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Revista eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo da Escola Superior de Teologia

Volume 14 (ano 06, n. 03) – setembro-dezembro de 2007


São Leopoldo – RS
Periodicidade Quadrimestral - ISSN 1678-6408

http://www3.est.edu.br/nepp
Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia
Volume 14, set.-dez. de 2007 – ISSN 1678 6408

Coordenador Geral
Prof. Dr. Oneide Bobsin

Conselho Editorial
Berge Furre - Universidade de Oslo
Emil A. Sobottka - PUCRS
Adriane Luísa Rodolpho – Escola Superior de Teologia
Ricardo W. Rieth – Escola Superior de Teologia/ULBRA
Edla Eggert - Unisinos

ISSN: 1678-6408

Responsável por esta edição


Adriane Luísa Rodolpho

Capa desta edição


Iuri Andréas Reblin

Revisão
Integrantes do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo: Adriana Weege, Adriane Luísa
Rodolpho, Alessandro Bartz, Dilceu Locir Witzke, Ezequiel de Souza, Felipe Gustavo Koch Buttelli,
Iuri Andréas Reblin, Kathlen Luana de Oliveira, Marcelo Sieben, Nivia Ivette Núñez de la Paz, Oneide
Bobsin, Rogério Sávio Link.

Editoração Eletrônica
Iuri Andréas Reblin

Link Desta Edição: http://www3.est.edu.br/nepp/revista/014/ano06n3.pdf

Protestantismo em Revista é um órgão do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP),


que visa ser um canal de socialização de pesquisas de docentes e discentes da área de Teologia,
Ciências das Religiões, abrangendo o espectro das Ciências Humanas e das Ciências Sociais Aplicadas,
tanto de integrantes da Escola Superior de Teologia (EST) quanto de outras instituições.
Protestantismo em Revista está sob a coordenação do Prof. Dr. Oneide Bobsin, titular da Cadeira de
Ciências das Religiões da EST.

A revista eletrônica Protestantismo em Revista é uma publicação quadrimestral (jan.-abr.; mai.-ago.,


set.-dez.), sendo que as três edições do ano são tradicionalmente planejadas em duas edições temáticas
e uma edição livre. Comumente, a equipe de redação aceita textos até o final do segundo mês do
quadrimestre e a publicação acontece normalmente na segunda quinzena do terceiro mês do
quadrimestre, salvo exceções. Confira a data estipulada na grade do tópico “edições anteriores” no site
da revista.

Os trabalhos deverão ser enviados para o correio eletrônico do Núcleo de Estudos e Pesquisa do
Protestantismo: nepp_iepg@yahoo.com.br. Consulte as normas no site da revista. Demais
informações e edições anteriores, acesse o site (http://www3.est.edu.br/nepp)

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Sumário

Editorial................................................................................................................................................. 4

Textos:
Pierre Bourdieu: notas biográficas ..................................................................................................... 6
Por Adriane Luísa Rodolpho

Poder & Intrigas, uma novela teológica: considerações acerca das disputas de poder no
campo religioso à luz do pensamento de Pierre Bourdieu e de Rubem Alves.......................... 14
Por Iuri Andréas Reblin

A sociologia da religião de Max Weber interpretada por Pierre Bourdieu: breves


apontamentos...................................................................................................................................... 32
Por Alessandro Bartz

Bourdieu e o Culto Cristão: relatos de uma observação............................................................... 44


Por Felipe Gustavo Koch Buttelli

Bourdieu e o fazer teológico ............................................................................................................. 67


Por Nivia Ivette Núñez de la Paz e Rogério Sávio Link

As mulheres vão à rua, os homens ficam em casa: reflexões preliminares sobre a Rede de
Enfrentamento à Violência contra a Mulher de São Leopoldo .................................................... 74
Por Ezequiel de Souza e Laura Zacher

Resenhas, Leituras e Prefácios de Obras:


A eternização do arbitrário cultural masculino: apontamentos sobre a obra A Dominação
Masculina de Pierre Bourdieu ........................................................................................................... 86
Por Felipe Gustavo Koch Buttelli

Como citar esta revista.................................................................................................................... 102

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Editorial

No ano de 2007, o Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP)


escolheu como temática norteadora das discussões o sociólogo Pierre Bourdieu.
Durante o ano, muitos textos desse autor foram debatidos pelo grupo, sobretudo os
da sua obra Economia das Trocas Simbólicas. Parece ser uma tarefa penosa conciliar a
sociologia crítica de Pierre Bourdieu com a teologia, especificamente nos moldes
confessionais protestantes. A pergunta que nos persegue é como pode Pierre
Bourdieu, que em sua obra dedicou pouco espaço à religião e era particularmente
cético em relação à Igreja, contribuir para a reflexão teológica e para a prática
eclesial?

Para responder a essa pergunta, trazendo uma abordagem a partir de


diferentes perspectivas, é que contemplamos esta terceira edição de 2007 da
Protestantismo em Revista. A Profª. Drª. Adriane Rodolpho traz como primeiro artigo,
intitulado Pierre Bourdieu: notas biográficas, uma aproximação biográfica e
algumas referências ao contexto histórico francês de meados do século XX,
importantes para a compreensão do pensamento do autor.

Como segundo artigo, Iuri Andréas Reblin nos oferece suas “considerações
acerca das disputas de poder no campo religioso à luz do pensamento de Pierre
Bourdieu e de Rubem Alves”. Em Poder & Intrigas, uma novela teológica, Iuri
procura cruzar a teoria de campos de Bourdieu com a teologia crítica de Rubem
Alves, usando como ponte o binômio Instituição-comunidade.

A seguir, Alessandro Bartz procura pela sociologia da religião de Max Weber


na leitura de Pierre Bourdieu. Em A sociologia da religião de Max Weber
interpretada por Pierre Bourdieu, Alessandro lança alguns apontamentos sobre a
ligação entre os dois sociólogos.

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Em seguida, Felipe Gustavo Koch Buttelli relata uma observação de um


culto da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) e projeta sobre ele
referencial teórico de Pierre Bourdieu. Fazendo uso, sobretudo, de Economia das
Trocas Lingüísticas, Felipe nos demonstra que o culto cristão não é um ato de
comunicação sem interesse e que também nele os indivíduos agem com
determinadas finalidades.

