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ISABEL DOS GUIMARAES SA IGREJA E ASSISTENCIA EM PORTUGAL NO SECULO XV fORIC go Separata do Boletim do Instituto Histérico dai liha Terceira Volume Lill - Ano de 1995 IGREJA E ASSISTENCIA EM PORTUGAL NO SECULO XV Isabel dos Guimaraes SA Introducao Antes de avangar no tema que me proponho tratar, cabe-me fazer uma adverténcia prévia: 0 século XV encontra-se normalmente fora do ambito cronolégico sobre o qual trabalho. A raziio que me levou a estudar a assisténcia tardomedieval portuguesa prende-se com a investigagdo que desenvolvo desde 1992, ¢ que versa o tema das Misericérdias ', Desde 0 seu infcio que uma das questdes que se colocaram foi a seguinte: o que mudou na assisténcia em Portugal com a fundagdo € répida expansiio das Misericérdias? Por outras palavras, era necessdrio perceber como era a assisténcia em Portugal antes de 1498, ano da fundagao da Misericérdia de Lisboa. A tarefa foi facilitada pelo facto de existir uma quantidade apreciavel de bibliografia e fontes publicadas, o que, diga-se de passagem, contrasta com a pentiria de trabalhos relativos & Epoca Moderna. " Binanciamento da CN.C DP, projesto 172/92 “MisericSndas nos teri ulramarinos sob audministagso portugnesa (1500-18007 e da 1NCT-1C., projecto PLUS.C HIS 81093 “As Miserisedias: ligarguias e pica de asitéacla a Sociedade portuguesa tadcionsl” Asradego aos Dis. Nano José Pram Pinto Dias (Universidade do Minho} € Nuno Gongalo Monteiro (astiuto de Cnc Soca) o8 camentriosfitos 8s verses nics do test, 229 HOLETIM DO INSTITUTO HISTORICO DA ILHA TERCEIRA Quando confrontados com a questo da centralizag4o ou padronizagdo da assisténcia em Portugal nos finais do século XV — da {qual a fundagio do Hospital de Todos os Santos e da Misericrdia de Lisboa servem de paradigmas — historiadores e senso comum optam Por afirmar mais ou menos explicitamente que a monarguia retirou prougonismo Igreja nessa matéria, Este trabalho pretende argumentar {que atendéneia reformista expressa na segunda metade do sSculo no acabou com qualquer pretenso “monop6tio” éclesidstico da assistencia ‘em Portugal. Como iremos ver em seguida, as competéncias da Iareja ‘em matéra assistencial,vastssimas no campo estritamentereligioso, no diziam respeito nem criagdo de estabelecimenios nem & maioria dos aspeetos relacionados com a administragio dos seus bens patrimoniais e da assisténcia neles prestada 1. Os receprores de assistencia em Portugal no século XV- ponardimien gerat Antes de avangar na linha de argumentagao que pretendo seguir, ‘omna-se necessirio especificar quem eram os beneficidrios de caridade de que modo eram assistides. No século XV portugués vamos ja encontrar os tipos de pobres que a assisténcia do periodo moderna twataré: pobres envergonhados,doentes pobres, peregrinos e mendigos, engeitados, presos pobres e captivos, vivas e donzelas pobres* A Unica excepedo parece ser constituida pelos leprosos, que tendem & desaparecer, na medida em que a propria doenga se extingue progressivamente Os pobres envergonhados, definidos como individuos sem riqueza Den nn sicaor XIl = XV, 0 tenes coma ind gb se {St Sci none na aps en an demon” fs ee etn ie on ar DO INSTITUTO HISTORICO DA ILHA TERCEIRA 221 para manter 0 estatuto social respectivo, sendo no entanto de assumir publicamente a pobreza, detectam-se entre 6s 1a de merceciros ou merceeiras. Estes eram individuos fidosos, a quem um patrono concedia por doagio ou recursos suficientes para assegurar a sobrevivéncia em troca ‘por alma do doador e seus familiares. A bibliogratia di- sda sua importincia: desde as mereeeiras que o rezente D. ‘4 sua cunhada, a vitva de D, Duarte’ até 30 regiment ‘dos meninos engeitadas fundado por Isabel de Aragio © dda Guarda, que prevé a instalagao de 6 a 8 pobres ‘no hospital caso as rendas o permitam’. Mais tarde, a, persist a figura do pobre envergonhado, doravante visitas domiciirias