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Este ensaio decorreu da elaboragio de um texto introdutério & primeira parte de um projeto patrocinado pelo Ministério da Cultura (hoje extinto) para a redagdo de uma Hist6ria geral do negro no Brasil; projeto que seria coordenado por Clévis Moura, Décio Freitas e Joel Rufino dos Santos. Trate-se, pois, de uma leitura intro- dutéria, onde procura-se analisar a ‘maneira como 0 negro é descrito e/ou simbolizado na historiografia brasilei- ra, através da obra de alguns dos is importantes historiadores.,(brasi- Ieiros ¢ estrangetros) que, a0 longo de nossa histéria, dedicaram-se ao “estu- do” de nossa realidade. Fruto de um pensamento que assi- mila e reflete uma visio desfocada de nossa realidade étnica e social, essa historiografia, tendo como embasa- ‘mento tedrico um aparelho conceitual elitista, eurocéntrico e racista, jamais colocou 0 negro como agente histéri- co-social dindmico — seja como indi- viduo ou como grupo social —, pro- duzindo, assim, uma distorcida visio onde se configura um perfil branco para nossa dinmica social. Neste ensaio esto selecionados — para anélise de suas obras — alguns historiadores considerados “cléssicos” € que, por isso, tipificam em set con- Colecio Nossa Terra | CLOVIS MOURA ‘Titulos publicados A primeira renovacao pecebista. Reflexos do XX Congreso do’ PCUS no PCB (1956-1957) Raimundo Santos ) Breve historia do PCB José Antonio Segatio Comunistas em céu aberto 1922-1930 Michel Zaidan Filho Estado e burguesia no Brasil Antonio Carlos Mazzeo Coptliomo e revolugto burgess no Breil AS INJUSTICAS | Nélson Werneck Sodré | A esquerda e 0 movimento operdrio 1964-1984. DE CLIO Vol. 2. A crise do “milagre brasileiro” | Celso Frederico (Org.) | A classe operdria na revolugéo burguesa. A poli- O negro na historiografia brasileira | tica de aliangas do PCB: 1928-1935 Marcos Del Roio Cultura e sociedade no Brasil Carlos Nelson Coutinho 4 O fascismo cotidiano Nélson Werneck Sodré As injustigas de Clio. O negro na historiografia brasileira Cléyis Moura Préximo lancamento: © povo e o poder Manuel Correia de Andrade Oficina de Livros 1990 Belo Horizonte Clovis Moura Composigio: Linotipadora Giselli Capa: Marilda Campagnoli de Vilhena Ne de catdlogo: 0028 Direitos reservados: OFICINA DE LIVROS LTDA. Rus Tupinambés, 360, 12." andar, sala 1210 30.120 — Belo Horizonte, MG — Tel. (031) 222-1577 Rua da Quitenda, 113, 10° andar, conjs, 102/104 01012 — Sio Paulo, SP — Tel. (O11) 37-9872 SUMARIO Palayras introdutérias, 11 Consideragdes sobre a histéria como ciéneia, 15 Historiadores como intelectuais organicos do sistema escravista, 31 Frei Vicente do Salvador: 0 negro na penumbra, 41 Rocha Pita cu Palmares pelo avesso, 49 Southey: o negro visto com lunetas inglesas, 61 Abreu € Lima: 0 negro e a Tuta de classes, 85 Varnhagen: uma visio aristocrética da histéria sem passaporte pata © negro escravo, 95 Armitage: 0 negro “bérbaro ¢ sanguinério” ¢ 0 brasileiro indo- lente, 129 Handelmann: o negro como raga inferior e um projeto de atiani- ago do Brasil, 141 Buclides da Cunha: racismo cientificista e a condenagio do negro, 183 Oliveira Vianna: stianizacio como solugo pare o problema étnico e social, 197 Conclusées, 213 Para GRISELDA, pelo trabalho @ com fernura, 0! Apoto Senhor do Sol E dos mistérios Sede misericordioso E permit Que Clio, ‘A imsis bela dentre as musas Que the acompanham © eortsjo Em seu carro de fogo no firmamento. Desea ef a Terra E nos revele Os segredos Da crenga da qual & protetor: A HISTORIA, (Crago dirigida a Apolo, invocando a protegio de Clio, uma das nove musas, filha de Zeus ¢ Mnemosina a deusa da meméria; era a musa da Histéria e tutelava a conservacdo de todas as sagas ¢ faganhas, fazendo soar as trombetas da fama para que ninguém fieasse sem conhecer 0 fato herdico © © seu protagonista.) PALAVRAS INTRODUTORIAS Oui dizer que a histéria 6 a mostra das nossas agées © mix xima de principios: © 0 mundo [oi sempre, de certo modo, hebitado por homens que tém tido sempre as mesmas paixdes; ‘e que sempre existia quem serve e quer manda, e quem serve de bom grado, € quem se rebela ou se rende, Nicolay Machiavelli 0 texto que se vai ler é uma produgao introdutéria & primeira parte do projeto, patrocinado pelo Ministério da Cultura, intitulado Historia geral do negro no Brasil, projeto que seré coordenado por quem assina esta introdugao ¢ os historiadores Décio Freitas @ Joel Rufino dos Santos. Sendo uma leitura introdutéria, procura- mos analisar como o negro € descrito ou simbolizado na nossa historiografia e os diversos niveis de deformagao ou incompreenséio etnocéntrica, os preconceitos © os julgementos de valor negativos que estiio embutidos ¢ séo registrados nessa produgio historiogré- fica do passado, durante todo o tempo em que ela foi elaborada, Fruto de um pensamento gue assimila e reflete uma visio desfo- cada da realidade étnica e social do Brasil, essa historiagrafia, tendo como embasaniento tedrico um conjunto: de pensemento elitista, eurocéntrico e racista muitas vezes, jamais colocou © negro como agente histérco-social dindmico, quer como individuo, quer como grupo ou segmento, Essa imagem produzida em conseqiiéncia da necessidade de se instrumentar um pensamento capaz de dar um perfil branco & nossa dindmica social, configura um dos exemplos ais tipicos e significativos da incapacidade ideolégica desses pro- dulores de repensarem a nossa histéria a partir das classes, segmen- tos ott grupos oprimidos e etnicamente discriminados, e, por isto mesmo, interzssados em dinamizar a sociedade na diregao de novas formas de convivéncia social " Diante de tudo isto, foi elaborado o presente plano no qual se faré 0 resgate dessa grande heranca social e histérica oculta, que permanece, por isto mesmo, na penumbra. © negro, no particular, € grande desconhecido. Durante todo o percurso da nossa histéria, a sua contribuiggo tem sido negada direta ou veladamente e apenas destacadas as suas qual dades como escravo, produtor de uma riqueza de que nao parti- cipava, Os historiadores que se debrugaram sobre a nossa realidade jamais, ou muito raramente, viram o negro como forca dinémica na nossa formacéo politica, social, cultural ou psicoldgica. Todos os antigos preconceitos biblicos, cientificistas ou racistas foram unidos, compactados e aplicados na anélise do comportamento da populacio negra Tudo isto influiu como elemento de reflexio para que fosse estabelecido 0 projeto atual que iré resgatar essa contribuicéo des- cartada, A idéia surgiu como um marco inicial no ano em que transcortia 0 centenétio da abolicao, mas com o objetivo de esten der-se muito além, no se transformando, assim, em simples ativi dade comemorativa, mas indo em diregio a uma postura cientifica de revisio da nossa hist6ria e dos seus problemas interétnicos. No presente texto, que abordaré a posico da nossa historio grafia em relagio ao negro, usamos 0 critério de selecionar aqueles historiadores considerados cléssicos e que, por isto, tipificam no seu conjunto 0 desenvolvimento do pensamento historiogréfico na- cional e nos quais a maioria dos divulgadores da hist6ria do Brasil yo apoiar-se como fontes. Escolhemos como historiadores representativos Frei Vicente do Salvador, Rocha Pita, Southey, Armitage, Varnhagen, Handelmann ¢ Oliveira Vianna, Incluimos, também, Abreu Lima e Buclides da Cunha, o primeiro por ser um historiador atipico ¢ que repre- senta uma vatiante que nfo teve continuadores em nossa historio- grafia e Euclides da Cunha porque com Os sertdes foi montada toda uma literatura inspirada nele, com influéncia, maior ou menor, até aos nossos dias e, ao mesmo tempo, por ser um dos represen: tantes mais qualificados na nossa intelligentsia critica, mas, por outro lado, efnocéntrica, adepta de um biologismo sociolégico que leva a encarar de maneita deformada e negativa 0 negto € 0 mestico como componentes da dinémica social emergente. 