O quinto artigo nos é oferecido por Nivia Ivette Núñez de la Paz e Rogério
Sávio Link. Em Bourdieu e o fazer teológico, os autores argumentam pela
possibilidade da teoria de Pierre Bourdieu ser de proveito para a teologia. Para eles,
sua sociologia contribui com a teologia na medida em que exige um compromisso
profético com o Evangelho.

Ezequiel de Souza e Laura Zacher apresentam apontamentos de sua pesquisa


junto à Rede de Enfrentamento à Violência contra a Mulher de São Leopoldo
(REVM). Em As mulheres vão à rua, os homens ficam em casa, os autores lançam
hipóteses e investigam teoricamente a REVM como um movimento social
organizado.

Para finalizar esta edição de Protestantismo em Revista, Felipe Gustavo Koch


Buttelli nos oferece uma minuciosa resenha sobre a obra A Dominação Masculina. A
proposta demonstra a atualidade da leitura de Pierre Bourdieu, ao discutir também
temas transversais como a reflexão de gênero. E assim, procurando por diferentes
caminhos, é feita a leitura de Pierre Bourdieu, apontando para novas maneiras de se
fazer teologia e de se viver a fé, caracterizadas pela crítica contundente que procura
encontrar um caminho mais justo para viver.

São Leopoldo, dezembro de 2007.

Profª. Drª. Adriane Luísa Rodolpho


Felipe Gustavo Koch Buttelli

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Pierre Bourdieu: notas biográficas

Por Adriane Luísa Rodolpho*

Resumo:
Este artigo retoma algumas contribuições em língua francesa sobre a obra de Pierre
Bourdieu, publicadas logo após a morte deste sociólogo em 2002. Trata-se de um artigo e de
uma revista, os quais foram confrontados a alguns aspectos biográficos do autor.

Palavras-chave:
Bourdieu – religião - biografia

“Pierre Bourdieu et la religion” é o título de um artigo de Erwan Dianteill


publicado em 2002, ano da morte do célebre sociólogo1. Inspirando-nos não apenas
no título do artigo de Dianteill, propomos aqui seguir o autor na discussão tanto dos
limites quanto das perspectivas abertas pela leitura de algumas noções fundamentais
da obra de Bourdieu, desta vez em relação direta com a biografia do autor.

Dianteill parte da constatação de que a relação de Bourdieu com a religião é


algo paradoxal. Se, por um lado, Bourdieu não consagra à religião a mesma atenção
que dedicou ao campo das artes ou da educação, por outro lado, alguns de seus
principais conceitos são originários da sociologia da religião. Nesse sentido, Mauss,
Durkheim e Weber são as referências diretas aos conceitos de crença, campo e habitus,
desenvolvidos por Bourdieu, por exemplo. Esse paradoxo é, portanto, analisado por
Dianteill, de quem nos afastamos por momentos para retomá-lo mais tarde. Por
enquanto, um breve olhar sobre a biografia de Bourdieu pode nos fornecer mais

* Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutora
em Antropologia Social e Etnologia pela École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS -
Paris). Professora da Escola Superior de Teologia de São Leopoldo.
1 DIANTEILL, Erwan. “Pierre Bourdieu et la religion. Synthèse critique d’une synthèse critique”.
Archives de Sciences Sociales des Religions, 118 (avril-juin) 2002, p. 5-19.

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elementos para a reflexão. Há muitos que acreditam que o grande trabalho de


Bourdieu foi exemplificar sua vida em sua teoria...

Pierre Bourdieu nasce em 1930 no sudoeste da França (Hautes-Pyrénées),


filho de um funcionário dos Correios. Em 1951, o jovem provinciano ingressa na
Escola Normal Superior, prestigiosa academia em Paris, onde é confrontado com a
cultura burguesa da maioria de seus colegas, elite erudita e oriunda das classes
sociais mais favorecidas da sociedade francesa. Sobre esse aspecto, Dortier2 é claro ao
descrever Bourdieu nesse cenário:

Lá, o jovem provinciano, acanhado e desajeitado, encontra-se imerso


em um mundo que não é o seu. Um mundo de jovens burgueses
brilhantes, bem falantes, cultivados, à vontade tanto no manejo do
verbo quanto da pluma. O jovem Bourdieu, ele, ainda que tenha
conseguido subir todos os degraus da hierarquia escolar, não se
sente, entretanto, à vontade nem na escrita nem na oratória. E ele não
o será jamais. Mesmo que sua obra seja imponente, ele não terá a
pluma fácil e alerta; ainda que ele tenha feito centenas de
conferências, ele não será um orador. Como Flaubert, a quem ele
consagra As regras da arte. Gênese e estrutura do campo literário (Seuil,
1992) a expressão de seu pensamento deve passar pelo esforço
permanente de autocontrole, de luta contra si mesmo. Todo o
contrário da facilidade aparente desses estudantes oriundos da
burguesia cultivada que ele encontra na rua de Ulm.3

Em 1955, formado em filosofia, Bourdieu parte para a Argélia, onde trabalha


como pesquisador e professor; em 1958, ele publica Sociologie de l’Algerie. Desta época
datam seus trabalhos sobre a tradição cabila, grupo berbere de cultura mediterrânea
(nordeste montanhoso da Argélia). Sobre essa sociedade tradicional, Bourdieu
desenvolve uma análise das relações entre os sexos (a partir das relações de divisão
do trabalho, da estrutura do espaço e da organização do tempo) ainda marcadamente
influenciada pelo estruturalismo de Lévi-Strauss. Fournier4 sinaliza que as oposições

2 DORTIER, Jean-François. “Les idées pures n’existent pas”. In: Sciences Humaines, n. spécial Pierre
Bourdieu, 2002, p. 3-8.
3 DORTIER, 2002, p. 3. Tradução própria.
4 FOURNIER, Martine. “La domination masculine”. In: Sciences Humaines, n. spécial Pierre Bourdieu,
2002, p. 50-53.

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mítico-rituais – alto/baixo, embaixo/em cima, seco/úmido, ativo/passivo,


ereto/curvado – são usadas metaforicamente para ilustrar como uma construção
social determinada pode ser entendida como natural, como da ordem normal das
coisas, no caso, a dominação masculina. O célebre livro de Bourdieu com esse nome é
lançado em 1998 e, desde então, algumas de suas noções – o processo de
interiorização pelos dominados dos valores dos dominantes – têm caído quase que
no senso comum. A popularização das análises e termos de Bourdieu é um fenômeno
recorrente e isso desde o início de sua carreira.

