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Polis e civitas: a raiz étnicaeo conceito dinamico de cidade 9 —— Uma vez que nio faz muito sentido falar de cidade em sen- tido geral, € bom comegar por fazer alguns esclarecimen- tos do ponto de vista histérico-terminolégico.A cidade enquanto tal nio existe. Existem diferentes e distintas for mas de vida urbana. Nio é por acaso que o termo «cidade» pode ser dito de diferentes maneiras. Por exemplo, em latim nio existe termo correspondente ao grego pélis. A diferenga respeitante 4 origem da cidade € uma diferenga essencial. Quando um grego fala de pélis pretende, antes de mais, indicar a sede, a residéncia, o lugar em que um determinado génos, uma determinada estirpe, uma gente (gens/génos) tem as suas raizes. Em grego, 0 termo polis remete de imediato para uma ideia forte de enraizamento.A polis é o lugar onde determinada gente, especifica no que toca a tradigSes € cos tumes, tem a sua sede, reside, onde tem o seu proprio éthos. Em grego, éthos é um termo que indica a mesma raiz do Addade cacciari termo latino sedes, ¢ no tem nenhum significado unica~ mente moral, como pelo contririo 0 termo latino mos. Os ‘mores latinos sio tradig&es, costumes; o éthos grego — termo muito anterior a qualquer costume e tradigio — é a sede, 6 lugar onde a minha gente tradicionalmente mora, reside. E a polis € precisamente o lugar do éthos, o lugar que serve de sede a determinada gente. Esta especiticidade ontoldgica e genealégica do termo pilis nao esti presente no termo latino civitas. A diferenga é radical, jd que no termo latino civitas, reflectindo bem, se manifesta a sua proveniéncia do termo civis,¢ os cives formam um conjunto de pessoas que se reunira dar vida a cidade. Emile Benveniste, o grande indo-curopeu, sublinhou muito bem este bastante tempo. Nao existe, portanto, madame la ville, assim como nio existe monsieur le capital ow madame la terre. Civitas termo que deriva de a para nguista aspecto ha ji m s, portanto, de certo modo surge como produto dos dives quando se retinem num mesmo lugar e se submetem is mesmas leis. No grego, ao invés, a relacio inverte-se por completo, ja que o termo fundamen- Bl € pilis ¢ 0 derivado é polite, 0 cidadio, Note-se a perfei- {2 correspondéncia entre a desinéncia de polites e de «vita; ‘mas, no segundo caso, indica a cidade, io. Para os romanos a civitas &, desde produzido pela 10 prim pre, aqu fo de varias pessoas sob as mes Para li de qualquer especificidade én um aspecto absolutamente caracter > que é leis 1a OU religions, Este & istico e extraondin: Constituigio romana comparativamente des gregas ¢ hel 10 da a hustéria das crda~ ‘as que a precederam. E ¢ fundamental Para compreender, de seguida, a forya politica da historia lise civitas: a raz ética eo conceito dinkmico de cidade romana, 2 énfase politica — no sentido actual do termo —, que domina a historia ro Na civilizagao grewa,a unidade de pessoas do mesmo ¢¢ o a polis, idera que se perceber como a polis i : orginico, antecede a ideia de cidad tririo, desde as origens — ¢ o propr no o diz — a cidade é contiud muito diferentes no q concordam entre si em virtude Concordia romana, qu ‘cio da historiogratia ron de Roma Ab urbe ee. de seguida, da histor der tologia ¢ (© primeiro deus a Avy de pessoas que éode cidades, ou sea, por © critos, € que contlue to dor credo, Este facto & © por tod: © percurso ter » de Caracalla nas pri em qu todos os homens ives que habitam n0s confins do Trpero se trmar dbs romani scam eles afticanos, da Asia 8 ‘Menor, expanhis gilios. © por ai adiante, independente- mente de qualquer expecificacio étnico-religiosa, “Antes da infuéncia romana, ¢ do seu dominio, no ‘encontramos nada disto: em nenhuma das polis gregas, “one prevalece, ao invés, 0 principio «pertengo aquela pomque é nea que © meu génos esti sediado». Como nio se exclui a possblidade de estabelecer foedera, aliangas entre as cidades, mas cada uma delas (aspecto fun- damental para compreender a historia da Grécia) constitui substancialmente uma realidade isolada por causa do enrai- zamento de estirpe e génos.A consequéncia é 0 isolamento de cada pli em relagio as outras. Existem as olimpiadas, as ‘grandes festa, porém, a cidades gregas permanecem ilhas, i 56 por brevissimos