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o SISTEMA

A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MíDIA DE RESPOSTA SOCIAL

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Dispositivos sociais de crítica midiática ambiente de interações da sociedade com sua mídia. As interações
sociais sobre a mídia retroagem, portanto, sobre as interações "diretas"
coma mídia.
José Luiz Braga Existe toda uma variedade de "dispositivos sociais": cineclubes,
sites de media criticism, fóruns de debate sobre rádio e televisão, crí-
tica jornalística, revistas cujo tema é a própria mídia, produções
3. OS DISPOSITIVOS SOCIAIS8 DO "SISTEMA DE RESPOSTA" acadêmicas sobre os meios, processos deautocrfrica da imprensa ...
Uma evidência de que a sociedade age sistemicamenre sobre a
o conceito de "leitura" (uso, recepção) como se fosse apenas mídia (ao "falar" sobre esta e seus produtos) é justamente o fato
uma relação íntima e despojada entre o leitor, usuário, e o texto de que se instalam na sociedade tais dispositivos, que (ainda que
ou produto midiático já vem sendo descartado há algum tempo. não façam sistema formal entre si) se caracterizam como modos
Um dos principais argumentos de contraposição àquele entendi- organizados e suscetíveis de apreensão sistematizada e sistêmica,
mento foi posto por Jesús Martín-Barbero (1997), com o conceito ou seja: funcionam dentro de um sistema social, largamente
de mediações, segundo o qual o espectador traz paI;a a interação "determinados" por este (ou por suas lógicas).
com a mídia suas vivências e suas bases cul rurais socialmente ela- As críticas sobre produtos midiáticos e os dispositivos sociais
boradas. Essa perspectiva enfatiza os aportes pré e exrrarnidiãricos são os elementos mais visíveis dos processos de circulação, assim
e está na base ele toda uma tendência dos estudos de recepção. como "produtos e programas" são a face visível dos processos de
Com a proposta de um terceiro sistema de processos midiáticos, produção, e os usos concretos (escolhas, zapping, "leitura", "audiên-
assinalamos mais uma contraposição às relações "simples" entre cia", acolhimento, resistência, fruição, "edição" ... ) são a face mais
produto e usuário. A sociedade se organiza para tratar a própria visível dos processos de recebimento. Assim, se os examinarmos
mídia, desenvolvendo dispositivos sociais, com diferentes graus de em busca de perceber suas lógicas ao fazer circular reações sociais
insrirucionalização, que dão consistência, perfil e continuidade a sobre os processos e produtos rnidiãticos, podemos ampliar nossa
determinados modos de tratamento, disponibilizando e fazendo compreensão sobre o sistema interacional e, indiretamente, sobre
circular esses modos no contexto social. A própria interação com o os processos midiãticos em geral.
produto circula, faz rever, gera processos interpretarivos. A variedade de dispositivos sociais de interação sobre a mídia
Assim, não encontramos apenas interpretações de produtos evidencia então a consistência da proposta de conceituação de um
específicos que depois, uma. vez feitas, circulam; os próprios gestos terceiro sistema e confirma o interesse em estudar tais objetos
.. de selecionar, apreender, interpretar já se fazem em articulação sociais em relação ao patamar sistêrnico em que os inscrevemos,
com processos e dispositivos sociais desenvolvidos no próprio uma vez que podemos torná-Ios como o elemento empírico rele-
vante para a compreensão do sistema .de respostas sociais diferi-
8. Para os efeitos práticos do presente item, tomaremos de Maurice Mouillaud a idéia de dis- das e difusas.
positivos como "lugares materiais ou imateriais nos quais se inscrevem (necessariamente) os
textos". O dispositivo é uma "matriz que impõe sua forma aos textos", e ainda: "o dispositivo
pode aparecer como uma sedimentação de textos" (1997, pp. 33-34). São, portanto, termas
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socialmente geradas e tornadas culturalmente disponlveis como matrizes para a realização A partir de nossas observações de campo, constatamos algumas
de falas especificas. Voltaremos a essa questão no capitulo 2. ações e processos desenvolvidos por aqueles dispositivos sociais.
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Essas ações procuram dar conta de objetivos muito variados, que pelos sistemas educacionais; permeações com a riqueza e a
