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Março 2014 Revista Adusp

ENTREVISTA
Romualdo Portela de Oliveira

“Planos de educação
são peças para crítica
radical das traças”
Daniel Garcia

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Revista Adusp Março 2014

“Nenhum governo brasileiro levou a sério, na sua história, um plano de educação. Os planos de
educação no Brasil são peça para crítica radical das traças. São aprovados e vão para a gaveta.
Não são o que deveriam ser: orientadores de uma política de longo prazo”. A crítica é proferida
por Romualdo Portela de Oliveira, professor titular do Departamento de Administração Escolar e
Economia da Educação, da Faculdade de Educação da USP. Pesquisador de temas como políticas
educacionais, financiamento da educação, avaliação educacional e direito à educação, ele defende
investimentos maciços como única alternativa viável para valorizar a educação no Brasil. “Isso
nós só vamos conseguir com a sociedade civil mobilizada, que compreenda a educação como uma
grande prioridade nacional. Se assim não for, vamos ficar reféns das retóricas de governo”.

Além da ineficácia e insuficiência das atuais políticas públicas de educação, não existe
regulamentação ou mesmo qualquer tipo de controle da entrada do capital financeiro nas
redes de ensino brasileiras, o que teria provocado o colapso parcial do sistema superior
particular no país. A ascensão de grandes grupos empresariais (cujo exemplo mais
emblemático é o da Anhanguera Educacional), os quais vêm se utilizando do capital
especulativo para “engolir” instituições tradicionais de ensino, “tem exercido um efeito
deletério sobre o conjunto do sistema privado”, adverte Romualdo, pois “as instituições
particulares de ensino com qualquer preocupação com qualidade ou arrumam nichos onde
possam sobreviver, ou desaparecem enquanto instituições com tal característica”.

O forte lobby dessa bancada sobre a esfera pública impede que sejam adotadas políticas
de expansão massiva do ensino superior público, compatíveis com a nova procura gerada
por extratos pobres da população que, nos últimos anos, passaram a concluir o ensino
intermediário e a buscar um diploma universitário. “Não temos políticas de expansão em
massa do ensino superior público. A pressão que existe hoje para a expansão do ensino
superior é decorrência da melhoria dos níveis de formação no fundamental e no médio nas
últimas três décadas. Uma parte da população que não concluía o ensino médio passou a
conclui-lo. Esse nicho da sociedade é formado por uma parcela da população mais pobre do
que a média que concluía o ensino intermediário. Como hoje isso não significa nada quanto
ao ingresso no mercado de trabalho, ela pressiona pelo bacharelado”, explica o professor.
“O Estado opta pela solução mais barata, que é comprar vaga ou bancar o mecanismo de
empréstimos estudantis, canalizando recursos para o setor privado”, denuncia.

Em outra crítica aos modelos atuais que propõem a democratização do ingresso de


jovens no ensino superior, Romualdo aborda a insuficiência da política de cotas.
“Nosso vestibular seleciona por um critério de mérito, que continua existindo mesmo
nas cotas. Então, dependendo de como são definidas as cotas para o ensino público,
vai continuar existindo a exclusão dos mesmos de sempre: o negro mais pobre, o
oriundo da escola pública mais pobre. Em outras palavras, se o critério for prova,
vai continuar hierarquizando por nível socioeconômico. E existe critério justo que
defina a não extensão do direito à educação de nível superior para todos? Portanto, a
grande democratização é a ampliação do número de vagas em instituições públicas”,
defende, em entrevista concedida a Eliane Parmezani.

