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Conversão
neoclássica e legado
modernista nos
Sonetos Brancos,
de Murilo Mendes
1
Vagner Camilo
a associação das cadeias imagéticas que se verifica, eclosão da bomba atômica, selando ironicamente,
pela mesma época e dentro da mesma tendência em agosto de 1945, o acordo de paz que marcou o
neoclássica, nos sonetos do amigo Jorge de Lima, fim da Segunda Guerra Mundial. Aliás, a referên-
também tributário da lição surrealista. cia à bomba aparece em mais de um momento do
Conforme sugerem alguns títulos, parte signifi- livro, decerto motivada pela paranoia da corrida
cativa dos Sonetos Brancos é composta de poemas armamentista e da eminência de uma hecatombe
religiosos, mas, como adverte o mesmo Merquior nuclear que marcou os anos da Guerra Fria.
(1980, p. 158), trata-se de “Alta poesia religiosa, Portanto, ao contrário de outros poetas de fei-
escrita pelo nosso primeiro lírico cristão verdadei- ção classicizante do período, as reverberações da
ramente reflexivo: capaz de subverter o pathos do guerra, do terror nuclear e de outros acontecimen-
numinoso em perspectiva de genuína problemati- tos histórico-políticos contemporâneos não desa-
zação do estar-no-mundo humano”. pareceram de todo de Sonetos Brancos, mesmo
Observa, por fim, que a “mensagem” de Muri- com o abandono da lírica de guerra muriliana. Em
lo Mendes não constitui, entretanto, um discurso contrapartida, nos sonetos de temas religiosos ou
humanamente “afirmativo”; sem ceder ao niilismo bíblicos mais explícitos, há alusões à realidade re-
contemporâneo, mantém uma relação dialética e pa- cente, como se verifica em “Finados”, no qual, em
radoxal no seu impulso libertário. Ao lado de Cruz meio à homenagem ao dia dos mortos, o eu lírico
e Sousa, Murilo Mendes seria o único caso de espi- evoca, “através da fumaça azul da guerra atômi-
ritualidade voluptuosa em nossa poesia. Espécie de ca”, a vida e a forma futura e eterna do homem,
Blake pós-romântico, diz ainda o crítico, o profeta elementos mais fortes do que os do mundo que o
Murilo Mendes não prega: exclama, interroga, culti- espírito da vida em si contém. Por isso, convoca
va o escândalo evangélico das perguntas subversivas, o eu lírico, em perspectiva apocalíptica: “Desde
da perplexidade libertadora. É um “cristão ecume- já […] façam explodir esses elementos antes do
nicamente interrogador” (Merquior, 1980, p. 160). amarelo apelo da trombeta”.
Os principais episódios bíblicos nos Sonetos Veja-se, ainda, a alusão ao Patmos em “O Es-
Brancos referem-se a provas de sacrifício e de- crivão”. Como se sabe, esse é o local onde o após-
voção, além de menções à ressurreição (que dá tolo João foi exilado – conforme consta na intro-
fecho ao livro) e ao Apocalipse joanino. Há sone- dução do Apocalipse, passando a ser identificado
tos que tratam, estritamente, de poetizar episódios como um lugar de banimento durante os tempos
bíblicos ou cristãos: “O Filho Pródigo”, “A Lição romanos. Segundo uma tradição preservada por
do Natal”, “Isaac ao Sacrifício”, “A Visitação”, Ireneu, Eusébio, Jerônimo e outros, o exílio de
“Ao Cristo Crucificado”, “José”, “A Lapidação João aconteceu em 95 ou 96 d.C., no 14o ano do rei-
de Santo Estevão”, “Finados” e “A Ressurreição”. nado de Domiciano. A tradição local ainda aponta
Outros mesclam referências cristãs a temas diver- a caverna onde João teria recebido a revelação para
sos, incluindo-se aqui os que reportam à realidade escrever o livro. É curioso, nesse sentido, ponderar
político-social do tempo, como se vê em “O Rito sobre o lugar de onde fala o poeta, equiparado, de
Humano”. Ao contrário do rito litúrgico (“Agnus acordo com o título do soneto, em registro ironi-
Dei, qui tollis peccata mundi…”), a evocação do camente rebaixado, a um mero funcionário, auxi-
salvador, sacrificado para resgatar a humanidade liar ou escrevente, que registra os autos, termos de
do pecado original e representado pelo cordeiro processo, atas e outros documentos de fé pública
com uma cruz2, está longe da contrição e do pe- – figura essa, aliás, já ironizada na fase modernista
dido de perdão, piedade, paz e descanso eterno, em “Modinha do Empregado de Banco”3. Já nos
próprios do réquiem cristão. O rito humano anun- versos, o eu poético é comparado a profeta e santo,
ciado no título, ao contrário, perpetua o sacrifício,
ecoando os balidos do cordeiro branco redentor
pelo mundo inteiro, ao rebentar desde a garganta 2 T al como aparece no Novo Testamento, principalmente
no Evangelho de João 1:29 (cf. A Bíblia de Jerusalém,
do recém-nascido até culminar nas várias manei- São Paulo, Sociedade Bíblica Católica Internacional
ras por que se matam os homens, num contexto e Paulus, 1995).
