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a Historias dentro da Historia Verena Alberti Os historiadores ¢ a fonte A Historia oral permite 0 registro de testemunhos e 0 acesso a “historias Sentro da histéria” e, dessa forma, amplia as possibilidades de interpretacao do passado. Definigdes ¢ histéria ‘A Historia oral é uma metodologia de pesquisa e de constituicgdo de fontes para o estudo da historia contemporanea surgida em meados do século oral da gravacao de um depoimento, no sé no que diz respeito ao equipamento e as condigdes que oferece o local de gravagao (auséncia de rufdos externos, por exemplo), como também na forma de conduzir a entrevista, evitando falas simultaneas e tomando nota, durante a gravacao, de palavras ou frases pronunciadas com pouca clareza. E nesse momento que percebemos, por exemplo, a importancia de artigos e preposigdes, os quais, se aplicados incorretamente, podem modificar o contetido da fala do entrevistado. Trata- se, portanto, de trabalho meticuloso, ao qual toda atencao deve ser dispensada, © que significa muitas horas de dedicacao. Se a entrevista for publicada, pode ser conveniente editar 0 texto que resulta dos trabalhos de transcricao, conferéncia de fidelidade e copidesque. Na edicéo podem ser usados recursos como cortes de passagens repetidas ou pouco claras e a ordenacao da entrevista em assuntos, modificando-se a ordem em que foram tratados. Entretanto, deve ser sempre mantida a correspondéncia entre o que é publicado e 0 que foi gravado, de modo que o que se 1é no livro esteja sem diivida na entrevista. Outro recurso importante sdo as notas, que esclarecem passagens obscuras, fornecem informagées sobre fatos e pessoas citadas, podem corrigir equivocos feitos tanto pelo entrevistado quanto pelo entrevistador e explicam circunstancias da entrevista importantes para a compreensao do que foi dito. A tecnologia de gravagio Para realizar uma pesquisa ou produzir um acervo de Historia oral é preciso, evidentemente, contar com um cquipamento de gravacio e 181 Fontes hist reprodugao de audio e/ou video, cuja sofisticagio dopenderd, como sempre, dos objetivos do trabalho. Tomemos como exemplos dois casos extremos: 0 ria oral como primeiro consiste na realizacio de algumas entrevistas de Hi forma de complementar o material levantado durante uma pesquisa, ¢ 0 segundo, na formacao de um acervo permanente de entrevistas de Historia oral, a ser consultado por pesquisadores de diversas reas. O material necessario para cada um dos casos difere em virtude da variagao dos objetivos especificos. No primeiro caso, 0 pesquisador pode empreender seu trabalho contando apenas com um bom gravador portatil, algumas fitas virgens, talvez um microfone e um fone de ouvido, e com mais um gravador para fazer cépia das fitas gravadas como medida de seguranga. No segundo caso, contudo, sdo necessdrios equipamentos de gravacgao portateis e alguns de maior porte, aparelhos como amplificadores ¢ mixers, fones de ouvido « microfones, espago fisico apropriado para arquivar os audios e videos ¢ computadores para produzir e guardar os arquivos em texto, em audio e em video, se for o caso, € eventualmente manter uma base de dados Evidentemente, pode haver situagoes intermedidrias; a escolha do equipamento sempre sera condicionada pelos propésitos do trabalho. Uma entrevista pode ser gravada em fitas magnéticas analégicas (as fila» cassete), em fitas magnéticas digitais (fitas pat, digital audio tape), em disco» digitais (minidiscs, CD-R, discos rigidos),em videos analégicos (vis ou Betacam) ou em videos digitais, por exemplo. Hoje em dia ha muitas dtividas sobre « técnicas de conservagao e arquivamento: qual o melhor suporte para se grav! as entrevistas e como evitar sua deterioracio e obsolescéncia? Em geral recomenda-se adotar tecnologias digitais, caso 0 objetivo seja a constituinay de um acervo, j4 que os equipamentos e as midias analdégicas tendem 0 desaparecer do mercado. Ha uma especificidade em relacao as fontes orais, comumente evocatli na literatura sobre o assunto, que torna sua conservacao particularmen|: dificil. Ao contrario das fontes textuais ou mesmo iconogréficas sobre supo! | de papel, as fontes orais € audiovisuais nao podem ser consultadas sen intermediagaéo de um equipamento. Assim, além de nos preocuparmos Cl!) a longevidade do suporte sobre o qual gravamos nossas entrevistas, len) de estar sempre atentos a disponibilidade de aparelhos que reproduzait 182 » ela Historia som gravado naquele le, Pe 5 § Jo Naquele suporte, Pela propria natureza da questio, I solugées definitivas ¢ tranqiiilizador: si oilellt . O que devemos fi oy 108 fazer, e 2 Fe ienapwsciaddtivette cy ieee continuem em condigoes antes que os formatos originais se on cies ae eee he i oo que trabalham com a producao ea preservagao de fontes ee bee een constantemente atualizados sobre as novas gias. a pole no mundo alguns féruns de discussio desses assunt F eee ar Internacional de Arquivos Sonoros e Aud jov asie Cot) -web. ri J 5 ; ee ee a ea da Unesco Memory of the World, que a Pi oe de todo tipo de documentagao. Esses ¢ em ser permanentemente consultados. Interpretagéo @ andlise de entrevistas Como tt istori i eS ae fonte hist6rica, a entrevista de Historia oral deve ser vist io um “docum« - ” 1 ior —— mente momumensa , conforme definido pelo historiador G s off. Durante muito temy " g i ipo pensou-se em “documento” ences E nite cumenlo fr ‘esiduo imparcial e objetivo do passado, ao qual muitas vez alribuia va vi a ( decline “as lor Ge prova. O “monumento”, em contrapartida, teria como @ ica a intencionalidade, uma é 4 : , vez que é construido 4 recordagao, como é PienE ai , 0 caso das obras comemorati orativas de arquitetura es ie 2 quitetura e das ae saat em praga ptiblica. A idéia de “documento-monumento” az essa intenci ide Spri me me para o prdprio documento, cuja produgao resulta as relagdes de forga que existi: i leaguer ram e existem nas soci i ie produziram. O documento, diz Le Goff, ies ant i Ean vase mais nada o resultado de uma montagem, consciente nsciente, da hist6ria, da 6 dade ° E , da época, da sociedad produziu, mas também das é i teas quis , s épocas sucessivas dl s ee s ‘i is durante as quais senlinuona vive talvez esquecido, ainda que pelo silencio. O 6 uma coisa que fica, qui i que dura, e 0 teste ensiname a aa Ee que ele traz, deve ser em primeiro lugar analisado desea peace jo-lhe o seu significado aparente, © documento é ento. Resulta do esforco das soci ; histori Ir : : s sociedades histéri impor ao futuro ~ voluntéri i intariamente juntéria ou invol i erin i uintania oluntariamente — determinada imagem de si proprias. No limite, nao existe um fo-verdade. Todo 0 documento é mentira. Cabe ao 183 Fontes histovieay é ento historiador nao fazer o papel de ingénuo. [...] um monument réncia enganadora, em primeiro lugar uma roupagem, uma aparéncia enganador al rivemolli uma montagem. B preciso comegar por desmontar, vi moli esta montagem, desestruturar esta construgao ¢ analisar as condigdes de produsiio dos documentos-monumentos." Se concordarmos com Le Goff que o “dever principal” do eee 6 ji ento”," o “4 critica do documento - qualquer que cle seja — como monumento : i istori s deve pesquisador que trabalha com entrevistas de histéria oral como fontes de “desmonta-las”, analisar as condigdes de sua producao, para ae quando Le Goff utilizé-las com pleno conhecimento de causa. Mas atengao: Te afirma que todo documento émentira, isso no significa que oe el Sees de Historia oral, ou um relatério de gestéo, ou um decreto gov ema ‘s sio ficgao. Faz parte do esforgo de compreender as condigées de Pr ve a de documentos-monumentos reconhecer a distancia que 0; Scam Nes de ficcio, cujos autores nao concedem sone) de verdade ao que decla : colocam como tarefa fazer que 0 imagindrio se torne real. U Historia oral nao 6 produzida para ser mentira, e isso é fund. onto Mas podemos dizer que a entrevista é produzida pare ser monur en " Seu carater intencional de perpetuagao de uma memoria sobre © passa fica patente ja na escolha do entrevistado como testemunha i ouvida. Esse carater “monumental” é dado pelo préprio pes ve geral recebe a aprovacao do entrevistado, que se sente honrado e a i e por estar sendo chamado a dar seu depoimento. Resta saber — e isso. ™ importante na andlise de entrevistas de Historia oral - se e oe _ sobrepor suas intengGes ao relato do entrevistado. Ou Sela) S le esi s aberto a conhecer ¢ a deixar que seja registrado, nat grav ‘agao, Eo ea yista do entrevistado? Se a narrativa deste nao coincidir com sua hipotes ima entrevista de lamental.