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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(4) 2001

ESTATUTO DA CIDADE
aspectos políticos e técnicos do plano diretor

SONIA NAHAS DE CARVALHO


Socióloga, Analista da Fundação Seade

Resumo: São discutidos o sentido e a articulação entre os aspectos políticos e técnicos de políticas públicas,
tendo por pressuposto que o alcance social de qualquer intervenção pública é definido por seus próprios obje-
tivos. O contexto para essa discussão é a política de desenvolvimento urbano e o plano diretor, visto como seu
instrumento, nos termos propostos pela Constituição Federal de 1988 e recentemente regulamentados pela Lei
Federal no 10.257/01.
Palavras-chave: Estatuto da Cidade; política de desenvolvimento urbano; planejamento urbano; plano diretor.

O
objetivo deste texto foi identificar aspectos, de tuição de canais de participação social – uma das ques-
natureza política e técnica, que consideram-se tões centrais que tem preocupado analistas e técnicos –
básicos para a discussão sobre planos diretores não é passível de fórmulas a priori estabelecidas. O papel
dentro do contexto atual em que foi proposta a sua exi- do técnico em planejamento é garantir que os canais ins-
gência. Para tal identificação, o parâmetro definido é que tituídos permaneçam abertos e contribuir para a institui-
o alcance social de uma proposta de intervenção pública ção de novos. Jamais o planejador poderá substituir seja
– no caso, o plano diretor – dependerá dos objetivos e a vontade política, seja a pressão social.
diretrizes que venham a ser estabelecidos para ela. A
sua operacionalização – isto é, a definição de fases, pro- INSTRUMENTOS LEGAIS NORTEADORES
cedimentos e instrumentos – deverá se ajustar às neces-
sidades impostas pelas diretrizes e objetivos a serem se- O ressurgimento do plano diretor e, em associação, do
guidos. planejamento urbano, nas agendas de debate público e go-
Portanto, mais do que os setores tradicionalmente tra- vernamental, é o resultado da imposição de sua obrigato-
tados como tal (educação, saúde, habitação, assistência riedade aos municípios com mais de 20 mil habitantes pela
social, etc.), social refere-se a intervenções que busquem Constituição Federal de 1988.1
reduzir desigualdades, segregações e exclusões sociais, A Constituição Federal, ao incorporar pela primeira vez
contribuindo, em última instância, para a expansão da ci- um capítulo específico sobre política urbana (capítulo II,
dadania. É este o sentido que se buscou neste trabalho. E título VII), estabeleceu como competência do poder públi-
nessa interpretação, o planejamento urbano, e o plano di- co municipal a responsabilidade pela execução da política
retor visto como seu instrumento central, adquire o status de desenvolvimento urbano, podendo contar, para tanto,
de política pública. com a cooperação das associações representativas no de-
Não se tem, porém, a pretensão de esgotar os possíveis senvolvimento de ações de promoção do planejamento
ângulos relativos ao tema. Nem se pretende, por suposto, a municipal (artigo 29, inciso X) e, ao mesmo tempo, articu-
proposição de normas ou manuais de procedimentos, pois, lando-se às ações promovidas pelo governo federal.
dessa forma, haveria o risco da adoção de uma postura tec- À instância federal de governo cabe estabelecer as dire-
nocrática. Não é esse o objetivo. O envolvimento de seg- trizes e fixar as normas necessárias para a utilização dos
mentos organizados da sociedade no processo ou a insti- dispositivos constitucionais que permitirão ao poder pú-

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blico municipal intervir no espaço urbano, conforme o in- Assim, o plano diretor é também obrigatório aos muni-
ciso XX, do artigo 21. Após tramitação, ocorrida ao longo cípios integrantes de regiões metropolitanas e aglome-
dos anos 90, o Congresso Nacional aprovou e a Presidên- rações urbanas, às áreas de especial interesse turístico e
cia da República sancionou a Lei federal no 10.257, de 10 às áreas de influência de empreendimentos ou ativida-
de julho de 2001, que, sob o título de Estatuto da Cidade, des com significativo impacto ambiental de âmbito re-
regulamentou os principais institutos jurídicos e políticos gional ou nacional, além das situações em que o poder
de intervenção urbana. público municipal pretende utilizar os instrumentos pre-
Ao longo dos anos 90, várias foram as prefeituras que vistos no parágrafo 4 o do artigo 182 da Constituição,
iniciaram o processo da política de desenvolvimento urba- qual seja, exigir, mediante lei específica incluída no
no e de elaboração do plano diretor, valendo-se dos pre- plano diretor, do proprietário do solo urbano não-
ceitos constitucionais de 1988 e com o resgate do planeja- edificado, subutilizado ou não-utilizado, que promova
mento urbano em novas bases. Dentre as experiências, seu adequado aproveitamento.
