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XXVII

ISSN 1413-6651
São Paulo - 2012
Editora Responsável Institucional
Marilena de Souza Chaui

Editora Responsável N. XXVII, JUL-DEZ 2012 – ISSN 1413-6651


Tessa Moura Lacerda

Comissão Editorial
Celi Hirata, Daniel Santos, Douglas Barros, José Luiz Neves, Silvana de Souza Ramos

Conselho Editorial
Atilano Domínguez (Univ. de Castilla-La Mancha), Diego Tatián (Univ. de Córdoba), Diogo PiresAu-
rélio (Univ. Nova de Lisboa), Franklin Leopoldo e Silva (USP), Jacqueline Lagrée (Univ. de Rennes),
Maria das Graças de Souza (USP), Olgária Chain Féres Matos (USP), Paolo Cristofolini (Scuola
Normale Superiore de Pisa) e Pierre-François Moreau (École Normale Supérieure de Lyon).

Pareceristas
Pareceristas: André Menezes Rocha, Cíntia Vieira da Silva, David Calderoni, Douglas Ferreira
Barros, Edmilson Menezes, Eduardo de Carvalho Martins, Eduino José de Macedo Orione, Fernando
Dias Andrade, Herivelto Pereira de Souza, Homero Santiago, Isadora Bernardo Prévide, Luciana
Zaterka, Luís César Oliva, Marcos Ferreira de Paula, Mônica Loyola Stival, Patrícia Aranovich,
Roberto Bolzani Filho, Sérgio Xavier Gomes de Araújo.
Ficha Catalográfica
Publicação do Grupo de Estudos Espinosanos e de Estudos sobre o Século XVII
Cadernos Espinosanos / Estudos Sobre o século XVII
São Paulo: Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, 1996-2012. Universidade de São Paulo
Periodicidade semestral. ISSN: 1413-6651 Reitor: Prof. Dr. João Grandino Rodas
Vice-Reitor: Prof. Dr. Hélio Nogueira de Cruz
FFLCH - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Diretor: Prof. Dr. Sérgio França Adorno de Abreu
Vice-Diretor: Prof. Dr. Modesto Florenzano

Departamento de Filosofia
Chefe: Milton Meira do Nascimento
Vice-Chefe: Caetano Ernesto Plastino
Coord. do Programa de Pós-Graduação: Alberto Ribeiro de Barros

Endereço para correspondência:


Profa. Marilena de Souza Chaui
A/C Grupo de Estudos Espinosanos
Departamento de Filosofia – USP
Av. Prof. Luciano Gualberto, 315
05508-900 – São Paulo-SP – Brasil
Telefone: 0 xx 11 3091-3761 – Fax: 0 xx 11 3031-2431
Imagem da Capa: e-mail: cadernos.espinosanos@gmail.com
Ballerina II, site: http://www.fflch.usp.br/df/espinosanos
Joan Miró
1925 Projeto Gráfico: Taynam Bueno /// taynam@caracoldesign.com /// Tiragem: 500 exemplares
Acervo: Galerie Rosengart, Switzerland
A Comissão Editorial reserva-se o direito de aceitar, recusar ou reapresentar o original ao autor com sugestões de mudanças.

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APRESENTAÇÃO

O Grupo de Estudos Espinosanos do Departamento de Filosofia da


Universidade de São Paulo, em 2004, completou 10 anos.Ao longo deste período,
diversas atividades foram desenvolvidas e procurou-se fazer o registro delas para,
como diz Espinosa, tentar contornar as forças do “tempo voraz que tudo abole da
memória dos homens”. Os Cadernos Espinosanos se inspiram nesse propósito.
Desde o número X, dedicado ao Professor Lívio Teixeira, os Cadernos
estão dedicados também a Estudos sobre o século XVII, seu subtítulo. O que, na
verdade, expressa algo que já acontecia na prática, pois textos acerca de vários
outros filósofos do período sempre estiveram presentes a cada edição.
O objetivo destes Cadernos continua sendo publicar semestralmente
trabalhos sobre filósofos seiscentistas, constituindo um canal de expressão dos
estudantes e pesquisadores deste e de outros departamentos de Filosofia do país.
Porque destinados a auxiliar bibliograficamente aos que estudam o
Seiscentos, tanto para os trabalhos de aproveitamento de cursos, quanto para
a elaboração de outros projetos de pesquisa, estes Cadernos também publicarão,
regularmente, ensaios de autores brasileiros e traduções de textos estrangeiros,
contribuindo com o acervo sobre o assunto.
Esperamos que esta iniciativa estimule os estudos sobre os filósofos
daquele período a que esta publicação é inteiramente dedicada e permita criar
ou ampliar a comunicação entre os que estão envolvidos com a pesquisa desses
temas, incentivando, inclusive, outros departamentos de Filosofia a colaborar
conosco no desenvolvimento deste trabalho.

Franklin Leopoldo e Silva

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SOBRE ESTE NÚMERO

Especial Renaud Barbaras

No marco do projeto temático “Ruptura e Continuidade:


Investigações sobre a relação entre Natureza e História a partir de sua
formulação pelo Grande Racionalismo Seiscentista”, o Grupo de Estudos
Espinosanos decidiu realizar, em Agosto de 2011, duas jornadas de análise
e discussão do pensamento do filósofo francês Renaud Barbaras.
Responsável em grande medida pelo renascimento dos estudos
merleau-pontianos, Renaud Barbaras é antes de tudo um fenomenólogo
preocupado com problemas ligados à percepção e à vida, através dos quais
busca a articulação de um sistema onde a fenomenologia seja também
complementada por uma cosmologia e uma metafísica.
Os textos reunidos neste volume – os quais foram apresentados
durante as Jornadas Barbaras – percorrem o pensamento do filósofo tanto
para interrogar sua relação com outros pensadores contemporâneos (tais
como Bergson, Husserl, Heidegger e Merleau-Ponty) quanto para discutir
os avanços e os limites de sua proposta.
Convidamos então nossos leitores para conhecer a obra de Barbaras,
através de sua própria letra (num texto inédito que inaugura a coletânea)
e mediante o olhar crítico de pensadores brasileiros e estrangeiros, que
se debruçaram sobre este importante capítulo da fenomenologia, a fim de
decifrá-lo e homenageá-lo.
Boa leitura!
Os Editores

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SUMÁRIO

Dinâmica da manifestação
Renaud Barbaras....................................................................................11

A vida entre desejo e criação: Renaud Barbaras


leitor crítico de Bergson
Débora Morato Pinto.............................................................................31

De Merleau-Ponty a Barbaras
Luiz Damon Santos Moutinho................................................................63

Vida privativa ou vida lacunar?


Marcia Sá Cavalcante Schuback..............................................................71

Renaud Barbaras, leitor de Husserl


Marcus Sacrini........................................................................................95

A percepção segundo Barbaras


Leandro Neves Cardim.........................................................................105

O corpo vivido e o movimento da vida em


M. Merleau-Ponty e R. Barbaras
(Tradução de Silvana de Souza Ramos)
Esteban A. García.................................................................................131

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A experiência da falta e o mistério do desejo Dinâmica da manifestação
Silvana de Souza Ramos.......................................................................159

Renaud Barbaras e a vitalidade da fenomenologia


Mariana Larison....................................................................................179 Renaud Barbaras*

Notícias.....................................................................................................201 Resumo: O a priori universal da correlação entre o ente transcendente e seus modos
subjetivos de doação desenha o quadro mínimo de qualquer abordagem que se reivindique
INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES...........................................................203 fenomenológica. Seu objetivo próprio é, então, caracterizar ao mesmo tempo a natureza
exata da relação e o sentido de ser dos termos em relação, a saber, do sujeito e do mundo.
Trata-se de mostrar que uma análise rigorosa da correlação necessariamente se desdobra
CONTENTS...................................................................................................205 em três níveis e que a fenomenologia está, assim, destinada a ultrapassar-se a si mesma
em direção a uma cosmologia e a uma metafísica. A correlação fenomenológica, a
qual se estabelece como sendo, no fundo, a relação entre um sujeito que é desejo e um
mundo que é profundidade, supõe sua filiação comum a uma physis, cuja descrição
depende de uma cosmologia. Mas a diferença do sujeito, sem a qual não há correlação,
remete ela própria a uma cisão, ainda mais originária, a qual afeta o processo mesmo
da manifestação e abre espaço a uma metafísica. Nós mostramos, portanto, que
a fenomenologia se realiza sob a forma de uma dinâmica geral da manifestação, na
medida em que ela é necessariamente conduzida a pensar o movimento sob a tripla
figura do desejo que atravessa nossa existência, do arquimovimento da manifestação e
do arquievento da cisão que o afeta.
Palavras-chave: vida, desejo, fenomenologia, cosmologia, metafísica.

Minha interrogação não se situa apenas no âmbito da fenomenologia:


ele quer ser uma interrogação sobre a própria fenomenologia. Trata-se de se
perguntar qual é a condição de possibilidade da fenomenologia ou, antes,
o que é necessariamente envolvido pela abordagem fenomenológica. Em
outras palavras: em que direção deve-se enveredar e até onde deve-se ir se

* Université Paris 1. Membro do Institut Universitaire de France.

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se quiser respeitar as exigências próprias à abordagem fenomenológica? A No que diz respeito ao termo transcendente, dissemos que seu ser
resposta a essa interrogação dará resultados surpreendentes. Com efeito, repousa sobre seu aparecer. Ora, se é verdade que o ser do ente consiste em
nós vamos mostrar que, longe de exigir um princípio de fechamento, o aparecer, por outro lado, este aparecer requer que o ente não se confunda
respeito da exigência constitutiva da fenomenologia leva a uma forma com sua aparição, que ele permaneça aquém dela, justamente para poder
de ultrapassagem dela, ultrapassagem por assim dizer interna, como se a aparecer. Vale dizer que aquilo que aparece sempre se ausenta das suas
fenomenologia só pudesse ser o que ela é ao se tornar outra, como se ela só próprias aparições já que ele é o sujeito delas e fica portanto ocultado nelas.
pudesse se constituir ao exceder-se. Como veremos, essa ultrapassagem Essa transcendência do aparecente é tanto irredutível quanto inelutável:
é dupla: ela leva a uma cosmologia e desta a uma metafísica. Mas, é ela não remete para uma dimensão situada para além da aparição, ela não
óbvio que, em compensação, o sentido que outorgaremos à cosmologia é o avesso duma proximidade possível. Enquanto não sendo senão sua
e à metafísica será transformado pelo quadro fenomenológico no qual aparição, o ente que nela aparece não pode ser apreendido em outro lugar
ambas têm lugar. do que nela: ela se dá apenas como sua profundidade ou sua transcendência
Partamos portanto da caracterização husserliana da tarefa própria próprias. Essa primeira descrição nos leva imediatamente a superar o
à fenomenologia, tarefa a qual Husserl dedicou a vida inteira : a elaboração âmbito do ente propriamente dito. Entendida como momento constitutivo
do a priori universal da correlação. Segundo tal a priori “qualquer ente, do aparecer, a transcendência só pode ser a do próprio mundo ou, antes,
seja qual for o seu sentido e sua região, é o índice dum sistema subjetivo o mundo não é senão o nome dessa transcendência pura. O mundo não
de correlação”, o que quer dizer que “nenhum homem imaginável, e é a totalidade dos entes, nem um grande Objeto ou um grande Ente mas
qualquer que seja a maneira como o imaginemos modificado, poderia aquele excesso imensurável de todo ente em relação a ele mesmo, excesso
fazer a experiência de um mundo em modos de doação outros do que que toma a forma da continuabilidade da experiência e lhe garante assim
essa relatividade incessantemente móvel, enquanto mundo que lhe é a doação. Com efeito, em momento nenhum eu poderia ultrapassar tal
dado na sua vida de consciência e na comunidade que ele constitui com aspecto atual de tal objeto em proveito de novos aspectos, que virão
seus companheiros de humanidade”. Essa correlação especifica uma confirmar ou desmentir aquilo que eu tinha posto com base nesse primeiro
relatividade de cada um dos polos ao outro, relatividade que é constitutiva aspecto, se não me fosse garantida de saída a possibilidade de ultrapassar
do seu próprio ser. Um ente que não se desse subjetivamente não seria, tal experiência atual e se, por conseguinte, não me fosse originariamente
do mesmo modo que uma consciência que não se relacionasse com uma dado o palco ou o quadro dentro do qual minha experiência se desenrola.
realidade transcendente, ou seja, que não fosse intencional, também não Esse palco não é senão o do próprio mundo.
seria. Trata-se portanto não apenas de dar conta da correlação mas de No entanto, a questão mais dificil é a do sentido de ser do sujeito
pensar de acordo com ela, ou seja de tomar tal relatividade como ponto da correlação. Este é submetido a duas condições: de um lado, ele existe
de partida, de morar nela por assim dizer, a fim de lançar luz sobre o de um modo diferente do dos outros entes, enquanto ele é a condição da
sentido de ser dos termos que ela articula. aparição deles; mas, por outro lado, ele faz parte do mundo, manifesta

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um parentesco ontológico com ele, parentesco sem o qual também não plenitude e, nesse sentido, os vividos ainda são coisas (ou seja, objetos
poderia fazê-lo aparecer. Ora, em Husserl, essas duas condições ficam de uma intuição). Em consequência, fugir da reificação da consciência
inconciliáveis: há um fosso intransponível entre a consciência empírica não equivale a abandonar o mundo em proveito de um fora-do-mundo
e a consciência transcendental já que esta só pode constituir o mundo que continua sendo substancial: é, muito pelo contrário, ultrapassar a
contanto que não faça parte dele, fique separada dele por um abismo de abordagem estática do sujeito em proveito de uma abordagem dinâmica.
sentido, segundo a fórmula de Husserl, que circunscreve o espaço do Dizer que o sujeito distingue-se dos outros entes equivale a dizer que ele
absoluto. A pergunta é, portanto, a seguinte: como pensar o ser do sujeito não é de jeito nenhum uma coisa, que ele existe sob a forma duma negação
de tal modo que ele possa fazer aparecer o mundo e fazer parte dele do da coisidade, o que não significa que ele seja um nada mas sim que seu
mesmo ponto de vista, que seu pertencimento ao mundo não comprometa modo de ser é o da negação. Ao passo que os entes mundanos são o que
mas, pelo contrário, condicione sua atividade fenomenalizante? É do eles são, o sujeito não é o que ele é, no sentido em que ele existe como
lado daquilo que distingue o sujeito dos demais entes mundanos, isto sua própria negação. Ora, a que pode remeter tal negação efetiva e ativa
é, das coisas propriamente ditas, que acharemos a via da solução. Num senão ao próprio movimento? No entanto, longe de nos afastar do mundo,
manuscrito inédito, Husserl escreve: “quem nos salvar de uma reificação a negação efetiva em que consiste o movimento nos insere profundamente
da consciência será o salvador da filosofia, senão seu criador”. Mas o que nele. Qualquer movimento advem necessariamente no seio do mundo, a
significa escapar de uma reificação da consciência? Pensar a consciência título da posição fundamental requerida por essa negação, do solo sobre
como uma esfera imanente constituída por vividos nos enseja escapar o qual tal movimento se desenvolve. Assim, é sim ao passar de uma
dessa reificação, mesmo se essa esfera é, segundo Husserl, um absoluto abordagem estática para uma abordagem dinâmica que se torna possível
fora do mundo? Na realidade, como Patočka o estabeleceu definitivamente, conciliar a diferença do sujeito com seu pertencimento: do mesmo ponto de
ao fundar a atividade constituinte sobre a esfera imanente dos vividos, vista, o do movimento, o sujeito difere radicalmente dos entes mundanos e
acessíveis à reflexão e por princípio suscetíveis de uma auto-percepção pertence profundamente ao mundo.
adequada, Husserl subordina o aparecer a um aparecente e assim submete Tal movimento remete à própria vida, uma vez que esta enraiza-se
subrepticiamente a fenomenalização a uma certa categoria de coisas que, num viver que é mais profundo do que a partição entre a vida intransitiva
por serem subjetivas ou imanentes à consciência, nem por isso deixam de (leben) e a vida transitiva (erleben): pertencendo ao mundo enquanto ser
ser coisas, na medida em que eles são da alçada de uma doação intuitiva. vivo, o sujeito o faz aparecer enquanto o “vive” (ou seja, experimenta). Ora,
Assim, o sentido de ser que caracteriza a coisa enquanto tal e a essa referência à vida nos permite especificar a natureza desse movimento.
torna suscetível de ser objeto de uma intuição, para além da diferença entre Ele é mais do que um mero deslocamento, já que esse movimento faz
objetos e vividos, é seu caráter estático. É por ser aquilo que ela é (na aparecer o mundo, mas nem por isso se confunde com uma prova ou uma
verdade é nisso que reside seu modo de ser), é por ser idêntica a si mesma experiência jà que ele se realiza dentro do mundo. É uma experiência
que a coisa pode ser apreendida numa intuição, obturar o olhar com sua que toma a forma de um avanço ou, antes, um outro (terceiro) modo de

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ser mais originário, mais profundo do que a prova subjectiva e o mero nosso movimento insere-se num arquimovimento que é o de uma physis
deslocamento, exatamente como o viver é mais profundo do que a diferença (natureza). Ao menos três tipos de argumentos nos levam a essa conclusão.
entre experiência transitivita e estar vivo. O primeiro diz respeito ao desejo. Com efeito, está na hora de acrescentar
Ora, o estatuto do pôlo transcendente da correlação confirma e que o desejo tem um sentido ontológico: ele corresponde a um defeito de
esclarece a nova caracterização dinâmica do sujeito. Ele é situado para ser e, nesse sentido, sempre é desejo de si mesmo. É necessariamente o
além da partição entre deslocamento espacial e prova subjectiva porque sujeito do desejo que está em jogo no desejo. Em consequência, o desejo
aquilo que é vivido nele ou visado por ele é caracterizado por uma falta sempre tende a atualizar o mundo ao se aproximar dele uma vez que é
de apresentabilidade (ou de presença) e, portanto, se furta a qualquer nele, no mundo, que reside o ser do sujeito do desejo. O sujeito do desejo
intuição. É na medida em que o mundo vem, por assim dizer, arrancar o realiza seu próprio ser ao se avançar para o mundo. Assim o desejo desvela
ente do domínio da plena presença que o sujeito encontra-se arrancado de a conivência ontológica entre o sujeito e o mundo que ele visa: para além
qualquer forma de coincidência com ele mesmo e realiza-se sob forma de da relação de manifestação, cabe reconhecer uma relação de ser que é a
viver. O excesso em relação a si mesmo que caracteriza o viver dinâmico verdadeira condição do desejo e de sua potência de manifestação.
é a contrapartida do excesso irredutível do mundo em relação àquilo que Isso nos conduz, em segundo lugar, ao problema do pertencimento.
nele aparece. Esses quesitos teóricos, oriundos da correlação, nos levam a Se é verdade que, enquanto movimento, o sujeito não é alheio ao mundo,
definir o viver subjectivo como desejo. Com efeito, o desejo (por diferença contudo, sujeito e mundo continuam se opondo como uma negação e
com a necessidade) é caracterizado pelo fato de que aquilo que o apazigua a posição subjacente. O movimento pelo qual o sujeito está ao mundo
o acirra ao mesmo tempo. Nenhum objeto suscetível de satisfazê-lo pode desenvolve-se no mundo mas ainda não é do mundo. Ora, reconhecemos a
preenchê-lo e é por isso que ele só alcança seu objeto atravès do impulso, necessidade de uma conivência ontológica entre sujeito e mundo. Portanto,
do avanço incessante que o leva para ele, o aproxima dele. O desejo é cabe afirmar que há um pertencimento originário do sujeito ao mundo,
inextinguível porque nada o pode preencher e nada o pode preeencher pois ou seja, um hiperpertencimento que esclarece o verdadeiro sentido do
aquilo que ele visa verdadeiramente, a saber o mundo, impossibilita por mundo. Se o sujeito é movimento e se ele pertence ao mundo sob o modo
princípio qualquer apropriação. Ao excesso infinito do mundo só pode de um parentesco ontológico, segue-se daí que o próprio ser do mundo
corresponder o avanço insaciável do desejo. Assim, ao cabo dessa análise deve ser situado do lado do movimento: a abordagem estática que até agora
propriamente fenomenológica dos polos da correlação, cabe concluir prevalecia deve ser superada em proveito de uma abordagem radicalmente
que ela põe em relação um sujeito cuja vida é desejo e um mundo que é dinâmica. Nosso movimento desdobra-se sobre o pano de fundo do mundo
profundidade pura. enquanto totalidade, mas o sujeito desse movimento fica em continuidade
Nesse ponto, somos conduzidos a ultrapassar a fenomenologia com um mundo que é, mais profundamente, uma realidade processual,
em proveito de uma cosmologia, isto é, a reconhecer que o verdadeiro de modo que o movimento do sujeito provém do próprio processo do
sujeito de nosso movimento fenomenalizante é o próprio mundo, que mundo. Nesse sentido, não tem nenhuma alternativa entre a diferença do

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sujeito em relação ao mundo como totalidade de entes e, por outro lado, nos leva a uma investigação de natureza cosmológica. No entanto, é
sua identidade com o mundo enquanto realidade dinâmica. Tal conclusão preciso acrescentar imediatamente que essa cosmologia permanece
pode ser confirmada, em terceiro lugar, à luz de uma reflexão sobre a vida. fenomenológica. Com efeito, aquilo que vale para o sujeito também vale
Com efeito, o surgimento de um movimento orientado num organismo para o mundo, de modo que a physis deverá ser compreendida como um
fica profundamente incompreensível. Como, daquilo que é radicalmente movimento fenomenalizante, que a fenomenalização efetuada pelo sujeito
alheio à ordem do movimento, ou seja, de um corpo dotado de certas remeterá para uma protofenomenalização que é a própria obra do mundo.
propriedades, poderia nascer um movimento intencional? Na verdade, o Em outras palavras, cabe reconhecer que a fenomenologia dinâmica
organismo só pode se mover porque ele pertence à ordem do movimento, reenvia a uma dinâmica fenomenológica. A primeira, como vimos, lança
porque ele fica ontologicamente do lado do movimento, de modo que não luz sobre a condição dinâmica da fenomenalização subjetiva; ela desvenda
é tanto o organismo que produz o movimento quanto o movimento que um movimento no âmago do sujeito. Sua proposta é a de que não se pode
dá lugar ao organismo. O hiperpertencimento dinâmico do sujeito a um pensar o sujeito sem movimento. A dinâmica fenomenológica, por sua
mundo processual significa que nossa vida nunca é apenas nossa, que vez, vai muito mais longe, pois ela inverte a ordem de determinação: ela
ela é a vida que ela é na medida em que ela se inscreve numa vida mais descobre, em qualquer movimento, um processo de fenomenalização. Ela
originária, que é a vida de ninguém por ser a vida do mundo, do mesmo envolve a fenomenologia dinâmica no sentido em que ela mostra que o
modo que Aristóteles falava em vida das coisas. Em outras palavras, não sujeito existe como movimento porque a essência do movimento implica
é por sermos seres vivos, ou seja, organismos, que vivemos; ao contrário, um modo de fenomenalização. Sua proposta é a de que não se pode pensar
é por vivermos, ou seja, por termos recebido a vida ou por pertencermos à o movimento sem fenomenalização. Não existe movimento que não seja,
vida que somos seres vivos. de algum modo, um movimento de aparecer.
Assim, ao levarmos em conta a especificidade do sujeito que é É preciso portanto caracterizar mais adiante essa physis e mostrar
desejo e pertence ao mundo, somos conduzidos a afirmar que seu movimento em que sentido seu movimento é sim um movimento de manifestação. O
vem de mais longe que ele mesmo, que ele se insere num protomovimento arquimovimento do mundo, do qual procede nosso movimento, só pode
que corresponde ao verdadeiro sentido de ser do mundo e o define como designar o movimento pelo qual o próprio mundo advém, movimento
physis. Mas, também avançamos relativamente ao problema da correlação, que se pode chamar, por isso, de movimento de mundificação. Ora, num
pois enfrentamos assim a questão do ser da correlação, e não apenas a contexto fenomenológico que exclui obviamente qualquer forma de
dos polos da correlação. Se o sujeito e o mundo podem ser relativos um criação, o processo de advento do mundo só pode significar uma saída
ao outro, é na medida em que ambos pertencem a uma realidade mais fora de um fundo indiferenciado, fora da indeterminação, em suma um
profunda da qual eles são modalidades. Essa realidade que é de natureza processo de diferenciação ou de determinação. Com efeito, na medida em
processual não é senão um arquimovimento que é a própria obra do mundo que tudo quanto pretende ser pertence ao mundo, aquilo de que o mundo
ou, antes, o mundo como obra. É nesse sentido que a análise fenomenológica procede só pode remeter para um não-ser determinado, não ser que não é

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Cadernos Espinosanos XXVII Renaud Barbaras

um nada mas a noite da indiferenciação. Mas, é preciso acrescentar que que aparece já está completamente presente mas fica escondido nessa
essa noite é apenas, de certa forma, um momento abstrato, uma vez que própria presença pois nada o separa do ambiente, pois ainda não está
ela deve ser suposta pelo movimento de mundificação como aquilo que delineado. Nesse caso, o aparecer já não significa uma travessia ou um
desde sempre foi superado, ou seja, iluminado: já ficamos para além do apagamento da camada interposta mas simplesmente uma delimitação, ou
indiferenciado, “em via de mundo”, em curso de constituição do mundo. seja, uma definição, no sentido em que nesta uma fronteira (finis) vem
Em outras palavras, o fundo não é senão sua própria ultrapassagem; só tem sendo desenhada. Assim, dizer que uma coisa aparece equivale a dizer que
fundo como saída fora do fundo. O excesso do fundo em relação àquilo que ela sai da noite do indiferenciado, que ela se separa do ambiente, que ele
ele possibilita ou funda só se manifesta sob forma do excesso irredutível se delineia, quer dizer, se individua. Ora, já que é justamente assim que
da potência mundificante sobre aquilo que ela produz. Segue-se daí que o definimos acima o processo do mundo, torna-se legitimo afirmar que o
processo mundano é necessariamente um processo de diferenciação, ou processo mundificante confunde-se com um aparecer originário, que ainda
seja, de constituição e, portanto, de multiplicação dos entes dentro dele. não é aparecer a alguém, em outras palavras, que só há dinâmica como
Devir mundo equivale a sair da indiferenciação, isto é, dar lugar a uma dinâmica fenomenológica.
pluralidade e se produzir a si mesmo como a unidade dessa pluralidade. A Semelhantes resultados levantam um último problema. O que
totalidade enquanto tal é o rastro ou o sedimento da unidade da potência no especifica o aparecer como aparecer para (alguém), ou seja, como movimento
seio da multiplicidade ao qual ela dá lugar. Em suma, o arquimovimento subjetivo no seio do arquimovimento fenomenalizante? É preciso dizer,
do mundo não é senão um processo de individuação. primeiro, que, do mesmo modo que a coisa aparece primariamente em
No entanto, falta entender em que sentido este movimento é da razão da sua relação com o mundo que a produziu, o aparecer subjetivo
alçada do aparecer, em que sentido o processo physico é sim um processo remete para aquilo que acontece com a coisa já individuada em razão
de manifestação. Aparecer significa ser descoberto: o aparecer é sempre da sua relação com o nosso movimento. O que acontece com a coisa
uma descoberta. A descoberta significa, por sua vez, a negação ou a saída quando o movimento subjetivo (o nosso) se relaciona com ela? O que faz
fora da ocultação, de modo que o sentido do aparecer reenvia ultimamente esse movimento que o mundo não possa fazer? Justamente nada. O que
ao sentido que se outorga à ocultação. Ora, há duas maneiras de estar distingue o movimento subjetivo é sua ineficiência. Mas esta ineficiência
escondido ou ocultado: por interposição ou por indiferenciação. No não é desprovida de efeito: incapaz de produzir a própria coisa (como o
primeiro caso, aquilo que está ocultado o está por estar encoberto, ou seja, mundo o faz), ela só consegue desenhar a forma dela (aquilo que sobra
porque alguma coisa vem se interpor, fazer o papel de tela entre aquilo quando a matéria falta): a forma se destaca do conteúdo e assim aparece.
que aparece e aquele a quem aparece. A descoberta em que consiste o A impotência do nosso movimento dá nascimento à determinação, que, na
aparecer é, nesse caso, um desvalemento e ela põe fim a um encobrimento. verdade, é o correlato exato do ser-desejado, pois nosso movimento não é
Mas, há uma segunda maneira de estar ocultado: não por interposição ou capaz de produzir o próprio determinado. Assim, o momento propriamente
encobrimento mas por indiferenciação ou fusão com o ambiente. Aquilo subjetivo do aparecer, derivado em relação ao aparecer primário que

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é individuação, remete à ineficiência de um movimento que é apenas à segunda potência, um movimento no movimento, ou antes aquilo que
aspiração, ou seja, precisamente àquilo que diferencia nosso movimento acontece com o movimento (do mundo) sem ser incluído ou envolvido
dos movimentos do mundo. Chegamos à conclusão segundo a qual existe nele. Definimos assim um evento e chameremos de arquievento esse
um ente, o que somos, cuja condição de ser é uma separação, um ente que movimento no movimento do mundo, pelo qual ele se destaca (nos dois
não faz nada existir, que se destaca do mundo pela sua impotência, como sentidos) dele mesmo, abre nele mesmo uma distância intransponível.
se a potência do mundo nele se perdesse, desaparecesse. Nossa condição Esse arquievento desemboca num outro sentido, mais profundo, da
se caracteriza pelo surgimento de um segundo modo de individuação que negatividade. Tem uma negatividade concreta como autonegação efetiva,
vem se acrescentar ao primeiro: não apenas somos produzidos pelo mundo que corresponde àquela modalidade de ser que é um movimento: ela
enquanto ente que somos - mais precisamente o corpo que temos - mas, se distingue do ser enquanto ela é devir e o solo ou sujeito dela é o
diferentemente de todos os outros entes, ficamos separados do mundo no próprio mundo. Mas, é preciso distinguir dessa primeira negatividade a
sentido em que nosso movimento se separou do processo de mundificação e do arquievento que é, por sua vez, mera negatividade. Enquanto evento
pode, por esse motivo, voltar para sua fonte. Uma reflexão sobre o estatuto de cisão ou de ruptura, ele não possui nenhuma positividade, nem sequer
do desejo levaria à mesma conclusão. Com efeito, se é verdade que o a que possuiria um mero nada separado do ser (como em Sartre, por
desejo sempre remete para uma comunidade de ser, um parentesco, isto exemplo): ela não é nada fora aquilo que ela separa, ela não é nada fora
é, é desejo de si mesmo no outro, por outro lado só há desejo se o sujeito aquilo que é dividido por ela. Semelhante negatividade não se distingue
do desejo fica radicalmente separado do seu próprio ser, caracterizado por apenas da substância mas sim do próprio movimento.
uma forma de exílio ontológico. Ficamos situados doravante nos antípodas de qualquer forma
É exatamente nesse ponto que devemos dar um segundo passo, de racionalismo. Com efeito, tudo quanto acabamos de dizer equivale a
ou seja, realizar uma segunda ultrapassagem, dessa vez da própria afirmar que o sujeito que somos já não pode ser compreendido como o
cosmologia. A pergunta que vem agora à tona é a do estatuto da cisão, no lugar ou a fonte da razão. O sujeito é o sem razão por excelência já que ele
arquimovimento do mundo, pela qual pode surgir o movimento subjetivo corresponde a um evento que afeta o movimento do mundo mas que este
e, por conseguinte, a fenomenalidade propriamente dita. Ora, se essa cisão não contem, não possibilita. O fato do sujeito não reenvia para nenhuma
afeta o arquimovimento, ela não pode de jeito nenhum proceder dele, na possibilidade, nem sob forma de uma essência que lhe fosse própria,
medida em que o movimento do mundo é produção, ou seja, afirmação nem sob forma de uma potência ou potencialidade inscritas no processo
e não negação, de modo que nada nele enseja entender que ela possa se do mundo. Muito pelo contrário, ele é o próprio impossível: aquilo que
cindir, se separar dele mesmo. Em outras palavras, a cisão de que nosso não pode ser, por princípio, justificado, aquilo que não tem razão, a não
movimento procede não é uma possibilidade do arquimovimento do ser enquanto seu próprio advento, aquilo que, nesse sentido, não pode ser
mundo; ela reenvia à arquifatualidade de uma ruptura que nada anuncia conhecido. Ora, como caracterizar o domínio daquilo que não pode ser
no seio do arquimovimento. Ela pode ser descrita como um movimento referido a uma causa ou a uma razão mas que porém devemos supor, senão

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como domínio da metafísica? O que pode justificar semelhante afirmação? arquievento, não fizemos nada senão pôr em destaque essa irracionalidade
Primeiro e simplesmente, do ponto de vista de uma abordagem que do fato transcendental, ou seja, apreender o transcendental a partir da sua
entende o movimento de manifestação como um processo de mundificação arquifacticidade, a saber, como fato puro. Portanto, a pergunta relevante é
assemelhável a uma physis, a descoberta de um arquievento que nada antes a de saber qual é o sentido de um fato originário, que não pode ser
pode anunciar ou antecipar nessa physis e a transcende é sim da alçada referido a uma causa ou uma essência. Achamos que um puro fato deve ser
de uma metafísica. Esta se distingue da ontologia exatamente como a pensado como não sendo o fato de nada, nem sequer do eu, mas que ele
fenomenologia a define, a saber, como remetendo para uma eidética. O pode ser realmente o fato de nada ao ser o fato como nada, isto é, existir
eidos toma aqui a feição do arquimovimento que o mundo e o sujeito têm sob forma de uma mera separação. Um fato puro não tem outro conteúdo
em comum. Ora, o arquievento, por sua vez, fica alheio a essa essência já do que seu próprio advir e ele pode ser definido como advir do nada só
que não é uma possibilidade do arquimovimento, mas antes sua interrupção advindo como nada, a saber, como um evento de cisão.
ou sua negação sob a forma de uma cisão que o afeta. É por isso que ele Assim, pode-se falar de uma dupla ultrapassagem da fenomenologia,
deve ser posto, ou seja, pensado, a título de hipótese necessária, apesar de mas isso não significa que a fenomenologia seja abandonada ou rejeitada:
não ser nada cognoscível. Aqui, ficamos encurralados na linguagem do trata-se de uma ultrapassagem por assim dizer interna, que permite à
“como se”: tudo se passa como se o arquimovimento ficasse afetado por fenomenologia se realizar ou se encerrar nela mesma, em suma que
uma cisão radical. Essa linguagem do “como se” corresponde à situação lhe é a única e verdadeira condição de possibilidade. Ela se ultrapassa,
singular daquilo que é fenomenologicamente verificado mas, porém, não primeiro, em direção a uma cosmologia, uma vez que o sentido de ser
deduzível da essência, daquilo que é com certeza sem ser possível: é do sujeito enraiza-se no do mundo e que cabe reconhecer que ambos
exatamente esta situação que a metafísica assume. são apenas etapas ou momentos de uma dinâmica da manifestação. Mas
Assim, parece legítimo voltar ao sentido husserliano da metafísica essa ultrapassagem leva a outra pois, se permanecêssemos no plano
enquanto remetendo para fatos puros, aos quais nenhuma essência pode cosmológico, seríamos levados não tanto a uma ultrapassagem quanto a
corresponder, o que leva a afirmar que só há metafísica como metafísica um mero abandono da fenomenologia em proveito de uma filosofia da
da facticidade. Com efeito, na Erste Philosophie, Husserl fala numa natureza. É por isso que esta primeira ultrapassagem deve ser ultrapassada
“irracionalidade do fato transcendental”, que é objeto de “uma metafísica de novo, num movimento de compensação ou de inversão e de volta a um
num sentido novo”. Metafísica num sentido novo, ou seja, no sentido em plano metafísico, movimento que não é a busca de um fundamento mais
que, se esse fato não pode ser referido a uma essência – já que ele é antes a profundo para a camada cosmológica mas que, pelo contrário, vem trazer
condição ou a fonte dela -, também não pode ser relacionado a uma causa, à luz a ausência de consistência dessa camada cosmólogica, já que se deve
como o pensava a metafísica clássica. Tal metafísica da facticidade leva formular a hipótese de uma cisão que vem lhe romper a continuidade. É
em conta o fato do eu (ego) como sendo “um fato absoluto e inapagável”, graças a essa fratura que o sujeito em movimento pode ser um sujeito para
fato de que depende o próprio eidos. Ora, ao referir o sujeito ao o mundo e que o mundo processual de onde procede o sujeito também pode

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ser um mundo para esse sujeito. Em outras palavars, é graças a essa fratura o mistério, que a metafísica procura assumir, é o de que a individuação
que a correlação fica preservada. Assim, ensejando pôr em evidência uma se desdobre, que não haja uma mas sim duas maneiras de ser um. Há
falha inexplicável, uma ruptura dentro do processo próprio ao mundo, o a individuação dentro do arquimovimento, individuação enquanto
passo para o plano metafísico significa a descoberta da impossibilidade constituição de uma unidade, que corresponde ao modo de ser dos entes
do fundamento. Ao passar da cosmologia à metafísica, não se passa de um puramente intramundanos, atravessados de ponta a ponta pelo processo
processo àquilo que o funda ultimamente mas se retorna desse processo do mundo e cujos movimentos são, em consequência, modalidades desse
para a correlação fenomenológica por ocasião da descoberta da sua própria processo, a serviço da sua obra. Mas, além disso, há uma individuação que
inconsistência ou, antes, do seu desmoronamento interno. procede do arquievento, individuação por cisão e não por determinação,
Tudo quanto acabamos de expor pode, no final das contas, ser individuação na qual a identidade do ente individuado repousa na sua
formulado no âmbito da vida. Como vimos, na verdade a vida, ou seja, diferença antes que a diferença sobre sua identidade. Esta individuação
o movimento, não pode começar em nós ou conosco e é muito menos é a que corresponde ao surgimento de um ser vivo. Este não se inscreve
desgastante teoricamente dizer que nossa vida provém de uma vida que plenamente no processo do mundo, seus movimentos não são apenas
nos antecede do que pretender que ela poderia surgir em nós por ocasião modos de atualização do processo do mundo: pelo contrário, eles ficam
da nossa organização específica. Portanto, é melhor dizer que a vida não separados desse processo, fora da sua profusão constitutiva e é por isso que
começou, que ela é caracterizada por uma forma de eternidade que não os movimentos vivos vão para o mundo em vez de herdar a sua potência,
é outra do que a do arquimovimento de mundificação, sendo que a vida ou seja, invertem a direção da fenomenalização.
confunde-se com esse arquimovimento. O processo de mundificação é o Chegamos assim a resultados particularmente espantosos, pelo
sentido primeiro e único da vida. É uma vida que ainda não é a vida de menos para quem pensa com as categorias da metafísica e da ciência que
ninguém, uma vida anónima cujo único sujeito é o próprio mundo e que dela depende. Com efeito, somos conduzidos a afirmar primeiro que a vida
junta, de acordo com o próprio sentido da vida, uma autorrealização e uma não coincide com os seres vivos, enquanto que a abordagem mais comum
fenomenalização: ela é a vida da manifestação. Qualquer vida é da alçada consiste não apenas em afirmar essa coincidência mas também em dizer
dessa vida originária ou arquivida, o que equivale a dizer que a vida dos que não há vida e que só existem seres vivos. Pelo contrário, para nós, a
seres vivos é mais profunda e mais antiga do que eles mesmos, vem de vida transcende os seres vivos, de modo que é rigorosamente em razão
mais longe do que os próprios seres vivos: estes são apenas realizações da presença da vida neles, de uma vida de que eles não são a fonte e da
ou cristalizações da arquivida. É claro, a dificuldade é a de entender qual eles não tem a exclusividade, que podemos afirmar a existência de
exatamente a modalidade dessa realização. seres vivos. Mas, em segundo lugar e mais radicalmente, não basta que a
A análise metafísica que acabamos de propor nos oferece uma vida da manifestação atravesse um corpo para que este esteja vivo. Pelo
via de resolução: os seres vivos procedem da arquivida em virtude do contrário, um ente só pode estar vivo na medida em que ele fica separado
arquievento da cisão. Há duas vias para a individuação e, de certa forma, da arquivida pelo arquievento da cisão, de modo que é paradoxalmente por

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causa de uma falta da vida nele e não de sua plena presença que um ente sujet et du monde. Il s’agit de montrer qu’une analyse rigoureuse de la corrélation
pode ser caracterizado como vivo. Dizer que um ente está vivo, não é dizer se déploie nécessairement à trois niveaux et que la phénoménologie est ainsi vouée
à se dépasser elle-même vers une cosmologie et une métaphysique. La corrélation
que ela possui a vida mas que ele não a possui, em todo caso não da maneira
phénoménologique, dont on établit qu’elle est en son fond relation d’un sujet qui est
como os entes não vivos a possuem. O próprio do ser vivo é portanto que désir et d’un monde qui est profondeur, suppose leur appartenance commune à une
ele é como que parcialmente privado da arquivida do mundo, que nele a physis, dont la description relève d’une cosmologie. Mais la différence du sujet, sans
vida faz falta, e é exatamente em razão dessa falta que ele manifesta as laquelle il n’y a pas de corrélation,  renvoie elle-même à une scission, plus originaire
propriedades pelas quais o reconhecemos como tal, a saber um movimento encore, qui affecte le procès même de la manifestation et ouvre l’espace d’une
métaphysique. Nous montrons donc que la phénoménologie s’accomplit sous la forme
orientado e incansável, correlativo de uma capacidade de fenomenalização.
d’une dynamique générale de la manifestation, pour autant qu’elle est nécessairement
No ser vivo a vida já se retirou; ele ficou como que exilado da sua potência conduite à penser le mouvement sous la triple figure du désir qui traverse notre
originária e é por isso que o ser vivo vive, isto é, existe sob o modo de existence, de l’archi-mouvement de la manifestation et de l’archi-événement de la
uma fenomenalização a que chamamos de subjetiva. O ser vivo é portanto scission qui l’affecte.
aquele ente que, inscrito na arquivida anônima do mundo sob a modalidade Mots-clés: vie, désir, phénoménologie, cosmologie, métaphysique.

da separação ou da perda, é capaz de um movimento que vai para o mundo


em vez de provir dele, que é aspiração mais do que mero deslocamento e,
por isso mesmo, tem uma capacidade de fenomenalização.
Tudo isso poderia ser resumido na idéia de uma biologia
privativa, entendida num sentido que fica nos antípodas da zoologia
privativa heideggeriana. Ela não quer dizer que os outros seres vivos
podem ser concebidos privativamente a partir do homem mas, muito pelo
contrário, que todos os seres vivos, inclusive o próprio homem, devem ser
compreendidos privativamente a partir da própria vida: só há seres vivos
com base numa negação da vida, negação que corresponde ao arquievento
e se realiza como privação da potência da arquivida.

Dynamique de la manifestation

Résumé: L’a priori universel de la corrélation entre l’étant transcendant et ses modes
de donnée subjectifs dessine le cadre minimal de toute démarche qui se revendique
de la phénoménologie. L’objet propre de celle-ci est alors de caractériser à la fois la
nature exacte de la corrélation et le sens d’être des termes en relation, à savoir du

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A vida entre desejo e criação: Renaud
Barbaras leitor crítico de Bergson

Débora Morato Pinto*


Para Renaud, amigo na vida

Resumo: Apresentamos aqui o entrecruzamento de duas filosofias da vida, a de


Renaud Barbaras, tema central desse texto, e a da Henri Bergson, que preside o ponto
de vista a partir do qual nos interessamos pela fenomenologia contemporânea. Nosso
objetivo é expor, de uma forma geral, como a diferença com Bergson desempenhou
papel relevante na constituição da obra de Barbaras. Mais explicitamente, buscamos
pontuar as referências do livro Le Désir et la Distance a Bergson e mostrar como as
críticas à teoria da vida como criação foram incorporadas por essa proposta original,
filiada à escola fenomenológica e inspirada sobretudo por Merleau-Ponty, que entrelaça
percepção e vida através do desejo. Apontamos também alguns ganhos que a leitura
de Matéria e Memória, especialmente da teoria da percepção pura ali desenvolvida,
recebe do confronto com a fenomenologia de Barbaras.
Palavras-chave: percepção, vida, fenomenologia, desejo, criação, duração.

Barbaras e a tradição fenomenológica

A fenomenologia contemporânea atravessou o século XX


misturando tendências diversas no caldo da redução e da intencionalidade.
Nesse caldeirão multifacetado, o tema da vida foi eleito por alguns autores
como questão maior a ser enfrentada por essa tradição. É o caso da obra
de Renaud Barbaras: sua filosofia se movimenta no âmbito dos problemas
implicados pelo tema e por sua inevitabilidade desde que sigamos com

* Professora-associada do Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências da


UFSCar. Pesquisadora do CNPq.