A década dos anos 1960 marca o retorno do sociólogo à França (1961) e seu
ingresso na Escola Prática de Altos Estudos (EPHE) em 1964. É esse o ano de
lançamento de Les Héritiers (junto com Passeron); em 1965, junto com Boltanski,
Castel e Chamboredon, Bourdieu publica Um Art Moyen Essai sur les usages sociaux de
la photographie; no ano seguinte, aparece L’Amour de l’Art e, em 1967, Le Métier de
sociologue (com Passeron e Chamborédon). Essa intensa produção bibliográfica se
desenvolve paralelamente ao seu trabalho junto a Raymond Aron, com quem
partilha a direção do Centro Europeu de Sociologia Histórica. Ainda nessa década,
Aron e Bourdieu se desentendem e, em 1968, esse funda seu próprio laboratório: o
Centro de Sociologia Européia.

Nos anos de 1970, Bourdieu está na Escola de Altos Estudos em Ciências


Sociais (EHESS) e cria sua própria revista em 1975, Actes de la recherche em sciences
sociales. Em 1970, publica La Reproduction e, em 1972, Esquisse d’une théorie de la
pratique. Sua consagração virá em 1979, ano em que publica La Distinction e ingressa
como titular de sociologia no Collège de France. Em 1978, Bourdieu dirige a coleção
Le Sens Commun pela editora Minuit e publica, na França, uma série de autores como
Panofsky, Hoggart, Goffman e Cicourel5.

5 CHARTIER, Roger. “Le sociologue et l’historien”. In: Sciences Humaines, n. spécial Pierre Bourdieu,
2002, p. 85.

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Nos anos 1980, Bourdieu publica oito livros, a maioria deles logo encarados
como ‘clássicos’: Le sens pratique, 1980; Questions de sociologie, 1981; Leçon sur la leçon
em 1982 e também Ce que parler veut dire; em 1984, Homo Academicus, 1987, Choses
dites, 1988, L’ontologie politique de Martin Heiddeger e Noblesse d’État, de 1989. Nessa
década, Bourdieu publica sozinho, com a carreira consolidada na França (apesar de
ter se desentendido com boa parte de seus colegas do campo acadêmico) parte em
busca do “mercado intelectual internacional”6, sobretudo norte-americano.

Bourdieu organiza a publicação de La misère du monde em 1993, obra coletiva


que representa o esforço engajado de intelectuais na vida política. Período agudo de
sucessivas crises sociais – a França é confrontada com o desemprego e a exclusão – a
equipe formada por 23 sociólogos propôs-se a escutar as falas de alguns dos
‘desprovidos sociais’ em forma de narrativas, onde uma miséria de posição é
descortinada em detalhes. Imigrantes, estudantes, enfermeiros e pequenos
agricultores falam de suas vidas, de suas aspirações e do choque com a violência
simbólica oculta na inacessibilidade (fracasso) escolar e ao mercado de trabalho. O
livro é um grande sucesso de vendas entre um público não especificamente
acadêmico, o que já vinha ocorrendo há alguns anos com outras obras de Bourdieu.

Segundo Alain Touraine7, o status de Bourdieu muda em “uma tarde no


inverno de 1995, quando ele foi apoiar os maquinistas em greve na estação de Lyon.
Ele tornou-se o sociólogo do povo”8. Com efeito, o engajamento de Bourdieu na vida
política vai de par com sua exposição na mídia, assim como sua reflexão teórica sobre
a mesma. A década de 1990 marca a presença do sociólogo na arena pública dos
debates e essa não deve ser subestimada: “a sociologia de P. Bourdieu insuflou um

6 DORTIER, 2002.
7 TOURAINE , Alain. “Le sociologue du people”. In Sciences Humaines, n. spécial Pierre Bourdieu,
2002, p. 101-103.
8 TOURAINE, 2002, p. 101. Tradução própria.

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vento novo ao debate público, átono desde os anos 1980, fixo num ‘pensamento
único’ de inspiração neoliberal”9.

Em 1992, Bourdieu publica Les règles de l’art e Réponses Pour une antropologie
réflexive; além de Misere du monde, em 1993, aparece Libre-échange (com Hans Haacke);
em 1994, Raisons pratiques; em 1996, Sur la télévision; em 1997, Les usages sociaux de la
science e Méditations pascaliennes; em 1998, La domination masculine e Contre-feux 1
(Propos pour servir à la résistance contre l’invasion neo-libérale).

Em 2000, aparecem Propos sur le champ politique e Les structures sociales de


l’économie; em 2001, Contre feux 2 (Pour um mouvement social européen); Langage et
pouvoir e Science de la science et réflexivité. E, enfim, em 2002, Interventions politiques
1961-2001 e Le bal des célibataires.

Em 2002, Pierre Bourdieu morre em Paris, deixando uma legião de leitores


que se dividem, basicamente, em três categorias: devotos, céticos e detratores. Passar
pela volumosa leitura e seguir o pensamento de Bourdieu é também uma experiência
iniciática que devemos prosseguir mesmo sem tudo entender... Parágrafos enormes,
digressões, frases incompreensíveis: a leitura dessa obra passa por repetições,
familiarização e impregnação – poderíamos falar de transformação interior do
leitor10? De qualquer forma, a reação à obra de Pierre Bourdieu, às vezes, beira o
passional11, mas, na maioria das vezes, mesmo seus críticos mais ferrenhos rendem
homenagem ao brilhante sociólogo.

A breve biografia acadêmica de Bourdieu demonstra que ele próprio foi um


representante dominante do campo intelectual. Sua admirável carreira como
pesquisador e professor ultrapassa as fronteiras do campo acadêmico - estritamente

9 CORCUFF, Philippe. “Respect critique”. In: Sciences Humaines, n. spécial Pierre Bourdieu, 2002, p.
70. Tradução própria.
10 Esses propósitos foram expressos por Wiktor Stoszkowski, em seminário à l’EHESS (2001).
11 A simples referência ao título do livro da autora é elucidativa: Le savant et la politique. Essai sur le
terrorisme sociologique de Pierre Bourdieu. Verdes-Leroux, Jeannine. Ed. Grasset, 1991.