aponta-se a do município de Santos, onde o poder público Sem romper a inviolabilidade do direito de proprie-
municipal propôs e buscou implementar instrumentos re- dade privada, reconhecido em sentido individual, o Es-
guladores da produção do espaço urbano na perspectiva da tatuto da Cidade, tal como contido na Constituição de
ampliação do direito à cidade, dentro de um processo de- 1988, estabelece que “a propriedade urbana cumpre sua
mocrático de discussão e participação sociais (Carvalho, função social quando atende às exigências fundamentais
1999).2 de ordenação da cidade expressas no plano diretor, as-
O Estatuto da Cidade reafirma os princípios básicos segurando o atendimento das necessidades quanto à qua-
estabelecidos pela Constituição da União, preservando o lidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das
caráter municipalista, a centralidade do plano diretor como atividades econômicas” (artigo 39). O direito de uma dada
instrumento básico da política urbana e a ênfase na gestão propriedade urbana passa, assim, a ser reconhecido a
democrática. Nessa perspectiva, o Estatuto da Cidade, ao partir de regras legais municipais definidoras de suas po-
regulamentar preceitos constitucionais estabelecidos no tencialidades de uso, e o seu conteúdo econômico é atri-
contexto das discussões acerca do papel do Estado nos anos buído pelo Estado mediante a consideração dos interes-
80, retoma a centralidade da função do poder público na ses sociais envolvidos durante o processo do plano
regulação das relações sociais em matéria urbana. Os ins- diretor. Em conseqüência, a abrangência atribuída ao
titutos jurídicos e urbanísticos regulamentados são as con- plano diretor é que determinará a concepção de proprie-
dições institucionais necessárias – sem que sejam obriga- dade social que será adotada. Em vez de um direito com
toriamente suficientes – oferecidas ao poder público conteúdo predeterminado, o direito de propriedade po-
municipal para a produção de bens públicos e o cumpri- derá transformar-se no direito à propriedade. Com essa
mento de funções sociais. perspectiva, da propriedade é revista o sentido indivi-
O Estatuto da Cidade mantém a divisão de competên- dual, e passar a ser definido por uma função socialmen-
cias entre os três níveis de governo, concentrando na esfe- te orientada (Fernandes, 1995).
ra municipal as atribuições de legislar em matéria urbana. Somente através do plano diretor é que se define, as-
A permanência desse quadro significa, em outras palavras, sim, a função social da propriedade e da cidade, e em seu
circunscrever o tratamento e a proposição de soluções às âmbito ou em instrumento legal específico baseado no plano
questões urbanas nos limites do território municipal, pois diretor é que podem ser instituídos os instrumentos regu-
compete ao poderes executivo e legislativo municipais ladores de parcelamento, edificação ou utilização compul-
equacioná-las. O reverso dessa orientação expressa-se na sórios, IPTU progressivo no tempo, incluindo-se a desa-
ausência de instâncias decisórias legalmente instituídas para propriação com pagamento em títulos da dívida pública,
o tratamento de muitos dos problemas urbanos que extrapolam direito de preempção, outorga generosa do direito de cons-
os limites de municípios, configurando as áreas metropolita- truir, acima do coeficiente de aproveitamento adotado me-
nas e as aglomerações urbanas. diante contrapartida,3 operações urbanas consorciadas e
Sem perder o caráter municipalista, o Estatuto da Ci- transferência do direito de construir.4 Portanto, com o Es-
dade amplia a obrigatoriedade do plano diretor, estabe- tatuto da Cidade, apesar de a inviolabilidade da proprieda-
lecida genericamente na Constituição de 1988, aos mu- de privada não ser ferida, oferecem-se instrumentos que,
nicípios com população superior a 20 mil habitantes. caso instituídos, possibilitam atribuir-lhe função social.