# importante a sci quisador e em © ponto de A di sto a ouvi-lo? / Se José Miguel Arias Neto, em artigo publicaco nm “ 7 da Associacao Brasileira de Histéria Oral, analisa. a euireusta real ad 1968 pelo Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro com o mat! i Joao Candido, lider da Revolta da Chibata (1910). ale sagere'a is : procedimentos que devem ser adotados quando da anélise de entrevistas ifi i 6 esqui ore il Histéria oral. E preciso que se verifiquem as intencoes do pesquisado 184 ical al aliaieal instituigdo, a propria condugao da entrevista, os conflitos eas superposigdes que ela registra, e os 1 entrevist sultados obtidos com a sua realizagdo. No caso da ta com Joao Candido, realizada quando o debate sobre a Historia oral ainda nao havia chegado ao Brasil, José Miguel Arias Neto observa que o marinheiro nao é entrevistado para se conhecer 0 significado que a revolla teve e tem para ele. Como muitas vezes seu relato se desvia da interpretagao dos préprios entrevistadores, acaba ocorrendo um hiato na comun: ‘agao, A andlise de um depoimento de Histéria oral — realizada seja pelo proprio pesquisador, seja por terceiros — deve considerar a fonte como um todo. E preciso saber “ouvir” o que a entrevista tem a dizer tanto no que diz respeito as condicGes de sua producao quanto no que diz respeito a narrativa do entrevistado: o que nos revela sua visdo dos acontecimentos ¢ de sua propria histéria de vida acerca do tema, de sua geracao, de seu grupo, das formas possiveis de conceber o mundo etc. Tomar a entrevista como um todo significa ouvi la ou 1é-la do inicio ao fim, observando como as partes se relacionam com 0 todo e como essa relac&o vai constituindo significados sobre © passado e o presente e sobre a propria entrevista. E atentar também para relatos, interpretagdes e pontos de vista “desviantes”, isto 6 que nao se encaixam nos significados produzidos. Esse modo de interpretar pode ser adotado na andlise de qualquer tipo dle fonte e nao se afasta muito da légica do circulo hermenéutico: o todo fornece sentido as partes, e vice-versa. Por exemplo, em uma frase compreende-se 0 sentido de uma palavra 4 medida que tomamos sua relagio com toda a frase; inversamente, compreende-se o sentido da frase amedida que compreendemos © sentido das palavras. Em uma entrevista, compreendemos os conceitos ulilizados pelo entrevistado, as formas como se refere a determinados acontecimentos ou situagdes, as lembrangas cristalizadas, os exemplos, os facoetes de linguagem etc., 4 medida que tomamos sua relagéo com 0 tepoimento como um todo, e vice-versa. E nesse circulo que surge o sentido." K importante lembrar também que as palavras empregadas pelo entrevistado sao importantes para a interpretacao de sua narrativa. A escolha le determinadas palavras e formas de se expressar informa sobre a visdo de mundo e o campo de possibilidades aberto aquele individuo, em razio de ‘ila experiéncia de vida, sua formacao, seu meio etc. Se ele escolhe determinadas palavras, endo outras, 6 porque é daquela forma que ele percebe 185 TT nae © sentido dos acontecimentos ou das situagbes wobre os quais esta falando. Por isso nao cabe acrescentar novas palavras, ou substituir as que sao usadas ae as por sindnimos. Ao interpretar uma entrevista, convem ser fiel a légi escolhas do entrevistado. | — nao em todas — em que Ha momentos nas entrevistas de Histéria or se pode perceber que a narrativa de determinados acontecimente cristaliza realidades que sio condensadas e carregadas de sentido. Ne: momentos, a narrativa do entrevistado vai além do caso particular e oferece se situagoes 0S uma chave para a compreensao da realidade. Quando isso acontece, ela fornece passagens de tal peso que sao “citdveis”. Quase toda entrevista contém historias. Para Lutz Niethammer, essas histérias “sdo 0 grande tesouro da histéria oral, porque nelas se fundem, esteticamente, declaragées objetivas ¢ de sentido.””” Boas historias, acrescenta, nao se deixam traduzir por uma “moral”, porque o significado do que é narrado se cristaliza no conjunto da narrativa. E porque, nessas hist6rias, o sentido 6 apreendido do conjunto, elas sao especialmente “citaveis”, tém forca estética. Apresentadas ao piihlico com propostas de interpretagao histérica, permitem que haja uma ampliagao do conhecimento. No processo de andlise da fonte oral, cabe, pois, atentar para a ocorréncia dessas narrativas especialmente pregnantes.