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rigor e radicalmente os questionamentos iniciados por Husserl. O sentido noção, a saber, a atividade de um organismo vivo em relação com um
filosófico da vida, que compreende, via de regra, três noções-chave – o meio” (Barbaras 5, p.7). Tomada como objeto de conhecimento filosófico,
corpo, a percepção e o movimento – é objeto de incessante meditação
1
essa atividade impõe um tipo de observação ao menos heterodoxo, já que
por parte do filósofo, constituindo inclusive o ponto de tensão para sua inclui o olhar da ciência. Esse sentido tem, além do mais, que encontrar
filiação, sempre reafirmada, a essa escola. Mais precisamente, sua obra uma forma de conjugação com o sentido do viver (ter vivências ou vividos)
intenciona analisar em profundidade noções e desdobramentos daquilo circunscrito pelas filosofias da consciência. Entendemos então que Barbaras
que recorrentemente é delimitado como o problema da experiência. aponte na redução uma das mais fortes razões para que a vida tenha sido
E é seguindo a trilha do problema que ele depara com o tema maior, quase sempre considerada, do ponto de vista fenomenológico, um problema
aprofundando então, gradualmente, a reflexão sobre a vida, seu alcance, do qual seria mais prudente desviar-se: enquanto objeto da biologia, a vida
sua relevância e seu papel, por vezes implícito e mesmo oculto, no em seu sentido imediato e empírico é excluída da investigação tal como
desenvolvimento consequente da análise fenomenológica. a pensou Husserl e um “sentido metafórico vem tomar o lugar do sentido
A noção de vida mostra-se, não raramente, como uma espécie imediato” (Babaras 5, p. 8).
de calcanhar de Aquiles para os fenomenólogos de ontem e de hoje. A decisão que vemos tomando forma a cada livro do autor parte,
Barbaras explicita com clareza que, por um lado, a reflexão sobre a vida então, do dilema em torno da relação entre vida e conhecimento. Dilema
exige um retorno ao empírico que estaria proibido pela filiação ao projeto inevitável que definiu a direção na qual ele se engajou desde os estudos sobre
transcendental; por outro lado, a despeito dessa interdição, é na filosofia Merleau-Ponty no início de seu trajeto acadêmico: trata-se de reconhecer
da vida que a análise criteriosa e fiel da percepção (locus privilegiado de que o recurso à vida não pode ser apenas metafórico, o que significa que
uma efetiva filosofia da experiência) necessariamente desemboca. Essa alguma coisa da “transcendentalidade” exige o retorno da filosofia à vida
constatação não é nada trivial, se considerarmos que Husserl visou desde empírica, ou antes, significa que o “movimento de transcendentalização,
sempre o conhecimento como horizonte maior do retorno aos fenômenos. que Husserl denomina atividade constituinte, talvez faça parte da própria
Numa de suas obras mais recentes, Barbaras toma a vida como foco da essência da vida” (Barbaras 5, p. 8, grifo do autor). A tentativa passa a ser
análise fenomenológica com todos os riscos que ela comporta para as dar conta da noção de vida transcendental sem reabsorvê-la no empírico,
motivações tradicionais da escola, e inicia pela retomada sem rodeios do o que equivaleria ao “desaparecimento puro e simples da perspectiva
que é essencial a essa problematização: desde o Lebenswelt até o retorno fenomenológica”. Assim, a atividade do sujeito transcendental somente
ao concreto da leitura francesa, a noção se apresenta ou é mesmo invocada pode ser referida a um sentido próprio da vida na medida em que esse
como “conceito operatório ou encantatório”, sem que se enfrente de fato a sentido não se reduz àquele que a biologia lhe confere, isto é, o significado
sua tematização. Esse enfrentamento seria penoso para todos os filósofos da vida deve trazer em si as propriedades ou as condições essenciais do
do conhecimento, uma vez que, para levar a termo a interrogação radical conhecimento. Tais exigências fazem com que a filosofia de Barbaras
sobre a vida, não há como escapar do “sentido primeiro ou imediato dessa oscile expressamente entre a fenomenologia e os “seus outros”2, sobretudo

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no momento em que a Vida passa a ser tematizada como centro da reflexão. de um texto, algumas conferências e trechos substanciais dos capítulos de
Não surpreende, nessa medida, que seu percurso tenha tomado como suas principais obras, ressaltando o fato de que, apesar de Bergson ter se
interlocutores Raymond Ruyer e Henri Bergson, metafísicos que pretendem proposto, na abertura de Matéria e Memória (texto capital que encaminha
renovar o sentido dessa dimensão tão essencial à filosofia. Partindo da a renovação da teoria da percepção), a permanecer num único plano
intenção de superar as hesitações teóricas de Husserl, Barbaras toma sua ontológico, a dependência que essa fenomenologia do aparecer conserva em
via própria quando insere no arcabouço conceitual mobilizado, para dar relação a uma teoria psicológica – a teoria da memória – revelaria falhas no
conta da percepção, a noção de Desejo. Aqui reside a originalidade de sua primeiro nível da reflexão que sua fenomenologia do desejo pode superar.
proposta, na qual esse conceito se apresenta como chave da articulação Assim, a teoria das imagens não visaria estabelecer a identidade entre o ser e
entre vida empírica e reflexão transcendental. E os avanços teóricos a fenomenalidade e o todo das imagens não pode recobrir a totalidade à qual
proporcionados pela noção de desejo, ainda que se efetivem no terreno a consciência perceptiva se abre: ele será definido “em si mesmo” apenas
circunscrito pela fenomenologia, tangenciam a metafísica da vida, ponto na metafísica da matéria do quarto capítulo do livro, mediada pela análise
preciso em que essa trajetória ganha relevância inestimável para aqueles da memória. O ponto que incomoda Barbaras consiste no fato de que o em
que elegeram Bergson como autor central. si das imagens, totalidade dinâmica em movimento de extensão, se define
Em nossa leitura da filosofia de Barbaras, a sua interlocução com ao fim e ao cabo de modo “independente de um sujeito vivo”, perdendo
Bergson tornou-se instrumento fundamental de ampliação e aprofundamento assim a relação intrínseca entre a subjetividade e a totalidade – relação que é
da compreensão dos argumentos e teses presentes em Matéria e Memória e propriamente abertura – que define a intencionalidade3. Bergson saiu então
A Evolução Criadora. Analisando suas ressalvas à teoria da percepção pura dos limites da fenomenologia, ou, talvez, nunca tenha entrado.
e à metafísica do elã vital, encontramos novas soluções teóricas e, por isso É a partir dessa perspectiva que Barbaras chama atenção sobre o
mesmo, novas perspectivas abertas pela filosofia da duração. Percebemos papel da leitura de Matéria e Memória em seu próprio projeto: os limites
também, no que diz respeito aos distintos projetos fenomenológicos, que a das análises bergsonianas são para ele “extremamente esclarecedores, pelo
visada bergsoniana permite penetrar em suas divergências, singularidades fato de que permitem caracterizar mais precisamente as condições às quais
e profundidades específicas, sobretudo no que se refere ao exame da está submetida uma teoria da percepção que apreende o sujeito perceptivo
experiência consciente. Ao comentar a teoria da percepção pura, Renaud como sujeito vivo” (Barbaras 2, p.129). A diferença com Bergson permite
Barbaras bem explicita o papel salutar desse vai e vem, evento filosófico então que compreendamos efetivamente qual é o foco da proposta que
relativamente circunscrito que expressa um campo mais amplo de relações e entrelaça percepção e vida através do desejo. Em contrapartida, encaminha
envolvimentos problemáticos, complexos, essenciais, porém, entre filosofia o retorno à teoria da percepção pura com questões muito precisas,
da consciência, fenomenologia e metafísica. É nesse contexto que a teoria enriquecendo a leitura da obra e do bergsonismo como um todo. Ao longo
das imagens representou um papel particularmente relevante na teia de do livro Le Désir et la Distance, apresenta-se gradualmente o modo pelo
problemas e análises tecida pelos dois autores. Barbaras a ela dedicou mais qual a teoria de Barbaras pretende situar-se a igual distância de Husserl e

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de Bergson, curiosamente partindo da mobilização da crítica bergsoniana consciente. Nesse trajeto, mesmo o recurso aos trabalhos científicos, como
da tradição contra a fenomenologia husserliana. Nosso comentário aqui se os de Goldstein, se realiza sempre no plano fenomenológico, dirigido pela
concentrará, então, sobre algumas das referências de Barbaras a Bergson significação da experiência, ou pelo sentido da experiência obtido através
que, a nosso ver, integram essa filosofia da vida como momento interno e da redução. Assim como na filosofia de Merleau-Ponty, os trabalhos
indispensável. da fisiologia contemporânea desempenham um papel fundamental no
esclarecimento da ligação indissociável entre a percepção – fenômeno ou
Da filosofia da percepção à essência da vida. Bergson na trilha da “aparecer”, segundo o termo que Barbaras utiliza mais exaustivamente – e
fenomenologia. um tipo singular de movimento, aquele que se apresenta nas démarches
inerentes aos processos vitais. Eles são mobilizados para explicitar a
É no bojo do novo enfoque sobre a relação entre o transcendental relação, ou antes, a correlação, entre um aparecer segundo a estrutura
e o empírico que Barbaras constrói, como solução a seu ver definitiva de horizonte e um movimento como autoimpulsão incessante, conforme
para o problema da vida, da percepção e do conhecimento, uma filosofia a redescrição original dos polos da experiência cujo sentido deriva em
do desejo. O desejo apresenta-se como conceito maior para o viés certa identidade entre o negativo e positivo, ou melhor, na incorporação
que ele impõe ao projeto fenomenológico: dimensão da experiência da negatividade pelo ser. Enfim, da percepção à vida, a motivação4 própria
eminentemente humana, na qual está então fundado, ele é a um só à parte considerável da fenomenologia francesa encontra aqui uma nova
tempo o seu fundamento, delimitando as condições de sua realização. via de desenvolvimento. E é nesse contexto que o caminho é percorrido
Em suma, o desejo determina a maneira pela qual vivemos o mundo e passo a passo, sem notas desviantes, em torno da experiência perceptiva
assim o experimentamos. Assim, se tentarmos exprimir sinteticamente a e de tudo o que ela pode ensinar sobre si e sobre aquilo que a ultrapassa e
ontologia de Barbaras, poderíamos apontar a afirmação do desejo como mesmo a condiciona – o que inclui, como citamos acima, a Vida, tomada
unidade última entre o empírico e o transcendental, noção que permite como núcleo de uma nova ontologia e tangenciando a metafísica5 que se
o trânsito entre a análise das condições da experiência e a ontologia sem quer contemporânea. A filosofia da vida que assim se obtém dialoga com a
ultrapassar os limites da descrição direta do fenômeno – ou seja, sem filosofia clássica, com a tradição fenomenológica, com a ciência do século
transgredir as direções de método da escola fenomenológica. XX e com a arte. Ressaltamos aqui a clareza e o rigor conceitual com
Inicia-se então um notável trajeto de análise das questões que a qual tais diálogos são estabelecidos, que determinam uma consistência
envolvem a percepção, tomada como processo vital, exame presidido teórica diretamente proporcional à profundidade da análise da experiência
pela decisão de permanecer situado dentro das balizas estipuladas pela perceptiva por eles possibilitada.
fenomenologia, o que para ele significa explorar gradativamente e em Nosso interesse pela filosofia de Renaud Barbaras partiu, como
diversos níveis de profundidade a relação entre imanência e transcendência dissemos acima, de questões que se colocam sob o crivo da filosofia de
desvelada pela constatação da intencionalidade como verdade da experiência Bergson, mais especialmente do interesse pela maneira através da qual a

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fenomenologia do desejo incorpora as démarches críticas do bergsonismo. como inspiração maior para responder à questão que a percepção, o
Pensamos que a recusa das soluções bergsonianas para problemas em movimento e o desejo acabam por desenhar e conduzir: com a vida se
comum contribuiu sobremaneira para a força de suas análises. Essa caracteriza essencialmente para que possa condicionar a percepção e a
convicção encontra fundamento se prestarmos atenção ao fato de que, intencionalidade? O Aberto, melhor denominação para a essência da vida,
para Barbaras, a redução necessária à análise fenomenológica, que deve recobre o excesso e a transcendência do desejo, mas a sua descoberta,
dar conta da percepção concreta e assim evitar os prejuízos teóricos bem como a antropologia privativa6 que se segue a partir de então, não
que contaminem a descrição do aparecer, foi balizada pela potente remete aos textos dos filósofos, mas a um poeta.
crítica bergsoniana do negativo. Num momento posterior dessa análise, Encontramos ao longo dessa trajetória um ponto de chegada que
entretanto, Barbaras recusa as consequências que Bergson extraiu de sua podemos formular como a determinação do desejo como essência da
própria crítica, consubstanciadas na tese de um ser-duração impermeável vida. Por ele, evidencia-se o delineamento de sua singular leitura de temas
ao negativo. Sem entrarmos no mérito da justiça de tal avaliação, fica eminentemente fenomenológicos. De uma forma sucinta, podemos dizer
muito patente que as inconsistências apontadas na teoria bergsoniana que a filosofia de Barbaras avança metodicamente da percepção à vida
da percepção reenviam à positividade do ser e que a via do desejo vem originária partindo das questões que os fenomenólogos se colocaram, em
suplantar lacunas e solucionar problemas internamente relacionados a esse especial da tarefa de encontrar as condições de possibilidade da experiência
duplo trajeto – os de uma análise incapaz, sempre segundo os cânones da consciente tomada como intencionalidade. Essa progressão ou expansão
escola fenomenológica, de dar conta da descrição fiel do aparecer e os de da intencionalidade à ontologia reencontra e retoma, conforme o problema
uma ontologia que não pode incorporar a negatividade do ser que aparece. enfrentado, a noção de desejo, aprofundando a cada etapa sua análise,
E essa dupla crítica é essencial ao itinerário de Barbaras. seu escopo e seu significado. Entendemos, e isso ficou claro justamente
A aproximação à distância entre os dois filósofos é balizada a partir de nossa da leitura enviesada de suas obras, que tal projeto se
por outro dilema cuja importância não se pode subestimar no horizonte vê bem sucedido precisamente na medida em que seus passos avançam
filosófico do século XX, precisamente o da insuficiência da perspectiva da nossa experiência à ontologia, ou do ser percebido ao ser vital com
racional ou intelectualista para dar conta da experiência, limite da razão Ser originário, em consonância estrita com a ampliação do campo de
que incorpora os limites da filosofia e impõe perguntar sobre a pertinência fenômenos que a noção de desejo se mostra capaz de explicar. Desde a
de uma refundação metafísica com uma consequente discussão sobre o estrutura de horizonte que é intrínseca ao aparecer, implicando a abertura
método que a torna possível. O dilema não é outro senão o da finitude, ou a incompletude insuperável presentes na experiência humana, passando
e sua eleição como condição insuperável na proposta fenomenológica. pela análise do movimento próprio aos seres vivos, como movimento
Ainda aqui o trajeto de Barbaras não deixa de surpreender ao leitor vivido que procede de um “poder que não é esgotado, mas ao contrário
habitual de Bergson: no face a face com a vida, ele reconhece que a reativado, por sua realização” (Barbaras 2, p. 116)7, chegando à vida ela
tradição filosófica deixou a desejar, recorrendo então à poesia de Rilke mesma pensada como carência ou lacuna insuperável, outro nome do

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excesso ou da capacidade de autossuperação incessante que o vital carrega a essa escola8. O problema do negativo e a fidelidade à experiência se
em si, é sempre a noção de um ato, ser, processo ou potencialidade que se articulam na fenomenologia de Barbaras e podemos dizer que a herança
efetiva por sua própria intensificação que se apresenta para dar conta das merleau-pontiana por ele assumida reside, sobretudo, nesse tópico9.
descrições e das indicações que tais fenômenos oferecem. Reconhecendo que o projeto bergsoniano de “buscar a experiência em sua
Em outros termos, a análise da experiência, concentrada na fonte”10 se impõe a Merleau-Ponty, cujo trajeto se apresenta desde o início
percepção, estabelece um vínculo indissociável entre percepção e como um esforço para voltar ao mundo antes da sua categorização pelo
movimento vital que é então o ponto a ser explicado, que tem sua entendimento, Barbaras considera, entretanto, que as filosofias de Husserl
condição própria a ser esclarecida. Barbaras mostra que somente o desejo e Bergson, enquanto tentativas essenciais de retorno às coisas, esbarraram
pode satisfazer o papel de tal condição e assim dar conta dessa relação. no objetivismo ou no realismo de um ser positivo como obstáculos para a
Ressaltemos, inicialmente, um ponto crucial: é justamente porque o desejo realização da tarefa como seria desejável. Mesmo que o desenvolvimento
visa um objeto que se mostra como faltante, ou seja, pelo fato de que aquilo da obra merleau-pontiana, com a elaboração crescente de seu projeto
que o preenche efetiva esse preenchimento como nova falta – outra forma ontológico, tenha retornado a Bergson e absorvido parte considerável de
de dizer que o objeto do desejo é o próprio desejo – ou seja, é pelo excesso sua metafísica (como bem o atestaria o capítulo “Interrogação e intuição”
que o caracteriza, que ele pode dar ensejo a um movimento incessantemente de O visível e o invisível), a frequentação das obras iniciais de Merleau-
renovado e a uma percepção aberta ao transcender-se sem término. E essa Ponty foi mediada pela denúncia recorrente da presença do prejuízo da
é literalmente a interpretação fiel à estrutura de horizonte, dimensionada interioridade no bergsonismo. Esse ponto de partida acabou por conduzir
como essência do fenômeno. O desejo visa algo que se excede a si mesmo, Barbaras a aceitar a redução merleau-pontiana como via adequada para
portanto, deseja: o desejo apreende algo que reaviva o próprio desejo, ele “substituir a correlação em espelho do sujeito reflexivo e do objeto (que
é, portanto, esse transcender-se permanente. é ainda tributária da atitude natural) pela coexistência vital do sujeito
A transcendência assim formulada recobre o movimento de corporal e do mundo, como meio da nossa vida” (Barbaras 1, p.34).
exteriorização ou “relação a” que caracteriza a consciência intencional. A atenção cuidadosa a suas referências aos textos bergsonianos
A fenomenologia deve ater-se a essa relação e somente avançar para o mostra, entretanto, que as coisas não se passam exatamente dessa
ser na medida em que sua presença na experiência o autoriza. Assim forma. Há uma nuance ou ambiguidade na proposta de Bergson, a qual
procedendo, a filosofia tem que dar conta da negatividade insuperável ressurge aqui e ali num papel distinto ao longo das análises de Barbaras.
que essa relação evidenciará. Mais explicitamente, a perspectiva Vejamos como isso se dá, primeiramente, na delimitação do âmbito de sua
fenomenológica não raramente é definida pela sua fidelidade à experiência própria fenomenologia. O pano de fundo da tarefa da fenomenologia é,
humana finita, implicando a absorção da negatividade como atributo como sabemos, o fracasso da filosofia moderna no terreno da análise da
interior ao ser revelado no fenômeno, negatividade e finitude imbricadas experiência consciente. Assim, a ontologia que dependia do cartesianismo
numa relação que ganha contornos próprios segundo cada projeto filiado tem que ser abandonada ou ao menos reformada. Em mais de uma ocasião,

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os textos de Barbaras reforçam a tese que delimita tal empresa: mesmo que da noção de sensação12, conceito abstrato retirado do objeto determinado
se trate de investigar o ser originário, situando-se no terreno da ontologia, e inserido num mundo objetivo cujas leis são rigorosamente ditadas pela
essa questão identifica-se à do sentido do ser ao qual a percepção nos abre. filosofia natural moderna.
Tomada como acesso à transcendência na imanência, relação intencional A experiência humana reencontrada pela fenomenologia do
primordial e fenômeno de maior significado para a investigação dos aparecer retoma as dimensões perdidas pelo intelectualismo presidido
modos de doação de objetos ao sujeito consciente, a percepção é visada pela filosofia de Descartes e pelo empirismo que bebe nessa mesma
como processo originário a partir do qual seria possível repensar teoria fonte. A fenomenologia compartilha com o bergsonismo desta recusa de
do conhecimento e ontologia. Desde Merleau-Ponty está definido, desse pressupostos sedimentados filosoficamente. O modo pelo qual eles são
modo, que o acesso a tudo o que é situa-se na abertura perceptiva, e o expostos e em nome do que são refutados talvez nos ensine sobre suas
ponto de partida da filosofia em sua questão mais fundamental – a do ser principais diferenças – em todo caso, o trabalho de Barbaras expõe de
originário – é a experiência sensível, não mais a reflexão intelectual mesmo forma consistente como essa recusa delimita projetos fenomenológicos
que radicalizada. Em outros termos, o escopo da experiência sensível abre e variados. A crítica compartilhada por todos entende que há uma confusão
fecha o campo da ontologia e a pergunta sobre o sentido do ser não encontra enraizada nas teorias clássicas, justamente a falha em diferenciar as leis
lugar no terreno da pura reflexão, no qual a filosofia da consciência a da realidade que aparece – realidade que, disfarçada ou explicitamente
encerrou, definindo a subjetividade que reflete como “condição inexorável é assumida como ponto de partida e descrita como mundo objetivo – e
do acesso ao ser”. O aparecer, seu sentido e suas condições irredutíveis as leis que presidem o seu aparecer. Em suma, não se distingue entre o
são a única via a ser percorrida pela análise filosófica consequente, e assim mundo e “a experiência do mundo”, o que caracteriza uma “ontologia
demarca o terreno próprio à ontologia. espontânea”. Ao contrário, uma verdadeira filosofia da percepção deve dar
Trata-se então de mostrar que a fenomenologia da percepção é 11
conta da estrutura do aparecer, apreendendo ao vivo o movimento “pelo
a única via de superação dos impasses e limites da empresa cartesiana, a qual a experiência nos inicia ao Ser” (Barbaras 2, p.16), o que somente é
qual ofereceu os contornos mais gerais à reflexão da modernidade em torno possível ao se abrir mão dessa ontologia espontânea, do mundo objetivo
da consciência. Não se trata mais de encontrar o ser por uma reflexão da como modelo de ser.
consciência de si, transparente a si na experiência do cogito e aberta a uma Já aqui podemos sublinhar o papel ambíguo da filosofia da
transcendência que ao fim e ao cabo lhe é exterior, mas sim de retornar duração: não teria Bergson mostrado justamente outra forma de implicar
à imanência do sensível e nela reencontrar o ser em suas características mutuamente crítica da ontologia espontânea e refundação da metafísica,
temporais ou temporalizadas. Se Descartes tem o mérito de ter suspendido sem limitar-se ao ato filosófico situado na finitude, no sujeito ou na
a tese da existência do mundo, própria ao realismo ingênuo e aos diversos consciência tomada em sentido restrito? O trajeto de Bergson não seria
empirismos dele dependentes, a confiança na reflexão racional o levou, exatamente aquele que abre a via da superação do intelectualismo como
entretanto, a perder o solo da experiência e a analisar o sensível a partir superação do humano, mostrando no mesmo golpe que aceitar até o fim

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Cadernos Espinosanos XXVII Débora Morato Pinto

as consequências da crítica radical à velha ontologia significa retomar as descrição fenomenológica do aparecer. O progresso da descrição levada a
pretensões metafísicas da filosofia – seja filosofia da percepção, do homem termo por Barbaras depende em larga medida dos diagnósticos efetivados
ou da vida? Barbaras reconhece o papel dessa crítica em sua reflexão para o sobre os limites do projeto husserliano. Abrindo mão do objetivismo e do
encontro da via efetiva de análise da experiência. Tratamos na experiência paradigma da adequação, a verdade dos fenômenos remodela a relação
com um “em si” que excede o vivido mental, a representação ou o próprio com a negatividade, pontuando a imbricação entre presença e ausência nos
campo perceptivo, mas que paradoxalmente não se deixa atingir ou momentos constitutivos da percepção. Para dizer de uma vez, a crítica à
apreender jamais como positividade fechada, sem relação à subjetividade, ontologia do objeto ou ao objetivismo ainda presente em Husserl abre para
independente do sujeito que o vive, para qual ele se oferece. Paradoxo por o filósofo o contato com o ser que se dá à distância, assim como com o
se tratar de um fenômeno em que se afirmam a um só tempo a imanência e sujeito que se adapta a essa distância constitutiva na medida em que é ele
a transcendência do objeto. Esse paradoxo implica, por sua vez, o mistério próprio um movimento de impulsão inesgotável, corpo que visa o meio
da percepção: a doação que nela se efetiva se produz por esboços, isto é, por seu automovimento e sua retroalimentação incessante. Ora, essa nova
de forma incompleta e num “horizonte” de novas experiências do mesmo perspectiva, outra compreensão da relação intencional entre um visar e um
objeto cuja incompletude não impede, entretanto, a presença efetiva. A ser, é aberta precisamente pela ampliação da redução que Barbaras leva a
dimensão presuntiva da síntese que se anuncia pelos esboços impõe ao cabo sob a influência de Bergson. Mais precisamente, qual é o limite, senão
acesso à objetividade um caráter problemático – a presença do objeto se dá equívoco, da investigação de Husserl que a crítica bergsoniana do Nada põe
como ou pela sua ausência mesma: em evidência? Precisamente o fato de que a redução não consiste em colocar
entre parênteses a tese do mundo, a afirmação da existência do mundo, mas
Tal é o mistério da percepção: qualquer aspecto dá-se como
sim o pensamento que coloca tal existência à luz do objeto ou da realidade
aspecto de uma coisa, ultrapassa-se a ele mesmo como
conteúdo sensível e, porém, falta a realidade de que o aspecto objetiva, em suma, a “determinação do mundo em termos de objeto” (Barbaras
é a manifestação. É por isso que, a rigor, a experiência da 2, p.75). Husserl se equivocaria ao suspender a tese do mundo, existência
coisa no esboço reduz-se à possibilidade de prosseguir a que permanece como resíduo da redução levada a cabo cuidadosamente e
experiência, de multiplicar as percepções com a garantia
até o fim, na medida em que seu pressuposto é ainda a precedência do nada
de que não haverá fim. [...]. Em suma, a coisa percebida
em relação ao ser – pressuposto que condiciona o conceito de ser plenamente
não se apresenta ela mesma, conforme suas características
próprias, naquilo que a manifesta: o esboço, ao mesmo determinado ou determinável, pura positividade autossuficiente, isto é, o
tempo, desvenda e dissimula a coisa. Quanto à coisa, ela mundo pensado como Objeto. Barbaras assim explicita como os dois gestos
aparece como sua ausência, se apresenta como inapreensível teóricos estão entrelaçados na filosofia de Husserl:
(Barbaras 6, pp.150-151).

A insuficiente radicalidade da redução husserliana (que


O mistério somente pode ser tomado a sério por uma filosofia
consiste precisamente no fato de que ela é uma redução à
da percepção consequente, aquela que encontra os meios de respeitar a região consciência) deve-se ao fato de que Husserl permanece

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tributário, ao longo de sua empresa, do ideal racionalista de uma existência como objetividade, ou a definição de tudo o que se vê e se pensa
doação adequada e, portanto, de uma determinação espontânea como objeto. É assim a existência como objeto, no modo objetivo, que
do Ser como objeto, determinação que entra em contradição
para Bergson identifica-se com a existência no espaço ou espacial, que a
com a estrutura própria da percepção (Barbaras 2, p.75).
crítica do nada é capaz de desqualificar, abrindo caminho para a apreensão
dos aspectos efetivos da existência ou do ser.
E o equívoco compromete irremediavelmente a compreensão da
estrutura do aparecer, sempre descrito e conceituado segundo o modelo do
Da crítica à ontologia: ser-duração, negatividade e desejo.
objeto que aparece. O real é pensado como conjunto de objetos exteriores
entre si, e sem a refutação da precedência do nada ao ser não há como
A crítica do Nada atraiu a fenomenologia da percepção de Renaud
dar conta do que se apresenta na experiência, pois a relação interna entre
Barbaras. Mas, no mesmo gesto pelo qual essa crítica amplia a força da
o sujeito e o mundo é configurada pelo raciocínio que se move nesse
redução fenomenológica, seu resultado para a teoria da duração é recusado
conjunto – de partes exteriores entre si – e segundo suas determinações.
e o Ser como Distância ganha contornos mais precisos. Vejamos como a
Ocorre que essa é exatamente a posição defendida por Bergson, com a
positividade do ser-durée invade as etapas mais importantes do caminho
diferença de que esse ser e esse raciocínio serão remetidos ao espaço
em direção ao desejo. Tais etapas envolvem, com efeito, a clara recusa
como forma da inteligência e condição de possibilidade da experiência
do decantado positivismo de Bergson, ainda que reconhecendo sua ampla
dos objetos. É assim que Bergson nos oferece então os “meios para bem
renovação da filosofia da percepção, a qual que se detém, entretanto, na
conduzir a redução”, segundo os termos de Barbaras. O problema então
ingenuidade tributária de uma “aproximação substancialista do ser”13 que
não reside no mundo, nem em sua existência, mas no modo de existir,
teria sido o maior obstáculo ao desvelamento do problema do sentido do
modo objetivo de existência que se mostra como determinação perfeita e se
ser que a fenomenologia leva a cabo. Essa limitação determinaria um
deixa apreender por uma doação adequada. O pressuposto da positividade
movimento filosófico de sentido inverso ao da fenomenologia, já que a
do nada não é atingido por Husserl, mas sim por Bergson, cujo percurso
intuição bergsoniana buscaria alcançar “a positividade do objeto para
crítico possibilita a descrição fiel da experiência como experiência de algo,
além das determinações da inteligência, que são relativas apenas a nós
encontro com a realidade, especialmente com a mobilidade real. Assim,
mesmos, enquanto que a redução alcança o fenomenal, isto é, o ser relativo
seja no nível das consequências, seja no nível dos princípios, as análises
do objeto, a partir da suspensão de sua positividade” (Barbaras 4, p.32).
críticas de Bergson denunciam a ilusão de se pensar um nada primordial,
Eis a tópica da recusa. Mas em que aspectos essa recusa se efetiva em Le
prioritário e anterior ao ser, denúncia que se configura como condição
Désir et la Distance? Considerando ainda que a teoria da percepção que a
indispensável para a apreensão do ser como duração. Ao fazê-lo, Bergson
toma como imbricada ao movimento desejante é escandida por referências
expõe a ilusão teórica que nada mais faz senão prolongar a relação prática
consideráveis à teoria da percepção pura, cabe investigar como a decisão
e técnica do ser humano com o mundo, e que desemboca na aceitação do
filosófica de Bergson, que envolve a estratégia de evitar passo a passo
Nada como anterior ao Ser. Ora, essa aceitação impõe a determinação da

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as armadilhas do realismo e do idealismo, pode ser inserida no mesmo No caso da redução, Bergson teria deixado escapar o ponto central
lago do positivismo ingênuo. Mais que isso, a relação entre a análise da que torna possível a compreensão do aparecer fora do paradigma objetivista:
intencionalidade e a teoria da percepção pura de Matéria e Memória é o o reconhecimento de sua estrutura irredutível como pertencimento, co-
lugar privilegiado para a compreensão do que se recusa do bergsonismo aparição de um meio sobre o qual tudo aparece. Esse mundo, nunca presente
numa filosofia que respeita o primado do negativo, e assim, para que se ele próprio como determinação completa, é uma totalidade aberta ou “não
explicite como a noção de desejo pode ser o fundamento da experiência. totalizável”15 cuja estrutura de horizonte aponta para um inacabamento
E é no capítulo dessa obra em que a relação entre percepção e movimento perpétuo. Ele é o que tudo contém, sem poder por isso mesmo ser um
é focalizada pela análise fenomenológica que a teoria bergsoniana aparece conteúdo, e o solo ou campo de tudo o que aparece é um “il y a” do qual o
como contraponto essencial. mundo é momento constitutivo. A tese do mundo é condição de toda tese,
Cabe então retomar brevemente a análise da relação entre de todo sujeito, de todo ato – encontraríamos aqui, como em Merleau-
percepção e movimento vital, sublinhando os principais aspectos que Ponty, a ampla significação ontológica da relação figura-fundo explorada
conduzem da redução ao ser como abertura. O encontro com o aberto concretamente pela ciência, no caso, pela Gestalttheorie ou “psicologia da
passa, como mencionamos rapidamente acima, pela interpretação fiel e forma”. A percepção assim desvelada mostra ser percepção de um mundo,
radical da teoria dos esboços, a qual subsidia a articulação entre percepção ou percepção num mundo, envolvida de mundo, antes de ser percepção de
e movimento que Barbaras estabelece em três obras inter-relacionadas . 14
um sujeito ou de uma consciência. O mundo é indistintamente aquilo “que
A incompletude de Bergson, cuja teoria da percepção teria antecipado os é manifestado por cada coisa que aparece, como a profundidade que ela
termos rigorosos pelos quais o problema da experiência deve ser colocado, vem trazer ao aparecer, e a condição de sua aparição” (Babaras 2, p.86).
residiria precisamente no fato de que sua circunscrição da totalidade como Em síntese, o que Barbaras reconhece como nova configuração do
ser perceptível (ou seja, o campo de imagens que contém a percepção aparecer aponta o mundo como seu momento constitutivo, e o inacabamento
em potência ou virtualmente) e a correspondente descrição do sujeito ou ausência inerente à sua apresentação dimensiona a relação com a
como corpo vivo perpassado pelas necessidades orgânicas perdem de negatividade. Num certo sentido, tudo se joga aqui, pois os outros passos
vista a intencionalidade, ou seja, a abertura do sujeito à transcendência ou tópicos da experiência perceptiva devem implicar em si uma relação
e a negatividade ou distância interna à totalidade englobante. Em outros com o negativo. A caracterização do sujeito, polo cujo desdobramento
termos, Bergson não foi capaz de dar conta da distância constitutiva do implicará o movimento vital como seu constituinte essencial, se reconfigura
ser que a análise do aparecer nos revela. Se a crítica do nada retomava precisamente por essa relação. Desse movimento, o desejo é condição
como consequência um ser-duração que ainda se quer positivamente dado, de possibilidade. Eis um dos pontos de maior importância – também de
substancial, a crítica à teoria da percepção configura um momento interno complexidade – para a nossa aproximação. Trata-se, para Barbaras assim
à teoria do ser-substância. No reverso dos dois movimentos – crítica do como para a fenomenologia contemporânea em geral, na reconfiguração
nada e teoria da percepção, Barbaras avança em seu viés fenomenológico. do sujeito, de superar a concepção da consciência de si, constituinte,

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ou essa maneira de pensar a subjetividade como imanência a si de toda pela totalidade aberta. Ele é situado nesse sentido, faz parte de um todo
experiência. Ao mesmo tempo, não há como dispensar o caráter subjetivo que ele de algum modo põe, institui ao negar ou “parcializar” precisamente
dos fenômenos, sua implicação necessária ao para si, sua referência essencial enquanto é um sujeito vivo. O sujeito está enraizado no empírico e esse
àquele para quem algo aparece. O pertencimento ao mundo como estrutura aspecto é o que para Barbaras configura a transcendentalidade do sujeito.
irredutível de toda aparição não desconsidera o sujeito – mas o remodela, Assim, a subjetividade transcendental, condição do fenômeno ou da
definindo-o não mais pela relação a si dada adequadamente e dando conta experiência, tem raiz no empírico, é intramundana. O sujeito vivo é um corpo
de que ele é momento constitutivo do aparecer sem, entretanto, constitui-lo especial porque dotado de um tipo de movimento singular. Movimento que
absolutamente. Trata-se então de compreender uma condição necessária, percebe, porque orientado, e que origina sua renovação. Essa prerrogativa
mas não suficiente do fenômeno, um momento que o constitui internamente do movimento vital, essência do sujeito que percebe, nada mais quer dizer
sem esgotar a sua razão de ser, sem dar conta do seu sentido, sem ser o senão que o sujeito é desejante16, e por isso mesmo, efetiva ou atualiza o
seu fundamente originário. O sujeito da percepção é um corpo vivo, e dar fenômeno, bem como o sujeito da percepção na redescrição bergsoniana
conta do seu sentido de ser através do crivo da descrição fenomenológica atualizava a perceptibilidade do mundo ao dele recortar uma parte por sua
significa caracterizá-lo segundo sua relação com o mundo dada no indeterminação de ações.
fenômeno: o sujeito é um movimento orientado, o que nada mais indica Entretanto, Barbaras vê entre as duas teorias uma diferença
senão sua adequação à estrutura de horizonte, demonstrada como “forma insuperável. O centro da diferença – entre o polo subjetivo redescrito
concreta do a priori do fenômeno” e implica um excesso ou um recuo do à luz da estrutura de horizonte e o sujeito vivo que recorta o campo de
aparecer. O fenômeno é o acesso a uma presença permeada pela ausência: imagens – está na relação do corpo vivo dotado de movimento subjetivo
algo me aparece na exata medida em que pertence a uma totalidade aberta com a totalidade para a qual ele se abre ao mesmo tempo em que a nega.
e inesgotável, que presume uma continuidade que completa a coisa de que O ser que atualiza o fenômeno é aquele que se abre a um todo inacabado,
só tenho a visão parcial. presente e ausente, e seu ser deve estar em correlação com a totalidade
O estatuto do mundo que se apresenta como condição de toda que se dá como distância. Na chave do campo de imagens como totalidade
percepção impõe, portanto, reconhecer uma dimensão da experiência que dada previamente, potência de percepção atravessada por um corpo que
ultrapassa as categorias e as descrições da tradição filosófica e mesmo necessita, essa negatividade que recai sobre o sujeito e sobre o mundo
fenomenológica. O fundamental a ser interpretado sobre o mundo é o fato não encontra condições de ser compreendida. Por outro lado, pensado
de que ele constitui, condiciona e realiza o aparecer, pois engloba tudo estritamente como sujeito da percepção, o ser vivo é caracterizado por
o que pode surgir para nós na experiência, mas o faz sem aparecer “ele uma carência ontológica, por uma necessidade que não pode ser estancada
próprio enquanto tal” (Barbaras 2, p. 86). Essa referência ou abertura ao por satisfação através de uma “substância positiva” (Barbaras 2, p.158). A
todo redimensiona a noção de consciência: ela é sempre situada e o sujeito, carência tem sua explicação última na finitude que define essencialmente o
que se experimenta a si, também se vê sobre o fundo do mundo, englobado ser vivo individualizado, isto é, separado do todo, já que ele aspira voltar à

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sua condição de pertencimento no todo, justamente a sua dissolução como considerado como uma exposição dos traços dessa teoria cujas limitações
indivíduo. A unidade entre positivo e negativo se reapresenta, então, a cada e impasses conduzem ao desejo, de uma maneira tão bem articulada
um dos momentos da descrição de Barbaras: ser desejante, o indivíduo que permite bem apreender como percepção, mundo, totalidade aberta
aspira algo jamais possível de se atingir: “qualquer ser vivo anseia por e movimento vital são explicitações de um Desejo cujas atribuições dão
uma superação de sua própria individualidade, por uma identificação com conta da experiência humana no que tem de mais essencial, ou seja, da
a totalidade – o que equivale a dizer que a condição da sua existência, a essência desse humano que, finito, aspira a um todo que ele mesmo nega.
individualidade, também é a razão de sua imperfeição” (Barbaras 2, p. 158). A plenitude ou positividade do ser-durée define o horizonte mais
Tal dimensão de separação e finitude define uma carência que é a própria vasto em que está inserida a teoria da percepção pura de Bergson. Percepção
essência do sujeito da percepção. Ele não pode identificar-se a um corpo que, resolvida como intuição, constitui uma das dimensões do método
vivo que necessita e se satisfaz, destacando do mundo sua fenomenalidade através do qual o encontro com o ser poderá ser alcançado: a experiência
ou perceptibilidade prévia ao buscar essa satisfação; em outros termos, humana, livre de amarras próprias à sobrevivência, vê um querer que é
“há uma inquietação, uma tensão própria ao ser vivo, que resulta numa criação ou jorro de imprevisibilidades. Nesse sentido, Bergson se separa
mobilidade contínua e independe do preenchimento das necessidades, de fato da fenomenologia e abre a porta para a superação da finitude. A
necessidades que aparecem assim como condições e não como finalidade filosofia desemboca inevitavelmente na metafísica, dilatando em nós a
da vida” (Barbaras 2, p. 158). humanidade e “fazendo com que essa se transcenda a si mesma” (Bergson
A redução bergsoniana aplicada ao problema da percepção teve 8, p. 209). Contato e compreensão do ser como criação, ela é assim o meio
a originalidade de encontrar um meio de evitar as incoerências da teoria de nos “fundirmos novamente com o todo” (Bergson 8, p. 209) – ou, ao
clássica da representação que pensava sempre segundo a coisa (a percepção menos, é o esforço para tanto. Barbaras bem dimensionou essa diferença
do presente e a ideia que dela deriva sempre como polos correlatos de um quando entrou em contato com o livro de Bento Prado Junior e retornou a
ente determinado e fixo), mas não soube extrair as boas consequências Bergson motivado por ele. A questão da finitude logo se explicitou como
desse ponto de partida . Ao fim e ao cabo, o sujeito da percepção acaba
17
nó de relações entre bergsonismo e fenomenologia, dadas as proximidades
compreendido como um corpo permeado por necessidades, e o todo tão evidentes entre a crítica do nada e a redução. Em seu comentário sobre
das imagens como um ser real atravessado pela perceptibilidade de o livro, encontramos a síntese do que se desdobraria sucessivamente
maneira misteriosa. Ora, a necessidade de obedecer às prerrogativas do nesse contraponto tão produtivo. Ao citar uma passagem de Presença e
preenchimento e do vazio foi justamente o que a descrição fiel da percepção, Campo Transcendental sobre a especificidade da redução bergsoniana,
segundo o itinerário de Barbaras, recusou. Em suma: a percepção não ele sublinha a originalidade de uma teoria da experiência capaz de evitar
pode ser compreendida como ação que visa preencher necessidades, e foi abrir o campo de possibilidade de uma “subjetividade transcendental que
exatamente dessa forma que Bergson a pensou. Todo o trecho de Le Désir é constituinte”, em proveito da noção de indeterminação (ou introdução
et la Distance que discute a teoria bergsoniana da percepção pode ser de novidade), a partir da qual a própria subjetividade “nasce”18. Barbaras

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apontava já com bastante propriedade a convergência entre a redução Ela vem esclarecer, não obstante constituir parte dessa obra, as consequências
bergsoniana e a redução fenomenológica e a lição fundamental que essa que as ilusões da razão fizeram incidir sobre a análise filosófica da percepção,
convergência indicava, a diferença fundamental residindo na questão esta levada a cabo em Matéria e Memória. Quais são os aspectos do ser que
da finitude, constitutiva e definitiva para a fenomenologia, suscetível de a crítica permite reencontrar, tanto no nível das consequências (como é o
superação, para Bergson, uma “alternativa hoje crucial, que coloca em caso da metafísica da matéria cuja condição de possibilidade é a retomada
questão o limite da fenomenologia” (Barbaras 3, p. 341). da fenomenologia da percepção pelo crivo da descrição em termos de
Mas essa proximidade fértil acabou pendendo para a leitura crítica. imagens), quanto no nível dos princípios, como encontramos no resultado
Assim, o saldo da referência a Bergson em Le Désir aparentemente condena da desconstrução da ilusão ao final da terceira obra? De maneira sintética,
o filósofo da duração: permanecendo cativo de uma ontologia fundada na podemos indicar os resultados num e noutro plano como o encontro com
positividade, ele não pode dar conta nem do mundo, nem do sujeito e muito a mobilidade essencial do real. Sem a imposição de pensar o Ser como
menos da percepção do mundo por esse sujeito, perdendo de vista a unidade substância estática e idêntica a si, recusando o pressuposto que somente aceita
originária entre positivo e negativo que a descrição fenomenológica da como determinações do ser a identidade, imobilidade e a essencialidade
percepção desvelou. A mesma cegueira em relação à negatividade do ser matemática ou lógica (que é bem sintetizada pela expressão “tudo está
que a recusa da precedência ontológica do nada pode trazer à luz se repete dado”), é possível compreender o ser como substancialidade imbricada
na análise da percepção. Porém, se cavarmos mais fundo essa análise de com o tempo, realidade que não é “alheia à duração”. Essa compreensão
Barbaras, encontramos outro papel para Bergson. Mais do que denunciar depende apenas de que se siga o fio da experiência sem dela desviar-se pela
o “ponto cego do edifício bergsoniano” (Barbaras 2, p. 128) e condenar o interposição de categorias advindas da racionalidade prática. E o ser que se
bergsonismo como nova figura de um espiritualismo19 a ser ultrapassado, revela na medida em que procurarmos ver para ver (ao invés de ver para
o contraponto com a teoria das imagens serve a ele de instrumento para agir), não é exatamente um ser positivo subsistente em si e exterior a nós. Ele
retomada de seu próprio fio condutor, para avançar e detalhar a caracterização é pura mobilidade, um devir infinitamente variado, portanto, diferenciação
do sujeito da percepção que se abre ao ser fenomenal enquanto vivo. Todos incessante, e vivo, um ser que é vida, mas Vida conosco:
os elementos de uma fenomenologia da vida estão ali já bem fundados, e
não à toa essa fenomenologia retomará a diferença com Bergson do ponto Então o Absoluto se revela muito perto de nós, e até certo
ponto, em nós. Ele é de essência psicológica e não matemática
em que se deteve, aprofundando e ampliando a contraposição. E, o que
ou lógica. Ele vive conosco. Como nós, mas por certos lados
defendemos em diversas passagens aqui, a articulação dessas críticas revela
infinitamente mais concentrado e mais contraído sobre si
em negativo o encadeamento preciso da teoria da percepção fundada no mesmo, ele dura (Bergson 13, p. 323).
desejo que desemboca numa nova filosofia da vida20.
A crítica do Nada fecha um momento particular da filosofia de Sem entrar no âmago da metafísica de Bergson, importa ressaltar
Bergson, justamente a reflexão sobre a vida que redimensiona a metafísica. que a leitura dos textos de Barbaras explicitou para nós, melhor que outros

