e " l-ética" e que redefiniríamos como re açao
como re a ç a o , bI ma de Nar-
vivendo até o fundo o que em psicologia é definido como psicológica" _, compreendemos que. o pro e
"trabalho de luto" que poderemos reemergir com a nossa ~ ciso é a impossibilidade de conseguIr um~ pass.agem da
dimensão criativa inequivocamente humana. .".1 Identidade da qual não quer separar-se, a alterIdade.' ao
A incapacidade de assumir o risco do fracasso e a dor J: éonfronto~, por essa via, ao risco de in~ucesso, ao rISCO
unida a ele nos oferecem uma chave de leitura do mito de .\~ do que Christian David chama "rompImento da casca
Narciso no ótica da traição. Conta-se de Narciso (Graves, ~ D,,::ixcísica". De fato, esse autor (David, 1971, p. 36) sus-
1955,p,260)que tenta que
aproximou-se certo dia de uma fonte clara como prata e t ' olência ao sujeito, entendido este
não contaminada pelo gado, pelos pássaros, pelas feras O amor~El!UP~ecome eVl. ;líb' dinâmico e econômico: o
êõm6uma umdade em eqUl 1 no , ,
nem pelos ramos caídos das árvores próximas. Narciso, amor propõe o rompimento da casca narClslca.
sentando-se, exausto, na margem daquela fonte, logo se
66
Ora, o que se oculta dentro dessa casca? O rosto es-
. a sa em de Narciso, se ele não trai a sipróp~io ou ~ão
condido de Narciso ou, como descreveu Julia Kristeva, a
depressão (Kristeva, 1987, p. 13). 'p : r e:a sua imagem ao confronto e à perspe~tIva de m-
A permanência constante sobre a borda arriscada do
erlOfl'dade'?. Diz uma célebre máxima alquímlca:
fien.
fracasso, a natureza inquieta da permanência, própria ln habentibus symbolum facilior est transitus.
de quem ama, está bem expressa em uma das "regras
do amor", retomadas depois por Stendhal, que figuram Evidentemente Narciso não pertence ~queles que,
em um dos textos seminais da tradição ocidental, o De como diz a máxima alquímica, J)o~~lleIp. o slmbolo e, em
Amare de Andrea Cappellano, texto do qual se nutriram, virtude dessa posse, estão em condições de tor~a: ~ pas-
por exemplo, os primeiros poetas italianos, entre os quais em mais fácil. Portanto o "bom uso da tral~ao tem
Giacomo da Lentini, Guido Cavalcanti e Cino da Pistoia. :~go que ver, em primeira instância, com ~ ca~ac~dade ~e
No De Amare Andrea Cappellano compila um verdadeiro -tr:ir a si próprio, e essa capacidade se lIga a dl:~nensao
e próprio "código do amor", com trinta regras. A vigésima . bólica Querendo fechar o círculo de nosso dIscurso,
regra diz (Cappellano, 1980, p. 282) que ~lfi~maría~os que no fundo da "posse do símbolo" da qual
Amorosus semper est timorosus.
a - . ,. ós alqUImIstas
~- .' . - expressao_ es sa que se
. ,deve
.
lalavam , fi pflmarIa
éritender cum grano salis -, esta a con , ança . _'
a.-' aI falamos no início do capítulo. E essa condlçao
Portanto quem ama está sempre temeroso (Stendhal,
1822, p. 272) porque admite que o fracasso pode penetrar q:e~os permite relacionar-nos de modo diferente co:n a
em sua experiência. Admite, em suma, para retomarmos traição. Se é verdade que "a trai?ão da confiança.no a~-
-bíto da relação primária determma ( ... ) uma fefld~ ~ao .
a frase citada no início deste capítulo, que os corações
entram nisso para que sejam despedaçados. Lichtenberg cicatrizável" (Carotenut o, 1989,P. 94) , segue-se übzd.,'.
.p. 95) que ~. .
sustentou que a cura psicológica implica a passagem ine-
vi~ável pelo insucesso. Nessa ótica, mudança e insucesso a uilo ue é danificado pela precocidade da traição ~P?n-
estão ligados profundamente. Como afirma esse autor .q q
clpalmente a pOSSI'b'l'dade
II de se estruturarem osthmItes
d'd
(Lichtenberg, 1983, p. 224), do eu, isto é, a capacidade de referir-se a um tu, en en I o
como outro,
o impulso à mudança provém dos insucessos maciços ou
parciais que precedem os sucessos.
Estamos, então, em condições de compreender melho~
o drama de Narciso como o drama de qu~m, ~or ~av.e
As coisas são diferentes no tocante à situação de sido traído muito cedo, não aprendeu a traIr a SI. proprlO.
Narciso. O "correlativo objetivo" de sua impossível pas- Nos termos do pensamento de Lévinas poder-se-Ia tentar
sagem é veiculado pela paisagem na qual ele se espelha, Uma formulação diversa, embora equivalente, do drama
paisagem não contaminada por presenças animais ou de Narciso. Poder-se-ia dizer, por exemplo, que, na p~rs~
vegetais, paisagem na qual aparece uma fonte prateada, pect lva
· que eIe acel,'ta a "subietividade"
J não se constItUI
t _
transparente e sem sombras. Ora, como devetiáser a como "vulnerabilidade" e, portanto, simplesmen e nao
. . .. '-'--"--"'---7"-"
68
i , . d Outro do outro que origina o desej~, a
"
82
6 "Trair" de maneira construtiva a norma familiar
não significa naturalmente mera oposicão aos valores
CÍRCULO FAMILIAR da educação e da moral, assaltar um banco, drogar-se
E CÍRCULO HERMÉTICO ou cometer ações de delinquente; muitas veze.s ~ss~s
síndromes violentas são expressões de grave dIsturblO
na relação com a família, distúrbio em razão do qual o
filho não conseguindo libertar-se do caos e do desamor
... aqu! ~hegam somente os hóspedes justos. Este é o Círculo do a~biente natal, procura atrair a atenção e cuida-
HermetlCo ...
dos solícitos mediante ações de impacto. Nesses casos,
(Hermann Hesse) traído não é o pai, mas a possibilidade de desenvolver
a existência própria de modo satisfatório e criativo. Se
quisermos falar de traição "positiva", re,f~rir-nos-e~~s, ~o
contrário, à coragem de su~meter a cntIca e conSCIen~Ia
não só osv-alores nos quais fomos educados, mastambem,
No âmbito da família, muitas vezes se consolidam a coerência com a qual os pais no-los transmitiram e a
dinâmicas relacionais aparentemente incompreensíveis
correspondência a eles que encontramos em nós. Traição
as quais, todavia, se revelam plenamente consequente~
"positiva" da família significa esforço para fundarmos
sob um perfil psicológico. O indivíduo é preso inconscien-
nossa conduta de vida no que consideramos certo e opor-
temente em um jogo cujas finalidades autênticas ignora
tuno correndo o risco de essa visão não corresponder à
dos ~ais. Se tais são os termos da alternativa, ~xplica-se a
e reage segundo modalidades defensivas muito difusas'
a.s quais o levam a procurar pretextos externos para jus~ fórte oposição da família a que cada um expenment~ sua
tIficar seu e~volvimento. Contra seu interesse, ele projeta própria solidão no mundo, construindo dentro de SI um
em acontecImentos totalmente extrínsecos as razões de
lugar separado e secreto, no qual possa mover-se de modo
um incômodo que tem outras origens e cujo desmasca- cada vez diferente, a fim de encontrar-se com os outros.
ramento o obrigaria a interrogar-se sobre as referências
Estar só e redescobrir-se em uma dimensão totalmente
afetivas .que sempre teve como certas. Como de costume,
particular, individual, sem referências externas, impli-
o mecamsmo vencedor é aquele pelo qual o filho tenta de
ca necessariamente uma atitude crítica que submete a
todos os modos salvar a imagem dos pais. A sua condição
análise tudo o que está em torno de nós. A proibição de
parece desesperada, é a condição daquele que tem seus
ocupar-nos de nós próprios nasce de uma questão crucial:
confidentes no campo inimigo. Traindo a norma familiar
qualquer indagação sobre o mundo implica antes de tudo
ele poderia salvar a si próprio, ao passo que, salvand~ ~
uma indagação sobre o que está mais perto de nós, sobre
norma a todo custo, renuncia a dar sentido à sua exitência.
o que está sempre perto de nós. Não só isso, mas também
nos dois casos, não poderá livrar-se de um sentimento d~
qualquer resposta que dermos torna-se o que chamamos
culpa vivido em uma escura inconsciência e, no primeiro
caso, em dolorosa solidão. - experiência só quando produz uma ressonância, um eco
profundo em nossa vivência. I
84
I!
A vida do neurótico, dado seu sentimento social ~~focado,
Aluz do que acabamos de dizer, não foi por acaso que_ se exerce antes de tudo no quadro de sua fa~lllha. Se o
Adler identificou no "problema da distância" uma chave doente se encontra no grande círculo da socle~ad~, ele
de leitura do comportamento do "neurótico" (Adler, 1920, . mostra sempre um movimento retrógrado na dlreçao do
pp. 119ss). O "neurótico", na perspectiva da "psicologia círculo da família.
individual", está constantemente propenso a interpor·
uma distância entre si e sua problemática, entre si e a . A criação de distância é reforçada de vários modos,
decisão a tomar, entre si e o ato a fazer. Essa distância é porque é tranquilizadora. Por outro la~o, entrarmos em
formada por sintomas: o sofrimento do corpo e a renúncia relação com nós próprios parece ser VI~tO I?elos. outr~s
à vida emotiva. O ritual de uma pessoa obssessiva, por mo algo muito perigoso. Como se a vIda mtenor nao
exemplo, pode ser lido, na ótica sugerida por Adler, ~~sse permitida. Com efeito, ao re~irar-nos do. mundo,
como a interposição de uma distância entre a pessoa e reduzimos a intensidade e redefimmos a .qu~hdade da
sua afetividade. Existe a fenomenologia da distância e intervenção dos outros em nós. O nosso mcomo~o e ~
existe a fenomenologia das traições consumadas ne~~~-"" nosso bem-estar adquirem novo centro de gra;Idad_e,
distância. Vimos no capítulo precedente que a família cria· isso significa que já não representamos uma ramIficaçao
distância entre si e omundo externo e também distân.Cla- da psique de quem está ao nosso lad?, mas podemos, por
entre seus membros. Existe, ademais, "distância de exemplo, aceitar ou rejeitar um p:dIdo, reconhecer su~s
segurança" entre os corpos, digamos também uma modalidades e restituir seu sentido profundo. ~tr~ves
"distância social", sustentada pelas convenções sociais dessa restituição pode suceder que vejamos nosso mcomo-
e observável em vários comportamentos cotidianos. do redimensionado,justamente porque o expurgamos de
Adler fala dos diversos graus de intensidade pelos conflitos e projeções que na realidade não nos pertencem.
quais o doente exprime sua "separação domurido"";;·· A visão mais realista de nossa dependência dos out~os
da realidade" (ibid., p. 123). Essa distância é" iridica:ªa· redimensiona automaticamente seu poder e nos I?er~Ite
por ele nas quatro categorias seguintes: 1) movimento subtrair-nos a muitas chantagens e instrumentahza~oes.
regressivo (o qual, em sua vasta gama, compreeride- A assimetria e a dominação nas relações interpes~oaIs se
o suicídio e a agorafobia, a ansiedade e a anor"e:igc fundam nas necessidades; é óbvio que quanto maiS e~tas
mental, a amnésia e a toxicomania etc.); 2) parada (a se reduzem, tanto mais se reduz o poder do outro. E da ..
qual compreende as "adaptações protetoras", como ã-::-=" vida interior, portanto, que podem ~ascer B;.s s~lIn.ente~ ~a .
insônia"ê á impotênda etc., que "impedem o sujeito de _. revolta. Falamos de uma verdadeIra e propna rebehao,
ir muito longe"); 3) dúvidas obsessivas e "vaivéns na porque temos bem presente a dram_ati~idad~.d~ ~o~a "
ideia ou na ação" (e aqui Adler inclui, entre outros,"á.. tentativa de diferenciação com relaçao. a famIlIa, e~.:rn.{)
enfatização das dificuldades, o pedantismo mórbido, o" escreve Freud em O romance familiar dos neurótwos
retorno ao caminho percorrido, o atraso em chegar etc,); (Freud, 1908, p. 471):
4) construção de obstáculos (ibid., pp. 123-26). Escreve A emancipação do indivíduo q~e .cresce :elativa~e~te
Adler (ibid., p. 126): à autoridade dos pais é um dos eXItos maiS necessanos,
R7
86
mas também mais dolorosos do desenvolvimento. É abso- toma forma e se confirma na experiência, infelizmente
lutamente necessário que essa emancipação se realize e
é presumível que cada um que se tornou normal a tenha inédita, do respeito à individualidade. Na análise, os
realizado em maior ou menor medida. Antes, o progresso tempos pessoais são sagrados, não são aniquilados, e não
da sociedade se baseia nessa oposição entre gerações. Por se pede sua uniformização no anonimato dos ritmos cole-
outro lado, há uma espécie de neuróticos cuja condição é tivos. Ao contrário, são reconhecidos como componentes
claramente determinada pelo fato de terem fracassado da personalidade, como aspectos de um estil? particu~ar,
nessa tarefa.
válido justamente enquanto tal. Isso se aplIca tambem,
e principalmente, com relação à experiência que todos
A nossa vida não equivale a um dado natural, mas temos de sermos traídos. Antes, uma das hipóteses que
a uma potencialidade a desenvolver, a algo que deve ser são postas como fundamento da terapia. pS.icoló?"ica,
adquirido e agarrado, na primeira pessoa. Esse ato de hipótese que me parece particularmente sIgnIficatIva e
conhecimento só se originará de nossa realidade mais fecunda, pode ser enunciada como "ausência de traição".
interna, "lugar forte" que nos constitui como indivíduos. Com efeito, na relação analítica a traição é completamente
Ter determinada família, ou simplesmente uma família, avaliada. Isso é possível por causa da circunstância pela
pais, irmãs e irmãos, não deve ser considerado como qual, na relação analítica, como já tive ocasião de dizer
elemento imodificável nem deve representar o limite úl- (Carotenuto, 1989, p. 99):
timo, intransponível, de nossa vida psíquica. Deixemos
por instantes os fatores sentimentais e reflitamos sobre A traição já não é abandono, entrega do outro a um vazio
a insignificância do dado biológico diante da imensa sem significado, extrema rejeição - porque nã? ~~lta a
importância da cultura enquanto prolongamento do or- presença do terapeuta -, mas aceitação da possIbIlIdade
do insucesso e da ambivalência humana. O terapeuta
ganismo biológico, para usarmos uma expressão típica se relaciona com o paciente com a totalidade de seu ser,
da antropologia. A manipulação do elemento :natural, a comunicando-lhe vivências nas quais a autenticidade, o
possibilidade de interferir nele, modificando-o, represen- respeito e o acolhimento são mais fortes do que qu,alquer
ta o específico humano com relação ao resto do mundo mudança de comportamento. Nesse sentido, falamos de
vivente. Também sob esse aspecto, o nosso vir ao mundo substancial "ausência de traição", a qual confere os novos
parâmetros pelos quais leremos o mundo, o novo modelo
como homens é marcado por uma libertação, a mesma que de comportamento.
somos obrigados a efetuar, traindo o pacto sem condições
que estipulamos com a família. Assumindo o sentimento Geralmente é pedida aos filhos uma enorme tarefa:
de culpa, encaminhamo-nos por uma via que se coloca ser bem-sucedidos onde os pais fracassaram. Aí não se
fatal e fatigantemente em lugar diferente do que nos foi trata de um vão lugar-comum, porque a ambição dos pais
indicado.
lnuitas vezes não conhece limites. O filho deve resgatar o
Consideradas essas premissas, a relação analítica papel social, procurar o poder, ter um comportamento éti-
pode ser representada como espaço novo, diferente do co; em outras palavras, deve realizar algo absolutamente
da família. Trata-se de um espaço no qual o específico extrínseco, alcançar uma meta na qual nunca pensou e a
da pessoa não é identificável com algo já existente, mas qUal nunca desejou. As projeções dos pais podem marcar
88 /
00
pesadamente e de modo até permanente a identidade Acabamos de dizer que, na escolha da própria au-
psicológica dos filhos. O que Jung chama "consciência tonomia feita por um jovem, a luta por alguma coisa se _
artificiosa" dos pais torna-se letal quando, por exemplo, torna luta contra alguma coisa, e então é interessante
o filho estiver para escolher sua companheira. Caso notar que o verbo evangélico "separar" foi traduzido por
exemplar no qual o círculo familiar modela coativamente Lutero por "levantar contra". Contra essa e outras inter-
qual destino, a vida do filho é o da mãe que se manté~ pretações análogas - que não parecem, todavia, despro-
"artificiosamente inconsciente para salvar as aparências vidas de legitimidade interna - manifestou-se Hanna
de uma boa vida conjugal" (Jung, 1925, p. 193). Nesse Wolff, psicanalista alemã de orientação junguiana. Em
caso, sustenta Jung (ibid.), a mãe estudo dedicado ao exame da figura de Cristo sob o ponto
acobrr~nta seu filho a si, sem sabê-lo, de certa forma como de vista da psicologia analíticª, essa autora pergunta
su stItuto do m a r i d o . - se heuve alguém qu~ tenha realmente compreendido o
sentido da passagem evangélica citada acima. A teologia
Continua Jung (ibid.); talvez não a compreendera ou, em todo caso, não parece
haver respondido adequadamente, sendo, então, neces-
Se essa atitude nem sempre leva ojovem àhomossexualida- sário dirigir a atenção, uma atenção arriscada, para a
de, impele-o, em todo caso, a uma escolha diferente da que
corresponderia à sua verdadeira natureza. Ele desposará, perspectiva interpretativa que se obtém recorrendo-se aos
por exemplo, umajovem evidentemente inferior a sua mãe instrumentos oferecidos pela psicologia profunda. Afirma
e que, portanto, não poderá fazer-lhe concorrência ou cairá Hanna Wolff(1975, pp. 231-32), referindo-se à passagem
nas mã.os d? uma mulher tirânica e presunçosa', a qual, supramencionada do evangelho de Mateus;
por aSSIm dIzer, o arrancará de sua mãe.
Embora pareça presunção, só a psicologia profunda é que
o jovem que se liberta da coação do círculo familiar pode compreendê-la profundamente. Com efeito, Jesus
"desliga de", "divide do" coletivo da família. Ele desfaz
e escOlhe sua autonomia erifréntará dificuldades, dores,- a ingênua participation mystique, a fim de virem à luz
ãnsied-ããés e-i:Cim:ágeih persecutória do filho fantásiado indivíduos singulares, independentes e responsáveis.
pelos pais. Assim, a luta por alguma coisa passa a ser
luta contra alguma coisa. A posição tomada por Jesus, Em suma,para essa autora, Jesus é o primeiro te-
pelo "traído" por excelência de nossa história, parece, rapeuta, porquaIlto a tarefa indispensável que ele põe é
aliás, decidida em relação às conclusões próprias do "ã de combater contra o vínculo paterno e materno, de _
círculo familiar. A mensagem de Jesus se configura Consumi-lo e superá-lo uma vez por todas" (ibid.). Por ou-
claramente como de divisão e conflito; portanto, como tro lado, parece-nos esclarecedora a conexão estabelecida
mensagem que entra na área potencial da traição implicitamente nos evangelhos entre uma mensagem des-
(Mateus 10,34-35);
se alcance e a dimensão de "traído", constitutiva de Jesus,
Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer que se fez portador dessa mensagem. É de um "traído", e
paz, mas espada. Com efeito, vim separar o filho do pai, só de um "traído", que pode vir e ressoar fortemente não o
a filha da mãe, a nora da sogra ... Convite, mas o" mandamento" de trair. E o mandamento _ I
/ ,-I
90 Q1 i,!
de "trair" seria entendido como a neces$idade na qual "Por qual motivo estou aqui?", perguntei, escandindo as
vem encontrar-se o indivíduo de assumir sua vida até . palavras muito lentamente. "Como vim de tão longe e tive
tornar-se, como já sublinhamos, pai e mãe de si próprio." a ventura de encontrar-me convosco aqui, hoje?"
Parece, com efeito, que é nisso que Jesus pensa, quando à" Hesse permaneceu silencioso, imerso na luz invernal, e
depois disse: "Nada acontece por acaso; aqui vêm somente
multidão, e portanto ao homem coletivo e indiferenciado " os hóspedes justos. Este é o Círculo Hermético ... "
que lhe diz (Marcos 3,32): '
"Eis que tua mãe, teus irmãos e tuas irmãs estão lá fora Que significado atribuir à expressão de Hermann
e te procuram", Hesse? Como entender seu "Círculo Hermético?" E como
entender que a ele "cheguem somente hóspedes justos?"
responde: "Quem é minha mãe e meus irmãos?" (Marcos O círculo hermético não nos é destinado de modo natu-
3,33); e, passando o olhar sobre aqueles que estavam ao ~:al; nós é que o escolhemos, como escolhemos amar uma
seu redor, acrescenta (Marcos 3,34-35): pessoa de fora de nosso clã. Podemos identificá-lo com
a comunidade dos sábios, como a entendiam os filósofos
"Eis a minha mãe e os meus irmãos. Quem fizer a vontade
de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe". estoicos antigos. "Eles pensam", diz Cícero, "que os sábios
são amigos dos sábios, ainda que não os conheçam". E
continua (Cícero, De natura deorum I, 44.121, in Isnardi
É necessário dizer também que, em certo sentido, o
Parente, 1989, p. 1258):
núcleo familiar não nutre dúvidas a respeito de sua con-
sistência. Embora seja dominada por um sistema externo Nada é mais digno de ser amado do que a virtude; aquele que
e mais poderoso, do qual talvez até não compreenda nada, a conseguiu, esteja ele onde estiver, deveremos amá-lo.
a família se consolida, proibindo o uso da dúvida. Eis por
que todo recuo, toda reflexão autónoma são irremedia- Notemos que o termo "sábio" deve ser entendido aí
ve~mente sufocados. Na realidade, a crítica das próprias não no sentido referente a um saber intelectual, mas
Origens e a descoberta da própria diferença represen- ilô que é indicado por Sêneca em uma de suas Cartas a "
tariam importante etapa à constituição de uma família Lucílio (Seneca, Lettere a Lucillio, in Isnardi Parente,
desvinculada do dado biológico e justificada "somente" 1989, p. 1258):
pela afinidade espiritual. Hermann Hesse falava de um .
círculo hermético ao qual todos nós pertenceríamos e no Ninguém sabe verdadeiramente testemunhar reconhe-
cimento senão o sábio, como ninguém sabe prestar um
qual todos nós pensaríamos com afeto e amor, porqu.enão benefício senão o sábio ... Só o sábio sabe amar; só ele é
nos é imposto pelo fato de termos nascido em determinada amigo ... dizemos que a verdadeira lealdade não existe
condição histórica. O círculo hermético é aquele ao qual senão no sábio.