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Revista Adusp. A instituição das ROMUALDO. É possível recor-
cotas sociais com recorte étnico é rer ao argumento histórico, mas não
uma realidade hoje na maioria das é o determinante. Poderia existir co-
“Temos no Brasil uma
universidades públicas brasileiras. ta para um grupo que não esteve no
Como o senhor interpreta essa re- início da colonização, por exemplo. demanda muito grande pelo
alidade? Poderia comentar a resis- O que sustenta o argumento é que ensino superior porque os
tência da USP a tal política? entre os grupos de cidadãos brasilei-
ROMUALDO. Recorremos às ros que prestam o vestibular, alguns diferenciais de salário entre
cotas porque não há vagas para to- são privilegiados ou beneficiados pe- quem tem graduação e quem
dos. E as cotas são uma forma de los mecanismos de seleção existen-
discussão sobre qual critério define tes, e há os prejudicados. Portanto, não tem são enormes. Nos
quem fica de fora. O sustentácu- fazer uma equidade de grupos, ou países desenvolvidos, depois
lo da ideia de cotas é a sub-repre- seja, fazer com que a representação
sentação de determinados grupos dos grupos entre os candidatos e os de dois anos de formação
entre os aprovados em relação ao aprovados se aproxime relativamen- profissional posterior ao
número de candidatos que prestam te, para mim seria suficiente.
o vestibular. Elas justificariam um Revista Adusp. A adesão da
ensino médio, o estudante
tratamento diferenciado para esses USP ao Pimesp, com as alterações tem condições de entrar
grupos porque o viés representado propostas pela universidade, repre-
no mercado de trabalho
pelo vestibular os prejudica. O per- sentará algum avanço em relação
centual de negros, por exemplo, que ao Inclusp? em condições dignas, sem
presta o vestibular, e o de negros ROMUALDO. O Pimesp, en-
grandes disparidades”
aprovados, diminui em relação ao quanto proposta, é muito ruim por-
universo. Portanto, justifica a cota. que inventa o que não está sendo
Mas, de qualquer maneira, não es- reivindicado. A reivindicação é co-
tamos aumentando o número de va- ta, aumentar a representação de Revista Adusp. Foi devido aos
gas. Só mudando o critério para de- determinados grupos entre os apro- programas de cotas na Fuvest que
finir quem entra e, por conseguinte, vados. A existência do Pimesp é um houve um número recorde de ins-
quem sai. Então, a política de cotas reconhecimento, mesmo numa pos- crições este ano, não foi?
se justifica de uma maneira muito tura refratária às cotas, de que tem ROMUALDO. Exatamente.
limitada, ainda que importante. A de se fazer alguma proposta pa- Revista Adusp. Ainda assim,
USP é muito resistente ou talvez ra ampliar a representação desses mesmo com a existência de cotas,
seja a mais resistente porque há um grupos historicamente excluídos da o vestibular persiste como uma for-
discurso oficial de que vestibular se- universidade. É a ideia de que ficar te barreira ao ingresso de milhões
leciona segundo capacidade, mérito, como está é insustentável politica- de jovens no ensino superior. Na
o que não é bem verdade. E a USP, mente. É um sucesso das demandas ótica do direito à educação, como
como se afirma a melhor universi- por implementação de política de o senhor avalia a instituição do ves-
dade do país, tende a acreditar mais cotas. O problema é que a proposta tibular?
fortemente nesse discurso. não dialoga com a reivindicação e ROMUALDO. Se não houver
Revista Adusp. Mas o senhor retarda a eventual entrada desses vagas para todos, vão ter que existir
concorda que o recorte étnico na grupos na universidade. E a admi- mecanismos de seleção. Aí é preci-
política de cotas se justificaria tam- nistração estadual foi forçada, pelo so discutir o mais justo, partindo do
bém pelo déficit histórico que a so- clamor em defesa da proposta, a pressuposto de que pessoas serão
ciedade brasileira tem para com os apresentar uma proposição absolu- excluídas. Contudo, não considero
negros, indígenas e mestiços? tamente insuficiente, equivocada. que deva existir um sistema onde