12 O leitor poderd ver, durante a leitura do texto que se seguiré, como ha uma repeticéo de posigdes ideolégicas em relacéo & popu- lacdo negra e ndo-branca em geral nos autores pot nés analisados. Desde Frei Vicente do Salvador até Oliveira Vianna o impasse do julgamento éinico permanece e chega mesmo a se agravar no tiltimo autor. Como vemos, no houve uma diluigo do preconceito contra (© negro & medida que novas teorias julgadas mais préximas de uma posicio cientifica eram usadas, mas, pelo contrétio, também essas novas ‘eorias estavam impregnadas da ideologia colonialista, que passava por sobre a realidade para procurar confirmar estered- tipos sem base empfrica, completamente sem fundamento, Pelo contrério. Achamos, mesmo, que em certos autores do passado hé ‘menos preconceito contra 0 negro do que nos mais modernos que inauguram uma fase cheia de cientificismo e que tem infcio com a obra de Jofo Ribeiro, em 1900, ¢ termina com 0 autor de Popu- lagdes meridionais do Brasil Nessa producio preconceituosa evidentemente tivemo exegdes, no de historiadores, mas de pensadores sociais que foram pre- cursores de uma abordagem sociolégica neste particular, como Alberto Tortes e Manoel Bonfim. Sa0 porém contribuigées que no acompanham a tendéncia geral da nossa historiografia (considerada cléssica © que se destaca até 0 aparccimento de uma producio universitéria mais recente) a qual vé o negro passivo como escravo e biologicamente inferior como cidadao, Os historiadores atuais iniciam um processo de revisio do quadro tradicional, mas ainda € muito cedo para se avaliar até que ponto conseguir, em pouco tempo, uma reversdo desse comportamento. texte atual deverd ser compreendido como introdutério a uma obra que iré procurar restaurar @ verdade hist6rica sobre 0 negro no Brasil e a sua dindmica no contexto da atual sociedade brasileira 13 CONSIDERACOES SOBRE A HISTORIA COMO CIENCIA Antes de entrarmos numa viséo analitica de como 0 nogto € apresentado ¢/ou simbolizado na historiografia brasileira, devemos estabelecer algumas premissas tedricas sobre a ciéncia da hist6ria, sem 0 que o problema nao poder ser compreendido na sua tota- lidade nem avaliadas as formas de comportamento ideolégico dos seus autores em relago ao mesmo. No iremos, aqui, nem isto faria sentido, apresentar uma estéria da hist6ria, mas tentar demonstrar sua fungdo epistemo- 6gica no universo do conhecimento do homem, como ser histérico e que somente se humaniza na ¢ pela hist6ria. Isto porque o homem somente se humaniza como ser social, 0 que equivale a dizer, como ser histérico, pois o social somente pode ser compreendido na sua dindmica, diacronicamente. Daf porque podemos dizer que a hist6ria 6 a mais antiga e universal das ciéncias, pois & medida em que o homem pensa, ele pensa historicamente, ou através de um passado mitico ou através de um devir ut6pico, Quando Arist6: teles dizia que o homem € um animal politico estava dizendo, implicitamente, que ele era também um animal hist6rico, pois néo se concebe a politica fora do seu desenrolar no tempo, isto &, histo- ricamente. Por isto, jf houve quem afirmasse que a “histéria é a politica passada e a politica a histéria do presente” (Seely). Essa frase pode explicar muita coisa que ficaté incompreensivel se tomarmos fa histéria como simples disciplina académica, acima do proprio devir do seu objeto, material para uso contemplativo. Porque a hhist6ria nfo existe apenas para registrar, narrar ou explicar os fatos passades. Ela est inserida no quadro das ciéncias sociais, marca e delimita objetivos para o homem, generaliza os fatos, aponta as tendéncias do futuro, baseada no passado. Daf no poder ser compreendida corretamente se for tomada como simples narra- tiva sem conexdo com @ préxis e sem interligaggio com os grupos 15 sociais que formam a dinmica da histéria, pois ela € uma ferra menta de conhecimento integrada nessa dindmica Ciéncia que procura captar a ago dos homens (em sociedade) no tempo e no espaco, tem de generalizar os rasgos essenciais dessa aco, estabelecer coordenadas para a sua continuagdo no futuro, Se a aco dos homens no pasado € 0 seu objeto — e essa aco quer dizer desenvolvimento, transformagio —, nfo se pode negar que a ciéncia histérica, por isto mesmo, somente se afirma quando, além de analisar os fatos parados ¢ isolados, concatena-os em um perfodo de tempo (periodizagio), consegue descrever ¢ explicar a estrutura e 0 ritmo desse perfodo, e, a0 mesmo tempo, estabelece as categorias que o interpretam e situam hierarquizado nno processo de desenvolvimento global. Para tal, 0 historiador tem de aceitar, em primeiro lugar, que essa descrigao e stia conseqtiente interpretago devem ser dindmicas, nfo apenas por questSes meto dol6gicas, mas porque 0 préprio objeto a ser analisado — a prdxis humana — 6 dinmico na sua esséncia, embora, muitas vezes 0 historiador no 0 perceba no periodo de uma geracio, Esta posicéo epistemolégica fundamental frente ao fato hist6rico e & ciéncia que 0 explica deve ser o primeiro dever do historiador. A prépria metodologia somente seré vilida se o estudioso partir desta consta- tagdo inicial. Daf ter de aceitar fundamentalmente: a) — que a hist6ria € um processus; b) — que se realiza através de choques © contradicées que se verificam na realidade objetiva: ¢ ¢) — su: jeito & causalidade, Sem a compreensio preliminar desses prinefpios nfo é pos sivel fazerse histéria cientifica. Sem a aceitacio de uma continu dade dos fatos no tempo, entrelagados e subordinados, e, ao mesmo tempo, sem se aceitar que essas concatenagdes que Ihes so inerentes no so obras do acaso, mas decorrem de uma causaeio espect fica, o historiador pode fazer tudo, menos histéria Isto, que A primeira vista poderé parecer elementar, no é aceito, no entanto, pacificamente pelos historiadores tradicionais © académicos. Se, por exemplo, Bury declata que “a histéria € uma ciéncia, nem mais nem menos", outros afirmam exatamente © contrétio. Charles Beard afirma que “precisamos desfazer a iluséo de que poderia existir uma cigncia da historia", e Harold ‘Temperley pontifica britanicamente que “a idéia de que a histéria 16 € uma cifncia, jé pereceu”. Por estas raz6es John Lewis, anali sando essa corrente de historiadores diz que para ela “existe um ‘consenso geral de que as palavras ‘causas’ ¢ ‘causalidade” devem set evitadas ¢, em se tratando de complicado agregado de fatos, 2 atribuigo de causas é, na melhor das hipéteses, uma operacéo intelectual altamente duvidosa”. ! Sobre esta tendéncia um cléssico como Henty Berr assim se manifesta: Produziu-se nestes ltimos anos um movimento curioso, do qual Nietzche foi 0 anunciador ¢ que, de um modo geral tende oper a0 conceito de intuigdo, 0 sentimento, 0 dado imediato, fa vida, A idéia de verdade objetiva, conforme uma ordem ds coisas etitica, € uma pscudoidéia; a verdade & nossa fora e te prove por suas conseqtiéncias. Nao pretendemos mais ‘ngir © real polo pensamento claro, a légica’abstrata: a pe luyra de ordem viver ¢ realizar o verdadeito pela agio. Esta reagio contra o intelectualisme vai até fazer do homem, o que hé de mais mével no homem, de mais fugidio, © centeo das coisas. O “pragmatismo" ow o “humanismo” tem origens ‘muito diversas: psicol6gicas, cientfieas, estéticas, morais ¢ reli ggosas. Exprime disposigées mentsis, antes que constitua uma fllosofie, Amalgama idéias dispares e aparece inconsciente & aaélise. Triunfa, sobretudo nos paises anglo-saxdes, cujes ten- inclas misticas espelha. Na Franca encontrou auxiliares Gte testemunhas cutiosas ou benevolentes, em vez de fazer verde" deiros adeptos. Na Itdlia um grupo de jovens fildsofos desbor- antes de vide e de entusiasmo empurraram passageiramente © pragmatismo pare os limites extremos, numa singular mistura de fantasia, de raciocinio, de Hi pessoas que julgam a cerudigo uma superioridade, que & essencial para a felicidade humana conhecer 2 altura do Monte Ararat, que o maior elo fio que se possa fazer do nosso século esté na expresséo “car navalescamente tidicula” 0 progresso das cincies: muito saber, na verdade, no é sendo ineBmodo, £ necessério pér uma venda tos olhos nilo 86 para agit, para cret, mas para pensar. 2 Estas consideragées demonstram como a partir de determinado momento da evolugdo do pensamento histérico, correntes que cha- ohn Lewis, Ciéncia, fé © cepricisme (Sio Paulo: Ed. Brasiliense, s/d), p. 58, 2Hensi Beer, Sintese em histéria (Sto Paulo: Ed. Renascenca S.A., 1946), pp. 205-206. 