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falando - e se estende para o campo social mais amplo. Nesse sentido, percebemos
como o capital simbólico de Bourdieu excede seu campo de origem e como a sua
influência se faz sentir em outras esferas sociais. É interessante notar que as noções
de Bourdieu podem ser percebidas em sua trajetória: as disputas no campo
acadêmico, a violência e o poder simbólico, a constituição de habitus e a distinção,
enfim, uma série de aproximações podem ser feitas nesse sentido.

Mas, e o paradoxo? A leitura do texto de Dianteill é elucidativa quando


indica algumas razões que levaram Bourdieu a não se aprofundar mais na análise do
campo religioso. Em primeiro lugar, existiria uma desconfiança, da parte de
Bourdieu, sobre as reais possibilidades do estudo científico da religião – em si. Em
1982, durante a reunião anual da Associação Francesa de Sociologia das Religiões,
Bourdieu

questiona publicamente a validade científica da sociologia da religião


a partir do momento em que ela é praticada por ‘produtores que
participam, em diferentes níveis, do campo religioso.12

Assim fazendo, Bourdieu lança um alerta com relação tanto ao fato de o


pesquisador em sociologia da religião ter suas convicções e pertencimentos religiosos
quanto, do contrário, de ele não participar da crença partilhada pelo grupo. No
primeiro caso, tratar-se-ia de uma ‘sociologia religiosa’ e, no segundo, de uma análise
exterior da ‘coisa’, sem perceber “as instâncias subjetivas da atividade religiosa, e em
particular, a adesão incondicional às verdades reveladas”13.

Um segundo aspecto diz respeito ao contexto histórico dos estudos de


sociologia religiosa na França dos anos 1970. Daniele Hervieu-Lèger comenta a esse
respeito que o clima de desconfiança com relação às subjetividades confessionais de
cada um era o padrão naqueles anos. Sobre sua própria experiência de vida, a autora

12 DIANTEILL, 2002, p. 16. Tradução própria.


13 DIANTEILL, 2002, p. 17. Tradução própria.

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relembra que naquela época a exigência de distância entre o sujeito e seu objeto de
pesquisa era redobrada no caso das análises relativas à religião.

Para tomar legitimamente a religião como objeto de sua investigação,


o sociólogo devia permanentemente oferecer garantias de que ele não
acordava nenhuma consistência própria à visão religiosa de mundo
contra a qual, precisamente, a interpretação sociológica deveria se
construir.14

Entretanto, se esse mesmo contexto não foi impeditivo ao desenvolvimento


da reflexão do campo da sociologia da religião na França, ao mesmo tempo
caracteriza toda uma geração de pesquisadores, e Bourdieu não é uma exceção.
Como relembra Dianteill, as ciências sociais ‘republicanas’ – incluindo-se aí a
sociologia religiosa – se constituem “contra a empresa intelectual da religião e
singularmente contra a influência católica na universidade, no momento das lutas
anticlericais do início do século XX”15. Tradição de longa data, essa especificidade do
contexto histórico francês aliada ao primeiro aspecto do questionamento acima
referido – até que ponto a religião é passível de análise científica – emolduram um
habitus (laico republicano, secular, racional, moderno) do qual Bourdieu, sem dúvida,
é um claro representante.

Um último aspecto abordado por Dianteill diz respeito ao próprio estatuto


do campo religioso, tal como formulado por Bourdieu – que explicaria, igualmente, a
relativa pouca quantidade de trabalhos desse sociólogo exclusivamente voltados à
religião. A estrutura do campo estaria limitada ao panorama específico das
instituições cristãs ocidentais e deixaria assim escapar toda a gama de fenômenos
religiosos que fogem do controle dos especialistas. Dito em outros termos, o campo
religioso, assim definido, acabaria sendo uma arena de lutas, na qual era visível o
poder das instituições eclesiásticas decaindo considerável e desencantadamente.

14 HERVIEU-LÉGER, Daniele. “De l’utopie a la tradition: retour sur une trajectoire de recherche”. In
LAMBERT, Y.; MICHELAT, G. et PIETTE, A. (Org.) Le religieux des sociologues. Trajectoires
personnelles et débats scientifiques. Paris: l’Harmattan. 1997, p. 22. Tradução própria.
15 DIANTEILL, 2002, p. 17. Tradução própria.

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Além disso, essa perspectiva secularizante deixava escapar todas as manifestações


religiosas fora dos contextos institucionais.

É por isso que - confrontado a contradições metodológicas de difícil


solução, penetrado por uma cultura laica que assimila a religião ao
poder da igreja católica, convencido de que essa constitui uma força
social declinante - P. Bourdieu não concede em sua obra senão um
lugar marginal ao estudo dos fatos religiosos.16

Entretanto, a contribuição da hermenêutica desenvolvida por Bourdieu não


pode ser desprezada. A riqueza dos conceitos propostos pelo eminente sociólogo
abriu caminhos fecundos para a reflexão do panorama religioso que, mesmo se
restritos a algumas configurações sociais, por outro lado, induzem à reflexão crítica.

16 DIANTEILL, 2002, p. 18. Tradução própria.

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Poder & Intrigas, uma novela teológica: considerações acerca


das disputas de poder no campo religioso à luz do
pensamento de Pierre Bourdieu e de Rubem Alves

Por Iuri Andréas Reblin*

Resumo:
O presente ensaio tece algumas considerações acerca das disputas de poder no campo
religioso, tendo por referencial a noção de campo de Pierre Bourdieu e o pensamento crítico
de Rubem Alves acerca da tensão instituição-comunidade.

Palavras-chave:
disputas de poder – campo religioso – Rubem Alves – Pierre Bourdieu

A aceitação de um discurso como verdadeiro e ortodoxo


e a rejeição de outro como falso e heterodoxo
se dá no nível do poder político dos sujeitos que enunciam e sustentam tais
discursos. O que importa é quem tem a última palavra.

Rubem Alves1

As dinâmicas dos campos

É curioso notar como as telenovelas fazem sucesso no Brasil. Parece quase


uma tradição sentar na frente da televisão depois de um dia de trabalho e assistir as
ditas novelas. A cada ano que passa, é cada vez mais expressivo o número de opções
que surgem no horário nobre da televisão e de emissoras que apostam em sua

* Teólogo brasileiro, mestre em teologia pela Escola Superior de Teologia (EST) de São Leopoldo
(RS) com o apoio do CNPq – Brasil. Pesquisa a teologia que está além das fronteiras institucionais e
que se manifesta em outros planos de expressão, como o cinema, os quadrinhos, os romances de
folhetim e as telenovelas e nas relações interpessoais que acontecem na cotidianidade da vida
humana.
1 ALVES, Rubem. Dogmatismo & Tolerância. São Paulo: Loyola, 2004, p. 45.