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condições dignas, sem Revista Adusp. É possível imagi-
grandes disparidades. nar um horizonte, a médio ou longo
Portanto, o vestibular prazo, em que cotas não sejam mais
não é o principal pro- necessárias no ensino superior pú-
blema. Se eu o adoto blico, garantindo-se pleno acesso a
como única forma de todos os interessados, seja qual for
seleção para o ingres- o seu extrato social de origem?
so na universidade, ROMUALDO. Acredito que não
evidentemente vou e, inclusive, que não seja desejá-
ter um tipo único de vel. Deveria existir um sistema de
viés. Porém, quando articulação de formação profissio-
se discutem processos nal em larga escala pós-médio e
seletivos, sempre vai mecanismos de capilarização, isto
existir um viés. Quan- é, de continuidade nos estudos, pa-
do não há vagas em ra os melhores alunos, no ensino
número suficiente, o superior. Se a perspectiva de que
mais adequado é ter a única formação pós-médio é a
vários mecanismos de universidade criam-se demandas,
entrada. É o que se no que diz respeito a políticas pú-
tem no sistema ame- blicas, muito grandes. O modelo
todos ingressem no ensino superior. ricano, por exemplo. Cada critério universidade-pesquisa é caro. Aliás,
Trata-se de um problema que não propõe cobrir as lacunas que o ou- já existe a necessidade de expansão
vamos resolver com políticas educa- tro não dá conta. desse modelo pelo número de es-
cionais. Na lógica do absurdo, se to- Nosso vestibular seleciona por tudantes universitários que temos
dos os cidadãos fizessem faculdade, um critério de mérito, que continua hoje. E a nossa rede de ciência e
os diferenciais brutais de salários existindo mesmo nas cotas. Então, tecnologia comportaria uma am-
no mercado de trabalho continua- dependendo de como são defini- pliação do modelo universidade.
riam existindo. Acredito que todos das cotas para o ensino público, vai Mas eu não trabalharia com a ideia
devem ter uma passagem pelo siste- continuar existindo a exclusão dos de universalizar o acesso ao ensino
ma de ensino que crie condições ao mesmos, sempre: o negro mais po- superior nesse modelo. Não haveria
final desta passagem para se inserir, bre, o oriundo da escola pública função social porque muitos não te-
com dignidade, no mercado de tra- mais pobre. Em outras palavras, se riam emprego na economia real e o
balho. Mas temos no Brasil uma o critério for prova, vai continuar problema da desigualdade no mer-
demanda muito grande pelo ensino hierarquizando por nível socioeco- cado de trabalho não seria atacado.
superior porque os diferenciais de nômico. E existe critério justo que Ele tem outra origem. Mesmo os
salário entre quem tem graduação e defina a não extensão do direito países com percentuais próximos
quem não tem são enormes, muito à educação de nível superior para de 100% de acesso à graduação têm
maiores que os de outros países. todos? Portanto, a grande democra- mecanismos de diferenciação do
Nos países desenvolvidos há um for- tização é a ampliação do número acesso. A universidade de pesquisa
te sistema de formação profissional de vagas em instituições públicas. é seletiva porque trabalha com a
pós-médio, cursos de curta duração. Se for universal, não discrimina. ideia de que tem que existir pro-
Depois de dois anos de formação Quando não tem para todo mundo, dução original, de ponta, ir além
profissional posterior ao ensino mé- então se discute equidade porque da fronteira do conhecimento. É
dio, o estudante tem condições de não é desejável a sub-representação importante no que diz respeito ao
entrar no mercado de trabalho em de nenhum grupo. desenvolvimento nacional. O que

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podemos ambicionar é a criação adequada de cursos de graduação?
de condições para a ampliação do Ou ainda: como isso afeta a forma-
ensino básico de qualidade. Se a ção superior no Brasil, do ponto de
disparidade que existe hoje orienta- vista da qualidade do ensino?
da no ensino básico desaparecesse, ROMUALDO. Não temos políti-
desapareceria também a razão das cas de expansão do ensino superior
cotas. Os grupos de cotistas tende- público em massa. Os Ifets [Insti-
riam a se aproximar dos de aprova- tutos Federais de Educação Tec-
dos sem o benefício da reserva de nológica], por exemplo, que seriam
vagas. Assim, a exclusão dos não a proposta mais próxima, não têm
aprovados seria mais justa. volume. Se até o final do mandato
a Dilma fizer tudo o que prometeu,
eles vão representar menos de 10%
do índice total de matrículas no en-
“Uma parte da população sino superior.
A pressão que existe hoje pa-
que não concluía o ensino
ra a expansão do ensino superior ções particulares, especificamente
médio passou a conclui- é decorrência da melhoria dos ní- as que mais cresceram nos últimos
lo. Como hoje isso nada veis de formação no fundamental e anos, são as de mais baixo custo, as
no médio nas últimas três décadas. piores. Os alunos só conseguem se
significa quanto ao ingresso Uma parte da população que não inserir no mercado de trabalho nas
no mercado de trabalho, ela concluía o ensino médio passou a áreas onde há carência de diploma-
conclui-lo. E como hoje isso não dos. Mas, na hora em que houver
pressiona pelo bacharelado. significa nada quanto ao ingresso diplomados em número suficiente,
Então o Estado, para se no mercado de trabalho, ela pres- serão os primeiros excluídos. Sob
siona pelo bacharelado. Esse nicho um olhar estratégico, esta solução
desobrigar, opta pela solução da sociedade é formado por uma só é entendida por um governo que
mais barata: comprar vaga parcela da população mais pobre do não quer gastar mais em educação
que a média que concluía o ensino para atender à demanda com ex-
ou bancar o mecanismo intermediário. E se esta população pansão da rede própria.
de empréstimos estudantis, não encontra expansão de vaga pú- Revista Adusp. E qual o papel
blica porque o modelo universitário do SISU sobre a oferta de vagas no
canalizando recursos
é caro e os últimos governos não ensino superior público?
para o setor privado” priorizaram a ampliação do investi- ROMUALDO. Não tem mágica.
mento em educação, pressiona por Tem demanda por vaga. A expansão
uma graduação gratuita, ou mais das vagas públicas, seja em universi-
barata ou ainda mais fortemente dades ou em instituições não univer-
Revista Adusp. O governo fede- subsidiada. Ela não pode pagar o sitárias, está muito aquém do cresci-
ral tem optado por uma expansão que se cobrava tradicionalmente. mento da demanda. Nas últimas du-
modesta, ainda que relevante, do Então, o Estado, para se desobrigar as décadas, o governo brasileiro não
ensino superior público, ao mesmo dessa demanda, opta pela solução conseguiu construir uma proposta
tempo em que financia ou subsidia mais barata, que é comprar vaga ou de expansão pública do acesso ao
o ensino privado com programas co- bancar o mecanismo de emprésti- ensino superior de qualidade. Para
mo o ProUni e o FIES. Qual o im- mos estudantis, canalizando recur- responder à pressão que os grupos
pacto dessa política sobre a oferta sos para o setor privado. As institui- excluídos exercem, e com razão, o