* Ocontetidodeumaentrevista de Historia oral sempre estara condicionado aquele caso particular. A narrativa especialmente “citavel” de ceterminsdo acontecimento ou situacao tera de ser muito bem contextualizada: quem é seu autor (qualificacdo do entrevistado)? Em que momento da entrevista contou aquele fato daquela maneira? Que outras circunstancias sao importantes para se compreender 0 que foi dito? Etc. A contextualizacao é necessaria para se reconhecer a propria qualidade do trecho “citavel”. Isso significa que nao se pode generalizar, em Histéria oral? O que se aprende com uma entrevista pode ser aplicado ao grupo como um toda? Quando a pesquisa de Histéria oral pressupée a realizagéo de entrevista» com diversas pessoas do grupo investigado, é possivel chegar a alguns padrées: experiéncias que se repetem, trajetérias semelhantes, usos cas mesmas palavras ou expressGes etc. O conceito de “ponto de saturagio desenvolvido por Daniel Bertaux ajuda a visualizar essa possibilidade de generalizacao: ha um momento em que as entrevistas comegam a se repetir ce esse padrao é importante para se conhecer 0 grupo investigado. 186 Plintovias elentvo ela Minton Na andlise do material produzido, podemsse estabelecer tipologias, Por exemplo: a geragio x desse grupo desenvolveu tais estratégias; a geragao ¥ ja se caracteriza por outros pereursos. Ou ainda: entre os entrevi tados, observa-se aqueles cuja formagio religiosa implicou tais opges, que, no entanto, nao foram seguidas pelos demais. Cabe ao pesquisador indagar-se, contudo, até que ponto a tipologia estabelecida s6 se revela como tal no grupo restrito de pessoas entrevistadas. Se o grupo fosse outro, surgiriam outros “tipos”? Até que ponto a tipologia é ttil para ampliar a compreensao sobre 0 objeto estudado? Jano caso das passagens especialmente “citaveis”, que podem ampliar 0 conhecimento sobre 0 assunto, ocorre uma espécie de “generalizacéo” quando as tomamos como “exemplo”, isto é, como algo que revela as possibilidades do grupo, ainda que tenha sido atualizado por uma pessoa em particular. Na andlise de entrevistas de Histéria oral deve-se ter em mente também outras fontes ~ primarias e secundarias; orais, textuais, iconograficas ete, sobre 6 assunto estudado. Muitas delas ja sao do conhecimento do pesquisador, que a elas recorreu quando da pesquisa exaustiva anterior realizacéo das entrevistas. Em que medida as entrevistas realizadas corroboram ou nao as informagées obtidas em outras fontes e estudos? O que elas acrescentam de novo ao estado geral da arte, digamos? Pode ser muito interessante comparar 0 que dizem as entrevistas com outros documentos de arquivo, pois as vezes hd um deslocamento temporal ou de sentido que permite ao pesquisador verificar como a meméria sobre 0 passado vai se constituindo no grupo. Um exemplo ja classico desse tipo de deslocamento é dado por Alessandro Portelli, em sua andlise da histéria da mem6ria do massacre de Civitella Val di Chiana, mencionado acima. Portelli mostra como o massacre foi interpretado de diferentes maneiras, conforme a sittuacao politica na Italia e na regiao da Toscana, onde ocorreu. Discutindo com outro pesquisador italiano, para quem pouco importaria 0 que realmente aconteceu no massacre, ja que a propria comunidade ja teria construido sua representacao sobre o tragico episddio, Portelli chama a atengao para a necessidade de se tomar os fatos (0 que realmente aconteceu) e suas representacées simultaneamente. Representacdes ¢ “fatos” nao existem em esferas isoladas. As representacoes se utilizam dos fatos e alegam que sao fatos; os fatos sdo reconhecidos e organizados de acordo com as representagGes; tanto fatos quanto representagdes convergem 187

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