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AFINAL, O QUE É A NARRATIVA?

ArtigosColunasCriaçãoNarrativa — 12 outubro 2011

Conhece o conselho que os professores de roteiro e roteiristas dão a alguém que pretende
estudar narrativa? Eles o mandam ler um bom livro, um bom romance, porque nesses textos
está a verdadeira estrutura narrativa da ficção, a mesma que importamos para o cinema. Por
que então não indicam que se estude a própria narrativa? A resposta é que falta material
teórico mais direcionado ao assunto, e o existente é acadêmico e se encontra na área de
Letras, bem distante de onde o audiovisual é ensinado. Iniciei uma pesquisa neste sentido,
buscando encontrar uma boa teoria da narrativa, primeiramente através de um mestrado em
Cinema na ECA/USP, pesquisando por quatro anos as fontes de criação do roteiro. Mas
realmente só fui encontrar uma base para estudar a narrativa no campo das Letras,
especialmente na Semiótica e nos estudos realizados pelo francês A. J. Greimas, na Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Existe uma teoria da narrativa, aquela que nos
dizem para procurar na subjetividade dos romances, que não fala mais das frases, mas do
texto, que analisa o tecido que forma o sistema teórico que compõe o texto de ficção no nível
da estrutura e do sentido.

Parece acadêmico demais, mas não é. A teoria da narrativa começou a ganhar um corpo
próprio com as pesquisas de V. I. Propp em 1923. Propp selecionou entre 200 contos russos
uma série de funções narrativas que se repetiam em todos os contos. Sempre havia um herói
(e um anti-herói), uma missão a cumprir, e uma recompensa. Nesta missão o herói passava por
transformações, e as relações entre os personagens dessa ação, que se dá no tempo, eram
disjuntivas ou conjuntivas, de forma que davam corpo à narrativa. Esse esquema se
aperfeiçoou, e o que eram apenas relações entre personagens passaram a ser manipulações
entre eles.

Greimas teorizou primeiramente a narrativa como uma trama em que alguém (o personagem
principal) deseja alcançar algo (um objeto de valor), e no caminho de sua jornada é ajudado
por algo/alguém (ajudante). Seguindo o estudo de Propp, Greimas esclarece ainda que esse
herói principal é atrapalhado por algo/alguém (oponente); dois outros elementos estão em
cena: o destinateur – quem ou o quê empurrou o herói em direção ao seu objetivo – e o
receptor – quem ou o que recebe o objeto de valor, uma vez que este é conquistado pelo
herói. Há também o coadjuvante, que auxilia o herói na conquista de seu objetivo. E elance
final.

Mais tarde, Greimas levou a narrativa ao nível da semiótica, onde existem mais dois niveis,
onde podemos estudar outros textos não temporais, mas com conteúdos narrativos, como a
pintura e a fotografia, por meio de elementos semi-simbólicos contidos nesses textos.

Segundo Benedito Nunes, para processar a narrativa, as suas variações temporais não podem
ser apreendidas quando apenas visamos o discurso independentemente da história, ou apenas
a história, independentemente do discurso. O tempo da narrativa só seria mensurável sobre
esses dois planos, em função dos quais varia. Ele deriva, portanto, da relação entre o tempo de
narrar e o tempo narrado. O tempo, nesse caso, apesar de ser a condição da narrativa, não
pode ser narrado, sendo apenas preenchido com os acontecimentos que seguem uma
sequência. O processo narrativo, portanto, é relação de um tempo por outro, e por isso a
narrativa é, antes de tudo, um sistema de transformações temporais.

Nos dois níveis de análise, dentro da teoria da narrativa, na História, onde há uma
preocupação com os procedimentos internos da narrativa, podemos encontrar uma série de
tópicos como argumento, enredo, protagonista, antagonista, personagens, isotopias,
manipulação, contratos, percurso do sujeito, foco, diálogos, as funções de Propp, e a própria
história, a diegese. E no nível do Discurso, poderíamos agrupar alguns elementos como a
sequência, cena, ritmo, coerência, programa narrativo, sequência narrativa, inventário das
funções de Propp, flashback, pausa, elipse, velocidade, isocronia, anacronia, e a maneira de
processa o próprio tempo na narrativa do ponto de vista da duração.

O que é o roteiro de ficção se não um conjunto de cenas, sequências, diálogos, isotopias,


manipulações, programas narrativos, percurso gerativo do sentido, pausas e elipses, todos se
relacionando em uma grande rede chamada “narrativa”? No roteiro, também precisamos de
um tempo do discurso (a duração total das cenas, sequências e total do filme, por exemplo) e
o da história que está sendo contada. No roteiro estão descritos em texto o que virá a ser som
e imagem. É através dessa organização textual, obedecendo fielmente os conceitos da
estrutura narrativa, que o roteiro consegue ser o filme antes do filme. Sem ser um não filme,
porque enquanto roteiro está sujeito às leis da criação ficcional e da teoria estrutural. No
próximo artigo, farei uma análise mais detalhada dos componentes da narrativa.

Hermes Leal é Mestre em Cinema pela ECA/USP, doutorando em Semiótica e autor do


romance “Faca na Garganta” e da biografia “O Enigma do Cel. Fawcett”, entre outros.

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