"chegam somente os hóspedes justos';. Assim o deflnia
Hermann Hesse em sua resposta a Miguel Serrano, que O círculo hermético pode ainda, ao menos em parte,
lhe perguntava por qual motivo se encontrava em sua ser comparado ao Gemeinschaftsgefühl pensado por Adler,
casa (Serrano, 1966, p. 28): ou àquele "senso comunitário" que Adler, como escreveu
/
92 OQ
Hi!l~an em seu li~oAs histórias que curam, "considerava 7
a umca meta reahsta da psicoterapia" (Hillman 1983
167), senso comunitário que não deve ser ent:ndido' d' A NOSTALGIA DESORIENTADA
uma comunidade particular, de uma comunidade ani~
mada por metas específicas e rigidamente preordenadas
co~o.' por ~x~mplo, a organização política ou a confrari~ Primeiro Adão foi criado do pó da terra, depois Eva foi
rehgIosa (zb~d., p. 169). O círculo hermético não deve criada de Adão. Por isso a expressão "à nossa imagem e
ser confundido c~m círculo mágico. Na introdução à sua semelhança" deve significar que o homem não pode vir ao
segunda categona da distância, a categoria da parada, mundo sem a mulher, nem a mulher sem o homem ...
Adler (1920, p. 124) afirma: (Talmud in Cohen, 1932, p. 30)
103
lO?
pIo, que o homem pode tornar-se consciente de sua anima compromissos "razoáveis", fábricas de sofrimento que se
através do reconhecimento de sua projeção sobre uma transmitem de geração em geração, sofrimento oculto,
mulher real. Não é tarefa fácil, uma vez que a instauração sofrimento do qual não se pode falar, porque não se sabe
de relação com conteúdos inconscientes não é processo torná-lo consciente, sofrimento vivido na sombra do si-
intelectual. Trata-se, todavia, de tarefa necessária, se lêncio. Por outro lado, a aquisição de maior consciência
quisermos assumir posição interior consciente que guie no âmbito da relação pode revelar as motivações ocultas,
nossas escolhas em conformidade com nossas exigências às vezes extremamente destrutivas, que deram origem
mais íntimas e fundamentais. Quanto menos evoluído é o à solidariedade neurótica dos dois parceiros. Tornar-se
indivíduo no plano da consciência, tanto mais a escolha do consciente desses aspectos requer muitíssimo tempo,
parceiro será ditada por motivos inconscientes, os quais trabalho e honestidade psicológica. Caso esse processo
decidirão, "sem que ele o saiba", a atitude psicológica e interior seja acompanhado por um terapeuta, deverá ele
emotiva que caracterizará o encontro. Na maior parte dos empregar toda a sua habilidade e seriedade. Isso porque
casos, o "matrimónio externo" será realizado sem senhu-' a arte da terapia exige o homem todo.
ma consciência do "matrimónio interno" com o animus, no Jung sustenta que o processo de individuação assume
caso da mulher, e com a anima, no caso do homem. Isso relevo determinante na segunda metade da vida, quando
significa que não houve integração desses conteúdos in- as experiências da juventude começam a pedir natural-
conscientes, nem, portanto, alargamento correspondente e mente uma elaboração dos conteúdos psíquicos.
progressivo da consciência. Em outros termos, a união se Como já tive oportunidade de dizer, a intensidade
dá antes que nos tornemos cónscios da dimensão projetiva, das paixões juvenis, embora vivida inconscientemente,
o que naturalmente complica, quando não impossibilita, constitui experiência irrenunciável e extraordinariamen-
o trabalhoso processo de conhecimento de nós próprios te criativa da vida afetiva. Descrevendo como a nossa
e do outro. Não foi sem razão que Balzac (1829, 'P. 86) procura do outro oculta sempre a nostalgia da simbiose
sustentou em sua Fisiologia do casamento: originária, constatamos que nas relações co~cretas
muitas vezes vivemos a angústia por alguma COIsa que
o matrimônio é uma ciência. ainda não existe ou que parece não poder existir. Com
isso dispomos de um elemento a mais para compr~e~der
Também a dominância de fatores inconscientes pode que a nossa inconsciência se configura como o prmcIpal
permitir algum "funcionamento" da relação; numerosíssi- responsável pela trágica distância entre a realidade e
mos matrimónios neuróticos "funcionam" por anos e anos o desejo. A maior parte das pessoas vive de modo in-
porque seus pressupostos permanecem inconscientes. consciente não cabendo a nós julgar se isso é um bem
Ninguém consegue explicar como duas pessoas aparen- ou um mai; sabemos, porém, que em muitos casos pode
temente incompatíveis permanecem juntas; no entanto, ser perigoso atacar o equilíbrio individual, ainda que
todo esforço é dirigido para a manutenção da ambiguida- mantido mediante extenuantes defesas neuróticas. Tal
de e da falta absoluta de coerência. Pessoalmente, como situação psíquica de indiferenciação, isto é, situação na
analista e como homem, não me inclino a apoiar esses qual a anima feminina do homem e o animus masculino
1 lU::
104
da mulher jazem afundados no inconsciente, apresen- no qual cada um personifica ora a vítima, ora o algoz.
ta um fenômeno característico no plano de identidade Não foi por acaso que, desde o fim do século XIX, Drá-
consciente. Com efeito, a mulher se refere ao seu com- cula, o Vampiro, foi aceito estavelmente entre as figuras
panheiro e ao masculino em geral como "só feminina", e tópicas, emblemáticas e paradigmáticas do imaginário
paralelamente o homem se põe perante a mulher sim- erótico ocidental (mas no norte e no leste da Europa, a
plesmente como masculino. Portanto, nesse estágio do partir dos Bálcãs, foi aceito ao menos dois séculos antes
desenvolvimento psíquico, a identidade sexual pertence do aparecimento do célebre livro de Bram Stoker, em
ao tipo "tudo ou nada"; porém mais importante ainda é a 1891). Na mordida de amor do vampiro exprimem-se
condição de total dependência do parceiro decorrente da não só o desejo perverso de quem se nutre do sangue dos
dinâmica projetiva. Aqui não há nenhum espaço para a outros e, através da opressão do outro, dá vazão à sua
relação individual, porque nela o confronto com a hete- vontade de poder, mas também a irresistível sedução de
rossexualidade do outro pressupõe sempre a relação com quem se oferece como vítima. Drácula, para existir, tem
os componentes heterossexuais próprios. Interessa-nos necessidade do sangue alheio, e a contaminação é tal que
não tanto a relação em sua concretude, em seus aspectos transforma a presa inocente em vampiro. Sem metáfora,
públicos, por exemplo, em suas "realizações", quanto a dupla de atormentado e atormentador formam uma
a relação psicológica que o sustenta. As tragédias da simbiose. Essa contínua "transfusão" de papéis susten-
relação nascem desta forma: excluindo nosso aspecto ta inúmeras relações. De fato, na vida cotidiana, não é
contras sexual inconsciente, caímos em poder do outro, tanto o amor quanto a dependência sadomasoquista que
ficamos psicologicamente possuídos por ele, e então ele cimenta e preserva a união.
pode fazer de nós o que quiser. No passado (e ainda hoje, Em todo caso, em decorrência de uma estranha
algumas vezes), chegava-se a matar o outro, na tentativa necessidade psicológica, a relação sentimental se define
de libertar-se de uma dependência vista como destruti- como relação de poder; e não é muito necessário, como
va. É claro, com efeito, que situações tão extremas nas muitas vezes se pensa, determinar qual dos dois parceiros
.
qUaiS o homem ou a mulher exercem sobre o outro um
' detém o poder, uma vez que, para um dominar, o outro
poder de vida e morte, verificam-se quando ao outro é deve consentir. Em psicologia, falamos de "chantagem do
confiada, entregue, delegada uma parte do Si-mesmo. masoquista" para nos referirmos não só às estratégias
Eis por que a ferida causada e sofrida é mortal. Porque culpabilizantes mediante as quais a parte fraca liga a si
total é a traição. o companheiro mais forte, mas também ao fato, por exem-
É nessa sujeição recíproca, nessa distribuição plo, de que, usando o poder do outro, o masoquista evita
complementar e inderrogável de papéis que reside o usar seu próprio poder e assim entrar nas zonas de sombra
fundamento de qualquer união e principalmente do de sua psique, potencialmente perigosas. Sua tentativa
matrimônio. Pode-se pensar então que atrás de sua de conservar sua imagem "limpa" é plenamente bem-
máscara social o matrimônio revele uma estrutura sado- sucedida. Quando se estipula um pacto de amor eterno,
masoquista, isto é, a uma condição psicológica que leva a evidentemente não é a razão que o subscreve; antes, é de
tormentos recíprocos, a representar o "papel das partes", supor-se que a razão não tenha sido nem consultada: não
1f\g
107
só aceitamos como também pretendemos hipotecar todo o U mp·licidade neurótica. O matrimônio de alma, ao
nosso futuro "até que a morte nos separe". Como quando eIU c ._ d d
tra'rI'o torna-se possível somente como umao e uas
uma luz ofuscante apaga todo o resto da realidade em con , . O t' . P
solidões. Escreve o poeta e ensaísta meXicano c avIO az
nosso campo visual, o presente nos parece tão luminoso eIU O labirinto da solidão (1959, p. 250):
que essa luz cobre todo o futuro em nossa imaginação.
Em tais ocasiões de intensa paixão experimentamos, O amor é um dos exemplos mais evidentes dos doi~ instintos
ou melhor, acreditamos experimentar o sentimento de que nos induzem a escava; e a afund~r-nos em ~os mesmos
eternidade. e, ao mesmo tempo, a Sairmos de nos e a r~lahzar-nos no
outro: morte e recriação, solidão e comunhao.
Ainda hoje o matrimônio representa um ponto de
chegada, mas, se o casal tentasse vivê-lo e senti-lo como
ponto de partida, certamente teria mais garantia de so- O homem, afirma Paz, é simultaneamente ~ostalgia
brevivência, especialmente em termos de qualidade da e procura de comunhão. Quando ele sente a SI mesmo,
sobrevivência, porque qualquer relação se configura como sente-se também como falto do outro e, po~t~n~?" como
caminho e não pode subtrair-se à evolução. Escreve Jung solidão. Isso implica uma "dialética das sO~Idoes . ~ base
(1925, p. 195): do amor uma dialética capaz de confundIr e ~eJeItar o
que o adtor chama "mentira social". Escreve amda Paz
Poderemos falar de relação individual somente quando (ibid., p. 247):
a natureza dos fatores inconscientes for reconhecida e
quando a identidade primitiva for abolida em larga medida. O amor, mesmo sem a intenção, é ato ~ntissoci~l, p~rque
Raramente - para não dizermos nunca - o matrimônio toda vez que chega a realizar-se destróI o matnmon~o ~ o
chega à sua realização individual sem choques e crises. transforma no que a sociedade não ~ue~: n.a revelaçao de
Não se consegue sem dor a tomada de consciência. duas solidões, as quais criam po~ SI propnas um mun o
que dissipa a mentira social, supnme o tempo e o trabalho
Uma psicóloga junguiana chegou a sustentar que, e se declara autossuficiente.
alcançada essa consciência, o amor já não é possível. Per-
guntaríamos, contudo, se, alcançada essa consciência, o A solidão permanece, pois, no mundo para criar d~~e
amor não se tornaria possível pela primeira vez. um outro. Não são só os fundadores de religiões, o.s herOls
A relação autêntica não exclui a dimensão da dor. das mitologias e os poetas que dão teste~unho dIsso. Na
Porque na relação autêntica os dois parceiros não escon- realidade e nisso o discurso de Paz se hga a um dos fios
dem um do outro a contínua mudança da vida, a oscilação condutor~s de nosso trabalho (ibid., p. 255),
constante e a precariedade que nos faz sentir-nos às vezes
solidão e pecado original se identificam.
cheios, às vezes vazios, ora em harmonia com os outros, ora
hostis e ofendidos. Não querer levar em conta o sofrimento
significa anestesiar ao menos metade da experiência de Quando a pessoa é jovem, é mais .fácil, por causa do
estar vivo; e quando se trabalha em dois nesse projeto pouco conhecimento de si mesma, projetar no outro seus
de remoção, o matrimônio se transforma diabolicamnte aspectos interiores e viver assim subrepticiamente o ~or
Por si mesmo, um amor que nunca sai do círculo narCISICO.
108
1(\Q
Mas não existe relação psicológica entre dois indivíduos psicológico característi~o~ que definimos com? processo
que não tenham atingido certo grau de consciência, e de individuação do femmmo. A mulher devera, contudo,
não existe consciência sem diferenciação do outro. O enfrentar a traição: ou a de sua dimensão psicológica
outro entra em nosso horizonte de vida somente através ou a do parceiro. Como diz Neumann, quando a mulher
da abertura delineada pela consciência, e, vice-versa, a retira a projeção da figura externa do companheiro e
consciência emerge só quando se experimenta o limite reconhece esse masculino como algo interno, ela chega à
oposto pela irredutibilidade do outro, chocando-se contra autonomia do parceiro real (Neumann, 1953, p. 23). Esse
ela. Esse reflexo oferecido pela relação pode constituir o movimento psicológico põe, todavia, outros problemas, já
aspecto positivo do matrimônio, no sentido de que ajuda que justamente esse ato de liber~a.de, a saber, a ~etirada
a se reconhecer o elemento projetivo.
da projeção, é inevitavelmente VIVIdo pelo parCeIro c~mo
Se o matrimônio representa apenas o expediente traição. Ele pode então lamentar que as coisas não seJam
mágico para a negação da realidade da separação ou da como antes, sem pensar em tomar em consideração as
realidade da diferença radical que nos constitui como in- possibilidades construtivas inerentes à transformação em-
divíduos, nunca abrigará uma relação psicológica. Cada preendida pela companheira, transformação pela qual ele
um de nós foi arrancado e expulso violentamente de uma se sente atingido, invadido e repelido. A afirmação acima
condição paradisíaca originária, e toda a nossa vida se referida de Neumann pode ser lida também no sentido de
passa na tentativa de sanar essa ruptura, saneamento que a dimensão psicológica da traição pertença de modo
que se dá através da profundíssima passionalidade que radical, positivo e construtivo ao feminino. Tomemos como
nos faz dizer "tu me pertences", levando-nos inconscien- exemplo o romance de ApuleioAs metamorfoses ou O asno
temente a empregar uma linguagem, por assim dizer, de ouro, no qual, como já indiquei, o adultério é feminino
''bélica'', linguagem que conota toda a intensidade de nosso (Carotenuto, 1990, p. 184):
desejo. Em amor, a primeira escolha se revela muitas
ve-zes um insucesso, porque realizada conscientemente; No romance sempre são as mulheres que traem; de fato, o
não obstante, é um caminho inevitável para se chegar ao adultério é feminino. Quando se pronuncia essa palavra, é
difícil pensar no homem; e também de um ponto de vista
alargamento da consciência e, portanto, da identidade clínico pode-se afirmar que o adultério não constitui nunca
sexual. Nesse caminho espera-nos a experiência da trai- a base de seus problemas, como se dá com a mulher.
ção. Além do matrimônio fundado na coação inconsciente,
explorada culturalmente, deveria haver o matrimônio Pode-se supor que na origem da "feminilidade" da
fundado na união de duas solidões, nas quais a percep- traição esteja o fato de que a duração da relação primária
ção da diversidade do outro não é vivida como ruptura é maior na mulher do que no homem. A maior duração
da simbiose, mas como um desafio ao nosso narcisismo. da relação primeira admite, com efeito, da p~rte do f~
Um desafio a aceitarmos, se queremos manter nossa minino a aquisição de uma capacidade relacIOnal maIS
integridade psíquica.
profunda e, com ela, a capacidade de transformar a vida.
O homem e a mulher têm destino diferente na rela- Essa hipótese explicaria os efeitos menos devastado~es
ção de casal, porque a mulher pode ter desenvolvimento da traição no homem do que na mulher, porque ele VIve
110
111
a relação geralmente de forma mais superficial (ibid., pp. 9
201-02). O aspecto "traiçoeiro" do feminino em todas as
suas variantes aparece, obviamente em sentido negativo O SILÊNCIO COMO TORTURA
na mitologia e na literatura. Trai a Eva do Gênesis com~
trai a Sofia dos gnósticos; trai Pandora, quando abre o
vaso, e trai Helena, levando à morte dos heróis da Anti-
guidade, obrigados a combater em Troia por sua causa. Estou com os nervos em frangalhos esta noite.
Escreve Andrea Cappellano em seu De Amore, ajá citada Sim, em frangalhos.
"summa erotica" medieval (Cappellano, 1980, p. 319): Fica comigo.
Fala alguma coisa. Por que não falas? Fala.
E também todas as mulheres, o que dizem, dizem dupla- Em que estás pensando? Pensando em quê? Em quê?
mente, porque sempre têm uma coisa no coração e outra Não sei no que estás pensando. Pensa.
nas palavras. Porque nenhum homem poderia ter tanta (T. S. Eliot, A terra desolada, p. 261)
familiaridade com a mulher ou ser tão amado por ela que
pudesse saber seus pensamentos ou conhecer o que ela diz.
Porque a mulher não confia em nenhum amigo e pensa que
todos a enganam; por isso ela está sempre enganando ...
Na sociedade patriarcal que herdamos, caracteriza-
da por conotações de competição, para não dizermos de
Cappellano aduz o exemplo bíblico de Sansão, traído agressividade e prevaricação, a mulher, na relação de
por Dalila, e faz o seguinte comentário (ibid., p. 321): casal, tem destino diferente do do homem. Com efeito,
Sabemos de outras mulheres que traíram seus maridos o desenvolvimento, que tem como componente essencial
e amantes, porque eles não souberam ocultar a elas seus a diferença da identidade sexual, é sempre fortemente
pensamentos ... condicionado pelos valores do cânone cultural. Existem
papéis prefixados e preexistentes aos indivíduos, em
Não é diferente de Andrea Cappellano outro escritor relação aos quais alguns desses papéis são ordenados
medieval, que se inspira nele, Maftre Ermengau, autor de hierarquicamente uns sobre os outros, em um sistema
um Breviário do amor. O que as mulheres gostam mais de "submerso" de dependências recíprocas. Tomemos como
fazer, escreve Maftre Ermengau, é o que lhes é proibido exemplo dessa configuração de hierarquias um fenôme-
(in Nelli-Lavaud, 1966, pp. 708-09). Além da vaidade, no da vida cotidiana que pode roçar-nos ou atingir-nos
há outra acusação tradicional dirigida pelos moralistas diretamente: algumas doenças femininas que aparecem
medievais ao sexo feminino, a saber, o gosto pela mentira em uma vida familiar insatisfatória podem ser lidas em
e pela traição, que caracterizam a ressentida visão da perspectiva psicossomática, porque as mulheres estão
mulher transmitida a nós por esses nossos antepassados. expostas de modo particular às dinâmicas psicológicas
Visão com a qual em parte podemos concordar com a internas da relação. Em tais casos, a mulher deveria
condição de mudarmos seu sinal para positivo. ' interrogar-se não tanto sobre a etiologia fisi0lógica quanto
sobre a raiz psicológica e sobretudo relacional de seu es-
119.