a sociedade assume no tratamento dos produtos e processos de sua variedade de informações e processos; aprendizagem de
mídia. Identificamos alguns desses tipos de ação dentro de uma usos e de seleções; seria uma "aprendizagem de usuário".
variedade certamente mais ampla: Incluímos nesse tipo de ação as funções de socialização,
enquanto processo de desenvolvimento de competências
a) crítica - interpretações e objeções interpretativas, seleções
qualitativas etc.; culturais em sociedade midiatizada (ver Braga e Calazans,
2001, pp. 134-156).
b) retorno - feedback, retroalirnentação do sistema de produção,
indicações para revisão, criação, redirecionamentos, constru- o denominador comum de todos esses processos é que são
ção de "gêneros"(na perspectiva de Martín-Barbero, 1997); modos de a sociedade interagir sobre (e portanto com) sua mídia.
c) militância social - crítica-ação, processos sociais de uso da Como se percebe, alguns tipos de dispositivos têm sido mais
mídia a serviço de posições e argumentos, atuações antirní- estudados (como aqueles referentes aos controles da mídia, ou
dia e/ou de direcionamento dos teores, dos temas e das posi- media accountability systems), ou os procedimentos voltados para a
ções, defesa de setores e posições sociais perante a mídia; aprendizagem (media education e leitura crítica da mídia). Mesmo
estes, mais conhecidos e analisados, parecem-nos poder receber
d) controles da mídia, media criticism, media accottntability systems, , direcionamentos adicionais pelo fato de serem esrudados enquanto
processos sociais de enfrentamento e controle da mídia, de elementos de um sistema específico de processos midiáticos,
seus poderes, de seu papel social, em defesa de valores pro- dentro do qual se articulam ou podem se articular com outros.
fissionais e sociais diversos que possam ser ameaçados por Os diferentes objetivos e processos evidenciam que a sociedade
lógicas estritas da produção cultural comercial; não apenas sofre os aportes midiãticos, nem apenas resiste pon-
e) sistematização de informações - processos organizados de tualmente a estes. Muito diversamente, se organiza comosociedade,
classificação, organização e disponibilização de acervos ... para retrabalhar o que circula, ou melhor: para fazer circular, de
(são, às vezes, processos relacionados à atuação crítica, mas modo necessariamente trabalhado, o que as mídias veiculam.
também à configuração de bases de dados e outras facilida- Isso corresponde a dizer que a mesma sociedade que, por
des de acesso); alguns de seus setores, grupos e linhas de ação, gera a midiatiza-
ção enquanto sistema produtivo, por outros setores e atividades
f) circulação comercial -estímulos à seleção e ao consumo complementa essa midiatização por meio de operações de traba-
midiático ("venda", sedução para escolha de produtos, anti- lho e de circulação comentada daquilo que o sistema produtivo
zapping), operações de marketing da própria mídia; oferece ao sistema de recepção.
g) processos educacionais e forma ti vos - aprendizagens orde- Todas aquelas ações e processos (e certamente outras, não
nadas, sistemas e dispositivos educativos para uso e direcio- expressas aqui) podem se misturar e se interferir mutuamente.
narnenro da mídia; Isso corresponde a dizer que a sociedade desenvolve uma série de
ações sobre a mídia - conrraproposirivas, interpretativas, proati-
h) processos de aprendizagem em público - trata-se aqui de vas, corretoras de percurso, controladoras, seletivas, polemizadoras,
um aprender do gosto e da fruição, difuso, não controlado laudatórias, de estímulo, de ensino, de alerta, de divulgação e
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"venda" erc. - que se combinam dos modos mais variados. São Além disso, verificamos historicamente que processos de
ações, de um modo geral, voltadas para a sociedade. Mas, conforme interação sobre a produção diferida e difusa utilizam veiculação
sua abrangência, podem ter um sentido direto ou indireto de midiatizada. A crítica literária é, evidentemente, um processo
retorno sobre a mídia - que vai se caracterizar, então, como um de tratamento da literatura em um sistema social (constituído
retorno de sociedade, necessariamente diferido e difuso. pela universidade, autores, críticos profissionais) voltado para
Um aspecto relevante a ser estudado, para uma determinada examinar, interpretar, selecionar, criticar e divulgar a produção