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A centralidade no plano diretor como instrumento bá- Em termos práticos, a tendência seria pela implemen-
sico da política de desenvolvimento e expansão urbana e tação simultânea da política e do plano diretor, configu-
de gestão da cidade permanece reforçada com o Estatuto rando o que se deve entender por processo de planeja-
da Cidade, que a ele articula uma série de outros instru- mento urbano, no qual o plano diretor afigura-se como
mentos, ampliando suas possibilidades de êxito. De um um momento específico que procurará conter, instrumen-
lado, situam-se as peças orçamentárias, especialmente talizando-as, as diretrizes da política de desenvolvimento
aquelas introduzidas pela Constituição, quais sejam, o e expansão urbana.
plano plurianual de investimentos, a lei de diretrizes or- O procedimento geral que se propõe seja adotado, por-
çamentárias e o orçamento anual, para que o perfeito ajuste tanto, consiste na reunião articulada e integrada da políti-
possa permitir a viabilidade financeira do plano diretor. ca, do planejamento e do plano diretor, uma vez que é pela
Assim, o parágrafo 1o, artigo 40, estabelece que o plano ação pública planejada que se buscará estabelecer as di-
plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual retrizes e os objetivos da política, a qual se materializará,
devem incorporar as diretrizes e prioridades contidas no no momento presente, na forma do plano diretor.
plano diretor.
De outro, busca-se articular diferentes instrumentos de DIMENSÕES DO PLANEJAMENTO URBANO
planejamento para viabilizar uma política urbana, vista
segundo uma perspectiva compreensiva e abrangente. Desse A proposta metodológico-conceitual que orienta o pro-
modo, a política urbana deverá se valer de instrumentos cesso de planejamento urbano é aquela que coloca a simul-
que se estabelecem no âmbito dos planos nacionais, regio- taneidade das dimensões política e técnica como elemen-
nais e estaduais e do planejamento metropolitano, aglome- tos constitutivos deste processo. Tal qual as faces de uma
rações urbanas e microrregiões. E, no âmbito municipal, mesma moeda, a dimensão política é a que pretende expli-
além do plano diretor e das peças orçamentárias, os instru- citar o objeto da intervenção pública, enquanto a dimen-
mentos que podem ser utilizados para a política urbana in- são técnica procurará responder pela operacionalização de
cluem aqueles de natureza ambiental, de parcelamento, uso uma proposta que foi politicamente definida. De maneira
e ocupação do solo, setoriais e de desenvolvimento social esquemática, essas dimensões expressam o que e o como
e econômico. será proposta e executada a política de planejamento.
Por fim, o Estatuto da Cidade mantém, reforçando-a, a O debate atual tem procurado discutir novas propostas
natureza democrática da política, ao estabelecer que os metodológicas, ao mesmo tempo que tem buscado formu-
poderes legislativo e executivo deverão garantir, no pro- lar uma resposta alternativa ao modelo de planejamento
cesso de elaboração do plano diretor e na fiscalização de urbano que vigorou nos anos 60 e 70, do século XX, no
sua implementação, os seguintes institutos: promoção de Brasil. Nesse período, o planejamento incorporou caracte-
audiências públicas e debates com a participação da popu- rísticas tecnocráticas, colocando como relação dicotômica
lação e de associações representativas dos vários segmen- a relação política e técnica. Dessa forma, a tendência que
tos da comunidade; publicidade dos documentos e infor- predominou era a de fazer valer o elemento técnico como
mações produzidos; e o acesso de qualquer interessado aos determinante e não como subsidiário das decisões.