semi-secretas por parte dos irmos da lia, fazendo-se as metcearias cada Yez mals raras até a0 seu cimento quase completo, Hi uma exeepgio Ne: quando surge 0 recolhimento da Miscricérdia de aS suas pensionistas s8o merceeiras, um sintoma de tama vez que estas tinham praticamente desaparecido j& no (VIL quando se faz a teferida instituigao, grinos © mendigos sio ainda realidades indistintas, muito se exbose a preocupagdo de distinguir aqueles que merece entre a massa de pedintes, mediante a obteneio de autorizagdes iga. Nas Cortes de Lisboa de 1427 solicitow-se que ninguém pedir esmola sem ter obtdo licenga dos jus e vereadores © forasteiros pedissem apenas oito dias em cada povoagio®. A “Meo, bers Haga at Pema Rass DLs. A "Gaia rae Hosp os eee de Samm 12 Been aes Fenn nan se Sa pe 9 on in mae wns co! vi Conk Man es St vc este ee prs oma ave xT Amos case cpa 222 ROLETIM DO INSTITUTO HISTORICO DA ILHA TERCEIRA esmola surge ainda de forma stalizada,associada & iui, inte- grando-se em enteramentos eno quadro dos bodes, tendo impotincia ®ceriméni do lava-pé, um ital de inversio da ordem social que encontraremos em algumas misericérdias séculos mais tarde Vagatundose pererino so indstitamentescehidos nas albergariss, geralmente durante um period de tempo limita ars dias, podendo prolongar-se ess iempo em caso de daeng, Em teora, a albergaria ‘sara Tigada a0 acolhimento de peregrinos enguanto que 0 hospital de destnaria ao tratamento de doentes. Na pritica, no entanto, essa diferenga esbte-s uma ver que quae todos estes estabelecimentos sio simultaneamente uma e outta coisa. Esta indefinigdo parece prender-se com o estatutoeconimicoe socal do doente propriamente di: ele € geralmente wm pobre sem tecto nem familia qu posse recolher Protas pals, sa figaradenifica-e com oforastiro de que fans hi pouco, S6 mais ade € que alguns spits poderio sepurr ce Forma clara oa eapayos reervador 2 hospitals de reservados a ratamento de doen, como fio caso do Hospital das Caldas’ ‘Os engeitados sdo ja objecto de hospitais proprios em Portugal desde 0 séeulo XII, quando se fundaram hoxpitais em Lisboa © Sanarén.O primeira ser fundado fio Hospital dos Meninos Ortis, na Mouraria,eonstruido por ordem de D. Beat, mulher de Afonso IPO de Samarém remonta 20 primero qurtel do séeulo XIV"e 0 regiment respectvo eieunscreve-0 46 iho legitimes em sco de infanicido, perdendo-se as slmas sem bapismo das criangas¢ a das imies que os abandonavam.Diz-s também que ser crianga pobre ni bestava para ingressar no hospital, aludindo ao elevado nimero de BOLETIM DO INSTITUTO HISTORICO DA ILHA TERCEIRA 223 pobres existente™. Outra categoria de necessitados requeria, pela natureza da sua prépria doenga, hospitas especificos: os leprosos, que as comunidades tentavam isolar do contigio de forma mais ou menos ritualizada. Em Portugal, a segregacdo dos leprosos parece ter ficado ‘aquém da verificada em outras regibes da Europa, com os gafos pobres ‘circularem pelo reino, enquanto que os mais ricos se podiam permitir ingressar numa gafaria, sem renunciar a safdas periédicas ". A \istribuigdo geogrifica das gafarias encontra-se estudada para 0 caso pportuzués€ o seu declinio estava ja bem acentuado na segunda metade do século XV" A assisténcia aos presos prende-se com a prpria estrutura do encarceramento: este era geralmente limitado ao petfodo anterior 20 julgamento, a que se seguia eventualmente um degredo, Durante 0 empo em que permanecia na prisdo 0 individuo devia ser alimentado € tratado na doenga; no entanto as autoridades locais ndo forneciam estes servigos gratuitamente. Dai que 0 individuo devesse pagar 0 sei sustento ou ser apoiado pela familia respectiva, De resto, 0 ‘encarceramento ndo isolava o preso da comunidade: eram-the postos| ferros e 0 recinto da prisio era mais ou menos aberto, Este sistema ‘deixava sem apoio os presos pobres, a que a caridade tinha de prover 'No entanto na documentacdo portuguesa