imediato não só de guerras e totalitarismos, mas de 3 Devo a lembrança do poema a Ricardo Carvalho.
sões míticas (como a irmandade castradora bíblica: uma aparência lutuosa ou melancólica; sua con-
Salomé, Judite e Dalila), seja nas criações privadas dição aristocrática liga-se ao suntuoso da lingua-
ou pessoais (a exemplo de La Belle Dame sans gem; e a condição de exílio se refere à perda de um
Merci de Keats)6. Assim, a par da forma clássica, sentido último das palavras. As imagens tauromá-
esse tipo de representação poderia ser visto como quicas são possível herança surrealista (Picasso,
outro traço do poema que remete à estética anterior Leiris). A prática da tauromaquia vem associada
ao modernismo. Mas não se pode esquecer que ao “torneio cruel das palavras sangrentas”, respon-
esse tipo de representação feminina também não dendo pela dificuldade tortuosa ou pela impossibi-
deixa de ser cultivado no modernismo, a exemplo lidade de comunicação e, consequentemente, pelo
das imagens femininas do Drummond de Brejo sentimento de isolamento do eu e dos homens, do
das Almas (“Registro Civil” e, em parte, “Desdo- “antigo e amargo exílio” que “martela” em nosso
bramento de Adalgisa”) e A Rosa do Povo (com coração, segundo diz o fecho de ouro. Pelas ima-
a Fulana de “O Mito”). Algo próximo desse tipo gens cruéis ou mesmo sádicas desse soneto, ele
também já despontava em Murilo Mendes, como tem parentesco com outro soneto drummondiano
na conhecida “Jandira”, embora aqui o poder de- inscrito nessa mesma tendência neoclássica e sub-
vastador da sedução feminina não seja intencional metido a idêntica disciplina hermética: refiro-me
nem sadicamente prazeroso para ela. ao excepcional “Oficina Irritada”, que já busquei
O caráter ameaçador da “Alegoria” de Sone- examinar em estudo anterior (Camilo, 2005).
tos Brancos explicita-se logo na segunda estrofe, Outro soneto que merece destaque por retomar,
quando alude ao verdadeiro terror que ela lhe ins- em nova chave, um verdadeiro tópos modernista
pira (embora seja “branca”, para simbolizar talvez é “Ouro Preto”, preparação da Contemplação de
a ideia de paz). Figura ameaçadora, traz ainda o Ouro Preto, inscrito dentro da mesma tendência
punhal que se insinua em seu braço… Mesmo as neoclássica do período:
graças com que ela se mostra ataviada são qualifi-
cadas como “cortantes”. Comparada a uma árvore “A alma livremente encarcerada
(como já parecia acontecer na primeira “Alegoria” Comunica-se com os doidos e os poetas
muriliana), seu caráter pouco acolhedor ou mes- Que pelas frias naves dão-se os pés.
mo inóspito leva os pés e a sombra do eu tratarem Sinto grego o céu de outrora me envolver.
logo de fugir dela. Os demais atributos dessa dama
sinistra de “rubro presságio” e emissária do pur- A cavalo sobre as igrejas de pedra
gatório são próprios da alegoria, nos termos em Irrompe o Aleijadinho na sua capa.
que a definiu Benjamin, seja no exame do drama Nas linhas de ar balança-se o relógio
barroco, seja no da lírica baudelairiana. As vestes Marcando cegamente o compasso do tempo.
da dama engrinaldada de violeta e cinza evocam
Um vulto cruza outro na ladeira.