17 maremos de irracionalistas procuram transformar o pensamento hist6rico em um conjunto de idéias desligado da realidade. Desta forma, 0 historiador deverd fazer uma opgio: ou hé de fato um processo histérico objetivo, sujeito a leis, ¢ desta maneira o estu- dioso pode inferir conclusdes para a aplicacio empfrica e sua coordenacdo a longo prazo, ou tem de aceitar a contingéncia (0 caso, as idéias motoras ou mesmo os impulsos irracionais de personalidades ou grupos) como os elementos que dio conteiido a0 processo hist6rico. Neste caso, a hist6ria se reolizaria através de explosées imprevistveis. Passaria a ser um conglomerado impre- vistvel de fatos atomizados, desligados uns dos outros, de vez que cada um esgotaria os seus efeitos e ressonfincias em sii mesmo nfo no seu encadeamento diacrénico, E a histéria desapareceria como ciéncia. Mas, essas controvérsias l6gicas e te6ricas ndo existem apenas no plano da erudicéo, fruto de friceGes de idéias desligadas do mundo ¢ da sua propria dindmica histérica. Blas, pelo contrétio, so frutos da propria realidade que a cigncia da histéria pretende estudar. Queremos dizer, em outtas palavras, que as diversas escolas e tendéncias nfo surgem por yoluntarismo ou arbitraria- mente, como cogumelos ou por geracio espontinea, mas fazem parte da realidade e também representam reflexos ¢ reducdes de fatos, problemas e fendmenos que cabe ao historiador interpretar, isto é: tém uma raiz social, A histéria, assim, no seu sentido mais abrangente, ¢ uma ciéncia que procura a autoconscigncia do ser hist6rico, mas produz, concomitantemente no seu bojo uma série de correntes que, ao invés de serem conceptualmente autonfirmagéo cientifica, tipificam elementos de alienago de uma parte da socie- dade que a histéria estuda. Assim, 0 historiador ou tem uma Weltanschauung dinamica e dinamizadora ou nfo poderd analisar a ago dos homens no pasado e especialmente no presente, @ no ser de forma alienada, © sistema de valores dos historiadores que assim pensam Teva-os a uma concepedo invertida do processo histérico. Daf as distorgdes académicas dos fatos histéricos a que nos reportaremos oportunamente. © problema que estamos expondo entronca-se em outro que € 0 mais importante e diffcil de ser elaborado logicamente e ser 18 respondido: haveré a possibilidade de um historiador afitmar e comprovar que 0 seu conjunto conceptual é aquele que expressa a autoconsciéncia hist6rico-social no seu proceso ativo ¢ dinamico de transfornago? Ou ndo ha possibilidade de que seja estabe- lecida esta conexfo e certeza e todos os esquemas que possam oferecer um conjunto logicamente harménico podem ser aceitos ‘como capazes de dar uma explicacdo satisfatdria da hist6ria? Em outras palavras: poderd o historiador descobrit 0 sentido objetivo, a esstncia dindmica da marcha dos acontecimentos passados ¢ suas implicagdes no presente ou caberd a ele apenas a fungio de racio- nalizar esses eventos ¢ processos que se desenvolveram no tempo sem nenhum sentido? Quando dizemos que houve uma pré-histéria estamos enunciando uma era que existiu objetivamente no tempo e que pode ser caracterizada por uma ficadores materiais ¢ sociais como quetia Gordon Childe,* ou 0 conceito de pré-histéria é apenas uma forma cOmoda de pensa- ‘mento que permite ao historiador racionalizar uma época sem levar em conta a sua concretude material, social ¢ mesmo biolégica? Ela poderia ser caracterizada ¢ conceituada de diversas maneiras € formas, tudo dependendo do pensamento pessoal do historiador © da sua subjetividade existencial? O exemplo da pré-hist6ria poderd ser estendido a outras fases. Quando Pirenne refere-se a uma hist6ria econémica e social da Idade Média, 0 que procuta expressar? A existéncia de um com- plexo de elementos reais (materiais) ¢ sociais (relacionamento entre os homens) que tornam possivel a0 historiador estabelecer subjeti- vamente uma visio ¢ categorizacio dos elementos objetivos que formavam e enformavam 0 seu contetido, ou ele nada mais faz do que racionalizar os fatos, escolhidos através de um proceso seletivo que favoreceu o estabelecimento arbitrério do seu sistema de valores hist6ricos? * Respondendo a esta dupla intertogagio que colocamos para 6 leitor, Pierre Chaunu responde afirmando: "Gordon Chikle, Que sucedié en (a historia (Buenos Aires: Bd, Lautaro, 1950) passim. 4Heenti Pitenne, Historia econémica y social de a Edad Media (México: Fondo de Cultura Econémica, 1955), passim. A grande aquisipio da histéria no devorrer dos sltimos oitenta anos, situa-se ao nivel de uma escolha cada vez mais consciente. Ao nivel, portanto, daquilo a que se chama = problemética. Nessas condig6es, destaca-se quase a priori trés regras que deserevem a evolugdo da nossa diseiplina ‘A primeira dessas regras comanda a periodizagto, Uma vez mais, © papel motor cabe 8 uma historia bastante, sendo hisiéria contemporines, pelo menos a histéria moderna, faguela pela qual a abundincia de documentagio comanda uma escolha. Ela cresoe com os multiplicadores do Escrito, ‘8 estatistion dos Estados, 0 nmero dos homens e @ massa global das informagoes que citcula entre um ndmero cada ‘yer mais clevado de homens alfabetizados. 8, portanto, no ue se refere i hist6ria modema que se apresenta com mais nitidez a questio de uma problemética histérica, ‘A segunda regra comanda 2 escolha da problemitica, A histéria é chamada a trabalhar cada ver mais em ligasso ‘com as novas cifncias do homem, explicatives do. presente, am ampliar © seu campo de observagé fempo curto, no qual so encerradas pel futras curtas séties elaboradas se ee vollarem para a histéra, Uma das fungées da hist6ria atwal consiste, por conseguinte, fem prolongar ‘no passado at séries de que podem dispor 86 cigneias humanas, Mas 3 histéria no pode representar seu papel no sentido mais nobre de cigncia auxiliar das outras cigneias do homem, essas ciéncias da agio, se nfo usar as probleméticas dessas ciéncias. E com o auxiio dessas proble- miticas que os historiadores prolongario as séries que multi plicarfo a efiedcia das cigncias humana. ‘A torcsira regra é 9 da idee-volta entre 0 presente e 0 passado, Intimamente ligada & elaboragio de cia do hhomem, ao mesmo tempo miltipla ¢ una, a historia recebe suas injungSes do presente, Suas problemfticas so extraidas através dos diferentes setores da cincia social, das sucessivas angiatias do nosso tempo. A relativizagio da propria histéria ‘que Ia Populinidre jé entrevira, ao que parece, hi quatro s€eulos, € 9 consequéncia em potencial do triunfo do histo © que Pierre Chaunu considera relativizagdo da histéria, no € 0 voluntarismo jrracionalista que antes analisamos, mas a sua participago como ciéncia auxiliar das demais ciéncias do homem, Pierre Chaunu, A historia como cineia social (Rio de Janeiro: Zehar Editores, 1976), pp. 68-63 20 trazendo a sua parcela de conhecimento objetivo para a compreen- so da problemética emergente das angistias do homem atual. Estas consideragées de Chaunu, especialmente ao afirmar que fa historia surge das sucessivas angtistias do nosso tempo, leva-nos a uma reflexfio sobre o problema to discutido que é a ligagéo entre cifncia ¢ ideologia. O problema das ideologias, 0 seu signi ficado da coincidéncia ou divergéncia entre ideologia e ciéncia, std sendo atualmente muito debatido e questionado por parte de historiadores e especialmente socidlogos neopositivistas. As defi niigdes sobre 0 que vem a ser uma ideologia tém muitas vezes um cardter ... “ideol6gico”. Nao queremos, por isto mesmo, dar mais uma detiniggo do que entendemos por ideologia. Preferimos um método mais compreensivista e que parte do pressuposto de que ninguém pode raciocinar sem leyar em conta — consciente ‘ou inconscientemente — a existéncia de um suporte ideol6gico pata a compreensio do mundo exterior, embora empiricamente. Isto porque uma ideologia ndo é apenas um conjunto erudito, conceitualmente elaborado, fechado, estabelecido acima dos fatos, mas a propria relagio indispensdvel entre 0 sujeito ¢ 0 mundo exterior; relagéo que produz, de uma forma ou de outra, uma série de idéias explicadoras da dinamica que a natureza ¢ a socie- dade, onde 0 sujeito cognitivo est engastado, proporciona. Desta forma, no hé pensamento sem um suporte ideolégico, O que existe 6 que muitas vezes a captaco imediata pelas sensagdes do mundo exterior produz um conjunto fragmentério, contraditério © confuso de idéias e de relagées nelas bescadas que, & primeira vista, parece surgir espontaneamente, de forma automatica e por simples reflexo imediato. Uma das dificuldades para se compreender certas formas de pensamento espontaneo como sendo decorrentes de uma ideologia € a sua falta de perspective histérica, o seu e-historicismo. O seu horizonte projetivo é quase inexistente. Por isto mesmo os fatos se insolam e nfo so vistos como um processus. Nao ligam o tempo aos acontecimentos e nfo podem ver, por isto, a continuidade desses fatos, a sua conexfo interna com o passado: daf nao pode- rem alcancar 0 autoconhecimento. 