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produção e exibição. E a disputa entre as emissoras pela atenção do público (os


famosos pontos de audiência que atuam, na verdade, como uma referência para o
câmbio publicitário) se acirra cada vez mais. Ela se amplia também a outras esferas:
está na contratação de atores e diretores consagrados, na construção de estúdios, na
aquisição de novas tecnologias. E o resultado se revela na quantidade e na qualidade
artística (principalmente, na direção de arte) que é oferecida ao consumidor final: há
novelas de época, novelas de suspense, novelas de ação que lembram inclusive séries
e super-heróis estadunidenses. É interessante também como esse produto televisivo
gera outros subprodutos como revistas e outros programas de televisão baseados em
revelar spoilers e de perseguir a vida de famosos. No entanto, mais curioso ainda é
que o eixo temático que permeia a narrativa dramática das diversas novelas é sempre
o mesmo: conspiração, intrigas, traição, amor, todos estes atrelados a praticamente
um ponto gravitacional específico: o poder.

É interessante tentar perceber como as mais variadas relações sociais se


estruturam e se articulam sobre o princípio do poder. E essa percepção é muito mais
forte se o panorama que se tem é a sociedade ocidental e a estrutura quase que
globalizada das relações de mercado. Nesse sentido, uma das primeiras abordagens e
contribuições para esse tipo de reflexão foi, de fato, aquela trazida por Karl Marx em
O capital: a apropriação da mais-valia pela classe capitalista é um aumento de poder.
Da mesma forma, coligações políticas visam o aumento de poder. Quanto mais poder
se tem, mais possibilidades de se aumentar mais ainda o poder que se tem surgem.
Talvez seja muita presunção qualificar a questão do poder como eixo-principal da
estrutura social (e econômica, política, cultural, religiosa, etc.) mesmo porque nem é
esse o propósito aqui. No entanto, é difícil ignorar essa possibilidade. Isso se torna
ainda mais complicado se a observação das relações sociais é filtrada pela noção de
campo de Pierre Bourdieu.

Segundo Pierre Bourdieu, cada microcosmo social dentro do macrocosmo de


uma sociedade (e esta por sua vez em relação a outras) é constituído por constantes

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medições de forças e marcado por lutas permanentes que visam estruturar e manter
o controle sobre um determinado ambiente. Chamado por Pierre Bourdieu de campo,
esse microcosmo social é o universo intermediário entre um determinado texto e seu
contexto. Esse universo intermediário é constituído de relações entre agentes e
instituições que visam a aquisição de capital e, logo, poder, com o objetivo final de
manter o controle ou o monopólio sobre o respectivo campo em que se encontram. É
o caso, por exemplo, de emissoras que estabelecem e mantém contratos de
exclusividade com certos atores, diretores e roteiristas consagrados (o que representa
grande parte de seu capital simbólico) pois elas sabem que a atuação de tais
profissionais é um elemento-chave para garantir a boa audiência da novela. A alta
audiência significa a oportunidade de cobrar mais caro pelas inserções publicitárias
nos intervalos ou dentro das próprias novelas. Logo, aquele que detém um maior
capital específico daquele e naquele campo possui o controle do campo. Se uma
emissora consegue sucesso com suas novelas, é provável que a mesma fórmula de
sucesso (estilo de narrativa, por exemplo) seja copiada por outras emissoras. Em
outras palavras, quem tem o controle dita as regras, pelo menos até que outro surja
com algo tão revolucionário, inédito, capaz de inverter ou transformar o pólo de
forças dentro do campo. Nas palavras de Pierre Bourdieu,

Qualquer que seja o campo, ele é objeto de luta tanto em sua


representação quanto em sua realidade. A diferença maior entre um
campo e um jogo (que não deverá ser esquecida por aqueles que se
armam da teoria dos jogos para compreender os jogos sociais e, em
particular, o jogo econômico) é que o campo é um jogo no qual as
regras do jogo estão elas próprias postas em jogo (como se vê todas as
vezes que uma revolução simbólica [...] vem redefinir as próprias
condições de acesso ao jogo, isto é, as propriedades que aí funcionam
como capital e dão poder sobre o jogo e sobre os outros jogadores).
Os agentes sociais estão inseridos na estrutura e em posições que
dependem do seu capital e desenvolvem estratégias que dependem,
elas próprias, em grande parte, dessas posições, nos limites de suas
disposições. Essas estratégias orientam-se seja para a conservação da
estrutura seja para a sua transformação, e pode-se genericamente
verificar que, quanto mais as pessoas ocupam uma posição
favorecida na estrutura, mais elas tendem a conservar ao mesmo
tempo a estrutura e sua posição, nos limites, no entanto, de suas

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disposições (isto é, de sua trajetória social, de sua origem social) que


são mais ou menos apropriadas à sua posição.2

O campo religioso

Pensando no campo religioso, uma das grandes ilusões relacionadas a esse


campo é a visão ingênua contida nele que atribui uma aura sacra a eclesiologia.
Relacionar a igreja (instituição) como vontade ou realização de Deus na terra pode
possuir seus benefícios, mas carrega perigos muito mais ameaçadores e pertinentes.
Entre esses perigos está, naturalmente, a tentação de se outorgar o título de
representante de Deus na terra e lançar a máxima já difundida no período da
cristandade: extra ecclesiam nulla salus, i.e., fora da igreja não há salvação. Essa
tentação (a mais forte delas) já foi apresentada pelos evangelistas no relato
conseqüente ao batismo de Jesus por João Batista no rio Jordão. Segundo Juan
Mateos e Fernando Camacho, as três tentações – transformar pedra em pão, deixar-se
ser socorrido por anjos e servir ao diabo – (Mt 4.1-11) significam, na verdade, a
utilização dos dons a favor de si mesmo, a infantilização de Deus mediante o
encobrimento da irresponsabilidade humana e a renúncia total ao projeto do Reino
de Deus, i.e., de uma sociedade alternativa à injusta de então3. Em todo o caso, há
quem diga que a igreja (instituição) apesar das calúnias e das pequenas exposições
constrangedoras (lavagem dinheiro ou aquisição ilícita de dinheiro, como no caso da
acusação sobre os líderes da Renascer, padres acusados de pedofilia) ainda se
sustenta como uma das instituições sociais mais íntegras. Não é necessário duvidar
disso, mas apenas ressaltar que, justamente por ser uma instituição humana, sua
história não escapa de se tornar uma novela de horário nobre, i.e., com tramas
evocadas por poder, intrigas e até amor. O campo religioso é, da mesma forma que

2 BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São
Paulo: UNESP, 2004, p. 29.
3 MATEOS, Juan; CAMACHO, Fernando. Jesus e a sociedade de seu tempo. São Paulo: Paulinas, 1992, p.
53-56.