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filósofos (o que inclui Merleau-Ponty), em que sentido o ser-durée pode 6. _______ Investigações Fenomenológicas: em direção a uma fenomenologia da
responder aos questionamentos compartilhados pelos autores situados na vida. Curitiba: Editora da UFPr, 2011.
7. _______ La Vie Lacunaire. Paris: Vrin, 2011.
fronteira entre fenomenologia e metafísica. Percebemos ainda que, através
8. Bergson, H. A Evolução Criadora. Trad. de Bento Prado Neto. São Paulo:
do confronto entre a criação e o desejo, é a reflexão sobre a vida que Martins Fontes, 2005.
avança consideravelmente, colocando em evidência a questão que será, 9. ________. Matéria e Memória. Trad. de Paulo Neves, São Paulo: Martins Fontes,
para muitos, o tema capital para o nosso tempo. 1999.
10. DELEUZE, G. Bergsonismo. Trad. de Luiz B.L.Orlandi. São Paulo: Editora 34,
La vie entre le désir et la création: Renaud Barbaras 1999 (Col. Trans).
lecteur critique de Bergson 11. During, E. “Presénce et Répétition: Bergson chez les phénoménologues”; in
Critique, Tome LIX, n.678, nov.2003.
Résumé: Nous présentons ici le croisement de deux philosophies de la vie, celle de 12. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da Percepção. Trad. Carlos Alberto. R.
Renaud Barbaras, le thème central de ce texte, et celle d’Henri Bergson, qui préside de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1994 (Col. Tópicos).
le point de vue sous lequel nous considérons la phénoménologie contemporaine. 13. Prado JR., B. Presença e Campo Transcendental. Consciência e Negatividade
Notre objectif est d’exposer, de manière générale, comment la différence avec na Filosofia de Bergson. São Paulo: Edusp, 1989.
Bergson a joué un rôle important dans la constitution de l’œuvre de Barbaras. Plus 14. RIQUIER, C. À la lisière du monde: la vie selon Renaud Barbaras. In: Critique.750.
explicitement, nous prennons en considération des références critiques de l’ouvrage Paris: Éditions de Minuit, novembre 2009.
Le Désir et la Distance à la philosophie de Bergson pour montrer comment sont-elles
bien incorporées dans cette phénoménologie, inspiré par Merleau-Ponty, qui met en
Notas
relation essentiel la perception, la vie et le désir. Nous remarquons aussi quelques
acquisitions reçues par la lecture de la théorie de la perception pure de Bergson compte
1. A vida surge como a questão decisiva quando se trata da percepção conferindo-lhe o
tenu de la confrontation avec la phénoménologie de Barbaras.
papel e a relevância que lhe cabe de direito na ontologia. Desde Husserl, passando por
Mots-clés: perception, vie, désir, phenomenology, creation, durée.
Merleau-Ponty e pelos projetos fenomenológicos contemporâneos, Barbaras mostra
com extrema clareza como percepção, movimento e vida se entrelaçam e como esse
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
vínculo é trabalhado pelas descrições que partem da mesma recusa – a do mundo
objetivo como fundo silencioso que dirige a filosofia da tradição e sua dependência
1. BARBARAS, R. Le tournant de l’expérience: Merleau-Ponty et Bergson in:
do conceito de ser determinado. Em nosso percurso próprio, sempre foram alvo de
Philosophie, n.54, Paris: Les Éditions de Minuit, 1997.
interesse os pontos dessas análises que se definem a partir da relação com a crítica
2. _______ Le Désir et la Distance. Paris: Vrin, 1999.
bergsoniana do negativo e sua incidência sobre a teoria da percepção levada a cabo
3. _______ La phénoménologie de Bergson. In: Annales Bergsoniennes I. Paris: PUF,
em Matéria e Memória. Barbaras estabelece essa relação em textos diversos. Nas
2002.
referências ao final do texto, ver os artigos de 1997 e 2002.
4. _______ Vie et Intentionnalité. Recherches Phénoménologiques. Paris: Vrin,
2. Com essa expressão, referimo-nos às ciências, biologia e psicologia, mas também à metafísica.
2003.
3. Observemos aqui que a relação estabelecida por Barbaras entre a sua fenomenologia
5. _______ Introduction à une phénoménologie de la vie. Paris: Vrin, 2008.
e a filosofia de Bergson toma esse ponto como nó da “divergência”. Reconhecendo os

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Cadernos Espinosanos XXVII Débora Morato Pinto

avanços da crítica bergsoniana da tradição, bem como o mérito da teoria da percepção ele é “sua própria fonte, que ele se nutre de si mesmo, que a impulsão não se esgota
pura desenvolvida em Matéria e Memória, Barbaras considera ter superado os limites mas é restaurada pela realização” (Barbaras 2, p.116).
dessa teoria precisamente porque ela não pode dar conta da intencionalidade. Se 8. Barbaras segue as direções gerais da incorporação do negativo fornecidas por
levarmos em conta que Bergson parte da percepção e chega à vida como consequência Merleau-Ponty, autor ao qual ele dedicou seus trabalhos de formação acadêmica, para
de sua análise dos dados imediatos da consciência, o confronto entre uma metafísica definir seu caminho próprio num momento posterior a partir do encontro com a noção de
da percepção e uma fenomenologia centrada no desejo evidencia lições filosóficas desejo – encontro que deriva diretamente da caracterização da negatividade implicada
de alcance bem considerável. Pensamos que, no momento em que as razões dessa indissociavelmente à experiência perceptiva, em sua abertura à transcendência, em
recusa são explicitadas, Barbaras avança passos largos em seu próprio projeto, e esse seu excesso e sua distância internas, em sua origem no movimento vital.
movimento se efetiva na obra Le Désir et la Distance. 9. Ainda aqui o árduo trabalho de comentário das obras de Merleau-Ponty foi enviesado
4. Tal motivação se evidencia, primeiramente, pela presença dos temas merleau- pela filosofia bergsoniana: num artigo de 1997, dois anos antes da publicação de Le
pontianos ao longo de todo o percurso. Com efeito, a influência assumida de Désir et la Distance, ele apresenta as linhas gerais do confronto e explicita, desse
Merleau-Ponty incide sobre a forma pela qual o autor efetiva a passagem de um modo, como vê na fenomenologia da percepção respostas mais consistentes para
estudo das condições de possibilidade da experiência – já bem redimensionado pela questões que a teoria da duração formulou e procurou responder. Isso significa que o
recusa ao a priori kantiano e pelo reconhecimento de que é a análise filosófica da projeto filosófico de Merleau-Ponty se apresenta atravessado pela filosofia de Bergson,
sensibilidade enquanto tal que propicia a conjugação entre o transcendental e o especialmente nos momentos decisivos de recusa e superação do projeto de Husserl. A
concreto – à reforma da ontologia. recusa à redução husserliana a partir das análises da psicologia da forma e da fisiologia
5. O encontro inevitável com a metafísica talvez seja uma das dimensões mais instigantes de Goldstein conduzem Merleau-Ponty à“recondução a uma subjetividade, que ele
do percurso de Barbaras. Camille Riquier, ao analisar a obra L’Introduction à la caracteriza como subjetividade encarnada” (Barbaras, 1997, p.42).
Phénoménologie de la Vie, considera que a essência da vida impinge à fenomenologia 10. Expressão cujo termo em francês, le tournant de l’expérience, intitula o artigo.
“negar-se” em metafísica, e isso por razões “estritamente fenomenológicas” (Riquier, Sobre isso, ver o início do último capítulo de Matéria e Memória.
2009, p.986). Ver todo o artigo, que apresenta magistralmente o livro. 11. Aqui é pertinente observar que o autor ao qual Babaras dedicou longos anos de estudo
6. Ver Babaras, 2008, terceira parte. A fenomenologia da vida à qual Barbaras nos é sim sua influência maior, e isso significa que a justa avaliação do desvio que ele impõe
introduz nessa obra recente sugere uma ocasião preciosa para a boa elaboração de ao estudo da percepção segundo o método fenomenológico exige a compreensão da
suas referências a Bergson. Não trataremos dessa relação aqui, mas apontamos a etapa diferença ente sua obra e a de Merleau-Ponty. Não é nosso objetivo cumprir essa tarefa,
anterior e necessária para tanto: o papel da confrontação com o bergsonismo na obra Le não teríamos condição para tanto. Em todo caso, é importante acrescentar que os passos
Désir et la Distance, precisamente aquela em que o autor nos apresenta a linha mestra mais significativos para o deslocamento – de resto indispensável para Barbaras, desde
de sua fenomenologia da percepção. Sublinhamos assim como a presença de Bergson a inauguração da fenomenologia husserliana e sua confiança no a priori correlacional
se faz sentir na clareza e na força desse percurso, a começar pela forma através da qual – da questão em direção à percepção foram dados precisamente pelo projeto merleau-
ele repõe os problemas filosóficos, reposição que é essencial ao encaminhamento em pontiano (em seu desvio de Husserl mediado por Heidegger).
direção à noção de desejo como via de resolução para os mesmos. 12. De outro lado, se o empirismo se atém à multiplicidade sensível, que descreve
7. Na continuidade da descrição do eu posso que não se diferencia de um eu faço, em termos de sensações ou feixe de sensações, multiplicidade espacializada de
encontramos que se trata de um poder que é idêntico ao efetivar-se, somente existindo unidades atômicas, perdendo “a coisa mesma” que se dá com os aspectos subjetivos,
como realização; ao efetivar-se o poder existe, por isso ele é reativado quando o o cartesianismo se perde em outra dimensão: a experiência por ele descrita se atém
movimento, que é o poder-fazer identificados, se efetiva. Trata-se assim de um a uma unidade ideal que pressupõe referida ao pensamento, concentrando-se no ato
automovimento, não apenas porque procede de um si, mas sobretudo pelo fato de que de apreensão de sentido que determina objetivamente, de modo ideal. Descartes e

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desloca para a memória, e seu fracasso está sendo avaliado segundo as intenções e os
os herdeiros do racionalismo deixam escapar, via de regra, a presença, o múltiplo,
critérios de um projeto do âmbito da fenomenologia; a subjetividade “ancorada no
a doação por aspectos, e, no mesmo equívoco, perdem de vista o sujeito que sente.
reconhecimento do que se dá atualmente” à ação é considerada como uma solução bem
Além de reencontrar o ser estático e eterno da metafísica de antes, Descartes também
clássica por ele; ela significa também que a dualidade entre o psíquico e o corporal,
lega uma descrição artificial do sujeito consciente, que passará clandestinamente para
afastada na análise da percepção, foi na verdade apenas deslocada para a dualidade
as ciências dos séculos posteriores.
entre matéria e memória, e mesmo radicalizada; o realismo de Bergson denunciado
13. Essa crítica é, curiosamente, quase sempre acompanhada de elogios à teoria da
por ele logo acima é então a contrapartida da afirmação de uma realidade espiritual
duração e ao ser movente que ela destaca de um procedimento crítico bem próximo
positiva, portanto, de um espiritualismo.
à redução, e Bergson passa a operar, em Merleau-Poonty de forma mais velada, em
20. Mencionamos apenas que, ao buscar as respostas para tais ressalvas, encontramos
Babaras de modo mais explícito, autêntico e constitutivo, como contraponto ao projeto
nas noções de tendência, totalidade aberta e jorro ininterrupto de imprevisibilidade as
de Husserl e aos limites de seu objetivismo.
pistas para o bom dimensionamento da ontologia bergsoniana. Assim, a contribuição e
14. São elas: Le Désir et la Distance, Vie et Intentionnalité e Introduction à une
o enriquecimento proporcionados pela leitura dos livros de Barbaras foram decisivos
Phéménologie de la Vie, percorrendo ao menos 12 anos de seu trabalho (ver as
em nosso percurso. É importante ainda apontar que, a nosso ver, Barbaras atirou no
referência ao final desse texto). Pelas referências a Bergson, foi possível para nós
que viu e acertou no que não viu – o problema do aparecer da duração (o qual não se
entendermos exatamente qual é pressuposto originário do projeto de Barbaras, o que
identifica com a questão do negativo) é de fato um ponto a ser problematizado.
delimita os passos da busca e impede os desvios e as interferências que o afastariam de
seus fins: o fato de que essa ligação (entre o sujeito-movimento e o objeto dado como
distância) tem que ser compreendida a partir dos ensinamentos da intencionalidade
– o que significa que ela deve dar conta da relação indissociável entre a estrutura de
horizonte e o sujeito que percebe.
15. Intotalisable, em francês.
16. Em seu último livro, La vie Lacunaire, Barbaras retorna a Bergson, mais precisamente
à caracterização do homo faber em A Evolução Criadora, e adota o mesmo procedimento
que estamos pontuando aqui: procura mostrar que, para além da técnica (que define o
homem segundo tal perspectiva) há o desejo “que retira sua energia inesgotável na falta
ontológica que caracteriza o homem” (Barbaras, 2011, p.178).
17. Mesmo que reconheça o enorme mérito de ter formulado os termos rigorosos de
uma teoria da percepção, Barbaras reprova Bergson por não ter dado continuidade a
essa teoria respeitando fielmente tais termos: o ser vivo como motricidade que rompe a
continuidade da matéria surge como um corpo positivamente dado numa totalidade sem
ausência constitutiva – o mundo percebido recodificado como campo de imagens.
18. Barbaras retoma então a passagem especial do livro, situada no capítulo 3, sobre
o “espetáculo sem espectador, o lugar em que o espetáculo se torna possível, e assim
as condições de possibilidade de um espectador em geral” (Prado Jr. 13, p. 146) para
circunscrever o campo de confrontação possível entre Bergson e a fenomenologia.
19. Barbaras reconhece que, dentro do projeto bergsoniano, a questão do sujeito se

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De Merleau-Ponty a Barbaras

Luiz Damon Santos Moutinho*

Resumo: Este artigo apresenta de modo bastante sucinto alguns lances da leitura
barbarasiana de Merleau-Ponty e o tournant que, em face dessa obra, levou Barbaras
a uma “fenomenologia da vida”.
Palavras-chave: Merleau-Ponty, Barbaras, ontologia, fenomenologia, vida.

Certamente, os estudos sobre Merleau-Ponty se dividem em antes


e depois de Barbaras. A sua tese, De l’être du phénomène (1991), deu novo
impulso aos trabalhos sobre a obra do filósofo e renovou o interesse por
ela, obscurecida, salvo raras exceções, por trabalhos de divulgação ou por
manuais que a colocavam ao lado da de Sartre – na verdade, abaixo desta
–, como representante do “existencialismo”. Leituras que, entre tantos
outros equívocos, ignoravam solenemente as inflexões radicais – por
exemplo, uma nova concepção de natureza – que levaram Merleau-Ponty
à ontologia final de O visível e o invisível. Barbaras privilegia justamente
esse último período e oferece interpretações inovadoras daquelas inflexões.
Basta ver a dimensão que ele concede – a meu ver, corretamente – ao tema
da “expressão”, ao abalo que essa noção provocou na ideia de sensível que
ainda se encontra na Fenomenologia da percepção.
Mas o mais importante veio depois da tese. Barbaras continua
seus estudos sobre Merleau-Ponty e publica uma pequena obra-prima, Le
tournant de l’expérience, em que, entre tantas novas intuições, aproxima

* Universidade Federal do Paraná.

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Cadernos Espinosanos XXVII Luiz Damon Santos Moutinho

Merleau-Ponty de Bergson e mostra o que este deve à crítica bergsoniana idealismo. No entanto, Barbaras, em uma leitura inédita à época, mostrou
da metafísica e do princípio de razão. A enorme familiaridade de Barbaras em detalhes o que esse primado da percepção ainda deve ao idealismo.
com o pensamento de Merleau-Ponty o leva a explorar o que há de Flerta com o idealismo a noção de “transcendência” que se encontra na
insuficiente neste e encontrar seu próprio caminho de reflexão. Depois Fenomenologia: é uma simples transcendência de fato, não de direito, o
de longo périplo, Barbaras dá-se conta de alguns problemas da ontologia que aponta para uma coincidência possível, própria ao idealismo, e, se é
merleaupontiana – grosso modo, ela recai no dualismo que sempre quis assim, é porque Merleau-Ponty a pensa no horizonte da racionalidade.
combater, toma um ponto de partida que invariavelmente a faz girar em Esse, certamente, não é o único problema desse período, conforme
falso, permanece cativa do modelo da “consciência”, reitera os prejuízos a leitura de Barbaras. Por exemplo, o modo como a linguagem é tematizada
do “humanismo metafísico” – e propõe uma nova “fenomenologia da na Fenomenologia revela uma insuficiência insuperável: Merleau-Ponty é
vida”. A partir daqui, todos os problemas clássicos da fenomenologia serão levado a pensar a passagem do “gesto do corpo” à “significação linguística”
redefinidos: Barbaras inicia nova etapa. Nossa intenção aqui é apenas de modo empírico, fazendo esta “derivar” daquele. Ou, dito de outra forma:
apontar alguns lances desse caminho. Merleau-Ponty cava uma distinção natural e não fenomenológica entre
Como Barbaras lê Merleau-Ponty? Grosso modo, no período da percepção e linguagem, ou, até mais amplamente, entre natureza e cultura.
tese, ele denuncia o intelectualismo dos anos 1940 e desenvolve – mais do Aos leitores habituais de Merleau-Ponty, é bom lembrar: se isso hoje
que simplesmente “comenta” – a ontologia do último período. Nos anos parece bem assentado (mas também pode ser bem discutido: eu próprio
1940, Merleau-Ponty teria sido demasiado tímido. Beaufret teria notado isso não vou até esse ponto de ruptura entre percepção e linguagem), o fato é
desde o começo, naquele célebre debate na Sociedade Francesa de Filosofia, que àquela época isso não era nada claro (a discussão pode ser levantada,
em 1946: “você não foi bastante radical”, disse ele a Merleau-Ponty. Ora, mas a questão foi claramente exposta por Barbaras).
o problema todo nos anos 1940 gira em torno à crítica merleaupontiana Resulta disso tudo que Barbaras guarda distância dos enunciados
ao idealismo de Husserl. Verdade que Merleau-Ponty sempre procurou mais óbvios de Merleau-Ponty, como, por exemplo: “o mundo não é o
algo como o lado B de Husserl, a “sombra do filósofo”, e Barbaras não correlato de uma consciência”, o que significa dizer: ele não pode ser,
ignora isso, mas, para além disso, seria preciso, de acordo com Barbaras, nem de direito, completamente determinado. E o que importa na leitura de
refutar o idealismo husserliano, e nisso Merleau-Ponty foi tímido, mais Barbaras é esse “nem de direito”, pois Barbaras reconhece que Merleau-
convivendo com ele do que rejeitando-o. A percepção parecia então uma Ponty busca – explicitamente, aliás – superar a determinação completa.
alternativa capaz de ir além daquele idealismo. Percepção tomada em Mas, com os instrumentos de que dispõe nos anos 1940, Merleau-Ponty
sentido inédito: basta dizer que toda consciência, mesmo a mais abstrata, simplesmente não tem como ter êxito. Não haverá preenchimento de
é, para Merleau-Ponty, uma consciência perceptiva. Com o primado da intenção, certamente, o mundo é o mundo sensível e o sujeito, por sua vez,
percepção, Merleau-Ponty procurou assegurar um vínculo íntimo entre o não é uma consciência, mas um corpo, um corpo sensível. Nada disso,
sensível e o inteligível e encontrar assim a alternativa para ultrapassar o contudo, nenhuma dessas grandes inflexões da fenomenologia de Merleau-

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Ponty diante do idealismo de Husserl o leva a bom termo. O núcleo da O que faltava aí, segundo Barbaras? Faltava a originalidade da expressão
objeção de Barbaras não consiste tanto em dizer: o projeto dos anos 40 linguística, que só virá nos anos 1950. Mas então, retrospectivamente, o
não é uma boa alternativa, mas em dizer: Merleau-Ponty não tem êxito percebido deixará de ser uma “positividade natural” e tornar-se-á “voz do
em realizá-lo. O problema não é que a ideia seja falsa, mas que ela não silêncio”. É então que Merleau-Ponty rompe a clivagem entre percepção
é simplesmente alcançada. O espírito e a letra da Fenomenologia estão, e linguagem. Ambas aparecem como momentos do logos, ora logos do
portanto, em desacordo. São muitas as razões elencadas por Barbaras para mundo estético, ora logos proferido. A “expressão” se torna expressão do
apontar o fracasso da Fenomenologia, ou melhor, sua inconsistência. Talvez mundo no duplo sentido do genitivo, sempre lembrado por Barbaras. E é aí
a principal delas, a que organiza todas as outras, seja essa: o campo aberto que o “sujeito” da Fenomenologia perde sua função imperial: já não somos
pela Fenomenologia é residual, é o que resta da recusa do intelectualismo. mais “sujeitos”, somos apenas “pontos de passagem” de uma teleologia que
Por isso mesmo, ele é descrito todo o tempo em negativo. O corpo, por liga natureza e cultura, arquê e telos. O mundo se torna arquê infinita.
exemplo, não é de ordem inteiramente diversa da consciência, ele é antes A ontologia do último período vem sobretudo daí, segundo essa
uma consciência opaca ou incoativa. Logo, o horizonte da racionalidade leitura fina de Barbaras, vem dessa inscrição da idealidade no percebido.
persiste como obsessão a marcar o corpo como simples insuficiência. O Mundo não é mais correlato de uma consciência, ele passa a ter uma
modelo pendular da Fenomenologia também: a crítica ao empirismo é profundidade infinita. Logo, a transcendência é ontológica. A ontologia é
feita a partir do intelectualismo e vice-versa, o que significa dizer que nem a descoberta dessa transcendência originária, que impede definir o mundo
um nem outro modelo é realmente superado. pela presença: de modo radical, o ser do mundo excede toda apresentação.
A grande ruptura na obra de Merleau-Ponty, segundo essa Isso requer uma outra ideia de redução, – e é aqui que Barbaras
leitura inicial de Barbaras, teria se dado com o aparecimento do tema da aproxima Merleau-Ponty de Bergson – uma redução que ultrapasse o
“expressão”. Na Fenomenologia, a transcendência é ainda pensada no modelo da “filosofia da consciência” dos anos 1940. Para essa, o ser é
horizonte de uma “filosofia da consciência”: por isso, de direito, apesar da “puro objeto”, plenamente determinável, e vem daí, desse prejuízo, uma
insistência de Merleau-Ponty em sentido contrário, subsiste a possibilidade implícita “ontologia do objeto”. Aqui, se aborda o ser a partir do nada,
de doação plena, ainda que não de fato. (Por que, aliás, Barbaras privilegia aqui vigora o princípio de razão suficiente, o ser é implicitamente lógico,
a transcendência? Porque ela dá a medida, ao mesmo tempo, do estatuto necessário, resistente ao nada que o antecede e o ameaça. A nova ideia
do corpo e do mundo.) Para Barbaras, a verdade da transcendência será de redução, preparada pela “expressão”, já não busca mais neutralizar
descoberta por Merleau-Ponty a partir da teoria da “expressão”. A idealidade a tese da existência, mas neutralizar o nada como prévio da existência.
era então pensada, na Fenomenologia, a partir de um gesto do corpo, o que Esse passo apontado por Barbaras – de maneira inédita, é bom frisar –
levava Merleau-Ponty a hesitar entre o caráter natural e arbitrário do signo. é pleno de consequências: Merleau-Ponty se apercebe, explorando uma
Ele reconhecia que o signo não é natural, mas reconhecia, por outro lado, dessas consequências, que ele não pode mais conservar a consciência, não
uma “motivação” em gestos do corpo, tomado então como “corpo vivo”. importa em qual forma, que já não basta passar da consciência reflexiva à

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consciência não tética de si, que a ruptura com Husserl tem que ser mais ao mundo. Merleau-Ponty quer conciliar, com aquela generalização, dois
radical, que é preciso aprofundar o que ele havia pensado sobre o corpo, e aspectos aparentemente inconciliáveis: a diferença entre corpo e mundo e
a saída é o aprofundamento da “encarnação”. o pertencimento do corpo ao mundo. Mas então, ao pensar o momento da
A encarnação é aqui o outro lado da moeda: a transcendência “carne única”, ele não pode ignorar a diferença, e, para não perdê-la, se
originária, o mundo como arquê infinita, a não coincidência requerem antecipa e distingue a “carne do mundo” da “minha carne”: essa última é
um novo estatuto para o corpo, de que a encarnação pretende dar conta. se sentir. Com isso, avalia Barbaras, Merleau-Ponty desnuda o preconceito
“Consciência”, por envolver imanência, lembra Barbaras, exclui encarnação. idealista que jamais o abandonou: a univocidade da “carne única” encobre
“Consciência encarnada” simplesmente não existe, é como um círculo uma equivocidade irredutível.
quadrado. A encarnação, por sua vez, se bem pensada, afasta qualquer Bem feitas as contas, a carne própria não pode conduzir a uma só
consciência. “Consciência” tem dupla implicação, ambas vinculadas ao carne. O que daí resulta é um monismo confuso. Barbaras vai distinguir
idealismo: a determinação completa e, ligada a ela, o desconhecimento da então uma carne “ontológica” de outra, “transcendental”. Não é o lugar aqui
inscrição do sujeito. Barbaras vai insistir muito nisso, e a meu ver com toda de entrar em detalhes. Basta dizer que, pela carne “ontológica”, Barbaras
razão: a invalidação do sujeito transcendental e da “adequação”, ambas quer assegurar uma disjunção entre “originariedade” e “intuitividade”,
feitas em nome da encarnação e daquela transcendência originária, isto é, pelo quê ele restringe ontologicamente o escopo da intuição. Se o mundo é
da “não coincidência”. Daí o giro radical de Merleau-Ponty na passagem do co-aparecente em toda aparição, a intuição de um ente pressupõe a doação
corpo para a carne: o corpo nada mais era que uma consciência incoativa. A em carne do mundo, a presença supõe não presença, o originário implica
carne, por sua vez, não é simplesmente o corpo, não é a matéria do corpo, ausência. A carne, portanto, não é um ente, é o mundo como totalidade não-
ela é condição de compreensão do corpo. Em algumas de suas mais belas ôntica: ela é “ontológica”. Esse passo torna irredutível a distinção entre
páginas, Barbaras vai explorar essa tese merleaupontiana tão abstrusa, a “carne própria” e “ontológica”, e por esse meio Barbaras pretende escapar
unidade entre sentir e intramundaneidade. Sentir é sentir do mundo no ao monismo. Por outro lado, a carne é “transcendental”, ou seja, ela não é
duplo sentido do genitivo, como Barbaras gosta de insistir. apenas aquela transcendência que excede toda aparição, o originário que
Ora, que teria havido aqui, segundo Barbaras, na passagem do corpo não pode ser intuído: porque é carne, e não forma, ela será caracterizada
para a carne? Uma “generalização” que levou da carne do corpo à carne do pela “iteração”: a carne passa para o lado daquilo que ela faz aparecer,
mundo. É isso que ele teria aceitado na época da tese e que não vai aceitar e assim “ser” se confunde com “aparecer” – embora não se esgote nele.
mais no período da “fenomenologia da vida”. A “generalização” significa Daqui, Barbaras vai concluir por uma “autonomia do aparecer”, que se
isso: Merleau-Ponty estende a “minha carne” para a “carne do mundo”. torna então imanente ao mundo. Fim do privilégio – de qualquer natureza –
Essa extensão, avalia Barbaras, é feita num passe de mágica, pois Merleau- do “subjetivo”. Fim de privilégio, não insignificância. O “subjetivo” deixa
Ponty é obrigado a pressupor – e esse prejuízo é inadmissível – que o meu de ter papel constituinte e se torna, ele, implicado pela lei do aparecer: é
corpo seja fragmento do mundo. É essa a condição para haver “extensão” porque o ser mundo implica aparição que ele requer polo subjetivo.

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Eis aqui o tournant decisivo, a virada radical tramada por Barbaras: Vida privativa ou vida lacunar?
é ela que permite a ele abandonar o eterno ponto de partida de Merleau- Uma possível resposta de Heidegger à
Ponty e que, na sua avaliação, o levava inexoravelmente ao idealismo,
fenomenologia da vida de Renaud Barbaras
apesar de todas as precauções de sua ontologia final. Não é mais necessário,
pensa Barbaras, partir da percepção: se o “sujeito” se tornou implicado pela
Marcia Sá Cavalcante Schuback*
lei do aparecer, podemos dar um passo adiante e perguntar pelo corpo não
enquanto perceptivo, mas “por ele mesmo”, em seu sentido de ser próprio. A
“carne” é uma má resposta porque ela apenas visa responder a um problema […]
estranho ao corpo, isto é, não ao sentido do corpo tomado “nele mesmo”, O que vive
incomoda de vida
mas ele submetido a um prejuízo idealista (que Merleau-Ponty, frise-se bem,
o silêncio, o sono, o corpo
conserva até o fim). Noutras palavras, o núcleo da objeção de Barbaras a que sonhou cortar-se
Merleau-Ponty reside nisso: Merleau-Ponty submete a percepção – e, com roupas de nuvens.
ela, os seus “momentos” – à racionalidade, ele submete a arquê ao telos. É O que vive choca,
por isso que ele vai, inexoravelmente, se enredar em dificuldades das quais tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
não consegue escapar. O problema último de Merleau-Ponty, malgrado sua
como um cão, um homem,
intenção em sentido contrário, é, na avaliação de Barbaras, a razão. É esse como aquele rio.
núcleo que Barbaras quer superar. Sendo assim, por que ainda surpreender- […]
se que ele seja conduzido a uma “fenomenologia da vida”, isto é, a uma João Cabral de Melo Neto (Cabral de Melo Neto, 4 p. 114)
dimensão anterior a “intenção racional”, a uma dimensão da qual a cultura
não pode senão “derivar”? O tournant de Barbaras é, sem dúvida, bem mais Resumo: A questão que vai guiar minha reflexão é da necessidade de se precisar
radical do que aquele realizado por Merleau-Ponty por volta dos anos 1950, o que seja uma vida filosófica e de que maneira a vida filosófica está relacionada à
ele dá um passo, com a “fenomenologia da vida” que, a meu ver, Merleau- necessidade de se desenvolver uma filosofia da vida. A questão pode ser formulada
Ponty não poderia aceitar. Com Barbaras, decisivamente, a fenomenologia do seguinte modo: são as expressões vida filosófica e filosofia da vida idênticas? De
que modo uma filosofia da vida pode indicar o sentido de uma vida filosófica e vice-
entra em nova etapa.
versa? Trata-se na verdade de uma questão-guia do questionamento mais específico
desse artigo que é aquele de discutir a possibilidade de uma fenomenologia da vida,
From Merleau-Ponty to Barbaras
trazendo Barbaras e Heidegger para uma conversa filosófica.
Palavras-chave  : Filosofia da vida, vida filosófica, fenomenologia da vida,
Abstract: In a particularly succinct approach, this paper presents some snapshots of
Heidegger, Barbaras.
Barbaras’ reading of Merleau-Ponty and the tournant which, vis-à-vis the Merleau-
Pontian work, led the former to a “phenomenology of life”.
* Universidade Södertörn – Estocolmo.
Keywords: Merleau-Ponty, Barbaras, ontology, phenomenology, life.

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Apresentação da questão consciência constituindo vida. Renaud Barbaras parte de uma compreensão
fenomenológica da consciência como o que é, de um lado, intramundana
Filosofia, diz a palavra, é amizade pela sabedoria, filia tes sofias, e, de outro, um exercício de fenomenalização. Enquanto compreensão de
filia tou sofou. Essa amizade filosófica difere, porém, de um mero gosto mundo e estruturação de sentido, consciência é no mundo e para o mundo.
pelo saber e pela erudição, pois em questão está, antes de qualquer saber, a O verbo que designa essa dupla condição da consciência– ser-no-mundo
sabedoria da amizade pelo que nos dá a pensar. Vendo claro a precedência e ser-para-o mundo é, nos diz Barbaras, “viver” (Barbaras 1, p. 9); viver
da sabedoria da amizade relativamente à amizade pela sabedoria, os gregos é o modo de ser da consciência e do “sujeito” à medida que este está em
prezaram mais do que tudo pensar com amigos, pensar junto, descobrindo vida e vive a vida. Viver a vida é um outro modo de dizer tornar-se mundo.
nos banquetes, nos “simpósios”, como se diz em grego, a alegria da vida Esse modo de ser que é a consciência e o sujeito só está vivo ao viver a
filosófica, a vida de pensar entre amigos a amizade pelo que nos dá e nos vida, ao tornar-se mundo e só vive a vida, ou seja, torna-se mundo por
faz pensar. A alegria desse pensar entre amigos deve ser colocada como estar vivo. Considerando a correlacionalidade do vivo e do viver – Leben e
ponto de partida para discutir a sua fenomenologia da vida de Renaud Erleben, ou ainda de vida e mundo, evocando as terminologias de Dilthey
Barbaras, a partir de uma questão precisa: a questão do que seja uma vida e de Husserl- e considerando, ainda, que correlacionalidade significa a
filosófica. A questão que vai guiar minha reflexão é da necessidade de se constituição de um e de outro numa relação recíproca, é mister trazer a
precisar o que seja uma vida filosófica e de que maneira a vida filosófica dicotomia –estar vivo e viver a vida – para um viver mais originário, para
está relacionada à necessidade de se desenvolver uma filosofia da vida. um sentido ainda mais originário de vida, para um “a priori”, a partir de
A questão pode ser formulada do seguinte modo: são as expressões vida onde essa diferença pode ela mesma se constituir. Husserl chamou esse a
filosófica e filosofia da vida idênticas? De que modo uma filosofia da vida priori de “mundo da vida”. Barbaras vai radicalizar a visão de Husserl e
pode indicar o sentido de uma vida filosófica e vice-versa? Trata-se na chamar esse a priori de “vida originária”, a ser entendida como “vida ela
verdade de uma questão-guia do questionamento mais específico desse mesma” (Barbaras 1, p. 9 et ss). Se Husserl chama de fenomenologia a
artigo que é aquele de discutir a possibilidade de uma fenomenologia da volta às coisas elas mesmas, Barbaras conclama a fenomenologia para uma
vida, trazendo Barbaras e Heidegger para uma conversa filosófica. volta à vida ela mesma. Essa radicalização se justifica por uma crítica ao
O ponto de partida para essa conversa é uma compreensão da ‘mundocentrismo’ de Husserl no qual a “vida” que já sempre se deu, a vida
filosofia como fenomenologia, como um pensar desde “as coisas elas onde já sempre se está parece, só pode ser acedida pelos múltiplos modos
mesmas” (Husserl 11, p. 10). Em jogo está a fenomenologia da vida e, de viver a vida, ou seja, pelas múltiplas estruturas de sentido da vida no
portanto, um pensar a vida a partir do mostrar-se ou aparecer da vida viver. Segundo Barbaras, a proposta da fenomenologia da vida deve ir mais
desde ela mesma, da vida em si mesma . Em termos digamos escolásticos
11
além e buscar aceder e, de certo modo, ceder à vida ela mesma para assim
da fenomenologia em questão está a correlação entre consciência e dimensionar a vida do mundo. De certo modo, o que aqui se escuta é a
vida, ou seja, a relação recíproca entre vida constituindo consciência e “suspeita”, evocando o célebre termo de Ricoeur, de que a fenomenologia

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deixou o sentido de vida do mundo determinar aquele de mundo da vida, natureza. Dito em termos mais schellignianos, ou seja, mais metafísico-
tomando a vida basicamente como metáfora da dinâmica de estruturação idealistas, trata-se de admitir como ponto de partida não uma consciência
de sentidos, chamada mundo. Assim “mundo da vida” diria tão somente da vida, no sentido de um genitivo objetivo, mas uma consciência da vida,
devir de mundo, cobrindo de véus o véu espesso do mundo chamado vida. da vida ela mesma fazendo-se consciência, da vida se diferenciando dentro
Mas como aceder à vida ela mesma se a tarefa de buscar um acesso à vida e a partir de si mesma. Consciência é vida diferenciando-se a si mesma,
ela mesma, se uma fenomenologia da vida, é inexoravelmente proposta por visão schelligniana, que Barbaras partilha ao afirmar, por exemplo, que “o
e de um mundo? Em outras palavras: se é mister buscar um acesso à vida humano difere da vida somente diferenciando-se dentro da vida” (Barbaras
ela mesma como diluir a voz gritante do mundo, que em última instancia é 1, p. 48) e que “consciência retira toda a sua possibilidade da vida e só se
a voz gritante do homem, de modo a tornar enfim possível a escuta da fala especifica como consciência humana mediante uma limitação da abertura
silenciosa e do “livro indecifrável” da vida ela mesma? que caracteriza a vida originária” (Barbaras 1, p. 48). Assim entendida,
Várias tentativas de se desenvolver uma filosofia da vida na história fenomenologia da vida equivale a uma “antropologia privativa” (Barbaras
da filosofia no Ocidente ou bem consideram a vida como o que o homem é, 1, p. 48). Por antropologia privativa deve-se entender, em parte, a vida
menos alguma coisa, ou bem definem o homem como o que a vida é, mais humana assumida como sendo ela mesma “vida lacunar”, uma lacuna da
alguma (Barnaras 1, p. 48 et ss)22. A vida tem sido interpretada ora como vida dentro da vida e, por outro, que essa “lacuna” não é privação de vida
um a menos ora como um a mais do que o homem, ora como uma subtração mas o diferenciar-se da vida nela mesma enquanto dinâmica da própria
do e ao homem, ora como o homem que excede e se mostra excesso da vida. Se desde os gregos, a vida foi definida como auto-movimento, o
vida. Isso significa dizer, por um lado, que, na tradição, foi sempre desde que se move desde si mesmo, aqui se propõe partir de um entendimento
o homem e da sua vida que a totalidade da vida se viu determinada e de vida como auto-diferenciação. Homem não é nem vida mais alguma
definida e, por outro, que a vida do homem sempre se definiu e determinou coisa – razão, lógos – e nem vida menos alguma coisa mas “vida lacunar”,
como diferença relativamente à vida ela mesma. As várias filosofias da expressão que Barbaras empresta a Herder (Barbaras 2, p. 174).
vida são assim, de um lado, antropocêntricas e, de outro, solipcistas: o
homem é “a medida de todas as coisas”, no dizer de Protágoras e uma A crítica da fenomenologia da vida de Barbaras à ausencia de uma
“solidão no cosmo”, lembrando uma expressão de Eugen Fink. A tarefa fenomenologia da vida em Heidegger
proposta por Barbaras é de superar essa visão, devolvendo o homem para
a sua pertença à vida ela mesma, ao evidenciar de que modo o seu “ser-na- Para Barbaras, esse ponto de partida para uma fenomenologia da
vida” constitui precisamente uma diferença dentro da própria vida, como vida é, nas suas próprias palavras, “pura e simplesmente a inversa” da
o modo de ser-na-vida é o modo mesmo de ser da vida. O ponto de partida perspectiva de Heidegger (Barbaras 1, pp. 39-85). Ao afirmar a sua posição
de Barbaras mostra uma grande afinidade com a posição de Schelling, como uma oposição a Heidegger, duas questões de imediato se colocam: a
que formula uma “independência” do humano dentro da sua pertença à primeira é se a inversão de uma posição ainda não mantém necessariamente

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os pressupostos da posição a que se opõe. Essa questão conduz para a pela visão de Heidegger de que nem a biologia e nem a psicologia podem
segunda que se pergunta – mas qual é a posição de Heidegger? Uma propiciar um acesso adequado a uma fenomenologia da vida, já que
pergunta se mistura com a outra, pois decisivo passa a ser uma elucidação ambas assumem a vida como “coisa” e, portanto, como algo subsistente e
do que seja o homem para que ele possa ser tomado ora como excesso à simplesmente dado. O perigo do biologismo e do psicologismo é o perigo da
vida ou como privação ou lacuna da vida dentro da vida. coisificação ou “reificação”, como Heidegger vai insistir usando por vezes
A crítica a Heidegger, que ocupa um lugar importante na a expressão de György Lukács, “coisificação da consciencia” (Heidegger
fenomenologia da vida proposta por Barbaras, acompanha em linhas 9, §6 e §83). Não obstante apontar os problemas de toda “ciência da vida”,
gerais a crítica feita por Derrida e outros comentadores (cf. Derrida 6, e nas diversas formas de biologismo e psicologismo, Heidegger parece
Dastur 5). Essa crítica é fundamentalmente uma crítica à ausência de uma sempre recair num antropocentrismo ao afirmar que, enquanto único modo
fenomenologia da vida no pensamento de Heidegger. Barbaras critica a não subsistente de ser, só a presença, só o Dasein no e do homem pode
crítica heideggeriana ao antropocentrismo do humanismo metafísico e propiciar o único acesso ao modo não subsistente e entificado da vida. Desse
anti-metafísico. Para Heidegger um dos grandes problemas do humanismo modo, a vida seria o que se substrai do e ao homem, equivalendo assim
metafísico foi só ter conseguido pensar o homem desde a animalitas, como a uma zoologia privativa. Referindo-se igualmente à tese de Heidegger,
o animal mais alguma coisa, mais razão, linguagem, e lógos, ressentindo-se apresentada nos cursos de 29/30 – Conceitos fundamentais da metafísica
de uma determinação de sua humanitas, de um sentido de humanidade que –, de que o animal é “pobre de mundo” e a pedra é “sem mundo”, quando
não se defina comparativamente e sim a partir de sua incomparabilidade. comparados ao homem “formador de mundos” (Heidegger 10), a “zoologia
Para Barbaras, Derrida e outros, a crítica de Heidegger parece limitada, privativa” de Heidegger e o seu existencialcentrismo parecem no fundo
pois está fundamentada no que Barbaras chamou do “existencialcentrismo” apenas confirmar o antropocentrismo da tradição. Mesmo que presença,
de Heidegger (Barbaras 1, p. 64). Se Dasein, presença, expõe um outro Dasein, deva ser entendida principialmente como vida fáctica e não como
sentido de homem, que não mais o define com base numa ontologia da “homem” ou qualquer determinação entificante e definitiva, a determinação
coisa, ou seja, numa ontologia do susbsistente mas sim do existente e de heideggeriana da vida fáctica parece se ressentir de uma exposição de como
seus modos de existir, é sempre ainda desde a “existência do homem” que a vida fáctica do homem não apenas se distingue mas pertence à totalidade
a vida se define para Heidegger. Em Ser e Tempo, Heidegger vai formular da vida, à vida ela mesma ou “vida originária”. Essa falta se explicita,
sua posição ao afirmar repetidamente que o modo de dar-se da vida desde segundo Barbaras, na falta de uma discussão sobre o animal, sobre o corpo
ela mesma é um modo privativo. Assim, diz Heidegger que “a constituição e a matéria no todo da filosofia de Heidegger. Citando Barbaras, “o corpo
ontológica fundamental do “viver” é, no entanto, um problema em si aparece como o impasse ou o impensado da fenomenologia heideggeriana,
mesmo, e só pode ser desenvolvido através de uma privação redutiva a que embora reconhecendo a sua especificidade não consegue lhe conceder
partir da ontologia da ontologia da presença (do Dasein) (Heidegger 9, verdadeiramente um lugar” (Barbaras 1, p. 66).
§ 41, p. 261). Segundo Barbaras, essa posição é em parte bem justificada

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Não obstante todas as “faltas” da fenomenologia heideggeriana As análises de Barbaras conversam não só com a filosofia de Henri
e apesar do “existencialcentrismo” e seus resquícios antropocêntricos, a Bergson e suas distinções entre instinto e inteligencia, entre a dinâmica
fenomenologia de Heidegger guarda sempre ainda o mérito de ter salientado criadora da vida e a ação criadora do homem mas igualmente com o que
a questão sobre o sentido de “privação” que define a diferença entre a se poderia talvez chamar de arqueologia, palenteologia, antropologia
vida fáctica do homem e a vida ela mesma. Para Barbaras, Heidegger não “negativas” como por exemplo aquelas presentes nas pesquisas de André
pensou porém até às últimas consequências de que modo a vida só se dá Leroi-Gourhan que partem de uma visão da vida humana como vida de
privativamente. É o sentido de vida privativa que requer uma explicitação e capacidades mobilizadas por falta de capacidades. Barbaras refere-se
descrição fenomenológicas que a ontologia fundamental da presença não é igualmente a estudos de uma espécie de biologia negativa como a do
capaz de propiciar. Seguindo inspirações das fenomenologias de Merleau- holandés Luis Bolk que, na sua “teoria da fetalização” apreende a vida
Ponty e de Jan Patocka, Barbaras vai propor uma compreensão do modo humana como uma espécie de neotenia e prematuração, isto é, como a
privativo do dar-se da vida como a dinâmica própria de um “movimento vida de um feto de primata que alcançou maturidade sexual. Em todos
ontológico”, no dizer de Patocka, de um “uma auto-limitação constitutiva essas variações de uma ciência digamos “negativa” da vida, transparece
do viver”, que Barbaras vai definir como desejo (Barbaras 1, p. 373). “Ao também no ámbito das ciências naturais uma visão da vida humana como
afirmar que vida é desejo, Barbaras relê igualmente Freud e Lacan de maneira vida “enraizada numa lacuna ontológica, num defeito e numa falta bem
a indicar como a vida é ela mesma lacunar, desejante, não de algo fora dela mais do que na posse de qualquer qualidade ou do grau superior de uma
mas de sua auto-diferenciação, e assim, dela mesma enquanto um outrar- qualidade determinada” (Barbaras 2, p. 174). A “diferença antropológica”,
se de si mesma. Vida é, numa expressão de Fernando Pessoa, “outrar-se” expressão que Barbaras empresta a Frank Tinland (Tiland 14) é exposição
e assim arqui-movimento do aparecer como diferenciação nas diferenças do movimento de diferenciação da própria vida, da vida entendida como
que aparecem, mediante uma proceso de individuação por delimitação. O sendo nela mesma lacunar. Em lugar de situar a “privação” no modo de
aparecer de vidas individuais, de formas de vida é igualmente o aparecer acesso da vida humana ao todo da vida, Barbaras vai considerar que estar e
do aparecer da vida como movimento de diferenciação. Nesse sentido, o ser vivo já é aceder ao todo da vida originária como vida lacunar.
que aparece como forma delimitada e individuada de vida aparece como Na inversão proposta por Barbaras, em lugar da zoologia privativa
movimento dentro do movimento de diferenciação que é a vida ela mesma. de Heidegger cabe desenvolver uma antropologia privativa, ou seja, uma
Isso significa que, em sua dinâmica própria, vida é separação de si mesma, visão de como o ser-na-vida do homem é ser-da-vida, de modo a apreender
de tal modo que todo vivente é ou bem um êxodo da vida (como o animal) a “diferença antropológica” como um exílio ou separação de uma forma de
ou um exílio da vida (como o homem). Vida é lacunar por ser desejo de vida dentro da vida universal. Não se trata de negar a diferença entre mundo
si mesma como outrar-se e, assim, como separação de si mesma. Nesse e vida, entre homem e animal, entre vida fáctica e vida nela mesma, mas
sentido, a nossa vida, o ser-na-vida própria da vida humana é, como toda de apreender essa diferença em toda a sua radicalidade de movimento e
forma delimitada e individuada de vida, uma negação da vida universal. fenomenalização. Vida é aqui “arqui-movimento do aparecer. Na verdade,

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ela diz o sentido mesmo de ser: nada do que se atribui ao ser escapa da falta sem conteúdo ou objeto. Sendo ela mesma lacunar, a vida é negação
vida” (Barbaras 2, p. 159). Na inversão proposta por Barbaras, é desde o e a morte negação dessa negação. Longe de estar diante da vida, a morte
fundo dinâmico de uma diferenciação de si mesmo que a diferença entre encontra-se atrás da vida. Vida é assim uma negação ativa dessa negação
vida não humana e vida humana se expõe e, com ela, a humanidade do da negacão que é a morte; na morte, a vida é devolvida para o seu fundo de
homem como a vida se negando a si mesma. Barbaras reconhece a sua começo. Em lugar de um ser-para-a-morte, propõe-se aqui o que se poderia
própria posição, que faz ecoar até certo ponto a filosofia da natureza de formular como um ser-desde-a-morte.
Schelling, não tanto na filosofia mas na poesia e, mais precisamente,
na poesia de Rilke e na sua visão do animal como vida do aberto. Aqui Os esboços de uma fenomenologia da vida em Heidegger como uma
também uma oposição a Heidegger é pronunciada, pois a leitura da oitava resposta à fenomenologia da vida desenvolvida por Barbaras
Elegia a Duino feita por Barbaras é igualmente uma discussão crítica da
interpretação de Heidegger, para quem a compreensão rilkeana do “aberto Ao apontar, no que vimos anteriormente, os principais pontos de
do animal”, do “espaço interior do mundo” testemunha uma posição diferença entre a sua posição e a de Heidegger: 1) a diferença entre zoologia
subjetivista e metafísica (Heidegger 8). Em linha com as interpretações privativa e e antropologia privativa, 2) entre o aberto da vida e a presença
de Rilke elaboradas por Roger Munier e Michel Haar, Barbaras busca humana como abertura, 3) entre vida como movimento para a morte e
mostrar como o animal expõe ele mesmo o aberto diferenciando-se em vida como movimento desde a morte, Barbaras mostra os vértices que
si mesmo e de que modo essa auto-diferenciação do aberto animal, do explicam porque Heidegger não podia desenvolver uma fenomenologia da
aberto da vida é, na sua própria negatividade, instauração de consciência. vida. Muito se poderia discutir sobre a leitura de Heidegger proposta por
Em certo sentido, pode-se dizer que é a vida e o animal que excluem Barbaras. Mais decisivo, porém, do que defender ou criticar uma ou outra
o homem e não o inverso. Assim pode-se dizer que o “pensamento” é posição é buscar aprofundar o que a fenomenologia da vida de Barbaras e
“torsão” e “virada” da vida ela mesma. a presumida falta de uma fenomenologia da vida em Heidegger nos dão a
Com a discussão do aberto rilkeano em contraposição à abertura da pensar. O decisivo para a fundamentação de uma fenomenologia da vida,
presença, de Dasein, coloca-se igualmente a questão da relação entre vida que exige um confronto com a tradição da filosofia e da fenomenologia, é
e morte. Mais uma vez, numa oposição a Heidegger, Barbaras vai buscar precisamente a questão da privação, da negatividade, da diferença da vida
mostrar que a ausência de uma fenomenologia da vida no pensamento de nela mesma. Para aprofundar essa questão, gostaria de trazer Heidegger e,
Heidegger deve-se também ao fato de Heidegger incorrer no mesmo no erro mais precisamente, a tentativa que o próprio Heidegger fêz de desenvolver
da visão metafísica da vida que a entende sempre desde a morte, segundo explicitamente uma fenomenologia da vida, num curso ministrado durante
uma “ontologia da morte”, como afirmou Hans Jonas. Para Barbaras o o semestre de inverno de 1919/20, na Universidade de Friburgo e publicado
equívoco consiste em sempre afirmar a morte como negação da vida por sob o título Problemas fundamentais da fenomenologia, Grundprobleme
não se dar conta de cómo a vida é ela mesma negação, lacunar, vida de uma der Phänomenologie, volume 58 das Obras Completas (Heidegger 7).