21 Mas a histéria “€ para o autoconhecimento humano. Julga-se geralmente que é importante para o homem, que ele se conheca a si prOprio, nfo querendo isto dizer que ele conhega as suas particularidades meramente pessoais, aquilo que o diferencia dos ‘outros homens, mas sim a sua natureza de homem, Conhecer-se a si mesmo significa saber, primeitamente, 0 que seré o homem; fem segundo lugar que espécie de homem se é; em terceiro lugar fo que ser o que se é”.# Daf inferimos que a histéria tem uma dimensio diacrénicas essa dimensio, por seu tumo, implica a constatagdo de um pro: c2ss0 € que esse processo do homem sido e aser é 0 objetivo da hist6ria, Mas, como pode o historiador — voltamos a insistir — saber se a anilise que procedeu dos elementos de que dispée implica 0 conhecimento desse processo? Ora, para que haja uma coincidéncia ou um nivel ponderdvel aproximativo entre 0 fato objetivo, histérico, e a interpretagao que Ihe dé o estudioso, neces- sita-se de um instrumental de anélise que consiga captar, na sua esséneia, através de categorias, esse processo objetivo. Um método autoconsciente de andlise histérica. © método deveré refletir, por tanto, na sua esséncia, os elementos que constituem o vinculo dos diversos fatos e processos hiistéricos no seu desenvolvimento con- traditério e 0 pensamento do historiador. Sera, porém, isto possivel? Dizem alguns que a histéria lida mais com valores do que com 0 préptio desenvolvimento hist6rico objetivo; e 0 homem, por set o elemento ctiador desses valores, estabelece uma hieratquis, uma escala de valores na histéria de acordo com a sistemética valorativa estabelecida por ele, engas- tado em uma sociedade especifica ¢ fazendo parte de um grupo ¢ de determinada classe social. Desta forma, 0 fato histérico passa a ter valor & medida que o homem, o ser cognitivo, dé aos aconte- ccimentos uum valor que Ihe € conferido, Mas, achamos que os elementos valorativos da histéria prendem-se a outro esquema de raciocinio. E verdade que 0 homem confere valores aos objetos, fatos € fenémenos. Isto, porém, néo quer dizer que esses objetos, fatos ER. G, Collingwood, A idéia de histéria (Lisboa: Ed. Presenga, s/4), p. 22. 22 ¢ fendmenos s6 passaram a ter conteddo, esstncia, apés té-la rece- bido de fora para dentro, injetada pelo historiador que the con- feriu determinado valor. Nao. O inverso é que verdadeiro. Os objetivos, fatos ¢ fenémenos possuem propriedades que Ihes sic jnerentes, atsibutos que thes sto especfficos quer na érea das citncias naturais quer na hist6ria. Ao descobrir essas propriedades «esses atributos inerentes 20s objetos, fatos fendmenos no nivel hist6rico, € que © ser raciocinante confere um valor correspon: dente aos seus atributos e & sua esséncia, Isto significa, antes de mais nada, uma relagdo entre essas propriedades e as necessidades de quem as descobriu. Na histéria a mesma coisa se verifica. Quando, antes do conhecimento desses atributos © qualidades, o homem confere valor a um fato, objeto c, inevitavelmente cai na alienacdo, afastando-se, assim, da possibilidade de conhecé-los. © mundo material, a natureza em toda a sua mGltipla complexidade ¢ 0 objeto do conhecimento do homem. Ele préprio, elemento da natureza é, ao mesmo tempo, objeto do cenhecimento € sujeito conhecedor Os valores, portanto, sio conceitos que se interpdem entre ‘0 mundo objetivo e © grau de conhecimento que um grupo social ou classe passui de si mesmo. Daf eles nao serem fixos porque © comhecimexto, a0 penetrar cada vez mais na esséncia de cada fendmeno espectfico, modifica-o. Em outras palavras: os valores sao tepresentagées de um determinado grau a que chegou 0 pro- cesso de conhecimento. A prética, ao influir sobre o mundo exterior e a0 exigir a conceituagéo abstrata desse processo dialético emer gente, atua sobre os valores existentes ¢ ao mesmo tempo os trans- forma, A praxis €, portanto, o elemento que testa os valores € a0 ‘mesmo temgo modifica-os, reaproximando-os cada vez mais da sua esséncia. Acontece, porém, que a préxis social € contradit6ria, Deter- minados grupos sociais, classes ou estamentos atuam com um objetivo determinado; outros procuram objetivos diferentes e muitas vvezes contflitantes. Desta forma, a histéria reflete, nas suas cate- gorias € no seu embasamento légico, esse processo antindmico. Nas sociedades divididas em castas, estamentos ou classes os valores 2 sio, por isto mesmo, divergentes ou antagdnicos. Este antagonismo contraditério através do qual a histéria se realiza. Nesse processo de desenvolvimento contraditério ha camadas e classes interessadas em aprofundar 0 conhecimento da realidade porque a sua prética assim 0 exige. So exatamente aqueles grupos que esto diretamente ligados ao processo de produgio. Exigem uma dinamica hist6rica permanente pois nesse processo eles avan- ‘gam quer no sentido técnico e cientifico, quer no sentido social, € esse avango tem de ser categorizado pela ciéncia hist6rica. Cho- cam-se, entdo, no espaco social, com aquelas camadas ¢ estratos que estio no cume da pirémide, e, por isto, desejam uma estag- nnago do proceso histérico © ctiam uma imagem estética do ‘mesmo, procurando eternizat 0 seu perfil, A medida que este proceso se aguca, 0 agrupamentos engajados no proceso da pro- dugZo avancai no caminho do conhecimento ¢ os outros caem progtessivamente na alienaedo, por se chocarem com a dinémica histérica e social em curso, Certas correntes da'hist6ria querem, por isto mesmo, ver nos valores apenas uma racionaliza¢ao que o homem faz de um mundo caético e sem sentido, Desta forma surge uma axiologia invertida que estabelece, como conseqiiéncia, uma metafisica que poderd levat, paradoxalmente, 20 irracionalismo absoluto. Isto porque se nfo hé um substrato material, ou melhor, objetivo, se nio ha nenhuma relacdo causal entre a esséncia dos fendmenos ¢ os fatos, © mundo material objetivo e 0 pensamento humano que o reflete, se esse nexo foi rompido ou nao existe, entfo todas as concep- ges do mundo sao igualmente verdadeitas e validas porque nada representam. Se néo hé uma base objetiva, isto 6, uma natureza exterior e uma préxis humana que somente se humaniza & medida que nela penetra pelo trabalho, entio tudo € vilido, todos os valores se squivalem,afo epifendmeno, desigados de qualquer validez cient Benedetto Croce ao tentar anslisar 0 problema da subjeti dade em histéria equivocou-se quanto ao seu conceito, Para ele “onde quer que, voltemos, deparamos, na hist6ria, com este ele- mento subjetivo. E em verdade, é de admirar 0 pasmo que muitos 24 seniem diante dele, Esse elemento subjetivo & suco do nosso cére- bro; 0 que no significa exatamente — ponderava um velho filésofo napolitano — suco de beterraba, ora bolas! Acreditam muitos que, uma vez introduzido o elemento subjetivo na histéria 1 causa deste torna-se desesperada, 4 a busca dos documentos oferece miltiplas dificuldades; se [hes acrescentarmos as que advém do pensamenio. do homem, é melhor nao falar em exatidao ¢ em verdade histérica”. ? © que Benedetto Croce nfo discerniu convenientemente foi a impossibilidade de se fazer histéria sem subjetivizagio da sua verdade objetiva. Todos 0s conccitos, as categorias com que a ciéneia histética labora, so subjetivas: por isto que elaboradas pelo cérebro humano, Mas, 0 que precisa ser destacado & que elas s6 tém eficiéncia prética quando nao sio arbitrariamente esta- belecidas, mas representam 0 nexo aproximativo mais elevado entre © conhecimento histérico em determinada época ¢ a realidade. Ninguém pod: fazer histéria ou qualquer outra cifncia social, sem usar desse instrumento analitico que € ctiado pelo cétebro do estudioso. Seria infantil negé-lo. Isto, porém, nao invalida a objeti- vidade cientifica da hist6ria. Pelo contrério, Em determinadas cir- cunstfincias o historiador tem de usar a imaginacéo, porém dentro de um enquadramento idéntico aquele preconizado por C. W. Mills para a sociologia ou a imaginagio hist6rica indicada por Collin- good para a prépria histéria.® O que n@o se pode aceitar 6 a desvinculagio entre a realidade e 0 pensamento. Para que isto nao acontega, o historiador deverd ter a sua 6tica voltada para a ago humana. Se ele se colocar neste Angulo de anélise dificilmente extrapolaré para conclusées subjetivistas ou irracionalistas a que se refere Henri Berr. Entdo, a medida que 2 hist6ria é conkecimento € também aproximago ou coincidéncia com os processes dinfmicos do mundo exterior ¢ suas leis; da mesma forma que a alienagdo é distenciamento, compreensao volun- em Dié TBenedetto Crece, “Subjetividade © objetividade da historiografi vio dle Sto Paulo, 22-4-1956. 