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Estado vem com políticas de priva- custo-aluno muito alto. E a alterna- Educação, conseguimos dobrar o
tização. Então, tem que se render ao tiva mais barata é a implementação número de vagas no noturno com a
financiamento de instituições parti- do ensino noturno porque já existe a diminuição de disciplinas no currí-
culares de baixa qualidade. infraestrutura. Portanto, abrir curso culo. Isso ampliou substantivamente
Revista Adusp. Por que é tão di- à noite tem custo marginal muito o número de estudantes trabalhado-
fícil o aumento da oferta dos cursos baixo. Porém, as três universidades res, negros, entre os alunos da Peda-
mais procurados no ensino supe- [USP, Unicamp e Unesp] foram gogia. Hoje, os indicadores de vagas
rior, como medicina, engenharias, recalcitrantes em cumprir o dispo- noturnas das universidades estaduais
direito, ao passo que é mais fácil a sitivo. Só o cumpriram quando o paulistas são muito melhores que os
abertura de outros de menor pro- Ministério Público processou os rei- das federais, que necessitam de um
cura? Na Fuvest, por exemplo, há tores. Quando a Constituição pau- dispositivo como o da Constituição
discrepâncias muito grandes na re- lista foi aprovada, a USP cumpriu paulista. Está na hora de se recolo-
lação de candidatos por vaga nesses a exigência de um terço das vagas à car a discussão, de modificar o item
cursos mais tradicionais, comparati- noite fundamentalmente nos cursos original, que previa um terço das va-
vamente aos de licenciaturas. de formação de professores ou nos gas por universidade para um terço
ROMUALDO. Os cursos de que exigiam poucos investimentos das vagas por curso.
maior procura são mais caros, exi- em laboratórios. Os cursos de me-
gem mais laboratórios, mais infraes- nor prestígio social. Mesmo assim,
trutura. E há também os lobbies das interpretou que deveria existir um
corporações. Quem controla o exer- terço das vagas por campus, o que já “Há um discurso
cício profissional no Brasil é a OAB forçou determinados campi que não
conservador no Brasil que
(Ordem dos Advogados do Brasil), tinham ensino à noite, como Piraci-
são os conselhos de medicina, de en- caba e Bauru, a inaugurá-lo, ainda diz que nosso problema não é
genharia. Eles são reticentes à am- que esses campi não ofereçam cursos dinheiro, é gestão. Mas basta
pliação do número de diplomados como Agronomia ou Odontologia.
porque tem a questão de ocupação Já a Unicamp e a Unesp tinham um fazer uma conta simples,
no mercado de trabalho. Profissio- número muito menor que a USP de dividir o montante de
nais em falta têm salários mais altos. estudantes à noite, mas abriram cur-
O exemplo do Mais Médicos (pro- sos de Engenharia, de Odontologia. recursos destinado ao ensino
grama do governo federal que, entre Contudo, até mesmo o texto do básico pelo número de alunos
outras medidas, prevê a contratação ajustamento de conduta que o Mi-
de médicos estrangeiros) é ilustrativo nistério Público acordou com as atendidos, e o resultado per
porque parte da resistência das cor- universidades impôs a exclusão dos capita é baixo. E quando
porações médicas a aceitar o progra- cursos de Medicina e das Ciências
ma diz respeito à diminuição da de- da Terra, num claro lobby das cor-
a conta é feita em escala
manda pelos profissionais de saúde, porações. Porque não há justificati- nacional, não dialoga com a
o que tende a impactar os salários. va para não ter curso de Medicina,
desigualdade regional”
A Constituição paulista de 1989 de Geologia à noite. Se o argumen-
aprovou um dispositivo que prevê a to é currículo, basta estender o nú-
obrigatoriedade das universidades mero de anos para a formação.
públicas de disponibilizar pelo me- O curso noturno tem um poten- Revista Adusp. A PEC 32/2013,
nos um terço de suas vagas no perí- cial democratizador brutal porque o que tramita na Comissão de Cons-
odo noturno. Isso porque algumas aluno trabalhador só pode ir à uni- tituição e Justiça, responsabiliza a
das críticas à universidade pública versidade à noite. Em uma experi- União pelo financiamento da edu-
são dirigidas à sua ociosidade, ao ência que fizemos na Faculdade de cação básica (ensinos fundamen-