11 ~
tado. Pesquisas médicas recentes concordam em atribuir Para que o discurso sobre a fidelidade conjugal
aos distúrbios psicológicos e emotivos da vida de casal a adquira relevância psicológica, deve ele ser inserido no
raiz de numerosas somatizações, como afecções derma- tema mais árduo da fidelidade da pessoa a si própria; a
tológicas, hemicranias, distúrbios digestivos, náuseas, traição põe um dilema somente se a pessoa é suficien-
inapetências e muitos outros sintomas psicossomáticos temente sensível para perceber que está em jogo sua
recorrentes. Essas constatações não devem levar a uma própria autenticidade. Assim como há indivíduos que não
espécie de caça às bruxas, porque no casal ambos são viveriam por muito tempo sacrificando a verdade de seus
responsáveis e eventualmente "culpados", e cada um paga sentimentos a uma cena exterior que não corresponde
o seu preço. Que dizer então do dever de fidelidade e do a ela, da mesma forma existem muitíssimos outros que
tabu da traição? simplesmente não notam esse problema porque a sua
É necessário ser fiel, mas a quê? vida é somente a cena exterior. Levar em consideração
Na sociedade patriarcal, as prescrições nesse sentido também o mundo interior, o mundo das emoções e dos
impostas à mulher não valem para o homem. Sempre sentimentos, para não falarmos do confronto com os con-
foram envidados imensos esforços para se negar à mu- teúdos do inconsciente, é algo que requer grande coragem
lher a possibilidade de ser infiel, e aqui quereríamos e generosidade, além, talvez, de uma predisposição mis-
dizer algumas palavras para esclarecer do que o grupo teriosa para a linguagem da alma. O caminho obrigatório
masculino se defende. Em certa altura do desenvolvi- dessa viagem interior passa pela dor, pela neurose, que,
mento feminino pode ocorrer que o problema da fideli- como dizia Jung, é a manifestação da impossibilidade
dade conjugal se transforme em questão de fidelidade de adaptar-se a uma situação muito "limitada" para a
ao crescimento psicológico pessoal. Mas o crescimento perfeita expressão das potencialidades pessoais. Vol-
psicológico, na maioria dos casos, não anda em paralelo tando ao discurso sobre a evolução psicológica feminina,
com a evolução externa da relação de casal. Nesse caso, parece razoável que a perturbação emotiva e psíquica
a traição se torna um aspecto fenomênico da procura causada pelo processo de transformação seja somatizada
interior de novas vias de realização e, por isso, consti- na indisposição física mais ou menos pronunciada. Des-
tuiria uma passagem ao resgate da identidade pessoal: locando para a corporeidade as razões de seu sofrimento
a ruptura do vínculo se mostra então como necessária. psicológico, a mulher afasta da consciência os conflitos
É útil, porém, ter presente que não é a traição em si que profundos que estão em jogo. Foram necessários muitos
favorece a aquisição de um novo nível de consciência. anos para se compreender a extrema importância dos
Os matrimônios são cheios de traições "feitas", mas não estudos de psicossomática, como muito tempo se passou
compreendidas, e a sua concretização, por si só, não traz e se passará até que as mulheres se libertem da prisão
nenhuma transformação. Em certos casos poderíamos do corpo. Em nossa cultura, o corpo é, com efeito, um
até dizer que "cometer" a traição, sem interrogar-se sobre significante do feminino, não sendo caso totalmente ar-
sua inquietação e sem deixar-se interrogar por ela, é o bitrário que as mulheres escolham inconscientemente
melhor modo para não mudar nada: a ruptura do vínculo a corporeidade como instrumento de comunicação. Mas
"traído" já não é necessária. teremos ocasião de retomar esse discurso, porque narrar
114 1 1 z=
a traição do corpo é um modo de escrever a história dos mismo, o silêncio obstinado oferece poder extraordinário,
códigos culturais do Ocidente. porque confina seu destinatário em estado de constante
A infidelidade da mulher pode tornar-se sintoma incerteza emotiva.
inevitável: ou o casal se sustenta sobre uma necessidade Entre as imagens mais densamente depressivas e
recíproca, ainda que patológica, ou a relação terá vida inquietantes das relações de casal vem-me à mente a de
breve, porque se mantém sobre base puramente conven- dois parceiros ceando em um silêncio hostil: sinal claro
cional. Mas um casal mantido junto por aliança patológica de desagregação da qual não conseguiam voltar atrás,
não é exceção, porque em todas as uniões cada um encarna como se a relação tivesse caído em um vazio interior e
a doença do outro. Quando falta o sentimento, não é pos- incomunicável. A cena apresenta desenvolvimento típico:
sível sobreviver. Freud dizia que quem não ama adoece. é o homem que fica silencioso e, sadicamente, espera a
Creio que o amor tem sentido só quando é passional, pergunta da companheira, a qual infalivelmente soará
mas, embora sem assumir posição tão radical, sabemos assim: "Em que pensas?" "Em nada", responderá ele,
que o amor é o mais irrenunciável dos alimentos. Freud ou simplesme_nte não responderá. O silêncio é sempre
escrevia ainda que sentir-nos ligados a alguém que nos expressão de grande severidade; imaginemos, por exem-
ama eleva muito nosso senso do eu; com efeito, aquele plo, o olhar eloquente do pai para o filho. O silêncio é
que tem a sorte de estar continuamente nessa condição atitude judicante que mortifica mais que qualquer juízo
encontra-se em estado eufórico permanente. verbalizado, porque nega a relação e não deixa nenhuma
O diabólico encaixe de patologias que fundamenta a escapatória nem possibilidade de defender-se. E, não por
relação se encontra também na base de todos os abusos acaso, trata-se de uma modalidade que é praticada com
psicológicos radicados nela. Exemplo dramático desse tipo prejuízo do feminino, porque o feminino é o mundo da
de relação é oferecido pelo célebre conto de Dostoievski relação. O silêncio, para usarmos as palavras da psica-
(1874)A meiga. Nessa obra, narra o drama psicológico de nalista Christiane Olivier (1980, p. 18), é
um homem de quarenta anos, um usurário, e da jovem a sorte habitual das mulheres.
de dezesseis anos com a qual ele se casa; a relação sado-
masoquista criada entre os dois terminou com o suicídio Mas o desejo e a procura de uma relação é necessida-
dajovem e com a abissal solidão do torturador. O suicídio de inata dos seres humanos, e o feminino se faz portador
que encerra essa narração pode ser considerado também,
dessa capacidade, porque, como disse Neumann, perma-
em chave simbólica, como a morte psicológica e afetiva de
nece na relação com a mãe por muito mais tempo do que
uma pessoa, mesmo com a sobrevivência do corpo. O usu- o masculino, o qual, desenvolvendo identidade sexual
rário, em seu jogo de poder com a jovem esposa, emprega
diferente, afasta-se mais depressa da simbiose.
um sistema de comunicação diferente, prevalentemente N as dinâmicas de casal a resposta do masculino
o silêncio. Muitas vezes o abuso do poder conferido pelo muitas vezes é inadequada, pueril e tola. São poucos os
papel sexual passa por essas formas de comunicação homens que evoluem integrando seu componente femi-
oblíqua. O silêncio é uma das armas mais ferozes que se nino, aquele que, em termos junguianos, é definido como
podem empregar contra o outro; expressão de falso viti-
11,..,
116
anima; trata-se, todavia, de uma passagem necessária e sufocante. A palavra é instrumento fundamental para
para se chegar realmente à relação. Em sentido psico- a comunicação humana, e qualquer alteração patológica
lógico, o masculino deve tornar-se sempre mais feminino, dessa potencialidade imobiliza os interlocutores em um
e o feminino, sempre mais masculino. O silêncio no matri- penoso vazio de contato. Exi~tem pessoas ~ujo di~t;J-r~io
mônio mata, anula o outro e o nega até em sua presença e psicológico se exprime na dIreção oposta a do sIlencIO,
o impele lentamente à dimensão do não-ser, do não existir isto é, no "falar muito", o que também deixa duas pes-
mais. O suicídio de A meiga é o que experimentamos soas no vazio de contato e de significado. Mas o silêncio
continuamente no cotidiano como desqualificação, descre- é o mais esmagador e impetuoso; o silêncio impõe uma
denciamento, desvalorização de nossa presença até o apa- condenação sem apelo e capaz de provocar naquele que
gamento total. Atingidos por esse silêncio, começamos a o sofre sentimentos de culpa tanto mais atormentadores
duvidar de nossas percepções: ainda existimos? Lançamos quanto mais inexplicáveis. Diante do silêncio, a pessoa
mensagens e pedidos, que retornam no meio do silêncio e se sente "punida", sem saber por quê. Pensemos no que
sem modificações. Geralmente as vítimas dessa interação sentimos quando alguém "faz cara feia" para nós: estamos
patológica são as mulheres, porque nelas o impulso para sozinhos diante de uma hostilidade não verbalizada, e,
a relação é dominante com referência à prevaricação. Eis embora a nossa mente percorra mil vezes um trajeto la-
uma boa justificação para o fato de o número de mulheres biríntico, procurando identificar a sua causa, sentimo-nos
que se submetem a tratamento psicológico ser maior do cruelmente privados do único elemento que nos ajudaria
que o dos homens: elas procuram escapar ao estilicídio nessa procura, da única ponte que nos daria acesso às
da não comunicação. Seria, contudo, inexato generalizar motivações do outro: o contato. O silêncio pode ser "cruel"
esse fenômeno: muitos homens também são vítimas do literalmente, e não só literariamente, pode revelar forte
silêncio feminino, sádico e culpabilizante. componente sádico, ainda quando aquele que o adota toma
O lugar por excelência no qual se trabalha para o ar de vítima, trocando os papéis, graças a uma escolha
restabelecimento de relação na qual a comunicação seja claramente renunciatária e, por isso, "passiva".
significativa e adequada emotivamente é o da análise, O usurário deA meiga sente-se "vítima" dos outros,
uma vez que também o chamado "silêncio analítico" se e na confusa pretensão que alimenta esse vitimismo
usado adequadamente, apresenta forte conteúdo comu- entra também a escolha de uma profissão tão vinga-
nicativo. Em muitas relações o silêncio obstinado traz tiva e agressiva como a de quem empresta exigindo
consigo uma mensagem de rejeição que não é fácil deci- penhor. Por outro lado, trabalho e amor são as áreas
frar; também na análise o silêncio pode veicular uma face nas quais pagamos a preço altíssimo todas as omissões
agressiva, mas a tomada de conhecimento disso esvazia-o e distorsões que pesam sobre a nossa autenticidade. O
de seu caráter destrutivo e paralisante. O que torna tão usurário , além de exercer trabalho humilhante, cons-
dramática a modalidade comunicativa das duas persona- truiu uma relação matrimonial totalmente neurótica.
gens dostoievskianas é a impossibilidade de se iniciar UIll Trata-se de dinâmicas muito difusas, e quem sofre com
"discurso" sobre o silêncio e, portanto, de se fazer a inte- elas não é só a mulher, a qual, entretanto, é quem paga
ração sair dos trilhos neuróticos que a tornam apertada o preço mais alto desses mecanismos perversos, preço
118
realmente "de usura", porque ela pode ficar emotiva Em termos junguianos, diríamos que os distúrbios
e intelectualmente mutilada, senão aniquilada, e, de de comunicação e de relação se estruturam também em
qualquer forma, minada na confiança em si mesma. A decorrência da projeção de conteúdos inconscientes,
psicologia relacional vê os distúrbios da personalidade particularmente da sombra. Na família ou na dinâmica
como expressões de patologia do sistema interativo glo- de casal, quando se força um pólo ao papel negativo, e
bal que envolve o doente mental. O axioma principal em ele "aceita" esse papel, entram em cena a projeção da
tor~o do qual giram as pesquisas dos relacionais é que, sombra e a sua acolhida pelo outro. Muitíssimas vezes
na mteração humana, "é impossível não comunicar-se". o parceiro "doente" absorve a sombra do outro parceiro,
Consequentemente, também o silêncio é uma forma de como um filho "louco" muitas vezes é ou foi carregado com
comunicação, uma forma diferente como as mensagens a sombra de toda a família. Na linguagem corrente, esse
duplas, as comunicações oblíquas, por negação etc. A fenômeno é expresso pela metáfora "bode expiatório"; isso
sua característica é, porém, de serem indecifráveis e não deve admirar-nos, porque a psicologia não especula
deixarem o recebedor das mensagens em estado de sobre questões abstratas e fora do mundo, mas estuda
incerteza. É a linguagem típica dos pais esquizógenos, as dinâmicas cotidianas nas quais se movem os seres
que causam nos filhos conflitos de interpretação às ve- humanos com sua psique. Também no caso do usurário e
zes insolúveis. Todos os seres humanos cedo ou tarde da meiga, consideraríamos a "modalidade comunicativa"
passam pelo choque da ambivalência, do amor-ódio da do silêncio como um efeito da projeção da sombra dele.
mãe, do pai, dos mestres, da noiva etc. Mas, quando essa Ele se propõe à esposa como enigma porque quer salvar,
ambivalência se torna o pão de cada dia, um logogrifo assim, uma imagem grandiosa de si próprio e teme que
constantemente posto e imposto à criança, estrutura-se a comunicação confidencial, afirmativa, "amigável", o
um mal-estar da personalidade de cicatrização difícil. revele em sua pequenez, em sua mesquinhez, em sua
Diante dessa comunicação patológica, expressão de miséria. Dostoievski (1876, p. 40) põe, pois, em sua boca
vício psicológico de todo o sistema familiar, a doença as seguintes palavras:
mental é ~ resposta certa, no sentido de que é a única
Aos seus entusiasmos eu respondia com o silêncio, bené-
possível. E interessante também outro ponto de vista volo, entende-se ... mas ela compreendeu logo que éramos
da psicologia relacional, segundo o qual a doença de um diferentes e que eu era um enigma. Era isso que eu queria:
componente da família ou do grupo exerce importantís- parecer um enigma.
sima função "de equilíbrio" dentro do sistema global.
Com efeito, muitas vezes sucede de encontrar-se em Como se vê, também o usurário procura, através da
terapias familiares dirigidas por esses psicólogos o grau arrogância e da severidade do silêncio, salvar-se de sua
de resistência oposto pelos pais às primeiras melhoras fraqueza, projetando-a em sua mulher, a meiga. E que dizer
do filho esquizofrênico. Por mais paradoxal que pareça, daquelas figuras femininas que parecem nascidas expres-
a cura do filho incluiria revisão e acomodação dos pa- samente para receber as projeções do homem? O discurso
péis de todos os membros da família, coisa vista como se torna muito complexo porque às dinâmicas psíquicas
ameaçadora pelos componentes "sãos". individuais se junta o peso do ambiente cultural e social
120 1')1
de cada pessoa. É claro que em uma sociedade baseada A mulher do usurário reage ao silêncio com o silêncio
nos valores patriarcais a mulher é induzida a suportar ' a mais extrema das consequências: o suicídio. A essa
at e ra o único culpado é o usurano;
" eIe 'e o sa'dolCO, ~ ~s-
esse papel de receptora passiva das projeções masculinas, ltu
a 'no, a sombra Com um só gesto, a "'t'
para o bem e para o mal. O próprio usurário afirma em seu sassI , . VI Ima" Imo. b IIlza
desesperado e alucinado monólogo interior (ibid., p. 45): seu algoz e sai de cena.
E a mulher que ama, oh, a mulher que amajustificará até
os vícios, até os delitos do ser amado!
130 131
a dor sufocada e removida, em nível consciente, que se dado a vida ao parceiro e de receber o sentido da vida, o
manifesta em alguma indisposição do corpo. Sentimos nosSO narcisismo e a estima que temos de nós próprios
que o outro levou consigo alguma coisa de nós, sentimos parecem alcançar o ponto culminante. Não está muito
que nos mutilou, que nos arrancou da unidade e da con- claro o que ocorre quando um dos dois parceiros perde
tinuidade do corpo. É como se o traidor, depois de nos o interesse, como também não é claro por que só aquela
haver abandonado, ainda dispusesse de um "eu auxiliar", pessoa, e não outra, lhe interessou até ent~o. Por que,
o nosso eu, que nos teria roubado. Assim, o traidor é no auge de uma paixão, de modo totalmente mesperado,
sentido pelo traído de maneira obsessiva e persecutória, outra pessoa é capaz de evocar sensações que a anterior
sendo muito importante recuperar alguma relação com já não pode? Creio que isso se deve às dinâmicas rela-
a realidade, recuperação para a qual parece necessária cionais que se estruturam no casal. Um casal se forma
uma verdadeira força do eu, de um eu não nutrido pela e interage de acordo com modalidades preciosas. Os dois
dependência. Do contrário, escolheríamos o traidor como parceiros que o compõem representam, metaforicamente,
parasito de nossa vida e nos tornaríamos causadores de as duas partes de um anel de engaste. De fato, muitas
um vitimismo que se espalha e nos serve, paradoxalmen- vezes a relação se funda mais nas diversidades do que
te, para não mudarmos, para não cuidarmos realmente nas semelhanças dos parceiros. Em termos junguianos,
de nós próprios. falaríamos de tipologia. Cada um deles representa para
A verdade é que a traição não pode ser atribuída a o outro o aspecto faltante, a parte em sombra de sua
um só dos componentes do casal; em certo sentido, tra- própria personalidade. Juntos, é como se essas duas
ído e traidor recitam um texto preciso, no qual, porém, polaridades pudessem reconstituir-se em unidades. Cada
cabe ao traidor a parte mais onerosa. Ele deve assumir a . '; um dos parceiros procura na relação a completude de seu
responsabilidade de preparar as bases para uma revisão ser. Já mencionamos, a esse repeito, o mito do andrógino,
e dissolução de uma relação que já perdeu toda ,razão exposto por Platão no Banquete. Um análogo hebraico
de ser. Muitas vezes o traído já há muito pressentia poderia ser constituído pelo seguinte trecho do Talmude
o drama, mas sentia necessidade de negá-lo, porque (Nidda 31b, in Elka'im-Sartre 1982, p. 1370):
investira tudo na outra pessoa. O mundo está cheio _ Por que é o homem que procura a mulhe:, e não. o con-
dessas telenovelas, nas quais "amar" é uma palavra mal trário?, perguntaram os discípulos de RabI Dostal, filho
usada: queremos "ligar", ligar o outro, de mãos e pés, ao de Rabi J anai, a seu mestre.
nosso sonho narcísico. A antiga ligação de dependência _ É como quando se perde um objeto. Quem procura? E
total em relação a quem nos deu a vida reemerge de o que é procurado? Aquele que perdeu procura o objeto
modo absolutamente inalterada, e não há "amadureci- perdido.
mento" que suporte - o amadurecimento que muitas
vezes equivale a insensibilidade - para receber, seIIl Ora, o objeto perdido alude presumivelmente à cos-
pestanejar, o golpe que nos é desferido. Aqui entraIIlOS tela retirada de Adão, enquanto dormia, e os termos "ho-
em relação com um aspecto particular do narcisisIIlO. lUem" e "mulher", aos quais o texto se refere, não devem
N o amor passional, quando temos a sensação de ter ser entendidos tanto em sua acepção biológica quanto na
132
psicológica. Fílon de Alexandria, por exemplo, distinguia esquemas de comportamento, de coaç?es,.e é só sobr~
as duas narrativas da criação do homem (Gênesis 1,27 e elas que se fundam as dinâmicas relacIOnaIs do casal: E
2,7) no sentido de que só no segundo texto (Gênesis 2,7: muito instrutivo observar que é sempre o mesmo motivo
"Deus modelou o homem com argila do solo, insuflou em que gera rancores e incompreensões no casal. Ele .se mede
suas narinas um hálito de vida, e o homem se tornou um pelo mesmo tema por anos, às vezes por toda a VIda, sem
ser vivente") se referia ao gênero masculino, ao passo que nunca chegar a uma virada efetiva. Se, porém, o outro
o primeiro (Gênesis 1,27: "Deus criou o homem à sua ima- é aceito somente enquanto corresponde à expectativa,
gem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele é claro que, na vida de casal, cada u~ é delimitado. em
os criou") conotava o ser humano em sua indivisibilidade um papel, e não pode sair dele. A traIção pode ser h~a,
original. Na linguagem de Fílon, esse último é conotado portanto, não só como abandono .do outro, mas tambem
como "ideia" (com referência a Platão) ou como "gênero", como tentativa irada de reconhecImento daquelas partes
enquanto os gêneros masculino e feminino são conotados de si sufocadas na relação.
como "formas" ou como "formas sensíveis". Escreve, pois, No casal, se a fantasia fusional faz ambos perder,
Fílon de Alexandria nas Alegorias das leis (II, 13, pp. de alguma forma, a identidade própria e, porta~to, os
215-16): próprios limites, a traição se propõe como te~tatlVa de
restabelecê-los. Através da traição poder-se-Iam com-
Deus procede em todas as coisas do mesmo modo; de fato, preender as motivações internas, psicológicas, que nos
antes das formas, ele faz os gêneros, como de resto faz
também com o homem: tendo esboçado o gênero homem,
ligavam a uma pessoa,já que isso representa um pont~ de
no qual estão compreendidos, como diz Moisés, o gênero observação externo, desligado do vínculo posto em. cns,:.
homem e o gênero mulher, por último produziu a forma Os aspectos da personalidade postos em sombra na ~Igaçao
sensível, representada por Adão. com o parceiro, os mais salientes, podem reemergIr e .ser
manifestados em outra relação. Se se estudasse maIS a
A perda, poderíamos dizer, a mesma que motiva a fundo a personalidade daquele que move o in~eresse de
incessante procura do outro, conota-se como tão radical quem "trai", poder-se-ia observar que ela mUltas vezes
que precede a vida consciente do homem ou seu despertar se diferencia muito daquela da pessoa an: ada ~ntes, e
do torpor causado por Deus. Portanto, uma perda poderia talvez seja mais semelhante à do traidor. E por ISSO que
ser o verdadeiro e próprio fundamento da relação. Com sustento que a traição representa, simbolicamente, uma
efeito, a relação, e em particular a relação passional, é passagem inevitável da vida dos que se am~m: ~m mo-
distinta do motivo da fusionalidade. A fantasia de repre- mento de abertura para o exterior e para o mtenor, u~
sentar uma unidade ou, como dissemos atrás, de sentir momento de reconquista da própria identidade. CreIO
que se perde a identidade própria sem a presença do outro também que prestar ouvidos conscientemente às pró-
constitui o eixo em torno do qual giram as dinâmicas dos prias fantasias de traição é muito diferente de pô-las e~
amantes. Isso implica também que na relação alguém prática impulsivamente, sem reflexão. Todas as pro~I
é reconhecido somente à medida que corresponde às dências "hostis" que se impõem na gestão de uma relaçao
exigências do outro. Assim, em todo casal estruturam-se deveriam ser compreendidas em nível consciente, antes
lRfí
134
"
gano, do controle e da suspeita. Dom Juan é o exemplo a conta e encerrar a partida. do Otto Rank., é
O roblema de Dom Juan, segun . ,-
literário mais conhecido dessa dinâmica: é um homem " P lô" secreto e inconsciente de fidehdade a mae,
em fuga, incapaz de relação autêntica. É a figura do
"sedutor", do homem que tem necessidade constante de
~~oc~:re insubstituível. Contra uma mãe tãt poder?ss~
10 d grande número de mulheres pe as qual
uma nova mulher na qual possa suscitar uma esperança oa:at~; d:v: continuamente passar (Rank, 1922, pp. 22-
e de necessariamente frustrá-la. Pelo fato de suscitar
essa esperança, é intensamente amado, porque a mulher
~~)~Escreve ainda Rank (ibid., p. 80):
armazenou desde a primeira infância uma necessidade A caça constante para ~o.ss~ir sexualmen~~ s~:~r~~~~~
insatisfeita de espelhamento; ela espera tornar-se objeto mulhere~ é insat~sfato~~ Just:em:~;~lênda infantil de
da dedicação, da compreensão e do respeito desse homem. pode satisfazer so parcla men
Ele é amado e também odiado por essa mulher, porque regredir à mãe.