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Essas preleções têm passado desapercebidas possivelmente por trazerem toujours derrière nous la durée” (Bergson 3, p. 161). A procura é de uma
o mesmo título do curso ministrado em Marburgo em 27 e editado como filosofia e, mais específicamente, de uma fenomenologia viva. Trata-se
volume 24, esse sim amplamente discutido pelo comemtadores. Esse curso de buscar, diz Heidegger, um “posicionamento vivo nas motivações e
do semestre de inverno 1919/20 foi precedido de um outro, intitulado Zur tendências vivas do espírito, um élan vital”, só que bem distinto do que
Bestimmung der Philosophie, vol. 56-57 das Obras Completas, onde a propôs Bergson (Heidegger 7, p. 24).
abertura fenomenológica da experiência do vivente já está tematizada no De onde partir para se desenvolver uma fenomenologia viva da
sentido desenvolvido no curso aquí proposto para discussão. Heidegger vida? Da vida. O que diz essa condição de interioridade e imanência na
preconiza aqui a necessidade de uma “análise estrutural” por oposição a vida de uma fenomenologia da vida? Como sabemos da vida? Já sempre
toda “análise atomizante” do fenômeno do vivo e do vivente. sabemos da vida sem, no entanto, saber como sabemos da vida. A vida
O ponto de partida dessas preleções do semestre de inverno 1919/20 encontra-se tão perto que passa desapercebida. Não podemos tomar
é a relação entre vida filosófica e fenomenologia da vida. Em jogo está distância da vida para ver, saber, pensar a vida porque não apenas estamos
não apenas a vida consciente e subjetiva do homem mas a vida filosófica na vida mas já somos a vida. Só da vida é que podemos nos ver. A primeira
do homem como o “coração intrépido” do homem na vida. Heidegger condição para uma fenomenologia da vida é portanto: 1) uma falta de
exprime a premissa fundamental dessas aulas com as seguintes palavras: distância absoluta da vida em si e para si mesma. Isso talvez nos ajude
“a idéia da fenomenologia é de uma ciência originária da vida” (Idee a entender porque, em Ser e Tempo, ao mesmo tempo em que Heidegger
der Phänomenologie: Ursprungswissenschaft vom Leben” (Heidegger deixa de usar a expressão “vida fáctica” para dizer presença, Dasein, dirá
7, p. 81). Heidegger vai opor ciência originária (Ursprungwissenschaft) repetidamente que a “presença vive numa compreensão de ser”. A falta de
à ciência dos principios (Prinzipwissenschaft), ou seja, vai opor origem uma distância absoluta da vida em si e para si mesma pode ser resumida
à princípio. Por origem e ciência originária, vai entender a ciência que como 2) a condição de bastar a si mesmo da vida, [Selbstgenügsamkeit].
jorra, springen, da própria vida. Em questão está, portanto, a busca de Vida não é, primordialmente, auto-conservação e auto-preservação, mas o
uma fenomenologia que surja da vida e não de uma tradição herdada e que se basta a si mesma, um não precisar buscar nada fora da vida porque
transmitida como “fenomenologia”. A busca é de uma fenomenologia da em todas as suas buscas, descontentamentos e insatisfações, a vida busca
vida equivalente a uma vida filosófica, a uma vida na e da filosofia. Por sempre a si mesma. Bastar a si mesma diz aqui simplesmente que a vida
isso, o problema fundamental dessas preleções não é como descrever a vida é em si. Nenhuma coisa é em si. Em si, só é a vida. Só a vida é nela
nela mesma mas como uma descrição fenomenológica da vida ela mesma mesma. O moto fenomenológico, “para a vida ela mesma” seria assim
jorra e surge da vida ela mesma. O problema é aquele de acompanhar a uma redundância. Toda negação e falta da vida são dentro da vida, são a
“torsão” e a “virada” da vida em que o pensamento da vida pode surgir. própria vida da vida. Aqui também já encontramos um pensamento central
A epígrafe desse curso de 1919/20 é uma passagem de Bergson, que diz: em Ser e Tempo, de que: “a morte é, em sentido lato, um fenômeno da
“nous sommes en train d’ouvrir toujours devant nous l’espace, de refermer vida” (Heidegger 9, § 49, p. 246). Em tudo o que a vida busca, ou seja, o

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que comumente chamamos de insuficência do vivo, e tudo o que nega a de Felix Ravaisson (Ravaisson 13). Saber da vida só é possível porque o
vida, o que comumente chamamos de morte, degeneração, deterioração saber é saber desde um mundo, num mundo, para um mundo, circundante,
do vivo, o que se testemunha é como a vida basta a si mesma, no sentido, compartilhado e próprio. Saber da vida é assim saber de como estamos
de que a vida é sempre dentro da vida. A insuficiência e descontentamento habituados à vida. Por isso Heidegger vai afirmar que “toda vida vive num
do vivo, ou seja, o fato de a vida ter de buscar vida sempre e de novo e a mundo. Tudo o que nos mundos e partes do mundo vem ao encontro, vem
tendência da vida perder a vida, da vida desvitalizar-se confirmam sempre ao encontro no fluxo vivo e sob o traço da vida” (Heidegger 7, p. 36). Com
ainda como a vida está absolutamente dentro da vida, bastando a si mesma. isso se diz que a vida sempre se dá numa direção, num modo de viver. A
Falta de distância e o bastar da vida nela mesma mostram de que modo a vida vivida mostra a obviedade e trivialidade da vida como o modo da sua
vida se dá a conhecer, de início e imediatamente, como auto-evidência. doação imediata, no sentido de ser tão próxima que passa desapercebida
Lembrando sempre de novo que a questão investigada por Heidegger não é e que da vida não há distância possível. Vida se dá para o saber da vida
de como definir a “vida” para se desenvolver uma fenomenologia da vida, como vida do mundo. A vida do mundo, no entrelaçamento de mundo
mas, ao contrário, como definir a condição viva de possibilidade para uma circundante, mundo compartilhado e mundo de cada um, constitui o fundo
fenomenologia na qual a vida possa mostrar desde si mesma o seu sentido, dos hábitos de compreensibilidade e de imediato acesso à vida.
não é possível definir a “vida” sem expor que se está a definir a vida. Em Com isso, se diz igualmente que a vida se dá a conhecer
jogo está a busca de uma palavra que ao nomear a vida nomeie ao mesmo “emocionalmente”, usando sempre a terminologia de Heidegger nessas
tempo o nomear. É a busca de um pensamento que ao pensar a vida pensa preleções, e não teóricamente. Não somos o observador ou o conhecedor
ao mesmo tempo o pensar no movimento mesmo de seu gesto pensante. teórico da minha vida no mundo. Para saber da vida nela mesma, ou seja,
Assim, a auto-evidência da vida – já somos a vida e toda afirmação ou para saber da totalidade originária da vida é preciso que a vida seja trazida
negação da vida já se dá sempre na vida – não se separa de como a vida se para um relevo. Heidegger fala aqui do “caráter de relevo de toda a vida em
auto-evidencia para um saber da vida. A questão não é o que é a vida, mas si” (Heidegger 7, p. 38), usando uma expressão das artes plásticas. O relevo,
como sabemos da vida na vida, desde a vida e para a vida. do latim levo, elevar, levantar, é o que se obtém mediante uma paciente
A vida se mostra, de início e de imediato, na trivialidade da nossa excavação do fundo. No relevo, é o fundo que se excava e a figura, o que
lida, diz Heidegger. “Nossa vida é nosso mundo” (Heidegger 7, p. 33), resulta dessa excavação do fundo, como uma espécie de negativo escultural.
vida se auto-evidencia numa “rítimica pessoal”. Vida se auto-evidencia na Analogamente, é o fundo de compreensibilidade e acesso à vida, a sua
lida com a vida, como “ritmo de vida”. Um conceito fundamental aqui vai proximidade sem distância, a sua obviedade que precisa ser pacientemente
ser precisamente o de “ritmo” e “rítimica”. Vida aparece na dinâmica de a-profundada para que toda a vida nela mesma possa aparecer. A vida nela
estruturação do mundo circundante (Umwelt), do mundo compartilhado mesma só aparece em relevo quando a superficialidade do modo em que
(Mitwelt) e do mundo de “cada um” (Selbstwelt). Essa dinâmica é a a vida se dá a saber como vida do mundo vai pacientemente descobrindo
dinâmica de estruturação de hábitos. Heidegger aqui não está tão distante sua profundidade, ou seja, o fundo de sua constituição e isso num abalo.

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O fundo da vida do mundo deve abalar-se, descobrir o seu sem-fundo e habituada a pensar em determinadas direções. Vida científica, vida teórica
abismo para que o saber imediato e emocional da vida se transforme num é vida que estabilizou o abalo do fundo da vida do mundo em visões
saber teórico da vida. teóricas e em estilos de vida. Essa estabilização trazida por uma teoria é,
Abalado o fundo trivial, cotidiano, óbvio do qual já sempre sabemos para um Heidegger visivelmente discípulo de Husserl, uma desvitalização,
da vida, isto é, o fundo da vida do mundo, exacavando nesse fundo o seu uma Entlebung da vida. À vida pertence não só Ablebung, perda de vida,
sem-fundo, aparecem relevos da vida num saber da vida teórica, que são por Lebenlosigkeit, falta de vida, Unlebendigkeit, não vida, mas, sobretudo,
exemplo a vida científica, a vida artística, a vida religiosa, a vida político- Entlebung, desvitalização. Teoria é desvitalização, pois é estabilização
econômica, etc. Heidegger vai descrever essas figuras do saber da vida e enrijecimento em visões, conceitos e conceituações. Assim, as visões
teórica como estabilizações do abalo do fundo em estilos de vida em que científicas da vida, seja a biologia, a psicologia ou as filosofias da vida são
diferentes níveis de um saber da vida na vida vivida vão se constituindo. de certo modo a visão mais cega da vida, pois, não podendo distanciar-se
Vai buscar acompanhar como o saber cotidiano da vida, o saber que reflete da vida para ver a vida, precisam desvitalizar a vida para conceber a vida à
sobre esse saber em narrativas sobre a vida e o viver – (o nosso papo “psi”) distância. Essa desvitalização é o sentido fenomenológico de objetivação.
transforma-se em teorias sobre a vida onde a atitude científica emerge A tentativa realizada por Heidegger de fundamentar uma ciência
como expressão de conexões estabelecidas mediante reflexão. Heidegger originária da vida enquanto sentido vivo da fenomenologia é um embate e
vai descrever como uma ciência – no sentido mais filosófico do termo, que debate com a visão cega das teorías sobre a vida. Heidegger vai propor não
é o sentido de atitude teórica, surge de várias transformações: primeiro, a supressão ou superação da teoria ou a sua substituição por uma poesía
quando o fundo da vida do mundo se transforma em solo da experiência, em da vida, mas uma fenomenologia da vida que permita o “aprendizado de
seguida, quando o solo da experiência transforma-se em região ontológica desaprender”, para nos valer de um verso de Fernando Pessoa, a desvitalizar
e por fim quando a região ontológica transforma-se numa estabilização a vida para saber da vida. Admitindo a insensatez da idéia de uma ciência
do que ele vai chamar de “lógica concreta”. No fundo dos hábitos do da vida, Heidegger vai propor não a desistência de se buscar uma ciência
viver, a vida se dá imediatamente numa con-fusão, num conjunto de fusões originária da vida mas a busca de uma expressão (visão, saber) da vida
e misturas que Heidegger, valendo-se de um verso de Stefan Georg, vai como vida enquanto se originando e não como vida originária. Nessa
chamar de “tapete da vida”. A vida se dá a saber como tapete da vida distinção, podemos encontrar uma base fenomenológica para discutir
do mundo. Nesse sentido, ela se dá a saber como vida fáctica. Em jogo de modo mais filosófico do que historicista a diferença das posições de
está, mais uma vez, não o que é a vida mas como a vida se dá a saber, Heidegger e de Barbaras.
como a vida se dá para um saber e como um saber da vida pode surgir Vida enquanto (se) originando [Leben als entspringend] significa
da vida. Em jogo está a passagem da vida vivida para a vida filosófica, a vida jorrando da origem, vida jorrando de uma nascente. É vida nascente.
diferença entre a vida não filosófica e a vida filosófica. A vida filosófica Vida enquanto (se) originando é vida transformada, outra vida na vida, é
é no entanto, de início, vida misturada com vida da ciência, com a vida vida (se) outrando. Vida enquanto (se) originando e não vida originária;

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vida (se) outrando e não tanto vida diferenciada. A diferença aqui é entre uma fenomenologia da memória, pois em questão está não só “a vida”
dois sentidos de diferença, uma diferença digamos “real” e uma diferença presente ou o presente da vida, mas a dilatação da vida. Vida nunca é só
“formal”, uma diferenciação dentro da vida e uma diferença entre presente – na sua dilatação que é a memória, vida é distância na proximidade
formas de vida. Vida (se) originando, Leben als entspringend, vida (se) absoluta de si mesma, pois vida é sempre vida depois da morte e antes
outrando e nascente é vida que se distanciou de si dentro da proximidade de nascer. Nesse sentido, pode-se precisar de que modo a morte é um
inalienável da vida. Essa distância na proximidade inalienável, Heidegger fenômeno da vida. Vida depois da morte é a vida como memória, a vida
entende como recordação ou reminiscência, Erinnerung. Vida enquanto como geração, vida enquanto (se) originando, nascente e (se) outrando, a
se originando é reminiscência, lembrar de novo, memória (Gedächtnis), a continuidade da vida na e pela sua própria discontinuidade. Não é vida-
experiência mais expressiva e contundente da distância dentro da absoluta além, mas vida-depois da morte dos antepassados e vida-antes do nascer
proximidade de si mesmo. Memória, diz Heidegger, é “dilatação viva e dos não nascidos: vida se gerando no outrar-se de si mesmo. É vida jorrada
vivaz”, é “dilatação medida pela vida” (lebensmässige Dilatation), numa da nascente, vida como nascente, vida das nascentes. Nascente, a vida
tradução bem literal. Os fatos lembrados não são fatos psíquicos de um que “incomoda de vida”, lembrando o verso de João Cabral que epigrafa
eu olhando o seu passado e se reconhecendo como um eu idêntico a si ese artigo, todo o passado e todo o futuro. Vida enquanto (se) originando,
mesmo no decorrer de um tempo. Os fatos lembrados, podemos ler nessas nascente, outrando-se, memória, é vida depois da morte e antes do nascer,
investigações, sustentam a “rítmica do viver”. É assim que a vida se expõe guardando nela mesma todas as posibilidades e impossibilidades, todo ser
como história. História não é ciência histórica mas vida como originação, e todo não-ser, sendo assim a espessura do viver em cada um um para
ou seja, vida como transformar-se e “outrar-se”, e nesse sentido memória, além de cada um. Espessura é a expressão de João Cabral no Cão sem
dilatação da vida na vida, rítmica do viver, distância dentro da proximidade plumas, que acaba de receber uma bela tradução para o francês de Renaud
inalienável da vida. Assim entendida, história pode ser definida como o Barbaras. Lembrando do poema que começa com os versos:
conviver da vida consigo mesmo, como Mitleben des Lebens, como a
Aquele rio
intimidade da vida consigo mesmo, e nessa acepção como “amor à vida”,
está na memória
vida contente com a vida. Memória não é visão da vida, quer interior ou como um cão vivo
exterior; não é objetivação e nem subjetivação, mas com-passo (Mitgehen) dentro de uma sala.
da vida consigo mesmo. Distância de si na proximidade inalienável de si
mesmo, a memória é a vida em si mesma. E prossegue dizendo
O que vive
Trazendo à palavra a intimidade da vida consigo mesmo enquanto
incomoda de vida
memória, Heidegger descreve a vida como uma separação de si na união o silêncio, o sono, o corpo
de si mesma, como uma descontinuidade contínua e uma continuidade que sonhou cortar-se
descontínua, rítmica do viver. Fenomenologia da vida descobre-se assim roupas de nuvens.

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Cadernos Espinosanos XXVII Marcia Sá Cavalcante Schuback

O que vive choca, dessa sua condição de ser o aceno e, assim, a cena onde a vida se mostra
tem dentes, arestas, é espesso. como aparecer na retração de si mesma. Se vida filosófica pode ser definida
O que vive é espesso
como a busca dessa transparência, então pode-se dizer que vida filosófica é a
como um cão, um homem,
como aquele rio.
sombra-lugar em que a vida ela mesma mostra-se como devir num perecer.
Ao trazer os esboços da fenomenologia da vida de Heidegger para uma
Poderíamos admitir que, em sua fenomenologia da vida, Heidegger discussão sobre a elaboração da fenomenologia da vida de Barbaras, o que se
é mais cabralino que rilkeano, pois apreende a vida mais como a “espessura” buscou foi tentar adensar o sentido de vida privativa como vida lacunar a partir
do viver – como memória – do que como o aberto da vida. Nessa espessura, do modo como a vida no homem é a possibilidade de uma vida filosófica. O
a presença no homem, Dasein, o modo de ser que só sabe ek-sistir e nunca que nos encontros e desencontros entre a fenomenologia da vida desenvolvida
subsistir, esse modo de viver que só sabe viver facticamnete, se pronuncia por Renaud Barbaras e aquela apenas esboçada pelo “joven” Heidegger nos
como o lugar, o “por-aí”, o “Da”, em que a espessura do que vive aparece. dá a pensar é como toda fenomenologia da vida, seja ela positiva ou negativa,
No final do muito discutido curso sobre os Conceitos Fundamentais da privativa ou lacunar pode apenas ser uma fenomenologia em aberto, visões do
metafísica, Heidegger fala da presença humana como lugar desse aparecer sempre ainda a-se-pensar, sempre e de novo, por ser sempre uma doação da
da vida, descrevendo-o como uma ausência que surge da entreluz da vida vida da vida como vida do homem. A tarefa da fenomenologia permanece sendo
(Heidegger 10, § 76). Heidegger refere-se explícitamente aqui a Schelling aquela de lutar contra a força desvitalizante e formalizadora da fenomenologia
para quem o homem, a consciência, é sombra do corpo da vida e não um a fim de ensaiar, sempre e de novo, a elaboração de uma descrição viva do que
corpo vivo separado da força da vida. O que se diz no sentido de vida como nos faz pensar: a “vida ela mesma”.
espessura do viver, como espessura da memória que expõe a vida como a
Vie privative ou vie lacunaire?
dilatação de ser nela mesma um depois da morte e um antes de nascer, é um
sentido de privação, de negação e diferença como aparecer no desaparecer,
Résumé : La question qui guide ma réflexion est celle du souci de préciser ce qui
ou para usar um título de Hölderlin, como “devir no perecer”, Werden im serait une philosophie de la vie et de quelle manière la vie philosophique est en
Vergehen ou ainda como “sonho de uma sombra”, lembrando o bonito verso rapport avec la nécessité de développer une philosophie de la vie. La question peut
de Píndaro na oitava Ode Pítica, skias onar anthropos (Píndaro 12, p. 125). donc être formulée de la façon suivante  : les expressions  «  vie philosophique  » et
« philosophie de la vie » sont-elles identiques ? De quelle manière une philosophie de
Dizer que presença humana é sonho de uma sombra, devir de vida no perecer
la vie peut-elle indiquer le sens d’une vie philosophique, et inversement ? Il s’agit en
de vida, aparecer da vida na sua retração, expõe o modo como a vida gosta
fait d’une question-guide du questionnement plus spécifique de cet article, à savoir la
de esconder-se, como já dizia Heráclito, mostrando-se como vida ela mesma discussion de la possibilité d’une phénoménologie de la vie par le biais d’un dialogue
ao retrair-se na vida do homem. Isso a presença humana expõe sendo vida philosophique avec Barbaras et Heidegger.
fáctica, vida depois da morte e antes de nascer, mostrando como “viver é ir Mots clés  : Philosophie de la vie, vie philosophique, phénoménologie de la vie,
Heidegger, Barbaras
entre o que vive” (Cabral), vida jogada do entre buscando a transparência

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Cadernos Espinosanos XXVII Marcia Sá Cavalcante Schuback

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS feitas por Georg Misch, principalmente em Lebensphilosophie und Phänomenologie.
Eine Auseinandersetzung der Diltheyschen Richtung mit Heidegger und Husserl de
1. Barbaras, Renaud. Introduction à une phénoménologie de la vie, Paris: Vrin, 1930 e Der Aufbau der Logik auf dem Boden der Philosophie des Lebens, reeditado
2008 em 2002. A fenomenologia da vida de Michel Henry apresenta um encaminhamento
fenomenológico no context da filosofia francesa contemporânea.
2. ______. La vie lacunaire, Paris: Vrin, 2011
3. Bergson, Henri. Matiére et Mémoire. Paris: Alcan, 1908
4. Cabral de Melo Neto, João. ”Cão sem plumas” i Obra completa, Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1994
5. Dastur, Françoise. Heidegger et la question anthorpologique, Paris/Louvain:
ed. de l’Institut supérieur de Philosophie Louvain-La-neuve, 2003
6. Derrida, Jacques, De l’Esprit. Heidegger et la Question, Paris: Galilée, 1987
7. Heidegger, Martin, GA 58 Grundprobleme der Phänomenologie (1919/20)
8. ______. Wozu Dichter?, GA 5, (1946) Holzwege, 1977
9. ______. Ser e Tempo, ed. bras. Revisada, Petrópolis: ed. Vozes, 2006
10. ______. GA 29/30. Conceitos fundamentais da metafísica, Petrópolis: Vozes, 2006
11. Husserl, Edmund, Logische Untersuchungen:  Untersuchungen zur
Phänomenologie und Theorie der Erkenntnis. Hua XIX/ vol 1, 1984.
12. Píndaro. Pythiques, 8 Ode, Paris: Les Belles Lettres, 1977
13. Ravaisson, Felix. De l’habitude, Paris: Fayard, 1984
14. Tinland, Frank. La différence anthropologique, Paris: Aubier Motaigne,
1977

Notas

1. Cf. o sentido dado à fenomenologia e ao método fenomenológico por Heidegger


em Ser e Tempo §7.
2. A história da filosofia da vida no Ocidente pode ser narrada e pensada de muitos
modos. A sua base é sem dúvida a ontologia do vivo e do vivente em Aristóteles e a
virada operada pelo cristianismo e a sua interpretação da vida como vida criada. Essa
base foi substancialmente reelaborada na Modernidade a partir das ciências modernas
da natureza e o redimensionamento dos sentidos de vida e morte, nele implicado. A
primeira filosofia da vida que assume esse título como sua tarefa foi elaborada por
Wilhelm Dithey o final do século XIX, seguida, embora numa direção diversa, pela
filosofia vitalista de Henri Bergson e pela filosofia sociológica de Georg Simmel. Dentro
do movimento fenomenológico, destacam-se as investigações fenomenológicas da vida

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Renaud Barbaras, leitor de Husserl

Marcus Sacrini*

Resumo: Neste texto, tenta-se explicitar algumas das principais marcas da leitura
crítica de Husserl proposta por Barbaras. Destaca-se o reconhecimento da importância
de Husserl como o desbravador do campo fenomenológico, mas também como
limitador da compreensão desse campo, o qual seria, segundo o filósofo alemão,
coordenado por tipos eidéticos objetivos.
Palavras-chave: Barbaras; Husserl; consciência transcendental; tipos eidéticos

Inicialmente a obra de Barbaras se constrói como uma reflexão em


torno da fenomenologia de Merleau-Ponty (Cf. Barbaras 1, 3, 4). E já em
seus primeiros textos, nota-se o esforço de esclarecer qual é o legado de
Husserl a partir do qual o próprio Merleau-Ponty pode se denominar, ao
menos por um período, como “fenomenólogo”. Esse esforço ganha destaque
quando Barbaras dedica um livro inteiro a Husserl, publicado inicialmente
em 2004 e numa segunda edição revista em 2008 (Cf. Barbaras 2). E se trata
de um livro especial, de uma introdução à filosofia de Husserl. Notemos
que nenhum outro filósofo recebe de Barbaras uma introdução, somente
Husserl. Por sua vez, quase todos os outros filósofos estudados por Barbaras
se posicionam em relação ao legado husserliano para construir as suas
posições filosóficas. Assim, justamente pelo fato de que tantos caminhos já
foram trilhados no domínio fenomenológico seja então necessário retornar
à fonte e demarcar com cuidado quais foram os gestos fundadores dessa
tradição tão vigorosa no correr do século XX que é a fenomenologia. Daí a
importância de uma introdução à filosofia de Husserl.

* Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.

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Cadernos Espinosanos XXVII Marcus Sacrini

E o que Barbaras acentua em sua introdução? O texto é centrado, em cada tipo de ser corresponde um sistema de atos de consciência por meio
grande medida, nos anos de formação da fenomenologia, inicialmente como dos quais o sentido desse ser é constituído. E aqui a fenomenologia se
psicologia eidética, nas Investigações Lógicas (de 1900-1), e posteriormente configura como uma investigação dos modos subjetivos de atestação
como ciência transcendental, em Ideias I (1913). Há aqui muitos temas comuns enquanto condições de sentido e legitimidade do conhecimento e mesmo
a essas duas fases de desenvolvimento, que justamente marcam a unidade da experiência de qualquer ser concebível. Essa configuração, esboçada
de uma só disciplina. Barbaras nos chama a atenção, por exemplo, para a nas Investigações Lógicas, atinge a sua maturidade a partir de 1906-7, com
centralidade temática de uma tese apresentada talvez pela primeira vez nas a apresentação da fenomenologia transcendental. E é como investigação
Investigações Lógicas, e ainda em vigor até mesmo na última obra publicada transcendental que Husserl se dedica a desenvolver os principais problemas
por Husserl em vida (A crise das ciências europeias e a fenomenologia da fenomenologia, aqueles que justamente sedimentam um campo de
transcendental), a tese da correlação entre ser e modo de atestação ou doação trabalho a partir do qual tantos filósofos têm se formado.
do ser para a consciência. A ideia em pauta é que só pode haver afirmação Deve-se notar aqui que essa delimitação transcendental da tarefa da
legítima de qualquer tipo de ser se se reconhece concomitantemente qual é fenomenologia supõe certas decisões teóricas de Husserl não partilhadas por
o modo de acesso subjetivo, imediato ou mediato, a tal ser. E essa tese não muitos de seus epígonos. Essas decisões limitariam o alcance da investigação
tem uma validade meramente empírica, limitada a constatações factuais fenomenológica ao forçar uma certa interpretação da constituição do sentido
contingentes. Husserl pretende lhe atribuir a validade de um a priori universal, de toda fenomenalização. Tem-se em vista aqui a dita virada idealista de
fundado nas características essenciais puras da consciência e do ser em geral. Husserl, concretizada em Ideias I e criticada por muitos de seus leitores.
Para todo ser concebível, sugere Husserl lá no § 47 de Ideias I (Husserl 5), Nesse texto, Husserl teria submetido o sentido de qualquer experiência
deve-se considerar que a experienciabilidade faz parte da sua essência, de possível aos poderes constituintes da subjetividade transcendental, a qual
maneira que nada impediria por princípio a sua doação para uma consciência portaria em si a chave de ordenação do próprio mundo. E em relação a esse
possível. Barbaras extrai desse gesto husserliano a conclusão notável do fim da tópico a contribuição de Barbaras é fundamental. Pois ele não se limitou
cisão clássica entre ser e aparecer (Cf. Barbaras 2, p. 92-96). Husserl mostraria a apresentar uma introdução geral ao pensamento de Husserl, no sentido
que a fenomenalização do ser não é sinal de limitação antropológica, como de mapear os marcos que circunscrevem o domínio com base no qual a
se a humanidade estivesse destinada a captar somente uma falsa aparência tradição fenomenológica se desenvolveu. Barbaras também se esforçou por
do mundo, uma vez que o ser verdadeiro (independente das manifestações localizar aquilo que já na fundação husserliana da fenomenologia obstrui
fenomênicas) lhe escaparia. Na verdade, Husserl, teria estabelecido que todo o acesso à fenomenalização do ser em toda a sua riqueza. E os resultados
ser transcendente concebível envolve a referência a uma consciência possível aos quais se vai chegar aqui são sem dúvida surpreendentes, já que no
em sua própria estrutura eidética. interior da fenomenologia transcendental Barbaras aponta para algo que
Esse “a priori da correlação” delimitaria o âmbito mais geral da bloqueia muito mais o entendimento da fenomenalização do ser em toda
investigação fenomenológica, à qual caberia explicitar de que maneira a a sua amplitude do que a tão criticada (como atestação de um idealismo

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Cadernos Espinosanos XXVII Marcus Sacrini

injustificado) subjetividade transcendental. Eu vou tentar repor aqui ao objetividade possível (mundos ordenados, mundos desordenados e até
menos o núcleo central da argumentação de Barbaras, tal como exposta em não-mundos, como Husserl chega a mencionar), o que ocorre com a
seu artigo “Merleau-Ponty e a raiz do objetivismo husserliano”, publicado consciência, considerada em suas características essenciais. E Husserl
em Le tournant de l’expérience (Cf. Barbaras 3, p. 63-80). afirma que diante de uma transcendência caótica o fluxo da consciência
De início, gostaria de notar que a impressão de que Husserl seria certamente modificado, já que não haveria possibilidade de estabelecer
defende uma consciência transcendental ultra-poderosa pode ser desfeita nexos empíricos ordenados e nem de fundar um conhecimento racional
com a leitura cuidadosa de alguns parágrafos do texto em que justamente o sobre esses nexos, mas em termos gerais a consciência não deixaria de ser
domínio da filosofia é apresentado como aquele da “consciência absoluta”, o que ela é. Quer dizer que em sua estrutura eidética mínima, a saber, como
a saber, Ideias I. É preciso cuidado aqui com o termo “absoluto”, que pode fluxo de vivências ordenado segundo a temporalidade interna, a consciência
gerar confusões. Husserl o utiliza ao menos em dois sentidos. No § 46, a é independente do mundo empírico ordenado, e mesmo independente de
consciência é designada absoluta porque é um tipo de ser que se manifesta qualquer outra variante imaginariamente concebível de mundo: ela seria
na percepção imanente, de maneira que aí a sua existência não pode consciência em correlação com quaisquer dessas variantes, de maneira que
por princípio ser negada ou mesmo posta em dúvida. Em contrapartida, nenhuma delas determina o seu ser-consciência.
o mundo sempre se doa pela percepção transcendente, a qual só o É assim que Husserl apresenta a consciência como ser absoluto,
apreende parcialmente e pode ser futuramente corrigida, de maneira que ser que não carece de nenhuma coisa ou mundo em particular para ser o
o ser mundano que aí se manifesta sempre é contingente. Além disso, nos que é. Por outro lado, Husserl caracteriza o mundo como sempre relativo
parágrafos 47 e 49, argumenta-se que a consciência é absoluta porque ela à consciência, e mesmo dela dependente, uma vez que é somente por meio
é esfera fechada de ser, ou seja, um todo independente de qualquer outro dos modos de atestação subjetivos que o ser do mundo pode ser afirmado
domínio para ser o que é. como tal. Diante desses resultados não é de se espantar que muitos autores
É esse sentido que me interessa. Cabe reconstruir rapidamente vejam nessa ideia de “consciência absoluta” uma entidade super-poderosa
como é que Husserl chega até ele e o que está aqui implicado. A questão capaz de constituir o sentido de ser do mundo como bem lhe aprouver. Mas
que aqui move o filósofo é saber se em termos de características eidéticas é aqui que precisamos refletir cuidadosamente sobre o texto de Husserl.
puras a consciência está ligada ao mundo ou se há somente uma correlação Atentemos para o seguinte ponto: a conclusão de que a consciência seria
contingente entre ambos (Cf. Ideias I, § 39). Para responder a essa questão, a mesma diante de qualquer configuração mundana possível indica na
Husserl propõe, no § 49 de Ideias I, um exercício de variação imaginária verdade que ela não é condição suficiente para que um mundo ordenado
dos componentes que delimitam eideticamente aquilo que é o mundo. Esse de coisas se apresente, que por si só a consciência não é capaz de constituir
exercício almeja conceber situações em que esses componentes deixam um mundo racional. Notemos bem a seguinte tese presente no § 49: se
de vigorar ou, como Husserl sugere, são destruídos em pensamento. supomos a consciência diante de uma massa caótica de eventos, não
Em seguida, trata-se de verificar, em relação a todas essas variantes de poderia haver nexos de experiência que permitissem o estabelecimento de

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Cadernos Espinosanos XXVII Marcus Sacrini

um saber racional. Ora, aqui o que se sugere é que as condições necessárias Husserl supõe aqui que o mundo de nossa experiência deve sua
para atribuir um sentido racional, ordenado para a experiência não vêm ordenação a uma armadura de características eidéticas puras, as quais
só da consciência. Quer dizer que Husserl jamais assumiu um idealismo prescreveriam as regras de manifestação dos conteúdos parcialmente
absoluto, uma posição que derivaria da consciência todas as condições de apreendidos pela consciência. Ocorre, desse modo, uma sobreposição, ao
sentido da experiência. Não, certas condições para a manifestação de uma campo de fenômenos, da noção idealizada de objeto. Para Husserl, a coisa
experiência ordenada estão enraizadas no próprio correlato transcendente; percebida não é senão a síntese de aspectos fenomênicos que se manifestam
essas condições faltariam nas variantes imaginárias de mundos caóticos, o numa série interminável; mas, como bem nota Barbaras, essa série é
que comprova que elas nada devem à subjetividade transcendental, a qual apresentada como uma “progressão orientada” (Barbaras 3, p. 69), algo que
continuaria a ser o que é, impassível, diante de qualquer transcendência não é nem um pouco óbvio. Opera aqui uma idealização não questionada, a
imaginável, mas incapaz por si só de atribuir sentido ordenado à experiência saber, aquela segundo a qual a infinidade do processo de doação da coisa é
e criar um mundo de coisas. tratada como uma sequência de eventos linearmente percorrível, sequência
Cabe então perguntar: como Husserl explica essas condições de que somente atualizaria as características eidéticas puras, as quais seriam
sentido não diretamente ligadas à consciência, condições da manifestação as responsáveis pelas regras de síntese dos fenômenos.
de uma experiência ordenada? Aqui veremos de que maneira, ao Por meio da idealização objetivante da infinidade da manifestação
analisar a resposta de Husserl, Barbaras oferece uma análise luminosa das coisas, Husserl sustentaria que os dados percebidos anunciam uma
dos limites da concepção husserliana da fenomenologia. Para Husserl, unidade plenamente determinável para além de suas manifestações parciais,
a experiência de um mundo ordenado é paulatinamente sintetizada pela uma unidade que, ao menos em princípio, a consciência poderia apreender,
consciência. Os eventos e coisas transcendentes sempre se mostram caso seu transcurso de experiência se estendesse indefinidamente. As
de maneira perfilada, parcial, de modo que somente no decorrer de um manifestações fenomenais parciais incluiriam, ao menos idealmente,
certo percurso da experiência se pode então atestar a experiência de a possibilidade de total determinação objetivante. Assim, segundo a
uma coisa como sendo ou não sendo tal e tal. Mas o que é que coordena fenomenologia husserliana, as aparências parciais da percepção são
esse percurso da experiência? Já vimos que não pode ser somente a coordenadas pela idéia de objeto, a qual garantiria a possibilidade de plena
consciência, que por si só não constitui a experiência de um mundo determinação do mundo fenomenal.
ordenado. Husserl sugere no § 47 de Ideias I que cada experiência Nesse sentido, a fenomenologia husserliana é uma filosofia objetiva,
perfilada atual situa os seus dados em horizontes indeterminados de tal como sugeriu Merleau-Ponty nas notas de trabalho publicadas em O visível
novas experiências, horizontes passíveis de determinação em novas e o invisível (Cf. Merleau-Ponty 6, p. 217), notas que serviram de inspiração
vivências conforme uma progressão prescrita pelo tipo eidético de cada para essa análise de Barbaras. Husserl sustenta que os fenômenos parciais da
coisa em questão. Como é que Barbaras interpreta essa resposta de percepção supõem a ideia de um mundo de objetos determináveis. O aparecer
Husserl ao problema da ordenação da experiência? fenomênico, ao menos no nível da percepção, é então concebido como um

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Cadernos Espinosanos XXVII Marcus Sacrini

interminável processo de perfilação de coisas determináveis em si mesmas, Referências bibliográficas


perfilação coordenada pelo tipo eidético da coisa ou evento em questão.
1. Barbaras, R. De l’être du phénomène. Sur l’ontologie de Merleau-Ponty.
Dessa maneira, a fenomenologia, ao descrever a constituição do sentido das
Grenoble: J. Millon, 1991.
coisas, longe de atribuir um poder arbitrário à consciência transcendental, 2. ______. Introduction à la philosophie de Husserl. Chatou: Éditions de la
submete essa última aos tipos eidéticos puros dos objetos, que funcionam Transparence, 2004.
como regras ideais da ordenação dos dados transcendentes manifestados 3. ______. Le tournant de l’expérience. Recherches sur la philosophie de Merleau-
parcialmente em uma progressão racionalizada. Assim, a análise husserliana Ponty. Paris: Vrin, 1998.
4. ______. Merleau-Ponty. Paris: Ellipses, 1997.
interpreta a fenomenalização do ser como síntese paulatina de objetos para
5. Husserl, E. Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen
a consciência. Há aqui, como mostra Barbaras, uma idealização do campo Philosophie. Erstes Buch: Allgemeine Einführung in die reine
fenomenal por meio de um domínio eidético puro, que portaria as regras do Phänomenologie. Husserliana (Hua) III-1. Haag: Martinus Nijhoff, 1977.
desenrolar da experiência factual. Essa idealização objetivante obstruiria o 6. Merleau-Ponty, M. Le visible et l’invisible. Paris: Gallimard, 2001.
acesso por exemplo ao ser bruto apontado por Merleau-Ponty, ser que não se
submeteria a nenhum processo de idealização racionalizante. A possibilidade
de tematizar fenomenologicamente esse ser bruto supõe a crítica da submissão
da experiência sensível a tipos eidéticos puros que constrangeriam o aparecer
fenomenal a ser sintetizado como aparecer de objetos. Assim, é verdade
que muito já se criticou a ênfase husserliana na subjetividade constituinte
como uma distorção do processo de fenomenalização do ser, mas pouco
se nota as consequências da suposição de um domínio de essências puras
objetivas regulador do aparecer fenomenal. E apontar para uma crítica
dessa objetivação husserliana do campo fenomenal, essa foi uma lição que
aprendemos com Renaud Barbaras.

Renaud Barbaras, reader of Husserl

Abstract: One tries to make explicit, in this text, some of the main marks of Barbaras’
critical Reading of Husserl. One highlights the acknowledgment of Husserl not
only as founder of the phenomenological field but also as someone who limits the
understanding of this field, which would be, according to the German philosopher,
coordinated by objective eidetic types.
Keywords: Barbaras; Husserl; transcendental consciousness; eidetic types

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A percepção segundo Barbaras

Leandro Neves Cardim*

Resumo: Este artigo pretende apresentar o conceito de percepção assim como o


interpreta o filósofo francês Renaud Barbaras. Ele parte da recolocação do problema
da percepção entre imanência e transcendência para indicar os traços fundamentais
que caracterizam este fenômeno segundo seu próprio ponto de vista: o sujeito da
percepção como sujeito vivo e a essência da vida como desejo. Não se trata, para
ele, de aproximar-se da percepção através daquilo que ela não é. Para compreender
verdadeiramente a percepção é preciso nos deixar formar junto à própria experiência
perceptiva, ou antes, é preciso pensar segundo a própria percepção.
Palavras-chave: Barbaras, percepção, movimento, desejo, vida.

O tema da percepção é antigo no percurso filosófico de Renaud


Barbaras. Se fosse o caso de traçar a sua gênese seria interessante rastrear
sua eclosão desde seu livro pioneiro Do ser do fenômeno. Sobre a
ontologia de Merleau-Ponty de 1991, mas isto exigiria um tempo extra
que não podemos dispor aqui. Dentre vários outros textos publicados
sob o signo da percepção, há dois que especialmente nos interessam: A
percepção. Ensaio sobre o sensível publicado pela primeira vez em 1994, e
O desejo e a distância. Introdução a uma fenomenologia da percepção de
1999.1 Através de seu trabalho sobre a percepção, o autor se lança na vida
filosófica não só como intérprete da história da filosofia, mas, sobretudo,
como alguém que exprime seu próprio ponto de vista posicionando-se
em relação à tradição filosófica: ele reformula o problema da percepção
de tal modo que a solução que surge de suas páginas aponta para novos
horizontes abertos por sua própria interrogação filosófica.

* Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná. E-mail: lnc@ufpr.br.