documentos e informações produzidos. Na medida em que se foi avançando no processo de
Portanto, o Estatuto da Cidade, instrumento de regula- construção democrática, analistas e técnicos têm procura-
mentação dos artigos 182 e 183 da Constituição Federal, do rever esse modelo de política, em proposta que dê con-
contém as referências e institutos jurídicos e políticos bá- ta das variáveis políticas em jogo. Assim, à proposta que
sicos para a intervenção urbana. Mas, ao seu lado, a lei qualificava o planejamento como atividade “neutra”, uma
federal aprovada contém um conjunto de enunciados – or- vez que é uma técnica e, portanto, situada à margem do
denação, desenvolvimento, expansão, função social da ci- jogo de interesses, se superpõem novas proposições, as
dade, bem-estar dos cidadãos, função social da proprieda- quais emergem na agenda do debate público e, mesmo, nas
de, adequado aproveitamento, direito de propriedade... – agendas de alguns governos locais. Essas propostas pro-
que são, em realidade, proposições genéricas e abstratas, curam situar a dimensão política no âmago do processo,
as quais somente poderão expressar realidades históricas, em discussões que buscam compreender o plano diretor
definidas temporal e espacialmente, quando do exercício como decisões resultantes de negociações políticas e alter-
do processo de planejamento. nativas técnicas e como produto do compromisso de for-

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ças políticas atuantes em determinado momento do pro- forma simplificada, esses interesses reúnem, de um lado,
cesso da política. os cidadãos ou grupos que, por deterem parcelas da ri-
queza social, têm algo a ser preservado ou acrescentado.
Dimensão Política De outro lado, os setores sociais que desde sua origem
são desiguais, dada a forma como estão inseridos nos pro-
Observado sob o ângulo da dimensão política, o plane- cessos de produção e apropriação da riqueza social, os
jamento urbano é o objeto de uma proposta social que visa quais se identificam às camadas populares da sociedade,
transformar a sociedade, garantir o bem-estar dos cidadãos cujas estratégias de sobrevivência constituem as evidên-
ou, naquilo que interessa, garantir o acesso ao uso da cida- cias urbanas das situações de conflito. Trata-se de parce-
de, qual seja o direito à cidade. las da população que, uma vez expulsas ou segregadas,
Tratar politicamente o planejamento urbano é atribuir- habitam em favelas ou cortiços em periferias urbanas com
lhe a responsabilidade pela administração de situações limitações de acesso a serviços e equipamentos coletivos
de conflito social, dado que a dinâmica social é a disputa e, muitas vezes, em situações irregulares de posse e pro-
entre os vários segmentos sociais em torno de interesses e priedade da terra (Ribeiro e Cardoso, 1989).
necessidades. Assim, o planejamento, ao administrar si- O planejamento urbano deverá, portanto, dar conta da ad-
tuações de conflito, procederá a escolhas para que deter- ministração de situações de conflito como as apontadas e ou-
minados interesses e necessidades – e não outros – sejam tras com as quais se defronte. Como administrá-las?
atendidos e satisfeitos. Na essência do plano diretor, essa administração con-
O cotidiano urbano, quando observado, revela compor- siste em propostas de ordenação do território. Ao orde-
tamentos e fenômenos que constituem evidências das si- nar o território, administrando situações de conflito, pode-
tuações de conflito. Algumas dessas situações são mais se regular conflitos; acomodar conflitos, distribuindo
perceptíveis, enquanto outras exigem instrumental mais benefícios que atendam a demandas específicas ou pon-
refinado para sua identificação. Dentre outras situações de tuais, inclusive as de natureza clientelista; e agudizar con-
conflito, pode-se apontar que: flitos, através de ações de redistribuição de recursos, com
- o direito à terra urbana tem sido função de várias moda- a clara determinação de diminuir distâncias sociais.