medieval os presos pobres ‘io pouco mencionados, se compararmos com as mengies que a cles enconiramos a parti do séeulo XVI. Em contrapartda, aparece a figura «do captivo, o individu mereé do Infel,primeiro na Pennsula Ibstica © depois no Norte de Africa, a parti do inicio do envolvimento Portugués em Marrocos. A retengio de individuos nas mios dos érabes Colocava uma questo de importincia capital: « necessidade de reservar o cristao da religido © do modo de vida islimices, pelo que ‘tvs npr ns ee ont ade Mt A NVI Ee Nees Poe, We Rp He Tee Tn is 224 BOLBTIM DO INSTITUTO HISTORICO DA ILHA TERCEIRA, se tornava necessrio providenciar o resgate respectivo, procedendo & angariagio de fundos em caso de insuficitneia econémica por parte Ep Sa non Age 2 nc ts pats stn 6 OF Crh spain min ni mH drs art Tanger © a, Mugs Jad.’ aca nN e Repl ot ii do Mae Mi Rin adie LF Bee VD. 38 ¥ ‘cimaras a gerir grande riimero de hospitais* ou as confrarias, desde faquelas em que se associava um grupo profissional ~caso da confraria de S. Pedro de Miragaia que rcunia gente ligada a0 mar‘? ~ até 3s cconfrarias de base associativa alargada & generalidade da populaglo. “Assiste-se também em finais do século a uma tendéncia para as Ceimaras absorverem a administragao dos hospitais das confrarias, ‘embora ainda insuficientemente documentada 'No entanto, a administragio de hospitais por leigos deparava ‘com uma limitagio importante: era impossivel, por determinagae do direito candnico, divertir 0s bens deixados em beneficio da alma aos hospitais por particulares para outros fins que ndo aqueles que o doador ‘u testador tinham estabelecido, Havia duas formas que podiam fazer tultrapassar 0 problema: o desconhecimento dos textos de fundagio ~ {que as autoridades Iaicas invocardo com frequéncia - ou, quando a situagio o exigia, obter autorizagiio papal para aplicar os bens dos hospitais a outros fins. Este dltimo aspecto explica que a alegada reforma dos hospitai levada a cabo por D. Jou II tenha sido prevedida ‘de um esforco diplomtico junto de Roma para obterautorizagio para fundir pequenas unidades assistenciais em estrutras hospitalares de grande porte, como foi o caso do Hospital de Todos os Santos. Mas, na maior parte dos casos, a vontade dos testadores era obliterada pela sé gestio dos hospitaise alberparias que ating o seu auge no século XV, sendo a regra a apropriagZo indevida dos bens por parte dos administradores BOLETIM DO INSTITUTO HISTORICO DA ILHA TERCEIRA 233, Fete bere pore inde Met. HP SNe cn marin ra. "oat rn Rata Nee p $8 pt gs i 234 BOLETIM DO INSTITUTO HISTORICO DA ILHA TERCEIRA, 4d) A intervengio régia e senhorial nas institugGes de assisténcia A intervengao régia nas instituigdes de assisténcia parece ter-se ppautado pela necessidade de preservat 0 patriménio desta, A protecgio ‘do patriménio podia efectuar-se procurando reunir hospitais pequenos invidveis em unidades maiores. Fo infante D, Henrique em Tomar 4 reduzir para quatro os catorze hospitas af existentes ®. Tentou também D. Duarte obter do papa o que D. Joo II conseguiré mais, tarde: reunido dos hospitais de Lisboa e autoridade para empreender acgdo semelhante nas restantes cidades do reino. Outra forma de reservar os patriménios hospitalares era tentar impedit que fossem ‘mal administrados e que os seus administradores desviassem 0s seus bens em proveito pr6prio. Daf que a preocupagio fundamental Fosse © tombamento de propriedades e rendas, logo seguido pelo regulamento. O Regimento das albergarias e hospitais de Evora dado por Afonso V em 1470 preconiza a reunido das unidades invidveis em Uunidades maiores e revela a preocupagio em fazer cumprir das vontades dos testadores, © que equivalia a cerceat a cobiga dos Particulares eo desvio das respectivas rendas™. Santarém € outro caso ‘em que a iniiatva régia visa teorganizara rede hospitalae: desde 1436 {que os seus hospitals eram fisealizados por um Unico provedor