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Cadernos Espinosanos XXVII Leandro Neves Cardim

Aqui, pretendo apenas delinear a interpretação fornecida por encontrava aí antes de nós. Por outro, somos nós mesmos que fazemos
Renaud Barbaras do sujeito da percepção como sujeito vivo e da essência tal experiência, ou melhor, é inegável que quem faz esta experiência é o
da vida como desejo. Para ele é preciso uma interpretação da vida que próprio sujeito da percepção através de seus órgãos dos sentidos. Eis o
dê conta do enraizamento tanto da percepção quanto do conhecimento no modo como Barbaras formula o problema em questão: “como é possível
seio da própria vida. Neste contexto, a consciência humana se revela uma partir de estados subjetivos, imanentes e, portanto, relativos, e ter acesso
possibilidade da vida, ou antes, a vida surge como a “verdadeira condição a isto que repousa em si e é relativo apenas em relação a si mesmo?
de possibilidade” da consciência (Barbaras 8, p. 7). Para compreendermos Como pode o vivido alcançar uma coisa espacial que lhe é profundamente
isto é preciso “pensar a percepção a partir da vida” (Barbaras 3, p. 23). Mas, estranha?” (Barbaras 3, p. 35). Para o filósofo devemos conciliar estas duas
antes de chegar aí, devemos indicar, inicialmente, que a percepção como vias aparentemente contraditórias: o fato de que a percepção se faz aqui no
modo de acesso ao mundo de objetos exteriores exige uma filosofia especial mundo e de que sou eu mesmo quem faz tal experiência. Para compreender
que não se contente em estudar a percepção “como um setor do Ser dentre a conciliação proposta é indispensável partir e ater-se à experiência
outros” (Barbaras 4, p. 28). Trata-se, ao contrário, de fazer experiência imediata, pois “a experiência é esta conciliação” (Barbaras 3, p. 34). Isto
da percepção em sua singularidade e retificar os instrumentos filosóficos significa que não podemos mais submeter nem o objeto da percepção, nem
através dos quais tal experiência deve ser reinterpretada. A verdadeira o sujeito da experiência às categorias metafísicas disponíveis. Na verdade,
filosofia da percepção é uma filosofia para a qual “o objeto percebido libera “é a própria percepção, enquanto originário acesso à realidade, que pode
o sentido de ser de todo ser” (Barbaras 12, p. XVI). Se for verdade que a libertar o sentido” (Barbaras 3, p.35). Para apreendermos o sentido de ser
tradição filosófica ao mesmo tempo perde a especificidade da experiência do real devemos mergulhar nele através da percepção, já que é através dela
perceptiva e oculta seu sentido original, compreende-se a razão graças que temos a iniciação à coisa e ao seu significado.
à qual, segundo Barbaras, “a tarefa de uma filosofia da percepção não é Se procurarmos acessar a percepção através de algo que ela não
tentar se apropriar da percepção a partir de categorias de que ela dispõe, é, nós a perderemos, ou antes, nós não a encontraremos. É isto que ocorre
mas, antes, de se deixar reformar ao seu contato; ela não deve tentar pensar com a tradição. Sob a rubrica do empirismo e do intelectualismo a tradição
a percepção, mas pensar segundo ela” (Barbaras 4, p. 28-29).2 opera com um duplo gesto: por um lado, ela reduz a percepção à outra coisa
A reformulação e a reestruturação do problema da percepção me que ela mesma e, por outro, fecha-se no interior do círculo vicioso das
parecem o eixo central a partir do qual é possível compreender a nova alternativas ao desmembrar a unidade prévia. Trata-se de soluções abstratas
solução proposta por nosso autor. Tal problema deve ser posto e situado que não nos dão a percepção efetiva e que, na verdade, põem em relevo,
entre as duas dimensões ou elementos que caracterizam e exprimem por contraste, não só a oposição, mas, principalmente, a cumplicidade do
a experiência perceptiva: a transcendência e a imanência. Por um lado, empirismo e do intelectualismo em função de um prejuízo muito profundo.
encontramos na percepção um modo de acesso à realidade tal como ela Atendo-se ao resultado da percepção – o objeto percebido (a coincidência
aparece em si mesma, através dela tomamos contato com algo que já se com a qualidade sensível no empirismo e a adequação intelectual do

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Cadernos Espinosanos XXVII Leandro Neves Cardim

espírito ao significado no intelectualismo) –, a tradição conclui daí que subjetividade à medida que a percepção é percepção das coisas mesmas”, é
há uma plenitude da coisa. O modelo do objeto é, então, projetado sobre a verdade, também, que a percepção “remete à subjetividade já que as coisas
experiência: “a presença [da coisa] é sinônimo de plenitude” (Barbaras 3, não possuem realidade fora da sua percepção” (Barbaras 8, p. 149). Segundo
p. 59). A determinação do objeto passa, assim, a caracterizar o ser daquilo Barbaras, foi Husserl quem encontrou a percepção e a interpretou no sentido
que é. Apenas de modo pleno a realidade pode ser dada, apenas enquanto de uma intencionalidade específica, propondo, com isto, um novo modo de
preenche a consciência de ponta a ponta é que a coisa se apresenta. Este resolver o problema da unidade e da multiplicidade, do sentido e do sensível.
ponto de vista põe em relevo a ontologia do objeto submissa ao princípio de “Husserl foi o primeiro a ter reconhecido e evidenciado a especificidade
razão suficiente. A realidade segundo esta ontologia se caracteriza a partir da percepção – intuição doadora originária que é, a este título, fonte de
da velha questão “por que existe algo antes que nada?”. Segundo Barbaras, direito para o conhecimento – e, consequentemente, a sua irredutibilidade
na esteira de A evolução criadora de Bergson, não podemos pensar o ser à sensação ou à intelecção” (Barbaras 3, p. 7).5 Ora, para apreendermos
como se ele se destacasse sobre o fundo do nada. O que temos aqui é, a especificidade da percepção é preciso lembrar a teoria husserliana da
na verdade, um “falso problema” que “se cristaliza no uso do princípio doação do objeto por perfis (Abschattungen), momento em que nosso autor
de razão suficiente” (Barbaras 4, p. 66). Dizer que o ser é mais que o
3
nos recorda que o conceito de perfil nomeia uma “dupla relação”: “o perfil
nada, que o ser resiste ao nada, é pensá-lo como uma realidade lógica. Isto apresenta o ‘modelo’ (o objeto), ele introduz o objeto; mas, ele é apenas
implica, necessariamente, pensar o ser como objeto, como positividade, um perfil, isto é, ele o apresenta de modo parcial, fragmentário. O conceito
enquanto o nada seria o negativo. Eis aí a contrapartida da interpretação de perfil nomeia a ambivalência do aparecer: no perfil, algo aparece, de
do ser como determinado, a saber, a compreensão da existência em uma tal modo que sua transcendência se encontra preservada. O que quer dizer
localização espaço-temporal que não repercute em nada no pensamento; que o perfil se apaga ou se ultrapassa em proveito do objeto e, ao mesmo
existir seria, apenas, estar situado em algum lugar. A consequência disto tempo, recobre, vela o objeto ao manter a distância. O aparecer sob o qual
está em que a consciência é reconhecida como o lugar apropriado para a coisa se dá a mim é e não é a coisa: no aparecer, a própria coisa se
a essência. Compreende-se, então, que para a tradição haja sempre um apresenta, mas como outra que a apresenta” (Barbaras 5, p. 106). A leitura
abismo entre a essência e aquilo que a manifesta.4 de Barbaras do livro Ideias I de Husserl nos mostra que a teoria da doação
Retomemos o problema da percepção: com que arsenal conceitual da coisa por perfis tem uma dupla frente de ação que poderia nos ajudar
enfrentar o paradoxo que afirma, por um lado, que a percepção é percepção a encaminhar o paradoxo da percepção: em primeiro lugar, a função do
de alguma coisa e, por outro, que esta coisa sempre aparece para alguém? perfil é de manifestação do objeto, mas isto não significa que o perfil se
Formulado desta maneira podemos antecipar a importância dos trabalhos da anule em benefício do objeto. Por isto mesmo, vale observar, em segundo
fenomenologia, já que para esta escola há uma ambiguidade característica lugar, que o perfil recobre o objeto que, por sua vez, se apresenta sempre
da percepção que não permite àquele que a analisa abrir mão de nenhum como uma ausência.6 Por um lado, o perfil apresenta ou desvenda a coisa,
dos dois lados, pois se é verdade que a “realidade percebida escapa da por outro, o perfil é parcial, já que mascara, oculta ou dissimula a própria

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coisa.7 O que deve ser reconhecido aqui é a estrutura de doação – abertura reduzida ao ser positivo do vivido. A fenomenologia husserliana da razão
e ocultamento da coisa –, que determina eideticamente a percepção. Na permanece “tributária de pressupostos, de categorias, de conceitos, que
percepção temos acesso ao objeto, mas nunca uma posse exaustiva dele. 8
não são manifestamente tirados da fenomenalidade” (Barbaras 6). Através
Se nem mesmo Deus pode possuir a coisa em sua transparência, isto é, da exigência de proximidade para com o fenômeno, Barbaras nos alerta
adequadamente, resta que a inadequação e a parcialidade fazem parte da para o fato de que há uma arbitrariedade na paleta conceitual de Husserl.
determinação da essência do objeto percebido que não é, por sua vez, um O pai da fenomenologia não retira seus conceitos da estrutura daquilo
vivido (Erlebnis) cuja essência seria caracterizada pela identidade do ser que é descrito: “Husserl se impede assim de pensar até o fim a percepção,
e do aparecer. Como compreender, agora, o correlato da coisa percebida, todavia, ele foi o primeiro a notar sua especificidade” (Barbaras 3, p. 88).
ou melhor, como compreender o sujeito para o qual a coisa aparece Se o sujeito da percepção não é a consciência, quem ele poderia
segundo modos subjetivos de doação? Segundo Barbaras, a resposta ser? Profundo conhecedor da obra de Merleau-Ponty, Barbaras faz
husserliana é “decepcionante”, pois há uma defasagem entre a descrição uma revisão da solução que enfrenta o problema da percepção a partir
da percepção por perfis e a interpretação oferecida por Husserl através da da relação do corpo próprio com o mundo percebido. Para o autor de O
teoria da constituição. Resumindo: é preciso afastar a ideia de que seria primado da percepção e suas consequências filosóficas, “perceber é tornar
a consciência que constitui o objeto da percepção. Não podemos tomar a presente algo com a ajuda do corpo, a coisa tendo sempre seu lugar em
consciência como ponto de partida, e isto, sob pena de não conseguirmos um horizonte de mundo, e a decifração consistindo em colocar todos os
mais nos afastar dela. O sujeito da percepção não é uma consciência, o ato detalhes nos horizontes perceptivos que lhe convêm” (Merleau-Ponty 20,
da percepção não é uma noese, o fenômeno da percepção não é um noema. p. 104). O próprio Merleau-Ponty nunca imaginou formular uma filosofia
Para compreender bem isto, é preciso mostrar, como faz Barbaras, que da percepção sem aproximar-se dos seus desenvolvimentos concretos.
Husserl ainda é tributário do modelo da ontologia do objeto cara a todas as Barbaras nos mostra que, ao trabalhar com as categorias da filosofia
metafísicas clássicas: “Husserl permanece vinculado a uma metafísica da fenomenológica e com os resultados da psicologia da forma, Merleau-
consciência que confere a esta o estatuto de um ser positivo. A certeza de si, Ponty interpreta o sujeito da percepção como corpo próprio que encarna a
própria do eu, é imediatamente interpretada como autodoação, percepção consciência e cujo correlato é o mundo vivido. Porém, mesmo em textos
de si, isto é, presença de um objeto, apesar de que este último não seja outro como O visível e o invisível, “falta uma teoria da subjetividade perceptiva
que o próprio vivido” (Barbaras 3, p. 87). Esse é o pressuposto husserliano que seja adequada à estrutura do campo fenomênico” (Barbaras 3, p. 13).
que deve ser criticado: aqui também o ser se destaca sob o fundo do nada. O Mais ainda: Merleau-Ponty permanece
que é o mesmo que dizer que “a fenomenologia husserliana não escapa da
tributário até o fim da dualidade inerente ao conceito de corpo
metafísica no sentido em que Bergson a entende” (Barbaras 4, p. 66). Seja
próprio, dualidade do interior e do exterior, da consciência
como for, a especificidade do percebido não é alcançada através do modelo e da exterioridade: o corpo permanece o ‘veículo do ser-no-
do objeto, assim como a especificidade do sujeito intencional não pode ser mundo’ e a consciência ‘o ser para coisa por intermédio do

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corpo’. Mais precisamente, ele reconhece uma dimensão consciência é importante porque através dela podemos apreender um dos
de existência original, da qual deriva a possibilidade da objetivos próprios à filosofia de Renaud Barbaras. Na entrevista à Gallet
percepção, mas não chega a descrevê-la senão a partir do corpo
ele nos diz que a filosofia que lhe interessa não é a filosofia da separação
próprio, isto é, da dualidade negada, e então reconhecida, da
consciência e da exterioridade (Barbaras 3, p. 13).
e da dualidade. Aqui, a orientação monista é o ponto fundamental:
“penso que o que é satisfatório para o espírito, é sempre ultrapassar a

O que redunda, enfim, em uma espécie de denegação que exprime dualidade. Vivo a filosofia como uma exigência de unidade, como uma

o caráter inconsciente dos prejuízos... É verdade que Merleau-Ponty exigência monista” (Barbaras 6). O interesse de Barbaras pelo monismo

formula de modo magistral o problema da percepção, “vemos as coisas exprime uma insatisfação com a fratura e com a imagem tranquilizadora

mesmas, o mundo é aquilo que vemos”, diz a primeira frase de O visível e do real derivada do dualismo: “devo confessar que isto me deixa em uma

o invisível. Mas, segundo Barbaras, Merleau-Ponty só supera a dualidade terrível insatisfação e que sempre me preocupei em investigar um plano

reconduzindo-a para dentro de um dos dois pólos. de unidade” (Barbaras 6).


Se assim for, assumamos o caráter absolutamente prévio do mundo,
Como Husserl, Merleau-Ponty procura construir a do “há” prévio que é definido através de uma estrutura de pertencimento
relação a partir de um sujeito cuja bipolaridade (empírico constitutiva do aparecer. Ora, esta assunção só pode ser efetivada se
transcendental) não é colocada profundamente em questão, abordamos o ser sem o nada interposto, o que significa, por um lado, que é
ao invés de interrogar o sujeito a partir da relação perceptiva:
preciso “abordar o aparecer sem objeto interposto, isto é, em sua autonomia”
o único passo ulterior em relação a Husserl consiste no
fato de partir de um sujeito encarnado, mais do que de
e, por outro, que devemos assumir que toda aparição se dá “sob o fundo
um puro sujeito transcendental, mas o método permanece de uma realidade ontológica” (Barbaras 4, p. 82). A análise empreendida
definitivamente o mesmo (Barbaras 3, p.15). por Barbaras sobre o aparecer em sua estrutura e autonomia visa ao
mesmo tempo uma abolição do privilégio do “subjetivo” e uma crítica
Que se perceba que o objetivo e o sentido da crítica que Barbaras radical da atitude “transcendentalista” (Barbaras 4, p. 86). Resumindo ao
faz à filosofia merleau-pontiana está em que através da experiência singular máximo, poderíamos dizer que sua análise sobre a estrutura do aparecer
do corpo acabamos sendo reconduzidos a uma filosofia da consciência ou – seu verdadeiro ponto de partida9 – tem três momentos constitutivos: em
do vivido cujo escopo é o dualismo e o idealismo. primeiro lugar, ele nos mostra que todo aparecer implica a coaparição do
Na esteira de Patočka, Barbaras procura neutralizar ao máximo o mundo; em segundo, que o próprio mundo se manifesta em tudo aquilo que
vivido. É apenas a partir deste ponto de vista que podemos compreender aparece; enfim, que há um modo de doação daquilo que aparece enquanto
que “a passagem através do vivido do nosso corpo não permite avançar coaparição do mundo: há alguém para o qual o aparecer aparece. Toda esta
um só milímetro na experiência da percepção” (Barbaras 3, p.16). Esta análise tem por objetivo dar conta da percepção através da autonomia do
discussão com o dualismo proveniente da manutenção da filosofia da aparecer (estruturado segundo a estrutura de horizontes) em contraste com

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aquilo que aparece. O sentido desta autonomia está, em primeiro lugar, Assim, em um mesmo gesto também afastamos o vitalismo que reporta
em que não há mais constituição do mundo pela consciência, não há o a vida a uma força ou princípio autônomo irredutível às forças físicas.
vivido, e, em segundo, que o dado fenomenológico fundamental é o campo Como afastar tantos prejuízos? Como evitar as alternativas clássicas do
fenomenal e que o absoluto é a própria a fenomenalidade. subjetivo e do objetivo que agora aparecem transmutadas na dualidade do
É chegado o momento de começar a interrogar o sentido de ser mecanicismo e do vitalismo? Se a vida não pode ser apreendida através de
deste sujeito para o qual há uma estrutura de horizontes, ou seja, para o uma variação do mundo físico, nem como um princípio de consciência, é
qual há algo. O sujeito perceptivo é um ser vivo, ele é um sujeito vivo. porque há uma operação que deve ser efetuada em prol de sua apreensão
Este ensinamento Barbaras retira da obra O sentido do sentido de Straus.10 naquilo que ela tem de mais específico. Se nos aproximamos da vida
Dizer que o sujeito é um ser vivo é o mesmo que dizer que “a percepção em sua especificidade, temos a oportunidade compreender, também, a
é uma modalidade da vida” (Barbaras 3, p. 16), pois em seu mais alto percepção. Porém, somente examinando a fundo a percepção podemos
grau de generalidade e neutralidade, a relação que temos com o mundo tornar mais claro o sentido da vida. Os conceitos de percepção e vida
é uma relação vital, donde o reenvio, agora, da percepção para a vida: se esclarecem mutuamente e há entre eles um “mútuo reenvio” e uma
“a percepção enraíza-se na vida e deve ser compreendida a partir dela” “interdependência” (Barbaras 3, p. 18). A este propósito, Barbaras nos
(Barbaras 8, p. 153). Não se trata, contudo, de nos atermos à diferença ensina que devemos operar uma “dupla redução” que possibilita o acesso
entre estar vivo (Leben) e vivenciar uma experiência (Erleben). O que se à vida enquanto tal. Esta dupla suspensão tem por intenção fazer aparecer
tem em mira aqui é o fato de que “perceber é vivenciar uma realidade e, a dimensão da vida ou do viver em que se enraizaria a percepção. Enfim,
portanto, é um modo de viver” (Barbaras 8, p. 153). Porém, Barbaras não ao nos situar neste plano fenomênico com alcance ontológico é que as
assume os ensinamentos de Straus até o fim. É verdade que Straus ajuda alternativas tradicionais aparecem como abstrações tardias.
o filósofo a sair do “impasse da análise imanente” (Barbaras 3, p. 17), Na esteira de Heidegger – que tem o “mérito de ter visto a
mas ele não chega a reportar a percepção à outra dimensão do que a do indigência da biologia científica, mas também filosófica, a respeito da
conhecimento: a percepção ainda seria interpretada como exterior à vida questão do ser da vida”, e que apontou “a necessidade de afrontar a vida
e ao sentir. Para acessarmos a percepção a partir da vida ou na vida é a partir de si mesma, na sua especificidade” –, Barbaras define o “modo
indispensável termos outra concepção daquilo que é a vida. Esta concepção de ser absolutamente específico” da vida como “existencial” (Barbaras 3,
não é fornecida pelo mecanicismo que lê os processos vitais a partir de leis p. 20). Aqui, a vida é compreendida “como um modo de relação entre um
físico-químicas onde a vida é compreendida a partir do modelo da ontologia sujeito vivo e um objeto (um mundo), como um modo de existir” (Barbaras
do objeto. Neste ponto, Barbaras se inscreve na linha interpretativa que 3, p. 20). A via aberta por Heidegger – a compreensão da vida em seu
vai de Goldstein a Canguilhem. Aqui, não podemos mais cair na ilusão “sentido primário”, ou seja, a vida compreendida “a partir de si mesma
de que através de análises do tipo físico-químicas alcançaríamos o plano em seu conteúdo existencial” (Heidegger 17, p. 249, apud Barbaras 3, p.
fenomênico; na verdade, tal análise só nos dá conteúdos físico-químicos. 21) –, deve ser levada em consideração. Mas, como nos mostra Barbaras,

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é preciso recusar a saída heideggeriana segundo a qual a vida só pode ser consciência de si” (Barbaras 3, p. 24-25). Contendo a possibilidade do
pensada a partir do Dasein.11 Não se trata de assumir a hipótese de uma espírito, a vida também contém a possibilidade da percepção. Jonas foi o
ontologia da vida que viria “determinar o que deve haver para que possa primeiro pensador a abordar “o modo no qual a percepção se constitui a partir
ser algo que seja apenas vida” (Barbaras 8, p. 8). Não se trata de assumir a da vida” (Barbaras 3, p. 27). Primeiramente, notemos que a caracterização
zoologia privativa que perde a especificidade do existir animal ao reportá- que Jonas faz da renovação da matéria no ser vivo através do metabolismo
lo a uma teoria da pulsão e do instinto que impede a comunidade com o “implica uma transcendência ativa em direção ao mundo: o excesso da
homem e, enfim, uma determinação existencial. forma sobre a matéria é, ipso fato, abertura ao mundo” (Barbaras 3, p. 26).
Portanto, a relação com o mundo exterior ainda pode ser expressa através
Em Heidegger, o homem se opõe ao animal como o ser
do conceito de intencionalidade. Jonas pensa a vida como um “excesso
capaz de percepção ao ser em cuja urgência de satisfação
dinâmico em relação à matéria” e com isto ele nos ajuda a compreender
pulsional lhe impede de apreender o objeto enquanto tal.
Disto se conclui que é definitivamente impossível, em tal que o “excesso do vivente em relação a si mesmo” (Barbaras 3, p. 27)
perspectiva, enfrentar a percepção a partir da vida, isto é, a deve ser interpretado à luz do conceito de intencionalidade, isto é, através
partir do modo de ser do animal (Barbaras 3, p. 23). de sua singular abertura ao mundo exterior. Solução que aos olhos de
Barbaras é “metodologicamente satisfatória”. Porém, é preciso chamar
A vida em sua singularidade, como modo de existir singular, é atenção, em segundo lugar, para o fato de que a “liberdade orgânica” de
que nos fornece o sentido da existência. À zoologia privativa, Barbaras que fala Jonas se realiza, precisamente, como necessidade, enquanto o
responde com uma “antropologia aditiva” segundo a qual a humanidade vivente é visto através de sua perpetuação. A estrutura da existência vital –
se inscreve na animalidade “como sua mais íntima possibilidade”: o existir da vida –, é caracterizado como um metabolismo (“processo para
“assim, no modo de existir próprio ao ser vivo (pelo menos animal) deve o qual uma forma se mantém idêntica através de uma renovação contínua
ser reencontrado a condição de possibilidade da percepção” (Barbaras de sua matéria”) que, é verdade, pretende circunscrever uma “liberdade
3, p. 24). Doravante, a percepção nos será dada através “daquilo que na necessidade ou como necessidade, isto é, uma liberdade dialética”
está presente, pelo menos virtualmente, desde os primeiros estratos da (Barbaras 3, p. 25). Mas, uma vez que a intencionalidade encontra seu
animalidade” (Barbaras 3, p. 24). fundamento na renovação da matéria, resta que a própria intencionalidade
Para investigar o modo de existir próprio à vida enquanto ela acaba sendo imposta à necessidade vital revelando, então, uma limitação
pode realizar-se na percepção, nosso autor avança em direção a uma da teoria que pretendia resolver o problema da abertura à “verdadeira
fenomenologia da vida. Barbaras encontra esta fenomenologia na obra
12
exterioridade, isto é, o objeto enquanto tal” (Barbaras 3, p. 28). Barbaras
de Jonas, o qual lhe permite “afirmar uma continuidade aí onde Heidegger mostra que a insuficiência desta concepção de intencionalidade é decorrente
via um abismo e então a afirmar uma prefiguração, no próprio coração do fato de que o ser vivo é apresentado como uma ipseidade autocentrada,
do mundo orgânico, da ‘visão penetrante’ que é atestada na tomada de ameaçada de morte e em busca de sua perpetuação e, por isto mesmo,

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Jonas interpreta a vida como metabolismo e necessidade: “para um sujeito situa sua perspectiva “à igual distância” (Barbaras 4, p. 129) destes dois
sempre já individualizado e separado do mundo, a vida não pode consistir filósofos.15 Há uma correlação tão estreita entre percepção e movimento
senão em uma conservação de si, isto é, na satisfação de uma necessidade” que poderíamos dizer que o movimento já é uma percepção assim como
(Barbaras 3, p. 29). Somente depois de renunciar a definir a vida como não há percepção fora do movimento. A relação ativa do sujeito vivo com
necessidade é que podemos entender a “real fundação da percepção na o objeto é anterior à distinção tradicional entre a ação e o movimento. Tal
vida”. É neste contexto que Barbaras define sua perspectiva filosófica relação, longe de ser do tipo mecânico ou acidental, é do tipo intencional.
como “vital-existencial”, esperando que, com isto, ele possa nos dizer que O que é o mesmo que dizer, na esteira de Weizsäscker citado por Barbaras,
a vida deve ser concebida como um “modo de ser último e irredutível”, isto que “perceber é, no fundo, sempre passar a outra coisa” (Weizsäscker 22
é, “como a modalidade no interior da qual e pela qual um ser vivo pode apud Barbaras 4, p. 151). Nas palavras do próprio Renaud Barbaras, “a
constituir-se, individuar-se” (Barbaras 3, p.29). percepção remete ao movimento de que ela é apenas um momento, um
O sujeito é reconhecido como vivo e motor, o que se compreende ponto de apoio; mas o movimento, por sua vez, remete à percepção sem a
pelo fato de que somente os seres vivos estão em movimento. Mas como, qual ele não poderia se orientar e equivaleria a um movimento mecânico”
exatamente, reconhecer este sujeito vivo em movimento? Renaud Barbaras (Barbaras 11, p. 156). O sentido desta afirmação está em que há uma
nos ensina que sua característica mais importante está na sua “aptidão relação essencial entre o movimento e a percepção, pois se é verdade que a
a mover-se” espontaneamente. 13
Este argumento pretende nos fazer vida possui uma dimensão ontológica irredutível, é verdade, também, que
entender que quando nos movemos já não somos mais aquilo que éramos. tal relação é de ordem espiritual, a qual exprime, por sua vez, modos da
Donde a relação que não pode passar despercebida entre a percepção e o totalidade viva.
movimento ou a ação. É justamente aqui que reencontramos uma das ideias Não basta definir o ser vivo pela necessidade ou pela satisfação
fundamentais de Matéria e Memória. Nestas páginas, Bergson interpreta a das necessidades vitais, onde seria preciso identificar uma carência cuja
percepção do ponto de vista da vida, ou melhor, do movimento. Perceber satisfação aplacaria a necessidade. Barbaras chama atenção para uma
não é contemplar, mas agir. O sujeito vivo que percebe deve ser situado no “carência ontológica que não é apenas uma carência provisória de uma
ponto de vista da ação que não é um processo objetivo que nos reconduz à parte [de si] mesmo” (Barbaras 8, p. 157-58). Na esteira de Goldstein,
representação. Por um lado, Barbaras aborda a percepção a partir da vida ele nos mostra que é “o próprio organismo que envolve uma relação com
ou do movimento sem abandonar o conceito de intencionalidade, por outro, a totalidade do Ser, em relação à qual ele aparece como incompleto ou
ele assume este conceito não no nível da objetividade, mas da correlação derivado”. A caracterização do ser vivo a partir de sua finitude faz contraste,
entre o real e o sujeito, entre o Ser e o aparecer. Preservando a dimensão então, com o fato de que sua essência não lhe é imanente, mas encontra-se
vital da percepção através da teoria bergsoniana das imagens e o caráter
14
fora dele: a essência encontra-se “na totalidade do Ser”. O ser vivo anseia
intencional da percepção interpretado à maneira husserliana através do a superar sua individualidade e se identificar com a totalidade: “o ser vivo é
priori universal da correlação, nosso autor concilia Bergson e Husserl. Ele caracterizado por uma insatisfação que, por definição, não pode ser superada

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já que ele visa uma totalidade impossível, já que a aparição do objeto de


sua ânsia equivale à sua desaparição enquanto sujeito” (Barbaras 8, p. o desejo escapa ao mesmo tempo da ordem espacial do
movimento e da ordem psíquica da representação: ele é o
158). Na necessidade o ser vivo encontra uma decepção ou satisfação que
fundamento e a raiz dessas duas ordens, no sentido em que
faz cessar a necessidade: ele encontra a totalidade negando-a. Mas há algo
ele as torna possíveis. É o dinamismo originário do desejo
que o impede de satisfazer suas necessidades, a saber: “há uma inquietude, – movimento não espacial da aspiração ou da tensão –
uma tensão própria ao ser vivo, que resulta numa mobilidade contínua e que dá conta da articulação entre percepção e movimento
impede o preenchimento das necessidades” (Barbaras 8, p. 158). O escopo (Barbaras 8, p. 160).

desta análise é a caracterização da vida como desejo. Mas atenção: não se


A partir do momento em que compreendemos que a forma
trata de constatar a obviedade de que o ser vivo tem desejos. Trata-se, ao
originária da intencionalidade é o desejo, temos condição de entender que
contrário, de dizer que o desejo é o próprio “modo de existir” do ser vivo.
o próprio sujeito sempre se precede a si mesmo e já pertence ao mundo que
Esta é a “dimensão originária” aquém da diferença entre a representação e
ele abre: “o sujeito faz parte do mundo que ele condiciona e a Vida nomeia
o movimento que procura nosso filósofo: “o desejo é a maneira específica
a arché-facticidade do transcendental, envolvimento mútuo do mundo e de
pela qual o ser vivo se relaciona originariamente com uma exterioridade, é
sua condição de fenomenanalização” (Barbaras 4, p. 140).
a forma primitiva e fundadora da intencionalidade. É enquanto desejo que
O estatuto do sujeito do aparecer possui uma “dupla dimensão”:
a vida é capaz de dar origem a uma relação com objetos e, portanto, é como
ele está inscrito no mundo e é condição de sua aparição (Barbaras 4, p.
desejo que a percepção se enraíza originariamente no ser vivo” (Barbaras
153).16 Já o desejo é aquilo que relaciona
8, p. 158-59). No desejo não há alternativa entre satisfazer ou frustrar uma
necessidade. Na verdade, o objeto do desejo aponta sempre para outro
a aparição finita e a coaparição do mundo que ela supõe.
objeto. No desejo, o objeto de satisfação intensifica o próprio desejo: a Dizer que a percepção é desejo, é dizer que todo ente só
satisfação não é a cessação do desejo, mas sua reanimação. Ao contrário da aparece como manifestação de um aparessente último que,
necessidade que exprime uma falta definida e restaura a completude vital, por sua vez, nunca aparece. O desejo desdobra a Distância
constitutiva do sensível; ao aspirar à totalidade, ele abre a
no desejo a aspiração que o atravessa não é diferente de uma ausência.
profundidade do aparecer (Barbaras 4, p. 152).
O objeto do desejo se manifesta, então, sob a forma de uma ausência,
porém, nada lhe falta e nada pode preenchê-lo totalmente. O que Barbaras
Assim, a descrição do desejo faz eco à percepção como doação
pretende mostrar com esta análise é o reenvio de um objeto a outro muito
por perfis. Lembremos que o objeto percebido nos é dado por perfis que ao
anterior à representação pelo conceito e ao deslocamento no sentido físico
mesmo tempo o apresentam e o ausentam. Há, portanto, uma convergência
da palavra. Desejar não é diferente de se dirigir ao objeto: o objeto se dá
deste fato com a interpretação da “essência da percepção como desejo”
no próprio desejo enquanto movimento que toma posse do objeto. Mas o
(Barbaras 8, p. 160). É partindo do desejo que podemos compreender
objeto do desejo não se dá inteiramente, ele permanece ausente:
a doação por perfis, afinal, desejar é tomar uma coisa como expressiva

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de outra que é ausente.17 Eis o dinamismo do desejo: aí mesmo onde ele enraizar verdadeiramente a percepção na vida e, com isto, dar conta da
se satisfaz, ele se aviva. Assim como o movimento de reenvio existente continuidade entre a ordem perceptiva e a ordem cognitiva” (Barbaras 4,
no perfil do objeto percebido é ao mesmo tempo presença e ausência, o p. 166). Reformulando o problema da percepção, Barbaras nos ensina que
movimento do desejo deve ser interpretado como apreensão de algo que “enquanto ela já é percepção, a vida porta nela mesma a possibilidade do
não se dá inteiramente. O excesso que caracteriza o objeto percebido é conhecer” (Barbaras 4, p. 166). O efeito inverso da recusa da interpretação
garantido pelo excesso que constitui o desejo. A experiência da percepção da vida como necessidade é a apreensão do conhecer “aquém da posição de
como abertura e dissimulação do mundo exterior, a passagem, através do um puro objeto”: “se apreendemos o conhecimento a partir de sua dimensão
perfil, de uma coisa dada à outra não dada, não se dá fora do movimento do interrogativa que o define em seu fundo, descobrimos sua continuidade
desejo, já que através dele apreendemos algo ao mesmo tempo presente e com a ordem vital: a interrogação continua a exploração que caracteriza
inacessível. “É por ser desejo, isto é, expectativa absoluta ou carência para a vida” (Barbaras 4, p. 167). No último trecho deste livro nosso autor nos
além de qualquer objeto definido que a percepção pode acolher a própria mostra que a negatividade “surge desde o plano vital” e que a continuidade
exterioridade. É por ser aspiração inextinguível que a percepção é acolhida entre perceber e conhecer deve ser procurada na dimensão interrogativa. O
absoluta” (Barbaras 8, p. 161). conhecimento encontra sua raiz no desejo que constitui a vida. Na verdade,
Para terminar gostaria de levantar um dos pontos que a Conclusão desejo e interrogação são sim “um e mesmo movimento”. Barbaras chama
do livro O desejo e a distância suscita como uma das direções possíveis atenção, então, para uma “dimensão mais profunda” em relação à qual
de aprofundamento para o tema da percepção, o qual se torna ocasião desejo e interrogação, vida e conhecimento aparecem como modalidades.
para repensar o estatuto do tempo e do espaço, a relação entre o desejo Sobre o pano de fundo da abolição da alternativa entre vida e filosofia
e a distância e, enfim, o conhecimento e as significações. Inscrita ou retenhamos esta idéia preciosa: “pela interrogação, nos reapropriamos das
enraizada no interior da vida, a percepção deve ser compreendida a partir nossas raízes, nos fazemos vivos” (Barbaras 4, p. 167).
da própria vida. É assim que nosso autor preserva a continuidade entre
The perception according to Barbaras
perceber e conhecer. Contanto que não reduzamos ou sujeitemos a vida
às necessidades, contanto que não neguemos à vida uma capacidade de
Abstract: This article presents the concept of perception as well as plays the French
negatividade condenando-lhe à positividade, poderemos compreender philosopher Renaud Barbaras. He starts with the replacement of the problem of
como o negativo – que não é um puro nada – pode aparecer no mundo. perception between immanence and transcendence to indicate the fundamental
De onde surge a ruptura? “É verdadeiramente a caracterização do vivente features that characterize this phenomenon according to his own point of view: the
subject of perception as a living subject and the essence of life as desire. It is not for
como incapaz de negatividade que leva a introduzir um plano perceptivo
him to approach the perception through what is not. To truly understand the perceived
que rompe com a ordem da vida” (Barbaras 4, p. 166). Vem daí a negação de
need to let us form with the perceptual experience itself, or rather, one must think
continuidade entre viver e conhecer. Vem daí, também, o raciocínio inverso: according to their perception.
“é na medida em que introduzimos ‘o nada no texto da vida’ que podemos Keywords: Barbaras, perception, movement, desire, life.

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Referências Bibliográficas 19. JONAS, H. Le phénomène de la vie, trad. D. Lories, Bruxelas: De Boeck, 2001.
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1. BARBARAS, R. Merleau-Ponty, Paris: Ellipses, 1997. philosophiques, Lagrasse: Verdier, 2004.
2. ______. La perception. Essai sur le sensible, Paris: Hatier, 1994. 21. STRAUS, E. Du sens des sens. Contribution à l’étude des fondements de la
3. ______. La percezione. Saggio sul sensibile, Trad. Giacomo Carissimi, Milão: psychologie, trad. G. Thines, J.-P. Legrand, Grenoble: Jérôme Millon,
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4. ______. Le désir et la distance. Introduction à une phenomenology de la perception, 22. WEIZÄSCHER, V, Le cycle de la structure, trad. M. Foucault, Paris: Desclée de
Paris: Vrin, 1999. Brouwer, 1958.
5. ______. Introduction à la philosophie de Husserl, Chatou: Les Éditions de la
transparence, 2004 NOTAS
6. ______. Entretien avec Renaud Barbaras – Propos recueillis par Bastien Gallet
[2001]. Disponível em  : http://www.musicafalsa.com/article.php3?id_ 1. Penso, particularmente, nos seguintes textos: “Conscience et perception. Le cogito
article=39 dans la Phénoménologie de la perception” (Barbaras 10); “Percepção e movimento : o
7. ______. Le mouvement de l’existence. Études sur la phénoménologie de Jan desejo como condição de possibilidade da experiência” (Barbaras 8); “A composição
Patočka, Chatou: Les Éditions de La Transparence, 2007. da percepção” (Barbaras 5); “Preface” (Barbaras 12); (Barbaras 1).
8. ______. Investigações fenomenológicas. Em direção a uma fenomenologia da vida, 2. Dito de outro modo e em outro texto: “uma filosofia da percepção não é só aquela
Curitiba: Editora UFPR, 2011. que toma a percepção por objeto, mas é também uma filosofia que se reforma ao seu
9. ______. Introduction à une phénoménologie de la vie, Paris: Vrin, 2008. contato, que pensa segundo a própria percepção” (Barbaras 3, p. 36).
10. ______. Le tournant de l’expérience. Recherches sur la philosophie de Merleau- 3. Cf. de Bergson, Capítulo IV de A evolução criadora. Barbaras nos lembra que aqueles
Ponty, Paris: Vrin, 1998. “falsos problemas” derivam da “inversão das ordens de dependência no seio do real, isto
11. ______. “La phénoménologie du mouvement chez Patočka”, in Phénoménologie: é, de uma decomposição da realidade que não respeita suas articulações efetivas”. Trata-
un siècle de philosophie, Dir. Dupond, P. e Cournarie, L., Paris: Ellipses, se de uma falsa questão “porque ela pressupõe que do nada pode preceder algo, que o
2002b. Ser pode surgir sob o fundo do nada, o que equivale a inverter pura e simplesmente o
12. ______. “Preface”, in Simondon, G. Cours sur la perception (1964-1965), Chatou: estatuto ontológico respectivo do Ser e do nada” (Barbaras 4, p.66).
Les Edition de la Transparece, 2006. 4. “Só podemos definir a existência como atualização de uma essência sob a condição
13. BERGSON, H. A evolução criadora, trad. Bento Prado Neto, São Paulo: Martins de compreender esta atualização como representação para uma consciência. Assim
Fontes, 2005. aparece claramente, para além de sua oposição aparente, a solidariedade teórica do
14. ______. Matéria e memória. Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito, trad. objetivismo e do subjetivismo: ela se funda sob a decisão implícita de perfilar o Ser
Paulo Neves da Silva, São Paulo: Martins Fontes, 1990. sobre o nada” (Barbaras 1, p. 26).
15. CANGUILHEM, G. La connaissance de la vie, Paris: Vrin, 1998. 5. “A percepção adquire em Husserl um estatuto primordial já que, ao afirmar que ela é
16. GOLDSTEIN, K. La structure de l’organisme. Introduction à la biologie à partir uma intuição doadora de sentido originário, significa que ela entrega o próprio Ser: perceber
de la pathologie humaine, Paris: Gallimard, 1983. é ser posto em presença do que é, e a única maneira de alcançar o que é em pessoa, é de
17. HEIDEGGER, M. Concetti fondamentali della metafisica. Mondo-finitezza- percebê-lo. Há reciprocidade entre Ser mostrado como ente e percebido. Segue daí que toda
solitudine, trad. P. Coriando, Genova: Melangolo, 1999. interrogação sobre o Ser passa por uma interrogação sobre a percepção, que o sentido de ser
18. HUSSERL, E. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia do que é não pode ser alcançado senão em uma eidética da percepção” (Barbaras 4, p. 20).
fenomenológica, trad. Márcio Suzuki, Aparecida: Ideia&Letras, 2006.

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6. Em seu livro sobre Husserl, Barbaras formula de modo admirável o mistério enfim, em todos os atos psíquicos o Eu seja igualmente presente à consciência – em
envolvido na percepção segundo Husserl: “tal é o mistério do aparecer: algo aparece todas essas concepções, o sujeito do sentir não é um homem vivo. Está aí o ponto
à alguém; uma unidade transcendente se dá através de uma multiplicidade de vivido. essencial. Chegamos, assim, através de toda uma série de negações, a uma primeira
Distinto dos vividos da percepção, o objeto percebido tem necessidade desses vividos” definição positiva. Concebemos o sentir como um modo do ‘ser-vivo’ (lebendgs
(Barbaras 5, p. 105). Sein)” (Straus 21, p. 32; negrito acrescentado).
7. “Na percepção, o perfil e o objeto perfilado, a aparição e o que aparece são afetados 11. Na contramão da tradição que interpreta o homem como “animal racional”,
de uma dupla ambiguidade constitutiva. O esboço é ao mesmo tempo ele mesmo e Heidegger estabelece a singularidade do Dasein e sua diferença em relação aos outros
o objeto que ele apresenta: ele é idêntico a si mesmo e ao seu ultrapassamento (isto seres. “É verdade, Heidegger reconhece que a vida pertence à ordem da existência e
é, a seu apagamento). O objeto, por sua vez, é ao mesmo tempo presente, no sentido não da substância, mas ele não pode admitir que a existência seja tal que possa dar
em que ele é alcançado por alguém, e indefinidamente ausente no sentido em que conta da existência humana: isto se compreende bem depois da questão ontológica que
nenhuma série de perfis pode esgotar seu teor de ser: ele é o idêntico de uma vinda à confere ao homem uma singularidade absoluta, incomparável com qualquer forma de
presença e de um recuo no inapresentável” (Barbaras 4, p. 24). continuísmo. Deriva daí que é a existência humana que deve dar conta, privativamente,
8. “Assim, com a teoria da doação por perfis, Husserl reconhece que a peculiaridade da essência vital. [...] Seja como for, a aproximação privativa se traduz em um impasse
da coisa é de transcender-me, que o índice da realidade é a exterioridade em relação para a determinação da existência viva. Como se sabe, o animal é caracterizado, por
a consciência, de modo que a percepção, enquanto diz respeito precisamente a uma contraste em relação ao homem-formador do mundo (weltbildene), como ‘pobre de
coisa ou uma realidade, deve oferecer-me tal transcendência, abrir-me a ela. A partir do mundo’ (weltlos), e isto significa que o mundo se subtrai na sua própria abertura, dado
momento em que a coisa é por essência isto que me transcende e do momento que, por que a relação do animal como o mundo é um não-haver no interior de um poder-haver.
outro lado, nós temos experiência da coisa, não deve haver alternativa entre experiência Com isto, Heidegger pretende que, aí onde o homem se reporta ao ser em quanto ser,
e transcendência, entre consciência e exterioridade: a percepção designa esta própria o animal é obnubilado pela pulsão e como que aprisionado nela, de tal modo que,
unidade através de uma posse e um esgotamento, por isto o problema da percepção arrastado em direção de certos seres em vista de sua sobrevivência, o animal não
não consiste senão no modo de unidade ou de conciliação entre estas duas dimensões pode nunca alcançá-los enquanto tal: esses se retiram, por assim dizer para trás de
aparentemente antagonista, a imanência e a exterioridade” (Barbaras 3, p. 8). suas funções de satisfação da pulsão. É difícil não reconhecer aqui uma orientação
9. “É necessário tomar como ponto de partida a própria estrutura do aparecer e tentar teleológica e antropocêntrica, que considera o animal a partir do homem sob a base
caracterizar o sentido de ser do sujeito (cujo embaralhamento do sentido e do sentir do modo hierquizante disto que possui apenas instinto e não ainda a consciência”
é apenas uma manifestação) a partir desta estrutura, ao invés de se dá-lo inicialmente (Barbaras 3, p. 23).
sob a forma do corpo próprio para daí deduzir depois esta estrutura, como o faz 12. Para Barbaras, a fenomenologia da vida tem como tarefa “determinar o que a vida
Merleau-Ponty” (Barbaras 4, p.107). deve ser para que possa ter algo que seja apenas humanidade ou, mais precisamente,
10. O trecho importante citado por Barbaras é precisamente a última frase desta citação: o que a vida deve ser para que possa existir um modo de viver que seja consciência de
“Podemos observar desde agora sob quais formas [a interpretação do conhecimento algo” (Barbaras 8, p. 8); sobre o tema da fenomenologia da vida cf. Barbaras 9.
humano, a partir do conhecimento perfeito e acabado, que continuamente faz perder 13. “É forçoso constatar que os corpos que percebem são corpos vivos e que eles se
de vista os problemas psicológicos do conhecer e do sentir] se manifesta: que na teoria distinguem dos outros entes corporais (como, aliás, mas em uma menor medida, desses
das sensações o sujeito seja transformado em sujeito teórico geral ou em consciência viventes mais ou menos imóveis que são as plantas) por sua aptidão se mover. É graças
pura e simples; que ele seja objetivado ao ponto de não ser mais senão um receptor a esta motricidade constitutiva do ser vivo que podemos aceder ao sentido último da
de estímulos; que na esteira de Mach, o Eu seja considerado como perdido ou que ele subjetividade: é enquanto sujeito capaz de movimento que o sujeito perceptivo poderá
seja interpretado segundo Hume como um feixe de representações; que concedamos, ser apreendido em seu ser verdadeiro. [...] No seio do ‘há’, só existe negatividade
como mobilidade” (Barbaras 4, p. 108).