não consegue satisfazer suas necessidades e acaba sem-
Poder-se-ia então inverter a afirmação, como, elhnfim,
pre abandonando-a e traindo-a. Um exemplo literário . na realidade foram as mu eres
desse tipo de homem é o Frédéric Moreau da Educação o faz Rank, e dIzer que _ t 'rio Vê-se isso
. t DomJuan enaoocon ra .
sentimental de Flaubert (Alice Miller, 1981, pp. 88-92). que conqUls aram , t faz do poema
Observando analiticamente essa personagem, vemos que, claramente na análise que o nosso au or
't· de Edmond Rostand publicado postumamente
com toda a probabilidade, o sedutor foi uma criança que drama ICO J Assim resume
viveu com a certeza de que qualquer resistência à sua 1921 A última noite de Dom uan.
mãe acarretaria imediatamente seu abandono da parte
~~nk se~ momento culminante (ibid., p. 107):
dela. Existem, com efeito, figuras maternas extremamen- . re mais claramente aparece como a
O dIabo, que semp bmete-o a uma prova, que
te frágeis e que exigem de seu filho o máximo esforço de consciência de Dom Juan'l su da mulher em questão por
adaptação e ameaçam abandoná-lo sempre que ele en- consiste em reconhecle\~ a ma rra Mas Dom Juan, tendo
contra uma oportunidade de dizer não. Como adulto, ele alguma palavra que e a e sussu . rova
conhecido só o corpo de suas mulheres, erra a P .
procurará neuroticamente transformar em "ativa" essa
dinâmica que sofreu como criança: oferece à mulher sa- Assim vê Rostando o preço pago por ~om Juan :_ o
tisfação e admiração e, depois, retira-se repentinamente. . t d alma Poderlamos ent ao
Há uma verdadeira e própria ilusão de liberdade nessas absoluto desconheclmen o a . h em sua
er ntar o que Dom Juan realmente con eceu
atitudes, das quais a traição é uma das feridas mais Ph gu d . do humana carreira de sedutor. Escreve
dolorosas. Atrás dessa "liberdade" esconde-se, de fato, umana, emaSla
profunda dependência, a de um indivíduo que não tem Rank (ibid., p. 108):
, áscaras As mulheres só lhe
o direito de dizer não porque sua mãe não o suportaria. Dom Juan con~e~eu s~ ~o quem· quis essas mentiras,
Naturalmente, essa represália tardia e desviada, essa mentiram, e fOI e elhPropn ostra ao homem como ele a
retorsão, sobre outras criaturas femini-nas, do sofrimen- uma vez que a mu er se m
143
142
A vileza de Frédéric Moreau esconde em si .~ma ~1::~~
deseja ... Foram as mulheres que o conquistaram, e se ele como é provável que suceda com qualquer VI ezda. a .
o permi-tiu foi por causa de seu medo inconfesso de dever d scer sincera e franca depen e presumI-
ser fiel a uma só. a )esso~ Pâ.o e;~~ de tolerância da verdade demonstrado
;~r~:~s~ais e das sanções relativas a ela que eles tenham
Todos nós carregamos as cicatrizes de nossa infân- imposto ao seu filho.
cia, mas uma ferida não cicatrizada não pertence só ao
passado, porque está sempre presente, pedindo curativos Não existe relação passional na qual nã? ~aja ci~~e,
e drenos, e, em suma, a coação para repetir domina nos assim como não pode estar ausente dela a tralçao. O cl~m~
tempos longos, às vezes por toda a vida, as relações afe- x rime o direito próprio sobre o outro, uma po~se 'prIm
tivas desses "sobreviventes" de um conflito remoto, cujas ~i:a que suplanta a razão e pode levar a atos cr:.nnoso_s.
chagas ainda trazem. Semelhante a essa coação é a estra- Mas tudo isso pode ser vivido também em uma lmensao
tégia típica à qual o sedutor recorre, a da mentira; para muito delicada, muito menos rara do que geralmente se
"poupar" às mulheres frustração e desencanto - como, no admite: a dimensão do incesto.
tempo de criança, à mãe -, ele se afasta delas, contando
mentiras. Sufocado sempre mais pela insistência delas,
esse tipo de homem procurará um pouco de liberdade,
provocando as mulheres para serem cruéis com ele. Trata-
-se de provocação indireta - o drama do sedutor consiste
justamente na incapacidade de exprimir diretamente
suas exigências - que o lança, também a ele, em uma dor
profunda, a qual explode quando a mulher desmascara
sozinha sua hipocrisia. Quanto mais vingativamente a
mulher reagir à vergonha de haver sido enganada, tanto
mais o sedutor se sentirá legitimado em abandoná-la,
pensando ilusoriamente que assim consegue distanciar-se
de alguma forma de sua mãe. Ele se dirigirá, portanto, a
uma nova parceira, perpetuando a cadeia diabólica das
satisfações e das frustrações. Por mais compreensiva e
afetuosa seja a nova parceira, ela, de fato, combate, como
Dom Quixote, contra moinhos de vento, porque não tem
o poder de transformar em "não acontecido" o trauma
originário que tornou tal o sedutor. Este, com os meios
mais inconscientes e sutis, constrangê-Ia-á a renunciar
à "compreensão" e a escolher a crueldade. Escreve Alice
Miller (1981, p. 91):
1Al'::
144
12 gam a dinâmica do incesto aos fundamentos universais
de todo sistema cultural, já que em ambas a proibição
ÁREA DE INCESTO ou, em todo caso, a superação da tendência incestuosa
abrem caminho para o aparecimento da consciência e da
cultura. Os pontos de vista de Freud e de Jung sobre o
incesto são indispensáveis à compreensão da natureza
~e~~~~~~:~~mjda, porque demasia~amente violenta; absolutamente extrínseca e deturpadora do juízo mo-
N-' ura para se pronunCIar para .
ao eXIstem palavras para dizeA_lo A VI' IA '. d se ()uVIr. ralista sobre essa transgressão, juízo que, ao contrário,
. - . . o enCla a parte d 0
pa~, n_ao eXIdste, nunca, impossível. Foi ela que ~ seduZI'U 0 é funesto para o crescimento psicológico do indivíduo.
palnaopo e"p "d' .
É dem<>~s' Enta-eca: es~elmodo, e excessivamente odioso Não existe cultura na qual não esteja presente o tabu
<4.<. onaoselaa .
O " I" ( " .
PaI. e a e~. ...) O paI e a garantia da moral O ai é do incesto; isso significa provavelmente que ele repre-
~amaíh~'do PdaI Sé sagrado, nele não se toca. Ele é u~ b~uart: senta uma constelação psíquica com a qual cada um de
SOCle a e. e se tocar nele t d afu d
pátria, trabalho, família. ,u o n a, todos os valores: nós, cedo ou tarde, é obrigado a defrontar-se. O tema da
Assim, a adolescente fica amordaçada com a sua verdade. sedução da criança pelo adulto está na base da teoria
(E. Thomas, O silêncio da violência, 1986, p. 52) do complexo de Édipo, que Freud, em nível filogenéti-
co, entrevê no sistema totêmico, e que, na neurose, se
transforma em fantasia inconsciente capaz de invadir
toda a vida psíquica do indivíduo. O conceito de fantasia
.0!ncesto é aquela dimensão que nos impede de viver incestuosa é importante porque configura o problema não
a palxao amorosa fora do âmbito da família. Representa só em termos de realidade, mas também de imaginário
U~t ruptu~a t~l dos esquemas psíquicos e sociais que se pessoal. Os tabus são proibições antiquíssimas e, como
eVI a menCIOna-lo, apesar de ser ele uma traição terri~el tais, poderiam fazer parte de um patrimônio inato, tanto
mente ~ruel. Em 1932, Ferenczi, aluno de Freud escreveu que Freud (1912-13, p. 65) chega a perguntar-se:
~m lartlgo sobre u~ tipo de comunicação total~ente par- Quem poderia decidir ( ... ) se tais ideias "inatas" existem,
ICU ar, o da comumcação entre a linguagem da . se causaram a fixação dos tabus sozinhas ou em concomi-
a do adult 1 . cnança e
,. . o, na qua a mtenção infantil, por exem lo da tância com a educação?
canCla feIta pela menina ao pai e' traI'd I p, _
'b'd d , a pe a percepçao
mor I a el~. Fre,ud e Jung trataram o tema do incesto Segundo Freud, a coesão do grupo, pressuposto do
em perspectIvas dlfer~ntes, as quais levaram às solu ões desenvolvimento civil e cultural, pode estabelecer-se e
~~r1e;:~t:ad~ nos dOIS textos, quase contemporân~os manter-se só através da proibição do incesto, porque é
,. - '. ~tem e tabu e Símbolos da transforma ão' então que a lei se impõe sobre o desejo, o princípio da: reali-
es~ecle de dlvlsore~ de águas emblemáticos na vida Çdo~ dade sobre o princípio do prazer. A sublimação dos desejos
dOIS autores: na hIstória do pensamento psicanalítico incestuosos transforma a horda primitiva em sociedade
Apesar das dIferenças das duas elaborações, ambas li~ regulada por normas, sociedade na qual a organização
cultural intervém sobre a existência meramente biológica,
146
147
'II
I.
!~:'s::~loa!~:~:~d:b:::!~a~:e~:n~:~i= :~
escolhia a outra vida, a via da alma, a purificação através da
abstinência, da iniciação: uma espécie de delírio místico.
prImeIra experIencIa sexual é o incesto só h; Não podia ser aquilo que havia decidido sozinha, em mi-
para o medo. ' a espaço nha cabeça, no espelho do futuro; meu pai o quebrara com
seu sexo; restava-me só a via do não-ser, a via da morte
(Thomas, 1986, p. 130).
Fora é tão belo, e eu estou i 1 d '
fechadas lendo 1· so a a atras das persianas
, Ivros nos quais t f: . Esse pai-ternura era homem perverso, um estuprador,
esse percurso que eu na-o c . 0f:u ros azem ao Inverso
M d·· OnsIgo azer um pai incestuoso, um homem ignóbil. Como ele existem
e I Sua Importância sua ·d d·
beça se recusa a funcio~ar e:e;:ssI a e, mas a minha ca- centenas de pais, pais ternos e amáveis que agrediram e
contento-me com ler test ' nh eu corpo a avançar. Então violentaram suas filhas no silêncio da noite, em um porão,
infância perdida, de ace~~u os? roma~ces. qu~ falam de em uma floresta, no fundo do leito conjugal. Mas o mundo
graças ao livro de Sheila Ma~~rd~do. :01 pnncIpalmente se cala e sufoca esses gritos, que nunca conseguem fazer-
de anoréxica que pude rompe e? ~o:e s.ua experiência
au
vivia com meus pedaços esparhaJd a e VIdro na qual eu -se ouvir; ele os trai e os confina em um silêncio vazio. É
E . 1 a os. necessário, antes de tudo, salvar a família, salvar a honra.
ra uma Jau a transparente, a minha _.. ,
para os outros; ela servia de li proteçao, mVISIvel Já que o mal está feito, é inútil acrescentar-lhe outros: a
pedaços, a minha jaula tornaâ:r:~~:p~r~todos o~ meus prisão do pai e a vergonha de toda a família. E os outros
Agora que rompi essa prote ã d n e_ o .mun o. filhos, que seria deles sem o pai, que os sustenta? É melhor
ência não sei ma· . ç o, a qual nao tmha consci-
- ' IS comunIcar-me com os t calar-se, fazer como se não tivesse visto nada, nem ouvido
nao conheço esse corpo de mulh fi 1 ou ros, porque nada, como se tivesse sonhado. Sim, ela sonhou, todas as
unido que é o meu (Th er, na mente recolhido e
, omas, 1986, p. 128). filhas desejam ir para o leito com o pai. A filha percebe que,
se falasse, destruiria a família.
152
campo profissional, eles são muito pouco competentes nas
13 relações interpessoais, porque inteiramente presos por
m "demónio" que os impele a ir até o fundo em seu tra-
UM TEMPLO POUCO FREQUENTADO ~alho sem deixar-se desviar. É como se esses indivíduos
não ti~essem outro interesse além do objetivo com o qual
estão obsessivamente identificados, pagando .0 pr.eço do
... sem amigos ninguém escolheria viver, ainda que possuísse isolamento, isto é, da falta de amizade e de sohdan~dade
todos os outros bens. dos outros. É interessante que veem qualquer pedIdo de
(Aristóteles, Ética a Nicômaco 1155a, p. 703) dirigirem a atenção para outra coi~a como am,e~ça insu-
portável, como traição de seu destmo. A pr.o~o~Ito desse
tipo de homem votado a algum trabalho mentono, escreve
Kracauer (1971, pp. 69-70):
A obra a criar absorve-o, exige todas as suas forças. e, se
quisesse subtrair-se a esse ~ever p~ra gozar da su.a~dade
da efusão de alma a alma, ISSO sena para ele traIçao.
Em seu Dicionário filosófico (1764, p. 435), Voltaire
afirma que em nossa cultura a amizade é "um templo já Inteiramente incapazes de existir em espaço e tempo
pouco frequentado". De fato, para ouvirmos dizer todo pobres de acontecimentos, essas pessoas. são perseguidas
o bem possível da amizade, devemos voltar a outras pelo vazio, sempre ausentes da cena coletIva e relut~tes a
culturas, mais remotas: aos árabes, aos gregos, à Bíblia. respeito de qualquer tipo de participação ~ de env?l~men
A tradição que mais nos pertence, tanto a "culta" como to. Outro aspecto que os caracteriza é a ImpossIbIhdade
a popular, não demonstra muito entusiasmo por essa de identificar-se com o grupo. A identificação com o grupo
ligação afetiva: máximas de autores e provérbios anó- é mecanismo que tem raízes antiquíssimas em nossa psi-
nimos convidam mais a desconfiar da amizade do que a que e intervém continuamente na relaç~o da ~essoa com
apreciá-la. E mesmo quem está disposto a incluí-la entre o ambiente humano circunstante. Ela e funcIOnal para
os ''valores'' a salvar considera-a em geral como "opcional". a consecução de status e para a aquisição de septimento
Detenhamo-nos logo em um tipologia muito difundida de de segurança fundado na identidade coletiva. E verdade
indivíduos que, seja aparentemente, por falta de tempo, que a identificação com o grupo não comporta ~ó aspectos
seja porque dedicados a algum fim nobilitante ou presu- positivos, porque se, de um lado, reforça o ~m~lar, do
mido como tal, não podem "dar-se ao luxo" de uma amiza- outro, enfraquece-o, privando-o de sua pecuhandade, d~
de. Essas pessoas, mais homens que mulheres, estão ou diferença que o constitui como sujeito entre os ou~ros: ~
sentem-se empenhados em um trabalho, em uma missão, verdadeira também a relação inversa, porque um mdI,vI-
e perseveram em um caminho que deve levá-los a certos duo pode procurar uniformizar-se aos outros quando VIve
objetivos, e esse empenho se resolve na maior parte dos a diversidade deles como um perigo. Pode ocorrer que se
casos em reduzida capacidade de relação. Muito ativos no crie na massa um campo particular, no sentido de que
11'\1'\
154
duas pessoas comecem a ocupar espaço mais restrito d zar a rocha à qual se agarra. Agora segue essa via, mas
c?~unhã~ ~o ~u.al to~a corpo um entendimento psico~ depois muda a cor de tua pele. Sabedoria vale mais que
10glco. N ao e facIl exphcar por que isso sucede. O início intransigência.
do processo de d~ferenciação de cada um da psicologia
do grU?O se mamfesta, em todo caso, muitas vezes pela O texto atribuído a Teógnides se torna mais inte-
~eces.sIdade de relação psicológica que tome o lugar da ressante se comparado com uma composição da mesma
IdentIficação anterior com o coletivo. Essa possibilidade coleção, na qual a distância entre amizade e traição é
?e e~contro privilegiado é percebida geralmente de forma mínima, no sentido de que as qualidades que fazem o
IrracIOnal, apa~entemente não bem motivado, mas qual- amigo são, invertendo-se o sinal, as mesmas que fazem o
quer encontro Importante tem resíduo misterioso e indi- traidor (Teógnides, vv. 965-67, p. 235):
zível. !rata-se de.um fato raro, que deve ser distinguido
Muitos têm índole falsa e traidora, mas a ocultam, mos-
de mUItos outros tIpos de participação emotiva ocasional trando ânimo cambiante. Não obstante, cedo ou tarde, o
com? un:a .confissão inesperada, da qual podemos ser o~ tempo revela a índole de cada um.
destmatanos e que muitas vezes nasce de uma atitude
diferenciada de revelar o próprio mundo interior sem Em muitas máximas, geralmente antigas, como
nenhuma reciprocidade e sem a espera real de res;osta. dissemos há pouco, encontramos afirmações como: "O
~~bo.ra outras relações, como as amorosas, permitam homem é feliz quando encontra ao menos a sombra de
mtImI?ade m~i?r e não excluam a dimensão psicológica um amigo" (Menandro), "Quem encontra um amigo en-
da amIzade, dIna que a relação entre pessoas do mesmo contra um tesouro" (Eclesiastes), e assim por diante; no
sexo representa o terreno privilegiado da amizade enten- nível psicológico, isso significa que o desejo de relação
dida como relação consciente. O outro se torna ocasião nos é dado com a vida, mas a capacidade de estar em
para entrarmos em relação dialógica consciente com,nós relação e de mantê-la deve ser adquirida. A experiên-
próprio~ e com o diverso de nós. Com efeito, a amizade cia amorosa remete em última análise à satisfação do
n,os obnga a elaborar um conjunto de dificuldades espe- instinto biológico da reprodução, ao passo que a amiza-
cIficas que nem todos estão em condições de enfrentar de é fato cultural e insere-se no campo psicológico, no
com su~esso. O esforço próprio para essa elaboração está qual os acontecimentos seguem processo que os impele
conv~m~ntemente expresso em uma composição atribuída irresistivelmente para um fim também de natureza
a ~eo~:des, co~posição na qual a tentativa de adaptar a psicológica. Na avaliação do grau de equilíbrio psíquico
propna I~dole a índole dos amigos assume as conotações alcançado pelo indivíduo, deve-se olhar não só para sua
de necessIdade transformadora, que se declina na entrada vida afetiva e profissional, mas também para a eventual
em contato profundo com as "partes" do próprio Si-mesmo presença e qualidade das relações de amizade. Os amigos
(Teógnides, vv. 213-18, p. 109): são poucos, mas muitos são os companheiros de viagem
Cor.ação meu, mostra a todos os amigos um caráter Com os quais não podemos compartilhar nada mais do
~anegado, adaptando tua índole à de cada um: adota a que um percurso cuja meta já conhecemos. As relações
mdole do polvo de muitos tentáculos, que sabe mimeti- Com conhecidos, colegas, companheiros de estudos e
156 11;:7
d~vertimentos, correligionários, compatriotas etc. se Não é talvez verdade que, no caso dos amantes, ver o amado
dIferenciam de modo substancial da amizade, porque é a coisa mais cara, e que eles escolhem essa sensação mais
fundadas em comunhão de finalidades claramente do que as outras, convencidos de que é principalmente de
deli~itada e ci:c,:nscrita. Nesses casos, a colaboração acordo com ela que existe e nasce o amor, e que, do mes-
mo modo, para os amigos, viver em intimidade é a coisa
em vIsta do obJetIvo tende a nivelar as diferenças de mais desejável? De fato, a amizade é comunhão, e como
personalidade e a evitar o envolvimento recíproco em alguém se relaciona consigo mesmo, assim se relaciona
questões estranhas que poderiam introduzir variáveis com o amigo.
não controladas na vida do grupo. Isso não exclui que
alguém esteja disposto até a sacrificar a vida pelo outro, Em consequência de tudo isso, a realização dessa
mas, sob o perfil psicológico, o investimento pulsional não vivência não se verifica senão na intimidade, e, na ver-
é tanto no companheiro quanto no ideal coletivo. dade, Aristóteles conclui nesse sentido sua argumentação
.. ~stóteles disti?gue a amizade fundada em objetivos (ibid.):
utIhtanos ?U seXUaIS de um terceiro tipo de relação, na
qual o~ amIgos se amam por e como são, amam o caráter Ora, quando se trata de si mesmo, a percepção de exi~tir
é desejável, mas o é também quando se trata do amIgo.
do amIgo, sua alma, sua verdadeira essência. Nessa rela- Entretanto, a atuação dela se dá na vida em intimidade.
?ãO po?e haver um leve a~pecto sexual, físico, o qual não Consequentemente, é natural que os amigos tendam para
e, porem, fundamental. E uma ligação de alma a alma. isso.