lidades de renda, as quais são apropriadas diferen- Dentre outros instrumentos, a implementação do plano
ciadamente pelos agentes sociais; diretor deverá conter os instrumentos legais de:
- o processo capitalista de produção imobiliária, aliado à - apropriação do solo, referente à ocupações de terra,
oferta de serviços e equipamentos públicos, ocasiona va- usucapião, desapropriação de áreas que garantam a apropria-
lorizações diferenciadas de áreas urbanas, contribuindo ção do solo para moradia de classes de renda mais baixa;
para o agravamento dos processos de segregação e exclu- - parcelamento do solo, referente à integração na malha
são urbanas; urbana, previsão de diretrizes viárias, reserva de áreas para
- os procedimentos adotados na contratação de obras pú- uso público e garantia de preservação e do meio ambiente
blicas atendem, em geral, aos interesses de empreiteiras, e da identidade cultural e histórica da cidade;
não às necessidades da população; - zoneamento, referente às normas e padrões de ocupa-
- os procedimentos adotados na concessão de serviços ção e utilização do solo urbano, em conformidade com
públicos têm, em geral, anteposto interesses de renta- atividades desenvolvidas, e previstas, controlando usos
bilização do capital das concessionárias aos interesses da nocivos ou efeitos prejudiciais ao bem-estar da popula-
população usuária desses serviços; ção (Lamparelli e Zan, 1989).
- a apropriação do espaço urbano é diferenciada: para os
segmentos consumidores da cidade, representa o quadro Dimensão Técnica
material da vida individual e coletiva; e para os segmentos
produtores, o espaço urbano representa um bem sobre o Considerada a dimensão política do plano diretor, é
qual se auferem lucros e rendas (Ribeiro e Cardoso, 1989). possível ensaiar alguns passos que possam vir no auxílio
Portanto, e de maneira geral, o espaço urbano tem com- daqueles que se dispõem ao envolvimento técnico na ela-
preendido conflitos entre interesses diferenciados que bus- boração de planos diretores. Para tanto, algumas condições
cam se apropriar dos benefícios produzidos na cidade. De gerais se impõem.

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Em primeiro lugar, é fundamental identificar uma unida- como os antigos planos diretores de desenvolvimento inte-
de de coordenação, cujo formato administrativo será ade- grados estabeleciam, podem ser mais detalhadas, compreen-
quado às condições de cada prefeitura (comissão, departa- dendo estudo preliminar, diagnóstico, plano de diretrizes,
mento, secretaria ou equipe de coordenação, dentre outras instrumentação do plano, plano de ação do prefeito, etc. De
figuras possíveis) e de uma unidade de consulta e/ou deli- qualquer forma, e independentemente do detalhamento e das
beração, ajustada às condições de cada sociedade local (con- denominações dadas às fases, para se operacionalizar a ela-
selhos centralizados ou descentralizados para a participa- boração do plano diretor é relevante determinar a seqüência
ção e representação das forças sociais organizadas). Essa de passos a serem seguidos, propondo-se:
condição envolve também a criação de um sistema de pla- - definição, social e politicamente referenciada, do obje-
nejamento, cuja abrangência pressupõe a integração dos to, estabelecendo-se os problemas municipais a serem en-
vários instrumentos de gestão municipal, incluindo-se aqueles frentados e as hipóteses orientadoras do processo de de-
de natureza executiva. Além disso, a elaboração de planos senvolvimento municipal;
diretores é uma atividade que exige o concurso de profis- - diagnóstico dos problemas, quanto aos aspectos quan-
sionais de diferentes áreas do conhecimento atuando em titativos, qualitativos e de localização social e espacial, e
processo de trabalho interdisciplinar. Por fim, são de extre- quanto aos fatores causadores e tendências futuras. Cabe
ma relevância a disponibilidade de informações e a predis- também diagnosticar a atuação do poder público, em sua
posição para realizar pesquisas, uma vez que consistem em capacidade de solucionar problemas;
recursos estratégicos para o conhecimento de problemas.
- estabelecimento de prioridades de intervenção e esco-
Guardadas essas condições, a elaboração do plano dire-
lha de alternativas;
tor, como etapa do processo de planejamento urbano, pres-
supõe definições, escolha de instrumentos e estabelecimen- - dimensionamento e alocação dos recursos para imple-
to de fases. É preciso, portanto, atentar para o significado mentação das alternativas escolhidas.