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14. Ao afirmar a autonomia do aparecer e ao atribuir ao sujeito uma atividade motora, é o fato do transcendental, ou o transcendental como Fato, a forma concreta de sua
Barbaras se aproxima das teses do Capítulo I de Matéria e memória, o qual poderia retirada originária” (Barbaras 4, p. 153).
ser lido como uma espécie de fenomenologia da percepção: “recusando tanto a 17. “Por um lado, ao abrir a profundidade do mundo, o desejo realiza a função de
interpretação da realidade no sujeito quanto a posição de uma realidade estranha à manifestação, torna possível o perfilar do perfil. Mas, por outro, uma vez que ele
experiência perceptiva, Bergson introduz o conceito de imagem para caracterizar o permanece insatisfação, esta profundidade permanece escondida na aparição, aquilo que
sentido de ser do real. Ele interpreta isto como uma realidade que está situada a meio aparece se ausenta de sua manifestação e o perfil permanece um perfil, ou seja, também
caminho do objeto espaço-temporal e da idéia: é incontestável que o real não é nada uma esquiva. Pensar o perfilar a partir do desejo, é se dar os meios de compreender
além do que nos aparece (a idéia de uma realidade em si que se situaria atrás do que a ausência do perfilado ao perfil não faz alternativa com sua presença e que não há
que percebemos é incompreensível) e que aquilo que nos aparece é real (também é manifestação senão como recuo na profundidade” (Barbaras 4, p. 152).
inadmissível afirmar que o que nós percebemos está em nós e não uma realidade fora
de nós). [...] Trata-se, para Bergson, de dar conta da percepção sem fazer intervir algo
como uma representação, isto é, não abandonando o plano, unívoco, das imagens.
Em outras palavras, é preciso dar conta da diferença entre o ser e o ser percebido
unicamente sob o plano das imagens e, portanto, sem fazer intervir alguma dimensão
psíquica, por definição estranhas às imagens. Como nós sugerimos, isto é o mesmo
que dar conta da percepção a partir de um sujeito situado no seio daquilo que aparece,
isto é, de um ser vivo” (Barbaras 4, p. 121-22).
15. “Nós nos situamos aqui entre Husserl e Bergson: se a percepção é a condição do
mundo, esta condicionalidade não pode repousar sobre uma ordem psíquica autônoma e
ele deve então proceder da própria atividade vital, de modo que é no próprio movimento
que deve ser constituído o mundo que ele supõe como o campo sobre o fundo do qual
se desenrola sua potência negadora. Na verdade, esta conclusão procede de uma tomada
em consideração rigorosa das condições do problema” (Barbaras 4, p. 131).
16. “Enquanto o sujeito é desejo ele se reporta ao todo do ser e é, então, condição
do mundo; mas enquanto o desejo não tem outra realidade que a dos movimentos
aos quais ele dá lugar, enquanto sua aspiração se faz exploração, ele está contido no
mundo que ele desvela. Em virtude de sua própria essência, o desejo está consagrado
a se dispersar em tendências finitas – que podem incluir até as necessidades; sua
dimensão transcendental implica seu vir a ser empírico e é por isto que só há desejo
como vida. Mas só há desejo como vida porque só há ser constituído do mundo
como omni-englobante e logo ao mesmo tempo não-constituível. Assim, abertura
conjunta da aparição e de sua retirada na distância, o desejo é a unidade originária da
passividade e da atividade: ele só possui o mundo como aquilo que o possui. Porque o
ser vivo só existe permanecendo aquém de seu ser, ele só desdobra a totalidade sob a
forma daquilo que a nega e não contém o mundo senão como o que o contém: o desejo

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O corpo vivido e o movimento da vida em M.
Merleau-Ponty e R. Barbaras*

Esteban A. García**

Resumo: As análises aqui propostas enfocam, em primeira instância, a leitura do corpus


merleau-pontiano, proposta por R. Barbaras em seu Introduction à une phénoménologie
de la vie, segundo a qual os vaivens e ambivalências da reflexão de Merleau-Ponty acerca
do corpo se explicam pela desconsideração de seu caráter primordialmente vivente.
Em segundo lugar, abordamos a filosofia de Merleau-Ponty a partir do propósito de
encontrar no corpo uma modalidade originária e absoluta de movimento como abertura
de possibilidades, fundante em relação ao objeto que se move e ao espaço, aberto
pelo próprio movimento. Em terceiro lugar, pondo em relevo a noção de nascimento,
propomos que esta singular modalidade de movimento buscada por Merleau-Ponty
encontra sua caracterização mais apropriada no movimento natural e vital, o que permite
conciliar, ao menos parcialmente, as perspectivas de ambos os filósofos.
Palavras-chave: Merleau-Ponty, Barbaras, movimento, vida, corporalidade.

Todo o percurso da reflexão merleau-pontiana foi marcado


pelo propósito dominante de elucidar o singular modo de ser de nossa
corporeidade, que o filósofo caracterizou, desde sua Fenomenologia da
Percepção, como “ambíguo”. Segundo observa lucidamente R. Barbaras
em sua Introduction à une phénoménologie de la vie, uma dificuldade
chave com que se depara essa empresa é o fato de que nossa experiência
corporal conjuga duas condições ao mesmo tempo irrecusáveis e difíceis
de conciliar: nosso pertencimento ao mundo e nossa distância frente a

* Tradução de Silvana de Souza Ramos.


** Universidad de Buenos Aires – Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y
Técnica. E-mail: baneste72@gmail.com.

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Cadernos Espinosanos XXVII Esteban A. García

ele, como sujeitos que percebem. Nosso corpo resume o paradoxo de que O corpo próprio permanece aí pensado a partir da
uma parte do mundo possa ser ao mesmo tempo consciente do mundo. A consciência e finalmente abordado como uma modalidade
daquela, [...] como uma consciência opaca e incoativa. [...]
leitura de Barbaras põe em relevo de maneira certeira as contradições, as
Nisto, Merleau-Ponty não ultrapassa verdadeiramente a
ambivalências e os vaivens do corpus merleau-pontiano em sua dificuldade concepção metafísica do corpo como aquele que vem borrar
para encontrar uma caracterização sui generis desse modo original de ou obscurecer a transparência da Razão (Barbaras 1, p. 71).
ser que é próprio ao corpo. Em sua visão, as aporias da busca merleau-
pontiana só poderiam ser contornadas abordando-se o corpo vivido como Ora, de acordo com essa mesma interpretação, quando Merleau-
corpo vivente, vislumbrando-o assim desde a perspectiva mais originária Ponty quer fazer valer a corporalidade contra o modelo de uma consciência
do movimento da vida. Nas páginas seguintes nos propomos encontrar transcendental e constituinte, devedor direto de uma definição intelectualista
no próprio Merleau-Ponty o esboço de uma definição original do corpo da consciência, refere-se então ao corpo em sua materialidade física ou em
em termos de uma modalidade particular do movimento, que em última suas definições anátomo-fisiológicas. Deste modo, as análises merleau-
instância poderá ser caracterizada – em termos quiçá próximos de alguns pontianas passariam diretamente ou sem escalas de um corpo-sujeito – ou,
dos propostos por Barbaras – como movimento vital. mais estritamente, um sujeito encarnado – ao lado contrário, isto é, a um
corpo objetivado pelas ciências da vida e vice-versa, em um movimento
I. A indefinição do corpo e os vaivens do corpus merleau-pontiano de vaivém ou zigue-zague que nunca encontraria esse “outro tipo de ser”
segundo a leitura de R. Barbaras onde deter – ou começar – uma análise original e própria do corpo vivente
enquanto tal. Neste sentido, na Fenomenologia da Percepção conviveriam
Na Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty pretendia haver problematicamente a corporalidade como adjetivação de uma consciência
encontrado – ou ao menos estar em busca de – uma dimensão ontológica que agora se “encarnou” e “a ideia do corpo, que é ainda própria da
original distinta do modo de ser do sujeito e do objeto no modo de ser do Fenomenologia da Percepção, como fragmento de extensão habitado
corpo: tratava-se de encontrar “entre o puro sujeito e o objeto um terceiro por uma sensibilidade” (Barbaras 1, p. 78). Em apoio a esta avaliação de
gênero de ser” (Merleau-Ponty 9, p. 402). Contudo, de acordo com a leitura Barbaras, poderiam ser recordadas aquelas afirmações de Merleau-Ponty
proposta por R. Barbaras em sua Introduction à une phénoménologie de na Fenomenologia da Percepção que aludiam ao fato de que:
la vie, naquela obra o corpo não é tematizado por si mesmo e não recebe
uma caracterização positiva como “outro tipo de ser” singular, mas cumpre um homem sem mãos ou sem sistema sexual é tão
a única função de adjetivar ou de qualificar a consciência: a corporeidade inconcebível quanto um homem sem pensamento. [...]
É impossível distinguir no ser total do homem uma
equivale, em última instância, meramente à passividade da consciência.
organização corpórea (...) dos demais predicados. Não é
Nas palavras de Barbaras: por mera coincidência que o ser razoável é também o que
está de pé ou possui um polegar oposto aos demais dedos
(Merleau-Ponty 10, p. 187).

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Cadernos Espinosanos XXVII Esteban A. García

Nesta passagem, como em outras, parece patente que naquelas organismo, mas este vaivém da existência que ora se deixa ser corpórea
ocasiões em que a Fenomenologia da Percepção pretende reivindicar e ora remete aos atos pessoais” (Merleau-Ponty 10, p. 107).
com maior intensidade “a organização corpórea” frente ao pensamento Se Merleau-Ponty segue mantendo, mesmo a contragosto, o
intelectualista recorre às definições anátomo-fisiológicas mais clássicas da conceito de um corpo que está no mundo como uma parte deste, porém,
corporalidade. ao mesmo tempo, pode ter o mundo à distância (ao ser consciente dele na
Essa justaposição de uma consciência racional (mesmo que percepção), o corpo não faz mais que batizar o problema da insuficiência
já qualificada como carnal) e um corpo anátomo-fisiológico, essa de cada uma das duas perspectivas e a simultânea necessidade de ambas.
ambivalência que consiste em afirmar ao mesmo tempo e alternativamente Seria por um motivo semelhante que Merleau-Ponty desenvolve tardiamente
um e outro, sem poder encontrar aí, apesar das intenções explícitas uma ontologia da carne, já não entendida como esse “fragmento de matéria
do autor, passagem, uma tematização positiva do corpo vivente como circunscrito” ao “qual um sentir viria misteriosamente agregar-se” (Barbaras
núcleo desde o qual os dois termos da oposição derivariam, pode revelar- 1, pp. 66, 67), definição que poderia convir ao corpo, mas como “um modo
se também claramente na conhecida análise do membro fantasma. Ali “o de ser caracterizado pela identidade do sentir e do pertencimento, identidade
movimento da existência” ou o “ser-no-mundo” são os emblemas de “um da qual meu corpo é como o emblema ou a manifestação, mas que não
terceiro tipo de ser” ambíguo, próprio de uma redefinição sui generis do pode confundir-se com ele” (Barbaras 1, p. 77). Assim, na interpretação de
corpo, e, contudo, no final do capítulo em questão (o primeiro da parte Barbaras, a qual estamos recolhendo, a última filosofia de Merleau-Ponty
I da Fenomenologia da Percepção) essa existência volta na análise a sustentaria a seguinte tese: “não é porque meu corpo está no mundo (posição
desdobrar-se em uma consciência racional e voluntária, por um lado, e espacial) que ele é do mundo (parentesco ontológico); é, pelo contrário, na
em um conjunto de processos fisiológicos, por outro. Assim, depois de medida em que é do mundo [relação de pertença e continuidade ontológica a
situar a chave da compreensão do fenômeno no corpo vivido já definido que alude a figura da carne] que pode estar também no mundo” no modo do
além de sua objetivação científica como um repertório de possibilidades corpo ou de “minha carne” (Barbaras 1, p. 77). Segundo essa visão, a virada
de comportamento sedimentadas pelo hábito, ao perguntar-se por que ontológica da reflexão merleau-pontiana significaria uma radicalização e
a secção dos nervos pode ocasionalmente suprimir a experiência do inclusive uma inversão do ponto de vista priorizado na Fenomenologia da
membro fantasma, Merleau-Ponty volta a invocar o clássico fator Percepção. A encarnação da consciência operada naquela obra significava
neurofisiológico: “Desde nosso ponto de vista, um circuito sensório-motor uma “mundanização” do sujeito que agora, por sua vez, é vista como fundada
é, no interior de nosso ser-no-mundo global, uma corrente de existência no ser carnal do corpo e seu originário pertencimento ao mundo, de tal modo
relativamente autônoma” (Merleau-Ponty 10, p. 105). Neste contexto se que “o devir mundo do sujeito [é agora entendido como] o devir fenomenal
pode encontrar também uma confirmação do “vaivém”, advertido por do mundo”. Nas palavras de Barbaras:
Barbaras, nas palavras mesmas de Merleau-Ponty quando afirma que “o
homem concretamente tomado não é um psiquismo relacionado a um O caminho de Merleau-Ponty consiste portanto em
radicalizar a passividade do sentir, sua inscrição num corpo,
compreendendo-a como filiação ontológica, o que conduz
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a por em evidência uma sorte de inversão intencional: se o o subjetivismo que caracterizava o Merleau-Ponty de 1945: “A carne
sentir está verdadeiramente imerso no mundo (imersão carnal do mundo não é um sentir-se como minha carne – Ela é sensível e não
da qual o corpo é a atestação), então o sentir do mundo (pelo
sentiente”, lê-se ainda nas notas de trabalho do Visível e o Invisível
sujeito) se confunde com a vinda do mundo ao parecer, quer
dizer, com seu ser sentido. O verdadeiro sujeito do sentir não
(Merleau-Ponty 11, p. 304). Em passagens como esta, a carne parece
é mais o corpo, como na Fenomenologia da Percepção, mas referir-se com propriedade somente ao meu corpo e se estender somente
o mundo mesmo, do qual o corpo se destaca: o sentir é sentir de modo metafórico para aludir à “carne do mundo”, desfazendo-se assim
do mundo no duplo sentido do genitivo (Barbaras 1, p. 79). o caminho andado e reiterando-se as mesmas aporias que, como Merleau-
Ponty mesmo advertia em algumas de suas notas de trabalho, eram próprias
Em contraste com a Fenomenologia da Percepção e sua adjetivação ao ponto de vista da Fenomenologia da Percepção em seu compromisso
corporal do sujeito, é a subjetividade mesma a que agora porta um mero com o lastro das filosofias da consciência e do sujeito.2
sentido adjetivo, como “ser subjetivo ou fenomenal do mundo” (Barbaras Barbaras conclui sua leitura do percurso reflexivo merleau-pontiano
1, p. 79). Essa interpretação é confirmada pela taxativa afirmação de indicando que os vaivens, ambivalências e aporias que o atravessam não se
Merleau-Ponty correspondente a uma nota de trabalho inédita citada por justificam, mas se explicam, porém, quando se recorda que o problema do
Barbaras em Le tournant de l’expérience: “Nossa corporeidade: não colocá- qual parte o filósofo é o da consciência perceptiva em sua diferença para com
la no centro como fiz na Fenomenologia da Percepção: num sentido, ela é a consciência intelectual, à qual usualmente se subordinou ou se reduziu a
apenas a dobradiça do mundo” (Barbaras 2, p. 217). análise da primeira, e o corpo funciona como resposta a essa pergunta. Assim,
Embora Merleau-Ponty, em outra nota de trabalho inédita citada “o corpo não é interrogado por si mesmo, em seu sentido de ser próprio, mas
por Barbaras (desta vez em Introduction à une phénoménologie de la como o que organiza a receptividade da consciência e, por isso, a opacidade
vie), advirta sobre a necessidade de não cair no “monismo explicativo” de do objeto percebido”. A fenomenologia merleau-pontiana, em suma, “não é
uma “ontologia intermediária”, a carne como visibilidade do mundo que uma fenomenologia do corpo, mas da percepção” (Barbaras 1, pp. 82, 83).
reúne em si mesma a visão e o visto, o sujeito e o objeto, parece funcionar Esse modo de ser próprio do corpo que a filosofia havia deixado escapar, na
como chave de uma sorte de “filosofia monista da natureza” tal como a proposta de Barbaras, não se revela mediante a equívoca referência à carne,
que se pretende evitar.1 Desde esta perspectiva, o corpo parece diluir-se mas é o próprio da vida: “O Leib [...] deve ser compreendido do ponto de
no “anonimato” primordial da carne e, segundo a fala de Barbaras, “se vista do Leben”, o viver que anima a carne e que funda conjuntamente o
torna impensável” (Barbaras 1, p. 8). Ora, como adverte o próprio filósofo, pertencimento ao mundo e sua percepção (Barbaras 1, p. 84). No entanto,
isto não é o que sempre de fato sucede nos escritos incluídos no Visível e poderemos perguntar nas seções seguintes deste trabalho se o próprio
o Invisível, ao contrário, o corpo próprio, meu corpo ou minha carne são Merleau-Ponty não outorga ao corpo uma caracterização original e específica
invocados de modo intermitente para desenhar ou atenuar esta tendência que se relaciona justamente, em última instância, com o movimento vital
monista até o ponto de fazer retroceder a análise, ocasionalmente, até que lhe é próprio, tal como o exige Barbaras.

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Cadernos Espinosanos XXVII Esteban A. García

Antes de propor algumas alternativas à proposta de interpretação do enraizamento carnal. Assim, pode ler-se, por exemplo, que “a visão que
de Barbaras recém resumida, é possível fornecer outros elementos que ele [o vidente] exerce, sofre-a também por parte das coisas”; “eu me sinto
confirmam aquela remissão – em retrocesso – que acertadamente observa olhado pelas coisas (...) de sorte que vidente e visível se fazem recíprocos
o filósofo, desde a ontologia merleau-pontiana da carne até as teses mais e já não se sabe quem vê e quem é visto” (Merleau-Ponty 11, p. 183).
básicas da fenomenologia anterior, do corpo próprio. Pode-se ler, por Antes de precisar o alcance dessas afirmações, podemos recordar que sua
exemplo, nas notas finais do Visível e o Invisível: aparente radicalidade não supera o que já era sugerido pela Fenomenologia
da Percepção, quando Merleau-Ponty sustentava que o céu que percebo é
eu não posso por um único sensível sem pô-lo como
“para si”: quando vejo o céu, o céu “se pensa em mim”; “eu sou o próprio
arrancado à minha carne, colhido da minha carne, e a minha
própria carne é um dos sensíveis no qual se faz uma inscrição céu que se reúne, se recolhe e se põe a existir para si” (Merleau-Ponty 9,
de todos os outros, sensível pivô (...) Meu corpo é no mais p. 248). No Visível e o Invisível as frases antes citadas, que descrevem o
alto grau aquilo que qualquer coisa é: um isto dimensional. movimento do sentir como proveniente do visível, situam-se num contexto
É a coisa universal – Mas enquanto as coisas só se tornam
em que a pergunta se o entrelaço é total e implica uma identidade absoluta
dimensões a partir do momento em que são recebidas no
ou se implica uma identidade “parcial” ou “diferenciada” é deixada em
interior de um campo, o meu corpo é este campo, (...)
medidor universal (Merleau-Ponty 11, p. 313).3 suspenso: “Não examinaremos por ora até onde vai essa identidade do
vidente e do visível” (Merleau-Ponty 11, p. 177). Quando, na continuação,
Nas últimas notas se torna evidente que longe de diluir-se no ser o filósofo introduz em sua análise os outros corpos percipientes, volta a
de indivisão, e mesmo longe da perfeita simetria especular entre a carne do se referir ao que chamava metaforicamente de “o olhar do mundo” para
mundo e minha carne que algumas passagens parecem evocar, o corpo-objeto mostrar que não se trata de um verdadeiro olhar, pois não equivale ao
é ainda pensado como realidade sensível chave, o eixo, a medida universal olhar de um corpo. O olhar das coisas é agora redefinido como “Um olhar
ou “o visível arquétipo” (Merleau-Ponty 11, p. 326). O fato de que meu sem pupila, o espelho sem amálgama das coisas, esse pálido reflexo, esse
corpo seja visível tal como o que ele vê, acrescenta Merleau-Ponty, “não fantasma de nós mesmos, que elas evocam ao designar um lugar entre elas
quer dizer simplesmente: é um pedaço do visível”, porque “meu corpo é desde o qual as vemos”. Somente quando outro corpo sentiente-sensível
passivo-ativo (visível-vidente)” (Merleau-Ponty 11, pp. 324, 325). Segundo aparece, acrescenta Merleau-Ponty, “pela primeira vez o vidente que sou
o filósofo, é somente em função dessa particularidade de meu corpo como me é verdadeiramente visível”, indicando que o mundo não é sentiente
sentiente-sensível que o mundo pode tornar-se sensível: o corpo como no mesmo patamar que o corpo (Merleau-Ponty 11, pp. 188, 189). Não
“sensível exemplar”, “ele e somente ele, porque é um ser de duas dimensões, se formula então uma simples identidade entre essas dimensões da carne,
pode nos levar às coisas mesmas” (Merleau-Ponty 11, p. 179). 4
que são meu corpo e o mundo, ao contrário, é necessário para o filósofo
Certamente, essa distinção recém estabelecida entre o corpo como continuar distinguindo-as e mostrando ao mesmo tempo que só existem
sentiente-sensível e o mundo como somente sensível parece debilitar-se em seu entrelaço mútuo. Estes textos do filósofo mostram com evidência
em certos parágrafos nos quais Merleau-Ponty radicaliza as consequências que a última ontologia merleau-pontiana da carne não significa um total
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abandono ou ruptura com relação a uma filosofia do sujeito que se acharia anátomo-fisiológico, tampouco está fora do espaço como uma consciência
na Fenomenologia da Percepção. Por um lado, esta obra não propõe uma que o sobrevoaria como totalidade inteligível, ele “faz” espaço ou “abre”
simples reivindicação subjetivista, mas sim uma crítica do sujeito clássico o espaço: a isto se refere o tópico merleau-pontiano da “profundidade”
tendo em vista sua condição corporal. E, por outro lado, esse sujeito corporal enquanto espacialidade originária, existencial e ontológica, que estabelece
já debilitado naquela obra não desaparece no Visível e o Invisível, mas, o movimento corporal e constitui a raiz subjacente da espacialidade pensada
pelo contrário, constitui um elemento de referência constante e explícita e da espacialidade física.
na ontologia da carne. Se é assim, as primeiras e as últimas expressões
5
A seção da segunda parte da Fenomenologia da Percepção referida
do filosofar merleau-pontiano não colocam uma alternativa tão excludente ao movimento parece buscar a definição de um tipo singular de movimento
como a que ocasionalmente observa Barbaras, já que em ambos os casos que define o corpo vivido, distinguindo-o de todo movimento no espaço
se busca revelar o mesmo entrelaçamento ontológico do sujeito percipiente enquanto sistema da exterioridade, porém, sem ser por isso desligado da
com o mundo, relação que implica uma redefinição do primeiro dos termos, espacialidade. A alternativa às definições físicas empiristas e intelectualistas
porém, em nenhum caso, sua elisão. do movimento é perseguida segundo uma estratégia característica de toda
a obra, recorrendo a uma descrição fenomenológica do movimento tal
II. O movimento do corpo vivido como fundante do móvel e do espaço como é diretamente vivido e percebido. Para Descartes, quando algo se
movimenta significa propriamente que se move “da vizinhança” de alguns
Ora, reconhecido esse parentesco ou continuidade entre as corpos “que parecem em repouso” à vizinhança de outros (Descartes 4,
primeiras e as últimas formulações do filósofo, é possível ainda tomar Parte III). Algo se move em relação a outra coisa que parece permanecer
outras distâncias com relação à leitura esboçada por Barbaras, propondo no lugar, embora este segundo objeto também possa ser considerado como
uma chave alternativa de interpretação. Se é verdade que frequentemente estando em movimento em relação a um terceiro que não observamos.
o corpo da Fenomenologia da Percepção parece ziguezaguear entre Nossa experiência comum do movimento das coisas e de nós mesmos e
as opções da mera adjetivação ou qualificação da consciência e de sua nosso sentido usual do termo “mover-se” são, desta perspectiva, alusões
materialidade física ou anátomo-fisiológica, pode advertir-se que o corpo equívocas a fragmentos do circuito completo do verdadeiro movimento
recebe uma descrição original e própria em termos de um tipo peculiar de circular que anima uniformemente todos os corpos: “nenhum corpo
movimento, uma maneira própria de mover-se. Precisamente a isto se refere pode mover-se senão em círculo” por consequência lógica direta do
a definição central da Fenomenologia da Percepção do corpo vivido como corpuscularismo com plenum do sistema cartesiano (Descartes 4, p. 57).
esquema motriz, que a leitura de Barbaras aparentemente não considera de Se entendemos o espaço no sentido transcendental kantiano, devemos
maneira afirmativa, como uma abordagem do modo de ser do corpo por si também renunciar a nossas concepções e percepções mais básicas e comuns
mesmo. O corpo vivido, definido na Fenomenologia da Percepção como do que chamamos “movimento”: neste caso, os objetos se movem sem
movimento, não está no espaço como um corpo físico ou como o corpo propriamente subir nem descer, sem se aproximar ou se distanciar, sem ir

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à esquerda ou à direita, a não ser em relação a algum outro objeto tomado não pode ser, por sua vez, somente um lugar localizado no espaço. Neste
como referência. Essas definições relativas do movimento são as únicas que sentido, antes de ocupar um lugar o corpo próprio é um “poder mover-se”
autorizam as concepções objetivas do espaço. Contudo, elas não somente que dá lugar ao corpo que se move no espaço e o “faz” lugar: abre o espaço
anulam os traços mais elementares de nossa experiência de mover e de mesmo, desdobra-o desde um “aqui” particular, o qual não é possível
perceber o movimento das coisas, como também fazem definitivamente localizar no espaço, como mais um lugar entre os outros. Assim, observa
do movimento um fenômeno enganoso e até meramente presuntivo: uma Merleau-Ponty, “se tenho meu braço encima da mesa nunca me ocorrerá
mudança de relações entre objetos que seria experimentada de outro modo dizer que ele esteja ao lado do cinzeiro, como este está ao lado do telefone”
e até mesmo desapareceria se variassem os pontos de referência ou a área (Merleau-Ponty 10, p. 115). Mais geralmente, pode-se dizer que “a palavra
de observação. Aquilo a que estas análises não fazem justiça é então, em ‘aqui’ aplicada ao meu corpo não designa uma posição determinada em
primeira instância, ao fato mesmo de que o movimento seja imediatamente relação a outras posições ou em relação a coordenadas exteriores, mas sim
vivido e percebido como um fenômeno positivo que consta em nossa a instalação das primeiras coordenadas, a ancoragem do corpo ativo em
experiência enquanto tal. Nos termos da Fenomenologia da Percepção: um objeto, a situação do corpo perante suas tarefas” (Merleau-Ponty 10,
p. 117). Mover-se neste sentido mais primário e original do movimento
Se o movimento não segue sem uma referência exterior (...)
não é passar de um lugar a outro, mas abrir o espaço de tal modo que
não há meio de atribuí-lo ao móvel mais que à referência, (...)
haja um lugar onde apoiar-se, desde onde partir e até onde ir, um lugar
não há movimento absoluto. Não obstante, este pensamento
do movimento é uma negação do movimento. (...) O adiante e outro atrás: este movimento real abre o espaço do movimento
movimento não é uma hipótese cuja probabilidade venha possível. Resulta assim mesmo significativa a qualificação de “germinal”
medida, como na teoria física, pelo número de fatos que aplicada por Merleau-Ponty à “originalidade dos movimentos que executo
coordena. Isto somente forneceria um movimento possível.
com meu corpo” e às “sensações cinestésicas”, no momento de relacioná-
O movimento é um fato. A pedra não é pensada, mas vista
los com o movimento no espaço objetivo: “há um germe de movimento
em movimento (Merleau-Ponty 10, pp. 283, 281).
que só secundariamente se desenvolve em percurso objetivo” (Merleau-

Ponty 10, p. 111). Do ponto de vista clássico, um movimento real somente
Dar crédito à realidade do movimento significa então, para
pode atualizar o movimento possível: que todo movimento seja espacial
Merleau-Ponty, afirmar a existência de um movimento absoluto, quer
significa que se ajusta à lei da exterioridade que determina o sistema de
dizer, não relativo a uma referência exterior variável. De certo modo,
todo movimento possível. Da perspectiva fenomenológica, o movimento
Husserl em escritos tais como A Terra não se move havia advertido sobre
real abre ou instaura um campo de movimento possível.
a insuficiência das definições relativas do movimento: é necessário contar
Ora, podemos notar especialmente nos últimos cursos e escritos
com um “aqui” absoluto fornecido pela Terra como solo do corpo próprio
de Merleau-Ponty indicações de uma concepção do movimento ainda mais
em relação ao qual se pode medir o repouso e o movimento relativo de
radical que a noção fenomenológica referida acima: um movimento real
todos os outros corpos (Husserl 6). Ora, para ser “absoluto” este “aqui”

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que não entra no sistema do possível, tampouco abre apenas um campo Essa interpretação em termos de transparência tem a virtude de mostrar que
de possibilidades. Este movimento quebra todo sistema ou campo de coexistem o presente, o passado retido e o futuro visado, o que podemos
movimento possível, introduzindo então, não uma impossibilidade de recordar e antecipar, porém, ainda além se transluz também o que não
sair, de mistério ou de afastamento – tampouco uma “impossibilidade podemos recordar nem antecipar. O que se vê coexiste com o visto, com o
de princípio” como aquela que Merleau-Ponty relacionava com o visível e também com o invisível, tendo aqui o invisível a conotação, tanto
conhecimento acabado do mundo na Fenomenologia da Percepção –, mas para Merleau-Ponty quanto para Husserl, dos horizontes da “natureza”.
sim uma impossibilidade violenta e destrutiva. Um movimento que, como
6
Acerca dos horizontes do passado longínquo, Husserl escrevia nas
o próprio nascimento e a aparição no mundo de uma nova vida, desconhece Meditações Cartesianas, obra emblemática da etapa “genética” de sua
todo passado e não tem “todo o futuro pela frente”, mas aponta em direção fenomenologia:
a seu próprio final.7 Assim, em algumas das escassas referências à questão,
Nesta experiência [transcendental do eu] é o ego
Merleau-Ponty afirma que “vivo em uma atmosfera de morte em geral;
originariamente acessível a si mesmo. Porém essa
(...) minha vida tem uma atmosfera social assim como um sabor mortal” experiência só oferece, em todo caso, um núcleo de
(Merleau-Ponty 10, p. 375). realidade experimentada de um modo “propriamente
Quando se agrega a variável temporal à análise do movimento, adequado” [...] enquanto que além dessa atualidade só se
estende um indefinido horizonte universal e presuntivo
é possível reconhecer a singularidade desta terceira figura. No caso do
[ao qual pertence] o passado do eu, na maioria das vezes
espaço objetivo, o movimento segue a lei da exterioridade e instaura assim
completamente obscuro (Husserl 8, pp. 64, 65).
a regularidade temporal da sucessão em sua clássica figura linear. No
que diz respeito ao movimento em sua noção fenomenológica, por sua
Levando-se em conta o contexto do parágrafo citado, pode-
vez, o movimento vivido estabelece relações internas de montagem entre
se considerar que esse passado obscuro, ao qual Husserl alude aqui,
as partes do espaço de tal modo que o tempo sucessivo e linear cobra
remete à nossa primeira infância. Contudo, mais tarde, nos manuscritos
uma nova dimensão onde coexistem em simultaneidade os horizontes
da década de 1930, Husserl se perguntará: “até onde se estende tal
passados e futuros: o instante se “expande” no sentido vertical e a linha
reconstrução [da análise fenomenológica] com relação ao nascimento
se anula em uma rede. Na Fenomenologia da Percepção Merleau-Ponty
(ou seja, eventualmente, antes do nascimento)?”. A pergunta aponta mais
analisou o gráfico de Husserl da rede do tempo mostrando sua eficácia e
especificamente na seguinte direção: “não somos então impulsionados
suas limitações como modelo da experiência tal como é vivida (Merleau-
para trás, dos homens aos animais, às plantas, [...] até uma consideração
Ponty 10, Parte III, cap. 2). Essa rede deveria ser vista, na leitura proposta
transcendental-subjetiva que, reconstruindo, avança retrospectivamente
por Merleau-Ponty, mais como a abreviação de um modelo tridimensional
até seres-sujeitos de diferentes níveis de ordenação com uma consciência
feito de camadas transparentes de retensões e protenções localizadas atrás
instintiva e uma comunicação instintiva?” (Husserl 7, Apêndice XLVI).
do presente, transluzindo-se até a opacidade (Merleau-Ponty 10, p. 425).8

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Merleau-Ponty em sua Fenomenologia da Percepção parece no esquema husserliano com um visível nivelamento do tempo: o futuro
compartilhar essa concepção da natureza como passado obscuro e é acrescentado como “um passado porvir” (Merleau-Ponty 10, p. 431).
misterioso: a opacidade da natureza resultaria da acumulação de camadas Isto é assim desde que “algumas linhas intencionais traçam de antemão
transparentes de tempo. Assim é que o filósofo pode afirmar, por exemplo, pelo menos o estilo do que virá (embora sempre esperemos, e sem dúvida
que “o mundo natural (...) sempre transparece no outro [o mundo cultural]” até a morte, ver outra coisa aparecer)” (Merleau-Ponty 10, p. 424). Ainda
(Merleau-Ponty 10, p. 308). Tratar-se-ia em tal caso de uma opacidade que a perspectiva fenomenológica leve em consideração o movimento
obtida gradualmente por distanciamento e indefinição, uma espécie de desde o corpo vivido como abertura do espaço e do tempo, a realidade do
tranquilo anoitecer no qual a consciência adormeceria nos braços de sua movimento é, todavia, coagulada no marco de um sistema de possibilidades
mãe, a natureza. Essa metáfora maternal poderia não resultar tão distante de movimento. Certamente, nesse caso não se trata de um sistema espaço-
do modo de pensar do próprio Merleau-Ponty, se recordamos que a temporal a priori, fechado e sem lugares ou direções distinguíveis, porém, o
Fenomenologia da Percepção caracteriza a consciência como “filha do espaço fenomenológico somente pode abrir-se sob a condição de configurar
mundo”: “A consciência não se atribui este poder de constituição universal a cada vez, em cada movimento e com cada nova perspectiva um sistema
apenas quando se passa em silêncio o acontecimento que constitui sua de possibilidades que compõe harmonicamente todos os lugares e todos os
infraestrutura, que é seu nascimento. (...) Nascer é ao mesmo tempo nascer tempos. “Todos” não significa “todos os pensáveis ou concebíveis”, mas
ao mundo e nascer do mundo” (Merleau-Ponty 10, p. 460). Contudo, as “todos os que podem ser vividos” ou “todos os visíveis”, quer dizer: os que
ilusões da Fenomenologia da Percepção com respeito à questão do mundo são invisíveis desde meu presente ou desde minha perspectiva. A definição
natural podem resultar problemáticas no contexto mais geral da obra, e fenomenológica do movimento fracassa porque se o movimento surge a
provavelmente devem ser consideradas um esboço da concepção mais partir do eu, mesmo sendo este eu concebido como eu-corpo ou poder de
articulada e significativa da natureza, a qual progressivamente passará ao movimento, todo espaço que se abre volta a cada vez a fechar ou cristalizar
primeiro plano no pensamento posterior do filósofo. o movimento que o abre.
Merleau-Ponty salienta na obra de 1945 que a concepção O espaço vivido, certamente, não é limitado pelo infinito do
fenomenológica do tempo – ligada intimamente às do espaço e da natureza possível pensado, mas se abre ao possível vivido, ao invisível para mim
– é demasiadamente modesta em sua consideração do futuro: o diagrama agora, porém, visível para mim no passado e no futuro, e também ao visível
retilíneo husserliano se estende até abaixo das linhas oblíquas das retensões para os outros. Contudo, essa abertura comporta uma nova limitação: o
e presuntivamente se completa acrescentado acima “a perspectiva simétrica espaço se abre ao invisível que eu nunca vi ou verei, ou inclusive que
das protensões” (Merleau-Ponty 10, p. 425). Embora o tempo se abra ninguém viu ou verá, porém, essa invisibilidade é concebida ainda como
desde um presente vivente, absoluto, um acontecer que ata completamente um espaço contínuo e adjacente ao espaço visível. Trata-se de um espaço
a rede e que não pode ser localizado como qualquer outro ponto de cruz invisível que acolhe o visível: nunca o espaço se abre de tal modo que
“no tempo”, a afirmação da “originalidade de cada perspectiva” concorre a visibilidade se interrompa, o invisível não impossibilita a continuidade

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da visão e o que foi visto antes nunca desaparece sem deixar rastro. A (Sartre 16, pp. 284 e ss.). Em certas passagens de sua Fenomenologia
perspectiva fenomenológica considera que o movimento de meu corpo da Percepção, contudo, Merleau-Ponty parece manter-se próximo da
abre o espaço, porém acomoda o movimento ao espaço aberto e considera ortodoxia husserliana afirmando que a multiplicidade e a diversidade de
o último como uma abertura feita “na medida” do corpo que o abre. Pelo espaços coexistem em simultaneidade, compondo-se e compondo o espaço
contrário, na experiência mesma, este abrir-se do espaço é na realidade único do mundo, porquanto compartilham o passado comum da natureza
vivido como um movimento transbordante e excessivo, quando não como “única mãe”, que ninguém conheceu nem pode conhecer, mas que
relativo e limitado, afortunado e falido, gozoso e agônico. O mundo ou lhes deu vida a todos:
o espaço que nosso movimento corporal abre e ao qual se abre “nunca
A novidade da fenomenologia não estava em negar a unidade
está completamente feito” (Merleau-Ponty 10, pp. 20, 341 e ss.) nem
da experiência, mas em fundamentá-la diferentemente do
se acomoda à sua medida ou à sua “capacidade de fazer presa”: meu
racionalismo clássico. (...) O espaço natural e primordial
movimento sempre é efetivamente impulsionado e interrompido pela força não é o espaço geométrico e correlativamente a unidade da
de outros movimentos imprevisíveis e mais poderosos. experiência não vem garantida por um pensador universal;
Fiel à descoberta fenomenológica do movimento que abre o (...) não me libera de cada meio particular ainda mais porque
me ata ao mundo da natureza (...) que os envolve a todos
espaço ao invés de acontecer no espaço, Merleau-Ponty, seguindo Husserl,
(Merleau-Ponty 10, p. 308).
deve dar lugar neste espaço a uma diversidade de espaços que se abrem

a partir de uma diversidade de corpos próprios, uma diversidade de
Merleau-Ponty nunca abandonou totalmente essa primeira
comunidades culturais e de gerações. O espaço se abre a partir daqui, este
intuição fenomenológica de uma unidade primordial de toda experiência,
centro em direção ao qual todos os olhares das coisas convergem como
dos diversos sujeitos e comunidades, e inclusive de todos os seres vivos,
os raios de uma roda quando os olho. Porém, a roda da experiência não
porém, sem dúvida chegou a concebê-la de outro modo quando escreveu
está perfeitamente centrada na medida em que as coisas não me olham
cerca de uma década mais tarde que embora “os homens e o tempo, o
somente, mas sempre estão desviando seu olhar a outro, situação da qual
espaço sejam feitos do mesmo magma” ao modo de uma “montagem
foi especialmente consciente Sartre ao escrever que “o próximo é a fuga
[emboîtement: incorporação, anexação), há uma sorte de transbordamento
permanente das coisas a um termo que tanto capto como objeto a certa
[empiétement] dos corpos uns sobre os outros, o que acontece a um, sua vida
distância de mim quanto me escapa enquanto desdobra em torno de si
e sua morte, metamorfoseia a duração, a idade do outro” (Merleau-Ponty
suas próprias distâncias”. O próximo abre outro espaço “e este espaço
13, p. 211). A unidade do tempo deve ser entendida sob esta perspectiva,
é feito com meu espaço”. Então, abrir o espaço ou desdobrá-lo é ao
como “a coexistência de tempos incompossíveis” (Merleau-Ponty 13,
mesmo tempo abrir uma rachadura, uma fuga ou “uma hemorragia” no
p. 207). Na percepção coexistem perspectivas que são ao mesmo tempo
espaço já desdobrado por outro e expor-se a sofrer continuamente essas
“incompossíveis e inseparáveis, e é nessas condições difíceis que buscamos
mesmas avarias e catástrofes, tal como agudamente o expressara Sartre
o que conforma o tecido do mundo” (Merleau-Ponty 14, p. 154). O presente

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é agora caracterizado como présent-gigogne (o que poderia ser traduzido pensamento” (Merleau-Ponty 15, p. 19). Esta mesma ideia está presente na
por “presente desdobrável”, mas também por “presente frutífero”).9 À sentença de Lucien Herr, inspirada em Hegel, a qual Merleau-Ponty gosta
luz desses cursos tardios a respeito do tempo, os “filhos” deste presente de citar em seus cursos: “a natureza está sempre em seu primeiro dia”. A
frutífero o colocam em questão, e seu desdobrar o transforma em uma natureza é nascimento, e o nascimento é o movimento que caracteriza a
dobra, mas de uma estrutura sem um centro fixo ao qual possa regressar: vida ou o movimento vital por antonomásia. Em um sentido análogo o
“o passado que [o presente] contém o descentra, é outro mundo” (Merleau- filósofo afirmará em seus cursos que “a vida não é como na definição de
Ponty 13, p. 207). A partir das notas posteriores à Fenomenologia da Bichat, o conjunto de funções que resistem à morte, mas uma potência de
Percepção, o eu-corpo como esquema motriz não fornece a definição mais inventar o visível”. 10
própria do movimento como aquele ponto zero desde o qual se abrem ou Merleau-Ponty efetivamente procura, então, pensar o corpo vivente
se desdobram o tempo e o espaço, mas o movimento pode ser concebido e a vida mesma a partir deles mesmos, e não sempre e somente a partir de
de forma mais radical, como movimento de nascer ou brotar que não um jogo de oposições que os traem por excesso ou por falta. De acordo
abre o espaço, porém, o faz explodir, multiplica-o, coloca-o finalmente com a interpretação aqui sugerida, eles recebem uma determinação positiva
em movimento no sentido próprio: faz real o impossível, não somente o em termos de um movimento originário que é anterior a todo ente que se
inconcebível ou o que ninguém nunca pôde ver, mas o que não pode existir move e a todo ser concebido no sentido unitário, total ou estático, já que se
no mundo como plexo do existente ou como alguma forma de totalidade. trata em última instância do movimento de nascer ou brotar. Neste sentido,
Merleau-Ponty propõe que haja um tipo de ser interrogativo que define
III. O corpo vivente e o movimento do nascer a vida, mais do que um ser positivo que lhe seja próprio (Merleau-Ponty
11, p. 139). Assim como o movimento de nascer não acontece ao ser, mas
Neste sentido, podemos afirmar que aquele “mundo em estado lhe é prévio – “faz ser” –, esta interrogação da vida permite ser entendida
nascente” correlato de um “sujeito em estado nascente”, cujo propósito de naquele sentido radical pelo qual Merleau-Ponty se refere, nas primeiras
Merleau-Ponty era redescobrir, segundo afirmavam as primeiras páginas seções do Visível e o Invisível, a um modo originário da interrogação
da Fenomenologia da Percepção, encontrará sua forma mais apropriada que não deriva do indicativo (Merleau-Ponty 11, p. 171). Referindo-se
na natureza cujo “sentido originário” o filósofo persegue nos cursos aos cursos de Merleau-Ponty acerca das investigações embriológicas,
sobre La Nature (1956-60). Trata-se de um mundo cujo ser consiste em Bimbenet escreve:
um movimento nunca fechado ou totalizado, associado por Merleau-
Contra a imobilização da vida perpetrada pelo mecanicismo
Ponty diretamente ao movimento da vida entendido, por sua vez, em
e pelo finalismo, Merleau-Ponty afirma que “não há um
termos de brotar, crescer e nascer: “Em grego a palavra natureza vem de ser positivo, mas um ser interrogativo que define a vida”.
phýo, que faz alusão ao vegetal; a palavra latina vem de nascor, nascer, O organismo está sempre além de si mesmo, inclinando
viver. Há natureza onde há uma vida que tem sentido, ainda que não haja em direção ao futuro, porém sem que este futuro possa ser
prefigurado de antemão sob a forma de um fim determinado.