sociedade, seria o perfil, a acuidade, o grau de pertinência c de literária. Uma parte muito significativa dessa produção e dos
eficácia dos dispositivos mais atuantes e, portanto, o desenho de processos da crítica é veiculada pelo mesmo meio, o livro, usado
como essa sociedade consegue trabalhar com sua mídia. É possí- para as produções de literatura, ou em meios complementares
vel, portanto, fazer uma análise crítica (ou político-social) de (jornais e periódicos). Isso não impede que se distinga uma ati-
como uma sociedade funciona midiaticamente não só pelo estudo vidade da outra, uma, propriamente "produtiva", a outra, uma
(mais habitual) das características de sua produção midiática, produção que se volta sobre a primeira. Temos assim uma atesta-
mas também (e chegando, assim, a uma compreensão mais abran- ção histórica da possibilidade de processos de interação social
gente) pelo estudo dos dispositivos e processos sociais que .a serem distintos, embora usando os mesmos meios, típicos dos
sociedade desenvolve para tratar de sua mídia. processos" de produção".
Que os dispositivos sociais de interação da sociedade sobre a
*** mídia utilizem as mesmas mídias veiculadoras dos produtos co-
Outra percepção a ser assinalada é o fato de que os dispositi- mentados ou que utilizem outras, complementares, isso apenas
vos socialmente gerados para organizar falas e reações sobre a evidencia a variedade possível de ações de interação. É claro que o
mídia utilizam, com freqüência, a própria mídia como veicula- livro e o jornal, mídias mais longamente estabelecidas, são privi-
dor. Essa seria uma razão adicional para a dificuldade de percep~ legiados tradicionalmente como espaço para tais ações. Mas tam-
ção do que chamamos de sistema de interação social sobre a bém o rádio e a televisão - por exemplo, nos programas de debates
mídia, como componente a ser diferenciado dos sistemas de pro- sobre a própria mídia - são arenas adequadas aos processos do
dução e de recepção. subsisrerna. Hoje, a flexibilidade da rede informatizada mundial
Entretanto, é bastante lógico que essa utilização midiática faz da internet a mídia de escolha para os dispositivos sociais de
ocorra. Superada uma visão dualista entre amídia e a sociedade, fala sobre a rnídia. Como a rede se desenvolve em sociedade já larga-
percebendo-se que a sociedade midiatizada age via mídia (e não mente midiatizada, outros processos e produtos midiáticos se tor-
apenas sofre a mídia), não haveria nenhuma razão para que os nam facilmente matéria-prima para as interações aí desenvolvidas.
processos de fala e reação (interação social) sobre a mídia se acan-
tonassem em espaços extramidiáticos. Esses espaços extramídia
efetivamente existem e são relevantes - nas salas de aula, nos bares 4. CONSEQÜÊNCIAS
e cafés, nos sindicatos e associações. Mas percebe-se como é também
importante, para que as interações sociais sobre a mídia e sobre seus É claro que constatar um sistema de interação social sobre a
produtos tenham efeitos sociais e culturais abrangentes e permeado- mídia (em cujo âmbito ocorrem ações de retorno, de crítica, de
res, que desenvolvam uma operacionalidadeigualmente midiática .. aprendizagem, de controle da mídia e de interpretação produtiva)
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não corresponde a uma visão ingênua de que a sociedade estaria é por meio desses dispositivos que a sociedade pode exercer inter-
sabendo enfrentar o que produz midiaticamente e sua disseminação, venções críticas.
ou de que corrigiria auromaticamente as eventuais distorções do
setor de produção. Pois, assim como o setor de produção apresenta ***
disrorções (relacionadas a suas lógicas econômicas, organizacio- O presente capítulo referiu as principais ações e processos rea-
nais e políticas, a seus conceitos de cultura e de entretenimento), lizados pelo subsistema de inrerações sociais sobre a mídia (ou
o sistema de interaçãopode ser frágil, esparso, pobre de recursos "sistema social de resposta") em sua generalidade.
(materiais, conceituais, criativos e operacionais), de pouco alcance O próximo capítulo discute o trabalho crítico da sociedade,
e de visão pouco abrangente. Entendemos, portanto, que uma como parte constirutiva (e, pela nossa perspectiva, a mais rele-
recepção ativa é correlata, de modo fundamental, à existência na vante) do sistema de interações sociais sobre a mídia. Situa aí a