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tal e médio), prevendo um consistente para jovens que
gasto anual de R$ 9 mil não queiram cursar uma
por aluno (hoje o gasto es- universidade?
timado é de R$ 2,3 mil) e ROMUALDO. Pode.
complementa o repasse aos Contudo, o ensino das es-
municípios que não atin- colas técnicas federais é ca-
gem esse percentual. Qual ro e as nossas técnicas não
seu posicionamento sobre o formam profissionais. Por
financiamento público por terem boa qualidade, exer-
intermédio dessa política, cem muito mais uma função
sustentada pelo Custo Alu- propedêutica do que de for-
no Qualidade (CAQ) e pe- mação de técnicos. Como
lo Custo Aluno Qualidade o ingresso nessas escolas é
Inicial (CAQi)? por prova, é enviesada por
ROMUALDO. Há um nível socioeconômico. En-
discurso conservador no tão, são selecionados alunos
Brasil que diz que nosso de extratos de renda mais
problema não é dinheiro, alto, tornando-os competi-
é gestão. Mas basta fazer tivos para os vestibulares.
uma conta simples, dividir o Assim, voltam-se para o
montante de recursos desti- ensino. Portanto, deveriam
nado ao ensino básico pelo existir cláusulas para que os
número de alunos atendi- alunos sejam encaminhados
dos, e o resultado per capita ao mercado, que impeçam
é baixo. E quando a conta é que as escolas sejam usadas
feita em escala nacional, não dialoga a única possibilidade de garantir o como mecanismo propedêutico para
com a desigualdade regional. Por es- CAQ para todos, ou seja, um padrão parcelas privilegiadas.
tado, as diferenças chegam à ordem mínimo de qualidade de ensino, Revista Adusp. O que o senhor
de um para quatro. E o CAQ traba- sob a ótica das condições materiais acha da exclusão de cursos das áreas
lha com uma lógica, que me parece de funcionamento das escolas, é a das Ciências Humanas e Sociais no
acertada, de que não adianta ape- União disponibilizar aportes para os programa Ciência sem Fronteiras?
nas discutir como dividir os recursos estados e municípios mais pobres a ROMUALDO. Em que áreas
disponíveis, mas estabelece valores fim de atingir o mínimo nacional. É precisamos de formação de qua-
mínimos que assegurem qualidade. razoável ter um valor mínimo garan- dros no exterior? Certamente não
Por isso é muito importante a ban- tido a todo estudante como parte da em todas. Penso que a nossa defi-
deira de 10% do PIB em educação responsabilidade do estado brasilei- ciência em Humanas é menor por-
que está sendo levantada no deba- ro para com o direito à educação de que temos massa crítica pensando
te do Plano Nacional de Educação. todo cidadão. o Brasil. Haveria justificativa para
O CAQ também teria um impacto Revista Adusp. O ensino técnico um programa de financiamento em
muito grande sobre a desigualdade de qualidade, tal como chegou a ser massa para mestrados e doutorados
regional. E quem deve assumir essa oferecido pelas antigas escolas téc- no exterior nas áreas em que o Bra-
responsabilidade adicional é a União nicas federais — com currículo for- sil reconhecidamente tem carências.
porque temos estados e municípios te em disciplinas como português, Mas a internacionalização da pes-
muito pobres, que não dão conta de ciências e outras da área de Hu- quisa no Brasil não deve ser feita
sua estrutura tributária. Portanto, manas — pode ser uma alternativa a torto e a direito mandando gente