periodos se conseguem federar devido 4 pressio de acontecimentos extremos particularmente dra- e obvi iticos (por exemplo, no inicio do século v a. C. devido &s guerra persas) ou porque uma delas assume hegemonia, | mesmo que breve, sobre as outras (a hegemonia ateniense ~ dura pouguisimo ea espartana ainda menos). Existe, por- ‘anto,a imposibilidade das cida Vida a unidades federadas mais nenhus ides gregas poderem dar amplas precisamente porque nenhuma consegue absorver (rn eco cements qu Ihe csi alhios Sele que ma pili € livre, mas no pertence ao génos, ri am ed, categoria muito proxima da ts Alga at 8 tts mas cidades macula dito de home 2m efit consderam que 0 Yo Plo gua at Ms cidade mugulanas — moti Se tornam, durante séculos,cidades dlls € uma civita, éuy que Actdade lise civita: a rai nica eo conceite dindmico de cidade fassimo Cacelarh ‘yerdadeiramente multiculturais e multirreligiosas na bacia do Mediterrineo — fosse uma consequéncia da insttucio- nalizagio da hospitalidade pi estrangeiro livre, compl para nente tolerado e reco Phecido na posse dos seus direitos pessoais, das as préprias tradigSes¢ live de praticar 0 préprio culo, mas sem a pos- Sibilidade de exercer direitos politicos, Encontramo-nos, asim, perante esta grande distin- | do que nos leva a questionarmo-nos sobre 0 conceito de | Sedade: devemos dat-Ihe um valor fortemente & | entendé-la no sentido de civitas? Quando pi dlemocracia ateniense nio podemos esquecer que ela fan- jos mas na pers cionava na base de uma ideia étnica e rel pectiva romana trat-se de um produto artificial ou scja, | é-se cidadio de pleno titulo, com todos os di mente porque se concorda em viver submetido a determi- nadis leis ¢ a obedecer Aquele regime: o te dia tem esse significado. ‘Naturalmente,a sede Roma, a Urbs, apresenta um grande valor simbélico, mas do ponto de vista substancial t significado diferente do de Atenas ou Alexandria, Roma é 0 centro do Império, onde estio as grandes instituigdes politi- cas (o Senado, a Repaiblica e, depois, o Imperador), mas nela no habita uma determin: to, ples- yum a estirpe ou raga, que, enquanto tal,a domine; 0 seu primado nio advém de razdes como as que faziam com que um ateniense considerasse Atenas como o verdadeiro coragio, 0 valor fundamental d Outra ideia interessante, que nasce precisament Contexto, é que a cidade & «mévele na ‘Um dos epitetos mais significativos da tardo-romanidade €0 de Roma mobilis, precisamente porque o dinamismo neste intima esséncia. Acidade presente no mito das 1s origens permite-Ihe imaginar resent 1 ; construir 0 seu oy através da sintese dos mais diversi n . oe Todo o esforgo de Virgilio ¢ toda a ideolo mrana se bastiam na ieia das origens, € a8 origens acne cio sempre a sa potisina pars (como é dito ino), a parte mais forte, pois a origem 2 aguilo que finda uma cidade, Mas as origens de Roma, fa gomo a ideologa augusta as sepresenta, esto precisa vente na confuncia de diferentes povos; Os prOprios lati- nos nio sio os inimigos conquistados e submetidos. Zeus ae promete a Juno que os toianos serio sim, os vencedores, tas depos sero les proprios absorvidos pela lingua e pelo nome dos latinos. E Eneias quem vai ter com os etruscos pan lhes propor uma alianga € tudo uma confluéncia de elementos diferentes, de tradiges ¢ linguas diferentes e & «sta precsumente a dvtas Sob a égide de uma mesma ideia, sob a gide de uma mesma estratégia (mais do que fundadora), porque o que junta estes cidadios tio iferentes nio é a sua origem, mas o fim comum. A cida~ de projectada no futuro junta os cidadios, nio 0 passado da Sens ndo o sangue, Estamos juntos para atingir um fim: eis © porqué de Roma mobili, T é bil: Tudo isto @ claramente afi Sea jente afirmado um, Mas qual é 0 fir 2 we 7 © fim a aleangar? A resposta é: imperium sine a Ses hep, da Europa, da Africa e da Asia «drain, para permitir que Roma expanda teins espaciis 1 de pice fae perio io significa impé- Ipério sa eomiio exercido peas armas: emVi a : em Virgilio, ie oe ee Roma deve dar as suas toda; que a Urbs deve tornar- 5 Polis ecivitas: araiz 6tnica @ 0 conceito dindmico de cidade vg aquela que dita as leis, aquela que impde a concérdia 20 ef ineiro subsnetendo-0 3 lei. pressupowt amplici- mara ideia & 0 de que agualo que