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outros campos – como Pierre Bourdieu tão bem descreveu – um campo de forças e
um campo de lutas entre agentes e instituições, entre agentes e agentes e entre
agentes e fiéis.

É importante relembrar como Pierre Bourdieu entende e define a religião e o


trabalho e o campo religioso e ainda a relação entre os diferentes agentes que atuam
nesse campo. Pierre Bourdieu compreende a religião como um sistema simbólico e
como um sistema de pensamento que organiza a sociedade, concedendo-lhe uma
ordem lógica sobre a qual ela possa se estruturar e reconhecer tanto o mundo natural
quanto o mundo social como pertencentes a uma mesma ordem cósmica. A religião
estrutura o mundo de uma forma muito próxima, senão idêntica, a linguagem e é
responsável, nesse ínterim, pela produção de sentido que possibilita a própria
existência humana. Essa produção de sentido acontece sobre categorias
imprescindíveis e imutáveis (céu/inferno, material/espiritual, sagrado/profano) que
são revestidas pelo caráter do sagrado, i. e., que “[...] não podem ser postas em
discussão e podem assim assegurar o consenso lógico e moral de qualquer
sociedade”4. Essas categorias são atribuídas a coisas e, até mesmo, a pessoas,
transformando aquilo que é transitório e humano em algo perene e divino e,
portanto, inquestionável.

Esse ato de envolver coisas e pessoas por uma aura sacra, Bourdieu chama de
poder de consagração. Ao modificar a natureza das coisas e das pessoas, ao transformar
o ‘assim é’ em o ‘assim deve ser’, a religião expressa sua força estruturante, sua
eficácia simbólica e revela sua função política, o que é chamado por Bourdieu de
alquimia ideológica, justamente, por ela “[...] conferir à ordem social um caráter
transcendente e inquestionável”5. Nesse sentido, a religião de uma determinada

4 OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. A teoria do trabalho religioso em Pierre Bourdieu. In: TEIXEIRA,
Faustino (Org.). Sociologia da Religião: enfoques teóricos. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 179. Cf. também
diretamente da fonte: BOURDIEU, Pierre. A Economia das trocas simbólicas. 6. ed. São Paulo:
Perspectiva, 2005, p. 27-98.
5 OLIVEIRA, 2003, p. 180.

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sociedade só será eficaz se ela estiver em sintonia com essa sociedade e se for capaz
de reproduzir no ‘céu’ o que existe na ‘terra’ (as estruturas hierárquicas de poder) ou
seja, se ela desempenhar funções sociais, mais ainda, se ela for capaz de incutir em
seus fiéis seus esquemas de pensamento e, assim, incorporar hábitos como se fossem
algo natural do indivíduo. “Toda a religião exerceria, assim, a função política de
eternizar uma dada ordem hierárquica entre grupos, gêneros, classes ou etnias”6. A
partir disso, Pierre Bourdieu desenvolve um caminho próprio que vai desembocar
numa nova forma de se observar e de se entender a religião. Essa nova perspectiva
acerca da religião está construída sobre três noções elaboradas por Bourdieu: a noção
de trabalho religioso, a noção de campo religioso e a “relação entre especialistas e
consumidores de bens religiosos”7.

O trabalho religioso é uma produção discursiva ou uma prática envolta numa


aura sagrada que supre “a uma necessidade de expressão de um grupo ou classe
social” e que se torna socializada e enraizada nesse mesmo grupo8. O trabalho
religioso pode ser uma produção autônoma e coletiva ou uma produção
especializada. No primeiro caso, trata-se de religiões e sociedades mais simples, onde
o próprio consumidor é o produtor do sentido religioso. No segundo caso, trata-se de
religiões eruditas, onde o produtor é um especialista que tira de sua produção seu
sustento, ‘vendendo-a’ aos consumidores. Essas religiões possuem uma teologia
elaborada, seguem determinadas liturgias e estão ancoradas numa instituição que
distingue ‘quem sabe’ de ‘quem não sabe’.

A noção de campo religioso está baseada sobre a idéia da divisão social do


trabalho. O campo religioso “[...] compreende o conjunto das relações que os agentes
religiosos mantêm entre si no atendimento à demanda dos ‘leigos’”9. Ele refere-se
àquelas sociedades estruturadas que possuem uma religião mais elaborada, em que

6 OLIVEIRA, 2003, p. 181.


7 OLIVEIRA, 2003, p. 182.
8 OLIVEIRA, 2003, p. 182.
9 OLIVEIRA, 2003, p. 184.

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os produtores se distinguem dos consumidores dos produtos religiosos. Esses


produtores (os agentes religiosos) são sustentados pelos consumidores (os leigos)
que, por sua vez, têm sua ‘necessidade espiritual’ suprida pelos produtos e práticas
(os bens religiosos) produzidas pelos primeiros. O campo religioso “[...] será movido
pela busca do completo domínio do trabalho religioso por um conjunto de agentes
especializados”10. Esses agentes buscarão a legitimidade e a autoridade sobre a
produção dos bens religiosos através do combate às produções de autoconsumo
(aquela velha história do pastor dizer para o membro não ir à benzedeira) com a
intenção de alcançar o domínio completo do trabalho religioso. Acontece, no entanto,
que os grupos e classes sociais desprivilegiados vão buscar “[...] um sentido
alternativo para justificar sua condição existencial, recorrendo à autoprodução
religiosa ou a agentes marginalizados pelas instituições dominantes”11. Assim,
conforme já expresso anteriormente, o campo religioso torna-se também um campo de
forças, que pode ser estruturado da seguinte maneira: agentes x leigos e agentes x
agentes.