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para o exterior. Essa fase histórica Revista Adusp. Como o senhor os mais ricos. Porque os mais ricos,
do desenvolvimento da ciência no vê a má vontade, a rejeição de go- ainda que paguem nominalmen-
Brasil já passou. Precisamos inter- vernadores e prefeitos relativa- te os salários, não pagam aquela
nacionalizar os grupos de pesquisa mente à implantação da Lei do jornada de trabalho que cria con-
que temos nas instituições brasilei- Piso Salarial Nacional do Magisté- dições para uma educação de qua-
ras e financiar, obviamente, as áre- rio [Lei nº 11.738/2008]? O senhor lidade.
as nas quais não temos capacidade concorda que as redes públicas es-
instalada, para as Exatas e para as taduais e municipais de ensino es-
Humanas. Por outro lado, estamos tão condenadas ao sucateamento
“Quando há a penetração
tirando do buraco universidades es- físico, inexistência de bibliotecas,
trangeiras, algumas que, inclusive, laboratórios, à degradação salarial do capital financeiro, cujo
não são de ponta em seus países de de professores e de funcionários?
único objetivo é lucro,
origem. Certamente nossas univer- ROMUALDO. Não, porque lu-
sidades são melhores que as de tipo tamos contra isso. A Lei do Piso é ele implementa uma política
B nos Estados Unidos ou na Euro- um dos grandes exemplos de dis- de restrição rigorosa de
pa. Por isso, a meu ver, é um pro- tância entre a retórica e a práti-
grama mal desenhado. É bastante ca quando se discute educação no custos para reduzir o valor
espalhafatoso, no que diz respeito Brasil. Nenhum dos governantes das mensalidades.
à propaganda, mas não responde a que não quer pagar o piso disse
nossas necessidades reais de pensar que educação não era uma prio- Nos cursos mais baratos
uma política de desenvolvimento da ridade. Mas quando se trata de das instituições tradicionais
ciência e tecnologia no Brasil. transformar a prioridade retórica
em fato, resistem. E aí não tem a mensalidade típica
partido, tem todos, porque a resis- era de R$ 400 a R$ 500.
tência em pagar o piso, a meu ver,
“A Lei do Piso é um dos é unanimidade. Não compreender
Anhanguera entra com

grandes exemplos de que uma das questões-chave da R$ 200, vieram Estácio,


discussão da qualidade da educa-
distância entre a retórica e Kroton, quase houve
ção básica no Brasil é a qualidade
a prática quando se discute do professorado, pois não teremos dumping sistêmico”
um ensino de qualidade melhor
educação no Brasil. E aí que a qualidade dos professores
não tem partido, porque que tivemos, é não pensar estra-
tegicamente. Temos que valorizar Revista Adusp. Que avaliação
a resistência em pagar o a profissão docente no Brasil nos o senhor faz do Plano Nacional de
piso é unanimidade. Não próximos anos como condição pa- Educação (2011-2020)?
ra uma educação de qualidade no ROMUALDO. Se formos felizes,
compreender que uma das nível das nossas necessidades his- sai em 2015, portanto, já ficamos
questões-chave da educação tóricas. Grande parte dos proble- cinco anos sem ele. O governo não
mas que discutimos é decorrente apostou suas fichas para que o PNE
básica no Brasil é a da falta de qualidade na educação saísse logo. Nenhum governo brasi-
qualidade do professorado é básica. E, portanto, é estratégico leiro levou a sério, na sua história,
que a Lei do Piso seja cumprida. A um plano de educação. Os planos
não pensar estrategicamente” Lei do Piso, de um jeito ou de ou- de educação no Brasil até hoje são
tro, abrange todos os Estados, até peças para crítica radical das tra-