ree a ca nio éum | 4 te amen originio, mas um objetivo: vvernos juntos evds da concordia produzida pelas nosis lis, pode- is pois.at Fos almejar um grande fim, Roms io é isto mesmo que a tgeeja veio copiar? Esta € a grande e eterna construgio do direto romano: por Brremo & que os Padres da Igreja consideravam Roma pro- egencial. A estrutura juridica da Igreja & essencialmente deixar de o ser. E grandiosa a ideia romana € nio poderia Gr que aguilo que nos congeega rete, mio & nada de oF'= tani, mas apenas um fim, Que no & mais que & agloba- lizagaov: fazer da orbis uma inigico que nas polis delimitava e aprisionava dentto dos Timites da cidade coincida com o circulo do mundo, em toda a sua dimensio espacial e temporal. Esta é a grande idea romana, que ji faz parte do ADN do Ocidente,¢ dele no se pode extirpar, jf que se tornou a ideia fundamen= tal da teologia politica, implicita no espirito de missio, de evangglizagio. Esta mobilidade, naturalmente, s6 pode ter éxito se for 1s augescens, de cidade sempre em de maneira a que o circulo associada 3 ideia de ¢ _crescimento: outro termo chave ¢ emblemitico sobre © qual, amitide, me tenha debrugado com os amigos rommanis tas, que predomina na nossa linguagem € no nosso patri- ménio cultural. Mas é um termo inconcebivel no contexto da pélis: a0 lermos Platio e Aristoteles damo-nos conta que © problema dramitico era 0 de a demasia; se se alargava demasiado, como conseguitia man— ter-se enraizada no seu génos? Nas obras Repiblica ¢ Leis de is nio se alargar em 5 : : 3 gf 38 ze 58 Japonés, 198 ‘Massimo Caccar ‘ Wee! ies 1a ES a ANAS 2 « conjugam sempre em altrnativa sua pls aos seus ‘idadios. 7 _ sora léofos politicos (0 empenhamento politico da filo- sofia existe desde as origens, desde os Sete Sabios) intervém na pis, mas sempre com intengdes polémicas, jé que a polis no os escutava. E diziam que as les, os némoi da cidade, devem ser imagem de Diké, para contrariar o facto de no fo serem, uma vez que estavam unicamente ligadas & terra ‘A morte de Sécrates foi o grande pecado da pélis,a qual, para defender a sua Constituico material, condena 0 justo. (0 niimos da pals 20s olhos do filésofo, — aos olhos daque- le que dizs escuta o ligos, «combina 0 némos da pélis com a Diké celeste» — era exclusivamente ligado 3 terra. Isto Eo que acontece com os fildsofos até Platio durante dois, séculos: por seu lado, Aristételes vira pagina, fazendo uma fenomenologia das Constituicdes politicas. Platio nao é escutado, tanto que elabora a obra Reptblica, como indica- io suprema daquilo que a pélis deveria ser para funcionar de maneira equilibrada ¢ justa, indicago essa totalmente oa em relacio ao funcionamento da pdlis concreta. ae bdo radicagio na terra era uma referén- panreparnh fri, ee génos © o légos significavam eee eee aqueles costumes. Onde Homero e em Hesiodo? O teseanahe eee 2 unho de toda a filosofia Steen € 0 de que a relacio com a Diké eésmica & ieee mica & sempre ae a mava que o termo tinha aman ta pélemos, guerra; o mesmo fe phi 50 mesmo foi ‘Peso por Catl Schimtt,e muitos outros mesma raiz que a 2B depois dele. E certo que a raiz de pil, se ¢ indo-europeia, indica a pluralidade ¢ a multiplicidade. Mas é de todo incerto que seja uma raiz indo-europeia, mediterrinica, semitica, mesopotimica ou acidica. E sabido que iniimeros termos gregos, toponimicos e nio, tém uma raiz no indo- “europeia, mas mediterranica, pelisguica e acidica, F, pro- vavelmente também nesta tiltima, pois em acadico existem noms com esta etimologia que indicam cidadela, varios castelo, lugar fortificado. aykeg sewouy ap suasejo> oO apepp vy 14e199e>5 owlssey o Titulo original: La citta, publicado originalmente pela Pazzini Stampadore Editore, Villa Verucchio (Rimini), 2004 (esta versio corresponde 4 quarta edicao de 2009) Tradugao: José J. C. Serra Revisao: Jodo Carlos Piroto Desenho: Cibran Rico Lopez e Jesus Vazquez Gomez para desescribir © da tradugao: José J. C. Serra © do texto: Massimo Cacciari © Pazzini Editore, Villa Verucchio, 2009 da presente edicio © Editorial Gustavo Gili, SL, Barcelona, 2010 Impresso em Espanha - Printed in Spain ISBN: 978-84-252-2370-9 Impressao: Litosplai, SA, Les Franqueses del Vallés (Barcelona)

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