do plano diretor como instrumento de intervenção pública. Tomando-se os dois primeiros passos – definição do
Num esforço para sua decodificação, pode-se entender por objeto e diagnóstico de problemas – como referência, pode-
plano a definição de objetivos a serem alcançados e de pra- se, a título de ensaio ao desenvolvimento da elaboração do
zos a serem cumpridos, a indicação de atividades, progra- plano diretor, desenvolver um exercício rápido. Assim, em
mas ou projetos correspondentes ou necessários à realiza- um processo coletivo de discussão coordenado pela unida-
ção dos objetivos definidos, bem como a identificação dos de pública responsável pelo processo de planejamento, com
recursos financeiros, técnicos, administrativos e políticos a participação, institucionalizada ou não, de segmentos
necessários; e por diretor, as diretrizes estabelecidas em con- sociais organizados, e apoiado no conhecimento empírico
formidade com a proposta social que se pretende alcançar, da realidade local, elegem-se o(s) problema(s) local(is) para
que constituem uma referência para as ações do poder pú- estudo e posterior intervenção. Os instrumentos prioritá-
blico municipal e dos agentes privados. rios nesta fase seriam aqueles de natureza político-institu-
Os instrumentos poderão ser de três naturezas: técnico- cional dos atores, que coletivamente dariam conta da iden-
científica, político-institucional e econômico-financeira. Os tificação dos problemas, e os de natureza técnico-científica,
instrumentos de natureza técnico-científica consistem nos re- responsáveis pela sistematização mínima das informações
ferenciais metodológicos de coleta, tratamento e interpreta- obtidas pelo conhecimento empírico do município. Para o
ção de dados. Os instrumentos de natureza político-institu- desdobramento de tal fase e continuidade do processo, esse
cional consistem nos referenciais institucionais que suportam momento deveria conter minimamente o estabelecimento
as relações entre as forças políticas constituídas, seja na das fases subseqüentes com a atribuição das responsabili-
máquina pública, seja na sociedade, seja na articulação en- dades por sua execução.
tre essas instâncias. Os instrumentos de natureza econômi- Por hipótese, o problema central identificado assim se
co-financeira compreendem os recursos orçamentários e ex- expressaria: o município caracteriza-se por crescimento
tra-orçamentários disponíveis, bem como novos recursos que urbano desordenado, com ocupação periférica irregular e
possam vir a ser gerados e drenados para o processo. predomínio de moradias precárias. O passo seguinte seria
O estabelecimento de fases a serem cumpridas poderá ter comprovar a veracidade e a extensão dessa afirmação, e o
denominações diversas. Podem-se genericamente considerar procedimento a ser adotado, portanto, seria diagnosticar,
três grandes fases – diagnóstico, proposição e execução. Ou quantificando e qualificando o problema, por meio de aná-

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lises apoiadas predominantemente em instrumentos de na- Se, para a definição dos problemas a serem equacionados
tureza técnico-científica. pelo plano diretor, é preciso o concurso das forças sociais,
A decomposição do enunciado do problema oferece as para diagnosticá-lo é fundamental recorrer a instrumentos de
indicações das análises necessárias. Por tratar-se da política natureza técnico-científica, valendo-se de referenciais teóri-
urbana e da elaboração do plano diretor, como seu instru- cos e metodológicos para o levantamento e interpretação de
mento, a referência analítica prioritária é a análise da orga- dados caracterizadores dos fenômenos. Porém, para o esta-
nização territorial do município, que visa explicar o cresci- belecimento de prioridades de intervenção, escolha de alter-
mento urbano desordenado, aspecto central do problema nativas, bem como dimensionamento e alocação de recursos
identificado. De forma específica, compreende as análises – passos seguintes no processo de elaboração do plano dire-
relativas ao processo de estruturação do território urbano, tor –, instrumentos de natureza político-institucional e eco-
ao uso e ocupação do solo e às redes públicas implantadas, nômico-financeira tornam-se estratégicos. Cumprir esses
entendidas como expressão física da ação dos agentes públi- passos é percorrer um longo caminho e o resultado da políti-
cos e privados na produção do espaço. Esse é, em suma, o ca, corporificado em uma proposta de plano diretor, será o
eixo básico do problema a ser diagnosticado e, a partir dele, resultado de um processo político dependente de estratégias,
devem-se organizar as demais dimensões de análise. apoios e resistências dos atores sociais, cujos interesses fo-
Assim, ao se considerar o acelerado crescimento urbano ram direta ou indiretamente afetados.