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“Há uma falta constitutiva que não é disto ou daquilo”, diz Uma ‘espontaneidade’ adquirida de uma vez por todas que
Merleau-Ponty, e assim, pois, há uma invenção do possível ‘se perpetua no ser em virtude do adquirido’ (...) não se pode
(Bimbenet 3, p. 156). deduzir o tempo da espontaneidade. (...) a potência de ir além
(...) nos é dada com a temporalidade e com a vida. Nosso
nascimento, ou, como diz Husserl em seus inéditos, nossa
Bimbenet persegue essa noção da vida, ao longo das páginas de
‘generatividade’, funda ao mesmo tempo nossa atividade”
La Nature, como “ser incoativo” que sempre está começando (assim como
(Merleau-Ponty 10, p. 435).
se fala de “verbos incoativos”, que se referem ao começo de um processo,
tais como “florescer”). A vida é “iminência”, “vazio do que virá”, “não ser
Assim, se em sua obra de 1945 Merleau-Ponty busca na
operante” e “produtividade originária” nas definições de Merleau-Ponty
fenomenologia uma definição positiva do corpo em função de um modo
citadas pelo autor, que as resume na noção de “advento” (événement),
original e originário de movimento, o filósofo já avança na direção de
como “instituição e criação de sentido, abertura de dimensões inéditas”
superar ou radicalizar a visão fenomenológica clássica ao discernir que
(Bimbenet 3, p. 146). Os movimentos da carne que descrevem as páginas
o modo mais originário e o sentido mais próprio do movimento corporal
do Entrelaço-o Quiasma do Visível e o Invisível também podem ser lidos
é o nascer. Assinalamos anteriormente que naquela obra é sublinhado o
nesta chave: as invaginações, dobras, deiscências, brotos, reentrâncias,
fato de que a consciência não pode ser qualificada como constituinte do
multiplicações de folhas e de lábios que tornam sentiente o espaço sensível,
mundo, afirmando que, ao contrário, ela nasce no mundo: seu nascimento
assim como a sublimação do espaço sensível em pensamento, são descritos
constitui “sua infraestrutura” mesma (Merleau-Ponty 9, p. 517). Essa
por Merleau-Ponty mediante uma profusão de figuras vegetais e sexuais
consciência “nascida” é propriamente aquilo que Merleau-Ponty
que ilustram a cada passo o nascimento de novas dimensões do ser: um
propunha descrever desde o prólogo de sua obra ao falar do sujeito em
ser que é em si mesmo somente este movimento de fazer-se, desdobrar-se,
“estado nascente”, e é, por sua vez, esse sujeito “nascente” o que deveria
diferenciar-se e multiplicar-se.
assim ser identificado com o corpo “vivente”, se o nascer fosse o mais
Ora, já na Fenomenologia da Percepção pode-se ler, embora
próprio do viver. A exclusão da possibilidade de um sujeito constituinte,
certamente em referências intermitentes, que o movimento vivido é vislumbrado
afirma Merleau-Ponty, deriva da afirmação de “um mundo que nunca é,
como devedor deste movimento mais originário da vida, a qual é descrita mais
como disse Malebranche, mais que uma obra inacabada” paralela a de um
fielmente pela última produção do filósofo. Assim, afirma Merleau-Ponty em
corpo que, segundo a fala de Husserl citada por Merleau-Ponty, “nunca
1945, por exemplo: “Eu não sou o autor do tempo, assim como não sou autor das
está completamente constituído”: um corpo que não apenas nasceu, mas
batidas de meu coração, não sou eu quem toma a iniciativa da temporalização;
que, como vivente, nunca deixa de nascer (Merleau-Ponty 9, p. 465).
eu não escolhi nascer, e uma vez nascido, o tempo funde-se através de mim, o
Também escreve Merleau-Ponty: “A esta unidade aberta do mundo deve
que quer que eu faça”. A propriedade desta temporalização vital se mostra em
corresponder uma unidade aberta e indefinida da subjetividade”, quer dizer,
que a novidade ou espontaneidade que pode introduzir minha ação sempre é
um sujeito que poderia ser caracterizado como perpetuamente nascente,
devedora de uma originalidade mais radical própria à vida:

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tal como continua propondo o resto do capítulo citado – “O cogito” –, entendido como totalidade ao menos presuntiva. Trata-se, afirma o texto,
que inclui um parágrafo referido especificamente ao nascimento, o qual da aparição de novos campos de possibilidades, quer dizer, de uma peculiar
vale a pena citar in extenso neste contexto: “atualização” (no sentido de “fazer-se”) do que antes não era possível, o
que não entrava no mundo como campo total de possibilidades, e que agora
Certo dia e de uma vez por todas algo começou que, mesmo
é perturbado, transformado ou criado. Em segundo lugar, este nascimento
durante o sono não pode mais parar de ver ou de não ver,
de sentir ou de não sentir, de sofrer ou de estar feliz, de como realização do impossível e criação ou invenção do possível acontece
pensar ou de descansar, em suma, de se ‘explicar’ com o simultaneamente como movimento de fazer-se ou de nascer do corpo e
mundo. Aconteceu não um novo lote de sensações ou de do mundo. Embora no parágrafo citado se sublinhe a direção do sujeito
estados de consciência, nem mesmo uma nova mônada ou
ao mundo (o mundo “recebe uma nova dimensão de sentido”), podemos
uma nova perspectiva, já que não estou fixado em nenhuma
recordar outras afirmações mais enfáticas que se referem ao nascimento
e posso mudar de ponto de vista, sujeito apenas a sempre
a ocupar um ponto de vista e a ocupar somente um a cada do sujeito no mundo e a partir do mundo: “eu sou uma dobra [do ser ou
vez – digamos que aconteceu uma nova possibilidade de do mundo] que se fez e que pode desfazer-se” (Merleau-Ponty 9, p. 249).
situações. O acontecimento de meu nascimento não passou, Em terceiro lugar, este movimento de nascer não é somente remetido ao
não caiu no nada à maneira de um acontecimento do mundo
passado como em outras ocasiões quando só se pretendia limitar o poder
objetivo, ele envolvia um porvir (...) Doravante havia um
constituinte do sujeito opondo-lhe a precondição de um passado natural
novo ambiente, o mundo recebia uma nova camada de
significação. Na casa onde nasce uma criança, todos os ou absoluto que às vezes se deslizava equivocamente a determinações
objetos mudam de sentido, eles se põem a esperar dela anátomo-fisiológicas. Aqui se fala de um corpo nascente, cuja primeira
um tratamento ainda indeterminado, alguém diferente e percepção, aquela inauguração de um futuro não antecipável ou aquele
alguém a mais está ali, uma nova história (...) acabou de
surgir do inédito, “é um evento sempre presente”, correlato indissociável
ser fundada, um novo registro está aberto. Minha primeira
de um mundo que está “sempre no primeiro dia”.
percepção, com os horizontes que a rodeiam é um evento
sempre presente (Merleau-Ponty 9, p. 465, 466). No marco da linha interpretativa aqui proposta, podem ser
compreendidas também as frequentes alusões merleau-pontianas ao
Esta passagem comporta ao menos três particularidades que podem corpo definido em comparação com a obra artística: “não é com o objeto
se destacar no marco da análise aqui proposta. Em primeiro lugar, o fato físico que se pode comparar o corpo, mas com a obra de arte” (Merleau-
de que esse movimento de nascer, próprio ao eu-corpo, parece transcender Ponty 10, p. 167). A comparação aponta, nas análises de Merleau-Ponty,
o “movimento vivido” no sentido fenomenológico restrito, como mero especialmente para a questão do “sentido aderente” ao suporte material ou
desdobrar de perspectivas já latentes ou de novas perspectivas que aos “conteúdos sensíveis”: “é neste sentido que nosso corpo é comparável
reestruturam os horizontes já sedimentados e compõem sempre um “arco à obra de arte: é um nó de significações vivas” (Merleau-Ponty 10, p. 168).
intencional” harmônico, cuja compossibilidade é garantida pelo mundo, Contudo, pode-se ver ainda outro sentido desta frequente comparação do

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Cadernos Espinosanos XXVII Esteban A. García

corpo com a obra de arte, nem sempre explicitado por Merleau-Ponty, du Collège de France 57-58”, en Chiasmi International, París, Mimesis/
porém sempre latente para o leitor; e este é o mais comum à “criação” Vrin, II, 2000.
4. Descartes, R., Los principios de la filosofía, Buenos Aires, Losada, 1997.
artística. É justamente esse aspecto o que aparece mencionado no prólogo
5. García, E. A., “La phénoménologie de l´expérience corporelle au delà du sujet et
da Fenomenologia da Percepção em referência ao mundo e à filosofia: de l´objet”, In Chiasmi International, Paris, Mimesis/Vrin, IX, 2007.
“o mundo fenomenológico não é a explicitação de um ser prévio, mas a 6. Husserl, E., La tierra no se mueve, Madrid, Editorial Complutense, 1995.
fundação (...) do ser; a filosofia não é o reflexo de uma verdade prévia, 7._______, Zur Phänomenologie der Intersubjektivität (Gesammelte Werke –
mas, como a arte, a realização de uma verdade”. Este mundo “e a filosofia Husserliana XV), The Hague, Martinus Nijhoff, 1973, Apéndice XLVI.
8. _______, Meditaciones cartesianas, México, FCE, 1996.
que o faz vir à existência manifesta não começa por ser possível: é atual ou
9. Merleau-Ponty, M., Phénoménologie de la perception, París, Gallimard, 1945.
real”. Trata-se neste caso, conclui o parágrafo, de “um ato violento que se 10. _______, Fenomenología de la percepción, Barcelona, Planeta, 1994.
verifica exercendo-se” (Merleau-Ponty 10, p. 20). 11. _______, Le visible et l’invisible. Suivi de notes de travail, París, Gallimard,
1964.
12. _______, L’ oeil et l’ esprit, París, Gallimard, 1964.
The living body and the movement of the life in M.
13. _______, Notes de cours au Collège de France 1958-1959 et 1960-1961, París,
Merleau-Ponty and R. Barbaras
Gallimard, 1996.
Abstract: Firstly, the analyses here proposed focus on the interpretation of
14. _______, Signes, París, Gallimard, 1960
the Merleaupontyan corpus proposed by R. Barbaras in his Introduction à une
15. _______, La nature. Notes de courses du Collège de France, París, Éditions du
phénoménologie de la vie, according to which the oscillations and ambivalences of
Seuil, 1995.
Merleau-Ponty’s reflection on the body could be explained by the neglect of its basic
16. Sartre, J.-P., El ser y la nada, Barcelona, Altaya, 1993.
living character. Secondly, we approach Merleau-Ponty’s philosophy as the project of
finding in the body an original and absolute modality of movement as an opening of
possibilities, a movement in which both the object that moves and the space that is NOTAS
opened by the movement are founded. Thirdly, by focusing on the notion of birth we
propose that this singular modality of movement searched by Merleau-Ponty find its 1. Na mesma nota citada por Barbaras, Merleau-Ponty reivindica um certo “valor
proper characterization as natural and vital movement, conciliating at least partially do dualismo”: segundo o comentador “se trata de pensar uma univocidade que não
the perspectives of both philosophers. comprometa a diferença da consciência” (Barbaras 1, pp. 80, 81).
Keywords: Merleau-Ponty – Barbaras – Mouvement – Life - Corporeality 2. Veja-se, por exemplo, Merleau-Ponty 10, pp. 288, 100.
3. No mesmo sentido, escreve Merleau-Ponty: “Meu corpo não é simplesmente um
percebido entre os percebido, ele é medidor de todos” (Merleau-Ponty 11, p. 302); “A
Referências Bibliográficas
experiência de minha própria carne (...) me ensinou ela não nasce não importa onde,
que ela emerge na recessão de um corpo” (Merleau-Ponty 11, pp. 24, 25).
1. Barbaras, R., Introduction à une phénoménologie de la vie, París, Vrin, 2008.
4. Segundo afirma Merleau-Ponty, só porque “meu corpo que é um dos visíveis se vê
2. _______, Le tournant de l’expérience. Recherches sur la philosophie de Merleau-
também a si mesmo” pude se realizar “a milagrosa promoção do Ser à ‘consciência’, ou
Ponty, París, Vrin, 1988.
como dissemos, a segregação do ‘dentro’ e do ‘fora’” (Merleau-Ponty 11, pp. 157, 158).
3. Bimbenet, E., “L’être interrogatif de la vie: l’historicité de la vie dans les cours
5. A respeito, cf. García 5, p. 9.

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Cadernos Espinosanos XXVII

6. “É essencial para a coisa e para o mundo o que (...) nos permitam algo mais por ver”
(Merleau-Ponty 1, p. 146). A experiência da falta e
7. A referência a um fundo indefinido aparece nas últimas páginas de O Olho e o
o mistério do desejo
Espírito (Merleau-Ponty 8).
8. Assim se afirma que ao recordar um momento, A é dado “por transparência através
de A’ (...) e assim sucessivamente como vejo o ladrilho através das massas de água que Silvana de Souza Ramos*
deslizam sobre ele” (Merleau-Ponty 10, p. 425).
9. Também um presente de “imbricação”, “montagem”, “acoplamento” ou
“embutimento”: gigogne se aplica às mães de muitos filhos, aos móveis e utensílios Resumo: O artigo analisa a importância da leitura da obra de Merleau-Ponty no interior
desdobráveis e às bonecas russas. da construção da filosofia de Barbaras. Por um lado, trata-se de compreender os limites
10. O texto correspondente aos cursos sobre a natureza é citado em Bimbenet 3, p. 161. do corpo próprio para dar conta do a priori correlacional exigido pela fenomenologia.
Por outro lado, buscamos desvelar, nos desdobramentos da filosofia da vida proposta
pelo filósofo, um horizonte de novos problemas, referidos especialmente à descrição
da peculiaridade do desejo humano frente à vida entendida num sentido mais geral.
Palavras-chave: Barbaras, Merleau-Ponty, vida, desejo, intencionalidade, mundo.

1. A originalidade de um pensamento pode ser definida por sua


capacidade de revigorar certos temas herdados da tradição, conferindo-
lhes um sentido ainda não explorado, uma direção ou um alcance antes
invisível. Isso não significa apenas dar um novo significado a determinado
conceito ou, ainda, inventar novos conceitos, mas, sobretudo, retomar
uma questão – desvinculando-a de certos pressupostos naturalizados ou
cristalizados pelo pensamento vigente – de modo a produzir uma resposta
inédita. Por um lado, isso exige que o pensador se situe na perspectiva de
uma determinada corrente filosófica: o pensador é inicialmente o aprendiz
de certa maneira de transitar pelo terreno da idealidade. Por outro lado, não
basta incorporar esse estilo: é preciso desdobrá-lo, isto é, assumir a tarefa
de pensar por si mesmo. É por isso que uma tradição filosófica só pode
enriquecer, ou seja, ampliar nossa potência de pensar, na medida em que se
diversifica por meio do trabalho de pensadores individuais.

* Pós-doutoranda pelo Departamento de Filosofia da USP (bolsista Fapesp).

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Cadernos Espinosanos XXVII Silvana de Souza Ramos

Não há dúvida de que Renaud Barbaras contempla essas perspectiva aberta por Merleau-Ponty – a qual pretende dar conta do a priori
condições: afinal, ele retoma e desdobra um estilo de pensamento, a correlacional, sem perder de vista o pertencimento do sujeito ao mundo –
saber, a fenomenologia. Seu percurso filosófico se inicia com uma leitura mostrando que tal intuito só pode ser resolvido mediante uma abordagem
cuidadosa de Merleau-Ponty, centrada sobretudo na análise da ontologia criteriosa do fenômeno da vida (a um só tempo leben e erleben). Sendo
indireta proposta pelo filósofo francês. O trabalho de leitor – publicado assim, por outro lado, os demais interlocutores de Barbaras aparecem
em seus dois primeiros livros, De l’être du phénomène. Sur l’ontologie como figuras que desenham no campo teórico diversas abordagens da
de Merleau-Ponty (1991) e Le tournant de l’expérience. Recherches sur noção de vida, sem, contudo, dar conta de sua caracterização, quer dizer,
la philosophie de Merleau-Ponty (1998) – não pode ser resumido a um sem responder às dificuldades colocadas pela obra de Merleau-Ponty.
simples comentário estrutural, uma vez que teve o mérito de alavancar 2. Isso significa que para compreender a filosofia de Barbaras é
Merleau-Ponty ao primeiro plano da cena contemporânea, libertando-o preciso inicialmente pôr em relevo a dificuldade imposta pelo ponto de
da sombra projetada por Sartre. Sob a pena de Barbaras, Merleau-Ponty partida do corpo próprio. No prefácio de Vie et intentionnalité. Recherches
deixou de ser visto como um mero existencialista coadjuvante ou como phénoménologiques (2003), Barbaras oferece uma formulação do eixo central
um pensador político imerso em suas próprias ambiguidades. Com efeito, de sua investigação, quando pergunta: “qual é o sentido de ser do sujeito
a leitura de Barbaras mostrou que a obra de Merleau-Ponty elabora de percipiente (quer dizer, da intencionalidade) enquanto ele pertence ao mundo
maneira pertinente as questões centrais da fenomenologia ao reivindicar sem, contudo, existir sob o mesmo modo que os outros entes porque é a partir
como condição para o desvelamento do a priori correlacional – isto é, dele que eles aparecem?” (Barbaras 7, p. 12). Essa questão pressupõe uma
para o entendimento rigoroso da abertura originária do sujeito ao mundo investigação fenomenológica segundo a qual o centro da pesquisa deve ser
– a consideração intransigente do caráter encarnado e intramundano da ocupado pela relação originária entre sujeito e mundo. Quer dizer, trata-se de
subjetividade. Contudo, esse trabalho de interpretação deu ensejo a uma evitar a reificação dos termos, o que significa mostrar que a relação os precede:
nova perspectiva, já que o caminho percorrido por Barbaras o fez descobrir afinal, não há sujeito que não seja aberto ao mundo; inversamente, o mundo
na empresa merleau-pontiana um verdadeiro limite, o que o levou a dar só pode aceder à fenomenalidade, isto é, aparecer, para um sujeito. Donde a
um passo além, isto é, a produzir seu próprio pensamento. Não devemos, necessidade de investigar os termos da relação preservando a peculiaridade
evidentemente, negligenciar o fato de que o filósofo se dedicou ao estudo de cada um deles, o que permite evitar a subordinação de um ao outro, pois
de diversos pensadores – Husserl, Freud, Lacan, Bergson, Henri, Patocka, o surgimento da visão é ao mesmo tempo a vinda de um ente à visibilidade.
Lèvinas, entre outros. Porém, é preciso salientar que a obra de Barbaras – Em outras palavras, nenhum dos lados existe antes da relação; assim como
até o presente momento – pode ser sintetizada, por um lado, pela tentativa nenhuma visada pode suprimir o jorrar das aparições. É preciso, pois, dar conta
de se desvencilhar dos limites do corpo próprio para adentrar a camada da relação para que os termos sejam trazidos à luz. Essa é a única via de acesso
mais profunda do ser intramundano da subjetividade, designado pela ao ser do sujeito: pensá-lo como aquele que traz o mundo à visibilidade, sem,
transitividade inerente à vida. Em outras palavras, trata-se de radicalizar a contudo, suprimi-lo em sua alteridade em relação ao que aparece.

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Ora, a grande contribuição de Merleau-Ponty para esclarecer esse Por isso, para dar conta do acesso do sujeito encarnado ao mundo,
problema foi ter aprofundado a perspectiva husserliana segundo a qual Merleau-Ponty defende que é a intencionalidade operante (fungierende
a percepção só pode ter um acesso inadequado ao mundo, porquanto a Intentionalität) – e não a intencionalidade de ato – que originariamente
doação por perfis obriga o sujeito a uma exploração que nunca se completa. anima a experiência concreta (Merleau-Ponty 13, p. VIII). Tal
Essa inadequação não se deve a uma limitação de nossas faculdades, intencionalidade não visa o conhecimento ou a representação de objetos,
pois ela tem um escopo essencial: até mesmo deus apreenderia o mundo ao contrário, ela estrutura uma relação de ser no mundo, espécie de
inadequadamente através da percepção. Decerto, o objeto se ausenta na conhecimento prático que é um modo original de acesso ao mundo. Com
medida em que se apresenta, já que um perfil anuncia indefinidamente outro, efeito, o debate merleau-pontiano acerca da redução fenomenológica tem
de modo que o sujeito da percepção jamais pode se apossar do mundo, um papel fundamental, pois ao recusar a originalidade da intencionalidade
pois a doação nunca é exaustiva. No plano da fenomenologia de Merleau- de ato, Merleau-Ponty busca recuperar o mundo da vida que o próprio
Ponty, a inadequação garante a transcendência do mundo, salvaguardando Husserl de Krisis entendia como a camada da experiência negligenciada
o caráter originário da correlação sujeito/mundo. Ao mesmo tempo, ela pelo racionalismo clássico. Segundo Husserl, a racionalidade moderna
recusa o ideal de objetividade pura preconizado por Husserl e sustentado nasce quando acontece uma mutação no emprego das matemáticas que
pela prerrogativa de ausência de limites da razão objetiva. permite a conquista do infinito, ou, mais precisamente, quando se define
Sabemos que Merleau-Ponty busca recuperar o mundo da vida mediante a racionalidade como tarefa infinita. O que dá ensejo a essa mutação é
a descoberta de um sentido originário do mundo anterior ao saber objetivo. Por a compreensão de que o espaço vivido não comporta a perfeição das
isso, desde o prefácio da Phénoménologie de la perception, o filósofo afirma formas matemáticas: o espaço vivido é o lugar das gradações ou do
a necessidade de que “a reflexão radical seja consciente de sua dependência inexato. Torna-se necessário, então, submetê-lo a um ideal de perfeição
em relação a uma vida irrefletida que é sua situação inicial, constante e final” situado no infinito, onde as formas alcançariam a perfeição geométrica.
(Merleau-Ponty 13, pp. VIII-IX). Assim, Merleau-Ponty salienta que a redução Como observa Barbaras, o objeto científico, concebido sob o paradigma
fenomenológica não deve ser um retorno idealista à consciência constituinte, matemático, é “o produto de uma idealização, quer dizer, de uma
pois a redução completa configuraria, na verdade, uma reflexão incompleta, forma obtida pela passagem ao limite no seio de um processo infinito”
já que perderia a facticidade originária do sujeito e do mundo, anterior a (Barbaras 6, p. 66). Sendo assim, o gesto galileano de matematização
qualquer síntese intelectual. Noutras palavras, se a redução fenomenológica nos da natureza nada mais é do que a extensão de um ideal de objetividade
encaminhasse a um sujeito absoluto que acede às essências, e isso ao preço de à totalidade da natureza. Ora, é esse gesto que funda a racionalidade
nos fazer perder a concretude do mundo indefinidamente aberto à percepção, ela científica moderna e que consequentemente nos faz esquecer, esclarece
não cumpriria a promessa de nos desvelar o sentido originário da experiência, e Barbaras acerca da posição merleau-pontiana, o sentido aderente ao
só nos forneceria mais uma construção reflexiva do mundo vivido por se alinhar sensível e, por isso mesmo, anterior à transformação do mundo em
a uma atitude comum a todo intelectualismo. objeto de conhecimento.

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Aqui, de fato, Husserl oferece uma formulação interessante, doação do mundo mediante perfis. Merleau-Ponty, ao contrário, pensando
pois o filósofo observa que o movimento galileano de matematização da a transcendência de um modo não-objetal e não positivo “evita [segundo
natureza tem um duplo significado. Por um lado, ele revela como a física- Barbaras] referir a intencionalidade a algo como uma representação ou
matemática torna possível transpor para o conhecimento da natureza o uma apreensão de sentido, preservando assim seu movimento centrífugo e
método elaborado pela idealidade geométrica. Por outro lado, o método, por isso mesmo a transcendência do pólo intencional” (Barbaras 7, p. 11).
porque concebido segundo um movimento de idealização da natureza, é Noutras palavras, o sujeito encarnado visa um etwas, um invisível que não
uma espécie de subsunção do mundo da experiência, de modo que esta pode se doar sob a forma do objeto, mas que está presente em cada aparição
se torna encoberta pela idealidade matemática. Surge então a necessidade do mundo, sob o modo da ausência. O invisível não é, portanto, um objeto
de um retorno à experiência velada pelo processo de idealização. Noutras que a consciência sobrevoaria no final do processo de determinação; pelo
palavras, o reconhecimento de que a ciência é uma idealização da natureza contrário, ele é inatingível, é transcendência pura, “sem máscara ôntica”.
exige que se retorne ao mundo da vida no intuito de esclarecer sua Daí que o sujeito permaneça indissoluvelmente ligado a um mundo que
originalidade própria e, consequentemente, sua diferença ou seu excesso lhe escapa reiteradamente, de modo que o movimento que faz o mundo
em relação à objetividade científica. aparecer preserva a diferença do sujeito, isto é, sua distância em relação à
É neste ponto, entretanto, que a fenomenologia de Husserl parece exterioridade, a despeito de seu pertencimento ao mundo.
insuficientemente radical, aos olhos de Merleau-Ponty. Pois, na verdade, Mas então é preciso perguntar: se Merleau-Ponty acerta na
Husserl afirma que o mundo da vida abriga as mesmas estruturas que crítica ao primado husserliano do objeto ante a transcendência do mundo,
aquelas da ciência objetiva. Quer dizer, ele é habitado por coisas fechadas onde está seu limite? A resposta reside no fato de que Merleau-Ponty, ao
sob um conjunto de determinações, o que as torna manipuláveis pelo conceber o sujeito da percepção sob a figura do corpo próprio, acaba por
conhecimento científico. Em suma, isso significa que Husserl não desvela perder o sentido da própria correlação; isto é, acaba por jogar fora o ganho
a originalidade do mundo da experiência – isto é, sua aparição pré-objetiva representado pela recusa da originalidade da intencionalidade de ato.
–, pois, no final das contas, há uma continuidade eidética absoluta entre o Segundo Barbaras, o que faz Merleau-Ponty em Le visible et l’invisible?
mundo da vida e o mundo idealizado da ciência. Quer dizer, a diferença O filósofo opera uma descrição da experiência do tato, segundo a qual o
entre o exato e o inexato não ameaça em nenhum momento o pressuposto corpo próprio, ao visar-se, sente-se apreendido como objeto, o que revela
fundamental de que o mundo da vida é um mundo de coisas acessíveis que sua carne é também carne do mundo, isto é, que ele tem acesso ao
segundo um eidos .1
mundo porque compartilha de seu ser. Ora, se o corpo é carne – elemento
Esse resultado só é possível porque Husserl – mediante a famosa comum aos entes –, não se pode compreender exatamente como ele pode
“segunda redução” – reintegra o exterior à imanência, como unidade de ser “próprio” – isto é, não-mundo –, e, consequentemente, como ele pode
sentido, isto é, como objetividade circunscrita por uma consciência absoluta se abrir àquilo que o excede, ou seja, à transcendência. Em suma, se o corpo
diante do mundo, o que acaba no limite por suprimir a distância inerente à é no mundo porque é feito de mundo, não se pode explicar como ele se abre

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ao mundo exterior. Noutras palavras, o corpo, na experiência tátil, visa- 3. Isso significa que o pensamento de Merleau-Ponty, a despeito
se a si mesmo e se descobre mundo. Entretanto, isso, ao invés de marcar da precisão com que levanta inicialmente o problema do a priori da
sua abertura ao que lhe é exterior, sinaliza seu fechamento numa espécie correlação, exige a entrada em cena de outros autores, capazes de propiciar
narcisismo intransponível: o corpo é a um só tempo sujeito e objeto. Por uma abordagem conceitual da vida – a um só tempo viver, no sentido de
isso, argumenta Barbaras, a reversibilidade carnal, ao mostrar que o tocar estar vivo (leben, intransitivo), e viver, no sentido de experimentar algo
tem como contrapartida o ser tocado, retoma a dualidade sujeito/objeto (erleben, transitivo) – passível de dar conta daquilo que de certo modo
no interior do corpo próprio, mas não garante a correlação sujeito/mundo. antecede a própria existência encarnada, entendida como corpo próprio.
Dito de outro modo, o sujeito intramundano é o corpo próprio, mas é feito Nesse desafio de investigar o caráter originário da vida – enquanto sujeito
do mesmo estofo do mundo; não há, portanto, diferença entre os entes da correlação –, Barbaras encontra sempre, nalguma medida, os seguintes
mundanos e o sujeito que os faz aparecer. Há, pois, um elemento comum problemas interligados:
que os permeia, mas isso finalmente não garante a intencionalidade. Daí a) a redução da vida ao funcionamento do vivente.
que a intencionalidade, isto é, o eixo da correlação, se torne inexplicável. O que significa que a vida é sempre pensada como propriedade
É preciso, pois, contra Merleau-Ponty, dar conta da diferença do sujeito do vivente e não como aquilo que dá ensejo ao vivente. Noutras palavras,
em relação ao mundo: e isso só se realiza, segundo Barbaras, substituindo parte-se do princípio de que o vivente é uma existência já realizada, capaz
o corpo próprio pela vida. É a vida que dá conta da relação simultânea por isso de viver, e não uma produtividade que se confunde com o viver;
de pertencimento e de inadequação entre sujeito e mundo, reiterada pela isto é, que se produz ao viver.
intencionalidade. Mas não se trata da vida tal como é pensada pela tradição, b) a determinação do funcionamento do vivente como
e sim da vida compreendida como desejo, ou seja, como abertura originária autoconservação ou sobrevivência.
à transcendência, “verdade da intencionalidade” (Barbaras 7, p. 23). Quer dizer, sendo o vivente uma existência realizada, sua vida só pode
Chegamos, assim, à seguinte situação: por um lado, é preciso ser ou a apropriação do exterior no sentido de preservar seu próprio ser, ou a
agarrar o ganho teórico de Merleau-Ponty, qual seja, a exigência da resistência à ameaça vinda do exterior, a qual pode destituí-lo de seu ser.
intramundaneidade do sujeito, a garantia de que ele não sobrevoa nem c) a assimilação da pulsão – que seria a verdade do instinto animal
domina os entes mundanos porque não pode recolher o mundo no – à necessidade ou carência circunscrita.
interior de si. Por outro lado, é preciso que o enraizamento do sujeito Esse aspecto é fundamental, porque mostra a ausência de erleben
não signifique sua identidade com o mundo, pois o sujeito não é um ente no leben: o que define o animal é a pulsão, isto é, a necessidade de algo
entre os entes, uma vez que seu modo de ser difere dos outros entes: o determinado e não a abertura à indeterminação do mundo. Noutras palavras,
sujeito é aquele que traz o mundo à visibilidade; ele não é simplesmente a pulsão visa algo de que o animal carece, por isso a abertura do vivente é
um visível entre os visíveis. na verdade a antecipação daquilo que ele busca no exterior. Não haveria,
portanto, uma relação desinteressada do animal com o mundo. Em suma,

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o animal não contempla verdadeiramente o mundo, já que só encontra nele o animal está aberto ao que desinibe e não pode, portanto,
aquilo que lhe interessa. O que nos leva ao último ponto. ter mundo, pois desta abertura é «precisamente retirada a
possibilidade de ver o que desinibe se manifestar enquanto
d) a concepção tradicional da vida engendra um corte radical entre
tal» (Barbaras 7, p. 188).
vida e percepção, e é isso que no limite impede de tomar a vida – o devir
encarnado do vivente – como a forma primordial da subjetividade, isto é,
4. Eis que se desenha o desafio de Barbaras frente à tradição:
seu modo de ser originário. Pois, se a vida é essencialmente intransitiva,
é necessário renunciar à ideia de pulsão (e a compreensão do instinto
ela não pode ser o segundo termo da relação com o mundo; ela não pode
aí implicada), o que significa desvincular a vida de seu narcisismo
ser, portanto, o sujeito da percepção.
intransponível, isto é, de sua incapacidade de contemplar o mundo de
A abordagem de Heidegger é exemplar nesse sentido, como
maneira desinteressada. Trata-se de chegar ao vivente partindo da vida
mostra a análise feita por Barbaras em Vie et intentionnalité. No curso
e não o inverso, mostrando que ele não é uma existência determinada
intitulado Die Grundbegriffe der Metaphysik, o filósofo alemão aborda a
ou acabada, mas um processo de individuação que se confunde com a
animalidade através da ideia de pulsão. O intuito é mostrar que o animal
experiência transitiva do viver, como indicara Simondon em outro contexto2.
– cujo comportamento é circunscrito pela pulsão – não pode ter acesso ao
Isso permitiria qualificar o dinamismo vital como autorrealização e não
ente enquanto tal. É claro que, diferentemente da pedra, que é sem mundo,
como autoconservação, o que implicaria, finalmente, caracterizar a pulsão
o animal tem de algum modo acesso à exterioridade, mas esse acesso é
como desejo, isto é, como abertura indeterminada à transcendência. Eis os
pobre de mundo. Isso porque a pulsão não comporta virtualidade, pois
três momentos constitutivos de uma nova abordagem da vida através dos
ela projeta antecipadamente o que pode realizar. Consequentemente, na
quais Barbaras realiza o salto teórico fundamental que permite mostrar
pulsão, o animal não escapa verdadeiramente de si mesmo: pelo contrário,
que no desejo, pulsão e percepção se encontram, ou, melhor, que nele essa
ele é tomado por si mesmo, quer dizer, está sob a égide de si mesmo porque
dicotomia é superada. Assim, a vida pode finalmente ocupar o lugar do
só pode buscar no mundo aquilo de que carece (Barbaras 7, pp. 186 e ss.).
sujeito da correlação.
Sendo assim, para o vivente, a exterioridade não aparece enquanto
Mas esse percurso sugere um esclarecimento acerca do modo de ser
tal, ao mesmo tempo em que ele não se transforma na e pela relação, porque
do desejo, isto é, exige afastá-lo de qualquer identificação com a carência
não há verdadeira correlação entre vivente e meio. Heidegger explica
ou a necessidade. O desejo é o devir da vida na medida em que se reporta
o modo de ser da pulsão pelo conceito biológico de desinibição, o qual
à exterioridade. Ele não é necessidade de alguma coisa que se poderia
implica uma relação restrita com o excitante. Nas palavras de Barbaras:
nomear ou enquadrar na forma do objeto. Assim, enquanto a necessidade
o excitante só existe a serviço do que ele desinibe, é apenas ou a carência supõe a plenitude de um sujeito que precisa se preservar, o
seu próprio poder desencadeante e eis porque ele não pode desejo supõe um sujeito que está constantemente em questão, porque o seu
dar-se, pois só aparece, por assim dizer, desaparecendo.
movimento em direção ao mundo é sua própria realização. Contudo, essa
Tal é o sentido verdadeiro da tese da pobreza em mundo:
realização é sempre frustrada, porque o desejo não visa nada, ele tende

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à totalidade e essa não pode ser determinada, isto é, não pode aparecer. própria extinção. O mistério do desejo reside em que aquilo que lhe “falta”
Assim, em cada visada, o desejo se determina momentaneamente, para ou, mais precisamente, o que o constitui como “falta” – o que o coloca em
remeter-se além do que atualmente visa. Parafraseando uma formulação contato com a distância inexorável do mundo – é exatamente a ambição por
de G. Lebrun em seu comentário sobre a razão kantiana, o desejo visa um aquilo que poderia dissolvê-lo (porque o destituiria de sua falta constitutiva,
além que não se resolve na forma do ali, isto é, ele deseja desfazer uma fazendo-o dissolver-se no mundo). Sendo assim, enquanto viver, o desejo
distância que se reitera em cada momento de presença ou de proximidade. só pode ser apreendido como falta porque só encontra na exterioridade a
Em suma, o desejo é desejo de nada, de nada objetivo; ele não está atado ausência daquilo que busca, sob o risco de esfacelar-se.
a nenhum objeto, no sentido de que nada pode preenchê-lo, e, por isso É por isso que Barbaras se refere, muito rapidamente é verdade, à
mesmo, ele é suscetível de tudo acolher. Pois, relacionando-se com o que figura do melancólico como expressão do desejo primordial, uma vez que
está além de todo objeto finito, ele abre uma transcendência pura, que não a verdadeira busca é a busca sempre frustrada de si mesmo na alteridade
é a transcendência de um transcendente – ou de objetos determinados –, e (o desejo é a ambição de abraçar a plenitude); busca que se realiza sob
no seio da qual a aparição pode finalmente ter lugar. a forma da pulsão de morte, isto é, como tentativa frustrada de reunir-se
Mas isso não resume o que se pode falar acerca do desejo. Com com a exterioridade. Por isso, a morte não é uma possível destruição que
efeito, sua insatisfação intrínseca e seu devir inelutável remetem a uma ameaça a vida do exterior (como pensavam os teóricos da vida circunscrita
experiência originária do si constituída na distância. Uma vez que no sob uma essência determinada), mas aquilo sobre o que o desejo tem de
desejo o sujeito se torna o que ele é, há que se admitir que o desejo é desejo triunfar, intensificando a inadequação inerente à vida. Afinal, a busca da
de si por intermédio do transbordamento na exterioridade. Nas palavras proximidade absoluta só poderia se realizar plenamente através da morte.
de Barbaras: “no desejo o outro é identicamente o que manifesta o si e o A morte está, como diz Barbaras, atrás da própria vida.
que o nega: a insatisfação do desejo, enquanto desejo de si, corresponde 5. A abordagem de Barbaras fornece diversos ganhos teóricos,
precisamente ao fato de que o outro só apresenta o si como sempre embora coloque problemas os quais eu gostaria de destacar e de discutir
ausente” (Barbaras 3, p. 304). O que equivale dizer que o outro é sempre a através de um novo embate com Merleau-Ponty. Por um lado, estamos
experiência da perda – ou da “falta” – de si. diante de uma profunda reflexão sobre o tema da vida, capaz de dissolver
A exploração da dinâmica do desejo revela, portanto, sua as perspectivas tradicionais que nos impedem de vencer os limites das
insatisfação constitutiva, a qual dá sentido à motricidade inerente ao viver, filosofias centradas na figura do sujeito de sobrevoo – sendo assim,
pois o encontro com a alteridade é distância de si e do mundo (de tal modo Barbaras retoma e revigora o projeto merleau-pontiano de produzir
que a proximidade e a distância originárias são a condição da experiência uma fenomenologia não-idealista. Afinal, pensar o sujeito como desejo
do tempo e do espaço objetivos). A presença do mundo é sempre ausência significa verdadeiramente compreendê-lo em seu devir e em sua abertura
do que é visado pelo desejo; simultaneamente, essa distância do mundo faz ao transbordamento do mundo, pois a vida se produz no interior da
surgir um sujeito sempre faltante, falhado, cujo preenchimento seria sua experiência e não pode ser absorvida por um princípio de razão suficiente.

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Por outro lado, a identificação entre vida e desejo – uma vez que desfaz a lições de Merleau-Ponty é ter mostrado que a intersubjetividade é inerente
cisão entre viver e perceber – abre a possibilidade de recusar a distinção ao sujeito: o sujeito não é apenas abertura ao mundo que o ultrapassa; ele
estanque entre instinto e libido: a vida é desejo, quer dizer, ela não pode é presença/ausência do e para o outro. Isso não é de modo algum derivado
ser considerada como uma coisa incapaz de experiência, exatamente em Merleau-Ponty. Afinal, como sair do solipsismo ou do narcisismo sem
porque ela é intrinsecamente experiência . Contudo, esse percurso me
3
passar pelo outro, isto é, sem se defrontar com o olhar alheio? Ora, para
leva a algumas questões, as quais na verdade expressam ausências ou responder a essa dificuldade, no caso de Merleau-Ponty, não basta abrir
limites dessa retomada do problema da correlação e da questão do sujeito o sujeito para o mundo já que a formação dos sujeitos e a experiência de
enquanto desejo. Falo de ausência no sentido que Barbaras a entende: qualquer objetividade – ou da exterioridade num sentido mais amplo –
como aquilo que é exigido pela presença, isto é, aquilo que me causa exigem a aparição de outros que compartilhem um mundo comum5.
ansiedade porque considero que já está lá virtualmente, ainda que não Em segundo lugar, é significativo que Barbaras em nenhum
seja tematizado diretamente. momento trate do passado, a não ser como morte. O passado seria a
Os desenvolvimentos do pensamento de Barbaras ainda não proximidade absoluta em relação à qual o desejo tem o sentimento de
resolvem um problema crucial: como pensar os diferentes modos de vida, nostalgia. Quer dizer, o passado é a completude de certo modo perdida e, no
isto é, como dar conta de seus níveis de complexidade? Não tocando nessa limite, ansiada pelo desejo sob a forma da pulsão de morte. Evidentemente,
dificuldade, Barbaras deixa em aberto outra pergunta: como diferenciar essa formulação dificilmente poderia se adequar ao pensamento de Merleau-
uma vida que produz espécies de uma vida que produz cultura, isto é, Ponty6. Na Phénoménologie de la perception, o passado são os poderes
como dar conta da vida humana propriamente dita? Vejamos como tais corporais reificados na forma de hábitos, ou seja, de resíduo empírico
dificuldades se configuram. (lembremos que o hábito é a queda no empírico daquilo que um dia foi
Em primeiro lugar, causa estranheza o primado da melancolia no criação). Sendo assim, o sujeito encarnado oscila entre a criação de novos
interior de uma filosofia da vida, pois ele mostra que estamos diante de um comportamentos e a disposição de montagens adquiridas e sedimentadas
viver ainda solitário. Decerto, esse primado revela que há um investimento em sua existência anônima ou corporal. Noutras palavras, o sujeito dispõe
originário em si mesmo, pois a busca pela proximidade absoluta é uma de certos comportamentos adquiridos – ou instituídos ao longo de sua
busca por si mesmo. É claro que Barbaras fala várias vezes sobre o erotismo vida – os quais são constantemente retomados em sua existência pessoal.
e o amor (anunciando inclusive que dedicará um livro a esse tema), mas em Por isso, Merleau-Ponty afirma que o presente da experiência é denso,
nenhum momento outra vida aparece verdadeiramente em sua obra, já que pois conta com o passado e se abre a um futuro onde o possível pode
nunca a intersubjetividade é abordada diretamente. Devemos considerar desabrochar através da aquisição ou criação de comportamentos inéditos.
que estamos diante de um pensamento em construção, o que poderia Mas isso não é tudo o que encontramos em sua obra. Merleau-
explicar por que esse tema ainda não foi tratado. De qualquer modo, tomo Ponty tem uma belíssima abordagem do passado em seus últimos escritos,
aqui a liberdade de refletir a partir do que está dado . Sabemos que uma das
4
mas ela depende inteiramente de uma nova apreensão do passado e da

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originalidade da intersubjetividade, pois se trata de dissecar como se no interior da experiência acumulada – só assim ele pode ser um pivô capaz
constrói um imaginário ou uma espécie de história dos investimentos que de abrir diferentes dimensões de experiência. É por isso que Merleau-
vão tramando a vida afetiva do sujeito. Isso significa que a experiência Ponty aborda em seus últimos escritos a transitividade entre presente,
acaba por carregar certas imagens de conteúdo afetivo; esse conteúdo passado e futuro, trazendo para a compreensão da temporalidade o modelo
é revigorado quando uma nova experiência se realiza, de modo que as diacrítico, o que permite dar um novo sentido para a ideia de retenção. Por
aparições do mundo e dos outros ganham sempre uma nova espessura. essa via, Merleau-Ponty abre um campo de pesquisa no interior do qual a
Noutras palavras, é o passado que dá densidade à experiência, a tal ponto exploração do funcionamento da memória pode alavancar elementos para
que o inconsciente se torna totalmente exteriorizado em Merleau-Ponty, que possamos dar acabamento a uma filosofia da vida, pois permitiria dar
uma vez que ele se cristaliza na exterioridade do mundo e contamina a conta da complexidade das diferentes formas de vida. Noutras palavras,
relação entre o sujeito e aquilo que é trazido à visibilidade. Com efeito, o o devir inerente à vida singular opera segundo seu poder de abertura ao
inconsciente é a carga afetiva visada na aparição externa, propiciada por seu mundo: isso pode ser notado em toda e qualquer vivente. No entanto, é
modo diacrítico de doar-se. Isso nos leva a uma diferenciação importante. preciso considerar que a vida humana produz um fundo de memória o qual
Nas primeiras obras de Merleau-Ponty, o inconsciente e o passado são de dá densidade às suas visadas segundo um nível de complexidade que não
certo modo “interiorizados” no corpo próprio, na forma de hábitos, isto é, pode ser encontrado na vida biológica.
sob a forma de resto empírico depositado no esquema corporal (aspecto Em Barbaras, entretanto, não há ainda uma estratégia que permita
bastante criticado por Barbaras, uma vez que evidencia uma abordagem pensar, num sentido mais concreto, a experiência da retenção, isto é, o
naturalista do corpo, presente na Phénoménologie de la perception). acúmulo de experiência a partir do qual se delineiam a história individual e
Porém, este não é o caso do último Merleau-Ponty, porque então se trata coletiva. Devemos salientar que o filósofo não aceita o conceito tradicional
de engendrar uma compreensão expressiva do passado, mostrando que ele de retenção uma vez que ele remete ao primado da consciência – isto é, à
ronda a experiência como uma espécie de usina produtora de símbolos ou ideia husserliana de vivido. Ora, é preciso dizer, contudo, que Merleau-
de matrizes simbólicas partilháveis .7
Ponty dispensa o modelo idealista da retenção porque consegue transpor
Isso nos permite retomar o problema da correlação discutido por o passado para a exterioridade, valendo-se inclusive de uma inovadora
Barbaras, agora nos termos do último Merleau-Ponty. Uma vez que o teoria do imaginário. Segundo o filósofo, o passado é aquilo que viso na
passado dá profundidade à experiência presente, ele acaba por intensificar profundidade dos entes, e isso não nos conduz apenas ao desvelamento
a distância dos entes e dos outros. Há em cada imagem do mundo mais do de um desejo primordial de completude – testemunhado pela inelutável
que ela apresenta atualmente porque cada coisa remete a eventos passados distância do mundo –, mas a uma abertura que não cessa de expandir-se, por
com os quais carrega algum tipo de ligação . Dito de outro modo, perante
8
conta da estrutura diacrítica – e simbólica – que rege a aparição dos entes.
a vida, um ente não é só a sua presença transbordante em direção a um Não fornecendo ainda um substituto para a ideia de retenção, Barbaras
mundo presuntivamente visado, mas também tudo aquilo a que ele remete assinala apenas que o passado é uma ausência que não pode apresentar-se

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(daí que ele se resolva na forma da nostalgia). Sendo assim, o anterior – no 8. Merleau-Ponty, M. La prose du monde, Paris, Gallimard, 2004.
sentido do originário – é uma fratura, uma falta constitutiva do sujeito, que 9. ______. La Nature. Cours du Collège de France. Paris, Seuil, 1994.
10. ______. L’institution la passivité. Notes de cours au Collège de France – 1954-
se repõe a cada nova visada do mundo. Porém, essa cisão originário, embora
1955. Paris, Belin, 2003.
esclareça o a priori correlacional sem suprimir quaisquer dos termos – o 11. ______. Le structure du comportement. Paris, PUF/Quadrige, 2001.
que é um ganho teórico indiscutível –, não pode explicar ainda o que vem 12. ______. Le visible et l’invisible, Paris, Gallimard, 2004.
depois, isto é, o que se retém ao longo da reiterada experiência da falta, 13. ______. Phénoménologie de la perception. Paris, Gallimard, 1945.
dando ensejo à cultura em seus diversos níveis propriamente humanos.
NOTAS

The experience of the lack and the mystery of the desire


1. A respeito, cf. especialmente o cap. III da parte I de Le tournant de l’expérience.
2. Cf. G. Simondon. L’individuation psychique et collective. À la lumière des notion
Abstract: This paper analyzes the importance of the reading of the Merleau-Ponty’s
de Forme, Information, Potentiel et Métastabilité, Paris, Aubier, 2007.
work  within the construction of the Barbaras’s philosophy. On the one hand, it is to
3. É claro que a noção de experiência ganha aqui um sentido novo, já que ela se
understand the limits of the body itself in order to account for the a priori required
desvincula da idéia de vivido: o vivente, seja qual for, deve ser compreendido como
by the phenomenology. On the other hand, we seek to uncover, in the unfolding of
um movimento de existência. Barbaras retira essa formulação da fenomenolgia de
the philosophy of the life proposed by the philosopher, a horizon of new problems,
Patocka (cf. Barbaras 5, pp. 7-28).
especially referred to the description of the peculiarity of human desire towards life
4. As análises feitas neste artigo só consideram o que Barbaras publicou até Introduction
understood in a broader sense.
à une phénoménologie de la vie, livro de 2008.
Keywords: Barbaras, Merleau-Ponty, life, desire, world, intentionality.
5. Sobre o assunto, são, por exemplo, decisivas as análises de Merleau-Ponty presentes
no capítulo sobre o corpo como a expressão e a fala, da Phénoménologie de la
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS perception, e o capítulo sobre o diálogo, da Prose du monde. Nos dois casos, o filósofo
mostra que a conquista do sentido se dá sob o registro da intersubjetividade, de modo
1. Barbaras, R. De l’être du phénomène. Sur l’ontologie de Merleau-Ponty. Paris, que não haveria mundo humano fora de um sistema de relações. Esse problema é
Millon, 2001. crucial para quem busca esclarecer a diferença entre a vida biológica e a vida humana.
2. ______. Introduction à la philosophie de Husserl. Paris, Les Éditions de la Ora, a discussão com Barbaras mostra que esse problema está intimamente ligado ao
transparence, 2008. modo como se compreende a intersubjetividade, já que dela depende a profundidade
3. ______.Introduction à une phénoménologie de la vie. Paris, Vrin, 2008. ou a densidade da experiência. Quer dizer, é preciso abandonar as concepções
4. ______. Le désir et la distance. Introduction à une phénoménologie de la perception. tradicionais do vivente (tais como as analisadas criticamente por Barbaras) para que
Paris, Vrin, 1999. se produza uma fenomenologia da vida (sem o quê não se poderia escapar da filosofia
5. ______. Le mouvement de l’existence. Études sur la phénoménologie de Jan da consciência e dos problemas que disso derivam), mas isso não nos dispensa do
Patocka. Paris, Transparence, 2007. desafio de pensar como se produz a singularidade da existência humana no interior
6. ______. Le tournant de l’expérience. Recherches sur la philosophie de Merleau- da vida comum. É por isso que não basta discutir a relação sujeito/mundo, é preciso
Ponty. Paris, Vrin, 1998. dar o passo em direção ao outro, e mostrar que aí se realiza o corte entre vida
7. ______. Vie et intentionnalité. Recherches phénoménologiques. Paris, Vrin, 2003. biológica e vida humana, sem que isso signifique um abandono do primado da vida

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em proveito da consciência. Sendo assim, é possível defender que a compreensão


da intersubjetividade em Merleau-Ponty – permeada pelo necessário trabalho crítico Renaud Barbaras e a vitalidade da
desempenhado por Barbaras – pode fornecer elementos para uma fenomenologia
da vida, segundo caminhos ainda não explorados por Barbaras. A respeito ver S.S.
fenomenologia1
Ramos. A prosa de Dora. Uma leitura da articulação entre natureza e cultura na
filosofia de Merleau-Ponty. São Paulo: Edusp, no prelo.
6. A obra de Barbaras certamente tirará consequências dessa formulação, abrindo Mariana Larison*
novos caminhos para se pensar a temporalidade. Contudo, o que me interessa aqui é
iluminar as possibilidades abertas pelo pensamento de Merleau-Ponty ao confrontá-lo
com as críticas de Barbaras. Sendo assim, devo salientar que Barbaras não desenvolveu Resumo: A fenomenologia de Renaud Barbaras é uma das poucas que continua hoje
ainda uma perspectiva para que se possa pensar como se dá o acúmulo de experiência. tentando aprofundar, de maneira original, o caminho aberto pela fenomenologia
O passado em Barbaras é a nostalgia de uma completude perdida (e irrecuperável husserliana. Mas qual é, precisamente, o caminho escolhido por Barbaras para
no nível da experiência vivente); ele não é algo que se desenha ou que se produz no se inscrever na tradição fenomenológica? De que modo se insere no diálogo
interior da própria experiência. Voltaremos a esse problema adiante. aberto por esta tradição? Neste texto, tentaremos repor os problemas e conceitos
7. Dizer que o hábito é uma queda no empírico daquilo que um dia foi criação significa, principais que nos permitem compreender a continuidade e a ruptura que apresenta
no caso de Merleau-Ponty, afirmar que os comportamentos adquiridos se realizam a fenomenologia barbarasiana em relação a esta tradição, assim como alguns dos
tal como a experiência vital: eles permitem a adaptação ao meio – são normativos, limites de sua própria proposta.
portanto –, mas não são produtores de símbolos. A passagem do primeiro ao último Palavras-chave: intencionalidade, fenomenologia, Barbaras, vida, desejo.
Merleau-Ponty realiza essa virada: o filósofo deixa de compreender o acúmulo de
experiência – isto é, o passado – segundo a queda no empírico, para compreendê-lo A obra do filósofo Renaud Barbaras parece se inscrever dentro da
como produção simbólica. Defendo em minha pesquisa que essa passagem depende
longa linha de pensadores que formaram, a partir do começo do século XX,
de uma nova teoria do imaginário, esboçada na obra final de Merleau-Ponty.
8. O que Merleau-Ponty chama de “sistema de equivalências”, o qual define o próprio a escola fenomenológica. Seu trabalho, tanto crítico quanto propriamente
tempo (cf. M. Merleau-Ponty 12, p. 235). filosófico, aparece como um esforço por continuar e estender, um século
mais tarde, os limites da pesquisa do campo fenomenal a partir de perguntas
e motivos contemporâneos.2
Mas, se é claro que o projeto barbarasiano se inscreve no vasto
campo da escola fenomenológica, não é tão óbvio de que modo se produz esta
inscrição: em que sentido Barbaras é, efetivamente, um fenomenólogo? O
que caracteriza seu pensamento como fenomenológico? Sua referência aos
autores da tradição fenomenológica? Utilizar seu vocabulário? Participar

* Pós-doutoranda do Departamento de Filosofia da USP (bolsista Fapesp).