8, Wrigth-Mill, Sociological Imagination (New York: Oxford University Press, 1959). 25 tatista, € actéscimo erudito sem penetragio na esséncia do fato histérico, Para que a histéria seja conhecimento, conforme jé assinalamos, 0 objeto dessa ciéncia deverd ser tomado como um Proceso que se desenvolve no tempo, contraditoriamente, ¢ sujeito a causalidade. * Isto no implica afirmar que 0 historiador deixe de possuir tuma ideologia, um ponto de vista consciente. Pelo contrério. Se assim fosse, ele se limitaria a reproduzir documentos, no nivel ‘meramente historiogréfico. E, como sabemos,"o documento é apenas ponto d& partida, matéria-prima para a subseqiiente interpretagéo do fato, Assim, para nés, a histéria subjetiva é apenas aquela que, ao invés de usar no seu critério de andlise 0 método I6gico, dialé- tico e matetialista, isto é, aquele método que estabelece uma relacio entre 0 historiador € o conhecimento da esséncia dos fend: menos hist6ricos, usa o método analdgico para explicé-los. Para sermos melhor compreendido iremos exemplificar © que entendemos por isto Sobre este movimento aproximativo entre a hisGria e a vealidade objetiva, (mundo exterior), consultar: Bernhard J. Stern, Historical Sociology (New York: The Citadel Press, 1959); C. Wright-Mills, Sociological Imagination, cits R. G. Collingwood, A iddia de histérie, cit: V. Gordon Childe, Sociedade y conocimionto (Buenos Aires: Ed. Galatea, s/d) © Evolueio Social (Rio de Janciro: Zahar Editores, 1961); Paul Q. Hirst, Evolugdo so- cial e categorias sovioldgicas (Rio de Janeiro: Zaher Editores, 1977); Pierre Chauny, A histéria como eigneia social, cits Friedrich Engels, Ludwig Feuerbach y ef Jin de la filosofia classiea alemana (Moscou: Ediciones em Lenguas Extrangeisas, 1946); Eric J. Hbsbawn, The age of Revolution Europe 1789-1848 (Londres: Weindenfeld and Nicolson, 1962); J. Mond zhidn, Etapas de la historia, Teoria marsista de las formaciones socioeco- ndmicas (Moscou, Editorial Progresso, 1980); LeBncio Basbaum, O pro- cesso evolutive da hristdria (Sio Paulo: Ed, Adaglit, 1963); José’ Honévio Rodrigues, Teoria da histéria do Brasil (Introdueto metodolégiea) (Rio de Janeiro: Cia. Editora Nacional, 1975), 2 vols.: Guenther Rigobert et ali Estado y clases en la Antiguidad escravista (Bueno Aires: Ed. Platina 1960); E. A. Kosminski, "A filosofin da histéria de Ar Estudos Sociais, n.’ 13, junho de 1962; V, Seminov, ficas das classes ¢ de luia de classes na sociologia burguesn contemport 12a", em Estudos Sociais, n" 11, dezembro, 1961. Althusser, embora nem sempre um autor claro e eoerente, esereve neste tentide, com neerto, que 26 No inici da sociedade 0 homem raciocinava de uma forma que estava subordinada ao grau de desenvolvimento de cada comu- nidade na qual ele estava engastado como produtor. A natureza que o envolvia ¢ da qual dependia quase que inteiramente, influen- ciava de modo decisivo o seu método de raciocinio. Ele pensava analogicamente. Quando via o sol surgir pela manhi e ouvia canto de um péssaro matinal pensava que o nascimento do sol estava subordinado ao canto daquela ave. © pensamento anal sgico explicava, assim, de forma magica para o chamado homem primitivo, os acontecimentos que se verificavam na sociedade. Com 1a maior divisio social do trabalho, a complexidade mais acentuada da economia e o dinamismo interno maior das forgas produtivas, a invengfio de novas técnicas de dominagio do meio ambiente, formas de regadio, habitacdo contra as intempéries e outras, fatos que levavam o homem a transformar gradualmente a natureza, a0 invés de viver apenas na sua dependéncia, como acontecia na fase recoletora, os primeitos elementos do pensamento légico surgi- tam e fizeram com que as duas formas de pensamento — 0 I6gico € 0 anal6gice — se desenvolvessem cada yez de forma mais inde- ‘devese observar, dé modo geral, até a época recente, os historiadores escamatcaram a necessidade de te achar uma resposta teérica para esse probleme do 2bjeto. Se tomarmos, por exemplo, as consideragbes de Mare Bloch sobre « ‘eiéncia da hist6ria’, verificaremos que todo o seu esforco irigese apenas & constatagio de uma metodologia. A tentativa de deli- nie 0 objeto dos trabalhos dos histotriadores revelase de {ato aporética, 4 portir do momento em que se demonstrou que esse objeto nio pode scr" '0 passady’, nem, finalmente, nenhuma determinagio pura e simples Go tempo: 'A prépria idéia de que © pastado, enguanto passado, possa ser objeto da cignein ¢ absurda’ (Apologie pour histoire, p. 21). Apés testa conclusio negative, perfeitsmente convincente (embora as conclu: ses nem sempre sejam tiradas pelos fildsofos), as tentativas como essa de Bloch limitam-se 2 uma definigéo incompleta, que lanca o problema do objeto no indsterminado de uma totalidade: ‘@ homem, ov melhor, os homens’, e eirscteriza 0 conhecimento unicamente como certo conjunto de métodos. Nao eabe aqui analisar 0 empirismo que decorre finalmente dessa definigZo incompleta, mas deve-se observar que o problema excamo- teado de forna te6rica é necessariamente resolvido de modo pritico a cada instante’. Louie Althusser ef alii, Ler O capital (Rio de. Jancio: Zaher Editores, 1980), 2° volume, p. 207. 21 pendente, diferenciada e mesmo antagénica, A medida que o homem, no proceso de dominar a natureza através do trabalho, necessi- tava perpetuar ou melhorar e desenvolver uma técnica ou dinamizar ‘0 processo de interagdo humana, recorria espontaneamente, mesmo empiticamente, a uma forma ldgica de raciocinio. Quando queria explicar um fato sem conhecer a sua causa, cafa nos trilhos do pensamento mdgico. Na histéria a fuga & causalidade leva inapela- yelmente a0 analdgico, ao subjetivismo historico. Para nés, portanto, o sujetivismo em histéria nfo € 0 histo- jador langar mao do pensamento (mesmo porque isto seria impos- sivel) ou usar a imaginacdo em certos casos, mas € usar 0 método analégico de raciocinio para explicar os fatos e processos histé- ricos globais. ‘Modernamente tem-se falado insistentemente em crise da hi t6ria, Crise teériea, nos seus métodos de anélise, crise nas suas coordenadas gerais. Isto Ievou um historiador como Theodor Mommsen a afirmar que vivemos no presente mas nao o compreen- demos. Esta falta de compreensdo do que esté acontecendo levou alguns historiadores a posigdes irracionalistas, como € 0 caso de Spengler que na sua Decadéncia do Ocidente pintou néo a deca- déncia do mundo ocidental e das svas culturas, mas toda a crise estrutural da sociedade capitalista, que ele nao entendeu. Esse inracionalismo, que jé tinha suas rafzes em pensadores que 0 ante- cederam, ou filésofos como Nietzche, consolidou-se apés o final da Primeira Guerra Mundial, ampliou-se antes da Segunda — che- gendo a embasar, ideologicamente o fascismo eo nazismo — ¢ atualmente tem guarida em diversas éreas de pensadores, muitos dos quais, logo apés o final do segundo conflito mundial, endos- saram o existencialismo como concepedo do mundo. Néo foi, por- tanto, uma crise que se originou internamente, através de um simples desenvolvimento ldgico interno da hist6ria como ciéncia (crise de crescimento), mas uma crise reflexa da estrutura do sev proprio objeto de conhecimento, nas instituigdes sociais euja repre- sentatividade passou a ser contestada, Benedetto Croce, quando se referiu ao subjetivismo em hist6- ria teve oportunidade de apontar as dificuldades que a simples coleta de documento jé apresenta para o historiador. Na época 28 contemporénea, as dificuldades no particular ctesceram muito mais. Por exemplo, na Gri-Bretanha — segundo E. Palme Dutt — existe um regulamento oficial que proibe até passados cinquenta anos, 0 acesso a documentos do Estado. Desta forma, fontes impor- tantissimas sobre as duas grandes guetras estiveram até hé pouco tempo guardadas ou continuam inacessiveis aos histotiadores. Em ‘outros paises hé regulamentos idénticos ou parecidos. Isto leva 0 historiedor a desconhecer a sua época e possibilita a que afirme- tivas como as de Theodor Mommsen possam ser explicadas ou compreendidas. Daf surgem, também, as explicagSes escatolégicas ea chamada crise da histéria. O historiador tem de se voltar cada vez mais para o passado, para as épocas liberadas, deixando 0 homem comum completa ou parcialmente desinformado sobre os grandes assuntos e os problemas cruciais do mundo atual. Mesmo nessas dreas liberadas, 0 historiador encontra uma série de barreiras institucionais ou indiretas quando procura estudar a histéria dos nossos dias. Ficamos, por isto, confinados & hist6ria dos museus. Mas, como efirma José Honério Rodrigues “a hist6ria nfo é dos mortos, mas dos vivos, como uma realidade presente, obrigat6ria para a consciéncia, Por isso ela nfo é estranha a vida. Mas, infe- lizmente, a hist6ria pela histéria, indiferente aos impulsos ¢ esti- mulos da vida, acumulagdo morta de materiais, quando nao colecao factual de nomes e datas, tem dominado o esctito histérico e 0 conduziu a uma crise. Esta crise se originou da excessiva espe- cializag&o nos aspectos particulates ¢ singulares, do domfnio da rminticia, da falta de conseqiigncias para a compreensio do presente, da desatenga> aos interesses ¢ as necessidades atuais”. Esta crise da histéria 6, também, uma crise histérica. Por isto mesmo seré compreendida se fizermos um balango analitico critico dos wltimos cingtenta anos e compreendermos que fatos como 0 dilaceramento surgimento de novos Estados ¢ institui- 96es, status nacionais, a presenca de revolugdes © guertas, movi- mentos de Ebertagio nacional ¢ repress neocolonialista, 0 des- anche (sempre direcionado em sentido contrério aos interesses da W José Honério Rodrigues, Histdria w historiedores do Brasil (Séo Paulo: Ed, Fulgor, 1965), p. 15. 