A instituição religiosa é, portanto, a uma organização humana composta por


agentes produtores e consumidores de capital simbólico religioso, participantes de um
campo religioso que abarca conflitos de poder. Há uma elite pensante na instituição
religiosa, eleita arbitrária, autoritária ou consensualmente, que, por sua vez, detém o
poder sobre o capital simbólico religioso e é capaz de legitimar e de qualificar, bem
como de deslegitimar ou desqualificar determinados agentes produtores de capital
simbólico, bem como o próprio capital simbólico por eles produzido, a fim de manter
o controle do campo. Nessas religiões bem estruturadas, a institucionalização
separou o especialista (teólogo, sacerdote) do não-especialista (leigo) e fez dos
primeiros os ‘produtores’ de bens religiosos (discurso e prática) e fez dos segundos
os ‘consumidores’ desses mesmos bens, tanto que são estes últimos aqueles que
concedem sustento material aos primeiros (através do pagamento de contribuição,

10 OLIVEIRA, 2003, p. 185.


11 OLIVEIRA, 2003, p. 186.

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dízimo ou outro). O segredo de tudo está em fazer os leigos acreditarem que aquilo
que os especialistas afirmam é suficiente para suprir a necessidade de sentido para
sua condição existencial. Há um reconhecimento social de que os especialistas são os
aptos a produzir, a reproduzir e a distribuir esses bens e é nesse sentido que eles
ganharão legitimidade para combater o pensamento divergente daquele que eles
difundem. O pensamento oficial se reveste de autoridade e adquire solidez em
dogmas e doutrinas e é aquele que mais perdura nos registros históricos, visto que
são escritos pelos próprios especialistas.

Há de se lembrar ainda a hipótese de Pierre Bourdieu de que existem


ocasiões, por um lado, em que a própria instituição religiosa percebe a produção
religiosa de autoconsumo, apropria-se de alguns de seus elementos (que estão na
‘moda’) reapresentando-os com uma nova roupagem e como se fossem seus, a fim de
conquistar mais adeptos no disputadíssimo mercado religioso. Nas palavras de
Pedro A. R. Oliveira, “[...] os especialistas estão constantemente operando a
expropriação do trabalho religioso ‘popular’, para devolvê-lo irreconhecível como
um bem simbólico apto a atender sua demanda de sentido”12. A canonização do Frei
Galvão e o reconhecimento oficial de milagres atribuídos a santos são exemplos
disso. Por outro lado, também existe a disputa entre os diferentes agentes religiosos
pela atenção do leigo. A idéia, igualmente, é de que os agentes religiosos ‘vendem’
seus produtos (o discurso teológico, a prática litúrgica, o atendimento espiritual) aos
‘consumidores’ de bens religiosos, que são os leigos. No entanto, para ‘vendê-lo’, eles
precisam garantir que seu produto seja realmente bom e iniciam uma ‘campanha’ ao
bom estilo ‘diga não à pirataria’. Em outras palavras, para convencê-los de que seu
produto é de qualidade, os agentes religiosos combatem as produções de
autoconsumo, ou seja, combatem aquilo que o crente não-especializado experimenta
em sua vivência particular e constrói como uma visão particular de fé. Há aí
mascarado, portanto, um jogo estratégico muito sutil: ao passo que, por um lado, a

12 OLIVEIRA, 2003, p. 191.

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produção religiosa de autoconsumo (além, é claro, de produções de agentes


concorrentes) é combatida, ela é, ao mesmo tempo, por outro lado, apropriada,
manipulada e ‘re-vendida’, ao bom estilo da ‘espionagem industrial’.

Não é necessário varrer a história de trás para frente para buscar evidências
dessa novela teológica permeada por intrigas, articulações melindrosas e, sobretudo,
disputas de poder. O que foi o embate entre Ário e Atanásio e seus respectivos
aliados em torno do termo ousia na confissão de fé da igreja cristã senão uma disputa
de poder? E o que dizer das intervenções do imperador Constantino ou, alguns
séculos mais adiante, do romance trágico entre Heloísa e Abelardo? E como enxergar
a tensão entre as divergências entre Martim Lutero e a igreja de seu tempo, as quais
resultaram na ex-comunhão do monge? Ou ainda, muito antes disso, o que foi a
morte de João Batista e de Jesus de Nazaré senão uma tentativa de silenciar qualquer
questionamento às autoridades religiosas de seu tempo? Disputas políticas por poder
e por controle permeiam a história da igreja cristã (e assim, muito provavelmente, de
outras instituições religiosas em suas peculiaridades) e da própria teologia. Não há
como ignorar ou negar isso. Fazê-lo é se sujeitar a um tipo mascarado de dominação
e não perceber que a visão de um todo maior está atrofiada. Uma visão
fundamentalista acaba por enrijecer qualquer diálogo na perspectiva de uma
interculturalidade, i.e., de uma conversa que reconhece, “[...] em posição de
igualdade e de alteridade, a pluralidade de culturas no mundo e sua relação de
diálogo e de enriquecimento mútuo”13. Enfim, essas disputas perpassam toda a
história e atingem a vida presente. E é por causa disso que se torna imprescindível
lançar um olhar para aqueles pensadores que, dentro do campo religioso, são capazes
de identificar essas disputas e de vislumbrar outras perspectivas.

13 PERESSON, Mario L. Pedagogias e Culturas. In: SCARLATELLI, Cleide C. da Silva; STRECK,


Danilo R.; FOLLMANN, José Ivo (Orgs.). Religião, cultura e educação. São Leopoldo: Unisinos, 2006,
p. 88.

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Rubem Alves e o Protestantismo

Rubem Alves é um dos grandes nomes brasileiros da atualidade. Cronista


renomado e membro da Academia Campinense de Letras, ele é conhecido também
por seus textos na área da educação, onde ele aponta novas perspectivas para o
ensino no Brasil, caracterizado, sobretudo, pela ênfase no lúdico e no poético, no ato
de contar estórias e no fim dos vestibulares. O que, às vezes, passa despercebido é
sua caminhada como teólogo e pastor protestante na segunda metade do século
passado, ofício que ele abandonou na década de 1970, mas que influenciou
profundamente seu pensamento e que, portanto, é fundamental ser considerado e
investigado, para que se possa compreendê-lo. Na verdade, Rubem Alves também é
um dos grandes nomes da reflexão teológica no Brasil. Ele foi um dos precursores da
conhecida Teologia da Libertação na América Latina, um dos pioneiros no diálogo
interdisciplinar e na ênfase do corpo como um dos pontos fundamentais para o fazer
teológico (atualmente, bastante em voga entre as teólogas feministas) e, pode-se
assim afirmar, um dos primeiros a elaborar uma teologia autêntica e própria do contexto
brasileiro. O pensamento teológico de Rubem Alves foi inovador em sua época e
continua repercutindo no campo religioso, embora não se encontre mais limitado a
ele, e provocando as mais diversas reações nele. E, mesmo que não seja atualmente
muito lido nas academias de teologia, é bem provável que, num futuro não muito
distante, ele seja um dos referenciais imprescindíveis para a reflexão teológica no
Brasil.