e 0 monarca supervisionava as suas rendas e estatutos. Ainda no século XY, 0 hospital de Jesus Cristo incorporou todos os hospiais da vila, a ode S. Lizaro®, eae saba ied erm amtociy anes @raeseae feign ese mata. Abacie, gi Santo. Fon ¥ BOLETIN DO INSTITUTO HISTORICO DA ILHA TERCEIRA 235, | Bsse esforgo culminard com D. Manuel I, que nomeara s de capelas e hospiais, encarregados de velar pela feitura ‘dos livros de tombo e dos regimentos ou compromissos nas comarcas respectivas, No entanto, parece nftido que a preocupacio maior era 0 tombo, ¢ $6 em segundo lugar o compromisso. O facto & que grande parte dos tombos ¢ compromissos que chegaram até ns tém indicagao de terem sido feitos perante notirio e em presenca do juiz dos tesiduos ‘0u provedor das capelas © hospitals esta acgBo inicia-se com ordem ‘6gia do monarca dada em 1498. Estio neste caso a confraria e hospital ‘do Espirito Santo de Angra“, a gafaria de Viana’ ¢ a confraria de S. Domingos de Guimardes *. Outra preocupagdo consistia em nomear novos administradores para os hospitas existentes, que encontramos ‘a9 longo de todo 0 século XV. Mas agui toma-se necessério definir a imengo dos monareas ao colocarem pessoas da sua coafianga: longe de se tratar de um esforgo de centralizagio por parte do Estado, conceito de resto dixcutival no que respeita ao periedo em caura, ota acgao ganina sentido no quadro do reforgo do poder senhorial. Dentro dessa linha, entendem-se melhor as adverténcias do infante D, Pedro no Livro da Virtuosa Benfeitoria a0 abservar que os principes beneficiavam os amigos ao concederem-Ihes a administragao de hospitais. ou a ambiguidade detectada por Maria José Lagos Trindade, ao referir que os monarcas pretendiam favorecer ou lobsequiar particulates *. Do mesmo mado se torna natural que nia sejam $6 os monarcas a exigir tombos de propriedades dos hospitas A regulamentagio “centralizante” da administragio dos estabeleci ‘mentos de assisténcia foi comum aos chefes das grandes casas creatine ag an Ne tes neg i ard ni 236 BOLETIM DO INSTITUTO HISTORICO DA ILHA TERCEIRA senhoriais do reino, por sua vez ligados ao rei por lagos préximos de parentesco. A rainha vitiva de D. JoZo Il, de resto a maior fortuna do reino a seguir & do rei, ordena tombos de hospitais nos territ6rios da sua algada. O tombo dos bens do hospital de Sintra, vila pertencente 40 patriménio da rainha, € conforme se afirma no seu prembulo, feito por mandado expresso desta®, Outro caso é o da infanta D. Beatriz, mae de D. Manuel relativamente & gafaria de Cacilhas*', © processo de centralizagao assume assim a forma de um melhoramento da gestio de patriménio, nao s6 ao nivel da monarquia como das casas senhoriais que Ihe estio préximas, cujos frutos se destinam a um bem supremo: a salvagao da alma, ‘A confirmar-se © reduzido papel da Igreja na gestdo das instituigdes assistenciais nos finais da Idade Média, mudam por completo as premissas da interpretacio até hoje corrente sobre a “Jaicizagdo” da assisténcia & pobreza efectuada com a criagio e difusio das Misericérdias ¢ com a padronizagao hospitalar. Em vez de uma pretensa concorréncia entre a Igreja ¢ a monarquia terfamos antes uma tradigio administrativa Jaica das instituigdes assistenciais, mas sobretudo focal, que os reis tentam aproximar da esfera central num processo que se desenrola desde meados do século XV. Quanto aos ‘moldes em que essa centralizagao se desenvolve ¢ aos resultados que produziu, tratam-se de problemas a que s6 as duas centirias seguintes dario resposta Sousa, Ivo Cameo de, A Rain da Miseriia ma astra de espirituaidade em Portal ns gpuca do Rewscimenra. Port, dssenagao de dowcoranento em Cultura Ponuzvesa aprsenada 8 FLOP, 1992.01 p. 32 “Carvalho, Sérgio Luls, “0 tombo dos bens do hospital de Sintra, Misia, ano XI, 1989. 14 p58 Raposo, Abrates: Aparicio, Vitor Os Palmeiras e us Gas cit. pp. 7-74

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