sociedade de dispositivos de interação social vigorosos - nos dois crítica acadêmica e a crítica especializada, dentro de uma diversi-
sentidos, de enfrentamento interprerativo e de forte presença dade mais ampla de processos críticos, e procura examinar as
social, ou seja, constatar uma articulação sistêrnica enrre ações relações gerais entre os três subsistemas, enfatizando a existência
interacionais de sociedade e produção midiática não corresponde de contigüidades e tensões entre eles, como base mesmo da possi-
a afirmar "equilíbrio", menos ainda equilíbrio estável. bilidade crítica.
Os limites para o funcionamento de um sistema eficaz de O terceiro.capítulo expõe os procedimentos de abordagem da
interação social midiática certamente são correlatos, em uma investigação realizada sobre dez materiais empíricos, caracteriza-
mesma sociedade, aos limites encontrados no sistema de produção dos como exemplos de ações críticas sobre produtos e processos
e no sistema de recepção. Isso é naturalmente relacionado a seu midiáticos. São apresentados os procedimentos de seleção e os
funcionamento sistêmico. Por isso mesmo os processos e disposi- parâmetros adorados para a análise do material.
tivos de interação deveriam ser estudados, na sua especificidade, Na segunda parte, apresentamos, em dez capítulos sucessivos,
como aporte relevante para o desenvolvimento das competências as observações feitas sobre casos de dispositivos sociais que reali-
midiático-culturais da sociedade. zam diferentes críticas e produzem, assim, respostas diferidas e
Assim, além do interesse em oferecer uma ampliação de difusas à produção. Ao lado de uma descrição das especificidades
conhecimento, para a compreensão do campo comunicacional, o de cada caso, estudamos os pontos de vista de onde se faz a crítica,
subsistema parece se colocar como espaço de escolha para a inter- os objetivos e motivações que transparecem das falas e os direcio-
venção crítica, cultural, educacional e operacional, nos trabalhos namentos de inrerlocução propostos. Os dez materiais examinados
da sociedade, no objetivo de estimular seus processos midiáticos foram os seguintes: o site Observatório da Imprensa, materiais de
de modo socialmente responsável e relevante. Por isso mesmo, autocontrole em jornais ("Ombudsman" e "Conselho do Leitor"),
embora reconhecendo a multiplicidade dos processos segundo os cartas de leitores, notícias de jornal sobre a mídia, crítica jorna-
quais a sociedade age sobre a mídia (alguns dos quais meramente lística de cinema, o site Ética na TV, crítica de televisão em jornal
reforçando motivações empresariais e de marketing), é claro que e três livros com diferentes ângulos e abordagens sobre mídia, de
nosso interesse é maior pelos dispositivos voltados para as ações, Arlindo Machado, Ricardo Noblat e Luís Nassif.
acima referidas, de crítica, de retorno, de estímulos de aprendiza- Dois capítulos, finalmente, trazem reflexões conclusivas a esse
gem, de controle social da mídia e de interpretação proativa, pois relato. O capítulo 14 faz análises transversais, comparando os dez

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casos e desenvolvendo a própria percepção dos parâmecros através
da observação das variações encontradas. O capítulo 15 elabora,
com ri apoio do que se aprendeu no estudo empírico, questões

conceituais sobre o sistema de resposta e seus dispositivos, e
avança perspectivas praxiológicas sobre o conhecimento e sobre a
crítica do sistema.

DAS INTERAÇÓES SOCIAIS


AOS PROCESSOS CRíTICOS

1. O TRABALHO CRíTICO NA SOCIEDADE

No capítulo anterior apresentamos nossa tese sobre o interesse


em assumir como terceiro componente do sistema de processos
midiáticos na sociedade, ao lado do subsistema de produção e do
subsisrerna de recepção, a interação social sobre a mídia, como
sistema de resposta socialmente desenvolvido dentro da mesma
dinâmica histórica que move a sociedade em sua rnidiatização.
Sobre essa base, explicito agora a perspectiva de que a parte
dinâmica desse sistema de resposta é composta por processos e
dispositivos sociais que podem ser reunidos sob a rubrica comum
de "trabalhos críticos" sobre produtos midiáticos.
Um processo interacional sobre a rnídia e seus produtos pode
ser considerado "crítico" quando atenda a pelo menos um dos
seguintes requisitos:

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