29 maioria) da tecnologia influftam enormemente nas categorias da historia e a cncaminharam, muitas vezes, para esta posiggo de fuga apontada to bem por José Honério Rodrigues. Posigao que no € fruto apenas de uma crise te6rica, mas nasce no préprio Amago de uma era eritica que tinha de fazer grande parte dos historiadores desempenharem o papel de seus intelectuais orga nicos. 30 HISTORIADORES COMO INTELECTUAIS ORGANICOS DO SISTEMA ESCRAVISTA Da mesma forma como, na era atual, intimeras correntes hist ricas surgem para racionalizar as contradigées e dilaceramentos do istema capitalista, durante a escravidao, no Brasil, a sua histo- jografia era cooptada para justificar o modo de producao escra- vista, a sua necessidade econémica e a impossibilidade de se apresentar ostro modo de producio capaz de substitui-lo. Se nfo partirmos da posigfo tedrica de que essa historiografia existia como suporte ideclégico desse sistema, com o apoio institucional das suas estrutu:as de poder, nfo poderemos compreender como os seus autores trataram 0 negro e 0 escravo (uma coisa estava imbt cada na outra) nas suas obras ¢ nas stas posigdes politicas. Escreve, neste sentido Geraldo M. Coelho que “a sociedade que se definiu em torno de agricultura brasileira rural e escravista, representou ‘a consolidacéo do poder da classe dominante dos proprietérios rrurais que, jf em 1822, promovera ¢ sustentara a independéncia do pais e a forma pela qual se organizara o império, Assim, a orga- nizago nacional se processava em conformidade com os interesses dessa classe, representada, a nfvel politico, pelos partidos atuantes. Liberais © conservadores, durante o II Reinado, existiam como frag6es formalmente distintas da mesma classe dominante do pats, conforme se observa na hist6ria parlamentar brasileira. © mesmo ocorria em relagao A organizacdo juridica, religiosa e cultural, visto as relagdes de dominancia entre a estrutura e superestrutura da sociedade brasileira”, ' E dbvio que essa sociedade de estrutura escravista tinha de produzir elementos que a explicassem ¢ a justificassem historica- ‘mente, A histéria, neste contexto escravista, esctita por historié- grafos ou intelectuais ideol6gica ou economicamente subordinados Geraldo M, Coelho, Hisiéria e ideologia: 0 IHOB e @ repdblica (Belém: Universidade Federal do Pard, 1981), p. 5 31 0s seus interesses e valores, tinha de refletit os interesses domi nantes, isto €, 0s valores que representavam os interesses dos senhores de escravos. Isto equivale a dizer que refletiam os yalo- res racistas desses senhores ¢ justificadores da escravidio. Dai nasceu, em decorréneia da prépria estrutura dessa sociedade escra- vista, uma intelligentsia a ela subordinada, e os seus historiadotes foram cooptados pela estrutura de poder'da época como 0s seus racionalizadores no nivel da historiografia. Esses autores, por outro lado, de um modo ou de outro, estavam ligados institucionalmente a0 governo imperial, o que vale dizer ao regime escravista. Dot ‘gos José Goncalves de Magalhdes era visconde de Araguaia; Ma- uel de Araujo Porto Alegre, era o barfio de Santo Angelo; Fran- cisco Adolfo Varnhagen, o pontifice da historiografia da época, era visconde de Porto Seguro, além de Antonio Goncalves Tei- xeira de Souza, Jodo Manuel Pereira da Silva, Joaquim Norberto de Souza Silva e muitos outros que conseguiram subvengdes, fon- tes para pesquisas no exterior € outras formas de protegio do poder monérquico, Nao apenas individualmente mas através de instituigdes culturais, Geraldo M. Coelho escreve, pot isto, com acerto que “em termos do Brasil do século XIX, dentte’as institui- ges que realizavam a producéo ¢ a reprodugio da ideologia da classe dominante, ocupam papel especifico as associagdes cultt- rais, todas, aparentemente, representando apenas 0 gosto por um determinado tipo de cultura consumida mais imediatamente pela elite intelectual do império, mas operando realmente no campo da ideologia”.* Dentre essas instituigdes criadas para a reprodugéo de ideo- logia escravista do império, o Instituto Histérico © Geogréfico Brasileiro foi aquela que desempenhou um papel dos mais ativos © dinimicos, Elaborou um tipo de hist6ria “oficial” dentro de padrdes conservadores-escravistas e foi, através da assisténcia do proprio imperador, a matriz da produgao historiogréfica do Brasil escravista, Neste particular, ainda é Geraldo M. Coelho quem escreve, com razio: 2 Ibid, p. 5. 32 Acedito poder sitar, dento desta perspectva 0 Inttto His: teico © Geogréfice Brasileiro (IHGB). A instulgfo e 0 papel fue ecupou na socedade brasileira no sfculo XIX, asim eomo Spo de hstéria que elaborou, operou no sentido de produ Sire veprodusir uma fagio da ideslgla da classe dominante Bracime apart do sone de olan, «hota In no a -clssedominante gaia una forma mals ampla do com n Erplicava sua posigio no sistema do clases. Astin, os intlec: fie que fe organzavam em foro do THGB, atuando a nivel de superesttuura, produrram umn modelo de histriografia — sista oficial que consagrave 0 sistema de. dominasio xbtente no Brasil, fondo com que essa produséo inteletual Sxereese uma agio de_retomo sobre a estruira. [...] © THOR, na condigio de aparelho ideolGgloo do Eslado, desen vovveria uma atividade intelectual — a produgfo da bistéria ingrada na ieologia da claste dominante dos propriciros fuels do Brasil do. séoulo XIX. A. visio do mundo. dessa Glass dominante se farin represenar através da forma. pela Gil sea abordado 0, proceseo histéico‘brasiliro, se rig Atndo, assim, 0 diaeutso histérieo como representaco materi liza da ideoogi. B prossegue ainda esse autor na mesma linha de raciocinio, ‘com a qual concordamos: De fato, a produgo histérica desse periodo foi toda ela ela- borada em fungio de justificar a ordem escravista e inferiorizar 8 Tbid., pp. 1-11 33 © negro. Era uma intelectualidade orginica desse tipo de orde- nnago social, dele se nutrindo © por ele sustentada através de canais institucionais. Sendo vejamos: Varnhagen foi adido de pri- meira classe da nossa diplomacia em Lisboa, nomeado a 18 de maio de 1842, por sugestio de Vasconcelos de Drummond ¢ influéneia do Instituto Histérico e Geogréfico Brasileiro, tendo depois viajado pela Europa através de comissdes e outros recursos do governo Imperial; Gongalves Dias foi incumbido pelo mesmo governo imperial, em 1851, de copiar documentos em estados bra- sileiros ¢ enviado, em 1854, como encarregado de estudar a edu- cago primaria ¢ secundaria na Europa onde pesai arquivos; Jofo Francisco Lisboa, em 1856, assumiu a’ responsa- bilidade de pesquisar os arquivos de diversos paises; Joaquim Cae. tano da Silva é encarregado da legaco brasileira em Haia, onde faz pesquisas em arquivos holandeses: Ramiz Galvio € comissio- nado pelo governo imperial para estudar a organizagdo das biblic- tecas européias; José Higino é enviado a Holanda para pesquisar nos seus arquivos. Sem nos referitmos a outros como Oliveira Lima e Norival de Freitas, todos financiados pelo governo imperial de diversas manciras, inclusive através de verbas do proprio impe- rador, D. Pedro II, repassadas a0 Instituto Histérico ¢ Geogré- fico Brasileiro. Nao estamos aquf abordando a época colonial quando a pro- dugio histérica era mais de cronistas do que de histoviégrafos. © livro de