Pelos desertos espaços metafísicos
5 N
a tradução de Ivan Junqueira: “É uma bela mulher e que
Arrastam-se as sandálias da pobreza.
opulenta deixa/ Arrastar em seu vinho a fluídica madeixa. /
Nela, garras de amor, venenos de espelunca,/ À sua pele
enfim tudo morre ou se trunca./ Ela zomba da morte e Das varandas azuis tombam ossadas:
despreza o deboche,/ Monstros de foice à mão são-lhe
sempre um fantoche,/ Na sua destruição sempre guardam Ouro Preto severa e íntima adormece
respeito/ Ao rude esplendor de seu rígido peito./ Possui Num abafado rumor de águas subterrâneas”.
andar de deusa e sono de sultana;/ Ela tem no prazer a
crença maometana,/ E com braços que são aos seios larga
taça,/ Com seu olhar convoca inteira a humana raça./ É por demais conhecida a “redescoberta” da
É que esta virgem sabe: o seu ventre é infecundo,/ No
entanto necessário à marcha deste mundo,/ E que a sua
arquitetura e arte coloniais e das Minas históri-
beleza é sempre um dom sublime/ E que extrai o perdão cas promovida desde a famosa viagem do grupo
de todo infame crime./ Ah, que ela ignora o Inferno e modernista de 1922 até a criação dos poemas no
olvida o Purgatório,/ E quando vier – Ó Noite – o seu fim
ilusório,/ Há de encarar a Morte e sem nenhum gemido/ gênero cartão-postal (Cendrars, Oswald, depois
Sem ódio e sem rancor – como um recém-nascido”. Drummond, entre outros), além do estudo polêmi-
6 Para um desdobramento do tema, ver ainda Gay (1990). co de Mário sobre o Aleijadinho (convertido em
A violência das coisas me feriu: Sabe-se que um uso particular do arlequinal foi
Esta policromada roupa vai mudar-se feito por Mário de Andrade na Pauliceia Desvai-
Em saco negro, alusivo a criação”. rada, depois em O Losango Cáqui e repercutindo
mesmo em toda a sua obra como uma concepção
Antes de tratar da crise encenada no soneto, é estética central9. Na Pauliceia, ao adjetivar o subs-
preciso historiar a recorrência da figura arlequinal tantivo, Mário visava exprimir o dinamismo da me-
na poesia pré-moderna e moderna brasileiras, mas trópole moderna em sua fragmentação, com suas
de diferentes modos. Num primeiro momento, pre- sugestões de inúmeras sinestesias e ambiguidades.
so ainda ao modelo original, europeizante, da com- Ele estava antenado com o tema em voga na épo-
media dell’arte, o Arlequim comparece na poesia ca, como se vê nas telas de Picasso, por exemplo.
crepuscular do primeiro Bandeira, por exemplo, de No soneto de Murilo Mendes, entretanto, esta-
Carnaval. Embora este livro já seja uma etapa pre- mos longe da apropriação malandra que a cultura
paratória da revolução poética do modernismo (com popular faz da figura original do amante cínico,
a sátira ao parnasianismo em “Os Sapos” e a ado- malicioso, de atitude oposta à ingenuidade do
ção do versolibrismo, por exemplo), “o gozo bus- amor romântico, com sua roupa feita original-
cado como narcótico mal disfarçava uma amargura mente de retalhos. De igual modo, nos afastamos
fundamental”, como nota Merquior (1989, p. 283), tanto de sua releitura modernista, quanto de sua
que diz ainda, estabelecendo uma ponte com a se- figuração melancólica no carnaval crepuscular e
gunda imagem arlequinal: “Os poemas estão cheios subjetivo do eu bandeiriano. Nos Sonetos Bran-
de arlequins, porém absolutamente não partilham cos, o Arlequim é uma máscara da persona lírica
daquele impulso ‘arlequinal’ com que Mario de An- que se sente como aprisionada nas vestes geome-
drade batizaria o ânimo eufórico dos modernos”. trizadas, qual “grades” que o enlaçam e mal o
protegem (atente-se à ambiguidade de “loup”, em
De fato, a “paisagem pseudossaturnal povoada francês, “lobo”, e, em inglês, variante de “loop”,
de arlequins, pierrôs e colombinas”, do segundo livro dar laços ou segurar com presilhas) no embate
bandeiriano, “projeta uma vontade de superação or- com um mundo hostil, insensível à poesia lúdica
giástica do dolorismo anterior”, mas, como declara o que ele encarna. Do humor e da alegria popular
próprio poeta, é um “carnaval sem nenhuma alegria”. e modernista passa-se à animosidade. Seu tricór-