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de certos temas comuns? Ou a constatação de um verdadeiro diálogo, fenomenológica, a noção de in-existência intencional. É a partir e contra esta
no qual certos problemas, conceitos e pressupostos são compartilhados, e outras definições brentanianas que Husserl vai estabelecer o vocabulário
transformados e/ou superados de maneira propriamente fenomenológica? fundamental da fenomenologia na 5.º Investigação Lógica (Husserl 7).
Procurar responder a estas questões nos obriga, porém, perguntar Voltemos então ao primeiro capítulo do livro II da Psicologia.
primeiramente, de um modo mais geral, qual é o problema retomado na Nestas páginas, Brentano distingue três características fundamentais que
fenomenologia barbarasiana que podemos reconhecer na instituição mesma permitem delimitar um fenômeno como psíquico: um fenômeno psíquico
da fenomenologia e de que maneira a repetição deste questionamento, no é sempre, nos diz Brentano, uma representação ou está fundado em
seu caso, produz novas formas e encontra novos limites. representações; um fenômeno psíquico só é, continua o autor, acessível à
percepção interna. E, finalmente, e sobretudo, o que distingue um fenômeno
I psíquico de um fenômeno físico é seu modo de existência bem particular,
denominado in-existência intencional. É precisamente nesta introdução do
Desta maneira, onde situamos o momento da “instituição da problema da intencionalidade que nasce o percurso que nos levará até a
fenomenologia como movimento do pensar”? Esta pergunta seria, sem fenomenologia barbarasiana:
dúvida, muito difícil de responder dentro dos limites de um artigo. No
entanto, se a delimitamos no estrito limite do problema que nos orienta Todo fenômeno psíquico se caracteriza por aquilo que os
escolásticos da Idade Média chamaram de in-existência
– isto é, com qual aspecto do movimento fenomenológico o pensamento
(Inexistenz) intencional (e também mental) de seu objeto,
barbarasiano pode se afiliar –, a questão nos parece bem menos complicada.
e o que nós chamamos, ainda que com expressões não
Nesse contexto, com efeito, podemos situar tal momento no cruzamento totalmente inequívocas, a referência (Beziehung) a um
de dois pensamentos e, mais precisamente, no diálogo aberto pela leitura conteúdo, a orientação (Richtung) a um objeto (pelo qual não
husserliana do primeiro capitulo do livro II da Psicologia do ponto de vista temos que entender aqui uma realidade) ou a objetividade
imanente. (Brentano 6, pp. 115 e ss. )
empírico (Brentano, 6) de seu mestre Franz Brentano.
Lembremos em que consiste, mais precisamente, este diálogo.
A intencionalidade introduz assim “um modo particular de
Brentano escreve em 1874 sua Psicologia do ponto de vista
existência de um objeto no espírito”. Mas, o que significa e de onde provém
empírico, obra fundamental da moderna psicologia experimental, a qual
o termo “intencional”?
abre pela primeira vez o campo da psicologia como disciplina autônoma,
Segundo as referências oferecidas por Brentano, a primeira
distinguindo-a tanto da fisiologia quanto da filosofia. Ali se estabelecem,
figura à qual temos que remontar nesta arqueologia é ao ineludível
com efeito, critérios que permitiram delimitar o domínio próprio da
Aristóteles (Brentano 6, 115, n. 3). Brentano nos oferece um exemplo
psicologia como ciência dos fenômenos psíquicos, em oposição às ciências
do De anima para ilustrar o sentido do termo intencional: em DA
dos fenômenos físicos. É nesse contexto que surge, para a posteridade
424ª19-21, Aristóteles fala com efeito de um modo de ser da forma

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(sensível ou inteligível) que é recebida na alma (sensitiva o intelectual) e ss.), pois é de certo modo contra sua maneira de compreender a teoria
sem a matéria. É este modo de existir da forma sem a matéria ao qual brentaniana que Husserl tomará posição. Lembremos que Twardovski
faria referência a inexistência intencional. encontra na existência mental e na referência a um conteúdo que define
Por outro lado, e ainda segundo as pistas que o próprio Brentano a intencionalidade um tipo de cópia mental do objeto reproduzindo
oferece, seria preciso nos endereçarmos à tradição escolástica para dar assim a velha teoria da imagem como representação na mente de um real
conta de alguns dos aspectos fundamentais desta noção, como é o caso exterior. Em segundo lugar, temos a interpretação oferecida por Husserl
1) da teologia trinitária de Agostinho, a ideia da imanência no sentido precisamente contra esta teoria da imagem e da representação em seu texto
de habitar-em, no interior do verbo; 2) na concepção tomista do Espírito de 1894, “Vorstellung und Gegenstad” (Representação e Objeto), cuja
Santo ou o habitar-em da Trindade num sujeito; assim como a inerência do primeira parte se encontra perdida e do qual só temos a segunda, “Objetos
pensado àquele que pensa (assim como o desejado ou querido).3 intencionais”, que será a base da 5.º Investigação Lógica.
Em qualquer caso, as sínteses que Brentano produz destes modelos Na 5.º Investigação, Husserl retoma a caracterização brentaniana
(aristotélico, agostiniano e tomista) se baseiam no fato de que o modo de dos fenômenos psíquicos para transformá-la completamente. Tal
existir intencional é um modo não-real no sentido dos fenômenos físicos releitura se faz através de toda uma série de redefinições realizadas
que existem no espaço-tempo e sob relações causais, como aquele modo de sobre as noções de consciência, de vivência, de ato intencional, de
existir que tem a pedra na alma, por exemplo. A pedra não existe realmente representação e de juízo, cujo objetivo fundamental é (fazendo valer um
na alma, ela existe intencionalmente. Mas, ainda uma vez, como definir Brentano contra o outro Brentano) abandonar completamente a ideia de
esse modo de existir intencional? representação como imagem-cópia de um real.
Segundo a definição apresentada pelo filósofo austríaco, a Para começar, o problema de Husserl já não é o da determinação
existência intencional refere-se indistintamente a 1) tanto a um modo de dos fenômenos psíquicos, mas o da fenomenalidade enquanto tal. Na
existência mental distinta da existência física, quanto também a um tipo descrição dessa fenomenalidade, ele encontrará elementos que pertencem
de objetividade imanente (que não é um tipo de existência mas um tipo à consciência e outros que não fazem parte de sua natureza, mas que
de entidade particular). Além disso, a intencionalidade aparece também participam dela.
2) como um modo de relação específica, mas esse modo determinado de Dentro da consciência encontramos assim um fluxo de vivências,
relação se caracteriza como: (a) relação a um conteúdo ou como (b) a mera algumas intencionais (os atos propriamente ditos) e outras não-intencionais
direção a um objeto. (as sensações ou materialidades recebidas pelos sentidos). O fenômeno, o
Da ambiguidade desta definição vão se abrir múltiplas que aparece, não é uma vivência: é o sentido dado pelo ato ou vivência
interpretações, entre as quais nos interessa mencionar somente duas. Em intencional à sensação, materialidade ou vivência não-intencional.
primeiro lugar, aquela representada por Twardovsky em seu texto de 1894 Desse modo, nessa tríplice estrutura, Husserl apaga com um só gesto
“Conteúdo e objeto das representações” (Husserl-Twardovski 10, pp. 95 tanto a distinção entre o imanente e o transcendente quanto aquela entre a

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imagem-cópia e a coisa: o objeto é sempre um sentido, o resultado de um intencional, o “como” segundo o qual o ente aparece, frente à proposta
ato interpretativo sobre uma materialidade que nunca é dada em estado puro. brentaniana de compreender a intencionalidade como um caráter da vivência.
Ao mesmo tempo, é a coisa mesma que aparece, pois não existe um modo Por outro lado, no curso do semestre do verão de 1927, imediatamente
de aparecer que não seja através da forma dada por um ato interpretativo. posterior à publicação de O ser e o Tempo, intitulado Os problemas
De onde se depreende que o fenômeno é a coisa mesma que está aí fora, fundamentais da fenomenologia (Heidegger 11), Heidegger volta à noção
só que dada sempre de um modo particular e, nesse sentido, nunca dada de intencionalidade, caracterizando-a como a estrutura do “se dirigir a”, cuja
completamente, nunca esgotada em suas possibilidades de doação. essência fundamental Husserl elaborara nas Investigações Lógicas e nas
A estrutura fenomenal resolve o problema da delimitação Ideias. Finalmente, no ensaio em homenagem ao 70º aniversário de Husserl
da existência imanente ou transcendente do objeto fazendo de toda em 1928, intitulado Da essência do fundamento (Heidegger 12). Nele, o
objetividade um sentido que transcende a consciência ao mesmo tempo filósofo reflete sobre o conceito de intencionalidade, com um duplo fim:
em que é constituído nela, um sentido apreendido intencionalmente sobre por um lado, estender a noção de intencionalidade a todo o comportamento
uma materialidade sensorial. Por outro lado, os únicos elementos reais do ente; e por outro, redirigir esta noção estendida de intencionalidade a
são as vivências, imanentes à consciência, que possibilitam a aparição do seu fundamento, o que Heidegger chamará a “transcendência”.
fenômeno mas que, todavia, não aparecem. A partir destes textos, vemos que se Husserl preserva da
Até aqui nos ocupamos unicamente dos elementos básicos da intencionalidade brentaniana o “se dirigir a” e a “relação a um conteúdo”,
concepção husserliana da intencionalidade, tal como estes são apresentados Heidegger vai preservar só o caráter do “se dirigir a”, agregando os aportes
pela primeira vez na sua estrutura geral. husserlianos do “como” ou do “na medida em que” deste “se dirigir”, e
Pois bem, frente a este primeiro momento fundacional da estendendo tal estrutura a todo comportamento. Esta estrutura intencional
fenomenologia surge, durante os anos 1920, outra proposta de radicalização é referida por sua vez ao fundamento último da transcendência constitutiva
fenomenológica do conceito de intencionalidade através da figura de Martin de todo Dasein.
Heidegger e, com ele, a chamada virada ontológica da fenomenologia. Como vemos, a partir desta crítica, a intencionalidade acaba
Curiosamente, Heidegger não se ocupa tematicamente do conceito desacoplada, pela primeira vez, tanto da esfera das vivências quanto
de intencionalidade na sua grande obra de 1927, O ser e o Tempo, mas da relação a uma objetividade para ser referida ao Dasein e a sua
em textos e cursos quase contemporâneos: por um lado, no curso de 1925 relação com os entes.
em Marburgo entitulado “Prolegômenos para uma história do conceito Pois bem, a recepção francesa da fenomenologia, no começo
de Tempo” (semestre do verão de 1925) (Heidegger 13), onde exporá dos anos 1930, tem como principal característica a de ter produzido
o que denomina “os conceitos fundamentais da fenomenologia”, isto é, uma leitura híbrida destas duas orientações fundamentais do conceito
a intencionalidade, a intuição categorial e o a priori da correlação. Ali de intencionalidade: o de ser, simultaneamente, uma propriedade da
destaca o fato de que Husserl conseguiu pôr em relevo, dentro da estrutura consciência e da existência.

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Devemos a Emanuel Levinas a primeira obra importante dentro Em qualquer caso, o elemento marcante da leitura sartreana da
da recepção e da interpretação do pensamento husserliano na tradição intencionalidade reside na crítica que este realiza de toda ideia de Eu
propriamente francesa da fenomenologia: a Teoria da intuição na transcendental, mostrando que, na verdade, a consciência, em função de
fenomenologia de Edmund Husserl, de 1930 (Levinas 14). Esta é a sua essência que é a intencionalidade, não pode ser considerada como
primeira exposição sistemática do projeto husserliano, sobretudo de um polo pessoal de vivências, mas como um campo impessoal do qual se
Ideias (Husserl 8), no campo intelectual francês. Levinas atribui ali uma irradiam atos.
inflexão ontológica à obra de Husserl, e chega a falar de uma teoria do ser A consciência é nada mais do que uma pura espontaneidade sem
nas Ideias. Por não dissociar o aparecer e o ser, Husserl teria conseguido vivências, uma pura negatividade, uma temporalidade que se constitui a
superar um problema já clássico no campo da epistemologia através de si mesma e se recupera em seus noemas. Assim, na medida em que não
sua relocalização no seio de uma ontologia. Assim, na leitura levinasiana, existe nenhuma dimensão da imanência mas um puro estar fora de si da
mais do que um projeto propriamente gnosiológico, a obra de Husserl consciência, a fenomenologia não é um idealismo mas um realismo.
visa abordar de maneira renovada a questão do ser e da existência. A Em sua obra de 1945, Fenomenologia da percepção, Merleau-
intencionalidade, finalmente, será identificada ao mesmo tempo tanto à Ponty adotará a perspectiva fenomenológica partindo de uma decisão
forma da consciência quanto à sua transcendência. fundamental: o sujeito da percepção não é a consciência, mas o corpo como
De maneira consequente a esta primeira leitura da fenomenologia dimensão alheia à partição cartesiana entre res extensa e res cogitans. Na
husserliana e de seu sentido, inscreve-se a figura de Sartre, especificamente perspectiva merleau-pontiana, o sujeito da intencionalidade é o corpo e
do “primeiro” Sartre, anterior a O ser e o nada. não a consciência. O corpo tem seu próprio tipo de intencionalidade, a
Como sabemos, entre os anos de 1934 e 1939, Sartre se dedica qual opera antes mesmo de toda tomada de consciência explícita sobre
ao projeto de escrever uma grande obra de psicologia fenomenológica, o mundo. Merleau-Ponty denomina este tipo de intencionalidade de
O psíquico, que trataria reflexivamente as modalidades específicas da “intencionalidade operante”, e toda a obra de 1945 é dedicada a tirar as
consciência intencional. Desse projeto só escreverá quatro obras: A consequências de uma descrição rigorosa da percepção a partir desta
transcendência do Eu (1934); Esboço para uma teoria das emoções intencionalidade particular.
(1937); A imaginação (1936); O imaginário (1936-1938). A intencionalidade operante se confunde nestas descrições, uma
A leitura sartreana da fenomenologia tem duas características a vez mais, com a transcendência heideggeriana enquanto movimento
princípio paradoxais: de um lado, e apesar de sua fascinação pela ideia da anterior à intencionalidade de atos, movimento que parte dos entes em
intencionalidade, Sartre interpreta a fenomenologia como um realismo direção ao ser, ao mundo ou horizonte de sentido e que permite ter um
(como mostram as conclusões de A transcendência do Ego); do outro comportamento em relação a eles.
lado, assimila também as noções de consciência e existência e as fusiona No entanto, Merleau-Ponty deixa de lado, no final de sua vida,
numa espécie de antropologia filosófica, seguindo uma tradução de a descrição da experiência desde o ponto de vista do corpo próprio para
Dasein que fará época, isto é, como “realidade humana”.
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tentar uma descrição do elemento comum ao corpo vivente e ao mundo, o nos parece, Introduction à une phénoménologie de la vie é menos uma obra
que chamará de Sensível em si ou Carne, e do quiasma que estes conceitos fenomenológica que metafísica, e portanto, os pressupostos que explicita
oferecem entre a ordem do senciente e do sensível. podem ser lidos quase de forma independente das teses descritivas de Le
Pois bem, de uma maneira geral, podemos dizer que Barbaras désir et la distance.
retomará desde aqui o problema da intencionalidade, radicalizando-o ainda Em que consistiriam, pois, estas teses?
mais, sem perder porém o fio deste diálogo que funde, num mesmo gesto, Como temos dito, o ponto de partida da fenomenologia barbarasiana
intencionalidade e existência, fenomenologia e ontologia. é o problema da percepção entendido como o problema mesmo da
fenomenalidade. A tarefa que se impõe, neste sentido, é a de pensar,
II elaborar e determinar a estrutura da fenomenalidade, sem justapor a esta
elaboração pressupostos externos à descrição mesma. O que caracterizará
Estamos agora em condições de retomar nosso problema inicial, este tipo de análise como especificamente fenomenológica é assim, por
e repetir assim a questão: qual é o problema presente na fenomenologia um lado, a adoção do método fenomenológico, isto é, o passo pela epoché;
barbarasiana que podemos reconhecer na instituição mesma da por outro, a firme decisão de se manter fiel à estrutura do que aparece
fenomenologia como movimento do pensar, e de que maneira a repetição tal como aparece, quer dizer, ao “como” de seu aparecer; e, finalmente,
deste movimento, no caso deste autor, produz novas formas e encontra a aceitação do princípio base da fenomenologia, isto é, que a estrutura
novos limites? É a segunda parte desta pergunta o que deveremos do aparecer supõe uma correlação essencial entre o que aparece e aquele
responder agora. a quem aparece. É neste último ponto, cabe assinalar, onde se decide o
Dentro do extenso trabalho realizado durante os últimos 20 anos, sentido mesmo da intencionalidade.
as obras Le désir et la distance, Vie et intentionnalité e Introduction à Pois bem, cada um destes aspectos, que fazem da filosofia
une phénomenologie de la vie são aquelas que apresentam com maior barbarasiana uma fenomenologia, são precisamente aqueles mesmos
clareza a originalidade o projeto barbarasiano. Pois bem, e aqui
4
que a afastam, em primeiro e fundamental lugar, do pensamento do
apresentamos já uma primeira hipótese de trabalho, Le désir et la distance próprio Husserl, mas também, de maneira geral, de seus sucessores
e Introduction à une phénoménologie de la vie podem ser lidas como duas dentro desta tradição.
obras complementares, sendo a primeira uma apresentação estritamente Lembremos rapidamente que depois da introdução do
fenomenológica das principais teses barbarasianas sobre a percepção, e a vocabulário fundamental e do sentido da empresa fenomenológica
segunda uma formulação radical de suas consequências metafísicas. Vie nos dois volumes das Investigações Lógicas, publicados entre 1901
et intentionnalité será, neste marco, uma coleção de magníficas notas de e 1902 respectivamente, o projeto fenomenológico será mais tarde
rodapé deste projeto, no qual o autor explicita detalhadamente os diversos cuidadosamente redeterminado com respeito aos seus procedimentos e
diálogos filosóficos que o levaram às suas próprias teses. Neste sentido, aos seus campos de aplicação no primeiro volume das Ideias relativas a

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una fenomenologia pura e uma filosofia fenomenológica, de 1913 (ano para se transformar em coisa em-si. A estrutura do aparecer reenvia então
da segunda edição) das Investigações Lógicas. Husserl propõe, nas de maneira essencial a um momento subjetivo. Toda a questão é como
Ideias I, um método de acesso aos fenômenos – acesso que permitirá pensar este momento subjetivo, como pensar o sujeito da correlação ou,
a descrição propriamente dita – que consiste em abandonar a relação simplesmente, o sujeito da intencionalidade.
natural e quotidiana com o mundo, pôr em suspenso nossa crença na Então, podemos dizer que, seguindo a análise barbarasiana, o
existência efetiva do mundo, para podermos então nos concentrar sujeito do aparecer é um momento dentro de uma estrutura e, não, uma
no sentido de ser do que aparece enquanto aparece, sem mais. Este coisa. Ele é parte de uma estrutura maior que é a fenomenalidade mesma,
método de acesso é a chamada epoché fenomenológica, que implica e é seguindo estritamente sua função dentro desta estrutura que ele deverá
correlativamente uma redução do fenômeno a um campo específico, o ser caracterizado. Isso significa que o procedimento fenomenológico
campo fenomênico, aquele onde algo pode aparecer. Como temos visto, barbarasiano exclui por princípio partir de um ente específico, seja este a
este campo é, no caso de Husserl, o campo da consciência, definida consciência, o corpo próprio ou o Dasein, para depois fazê-lo suporte da
como um curso e fluxo de vivências. Barbaras entende a epoché num estrutura do aparecer. Neste sentido, Barbaras compartilha com Sartre a
sentido diferente, similar ao da crítica heideggeriana e merleau- intuição segundo a qual a subjetividade intencional só pode ser considerada
pontiana, mas também patockiana, de Husserl, segundo a qual o campo como um puro impulso de saída para fora de si, uma negatividade.
da fenomenalidade não é equivalente ao campo da consciência. A Em segundo lugar, porque é aquele para quem a fenomenalidade
redução que abre a epoché deve ser pensada então como a redução aparece, o sujeito deve ser capaz de percepção, na medida em que sem a
ao aparecer sem mais, ou seja, sem pressupor, como seria o caso em qual não haveria fenômeno. Neste sentido, a função de sujeito deve estar
Husserl, um ente positivo específico que ocuparia seu lugar. O que sempre encarnada, pois só quem possui um corpo e é capaz de sentir, é
permite a suspensão de nossa crença familiar nas coisas e no mundo, ao mesmo tempo capaz de percepção. Mas, diferentemente da perspectiva
isto é, a epoché, é uma volta ao mundo no que tem de incontestável, no merleau-pontiana, isto não implica que sua origem deva se remeter ao corpo
fato de que “há”, de que algo aparece. próprio, terceira entidade na qual a distinção sujeito e objeto se confunde.
O que a epoché apresenta então, na perspectiva barbarasiana, é Neste ponto Barbaras se separa de Merleau-Ponty, mesmo do último, o
a estrutura mesma do aparecer. Os traços mínimos que constituem esta qual levaria esta confusão ao elemento ontológico denominado Sensível
estrutura são: em primeiro lugar, o aparecer mesmo; em segundo lugar, a em Si o Carne. A dualidade do senciente e do sensível é, para Barbaras, não
referência a uma totalidade dentro da qual algo em geral pode aparecer, e uma resposta, mas o índice de um problema.
que não é outra coisa que o mundo mesmo como horizonte do aparecer. A partir desta dupla exigência, então, a originalidade da concepção
Finalmente, a referência ao aspecto subjetivo do aparecer. Se o aparecer barbarasiana da intencionalidade vai se desenhar em plena luz. O corpo do
é sempre aparecer para alguém, e sempre intencional, a aparição não vivente é, com efeito, senciente e sensível: como isto é possível? O que é que
pode repousar sobre si mesma, pois, nesse caso, deixaria de ser fenômeno define o corpo vivo para que possa ser, ao mesmo tempo, parte do aparecer

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e aquele a quem o aparecer aparece? Pois bem, como já mencionamos, e É pois a partir deste sentido fundamental do viver que a
em primeiro lugar, os corpos que percebem são corpos vivos. Em segundo especificidade do viver humano, que nessa análise se determina a partir do
lugar, os corpos vivos se caracterizam pela sensibilidade. Finalmente, a que poderíamos denominar um perceber consciente, pode ser pensado. A
percepção ou sensibilidade dos viventes reenvia, como contrapartida, consciência, como traço específico de um certo tipo de vivente, o homem,
para a sua capacidade a se mover. A motricidade do vivente surge assim é uma das possibilidades mesmas do movimento vital. A dimensão
como o índice de uma nova dimensão dentro da análise fenomenológica propriamente psíquica não implica uma diferença substancial de certo tipo
do vivente intencional, uma nova dimensão mais profunda que a partição de viventes, mas faz parte de uma totalidade orgânica e designa um modo
entre o senciente e o sentido. de comportamento de certo tipo de organismos. Em termos barbarasianos,
Pois bem, o tipo específico de movimento do vivente não é não se trata de afirmar “que os comportamentos humanos possam ser
extrínseco à percepção, como uma parte que se acoplaria mecanicamente qualificados como tais em virtude da procedência de uma consciência,
a ela, mas é, ele mesmo, um tipo particular de percepção. Como Merleau- quer dizer, de vivências; ao contrário, seu ser consciente remete a sua
Ponty tinha já mostrado magnificamente desde a época da Fenomenologia humanidade como modo de comportamento específico de uma totalidade
da percepção, o movimento corpóreo supõe intencionalmente um fim vivente” (Barbaras 2, p. 144).
e supõe, deste modo, a captação antecipada deste fim. Neste sentido, o Pois bem, o que caracteriza todo vivente enquanto tal é que seu
movimento vivente supõe uma relação de sentido com seu objeto e, modo específico de comportamento com seu entorno forma parte de sua
portanto, um modo particular de percepção. própria totalidade orgânica. Como já bem mostraram os desenvolvimentos
Deste modo, estar em vida e tender a, ser vivente e experimentar da etologia contemporânea, o vivente não se reduziria à extensão objetiva
algo, são dois aspectos correlativos do mesmo viver. O “se deter em”, de seu corpo senão à totalidade que forma com seu entorno, ao que
característico da percepção, é um momento do movimento próprio do viver. responde o conceito de comportamento. Neste sentido, o vivente é, por
Do mesmo modo, o excesso do movimento com respeito a suas aparições definição, um ser cuja essência só se realiza na exteriorização. Ou, dito de
finitas – nas quais ele se detêm – é o que permite um prosseguir indefinido outro modo, o vivente é um ser definido por uma falta de ser intrínseca.
a outras aparições. Por sua parte, o se deter da percepção é o que permite Seguindo então esta característica fundamental, Barbaras pode afirmar
ao mesmo tempo um movimento que não cessará até que a vida cesse, que: “O ‘movimento fundamental’ que, no coração do sujeito vivente, dá
movimento de atualização de um horizonte (o mundo) que é inesgotável. conta da atividade perceptiva enquanto esta implica um automovimento,
Ora bem, o sujeito não deve ser entendido aqui como um ente deve ser entendido como desejo” (Barbaras 2, p. 136). O desejo, como
que primeiro é e que depois se move, mas como o movimento mesmo, tipo específico de movimento, será o nome final para esta função subjetiva
o impulso mesmo que vai se cristalizando em suas realizações mas que encarnada à que reenvia a estrutura do aparecer.
sempre as excede, que é a soma delas mas que ao mesmo tempo não se Como descreve, então, Barbaras, este movimento que pode dar
reduz a nenhuma. conta tanto do movimento do viver em sentido amplo quanto daquela

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dimensão do viver que chamamos consciência, conhecimento, ou de tendência e aspiração, segundo um tipo especial de intencionalidade
subjetividade humana? pulsional, irredutível à ordem das representações e, portanto, das
Barbaras procede uma caracterização do desejo em oposição ao objetividades. Desejos, tendências, pulsões, instintos dariam conta assim
movimento regido pela necessidade: enquanto no caso do desejo, o objeto de uma “relação a”, de um “tender a” algo que não é nem pode ser um
ao qual se aspira só o intensifica na mesma medida em que o satisfaz, objeto. Contudo, lembra Barbaras, por não tirar as consequências últimas
no caso da necessidade o objeto acalma o movimento satisfazendo-o. A desta gênese da intencionalidade de atos na intencionalidade pulsional, isto
necessidade, neste mesmo sentido, supõe uma falta determinada, é falta de é, por não tirar as consequências desta primeira abertura indeterminada à
algo específico. O desejo, pelo contrario, não é falta de nada determinado: transcendência que caracteriza a pulsão, Husserl não a interpreta como
seu tender é um puro transbordar. Assim, o objeto do desejo é, ele mesmo, uma refutação da função propriamente objetivante da intencionalidade
apresentação de uma ausência, ausência do que não pode nunca estar e a relega à pré-história de uma intencionalidade que só se realizaria
presente. O objeto do desejo nada mais é assim que a substancialização de plenamente na sua função objetivante.
sua própria impossibilidade de satisfazer-se e, neste sentido, tal ausência
de satisfação (natural) é seu modo mesmo de se satisfazer. Tal satisfação na III
insatisfação é precisamente o que o diferencia de uma necessidade.
Si lembramos agora a estrutura do aparecer, em seu triplo momento Se, como temos visto, a noção de intencionalidade nasce da
de aparecer, de horizonte correlativo deste aparecer e de momento subjetivo decisão, epistemológica e ontológica, de dar conta da especificidade da
desta aparição, podemos dizer, seguindo a Barbaras, que o desejo, como ordem psíquica em oposição à ordem física, não cabe dúvida de que a
“movimento a” que desenha um aparecer no qual se detêm ao mesmo proposta barbarasiana representa o final de um longo percurso no qual
tempo que o transcende, em virtude do horizonte mesmo que o constitui, é esta decisão primeira foi retrabalhada até inverter completamente seu
bem o novo nome do sujeito da correlação, aquele que se identifica com o sentido originário. Todo o esforço de Barbaras pode se resumir, com
caráter intencional do aparecer. efeito, no objetivo de escapar ao dualismo do psíquico e do corporal.
Desde o estrito ponto de vista da dimensão que chamamos Assim, seguindo este percurso, podemos ver em que sentido o filósofo
consciência, a manifestação deste movimento do desejo se encontra, vai tomando, desarticulando e reformulando os aportes de cada um dos
assinala Barbaras, nas análises que o próprio Husserl desenvolve a partir membros do movimento fenomenológico. No interior de sua obra, vemos
dos anos 1920 nos manuscritos A VII recolhidos na Husserliana XIV como Barbaras se apega ao caráter intencional do sujeito do aparecer e à
(Husserl 9). No marco da fenomenologia genética, com efeito, Husserl indistinção entre a ordem do ser e do aparecer; mas temos visto também
elabora toda uma série de análises dos estratos mais profundos e originários como ele tenta sair, contra Husserl, da cisão entre a dimensão absoluta
da consciência, ali onde se gestarão as raízes da intencionalidade dos atos e constituinte da consciência — já não em sentido psicológico, senão
ou da intencionalidade objetivante, e que podem ser descritos em termos transcendental —, e dar o lugar absoluto à estrutura mesma do aparecer,

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na qual somente se pode afirmar que “há”, que algo aparece para alguém aparece, certamente, muito mais elaborada no que temos chamado de sua
sobre o fundo de uma totalidade que co-aparece como horizonte. Temos obra metafísica, Introduction à une phénoménologie de la vie, e através do
observado, para continuar, como, seguindo a tradição da que forma parte, que Barbaras denomina uma antropologia privativa. Entretanto, parece-
Barbaras segue a ideia heideggeriana de um movimento de transcendência nos que o problema subsiste de um modo fundamental. Dito de outro
anterior à intencionalidade de atos e que a funda, mas também como modo, antes de responder a questão de como é possível a especificidade da
denuncia, à diferença de Heidegger, a impossibilidade de pensá-la fora de dimensão humana frente à animal, Barbaras parte da evidência de que esta
sua encarnação. Vimos que, do mesmo modo que Sartre, Barbaras tenta especificidade se encontra naquilo que poderíamos chamar de percepção
pensar a subjetividade como negatividade em ato, mas como, diferente deste, consciente. Todo o problema é assim para ele explicar como é possível
não considera mais a negatividade em ato como um modo da consciência, estar ao mesmo tempo vivo e ser capaz de percepção consciente. Mas a
mas como o movimento mesmo do viver. Finalmente, vimos como supera pergunta que surge para nós nesse ponto é: por que basta, para dar conta da
a cisão merleau-pontiana entre senciente e sensível remetendo-os à sua humanidade, explicitar “como a vida pode ser consciente”? Se aceitamos
pertença ao viver entendido como intencionalidade vital. com Barbaras que a consciência não é uma interioridade psíquica primeira,
Muitas questões permanecem abertas, contudo, nesta proposta. nem real nem transcendental, e que não pode ser reificada nem no corpo
Depois desta primeira apresentação, gostaríamos de indicar somente nem em outra realidade, porque ainda temos que aceitar que é o ponto de
uma. A descrição fenomenológica da estrutura do aparecer é, sem chegada à humanidade do homem? Ou, dito mais claramente, do sujeito
duvida, rigorosa na demonstração do que nega: nenhuma das dualidades intencional enquanto ele é, ao mesmo tempo, humano? Não estamos aqui
– corpo-psique, consciência transcendental-mundo – pode se sustentar frente a uma redução da humanidade a sua função propriamente consciente
frente a um pensamento radical da correlação que não supõe pontos de ou, mas particularmente, cognitiva? Parece-nos que, neste sentido, Barbaras
partida substanciais. Um dos méritos da fenomenologia barbarasiana se detêm no momento mesmo onde outro caminho possível é aberto para
é justamente o de permitir com sua descrição da intencionalidade dar conta da diferença que Le désir et la distance não consegue tematizar.
vital uma compreensão conjunta tanto do viver do vivente quanto Esse caminho se encontraria talvez na noção mesma de pulsão mais do
de seu experimentar. Contudo, parece-nos que existe ainda uma que naquela de desejo, que Barbaras menciona no final do livro em relação
cisão problemática que Le désir et la distance, texto estritamente ao último Husserl mas que entretanto não desenvolve. Assinalemos que
fenomenológico, não consegue elaborar em toda sua problematicidade pensamos aqui na pulsão não no sentido husserliano, ainda ligado à ideia de
ou que, para ser mais preciso, se recusa a elaborar. instinto num sentido quase naturalista, mas, sobretudo, na pulsão no sentido
Referimo-nos à cisão entre o homem e os outros seres vivos. freudiano, entendida como conceito limite entre o psíquico e o somático
Com efeito, se é verdade que Barbaras consegue dar conta da unidade e como lugar de um conflito originário que introduz o Outro na origem
profunda do viver na qual podem ser pensados todos os viventes, não é mesma da estrutura subjetiva. O problema, nesse caso, talvez radique em
claro como deve ser pensada, com todo rigor, sua diferença. Esta resposta que seria necessário aceitar uma cisão insuperável no interior do sujeito

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humano que exige um primado da diferença sobre a continuidade com 11.Heidegger, Martin, Die Grundprobleme der Phänomenologie,
respeito aos outros viventes. Talvez seja este um dos limites que esta nova Gesamtausgabe, Abt. 2, Bd. 24, Francfort, Klosterman, 1975
12. ______. “Vom Wesen des Grundes”, in Gesamtausgabe, Abt. 1, Bd. 9, Klosterman,
impulsão dada ao estudo do campo fenomenal deva superar, no percurso
Francfort, 1976, pp. 123-175
de um diálogo que não parece ter-se ainda esgotado. 13. ______. Prolegomena zur Geschichte der Zeitbegriffs, Gesamatusgabe, Abt. 2,
Bd. 20, Francfort, Klosterman, 1979
Renaud Barbaras and the vitality of the phenomenology 14. Levinas, Emmanuel, La théorie de l’intuition chez Husserl, Paris, Vrin,
1930
Abstract: The phenomenology of Renaud Barbaras is one of the few that continues today
trying to deepen, in an original way, the path opened by Husserlian phenomenology. Notas
But which is, precisely, the way chosen by Barbaras to enter in the phenomenological
tradition? How does he introduces himself in the dialogue opened by this tradition? 1. Agradecemos a Mauricio d’Escragnolle Cardoso a leitura crítica e os estimulantes
In this paper, we will try to restore the key issues and concepts that allow us to comentários feitos a este texto.
understand the continuity and rupture of the barbarasian phenomenology in relation 2. Claro exemplo disto é o projeto que o filósofo vem desenvolvendo nos últimos anos
to this tradition, as well as some of the limits of its own proposal. em torno de uma fenomenologia da vida — tema contemporâneo como poucos — em
Keywords: intentionality, phenomenology, Barbaras, life, desire. suas obras Introduction à une philosophie de la vie (Barbaras, 4) e, mais recentemente,
em La vie lacunaire (Barbaras, 5).
Referências Bibliográficas 3. Para quem busca uma arqueologia do conceito, cf. Alain de Libera 1, pp. 133-154.
4. Não consideramos aqui o último livro publicado por Barbaras, La vie lacunaire,
1. Alain de Libera, Arqueologie du sujet. Naissance du sujet, Paris, Vrin, 2007 cuja aparição coincidiu com a escrita de nosso texto.
2. Barbaras, Renaud, Le désir et la distance, Paris, Vrin, 1999
3.______.Vie et intentionnalité, Paris, Vrin, 2003
4. ______. Introduction à une philosophie de la vie, Paris, Vrin, 2008
5. ______. La vie lacunaire, Paris, Vrin, 2011
6. Brentano, Franz., Psychologie vom empirischen Standpunkt, Leipzig, Duncker
& Humblot, 1874
7. Husserl, Edmund, Logische Untersuchungen. Bd. II, 1. Untersuchungen zur
Phänomenologie und Theorie der Erkenntnis (Husserliana XIX), Halle,
Niemeyer, 1901
8. ______. Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen
Philosophie, Erstes Buch: Allgemeine Einführung in die reine
Phänomenologie, in Husserliana 3, Haia, Martinus Nijhoff, 1950 
9. ______. Zur Phänomenologie der Intersubjektivität.  Texte aus dem Nachlass.
Zweiter Teil. 1921-28, in Husserliana XIV, Haia, Martinus Nijhoff, 1973
10. Husserl, E., & Twardowski, k., Sur les objets intentionnels (1893-1903),
Paris, Vrin, 1993.

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NOTÍCIAS

DEFESAS

Daniel Santos da Silva


O conceito de indivíduo e sua realidade na política em Espinosa
Orientador: Profª Drª Marilena de Souza Chaui
Data: 06/07/2012
Resumo: Partimos da polêmica tese de Espinosa de que apenas existe
uma substância única para mostrar que, não apenas os indivíduos são
dotados de uma realidade nesta filosofia, mas que, por esta realidade,
podemos compreender por que Espinosa consegue romper com uma série
de preconceitos filosóficos referentes à ética e à política. Especialmente,
tentaremos chegar, através desse conceito tão problemático na filosofia
de Espinosa, a uma concepção da política como campo liberador da
potência humana que, contudo, por ser formado notadamente a partir
das paixões, traz em si uma gama de ilusões próprias a ele, ao campo
político. Pelo conceito de indivíduo podemos, acreditamos, retomar
uma crítica sempre pertinente na política: organizamos a vida civil em
prol da vida, não do tolhimento da liberdade de cada um.
Palavras-chave: Indivíduo, singularidade, conatus, potência e proporção.

Celi Hirata
Leibniz e Hobbes: casualidade e princípio de razão suficiente
Orientador: Prof. Dr. Luís César Guimarães Oliva
Data: 31/08/2012
O escopo desta pesquisa de doutorado é examinar a relação entre
a doutrina hobbesiana da causalidade e o princípio de razão suficiente em

201
Leibniz, assinalando a aproximação e o distanciamento entre um e outro.
INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES
Se, por um lado, o filósofo alemão é claramente influenciado por Hobbes
na formação de seu princípio, por outro, é por meio desse próprio princípio
que ele critica alguns dos aspectos mais decisivos da filosofia de Hobbes,
como o seu materialismo, necessitarismo, bem como a sua concepção
:::: Os textos devem ser inéditos e ter de preferência até 40
de justiça divina e a sua tese de que Deus não pode ser conhecido pela
laudas (30 linhas de 70 toques).
luz natural. Em alguns textos de sua juventude, Leibniz prova que nada
:::: O arquivo, que deve ser enviado por e-mail , deve conter o
é sem razão pela identificação da razão suficiente com a totalidade dos
nome do autor, a instituição a que está vinculado, o endereço eletrônico ou
requisitos, demonstração que praticamente reproduz aquela pela qual
o telefone. (E-mail: cadernos.espinosanos@gmail.com).
Hobbes defende que todo efeito tem a sua causa necessária. Entretanto,
:::: Os artigos devem vir acompanhados de um resumo e um
em oposição a Hobbes, que reduz a realidade a corpos em movimento,
abstract de 80 a 150 palavras cada um, cinco palavras-chave e keywords.
Leibniz utilizará o conceito de razão suficiente para demonstrar que
:::: As notas de rodapé devem ser digitadas no final do
somente um princípio incorporal pode dotar os corpos com movimento.
artigo, utilizando-se o recurso automático de criação de notas de
É igualmente por meio do princípio de razão suficiente e da sua distinção
rodapé dos programas de edição.
em relação ao princípio de contradição que Leibniz defende que os eventos
:::: As referências bibliográficas devem ser listadas e numeradas
no mundo não são absolutamente necessários, mas contingentes. Por fim,
no final do texto, em ordem alfabética e obedecendo a data de publicação.
é utilizando-se deste princípio que o autor da Teodiceia argumentará que
:::: As citações devem ser feitas no correr do texto de acordo com
Deus pode ser conhecido pela razão natural e que a justiça divina consiste
as normas técnicas da ABNT, seguindo-se a numeração das referências
na sua bondade guiada pela sua sabedoria, em contraste com a definição
bibliográficas; por exemplo, (Descartes 1, p.10) ou (Descartes 1, §8, p.10).
hobbesiana de justiça fundamentada no poder. Assim, se Leibniz se
apropria de certos elementos da doutrina hobbesiana da causalidade é para
submeter a causalidade eficiente e mecânica que é defendida pelo inglês a
uma determinação essencialmente teleológica da realidade.
Palavras-chave: causalidade, princípio de razão suficiente,
mecanicismo, metafísica, necessidade, contingência.

202 203
CONTENTS

Dynamique de la manifestation
Renaud Barbaras.................................................................................11

La vie entre le désir et la création: Renaud Barbaras


lecteur critique de Bergson
Débora Morato Pinto..........................................................................31

From Merleau-Ponty to Barbaras


Luiz Damon Santos Moutinho.............................................................63

Vie privative ou vie lacunaire?


Marcia Sá Cavalcante Schuback..........................................................71

Renaud Barbaras, reader of Husserl


Marcus Sacrini....................................................................................95

The perception according to Barbaras


Leandro Neves Cardim......................................................................105

The living body and the movement of


the life in M. Merleau-Ponty and R. Barbaras
(Tradução de Silvana de Souza Ramos)
Esteban A. García..............................................................................131

205
The experience of the lack and the
mystery of the desire
Silvana de Souza Ramos.......................................................................159

Renaud Barbaras and the vitality of


the phenomenology
Mariana Larison....................................................................................179

NEWS........................................................................................................201

INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES...........................................................203

CONTENTS..................................................................................................205

206

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