Antonil, hoje cléssico, publicado em 1711, simples- mente porque retratava com realismo a situago do negro e do escrayo no Brasil foi apreendido, embora outras razées fossem apresentadas para justificar a medida, O livro de Frei Vicente do Salvador ficou inédito até 1881, quando foi descoberto por acaso, AAs outras obras dessa época ou se comprazem em descrever as riquezas da natureza exuberante © exética, ou se concentram, quando falam na nossa populacio, na figura do indio. Isto sem falarmos nos nomes Frei Gaspar de Madre de Deus, Pedro Taques de Almeida Paes Leme, Frei Antonio de Santa Maria Jaboato, entre outros. Como escreve Almir de Andrade, nessa época: 34 Byidentemente no concordamos com essa visio de Almir de Andrade, para o perfodo imperial, expressa na sua importante € infelizmente inconclusa Formagao da sociologia brasileira, o qual procura ver uma espécie de proto-nacionalismo nos textos desses esctitores. No entanto, como nao nos cabe analisar, neste capitulo, 1 cronistas coloniais, nao iremos nos deter numa anélise dos mes- mos. Mas a produgio historiogréfica brasileira, especialmente a dos séculos XVIII e XIX, caracteriza-se pela omissio ou subes- timagdo completa ou quase completa em relagiio ao negro, a0 eseravo, Quanto & producdo do inicio do século XX hé uma revi- so por parte desses historiadores em relagio ao negro. Hé uma biologizaedo da hist6ria, através de teorias que se diziam cienti- ficas, ctiadas para justificarem a aventura colonialista ¢ todas elas, na hierarquizagao das racas, colocavam 0 negro no siltimo patamar da escala racial: 0 negro era inferior, 0 fator de atraso do nosso desenvolvimento social e do retardamento no nosso processo ci Tizatétio. ‘Apés a proclamagio da reptiblica e o fim do mecenato of do imperadcr, através dos Institutos Histéricos, inicia-se a fase cientificista da nossa hist6ria que malsinava o negro como compo- rnenté demogréfico do pais por ser inferior biologicamente. Pode- mos ver, talvez como primeira producao cientificista a Histéria do Brasil, de Joio Ribeiro, cuja primeira edigdo ¢ de 1900. Queremos ‘TAlmir de Andrade, Formagio da sociologia brasileira. Os primeiros estu- dos sociais no Brasil, séculos XVI, XVII e XVIIT (Rio de Janeiro: Ed. José Olimpio, 1941), pp. 25.24 encertar este capitulo tentando demonstrar que toda a nossa pro- dugio historiogréfica, quer na colénia, império e repiblica, foi ferramenta ideolégica dos senhores de escravos, no inicio, , depois, instrumento racionalizador da estrutura que se formou apés a abo- ligo, quando 0 negro egresso das senzalas foi ocupar as grandes franjas marginalizadas que existem até hoje, sendo usado o pre- conceito de cor, subjacente, para justificar 0 imobilismo social em que a populagio negra e nfo-branca de um modo geral se encontra. No sentido de uma avaliagiio da historiografia do Brasil em relagio ao negro e ao escravo, poderemos citar algumas obras rele- vantes. A primeita é O Espelho e a imagem, de Lufs Carlos Lopes, ea segunda A escraviddo na Paraiba — Historiografia e histéria, de José Octavio, No entanto, a primeira nfo faz uma andlise diacré- nica sistemética dos nossos historiadores, mas, através de cortes teligentemente selecionados, consegue dar-nos uma visio sinté- fica do processo, A segunda obra, regionaliza o universo de andé- lise a0 atual estado da Paraiba, dando-nos, porém, aberturas para uma compreensiio mais geral desse processo de subordinagao da nossa produglo hist6rica & estrutura do sistema escravista. No pri- tmeiro livro, Lufs Carlos Lopes aborda nao apenas 0s autores de t6rias do Brasil, no seu sentido convencional e sistemético, mas pensadores politicos como Azeredo Coutinho, Frederico Leopoldo Cesar Burlamaqui, além de obras como as de Abreu e Lima, Sou- they, Armitage, Varnhagen e muitos outros. Analisando 0 con- junto dessa produso, quer de pensadores politicos, quer de crf- ticos como Silvio Romero, afirma que: “O etnocentrismo evolui do espirito cruzadistico a0 contra-reformismo jesuitico em todas as suas ambiguidades até a0 positivismo racista construido vigo- rosamente na segunda metade do século XIX. O Brasil, nfo s6 importou, como amoldou, as variagSes do etnocentrismo & sua pré- pria retalidade mestica. As ‘leituras’ desta ideologia nfo foram cépias © nem idéias fora do lugar [...]. Mas sim, uma exptessio da nossa cultura, indmeras vezes alienada das maiotias, 8 Luis Carlos Lopes, O espelho # a imagem — O escravo na historiografio ‘brasileira (1808-1820) (Rio de Janeiro: Bd, Achiemé, 1988), pp. 111-112, 36 Por outro lado, queremos acrescentar que essas idéias nunca estiveram fora do luger porque mostravam, de diversas formas © em diversos graus, durante a escravidio, a representagdo de in lectuais orginicos do sistema escravista ¢, posteriormente, dos vversos blocos de poder oligérquico que o substituiu. A fase positi- vista, que, Tigada ao evolucionismo vulgar biologiza a histéria, j6 ‘uma remanipulagdo posterior capaz de mostrar 0 negro como inca- paz biologicamente de evoluir socialmente até a civilizagéo ima- nente. Substituiu aquela primeira fase que sempre colocou 0 negro como “bérbaro” ¢ que somente seria civilizado pela cristianizagio via escravidio. outro livro que presta uma contribuigdo & compreensio do assunto 6 0 do historiador José Octavio. O préprio subtitulo do livro Preconceitos ¢ racismo numa produgéo cultural bem demons- tra a visio realista e radical que imprimiu ao seu texto. Usando de historiadores que escreveram sobre o Brasil, como Frei Vicente do Salvador e outros, aproveitase, também, da bibliografia local para mostrar que tanto a produgio historiogréfica que generalizava sobre a evolugio do Brasil, quanto a regional, com excegbes rar simas, viam 0 escravo como simples méquina de trabalho e o negro como membro de uma raga inferior. No particular, © seu livro, embora abordando um universo regional, reproduz, em substincia, o que foi a historiografia brasi- Jeira em relago 80 negro e 20 escravo. * Muitos autores procuram atualmente ver nesta posigio ideo! gica da historiografia brasileira simples causas externas, quer em relago A componente dos jesuitas — contra-reforma —, quer em relago A reagdo cientificisia do inicio do século XX, No entanto, quem assim pensa, vé apenas 0 aproveitamento formal de idéias de fora, sem pressentir que o fundamental ¢ o estrutural, isto é, essas idéias, somente tém funcio explicativa e social quer como resposta a uma sociedade escravista, do primeiro perfodo, quer de tuma sociedade montada em blocos de poder oligérquico, como a José Octivie, A escravidio na Paraiba — Historiografia @ histéria. Pre- couceitos e ricismo numa produgdo cultural (Joie Pessoa: A Unido — Su. perintendénce de Imprensa Editors, 1988), passim. 37 nossa atualmente. $6 assim, 0 contetdo, a evolugéo e a persis- téncia dessa ideologia racista no conjunto do pensamento brasi- leito poderdo ser explicados. Outro autor que abordou o problema do racismo na histo- riografia brasileita foi Martiniano J. Silva, embora no seu livro? procure ser mais abrangente, tentando situar o racismo no conjunto da cultura brasileira. Neste sentido, analisa a ideologia de diversos autores representatives da literatura, como Greg6rio de Matos, José de Alencar, Trajano Galvao, Ruy Barbosa, Machado de Assis e varios outros, Queremos destacar, inicialmente, 0 que 0 autor chama de mistificacéo historiogrdjica. Escreve neste sentido que: “O ver- dadeiro processo hist6rico brasileiro foi obnubilado, mascarado. O slogan definindo ¢ admitindo o Brasil como ‘pats sem meméria’ é intomético, Denota uma sangao paiblica contra os ardis da hist6 ia. Contra os seus assiduos burladores ¢ mistificadores da hist6ria. Contra os seus planejadores, que tém conseguido inviabilizar 0 seu verdadeiro curso, assim escondendo as justas razdes e os indeléveis motivos das Iutas empreendidas pelo povo negro e os demais seg- mentos sociais oprimidos.” * © mesmo autor, a0 explicar este nivel de alienagdo historio- grifica, escreve que: “Ha uma velhissima idéia negativa a respeito dos povos negros. Muito mais antiga do que muitos pensam. O etnocentrismo, ou seja a tendéncia de cada povo de identificar outros povos a partir de uma referéncia ao seu sistema de valores, é to velho quanto a prépria humanidade e sempre teve matrizes raciais, No entanto, 0 etnocentrismo toma-se perigoso quando transformado em uma arma ideolégica a servico do imperialismo. Essa transformacdo ideoldgica, embora aceita como um produto do século XIX, teve uma longa