A implicação homossexual em algumas ou talvez em
todas as relações de amizade não deve ser demonizada A relação psicológica autêntica pede profunda e
como perversão da relação, porque a sexualidade não só consciente aceitação do outro, também de seus aspectos
é, segundo Jung, "o símbolo mais forte à disposição da menos agradáveis a nós. O exercício de tolerância pro-
alma", podendo, por isso, funcionar como veículo para funda e de profunda compaixão, no sentido etimológico
outros significados, como também representa um dos de "sofrer com", significa antes de tudo que acolhemos
mediadores fundamentais de nosso ser no mundo. A a nossa negatividade, a sombra que nos segue em toda
esserespeito,
- falou-se de "amor sem a sexualidade , mas parte. É somente com essas condições que conseguire-
nao sem o corpo" (Guggenbuhl-Craig) e de "amor erótico mos garantir ao amigo um afeto estável diante daquela
espiritualizado" (Kracauer), sendo experiência comum humanidade imperfeita que ele opõe ao nosso desejo
que os amigos se escolhem também com base em atração idealizante. Do contrário, ele será o eixo de nosso nar-
física. Isso é bem compreendido, por exemplo, por Aris- cisismo, e alimentaremos elementos de semelhança
tóteles, que reconheceu na vida de intimidade um fator para confirmarmos continuamente a nós mesmos. Se
decisivo ~a amizade. Entretanto, segundo o filósofo grego confiamos plenamente no outro, compreendemos que
em sua Etica a Nicômaco, a escolha do amigo passa pela também nesse caso pode aparecer a traição, e com efei-
sensação, não diferentemente do que se verifica com a tos devastadores. Foi o que sucedeu, por exemplo, com
escolha da pessoa amada (Aristóteles, Ética a Nicômaco Uma personagem do mito, Filoctetes, a cujos sofrimentos
1171 b, p. 823): Sófocles dedicou a tragédia homônima. Conta-se que,
158
159
ferido no pé pela mordida de uma serpente, o herói foi levem à ruptura da ligação. A traição pode, assim, cons-
abandonado pelos gregos na ilha deserta de Lemnos (Li- tituir a ocasião para se rever a relação em um nível de
mno~), porque a sua ferida empestava o ar, e seus gritos compreensão mais profundo e mais amplo. Talvez nem
lancmantes atormentavam aos companheiros. Uma vez
com o nosso companheiro ou companheira de vida con-
que, segund? a ~r.?fecia, Troia não podia ser conquistada sigamos revelar-nos plenamente como com uma pessoa
se~ a contnbUlçao do arco de Filoctetes, Ulisses e Ne-
de nosso sexo.
optole~o, filh.? de Aquiles, desembarcaram em Lemnos A amizade feminina muitas vezes é mais sólida do
c~m a I.ntença? de consegui-lo. Ulisses sabia que isso que a dos homens, na qual a rivalidade e a violência con-
nao se,na possIVel nem pela força nem pela persuasão,
taminam a relação mais do que entre as mulheres. Na
mas so pelo engano. E o engano proposto por Ulisses a
amizade feminina parece possível, por exemplo, não só o
Ne~Ptólem~ consistia em uma traição: Neoptólemo de- afeto, mas também sua manifestação pelo contato físico,
vena ~onqUlstar a amizade incondicionada de Filoctetes
pelo caminhar abraçadas ou pelo saudar-se com beijo
e, apOla~o na confiança conquistada, deveria subtrair o
afetuoso. Comportamentos semelhantes são praticamente
arco. ~?I o que se deu, ao menos em um primeiro momen-
inaceitáveis entre homens, ao menos na cultura ocidental
to, e e mteressante que as palavras postas por Sófocles
(nos países árabes, por exemplo, vigoram outras regras).
na boca ?o .herói traído apresentem inversão lógica tão
Não fazem parte de nossos costumes, e isso está ligado
car~~ter~stIca quanto significativa. De fato, exclama o
herOl (Sofocles, Filoctetes, v. 923, p. 685): não só a um modo diferente de viver a corporeidade,
mas também à aceitação diferente do outro, do amigo.
Estou morto, fui traído, Geralmente cada um de nós deve ocultar seus aspectos
negativos, também, e em alguns casos principalmente, os
~onotando desse modo a traição como condição posterior da pessoa amada, mas pode deixá-los aflorar diante do
a morte, como condição mais letal do que a morte· amigo. As pessoas se sentem ligadas pela amizade porque
O efeito se revela devastador, quando cons~mado é como se se estabelecesse relação de alma para alma: é
no terreno da confiança. Em todo caso muitas vezes aí que percebemos a presença de uma espiritualidade
a traição é praticada como reação defe~siva contra a profunda. Nos poemas gregos figuram muitos exemplos de
frustração ~aquelas expectativas narcísicas das quais amigos que se sacrificaram uns pelos outros. Se aceitamos
falamos atraso Uma relação diferenciada se coloca além a diversidade do outro, a amizade se torna estimulante,
da, sa.tisfação simbiótica e pressupõe a aceitação da porque o diverso me leva a dimensões do existir comple-
propr.Ia som~ra: podemos também projetá-la no amigo tamente diferentes do meu mundo. Enfim, o amor, o eros
e fUgIr dela Irntados, mas então o desafio é somente como capacidade de relação, baseia-se justamente na
deslocado para. a frente. Diferentemente da relação de aceitação da irredutibilidade de quem está ao nosso lado.
amor, na de amIzade temos uma possibilidade a mais de É talvez sob o signo dessa irredutibilidade que se deve
s~pera: a traição, aproveitando seus aspectos positivos e entender o ensinamento rabínico referido por Cohen em
nao deIxando que os aspectos destrutivos prevaleçam e sua exposição sobre o Talmude. Segundo o que é narrado
por esse autor (1932, p. 262):
160
o ensinamento rabínico sobre o amor fraterno não poderia algumas circunstâncias, aceitar ajuda e pe~~-la si~ifi,ca
encontrar síntese mais bela do que a do vigoroso epigrama: que alcançamos a consciência de .nossa fragIhdade .mtnn-
"Quem é poderoso? Aquele que muda o inimigo em amigo". a consciência que é sempre smal de amadurecImento
sec , . tA'
psicológico. Devemos saber reconhecer nos~a lmp? ~ncIa,
A necessidade de reconhecer a diversidade dos filhos, visto que o problema, por exemplo, ~e m~Itos pSlcolog~s
da parte dos pais, que "lhes deram a vida", representa um _ que como tais deveriam ser pSIColOgIcamente maIS
dos momentos mais duros que devem enfrentar. Por outro " e articulados do que o homem "
evoluídos " ~ e"
comu:r.n
lado, esse modo de exprimir-se, tão difundido também justamente o de se sentir~m oni~otentes. ~;ue s:gnlfi~a
entre os que creem que a vida é um dom, mas de Deus, a palavra evangélica "batel, e a~:lr-se-vos-~ ? Nao pedIr
revela a ideia que têm de seu papel aqueles pais que se nunca não equivale a uma condlçao de pe~eIta autossufi-
sentem com crédito em relação aos filhos. Na amizade se ciência, mas, ao contrário, a uma patolOgIa. No Talmude
oferece uma possibilidade a mais de dar espaço à diver- (Berakhot 5b, in Elka'im-Sartre, 1982, p. ~8) na:ra-se que
sidade do outro, tirando-se disso motivo para enriqueci- certo dia Rabi Johanan caiu doente. RabI Hamna lhe fez
mento psicológico: através do amigo experimentamos o uma visita e perguntou-lhe se suportava de bom grado
mundo de uma forma que não nos é habitual- e ele pode o castigo que lhe sobreviera. Sendo neg~tiva a .resposta,
atrair-nos muito precisamente porque desconhecido - e Rabi Hanina lhe pediu que lhe desse a mao. RabI Johanan
em uma situação na qual provavelmente estamos dispos- lhe deu a mão e sarou. A essa altura o redator da narra-
tos a arriscar mais. O amigo espelha a minha alma, a tiva talmúdica pergunta-se por que Rabi Johanan ~ão
mim mesmo; afirma um provérbio: "Dize-me com quem curou a si próprio; a resposta é dada em ?utra n~rratIva~
andas, e dir-te-ei quem és". Se consigo dar minha alma, que repete em tudo a primeira. Certo dl~ tambem Rab~
e outro pode recebê-la, espelho-me nele, e ele se espelha Hiya adoeceu e quem foi visitá-lo foi RabI Johanan. RabI
em mim. Na amizade, existe, no fundo, uma qUlillidade Johanan perguntou a Rabi Hiya se suportava de bom
religiosa. Um étimo possível de religião, por exemplo, o grado o castigo que lhe sobreviera. Recebendo respo~ta
que é proposto pela cristandade, destaca nesse termo a negativa Rabi Johanan lhe pediu que lhe desse a mao.
significação de "ligar junto", de "pôr junto"; com efeito, Rabi Hi;a lhe deu a mão e sarou. ~ort~n~o també~~abi
através do amigo descobrimos que é possível uma co- Hiya não conseguiu curar-se por SI proprlO. Por.qu~. ~o~
municação profunda que nos "amplia". Nos momentos que ninguém está em condições de curar-se por SI propno.
dificeis, é "rejeitado" somente quem não pode contar Assim responde o talmudista (ibid.):
com um amigo. Na tragédia grega, o expediente salvador
Porque um prisioneiro não se liberta por si próprio.
que levava à solução do nó dramático era o deus ex ma-
china, que, em termos pessoais, equivale à intervenção
Um prisioneiro não se liberta por si próprio. Talvez_ a
do amigo, intervenção que sentimos como religiosa e
absolutamente "gratuita", como a longa manus ("longa condição de prisioneiro seja a de todos os. h_omens,.e entao
nenhum deles pode afirmar-se em condlçoes de hberta:-
mão") de um deus. A possibilidade de sermos ajudadoS
-se por si e, para usarmos a outra expressão da narraçao
não contradiz em nada nosso desenvolvimento; antes, em
162
talmúdica, ninguém está em condições de curar-se por si. 14
Paradoxalmente, é a autos suficiência declarada, da qual
falamos há pouco, a constituir o sinal mais tangível de O SEXO NEGADO
uma prisão infinita.
Diferentemente do amor, como dissemos, a amizade
não é motivada por nenhum instinto biológico, mas uni- . " o que em todas
PortodapartenanaturezaeXIstemnupcIas,p ,r , s
camente pelo desejo de relação com outro ser humano. A as criaturas existem macho e remea. Tambem as ~ore
verdadeira amizade é exclusiva e suscita sentimentos de se acasalam, também as gemas. Acasalam-se tam em as
abandono, ciúme e inveja naqueles que não são seus prota- pedras.
gonistas, mas espectadores. Pensemos na hostilidade que (Lutero, Discursos à mesa 7, p. 5)
muitas vezes a família demonstra em relação aos amigos
dos filhos, amigos que os levariam "para o mau caminho".
Normalmente a amizade leva a uma idealização do outro,
sendo por isso que dela pode surgir a traição, mais dolo-
rosa do que a praticada pela pessoa amada. A frustração Escreve Píndaro na primeira de suas Olímpicas:
ligada à amizade verdadeira pode arrasar a vida de uma
pessoa; enfim, é mais difícil reconstituir a amizade do Filho de Tântalo, direi de ti ~ontra os antigos:
que a relação sentimental. Na amizade temos, portanto, quando ao banquete ~arm~moso
o dever de explicar, de mostrar nossa dimensão humana em Sipilo amiga o paI convIdou
os deuses a uma ceia recíproca,
justamente porque o outro tende a idealizar-nos. raptou-te o deus do tridente,reluze~te,
vencido por paixão, e sobre aureas eguas
te conduziu ao altíssimo reino de Zeus venerado,
para onde em tempo futuro
foi também Ganimedes, leva~o
por Zeus, para o mesmo servIçO.
medi~as penais. Em 1974, o DSM (o manual de psiquiatria causa de problemas iguais aos de todos os pacientes, e, se
amencana) finalmente excluiu a homossexualidade das existe uma especificidade comum a eles, ela deriva dos
doenças mentais, diante dos dados do relatório Kinsey, de comportamentos penalizantes da sociedade em relação
1948, segundo o qual 40% dos homens norte-americanos aos que se afastam do modelo dominante. Nas escolas
adultos haviam tido relação homossexual completa. A psicanalíticas existe tendência progressiva para se dar voz
homofilia, como qualquer outra forma de "perversão" aos analistas homossexuais, justamente para que possam
deve ser entendida como modo particular e específico d~ facilitar alguma compreensão de seu mundo psíquico.
ser no mundo da experiência amorosa. Não compreende- Trata-se, em todo caso, de situações muito avançadas,
remos a homossexualidade se a separannos do amor. Pelo porque a atitude predominante nega essa possibilidad:.
que nos foi dado constatar na experiência clínica, o amor Conheço, todavia, dois analistas, pertencentes respectI-
homossexual, em suas expressões, não se diferencia do vamente à escola junguiana e à freudiana, que tiveram
amo: heterossexual: são idênticas a entrega, a ternura, a coragem de denunciar a hipocrisia das associações
a paIxão. Nas suas expressões, repito. Porque, do ponto psicanalíticas. Refiro-me aos estudos de Hopcke (1989)
de vista da psicologia profunda, não podemos deixar de e de Moor (1989).
individuar uma diferença profunda. O amor permite a Dada a dificuldade de respostas exaustivas a todas
. superar as limitações da nossa existência,
cada. um de nós as interrogações sobre a homossexualidade, pessoalmente
p.or ISSO mUlt?,s autores falam dele como da "transparên- penso que se deva ler nessa "escolha forçada" a impossibi-
CIa .do mundo . Ora, o amor heterossexual é relação com lidade psicológica de se enfrentar o diverso porque muito
o dwerso; Freud dizia que a mulher é um mistério· uma ameaçador. O feminino para o homem e o masculino para
psicóloga diria, talvez, o mesmo do homem. O eros'hete- a mulher representam um desafio, enquanto o semelhante
rossexual nos abre uma perspectiva sobre esse diverso ou até o idêntico nos parecem obviamente mais dispostos
horizonte da experiência; e é asim que, iluminando a outra a acolher-nos. Na relação homem-mulher, o aspecto con-
metade do céu, ele torna o mundo transparente. A união trassexual inconsciente pode ser projetado sobre o outro,
com o que é completamente "diferente de nós" significa de modo que a anima ou o animus venham a constituir
q~e somos a metade do símbolo, que pode recompor-se a ponte para o outro. Isso se constata nos sonhos, nos
so no encontro com um companheiro do outro sexo. Essa quais a nossa heterossexualidade inconsciente pode evo-
diversidade não é só física, mas também psíquica, já que luir através da terapia: de primitiva, ela pode tornar-se
homem e mulher são psicologicamente complementares. muito mais evoluída, modificando também a tipologia
Tudo isso representa uma possibilidade natural de irmos do parceiro para o qual o indivíduo se sente atraído. A
além de nós mesmos: desde a infância o menino vai para anima e o animus entram no jogo como farol que ilumina
a menina. Como explicar então que, na relação emotiva o outro. Uma relação perturbada com o animus ou com a
e sentimental, o diverso muitas vezes cause medo a pon- anima inevitavelmente se reflete em escolhas "doentes",
to de motivar em alguns casos a escolha homos~exual? que guiam o indivíduo para relações nas quais, não por
O paciente homossexual geralmente não pede para ser acaso , ele se afunda cada vez mais no mesmo problema.
"curad o"de sua h omossexuahdade;
. ele vai ao analista por No homem, comojá dizia Jung, a homossexualidade pode
170 171
1/:['
!Ii:
"
192
deve ser remediado de alguma forma. A doença é desafio, se estabelece dentro do corpo e nos invade. A doença se
prova de fogo da fé para aquele que a tem e sobretudo configura como o inimigo por excelência e tem a caracte-
graças ao mitologema - não só bíblico - do "pecado ori~ rística de exilar-nos no limite entre a vida e a morte. O
ginal", ela aparece unida inseparavelmente à expiação de doente é suspenso em um tempo-não tempo, a sua vida é
uma culpa. Dessa forma, como já dissemos, entra na cena reduzida à dimensão de passado ampliado de modo des-
humana a concepção da existência terrena como expiação medido; é expropriado injustificadamente de seu projeto
do pecado: os flagelos divinos e as chagas de J ó significam existencial. Torna-se caçador de recordações, volta ao
que a vida é essencialmente caminho de redenção. Na passado como amante abandonado para ainda sentir-se
verdade, a doença escancara um vazio no fluir dos signi- vivo. Não existe nada mais aniquilador para um homem
ficados de nossa existência, ela é um limbo sem tempo, do que ser privado da perspectiva de futuro, dessa linfa
um presente suspenso no qual se torna mais angustiante cotidiana e indispensável que é a preparação de projetos.
o pedido de sentido. Eis que então a arbitrariedade da Quem descobre que tem doença incurável é obrigado a
dor, a dúvida, a desorientação são superadas, graças ao reinterrogar-se sobre o sentido de tudo o que até momen-
princípio segundo o qual o mal é necessário para um bem tos antes parecia óbvio. Na condição de doentes, estamos
maior. Em Diceria dell'untore, Gesualdo Bufalino põe na terrivelmente sós; quem está doente causa medo, e a
boca de uma de suas personagens, um sacerdote doente comunidade evita a tal ponto ter contato com ele que
e angustiado (1981, p. 47): existem ordens monásticas dedicadas exclusivamente a
O pecado: inventado pelos homens para merecerem o sofri- cuidar dos enfermos. Algumas pessoas se retraem defi-
mento de viver, para não serem castigados sem porquê. nitivamente de uma relação, quando ficam sabendo que
o outro está doente. Enfim, se cuidar dos doentes fosse
o doente é, pois, o untador (na Itália, em tempos idos, a tendência natural, e não um compromisso, um esforço
o untador era acusado de propagar contágio por meio de de certa forma contra a natureza, essa ocupação não se
unturas), o contaminado que ameaça contagiar, não só teria tornado instrumento para a conquista de méritos
no sentido de que, exibindo o seu mal, induz os outros espirituais. A doença se torna advertência; o doente
a evitá-lo, mas também em sentido mais profundo, que concretiza o perigo que potencialmente pesa sobre cada
é aquele que alimenta o romance de Bufalino: a doença um de nós. Por isso a configuração psicológica de quem
induz o doente a propor a si mesmo perguntas extremas, decide dedicar-se a cuidar dos enfermos deveria atrair a
radicais, sobre o significado da existência; e isso é sentido nossa curiosidade.
pelos que estão ao lado do doente como perigo ainda maior Dissemos que o cristianismo exprime realidade
de "infecção". A sua proximidade da morte inquieta, o seu psicológica que aflora sempre que somos atingidos por
jogo é com a morte. algum mal; não podemos deixar de sentir-nos culpados
Reduzindo a doença à punição divina, o cristianismo e de ler o sinal de nêmese divina em todo acontecimento
exprime realidade psicológica muito profunda, porque a doloroso. Trata-se de preconceito muito difundido no
doença é vivida sempre, ao menos inicialmente, à luz da passado e ainda presente na mentalidade popular. No
dinâmica persecutória. Sentimo-nos indefesos, porque Antigo Testamento, Deus quis as "pragas do Egito", e,
194 195
nas concepções que admitem a metempsicose, a doença é o sinal de alarme que o corpo nos envia por meio de sua
o tributo, a expiação que testemunha uma culpa passada. doença não só não pode e não deve deixar de ser ouvi,?-o
No livro de Jó, o profeta pede a Deus explicação do que lhe (vem-me à mente o início de um excelente filme frances,
está acontecendo: por que justamente eu? Essa sensação no qual um médico é esbofeteado depois de diagnosticar
de estar "na mira de Deus" induz na "vítima" um senti- um tumor), como também seria bom que o interpretás-
mento de culpa tão opressivo que ela sente necessidade semos e aprofundássemos em seus vários níveis e em
desesperada da solidariedade dos outros, solidariedade todas as suas implicações. Ai de quem considera a doença
que em geral lhe é negada, porque as projeções que o unicamente como fato somático: há alguma coisa que
doente atrai sobre si parecem muito inquietantes. O cor- entrou em crise, e essa é a ocasião certa para se lan?ar
po que adoece "sai do silêncio". O corpo que adoece nos um pouco de luz sobre a relação complexa que nos lIga
faz sentir fortemente sua presença, presença que antes ao nosso corpo. Como descobrimos o corpo só quando nos
notávamos só incidentalmente, quando nos murmurava incomoda, assim descobrimos a consciência só quando o
que tinha sede, fome ou necessidade de repouso. O corpo, inconsciente usa estratégias comunicativas tão extremas.
que realizava diligentemente seu trabalho, sem exigir a Não nos esqueçamos de que a linguagem do corpo é mo-
nossa atenção, agora se apresenta como turba amotinada. dalidade primária, pré-verbal, de comunicação, dotada
O pacto implícito, a expectativa nunca discutida é que de fortíssimo poder coercitivo sobre o outro, o qual, nessa
o corpo esteja ao nosso serviço, mas, psicologicamente, altura, não pode ignorar a mensagem. Psicologicamente,
atrás dessa convicção devemos ler a pretensão do eu de a somatização da doença é consequência da perda de
monopolizar toda a personalidade ou, ao menos, de man- contato com o conflito patogênico, cujo acesso à consciên-
ter sob controle também seus aspectos menos evoluídos. cia foi impedido. A primeira pergunta que um analista
Mas em certo ponto o corpo já não responde e desmente se faz quando a pessoa adoece é: o que lhe sucedeu para
esse pretensão irrealista. Aquele mecanismo perfeito está chegar a adoecer. É pergunta pertinente, porque se deve
travado; eis então os mitos do elixir de longa vida, da pe- sempre procurar saber qual é a função da doença, sob
dra filosofal etc., para se poder imaginar uma juventude o perfil psíquico. O corpo é espião da psique, mas a sua
sem fim. linguagem deve ser "reconvertida", traduzida de novo
Por que pensamos que devemos pedir explicação do nos termos dos conflitos psíquicos que não fomos capazes
mal? A qual figura da cena psíquica devemos referir o de resolver. A doença psicossomática aparece quando o
sentimento de culpa? Provavelmente à mensagem que nosso nível psicológico é muito pouco evoluído, não tem
toda doença veicula para o indivíduo que é atingido por força para exprimir-se em termos simbólicos e atinge o
ela. De certa forma, sem dúvida inconsciente, ele escolheu nível mais fraco, o corpóreo. Que pareça estranho, mas,
carregar o inimigo dentro de si, em vez de procurá-lo fora, de fato o mal nos acusa, sempre.
como sucede na maioria dos casos. O órgão doente noS É ~abido que os estados depressivos produzem enfra-
põe, quem sabe pela primeira vez, diante do "persegui- quecimento do sistema imunológico e expõem o indivíduo
dor" mais devastador, digamos também, junto com seu a infecções, às quais em outra circunstância ele teria
"progenitor": aquele que hospedamos dentro de nós. Mas facilmente resistido. As pessoas selecionadas para uma
197
196
missão particular são escolhidas entre as que nunca ado-
ecem,justamente porque têm uma compleição psicológica 18
que as impede de adoecer. Quem nunca adoece tem um
nível psicológico muito elevado, porque consegue tradu_ A MORTE PROCURADA
zir simbolicamente os estados internos sem "mostrá-los"
externamente, para usarmos expressão técnica. Quando
se emprega a linguagem do corpo, isso significa que a
nossa capacidade de enfrentar os con:f:l.itos é mais primi- Quando o Senhor, levantando ao céu os braços descarna-
tiva. Então o mal nos acusa, mas nos permite, ao mesmo dos" das como fazem os poetas,
tempo, acusar os outros, canalizando uma agressividade ~~~:~:~~::;~~:rdido ~m Si~êngrCaI'~:s ~or,
. I t 'd pelos amigos m ,
dirigida para si próprio e para os outros. Quando alguém E se JU gou rru o I e embaixo esperavam
Voltou-se para aque es qu. fi tas
adoece na família, a sua condição representa uma censura
Sonhando-se ~oberanost s~I~~:rr~r::. so~·~ animal,
tácita a todos; o doente se torna o portador do sintoma, Mas entorpecIdos, pros ra _ . t I"
aquele que inconscientemente se encarrega de exprimir .