e a ocupação periférica, tem-se a pista inicial para a análise
demográfica, que deve reunir indicadores que descrevem e
explicam o crescimento populacional, seus componentes e NOTAS
sua composição, bem como a distribuição espacial da popu-
lação no território municipal. A caracterização periférica por 1. A Constituição do Estado de São Paulo e as Leis Orgânicas Munici-
pais retomaram o tema em termos semelhantes aos colocados pela Cons-
subabitação fornece os elementos para o desenvolvimento tituição da União.
da análise das condições sociais. Além das condições de mo- 2. A recente publicação Estatuto da cidade: guia para implementação
radia, tal análise compreende as condições de saúde, educa- pelos municípios e cidadãos (Instituto Polis et alii, 2001), além de conter
um exame detalhado da lei federal aprovada, recupera experiências de im-
cionais, culturais e de lazer, bem como a disponibilidade e o plementação de institutos jurídicos e políticos por governos municipais.
acesso aos serviços e equipamentos sociais. A ocupação ir- 3. A outorga generosa do direito de construir corresponde, efetivamente,
regular e a moradia precária são os elementos que possibili- ao instituto do solo criado.
tam desenvolver a análise econômica do município. Se, de 4. Além desses instrumentos, estabelecidos no âmbito do plano diretor, o
um lado, esses fenômenos relacionam-se ao perfil de distri- Estatuto da Cidade regulamentou os seguintes: usucapião de imóvel ur-
bano de uso residencial individual e coletivo; direito de utilização do solo,
buição de renda das famílias residentes, de outro, é preciso subsolo e espaço aéreo; e estudo de impacto de vizinhança que, tendo por
reconhecer que o espaço econômico não corresponde ao es- referência os estudos de impacto ambiental, visa contemplar os efeitos
paço do território municipal, e a análise requerida é a da eco- positivos e negativos de empreendimentos ou atividades na qualidade de
vida da população residente na área e suas proximidades.
nomia local na escala da região, considerando-se inclusive
as decisões econômicas nacionais e, mesmo, as de ordem in-
ternacional, dado o modelo atual de desenvolvimento. Além REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
da identificação das atividades econômicas e dos ramos pre-
dominantes de produção, é preciso investigar as potencialida- CARVALHO, S.N. Planejamento urbano e democracia: a experiência
des existentes e as tendências de crescimento local e regional. de Santos. Tese de Doutorado. Campinas, Departamento de Ciência
Política, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, 1999.
Por fim, menos usual, uma vez que, em geral, não é
FERNANDES, E. Law and urban change in Brazil. England, Avebury,
vista como passível de tratamento técnico, inclui-se a aná- 1995.
lise político-institucional dentre as análises de diagnósti- INSTITUTO PÓLIS, CÂMARA DOS DEPUTADOS/ COMISSÃO DE
co do problema. Tendo por objeto central a resposta pú- DESENVOLVIMENTO URBANO E INTERIOR, SECRETARIA
blica referida aos aspectos diagnosticados pelas análises DE DESENVOLVIMENTO URBANO/ PRESIDÊNCIA DA RE-
PÚBLICA. Estatuto da Cidade: guia para implementação pelos
anteriores, a análise político-institucional representa, em municípios e cidadãos. Brasília, 2001.
certa medida, a síntese das demais. Trata-se, em suma, de RIBEIRO, L.C. e CARDOSO, A.C. “Plano diretor e gestão democráti-
identificar o significado dos mecanismos implementados ca da cidade”. In: Seminário Plano Diretor Municipal, 23 a 25 de
ago. São Paulo, FAU-USP, 1989.
de controle de uso do solo, de indução do desenvolvimento
LAMPARELLI, C. e ZAN, P. “Novo conceito de plano diretor a partir
e expansão das atividades produtivas e de atendimento das da própria Constituição da República”. In: Seminário Plano Dire-
necessidades sociais básicas da população. tor Municipal, 23 a 25 de ago. São Paulo, FAU-USP, 1989.

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