elaboragio, com raizes na Antigti dade Classica.” ° A partir deste universo, Martiniano J. Silva analisa a pro- dugio que nos interessa particularmente neste capitulo, ebordando Ba, Martiniano J. Silva, Racismo @ brasileira: ratzes hist6vieas (Goiénia: © Popular, 1985) Ibid, p. 41 2 Ibid. p. 29 38 0 caso de Vieira, para ele um precursor da filosofia do embran- quecimento no Brasil, Escreve neste sentido: ‘Antes de tudo, Vieira via o negro como um povo iafiel, herege, f por assim dizer, uma espécie de inimigo, pois inimigos eram todos 0s que nao estivessem de acordo com os padries in postos pelo colonialismo, do qual a Tgreja era uma parte, nao rao, inclusive, com poder de decisfo. Tnfigis eram, por exent plo os judeus, os indios, os ciganos e, evidentemente, os ne- 10s, Entio, o negro, mesmo na condigso horrivel de escravo, para alcangar alguma identificagao com o que seria humano ¢ io, estava obrigado so batismo que Ihe daria algum pres- tigio. lids, como revelamos, quem no aderisse aos rituals cutélicos era inexoravelmente inimigo. E a conversto do negro ‘9 cristiniasmo ers, por sinal, determinada pela sua prépria stuaglo de eseravo. O escravo nio apenas podia ser catélico, ee tinha que sto, Por curioso que parega, até para continuar sua miscrabilissima condicéo de escravo estava obrigado ao ato do batismo. No particular, o autor cita este trecho de Vieira, de sermao pre- gado na Bahia em 1633: “Escravos, estais sujeitos ¢ obedientes em tudo aos vossos senhores, nao s6 20s bons e modestos, senfio - porque nesse estado em que Deus vvos ps € a vossa vocagio semelhante & de seu Filho, o qual pade- ceu por nés, deixando-vos o exemplo que haveis de imitar.” Isto vera exemplificar como nio tém razio os seguidores de uma corrente historiogréfica que encontra na literatura jesuftica sentido humenista proveniente de contra-reforma. Os livros de Anto- nil e Bencei, pelo contrétio, surgiram para racionalizar no sentido ‘weberiano a esctavidio ¢ nfo para condené-la. No presente trabalho iremos referir-nos, porém, apenas aos principais historiadores que escreveram nossa histéria no seu sentido diact6nico e globalizador. Dai comegarmos por aquele que primeiro escreveu uma “Histéria do Brasil”: Frei Vicente do Sal- vador. FREI VICENTE DO SALVADOR: O NEGRO NA PENUMBRA Frei Vivente do Salvador, a0 contrétio dos narradores que © precederan, escreveu uma Histéria do Brasil que, segundo Capistrano de Abreu, seu comentarista mais abalizado, foi termi- nada em 1627, embora somente fosse descoberta, por acaso, em 1881. Varnhagen sabia da sua existéncia em Portugal, mas, segundo alguns comentaristas, teria escondido a sua descoberta para apro- veitat-se de muito material ali contido. Vicente Rodrigues de Palha era o nome da familia de Frei Vicente do Salvador. Nasceu nos arredores da Bafa de Todos os Santos por volta de 1564. Tomou habito de franciscano em 1600. Se tomatmos como ponto de par- tida a data provavel do seu nascimento e aquela que Capistrano aponta como a do término da obra, 0 autor deveria ter 63 anos a0 conelutls. ‘A Histéria do Brasil, de Frei Vicente do Salvador dividese em cinco livros, ou capitulos. O primeito trata do descobrimento, passa a descrever a terra, pedras preciosas, riquezas minerais, frvores agrestes © medicinais, fauna maritima ¢ terrestre no estilo convencional da época. Fala depois dos indios, sua origem, suas Iinguas, casemento, costumes em geral, sistema de parentesco, me- dicina, ritos funeratios, guerras e tratamentos de prisioneiros. Como no podia deixar de ser o autor desmancha-se em louvores © exal- tagio a terra do Brasil (© livro segundo trata dos sucessos histérieos do Brasil a0 tempo do descobrimento: seu povoamento, primeiras doagSes, capi tanias hereditérias etc. O livro terveiro trata da histéria politica e administrativa do Brasil a partir de Thomé de Souza até a vinda do governador Manuel Teles Barreto. O quarto principia af e termina com a chegada do governador Gaspar de Souza. O quinto, finalmente, vai de Gaspar de Souza até o governo de Diogo Luis de Oliveira, abrangendo jé a primeira invasio holandesa e a des- crigho das batalhas que se travaram, 41 Demonstrando franca simpatia pela obra de Frei Vicente do Salvador, Almir de Andrade, apoiado em Capistrano de Abreu, escreve: (© trago caracteristico de Frel Vicente € realmente aguele amor esinteressado do pais que jé apontamos no autor de Didloges das grandezas do Brasil, A terra do Brasil, suas gentes, suas riquezas — tudo ele contemplava com cariaho, no rar com exaltagéo, Dificilmente se sentiré o “sacerdote”, nas paginas da sua histéria, O que se sente ali é uma alma boa, exiremamente iscreta © moderada nos seus jufgos sobre os homent e 28 coisas, preferindo silenciar ou encobrir certos fatos menos favo- riyeis’ ao pafs ou 2s pessoas, sempre que a oportunidade tho aconselhava, Essas omissOes propositadas cavam, as vezes, la cunas sensiveis na sua obra, ! ‘Como esse autor pioneiro via a populagdo negra e escrava na sua obra? £ 0 que tentaremos ver através do seu texto. O que se nota no texto do nosso primeiro historiador é que o indio se destaca muito mais do que 0 negro, que comparece apenas como pano de fundo esmaecido. Tanto que o autor designa os nomes de varios chefes indfgenas, descreve os seus feitos, dé-lhes indivi- dualidade hisiérica, 0 mesmo nfo acontecendo com 0 negro, So- mente uma vez refere-se nominalmente a um negro, Bastifo, durante ocupagio de Salvador pelos holandeses. Nas referéncias aos negros, Frei Vicente do Salvador, além de subestimé-los, no demonstra simpatia pelos mesmos, afirmando a necessidade de se tomarem providéncias “principalmente contra os negros de Guiné, escravos dos portugueses que cada dia se Jhes rebelam ¢ andam salteando pelos caminhos e se néo fazem pior € com medo dos ditos indios, que com um capitio portugués os ‘buscam e os trazem presos a seus senhores”.? Para evitar tais desordens, Diogo Botelho ao chegar & Baia contrata o chefe potiguara Zorobabé. TAlmir de Andrade, Formagdo da sociologla brasileira, Os primeiros este dos sociais no Brasil, Vol. I, cit, pp. 150-151 2Frei Vicente do Salvador, Histéria do Brasil (4.* edigfio, Sio Paulo: Ed, Melhoramentos, 1965), p. 545. 42 [A sua chegada estavam jé de partida 0 Zorobabé, com os seus pptiguares para a Paratba donde haviam vindo & guerra dos ‘bimorés, como dissemos no capitulo trinta ¢ trés deste livro e, Jnformado 0 governador que um mocambo ou magote de ne ‘gros da Guiné fugidos que estavam nos palmares no Rio Htepicuru, quatro léguas do rio Real para cé, mandowlhes que forsem de caminko dar neles, © os epanhassem 3s mos, como fizeram, que nfo foi pequeno bem tirar dali aquela ladroeira e solheita que iam em grande erescimento. Mas poucos torns- ram a seus donot porgue os gentios mataram muitos © Zoro- bbabé levou alguns que foi vendendo pelo caminho para com- pat bandeira de campo, também, cavalo e vestidas com que fentrasse triunfante na sua terra.® Ainda scbre Zorobabé, continua o autor narrando-the a traje- t6ria e informando que, per mandado do gover, vo macambe dor nes feds Fate alguns © prendeu outros de que levou os. que gus © Gr foi vender aoe brancos, com 0 qUe comprou bandeira de tempo, tambo, cavalo © vsxidoe para etre tvunfante em Stems, da qual vievam esperar no caminho alguns potgun fer quorents lopuas, outs 8 vinte © ez, abriadoao e lie pandothe a enxada, 6 0 Brago de eine, que era gonlio tobajrs se deixou cem os sous ne sav aldso, & pore 0 Zorobabé dterminou pustr por ela, he mandou dizer que sais a esperdlo na Exrada pois of mais'0 haviam feito 180 long; 20 que respon Gu o vel, ainda que ji centendio, que fora de guerra nuncs Tera eoperar a9 caminho. sno dames e, pols ele nfo. re dma, nem vinke dave guerra, fo se Tovantaria da reds. ¢ orobabé fo também visitado de multos homens brancos da Paraba gom bons paroles d= vinko © obtros presente, ou por seus Intereses Je indlos por seus sorvigos © emprela dis"ou por lemor que tinham da sia reblllo por 0 verem to pulante.# # Ibid., pp. 316377 4 Ibid, p. 350. Ibid, p. 351. © Zorababé que Frei Vicente do Salvador destaca na sua obra’ foi um indio potiguar destruidor de quilombos. Segundo Afonso ‘Arinos de Melo Franco, “por ordem do Governador Diogo Botelho des- lwaiu um guilombo de nogtos fugides, existente na Parafbs. Matow muitos pretos © poucos reslituiu aos seus senhores, porque os demais escravizou e endeu, tendo com © produto desses vendas, comprado cavalos, bandeira, 43

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