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ças. São aprovados e vão para a tinham capitais originários da área de ações da Anhanguera, em março
gaveta. Não são o que deveriam educacional. Ainda que determi- de 2007, ela alavancou no mercado
ser: orientadores de uma política nadas escolas fossem lucrativas, financeiro algo em torno de R$ 900
de longo prazo. O exemplo mais tinham algum compromisso com a milhões. E saiu comprando escolas
acabado disso foi o PNE aprovado educação. Mas, do ponto de vista pequenas. Dois ou três anos apenas
em 2001 pelo Fernando Henrique, estritamente capitalista, eram ine- após a construção da Anhanguera
vetando todos os artigos que im- ficientes. Quando há a penetração com o novo formato, no final de
plicavam ampliação de recursos. O do capital financeiro, cujo único 2005, ela já tinha 52 unidades, das
que significou, já na aprovação do objetivo é lucro, esse capital tem a quais mais de 40 compradas. As
plano, que ele não seria cumprido. obsessão de reduzir custos. Há dez empresas tradicionais que não con-
Então, uma possível novidade seria anos, por exemplo, quando houve seguiram reduzir suas mensalidades
um plano que acoplasse os recursos o primeiro movimento nesse sen- ao novo patamar do sistema passam
necessários para atingir as metas. tido — a compra da Anhangue- a operar no vermelho. Quando os
Isso nós só vamos conseguir com ra Educacional pelo banco Pátria grupos financeiros recebem a inje-
a sociedade civil mobilizada, que — é implementada no mercado ção de recursos captados da Bolsa
compreenda a educação como uma uma política de restrição rigoro- de Valores compram as instituições
grande prioridade nacional. Se as- sa de custos para reduzir o valor fragilizadas. No final de 2010, por
sim não for, vamos ficar reféns das das mensalidades. Para se ter uma exemplo, em todas as transações da
retóricas de governo. ideia, naquela época, a mensali- Anhanguera, parte do dinheiro foi
Revista Adusp. Nos últimos dade típica dos cursos mais bara- para saldar dívidas.
anos, temos presenciado a forte en- tos nas instituições privadas tradi- Não só é um crescimento sem
trada de capitais estrangeiros no cionais era da ordem de R$ 400, controle do setor especulativo, co-
setor educacional. Grupos privados R$ 500. A Anhanguera entra com mo tem exercido um efeito dele-
poderosos associam-se aos capitais cursos de R$ 200. Quase houve tério sobre o conjunto do sistema
nativos brasileiros e criam enormes um dumping sistêmico, porque ela privado. De maneira que as insti-
empresas de ensino. O senhor con- se capilarizou muito rapidamente. tuições particulares de ensino com
corda que esse afluxo de capitais Vieram outras, a Estácio, a Kro- qualquer preocupação com qua-
tende a acentuar a mercantilização ton, o que gerou uma desestabili- lidade, ou arrumam nichos onde
do ensino superior em nosso país? zação do conjunto do sistema. E possam sobreviver, ou desapare-
ROMUALDO. É claro. as escolas que estavam praticando cem enquanto instituições com tal
Revista Adusp. Não só no ensi- suas mensalidades, com os proble- característica. Sobrevivem os ni-
no superior, mas caminha também mas que fossem, que ainda tinham chos que conseguem financiar qua-
para o médio, não é? algum compromisso educacional, lidade com mensalidade. Os cursos
ROMUALDO. Sim, mas no su- alguma preocupação com qualida- de medicina, que custam R$ 3.500,
perior é muito evidente e os efeitos de, de uma hora para outra elas R$ 4.000 por mês e que, portanto,
são mais graves. O setor privado passam a concorrer com grupos selecionam as elites, uma parcela
tradicional na educação brasilei- que oferecem o mesmo curso por muito pequena da população brasi-
ra, particularmente na superior, menos da metade do preço. leira. Da mesma maneira atuam al-
em geral, tinha origem na própria A crise do sistema foi agrava- guns cursos nas áreas de economia
educação. Eram pequenas escolas, da porque, tendo a Anhanguera e do comércio. Porém, na grande
às vezes de ensino fundamental, como pioneira, quando essas em- maioria das áreas não é possível
que foram se expandindo e, em presas lançam ações na Bolsa de criar, ancorado em mensalidade,
determinado momento, abriram Valores, captam montantes de re- nichos de qualidade. Portanto, o
o superior. Algumas que já surgi- cursos brutais que lhes permitem setor como um todo se nivela pelo
ram com cursos de bacharelado ir às compras. Na primeira emissão padrão das instituições do capital