E se pôs a gritar: "N-ao, Deus
. nao eXIS
'd de.?
. "Am'
.Ig~S, fronte contra a abóbada eterna;
OUVistes a noUl a e.
e, ao mesmo tempo, de manter o equilíbrio patológico da Dormiam.
família. A nossa vida é uma parábola que tem seu termo. Chocou-se a ~m a flito e or quantos dias!
Eu sangro, dIlacerado, a . Abis~o! abismo! abismo!
A trágica realidade é que o corpo deve ceder à doença. Irmãos eu vos enganava. 'fi .
- eXiste
N ao ? d eus no a ltar do , meu sacn
I" CIO ...
Essa realidade é simbolizada pelas imagens que retra- Deus não existe! Deus. est~ morto.
tam pessoas lendo com uma caveira na mão, indicando Mas continuava dormmdo ....
a dramática inseparabilidade e a inelutável Co-presença (Gérard de Nerval, Quimera, p. 43)
do projeto e do seu limite.
. . d·víduopercebe ae:lugencla
sumir que, nesses casos, entra muito intensamente em Se, por vontade do ~es~lUo, o lU 1 f: zê-lo essa atitude
jogo uma aversão radical ao processo de alargamento da de conhecer a si propno e se recusa a ~ ,
negativa pode causar-lhe a morte rea .
própria consciência. Essa aversão - que equivale a uma
traição entendida na acepção etimológica de entregar as . . t mbém uma escolha
promessas da própria anima ao lugar da indiferenciação Escolher crescer implIca, pOIS, a escolher
- poderia explicar-se como ditada pelo terror de enfrentar de morte, u~ gesto sui~id~ si~~~l~: !:=;:':~bretudo,
a passagem iniciática para um modo de existir diferente, crescer, queIra-se ou nao, Imp t 'de fantasias de
passagem essa que equivale a uma morte. Trata-se de um matar-se. De modo análogo, a raves à mente cons-
um processo que os alquimistas reconheceram quando suicídio pode progressivamente revelar-~~ ue a dor da
falaram de distractio e de "morte voluntária". Por que não ciente uma. tensão pa;-a la Itransf;~::~nis~a rebelde em
poderíamos reconhecer de outro modo nossas projeções? alma torna Improrrogave . sao, p
')11;
214
Cavalos em liberdad d M· h·
tantas vezes imagin:d e IS Ima, chega ao gesto suicida espelhos e no pedido incessante de sermos refletidos e,
sob um pinheiro nas o como momento sublime, "sentad~ assim, reconhecidos.
depois de ter te~tado =rgens do mar, ao nascer do sol", A ideia de suicídio alude à transformação, mas é claro
cassado O· d golpe de Estado terrorista fra- que quanto mais radical é a mudança que se projeta tanto
. Insucesso e sua A • d t
revela o drama de um destin=a t e dra:sformação social mais será ela vista como perigosa, e então a concretização
elO gesto suicida representa seu e;íl:~o°co::;:~s~::aç:o, do impulso suicida, a sua interpretação literal, pode pare-
p ano, também Van Go h t ' . ou ro cer a mais apta para resolver o conflito. Nesse ponto somos
tica, tentou realizar Si!b~~c~::~~: :ua ~arábola artís- traídos pela vida, que nos entrega à morte, mas, parado-
do eu que suas cores . ssa ransmutação xalmente, também nós cometemos uma traição, porque
tela, mas sem consegu:~~o~s e magníficas projetavam na o impulso para matar-se não implica necessariamente a
Traição e suicídio est - .d sua realização, e sim a compreensão de seu significado.
literalista no qual pode ca~~ um os ~elo mesmo equívoco Como maus tradutores, não apreendemos o sentido do
dade da existência com olharq:~~ ~~o olha para a reali- impulso, portanto, o sentido da "palavra", e a entendemos
de transcender o dado factual o ~o: com olhar capaz mal. Isto é, traímos o "pensamento do autor".
iniciática e salvífica Rece t ,parta a ~Ir-se a uma morte A teologia sempre soube que o suicídio e a morte são
, . . n emen e a Imprensa t··
a sene de suicídios que .d . . no IClOU a primeira perturbação da alma. E a morte - também
tal certamente só na a ~~~m~ epI emI.a Imprevista, mas isso já vimos - pode representar a figura através da
na~ cidades de provín!a d~~~~::~:d~~á~~mas peque- qual a alma nos fala. Se é verdade que o nascimento da
maIS que adolescentes que não tinham en ,~ra~ pouco individualidade se serve de uma experiência de possível
modo de resgatar-se de um "mal d . "co~ r~ o outro suicídio, e que escolhemos a vida quando poderíamos es-
irreconhecível aos outro e VIver sutIl e Invisível, colher a morte, então, no caminho que nos conduz a nos
s.
tornarmos nós mesmos, vamos construindo a nossa "nave
O único horror é o de não servir, de morte". Como diz a filosofia, ir conscientemente para
a morte significa construir o vaso melhor. Para Platão,
escrevia Yourcenar (1957 p 28) E - . como sabemos, o exercício da filosofia equivale em tudo
e para ninguém· ·fi , . . . nao servIr para nada
que não reflete n:~~~: :~:tIr a ~xistência como espelho
a prepararar-se para morte. O céptico Montaigne não
pensava de outro modo. Jung, de seu lado, sustentou
~~ ~~::';!:~;~:':~:~:~~d; :~:::: ~:~Z:l::~~e~ em sua autobiografia que, se a vida continua de fato no
além, a sua continuação só pode ser pensada como "psí-
mande de volta a nossa ima· e Imos ao mundo que nos
quica". Isso implica, segundo Jung, que a vida no "além"
numa espécie de insondável gem, e pare~e que o mundo,
dos tempos d· .
A
c?mplo arqUltetado na noite pode ser representada só "como progredir no mundo das
, ISsIpa-a nos mIl b imagens". É, pois, a alma que mora no além ou na terra
cotidianos. No fundo pod . urd~cos negros dos atos
, er-se-Ia Izer o h dos mortos. Se, pois, "inconsciente" e "terra dos mortos"
persegue na vida se cons ' son o que se
uma na procura de possíveis testemunham horizontes semelhantes de um sentido pos-
sível, o reconhecimento e o acompanhamento das imagens
216
217
realizados em vida nos
e para a assa e preparam, de fato, para a morte e encontraram a morte atirando-se contra as cercas de
376-77) E P g m p~ra alem do limiar (Jung 1961 pp
. por essa VIa Jung " . arame farpado ligadas a alta tensão, para livrarem-se de
pelas nossas alusões ' como se pode compreender um sofrimento insuportável, mas também como a única
de Platã E ' recupera, transavaliando_a, a lição possibilidade restante de afirmação do eu. A tentação
o. xasperando essas p .-
que cada um emb· . OSIçoes, podemos afirmar suicida se faz premente quando percebemos a gratuidade
, ora mconsclenteme t
t'
para entrar na morte. A escolha d n, :s~o ,e su~ via
menos evidente. O insucesso de u o me ~ o e s~ maIS ou
lh
absoluta de nossa dor, como se ela tivesse perdido todo
significado, como se não fosse compensada por nada. Po-
o único que dá sent·d m prOjeto eXIstencial demos resistir à tortura quando, por exemplo, trocamos
. . I o ao nosso prese t dI'
SUIcídIO; de fato enquant . n e, po e evar ao nosso silêncio pela salvação de um amigo, da mulher que
d
e nada impede nosso o s.omos proJetados para a frente
creSCImento enquant t d·
amamos etc.; mas não resistimos quando o sofrimento
te de nós esse f:acho d I ' o emos é destituído de sentido. Pensemos no suicídio de quem
e uz que nos ab . h Ian-
m
sentimos em contínua ex ansã r~ o .cam o e nos não conseguiu suportar a ausência decorrente de luto
em nosso pensamento. ela~he o, essda IdeIa não aparece ou de separação: a falta de relação com o próprio mundo
q ue não pode .' ga quan o o homem percebe interno fez com que fosse delegado ao outro o sentido da
maIS crescer A pr . t b T d
o horizonte subjetivo de s~ntidoo~e a I I ~de representa identidade própria, em uma medida que vai muito além
acontecimentos do pr t o qual mscrevemos os das confirmações que cada um espera legitimamente de
esen e e sobret d
fiamos a vitalI·dade d d' . u o, ao qual con- uma relação. Nesses casos, o trabalho psicológico, ainda
e nossa 1m - d ·d
projeto no qual cada um d ' ensao eSI erante. O que não profissional, pode ajudar muito, porque nessa
mais alta espiritualidade e nos se recon~ece pode ir da
existência mas isso - tos asp~ct~s maIS materiais da
o "dentro" 'e o "fora" ~a;e em ~UIt.a Importância porque
procura do sentido perdido podemos ser ajudados por um
amigo ou também, aos que têm "fé", por um sacerdote. A
força do homem que tem "fê" está justamente em ter um
possiblidades de carreira ~~s com~Idem. Por exemplo, as sistema de compreensão do mundo que não deixa vazios
traduzem esse desejo de ~ se_o erece~ na vida adulta perigosos, ejá vimos que todos os sistemas religiosos nas-
através delas o indivíduopsr:J:~::e ~o hOJ.~ no amanhã, e cem em resposta a questões fundamentais da existência
que o levda adiante, que o faz sentir-~:~::' cOa~:h~~ceNsso humana. Antes, a própria elaboração de uma dimensão
campos e concentra ão _ . . os religiosa poderia ser lida como estratégia evolutiva capaz
psicologia muitas ve~es faz :~~eq~aI~ quem se ocupa de de garantir sobrevivência mais longa.
de verdadeiras e próp· as .t ~encla, porque se trata O sofrimento que leva ao suicídio pode, pois, nascer
das possibilidades de srolb s~ ~aç?es extremas, no limite do despertar da alma, procurando um sentido em altas
reVlvenCla . 'do
cionado expressament I - o SUICI 10 era men- vozes; como já disse, a ideia do suicídio, ou o ato verdadeiro
e nos regu amentos t e próprio, não se manifesta nunca como acontecimento
strengstens verboten (" . .. en re os atos
os nazistas sabiam ber:lg~:~s::=Ima~~~te proibidos"); e imprevisto, mas como culminação de um percurso interior
propriação definitiva da i~entidadP~Olblç.a? m~rcava a ex- que, em muitos casos, é mantido em segredo. A fantasia do
célebres as fotografias d .. e .0 pnsIOnelro; ficaram suicídio oculta o desejo de realidade e de existência mais
e pnSIOnelros que procuraram plena, as quais a natureza, depois de havê-las prometido,
218
219
perspectivas para nós, é como se já nos tivéssemo~ s':,i-
impiedos~~en~e as negou. Toda traição, dizíamos, é vivi- cidado. Considere-se ainda quão desesperador sera nao
~a com? mJustIça, mas essa injustiça é intolerável. Tão encontrar afetos interesses, pequenos e grandes acon-
mtolera~el que, naquele que a sofreu, começa a surgir tecimentos do c~tidiano não só no presente, mas ainda
a nec~ssIdade paradoxal, mas tranquilizadora, de tê-la nem na espera confiante de alguma coisa que possa ser
mere~Ido, de fazer a prestação de contas dar certo. Pulsa conquistada. É a alma desesperada que invoca a morte, é a
em nos essa necessidade inextinguível, tão irracional alma desesperada que se dá a morte. Quando, como sucede
mas, ao mesmo tempo, tão tipicamente "racional" d~ atualmente, algum de meus pacientes ~ontrai a Aids, o
dar sentido "ético" a tudo, até às catástrofes naturai~ às psicanalista se vê diante de problemas ImensoS, porque
"pragas" bíblicas. Analogamente criticava Voltaire 'em a pessoa (geralmente jovem, à diferença ~os d?entes de
s~u Cândido, a ideia leibniziana de que o homem estaria tumor) é condenada à morte quando a VIda amda deve
vI:e~do no ~elhor dos mundos, e contra essa afirmação desenvolver-se, quando a vida está adiante, e não ~t~ás.
otImIst~ fazIa valer, entre outros, a catástrofe do terremo- Então é como se a fantasia da própria morte permItIsse
to de LIsboa. Assim acabam?s aceitando a ideia de que, uma transformação, ainda que de forma alucinatóri~. N es-
no. fun~o, m~recemos tambem essa traição, por culpas
A
se contexto, o suicídio quer somente dizer: "Não ace.Ito qu~
cUJa e:~lstencIa talvez nem conheçamos. toda uma vida, que ainda devo viver, possa termmar. A
DIante da pessoa que quer suicidar-se é necessário traição da vida oponho ao menos minha vontade desespe-
~omp~eender qual é su~ relação com a realidade e qual rada". A ideia da morte deve pressupor uma elaboração e
e a vIda que ela quererIa, mas não consegue ter . Jung um distanciamento do passado. Se não o metabolizarmos,
~or exemplo, conta nas Memórias (1961) o difícil trajet~ ele nos anula e os nossos ombros se curvarão sob o seu
a procura de um sentido individual da vida, e liga os mo- peso, tanto m~ior quanto mais improd~tivo ele ~iver sido.
mentos mais sombrios de sua luta à falta de compreensão É como se guardássemos em casa obJetos mUlto velhos
dos sonhos. Uma voz dentro dele dizia: "Deves compreen- e inúteis; aos poucos o espaço estará cheio e não poder.á
der o sonho e deves compreendê-lo logo" (p. 208). A voz se receber mais nada de novo. O suicídio é a última ratw
tornou cada vez mais insistente e feroz, até exprimir-se ("razão") que temos, não tendo nunca tido a coragem de
dest~ modo: "Se não o compreendes, deves dar um tiro metabolizar o passado, a fim de olharmos para a frente,
em tI mesmo": Pode-se intuir que o suicídio seja visto em vez de voltarmos ao que poderíamos ou deveríamos
como perspectIva convidativa como via de saída como ter feito. Nisto deveria consistir nossa higiene mental, a
" ~oI uçao
-" no momen~o em que' nos sentimos paralisados,
saber, em evitar que o passado nos anule. Temos duas
dH~nte de ~m dever. E como se repentinamente tivéssemos possibilidades: viver ou morrer, e entre elas deve~o~ es-
caldo na s~tuação de deficientes e não pudéssemos mais colher em perfeita solidão. Metabolizar o passado sIgmfic~
corr:er, fUgI:, ,agarrar alguma coisa para nos defendermos. aceitar morrer continuamente, por exemplo, nas experI-
A VIda esta a nossa frente, depois de nos haver privado ências de amor, que, se necessário, devemos deixar para
de ~o_ssas possibilidad~s ,de enfrentá-la. Essa é a grande trás a fim de abrir-nos para o novO. A força criadora mata
tralçao da natureza. DIrIamOS então que a vida nos trai ao ;roduzir o novO; para nascer, o futuro deve livrar-se
quando nos priva de toda perspectiva. Se não existem 221
220
do passado. Posso estar desesperado, sentindo que não 20
vivo mais, e somatizar o meu estado de privação. Nesses
momentos de sofrimento - bastaria pensar em certas
A MORTE DESEJADA
doenças - a ideia do suicídio se torna dominante, porque
à negação do meu desenvolvimento liga-se o sofrimento
físico. Nesses casos, a ideia de traição está definitivamen- 's do que na morte devemos seguir a inspiração
Emnad amaI
te concretizada em meu corpo. Nessa altura, a ideia do de nossa alma.
suicídio parece ser a única possibilidade que nos resta, e (Sêneea, Cartas a Lucílio 70.12, p. 449)
é difícil propor esse ato como dimensão simbólica. Nesses
contextos, é só uma atitude religiosa que pode, talvez, ser
a melhor solução, porque, onde não há esperança e não se
vê o sentido das coisas, a alma "naturalmente religiosa"
percebe a presença de Deus.
Morrer é uma espécie de desafio cotidiano. Também
as células se regeneram continuamente, morrendo. Po- . nao escre-
A naorte é a últinaa traição; por ISSO, co
deríamos então dizer que quem nunca teve a ideia de " r ta não pode proceder sena unaa
suicídio nunca enfrentou corajosamente a própria vida, veu Hillman, o a~a~~llman 1964 a, p. 46). O analista
aceitando a ideia de transformação. A resposta ao desejo filoso-fia da morte (1 'filosofia da morte, é certo,
suicida consiste em se ouvir a voz da alma: ela fala quando não pode proceder sena u~ta . . a" o "outro" e "trairia" a
. fizesse ralrl ,
as satisfações da vida desaparecem, e a natureza mostra porque, se aSSIm , t é lugar inacessível a
. , ' . ão obstante, a naor e .
finalmente seu rosto severo de madrasta. A sua crueldade SI proprlO, n d" - rada" da experiênCIa, lugar,
quer "entregar-nos" à morte, e o suicídio é o qUe sela a decifra~ão, lugar ~llna~ ~~ "incurável desvio". Trate-
sua traição. Mas, nesse ponto, também nós nos arrisca- conao dIsse Baud rl ar, 1 te de alguéna ou do
mos a não "revelar" o sentido de nosso gesto, a saber, se do sofrimento cau~ado p~ a :'~:cipado pela tristeza
quando privamos daquela voz o movimento interior de t
pensanaento da próprla mor e querido' trate-se ainda
causada pela perda de um ende dor da'fraqueza ou da
transformação, que não devemos sufocar, matando-nos, . ~ . da doença ou a , .
mas favorecer. da experlenCla . to das forças Vl-
- d inevitável enfraqueclmen
percepçao o d l'd- u da tristeza por causa
. t fim a so 1 ao o
taIS; tra e-se, en , . , ' o dl'scurso sobre a morte
. 1 u imagmarlO
de msucesso rea o ~' .t refratário, como que
e sobre o morrer se torna rare elO, .' - o ual
. '1 ~ .o O horizonte de hmlÍaçao, n q
encolhIdo no SI encl ' . _ sombra de naorte a
. 't se lmpoe como
estamos lnSCrl os, d' os' e nunca conao em
tudo o que realizamos ou eseJana., naedo e até a
, oca o homem tentou exorCIzar o ,
nossa ep
223
222
ideia da morte através da corrid
superprodução ou do m 't d a desenfreada para a A traição de si mesmo representa a morte da alma;
tudo do emprego vertigi~~so °d~~ogresso, a~rav_és sobre- e a depressão, com seus tristes corolários, é uma morte
se precipitassem em seu ab' empo, na Ilusao de que vivida, ou melhor, a incapacidade de sentir a morte de
e seus obscuros avisos A teIStmOt' suads ima~ens funestas outro modo senão como anulação, desintegração, perda
, n a Iva e traIr a m t d radical de significado, É a escuridão na qual se cai; muitas
remover sua presença atrav' d ' or e, e
mais que destituí-la de od:; OS,rItos da modernidade, vezes a pessoa deprimida descreve seu estado como um
Sua sombra d d P , agIgantou temivelmente "estar morta"; sua linguagem, como diz Kristeva, exprime
, e mo o que se de um I d
elixires de longa vida e t:,
r
a o, pro Iferam os o desmoronar de todo sentido, o realizar-se da insignifi-
estético que parecem dast ecmcas de aperfeiçoamento cância, do vazio, do nada: "o melancólico é um estranho
" e er o tempo t
nmguém escapa ao ' A' ' por ou ro lado em sua língua" CKristeva, 1987, p, 52),
perIgo atomIco de d "
total e fulgurante O f: t ' uma estrUlção Entre suas infinitas possibilidades, o homem possui
, a o e que parece im 'I '
morte sem trair-se a si ró ri _ , pOSSlVe traIr a também a de responder à dificuldade e ao mal-estar com a
o nosso tempo pSíquic~ c:m ~unao so p~rque ela esconde traição, entregando-se a uma longa noite lúcida e tediosa,
filtradas através da perda d as contmuas presenças, Não se pode emitir nenhum juízo moral sobre as escolhas
da morte de nossos am e Pdessoas que nos são caras, individuais de vida ou de morte, já que conhecemos bem
ores e a doença t b'
porque a morte significa a " , ,mas am em a complexidade da alma para não encerrá-la nos limites
existência não se realiza e PossIb~hdade de que a nossa estreitos de uma opinião, Em todo caso, a escolha da
dA' anuncIa a ameaça d d
a ausenCIa de significad d o na a e profissão analítica, que encarna e manifesta uma paixão
sent~do, morte e traição sOe e:::~o ser no ~undo: Nesse pelas vozes dolentes da alma, nos sustenta para termos
sentIdo que uma aborda e~ a~ maos, e e nesse sempre confiança nas potencialidades autorregeneradoras
da teologia cristã e de gem ~erbmeneutIca menos literal da psique e para manifestarmos nossa preferência pela
sua
dadeiro triunfo da mort ~I~ ,ologia mostraria o ver- coragem do risco: quem não aceita o risco da vida prepara
e nao Ja e - ,
de destruição da matéri~ t nba? so em seu poder o próprio fracasso, e uma existência falha é uma traição
"vocação" de cada ,mas ~m em no malogro da infinita, Vem-me à mente a famosa Antologia de Spoon
tencial A v't" dum, na anulaçao de seu projeto exis- River de E. Lee Masters: coletânea poética de retratos
, I OrIa a morte se in ' ,
de nosso presente quand _ smu~ nos mterstícios existenciais, ideada na forma de breves comunicações de
ter consciência dele qua~~a~ c~nseguImos dominá-lo e mortos, as quais traçam - através de suas recordações,
sos, como escreve a p' o t' o e e ~ que guia nossos pas- das histórias de sua juventude e de suas tristezas - o
,
CP oeslaS, e Isa amerIcana Em 'I D' k'
vol. 2, p, 285): I y IC mson drama dos destinos "traídos", Na série dos retratos dessas
personagens incompreendidas ou, por sua vez, incapazes
Andamos 'por todos os lugares de compreender a vida, o de George Gray combina bem
P el?s quaIS ela passou _
AssIm vão aqueles com o nosso discurso (Masters, 1914, p, 67):
Aos quais ?ão resta senão prOCurar Muitas vezes estudei
Bens perdIdos _
a lápide que esculpiram para mim:
224 uma barca com velas amainadas, em um porto,
225
Na realidade, essa não é a minha destinação tino de crescimento, escreverá ela em Para uma moral
mas a minha vida. da ambiguidade (Francis-Goutier, 1985, p. 377):
Porque o amor se me ofereceu,
e eu me retraí do seu engano; AB palavras vitória, sabedoria e alegria têm significado
a dor bateu à minha porta, e eu tive medo; somente porque existem perigos autênticos, fracassos
a ambição me chamou, mas eu temi os imprevistos. autênticos e condenação terrestre autêntica.