No caso do modernismo, a figuração do Ar- nio, dizem os versos, saúda irmãos terríveis cujos
lequim já traz as marcas de sua incorporação ao olhares agressivos não evocam nem infância, nem
universo do carnaval e dos folguedos populares. A beleza. A razão dessa hostilidade, dizem os terce-
aclimatação por meio de danças dramáticas como tos, é que o perfume antigo se esvaiu, aludindo a
o bumba-meu-boi se confirma numa das primeiras um passado mais grato do eu arlequinal em que se
aparições arlequinais na obra de Murilo Mendes, traveste o eu poético, para a arte que ele encarna
justamente em Bumba-meu Poeta, livro no qual o e para a reciprocidade na relação amistosa com o
próprio Arlequim diz, inclusive parodiando a na- mundo10. Ferido pela violência das coisas, vemos
cionalíssima “Canção do Exílio” gonçalvina:
bido ao estado de espírito de Picasso no momento lhe empresta –, sente-se nele uma tristeza que é
em que ele vagava por Montparnasse, só e abatido, de natureza mais íntima que social. O Arlequim
enquanto Eva agonizava no hospital. O retorno aos de 1917 não é um boêmio empobrecido; é um jo-
temas da commedia dell’arte representa aqui uma vem homem sensível, um artista, cujos problemas
saída hermética para símbolos privados, em um emocionais lhe causam tédio e não angústia”12.
momento de crise pessoal.
Mas se essa primeira aparição de Arlequim após Mas se o Arlequim de Murilo Mendes guarda
1914 era resultado de uma necessidade puramente alguma similaridade com o de Barcelona, na medi-
interior, é claro que no momento em que ele con- da em que a composição de ambos os retratos dessa
cebeu a cortina de Parade11 as significações desse personagem cara ao imaginário vanguardista e mo-
mesmo tema iconográfico eram por sua vez mais dernista é produto do retorno formal a procedimen-
sociais e públicas que pessoais e idiossincráticas. tos pré-modernos (o figurativismo, o soneto), ele em
O estilo e a significação de um outro Arlequim, nada tem a ver com a aparência do jovem burguês
pintado em 1917, eram adaptados à nova concepção, muito asseado de Picasso, nem com a tristeza de
verdadeiramente latina, e bem mais tradicional, da natureza mais íntima que social descrita por Silver.
commedia dell’arte. Concebido dentro da nova Se o humor melancólico pode ser comum aos dois
moda realista proclamada pelo desenho de Jacob, Arlequins, em vez do tédio diante dos problemas
o Arlequim de Barcelona é um retorno formal ade- emocionais do artista, o Arlequim muriliano se de-
quado à belle peinture. De humor melancólico, esse finiria muito pela angústia resultante da hostilidade
personagem impecavelmente penteado e barbeado, e do desamparo, num contexto de crise do legado
vestindo o que parece ser um traje de seda rosa, modernista ou vanguardista que Picasso foi, a seu
azul e verde pasteis, está também muito afastado modo, o primeiro a encenar em seu tempo, com esse
tanto de sua contrapartida cubista de 1915, quanto e outros exemplos figurativos de… retour à l’ordre.
dos magros e tocantes arlequins das fases azul e
rosa. Inclinado sobre uma balaustrada (onde pende
a mesma espécie de cortina suntuosa que envolve a 11 P
elos temas e estilos, Silver aproxima o Arlequim de
cena de Parade), não é nem um saltimbanco, nem Barcelona da versão dos saltimbancos feita por Picasso
para as cortinas de cena latinizante do balé Parade,
um clown de circo, mas um jovem burguês muito de Léonide Massine, com música de Erik Satie,
asseado. Poderia ser um dançarino da trupe russa, sobre poema de Jean Cocteau. Décors,
um ator no meio de um monólogo ou simplesmen- costumes e cortina de cena eram de Picasso.
Bibliografia
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CAMILO, Vagner. Drummond: da Rosa do Povo à Rosa das Trevas. 2a ed. Cotia, Ateliê, 2005.
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KING, Russell S. “The Poet as Clown: Variations on a Theme in Nineteenth-century French
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238-52. Published Online, 1 Jun 2007.