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especulativo. O efeito sistêmi- ceu porque reconhecemos
co que o florescimento dessas a existência de instituições
instituições teve foi muito mais com fins lucrativos sem ne-
perverso do que se pode imagi- nhuma regulamentação.
nar. Ou que se podia imaginar Antes de 1988, não existia
no início. a figura jurídica da escola
particular com fins lucrati-
vos. Quando a Constituição
de 1988 passou a admitir
“É cada vez mais essa existência, e isso era
razoável porque já existiam
difícil aprovar uma
instituições com fins lucra-
regulamentação do setor tivos, não fizemos o que era
privado porque o lobby preciso para regular esse
mercado e evitar práticas
no Congresso Nacional abusivas, como o dumping,
é muito grande. Existe a concorrência desleal. Os
instrumentos de controle de
uma subordinação dos qualidade que o Ministério
mecanismos de controle da Educação desenvolveu
nesse período são insufi-
aos interesses privados. cientes. Tanto é que todas
A Câmara de Educação essas instituições são muito
mar outro, intermunicipal, para a bem avaliadas por aquele
Superior, aliás, Lapa ou Pinheiros. Só o custo do amontoado de índices do MEC.
já vinha reclamando que transporte paga a mensalidade da Revista Adusp. Até hoje não há
Anhanguera. Não tem diferencial regulamentação?
havia muito controle público
de qualidade que justifique o cus- ROMUALDO. Não. É cada vez
sobre o setor privado” to adicional para as finanças desse mais difícil aprovar uma regula-
estudante. O público-alvo dessas mentação porque o lobby desses
empresas é a população mais po- setores no Congresso Nacional
bre. Assim, o efeito deletério que as é muito grande. O Paulo Renato
Revista Adusp. Quem recorre instituições privadas lucrativas têm [ministro da Educação de 1995 a
ao ensino superior privado procura sobre o conjunto do sistema par- 2002], quando dissolveu o Conse-
por preço? ticular é muito grave. Hoje todas lho Federal de Educação e criou
ROMUALDO. As primeiras ins- as instituições privadas tradicionais o Conselho Nacional de Educação
tituições que a Anhanguera com- que possuíam alguma preocupação [CNE], subordinado ao Ministério,
prou estão no cinturão periférico com qualidade estão superendivi- instituiu, na mesma época, o Pro-
da cidade de São Paulo. Taboão e dadas. E eu diria que a médio prazo vão, como mecanismo de controle
Itapecerica da Serra são alguns dos elas não têm muita perspectiva. Ou das instituições de ensino. Ele dis-
municípios onde ela comprou es- seja, vão ser engolidas pelos tuba- se que as instituições que tivessem
colas. Um estudante de Itapecerica rões. O processo de oligopolização duas avaliações consecutivas com
que quisesse fazer faculdade tinha do ensino superior privado cres- nota D ou E seriam fechadas. E,
que pegar um ônibus do bairro pa- ceu muito e continuará crescendo de fato, o Paulo Renato tentou o
ra o centro da cidade e então to- nos próximos anos. E isso aconte- fechamento de duas instituições no

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Março 2014 Revista Adusp
estado do Rio de Janeiro, mas foi mais mediada pela comunicação, para o setor privado. Como o setor
derrotado no próprio CNE. Por- pelas telecomunicações, alternati- público entrou tarde, tem de de-
que o setor privado era majoritário vas de formação à distância. Ou- senvolver tecnologia atrasado. Não
na Câmara de Educação Superior. tra coisa é embarcar na formação tenho dúvida de que se o setor pú-
A política prática dos governos faz inicial à distância quando não há blico entrasse para valer na ques-
com que o lobby do setor no Con- know-how. No meu entendimento, tão de formação à distância iríamos
gresso troque votos por cargos, in- tem que começar pela formação desenvolver coisas de qualidade.
dicações. Existe uma subordinação continuada, fazer experiências de O compromisso é outro. A médio
dos mecanismos de controle aos formação inicial e aumentar o se- prazo teríamos que chegar a isso,
interesses privados. A Câmara de tor público nesta área. Pela recusa inclusive porque temos necessida-
Educação Superior, aliás, já vinha que tivemos de fazer experiências de do grande número de alunos em
reclamando que havia muito con- no setor público com o ensino à termos de formação. Não é possível
trole público sobre o setor privado, distância, criamos um mercado pensar a construção de um sistema
que não iria desenvolver medidas para o privado. A primeira gran- que atenda as diferentes demandas
para o seu controle. de aquisição da Anhanguera foi a da sociedade brasileira e as dife-
Revista Adusp. Como o senhor Uniderp, no Mato Grosso do Sul, rentes condições, sem expandir o
vê a estrondosa ampliação da ofer- porque era uma das instituições sistema como um todo, que signifi-
ta de cursos à distância no Brasil, no Brasil que tinha uma das me- ca expandir o modelo universitário,
oferecendo, inclusive, formação de lhores plataformas de educação à o modelo Institutos Federais de
nível superior? Está relacionada à distância. É por isso também que Educação, Institutos Estaduais de
política das instituições de ensino um dos grandes investimentos da Educação e o ensino à distância.
de capital especulativo, para redu- Estácio foi a Unopar, do Paraná, O problema é que isto foi deixado
zir custos? uma outra instituição com uma boa para o setor privado. Porque, de
ROMUALDO. É inevitável reco- plataforma de ensino online. Então, novo, aí a questão da qualidade fi-
nhecer, em uma sociedade cada vez em parte, nós demos esse mercado ca complicada.

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