Malgrado tudo, eu tinha fome de significado na vida.
E agora sei que devo içar as velas Toda experiência ligada a acontecimentos dolorosos
e tomar os ventos do destino, comporta sempre a contração e a crise do espaço vital do
seja para onde for que levem a barca.
Dar sentido à vida pode levar à loucura, sujeito, a redução do discurso ao silêncio, ao pranto, à do-
mas uma vida sem sentido é a tortura ença. Escreve M. Yourcenar emAs memórias de Adriano
da inquietação e do vão desejo - (Yourcenar, 1951, pp. 537-38):
é uma barca que anela o mar mas o teme.
A meditação sobre a morte não ensina a morrer; não torna
o fim mais fácil, mas não é isso que procuro ... Pode ser (. .. )
Simone de Beauvoir recordará muitas vezes, em que a morte seja feita da mesma ~atéri~ informe ~ue ~
seus escritos autobiográficos, a enorme e negativa influ- vida. Mas todas as teorias sobre a ImortalIdade me mspI-
ência exercida em sua sensibilidade de adolescente pela ram desconfiança; o sistema das retribuições e das ~enas
"traição" paterna; profundamente decepcionado com a deixa frio um juiz consciente das dificuldades de umJuÍzo.
Por outro lado, sucede-me também achar muito banal a
vida e em desastrosas condições econômicas, seu pai se solução oposta, o puro nada, o vazio ~n.de ressoa ~ risada
irritava com ela, sublinhando seus modos desajeitados e de Epicuro. Observo o meu fim: essa sene de expenmentos
sua suposta feiura e fazendo-a sentir-se em dissonância feitos em mim mesmo continua o longo estudo iniciado na
consigo própria e com os outros. A escritora recordará clínica de Sátiro. Até agora são mudanças externas ... sou
que, na idade em que as jovens sonham com corpo de o que eu era, morro sem mudar-me.
mulher e com os primeiros e intensos amores, ouvia
muitas vezes o pai dizer-lhe: "Simone é um homem!" Só a poesia, talvez, consiga encontrar as palavras
Não é necessário imaginar o quanto pode tê-la marcado certas para exprimir, sem que se percam irremediavel-
essa negação de suas instâncias mais próprias e femini- mente, certas ressonâncias e sugestões.
nas. Ela própria enumera a longa série de sintomas, de Quando se fala de morte, só se pode falar da de
distúrbios psicossomáticos, de verdadeiras fobias e de outro, porque a ninguém é possível falar da própria
tiques que encheram aquele período crítico de sua vida. morte como a niguém é possível falar de seu nascimen-
Ela se entregava a cismas e fantasias para compensar a to·, assim , esses dois extremos, nascimento e morte, que
opressão do presente, e foi nesse período que se firmou enquadram a nossa vida, paradoxalmente correspondem
claramente sua vocação de escritora como possibilidade também a condições fundantes, das quais não podemos
de resgate e de emancipação de sua condição. Mais tarde, ter consciência. Apesar disso, de certa forma também a
na idade em que se examina o passado e se consegue ler nossa morte nos é familiar, é "de casa", acompanha-nos
em suas traições um caminho obscuro para o próprio des- como a sombra ou como o anjo da guarda da infância e
227
226
assoma inesperada e indesejada em nossos pensamentos. de longo fôlego é que a nossa consciência poderá expandir-
Escreve Ungaretti (1932, p. 131): -se livremente. E é nisso, talvez, nessa livre expansão
Ó irmã da sombra, da consciência, que reside o destino mais autêntico de
Noturna quanto mais força tem a luz um homem. Mas, embora essa amplidão nos tranquilize,
Persegue-me, o' morte. '
fazendo-nos entrever horizontes muito mais vastos do que
Num jardim puro o nosso estreito panorama cotidiano, não podemos deixar
Aluz te deu a ingênua brama de perceber de quando em quando uma ameaça suspensa
E a paz foi perdida,
Pensativa morte, sobre nós, ou melhor, embaixo de nós, como um prejuízo,
Em tua boca. um abismo para o qual não olhamos, a fim de não termos
vertigens. Sabemos, aliás, que cedo ou tarde esse "sem
Desde aquele momento
Ouço-te no fluir da mente fundo" nos engolirá. Não obstante, seremos obrigados a
Aprofundar distâncias olhar para ele, para esse abismo, não só todas as vezes que
Êmula padecente do eterno. nos embatermos na morte de uma pessoa que nos é cara,
Mãe venenosa dos tempos mas também todas as vezes que sentirmos a irremediável
No medo da palpitação distância de uma pessoa amada, a distância sideral que
E da solidão, nos separa de toda outra criatura e que nem o amor con-
Beleza punida e risonha, segue preencher. Escreveu Bousquet (1941, p. 122):
No adormecer da carne
Sonhadora fugidia, A morte é a solidão das pessoas amadas, uma névoa em
torno delas que nenhuma palavra terna pode atravessar.
Quando me tiveres domado, dize-me: A morte é a dor e o desespero nas mesmas palavras que
Na melancolia dos vivos foram a embriaguez da felicidade. A morte são os prantos
Voará longe a minha sombra? que irrompem quando se ouve uma palavra que significava
amor.
A morte nega, pois, a existência, impondo-lhe sim-
plesmente um limite. No plano da vida cotidiana essa A morte se nos mostra na impossibilidade de dissipar
negação significa que todo projeto pode ser invalidado e essa névoa ou de atravessá-la para chegarmos a quem
que toda esperança pode ser frustrada; é como se o sentido amamos. Ela nos surpreende no auge do amor, quando
de nosso agir fosse posto continuamente em discussão e uma palavra que nascia de intenção bem diferente tem
como se o valor que lhe atribuímos fosse redimensionado ressonâncias inquietantes de memento mo ri ("lembra-te
drasticamente à luz de sua precariedade. Embora desde da morte"). Em célebre farsa do teatro de fantoches, Pul-
o fim da infância nos tenha sido instilado o conceito da cinela, no clou de um tarantela alegre, encontra em seus
caducidade dos bens terrenos, cada um de nós cultiva braços como "dama" a Morte encapuzada. A morte nos
a~gum projeto de "longa duração", esquecendo-se ou fin- aflora todos os dias nos abandonos que sofremos ou pra-
gI~do esquecer-se daquele "limite"; e é bom que assim ticamos e se insinua, silenciosa, mas não menos atenta,
seJa, porque só se nos concedermos uma projetabilidade em nossos momentos felizes para estragar a festa. Se con-
228
seguíssemos, não sei por quais exorcismos ou lobotomias , concebível e, portanto, inexistente. O inconsciente, como
manter seu fantasma sempre afastado, apesar diso, sería- já vimos, não conhece o "n~o", e ~or i~so não t~m como
mos obrigados a acolher o pensamento tremendo da morte negar o fluir indiferente da VIda. Nmguem, especIalmente
no dia em que ela levar uma pessoa que amamos. Com se tiver uma consciência pouco diferenciada, convive com
efeito, a nossa única "experiência" da morte é a de uma a ideia da morte; ao contrário, está inconscientemente
morte da qual sejamos espectadores, a da morte de outra convencido de ter assinado um pacto de imortalidade,
criatura humana. A nossa experiência da morte consiste sem o qual não teria sentido falar de traição. Outra ca-
em assistirmos, impotentes, à progressiva e definitiva racterística da dor causada pela perda da pessoa amada
redução do espaço vital do outro, o qual, de companheiro é que, por algum tempo, ela impede qualquer relaç,ão com
de vida, se torna fantasma. A vida é expansão progressiva, os outros a não ser que seja puramente formal. E o que
a morte é a sua sufocação; assistir a essa síncope mais comume~te indicamos quando dizemos que alguém "se
ou menos anunciada na vida de quem amamos gera um fechou em si mesmo". Mas a necessidade de uma vida de
fantasma que não abandonará mais a nossa vida. Nunca relação é irrenunciável, uma vez que cada um nasce pedin-
mais seremos abandonados por essa experiência, porque do relações e sobrevive somente obtendo-as; toda a nossa
ninguém poderá dar-nos de volta tudo o que pusemos na vida psíquica se baseia no fato de que temos determinados
mulher amada. Seus abraços, seus beijos, a volúpia que pais e vivemos em ambiente humano, no qual aos poucos
aquele corpo nos deu e ao qual demos tanto ... num sopro, foi modelada a nossa dimensão emotiva e afetiva. Essas
num momento, tudo desapareceu. Talvez esse aconteci- relações são os nossoS "depositários" e os nossOS espelhos,
mento seja pior do que o que aconteceu com JÓ. Diante tão indispensáveis para o equilíbrio psíquico que aquele
de nós, órfãos da mulher amada, só desejamos o silêncio que não as tem é obrigado a refugiar-se na lou.cura, a
e o esquecimento. construir para si um interlocutor interno e a OUVIr vozes
A morte do outro significa a identificação imediata de dentro. Através das relações com os nossos semelhentes
com um destino que é também o nosso (Antonelli, 1981, conseguimos "conter" a nossa condição incómoda; quando,
p. 147). No filme dos Taviani, O sol mesmo de noite, duas por alguma razão, elas são interrompidas, ~hegam~s ~o
pessoas anciãs pedem que morram no mesmo momento·, confronto final. Paradoxalmente, nessa cIrcunsta~cIa
esse inciso do filme põe em cena justamente o fantasma extrema, na qual a mentira já não tem nenhum sentIdo,
do qual falamos; duas pessoas que se amaram muito só é pedido a cada um de nós que esteja no máximo de .sua
podem morrer juntas, porque duas pessoas que compar- força; que, talvez pela primeira vez, olhe com lUCIdez
tilharam profundamente do próprio mundo psíquico não para sua vida interior. O paradoxo está, portanto, no fato
podem sobreviver uma à outra. Assim, explicamos alguns de que é nesse momento de grande fraqueza que nos é
suicídios "estranhos" ou algumas mortes em perfeita su- pedido que sejamos fortes. Se o nascimento é movimento
cessão, primeiro ele, depois ela, ou vice-versa, mortes que do interior para o exterior, a morte é cambalhota que nos
podem ser consideradas como formas de suicídio. leva de novo para dentro.
N ada , senão a dimensão do sentimento, poderá .
A verdadeira traição da morte consiste em que ela,
do ponto de vista do inconsciente, parece totalmente in- resgatar-nos; se um Deus tiver de julgar-nos e qUIser
')<:11
230
perdoar-nos, fá-Io-á porque amamos muito, não porque, 21
por exe~plo, p~nsamo.s muito. Talvez esteja aí a origem
d.o conceIto de_Imortahdade a respeito de uma experiên- TRAIÇÃO E LIBERDADE
CIa de desolaçao e de fim. O desespero diante do possível
fim de t?d~ .relação é remediado por uma concepção
~xtraordInarI~ sob o aspecto psicológico, concepção que
e a do re.nasclmento, da ressurreição, da metempsicose. Quem percorrer a estrada que leva à totalidade não poderá
Ela e~~rIme a .luta ~o homem que não se rende à perda escapar àquela suspensão característica que é representada
defimtlva. MUItos sIstemas religiosos e filosóficos teori- pela cruciflxão.
zam ~ existência de um renascimento depois da morte, (Jung, A psicologia da transferência, p. 139)
~sp~cIaln;e~te na forma de ressurreição da alma. A morte
e, SIm, a ultIma traição, a qual encerra a história pessoal
mas .ela ~e d,iferencia das outras por duas características:
A prI~e~ra. e ~~e podemos somente sofrê-la, ao passo que,
n~ ~raIçao InICIal, a do nascimento, podemos também in-
?IVI~Uar um. pa~el ativo, uma traição nossa em relação ,Todo O percurso do livro se desdobra entre dois
a mae" (o prImeIro abandono, o primeiro "voltar-lhe as imensos lugares metafóricos: de fato, o espaço da traição
costas ). A segunda é que parece francamente difícil ver corresponde, por um lado, à experiência "passiva" - por~
nessa traição, com a qual a vida nos liquida uma vez por tanto, espaço de morte - de ser traído, de sofrer o beijo
todas, u~ aspecto ''vital'', "positivo". A não ser que ... de Judas; por outro lado, corresponde à experiência de
A nao ser que no lugar da morte como acidente con- ;;r-'traidor, de atuar uma vontade de transgressão que
creto e conclusivo não tomemos em consideração a ideia não se detém diante de nenhuma proibição, A cena da
d~ morte, a consciência desse limite inevitável de nossa vida vê cada um de nós assumir sucessivamente o papel
VIda. Nesse caso, podemos ser nós os traidores, e então de traído e o de traidor, ou talvez exatamente um e ou-
se toma claro que a morte não pode ser senão a via de tro ao mesmo tempo, de acordo com os deslocamentos de
acesso. a uma experiência de transformação, isto é, de cena no jogo "demoníaco" dos intercâmbios relacionais,
renaSCImento. nosg~_ªis somos simultaneaniEmte vítimas e algozes. É a
complexidade da alma que nos pede confronto contínuo
cõinàs nossas -partes mais recônditas"visto que a nossa
plena humanização comporta a capacidade de estarmo~
em relação com a poliedricidade da psique, a qual pode
espantar e desorientar, e às vezes arrastar. Sofrer uma·
traição significa ser entregue a uma morté dolorosa e
experimentar, na primeira pessoa, as feridas do abando-
no e a perda de toda referência habituar. Mas a psique,
232
em sua .lingua~em simbólica e carregada de imagens, tornando-se, por sua vez, objetos de tra.ição, mas a história
nos ensma a, VIver cada morte como rito de passagem " e'~ s~a fé os recompensaram largamente. ~~~~~_~~02.._~
para novas formas de experiência da existência. Como .
traiç~~é,\lm~ p,~g~S~P.ª9q,1;t~ ~~ste,a fim de que não se
nos recorda Jung, a ampliação da personalidade passa' cri~talize,p~;rçl,~l1<iº .Yiª~>~ sent~,do. Que sentido teria tido
quase sempre por um sacrificium mortal, e a experiênciá j)ãra os nossos progenitores uma vida idílica prolongada,
da traição e do luto pode exercer função transformadora" pela eternidade de um tempo sempre igual, senão o fim
se conseguirmos elaborar sua viv~ncüL A crucifixão d~ do humano em seus albores? Necessariamente não foi
Cristo e, po.rt~nto, sua obra de redenção, como já vimQS" assim. S~ observarmos a criança em seu primeiro ano de
puderam reahzar-se somente por meio da traição de um vida, vê-Ia-emos repercorrendo as etapas antepassadas do
apóstolo. Escreve Jung em A psicologia da transferência' desenvolvimento humano, com aquela curiosidade irre-
(Jung 1946, p. 139):
quieta que se move por entre as coisas, familiarizando-se,
.' Quem p~rcorrer a estrada que leva à totalidade não poderá por meio delas, consigo própria, a fim de ultrapassá-las
escapar aquela suspensão característica que é representada na direção de sempre novas metas, de novos objetos que
pela crucifixão. Com efeito, ele acabará por embater-se abram outros horizontes de conhecimento, abandonando
sem e:ro, .naquilo que lhe corta a estrada, que o cruza;
em pnmeIro lugar, naquilo que ele não quereria ser ... , e traindo o velho jogo pelo novo, as descobertas obsoletas
em segund~ lugar, naquilo que não ele, mas o outro é ... , por. novas mara:ilhas ..~ }IJ?:a 1~};.ªªp~iq!1e. Na lógica d~,~:~
e, em terceiro lugar, naquilo que constitui o seu não-eu traIção f';e expnme,o dÇLJmQn.ç.n~qgr: cl9J19m~m, a sua '
psíquico.
"ânsia de liberdade e de.indixiçluação.
A traição sempre se encontra,..p..ortallJQlnem nosso
t.. T~a:ir' ~~lll~y~!~.tflmº~,!I:l_a, d~~. ~~?~.~~. ~~~~_ª~~ ~!.::t~':-.
.:~se naquilo ..ql.1,El::q~te§, ~r~ a. .pr.:,qp:ri~, :gle:t;l~t:uqe,fl. ~egq:mp: .
c,aminho, e não só para aniqllilar-nps; se ela ,4'§ãestabi- çaFausto chegou a trair a própria alma, entregando-a a
hz.a, é para que se recrie alguma coisa. EsÚ~mQs.. sempre ~Sâtanás, em troca do segredo do conhecimento. Vem-me
~i atIrados na traição. A renovação dQ milagre de um.. eu à mente a trágica história do amor de Orfeu e Eurídice: o
'.f'< ~~ª-esco?~~,~~i.~e~mo - que aconteceasr~esmo '. poeta cantor desce aos Infernos para rever a amada mor-
escrev~ Jung - é I)O~~ível se) equando se'abre'umãbre~-' ta e recebe a permissão de levá-la de volta para a luz da
~h,~~,~,}!!l:~aridade do, seu tempo e na cotidianicl~cl~d~ , vida, com a condição de não voltar-se para vê-la durante
s~~_~_ ~~~~.ç~~: o homem tem riécessidade de' franscender'· todo o percurso que leva do Hades até a terra dos vivos.
seus limites para 'desc'obfifilovas regiões de si pr.óprio.-: Orfeu falha, olhando para trás para ver Eurídice e, com
Freud e Jung, com Galileu, Bacon, Abelardo e Nietzsche' isso, a condena à escuridão da morte. Cada um de nós traz
.
praticaram a grande traição das regras culturais de seu dentro de si a recordação . de uma, ~urídice,entre@e ao ,
tempo, foram transgressores de um sist~~~-'fe~h;dõdê' esquecimento, de uma amizade traída ~JU de um amor que
. saber que não lhes permitia mais nenhunüi'possÜ;Üidade n'os traiu, e talvez em cada um de nós esse acontecimento
de aposta consigo _próprios e sobretúdo de -descoberta de 'SIgnificativo tenha ace~dido um cântico como em Qrfeu"
nõv~~~~r~njo~ dosIrlUnd~s desconheCidos nos quais o ho- o paI da poesia. J oe Bousquet, poeta verdadeiramente
mem fora colocado. Pagarain~essa temeridade audaciosa
" _ .~_ <o_ •• ~. _ • • __ • _ "._., , . • • •> frãídopela existência e entregue à noite perene do corpo,
234 :
/ \
235
conseguiu criar obra maravilhosa a partir dessa traição o paciente a reconhecer em si aquela imagem de "trai-
total e desarmante (Bousquet, 1941, pp. 84-85): dor" que, por causa da distorção projetiva, ele descobre
Vi a v.erdade de perto. Posso dizer que ela veio quebrar-se refi~tidaconstantemente no rosto do Outro: Na verdade,
em mIm, envolvendo num halo curioso o doente que eu sou, além das traições vitais que a vida mesma impõe aos seus
? doente que eu ~e torno. C.. ) Eu sou aquele cuja vida se filhos, a lógica distorcida de nossas coações e de nossas
mten::ompeu ~Ulto cedo e que teve de esforçar-se para inca-pacidades nos imobiliza em situações falimentares
acredItar no mIlagre, a fim de ajudar as coisas a retomar
seu curso normal. (. .. ) e autodestrutivas: somos nós mesmos nossos mais cruéis.
l\c:editei no milagre porq.ue essa crença era a única possi- algozes. Assim o nosso percurso analítico sobre a traição
bIhdade para o meu mstmto de conservação. Ora, parece 'se abre para outro registro"o da traição de si mesmo. O
que essa concepção de fortuna marcou inteiramente a paciente que, na análise, apresenta os sintomas mais
minha vida, como se a forma quimérica que ela assumia diferentes sofre antes de tudo de uma ,traição em relação
para aparecer-me tivesse sido fecundada pelos aconteci-
mentos nos quais ela se fortalecia. ao seu eu mais autêntico. Toda pessoaqiie'sofre'vive di-
C.. ) O destino estava consumado. Não me restava senão laceração interior entre suas instâncias conscientes e um
mant~~ em mim aquela luz que, de dia e de noite, lhe núcleo da personalidade que, bloqueado, impede que tais
permItIa reconhecer-me entre outros mil. instâncias se realizem. Muitas vezes se ouve dizer: "eu
gostaria de livrar-me dessa situação, mas não consigo",
Um poeta paralisado pela vida em um leito nos ilumi- "eu quereria trabalhar, mas não trabalho". A "coação para
na sobre a qualidade de existência voltada para resgatar- repetir", esse mecanismo pernicioso que. Freud analisou
-se das traições que cortam a estrada de nosso desejo de emPara além do princípio do prazer, significa a constrição
~xpansão, de plenitude: a traição do tempo, cloamor, da inconsciente para se cair sempre nos mesmos erros, para
lmguagem, do esquecimento. Do fundo de uma procura "'Seencenar repetidamente determinado papel, para se re-
que une a todos nós, as suas palavras direcionam o nosso viverem com as mesmas modalidades relações negativas
percurso de manifestação de nossas verdades traídas e e fnistrantes. Avança-se, por esse caminho):locivo, para
ocultadas nas profundezas do coração (ibid., p. 18): uma existência sob o signo da traição a si mesmo. Não
i
/"
Enqua~t? não se põ~ em jogo a própria vida, falta a força obstante, como a coação oculta, atrás' de repetição ~bsti
necessana para se tIrar da sombra o traço fundamental nada da própria morte, o desejo de vitória sobre o próprio
! de um caráter, Sabemos por instinto de que lado devemos d~j!iônio interior, assim a traição, em sua essência, repre-
\ agarrar uma verdade capaz de salvar-nos do desespero. senta a tentativa de um voo. Não estou, naturalmente,
ceh:ibrando a apologia de um "reato"; tento diversamente
~a traição, t!aidor e traído representam dois aspec~ salvar sua paradoxalidade, isto é, não reduzir a uma só
tos de uma mesma expectativa, como no quadro analítico dimensão um fenômeno complexo e cheio de contradições
paciente'e analista são continuamente chamados a in- como toda vivência que a psique colore e apaga, engran-
verte:: ~s ,certezas de seus papéis e de seus valores para, dece e mortifica. Se o homem fosse livre, não teria neces-
permItIr as vozes recíprocas inconscientes que venham à sidade de trair; não obstante, é igualmente verdade que
tona para um diálogo de almas. É só assim que se ajuda' se o homem não fosse livre, não poderia trair. A traição
236 ?<.l7
mento ocidental e oriental desde as tentativas iniciais
"J~!l.m.~ r~yºlta": .tº<la,r~yºI1!Ç#9,ê~j~~sÇr~y-e...na..órbita da
\ traição; é traição toda obra, ciearte que rOp:1:Re um circllito ' do homem antigo para explicar, através da fábula, seu
anelo de harÍnonia e perfeição, apesar da incredulidade
/~'~bsol~to do conheciIrlento) é traição toda nov;~d~~çº~ert~;,
diante de um mundo temível e muitas vezes inimigo. Não
e traIção. tod() movimento intelectual originaJ. A pará-
bola de nossa vida se estende, percorrendo etapas que, é fácil resignar-se à imperscrutabilidade da natureza e às
como vimos, são marcadas por essa vivência dilacerante. contradições profundas da existência; e na grande sede
de' unificação interior, tudo o que mancha o desejo de
,Atrás do som da palavra traição oculta:-se.aJuta eterna
entre Eros e Thanatos, entre vida e morte e~t;ê'b~ie~ã' harmonia é visto pelo homem como equívoco absurdo ..
e deformidade, ou tudo aquilo em que ~~r~gãode~
.hum,an~o. É sempre o desejo de umá ~ompíetudêTinpossível
que move a nossa nostalgia e alimenta o movimento da
consciência para metas sempre novas, metas que se abrem
sobre a impossibilidade de realização definitiva, em um
movimento que nos afasta de nossos sonhos de ontem e
dos rostos que conhecemos e amamos, em suma, em um
movimento que nos impele a trair. Nietzsche, esse traidor
por excelência, falava da iminência de uma "curiosidade
sempre perigosa", curiosidade que o levou a trair sua fé
passada, seus amores intelectuais e até a grande amizade
com Richard Wagner, que se tornou adversário mortal. A
traição era necessária.
Escrevia Nietzsche em Humano, demasiado humano
(1878-79, pp. 6-7):
Pode-se subverter todos os valores? Por acaso o mal é
bem? E Deus é só uma invenção e uma fineza do Diabo?
Por acaso, em última análise, tudo é falso? E se nós somos
enganados, não somos por isso também enganadores? Não
devemos ser também enganadores?
238
EPÍLOGO
EXPERIÊNCIA E PERDA
ABEL, K.
1884 Der Gegensinn der Unworte, Lípsia
ACCETTO, T.
Delta dissimulazione onesta, Costa & N olan, Gênova 1983
ADLER,A.
1920 Prassi e teoria delta psicologia individuale, Newton
Compton, Roma 1983
ALVAREZ,A.
1970 Il Dia selvaggio, Rizzoli, Milão 1975
AMÉRY,J.
1976 Levar la mano su di sé, Bollati-Boringhieri, Turim 1990
ANDREAS-SALOMÉ, L.
1951 Il mito di una donna. Autobiografia, Guaraldi, Florença-
-Rimini 1975
ANTONELLI, F.
1981 Per morire vivendo. Psicologia delta morte, Città Nuova
Editrice, Roma 1990
ARISTÓTELES
EticaNicomachea, introdução, tradução e comentários
sob a org. de Marcello Zanatta, Rizzoli, Milão 1986
BALZAC,H.D
1829 Physiologiedu mariage, Garnier-Flammarion, Paris 1968
BARTHES,R.
1977 Frammenti di un discorso amoroso, Einaudi, Turim
1979
BATAILLE, G.
1962 L'erotismo, Mondadori, Milão 1969
BAUDELAIRE, CH.
BRENTANO, F.
1857 I fiori del male, org. por Luigi de Nardis, Feltrinelli, 1874 Psicologia dal punto di vista empirico, Verdito, Trento
Milão 1968
1989
BECK,D.
1981 BUFALINO, G.
La malattia come autoguarigione, Cittadella Editrice, 1981 Diceria dell'untore, Sellerio, Palenno
Assis 1985
BENDA,J. CALAME, C. . .. . II ". C C I
1927-58 1977 "L'amoreomosessualenelcondlfanclU e ,ln . a ame
Il tradimento dei chierici, Einaudi, Turim 1976 (org.), L'amore in Grecia, Laterza, Bari 1983
BERGONZI, M. CAMPBELL, D.A. (org.)
1990 "La crescita e il tradimento", in Rivista di Psicologia 1982 Greek Lyric in Four Volumes. Vol. I: Sappho Alcaeus,
Analitica 42 Harvard University Press, Cambridge (Massachusetts)
BERNE,E. - William Heinemann, Londres
1964 Ache gioco giochiamo, Bompiani, Milão 1982 CAMUS,A.
BLIXEN, K. 1942 Il mito di Sisifo, Bompiani, Milão, 1964
1981 Il matrimonio moderno, Adelphi, Milão 1986 CAPPELLANO,A.
BLOCH,E. De Amore, Guanda, Milão 1980
1975 Experimentum mundi. La domanda centrale, le categorie CAROTENUTO, A:
del portar fuori, la prassi, Queriniana, Bréscia 1980 1987 Eros e pathos, Bompiani, Milão (trad. bras.: Paulus)
BORGES, J.L.
CAROTENUTO, A. .
1944 Finzioni, Einaudi, Turim 1985 1989 "Sulle ipotesi che sono a fondamento della t.erapH~
BORGES, J.L. psicologica", in P. Aite - A. Carotenut? (orgs), Itme~a!l
1960 Altre inquisizioni, Feltrinelli, Milão 1983 del pensiero junghiano, Raffaello Cortma EdItore, MIlao
BOUSQUET, J. CAROTENUTO, A. . . .. .
1941 Tradotto dal silenzio, Marietti, Gênova 1987 1990 Le rose nella mangiatoia. Metamorfosl e md~mdua~wne
BOWEN,M. nell' '~sino d'oro" di Apuleio, Raffaello Cortma Edltore,
1966 Milão
"Uso della terapia della famiglia nella pratica clinica",
in Dalla famiglia all'individuo, Astrolabio, Roma 1979 CASTELLANA, F.
BOWEN,M. 1990 "L'analistae larelazione analitica. Una breve sintesi, pen-
1971-72 "Verso la differenziazione deI sé nella famiglia di origi- sando al tradimento", inRivista di PsicologiaAnalitica 42
ne", inDallafamigliaall'indiuiduo, Astrolabio, Roma 1979
CHIOZZA, L.A. . h· d l
BOZÓKY, E. (org.) 1986 Perché ci ammaliamo. La stona c e Sl nascon e ne
1980 Le livre secret des Cathares. Interrogatio Iohannis. corpo, Borla, Roma 1988
Apocryphe d'origine bogomile, Beauchesne, Paris CLEMENTE DE ALEXANDRIA .
BREGER,L. Stromati, San Paolo, Tunm 1985
1989 Dostoevskij. The Author as Psychoanalyst, New York COHEN, A.
University Press, Nova Iorque e Londres 1932 Il Talmud, Laterza, Bari 1986
BRELICH,A.
DAi!~i CH. La dimensione amorosa. Studio psicoanaliticosull'amore,
1969 "Aristofane: commedia e religione", in M. Detienne
(org.), Il mito. Guida storica e critica, Laterza, Bari 1976
Liguori, Nápoles 1982
246
DICKINSON, E.
Poesie, 2 vols., Bompiani, Milão 1978 FREUD,S.
1908 "11 romanzo familiare dei nevrotici", in Opere, vol. V,
DI MEGLIO, D. Boringhieri, Turim 1979 (1972)
1990 L'invisibile confine. Ermafroditismo e omosessualità,
Melusina Editrice, Roma FREUD,S.
1910 "Significato opposto delIe parole primordiali", in Opere,
DONNE,J. vol. VI, Boringhieri, Turim 1979
1624 Devotions upon Emergent Occasions, Oxford Universi-
ty FREUD,S.
Press, Nova Iorque-Oxford 1987
1912-13 "Totem e tabu", in Opere, vol. VII, Boringhieri, Turim
DOSTOIEVSKI, F. 1980
1876 La mite, Bompiani, Milão 1981 FREUD,S.
DOVER,K.J. 1915-17 "Introduzione alIa psicoanalisi", in Opere, vol. VIII,
Boringhieri, Turim 1980
1973 "11 comportamento sessuale dei greci in età classica",
in C. Calame (org.), L'amore in Grecia, Laterza, Bari FREUD,S.
1983 1920 "AI di là deI principio di piacere", in Opere, vol. IX,
DOVER,K.J. Boringhieri, Turim 1980
1978 L'omosessualità nella Grecia antica, Einaudi, Turim FREUD, S.
1985 1929 "11 disagio delIa civiltà", in Opere, vol. X, Boringhieri,
Turim 1980
EDINGER, E.F.
1986 I simboli e gli eroi di Jahweh. Psicoanalisi della Bibbia FUMAGALLI, V.
da Adamo al Messia, Red Edizioni, Como 1987 1990 Solitudo carnis. Vicende del corpo nel Medioevo, 11
Mulino, Bolonha
ELIOT, T.S.
1963 Poesie, Bompiani, Milão 1983 GANZERLI, P. - SASSO, R. .".
1979 La "rappresentazione anoreSSlca. Contnbuto del~e
ELKAIM-SARTRE, A. (org.) tecniche psicodiagnostiche alio studio dell'anoressla
1982 Aggadoth du Talmud de Babylon, Verdier, Lagrasse' mentale, Bulzoni, Roma
ERBETTA,M. GRAVES,R.
1982 GliapocrijidelNuovoTestamento. Vangeli. Testigiudeo- 1955 I miti greci, Longanesi, Milão 1979
cristiani e gnostici, Marietti, Casale Monferratto HILLESUM, E. . ._
FALCOLINI, L. 1981 Diario 1941-1943, Adelphl, MIlao 1985
1990 "11 tradimento deI corpo", in Rivista di Psicologia HILLMAN, J. . 1972
Analitica 42 1964 a Il suicidio e ['anima, AstrolablO, Roma
FÍLON DE ALEXANDRIA HILLMAN, J. 'l d' t M To
1964 b "l1tradimento",inSenexetPuerel tra lmen o, arSll,
La creazione del mondo. Le allegorie delle leggi, org. por Pádua-Veneza 1979
Giovanni Reale, Rusconi, Milão 1978
FORSTER, E.M. HILLMAN,J.
1971 Maurice, Garzanti, Milão 1987 1983 Le storie che curano, RaffaelIo Cortina Editore, Milão 1984
FRANCIS, C. - GOUTIER, F. HOMERO
1985 Simone de Beauvoir, Bompiani, Milão 1986 llíade, versão de Rosa Calzecchi Onesti, Einaudi, Turim,
1974
248 IJAQ
HOPCKE, R.H. JUNG,C.G.
1989 Jung, Jungians, andHomosexuality, Shambhala,Boston 1934-39 Nietzsche's Zarathustra. Notes ofthe Seminar Given in
& Shaftesbury 1934-1939, Princeton University Press, Princeton 1988
HUME,D. JUNG,C.G.
1756 "Sul suicidio", in Opere filosofiche, voI. 3, Laterza, Bari 1937 "Is analytical psychology a religion?", in C.G. Jung
1987 Speaking. Interviews and Encounters, org. por William
McGuire e R.F.C. Hull, Pan Books, Londres 1980
ISNARDI PARENTE, M. (org.) JUNG,C.G.
1989 Stoici antichi, UTET, Turim 1942 "Paracelso come fenomeno spiritualle", in Studi sull'
alchimia, in Opere, voI. XIII, Boringhieri, Turim 1988
JAFFÉ, A. (org.)
1975 Esperienza e mistero. 100 lettere, Boringhieri, Turim JUNG,C.G.
1982 1946 La psicologia del transfert, Mondadori, Milão 1985
JUNG,C.G. JUNG,C.G.
1912-52 Simboli della trasformazione, in Opere, voI. V, Borin- 1952 "Risposta a Giobbe", in Psicologia e Religione, in Opere,
ghieri, Turim 1980 (1970) vol XI, Boringhieri, Turim 1981
JUNG,C.G. JUNG, C.G.
1917-43 "Psicologia dell'inconscio", in Due testi di psicologia 1955-56 Mysterium Coniunctionis, in Opere, voI. XIV, Boringhieri,
analitica, in Opere, voI. VII, Boringhieri, Turim 1983 Turim 1989
JUNG,C.G.
1923 "Child Development and Education", in The Development JUNG,C.G.
of Personality, in Collected Works, voI. 17, Pantheon 1961 Ricordi, sogni, riflessioni, Rizzoli, Milão 1984
Books, Nova Iorque 1954
KIERKEGAARD, S.
JUNG,C.G. 1834-55 Diario, edição em 12 vols. org. por Comelio Fabro,
1925 "TI matrimonio come relazione psicologica", inIl problema Morcelliana, Bréscia 1980-83
dell'inconscio nella psicologia moderna, Einaudi, Turim
1959 KLEIN,M.
1959-63 Il nostro mondo adulto ed altri saggi, Martinelli, Florença
JUNG,C.G. 1972
1926-46 Psicologia e educazione, Astrolabio, Roma 1947
KRACAUER, S.
JUNG,C.G. 1971 Sull'amicizia, Marietti, Gênova 1989
1927-31 "Introduzione" a F.G. Wickes, Il mondo psichico deU'
infanzia, Astrolabio, Roma 1948 KRISTEVA, J.
1987 Sole nero, Feltrinelli, Milão 1988
JUNG,C.G.
1928 "L'Io e l'inconscio", inDue testi di psicologia analitica, in LA ROCHEFOUCAULD, F. DE
Opere, voI. VII, Boringhieri, Turim 1983 1665 Massime, Rizzoli, Milão 1985
JUNG,C.G. LECLAIRE, S.
1971 Smascherare il reale, Astrolabio, Roma 1973
1929 "Paracelso", in Studi suU'alchimia, in Opere, voI. XIII,
Boringhieri, Turim 1988 LEOPARDI, G.
Tutte le opere, 2 vols., Sansoni, Florença 1976
JUNG,C.G.
1929- 57 "Commento aI 'Segreto deI fiore d'oro' ", in Studi sull' LETO, G. (org.)
alchimia, in Opere, voI. XIII, Boringhieri, Turim 1988 1966 Ovidio, le Eroidi, Einaudi, Turim 1977
250
LÉVINAS, E. OLIVIER, CH. .. . ._
1971 Totolità e infinito. Saggio sull'esteriorità, Jaca Book, 1980 I figli di Giocasta, Emme EdlZlOlll, MIlao 1984
Milão 1990 OVÍDIO
LÉVINAS, E. Amori, Garzanti, Milão 1983
1972 Umanesimo dell'altro uomo, II Melangolo, Gênova 1985 PAZ,O.
LICHTENBERG, J. 1959 Illabirinto della solitudine, Mondadori, Milão 1990
1983 La psicoanalisi e l'osservazione del bambino, Astrolabio,
Roma 1988 PÍNDARO
Olimpiche, tradução, comentário, notas e leitura crítica
LUTERO,M. de Luigi Lehnus, Garzanti, Milão 1981
1566 Discorsi a ta vala, Einaudi, Turim 1983
PLATH,S.
MASTERS, E.L. 1960 Lady Lazarus e altre poesie, Mondadori, Milão 1989
1914 Antologia di Spoon River, Einaudi, Turim 1971
PLATH,S.
MICHAELSTAEDTER, C. 1975 Lettere alla madre, Feltrinelli, Milão 1980
1910 Il dialogo della salute e altri dialoghi, Adelphi, Milão
1988 PLATÃO
Tutte le opere, Sansoni, Florença 1974
MILLER,A.
1981 Il bambino inascoltato, BoIlati-Boringhieri, Turim 1989 RACUGNO, N. (org.) .
1989 Conoscere i miti, Thema Editore, Tunm
MILTON,J.
1667 Paradiso perduto, livros VII -XII, org. por Roberto Sanesi, RANK,O.
Mondadori, Milão 1987 1909 Il mito della nascita dell'eroe, SugarCo, Milão 1987
MOLIERE RANK,O.
1665 "Don Giovanni o iI festino di pietra", in Tutto il teatro, 1912 Il tema dell'incesto, SugarCo, Milão 1989
voI. 3, Newton Compton Editori, Roma 1974
RANK,O.
MOOR,P. 1914 Il doppio, SugarCo, Milão 1987
1989 "Una ipocrisia psicoanalitica", in Psicoterapia e scienze
umane 2 RANK,O.
1922 La figura del Don Giovanni, SugarCo, Milão 1987
NELLI, R - LAVAUD, R (orgs.)
1966 Les Troubadours. Voz. II: Le trésor poétique de l'Occitanie, RAKN,O.
1924 Il trauma della nascita, SugarCo, Milão 1990
Desclée de Brouwer, Bruges
NERVAL, G. DE RILKE,RM.
1852 Chimere e altre poesie, trad. de Diana Grange Fiori, 1910 Quaderni di Malte, UTET, Turim 1952
Einaudi, Turim 1972 RILKE, R.M. . ._
NEUMANN,E. 1929 Lettere a un giovane poeta, Adelphi, MIlao 1980
1953 La psicologia del femminile, Astrolabio, Roma 1975 SACCHETTI, F.
NIETZSCHE, F. Il Trecentonovelle, Einaudi, Turim 1970
1878-79 Umano, troppo umano, Adelphi, Milão 1982 SÊNECA Lettere a Lucilio, Rizzoli, Milão 1985
OLIEVENSTEIN, C. SERRANO,M.
1988 Il non detto delle emozioni, FeltrineIli, Milão 1990 1966 Il cerchio ermetico, Astrolabio, Roma 1976
253
252
SHAKESPEARE,W. ÍNDICE
Tutte le opere, Sansoni, Florença 1982
SÓFOCLES
Tragedie e frammenti, org. por Guido Paduano, UTET
Turim 1982 '
STENDHAL
1822 Dell'amore, Garzanti, Milão 1976
TANNER,T.
1979 L'adulterio nel romanzo, Marietti, Gênova 1990
7 Nota à nova edição
TEÓGNIDES Introdução -A vida como traição
Elegie ,org. por a cura di Franco Ferrari, Rizzoli, Milão 1989 13
19 1. Ainda antes de nascer
THOMAS,E.
1986 Il silenzio della violenza, Tullio Pironti, Nápoles 1989 28 2. Um "alegre acontecimento" funesto
42 3. Parábola do filho que não quis ser amado
UNGARETTI, G. 4. Papéis e confiança
1932 106 poesie 1914-1960, Mondadori, Milão 1966 59
72 5. "Inimici hominis domestici eius"
VERDE, J.B. -PALLANCA, G.F. 6. Círculo familiar e círculo hermético
1984 Ilusioni d'amore. Le motivazioni inconsce nella scelta 84
del partner, Raffaello Cortina Editore, Milão 95 7. A nostalgia desorientada
VIDAL-NAQUET, P. 103 8. União de duas solidões
1977 Il buon uso del tradimento, Editori Riuniti, Roma 1980 113 9. O silêncio como tortura
VOLTAIRE 124 10. Euforia contra alegria
1764 Dizionario filosofico, Rizzoli, Milão 1979 138 11. Coação do sedutor e vantagem do traído
YOURCENAR, M. 146 12. Área de incesto
1951 Le memorie di Adriano, in Opere, Bompiani, Milão 1986 154 13. Um templo pouco frequentado
YOURCENAR, M. 165 14. O sexo negado
1957 Fuochi, Bompiani, Milão 1984 173 15. O corpo desagradável
YOURCENAR, M. 185 16. O corpo traído
1980 Mishima o la visione del vuoto, Bompiani, Milão 1982 193 17. O corpo doente
WICKES, F. G. 199 18. A morte procurada
1927 Il mondo psichico dell'infanzia, Astrolabio, Roma 1948 213 19. A morte encontrada
WILDE,O. 223 20. A morte desejada
1949 De profundis, Feltrinelli, Milão 1982 233 21. Traição e liberdade
WOLFF,H. 241 Epílogo - Experiência e perda
1975 Gesit, la maschilità esemplare. La figura di Gesit secondo
la psicologia del profondo, Queriniana, Bréscia 1988 245 Bibliografia
254