Um dos pontos interessantes na trajetória biográfica e teológica de Rubem


Alves é que ele iniciou sua caminhada religiosa e teológica como um piedoso
fundamentalista, i.e., alguém simultaneamente preocupado com as questões da
verdade e da inerrância dos textos bíblicos e das interpretações feitas destes e com a
intensidade das emoções da experiência religiosa, mesmo que tal junção pareça

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estranhamente contraditória, como ele mesmo reconheceu14. O refúgio na religião


cristã de tradição protestante de sua família deveu-se à perda de seus referenciais
emocionais (a proximidade familiar que o acompanhava enquanto morava no
interior das Minas Gerais, o círculo de amizade) ao se instalar na grande cidade do
Rio de Janeiro na metade da década de 1940, o que conduziu Rubem Alves ao estudo
da teologia na década seguinte15. Tudo corria bem no seminário, até que Rubem
Alves entrou em contato com as idéias revolucionárias de Richard Shaull. Este
afirmava que o sagrado é selvagem e indomável e não habita em jardins seguros e
protegidos (reflexo da linha dicotômica daquele tipo de protestantismo) mas cavalga
o vento. O sagrado não pode ser identificado pela estabilidade das coisas, mas pela
instabilidade delas. As marcas de Deus se encontram justamente lá onde a vida é
vivida, os problemas afligem as pessoas e evocam sua presença. Esse é o sentido da
encarnação16. No entanto, o resultado dessas idéias foi trágico. Mesmo que havia um
fervor teológico contextualizado numa turma de estudantes de teologia e entre
grupos de juventude nas comunidades, esse fervor teológico foi abatido pelo poder
institucional conservador da cúpula eclesial: Richard Shaull teve suas iniciativas
podadas e aqueles que representavam qualquer perigo para a unidade institucional
(que se alicerçava em torno da reta doutrina) sofreram penalizações, sendo, inclusive,
denunciados à Ditadura Militar. Essa tragédia, se é assim que pode ser chamada,
resultante do impasse entre o interesse da cúpula da instituição e os anseios e as
necessidades das pessoas em seu dia-a-dia é retratado por Rubem Alves da seguinte
maneira:

Em nossas mentes a reforma da Igreja e a redenção do mundo eram


uma tarefa única. Deixamos o seminário na certeza de que levaríamos
este programa a cabo. A nossa visão – não era ela inebriantemente
bela? Quem poderia evitar apaixonar-se por ela?

14 ALVES, Rubem. O Deus do furacão. In: ALVES, Rubem (Org.). De dentro do Furacão: Richard Shaull
e os primórdios da Teologia da Libertação. São Paulo: Sagarana/CEDI/CLAI/Programa
Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião, 1985, p. 21.
15 ALVES, Rubem. O Enigma da Religião. 5. ed. Campinas: Papirus, 2006, p. 10ss.
16 ALVES, 1985, p. 22.

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A realidade, entretanto, ria-se de nossas aspirações ingênuas. Não


estávamos preparados para os fatos da vida institucional. A nova
leitura do Evangelho soou nos ouvidos dos líderes eclesiásticos como
uma apostasia da fé. A sua experiência tinha sido diferente. Eles não
podiam, portanto, entender e amar aquilo que era tão simples e
amável para nós. Acusados como hereges, marcados como pessoas
com idéias políticas perigosas, rejeitados como apóstatas
(cometêramos o pecado de aceitar os católicos como nossos irmãos!),
fomos forçados ao exílio. “Ame-a ou deixe-a, mas não tente
transformar a Igreja”.
Duas coisas se tornaram claras.
A Igreja institucional não era a Igreja que amávamos. [...]
A nossa segunda conclusão decorreu da primeira. Os patrocinadores
de Deus, os que pretendiam deter o monopólio do divino, usavam
este nome num estilo que se assemelhava muito ao da Inquisição.
Deus se tornou uma arma ideológica para a preservação do poder,
para justificar as coisas, tais como elas eram, para executar os
dissidentes.17

É impossível traduzir todos os detalhes da situação complicada que pairou


sobre Rubem Alves, seus sonhos e esperanças em relação à vida e à instituição que
aprendera a amar desde pequeno18. A perseguição o conduziu à realização de um
doutorado nos Estados Unidos e sua frustração o levou a refletir profundamente as
disputas políticas que acontecem dentro do campo religioso. Mesmo que suas
reflexões estejam voltadas especialmente ao tipo de protestantismo do qual fazia
parte, elas podem ser incorporadas à discussão acerca da religião como um todo.
Religião e Repressão (anteriormente nomeado de Protestantismo e Repressão) e
Dogmatismo & Tolerância são duas obras que trazem essa discussão, embora seja
possível encontrá-la também em outros ensaios. Na primeira, Rubem Alves denuncia
a transformação do protestantismo presbiteriano instalado no Brasil em uma
ideologia repressora, que contraria o princípio de liberdade sobre o qual se fundou,
em decorrência de uma obsessão pela verdade. Além disso, ele aponta a supressão

17 ALVES, 2006, p. 14-16.


18 Um panorama um pouco mais aprofundado acerca disso pode ser lido em REBLIN, Iuri Andréas.
Teologia: outros cheiros, outros sabores...: a teologia na perspectiva crítica e poética de Rubem Alves:
caminhos para uma teologia do cotidiano. Dissertação de Mestrado em Teologia – Programa de
Pós-Graduação em Teologia, Faculdades EST, São Leopoldo, 2007, 147f. Inédito! (Disponibilizado
na Biblioteca da Faculdades EST).

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da ética social e a insensibilidade para os problemas da vida. Na segunda, Rubem


Alves procura provocar um diálogo entre protestantismo e catolicismo, ressaltando o
abandono das possibilidades utópicas do protestantismo (inspirado em Mannheim).
Após uma incursão histórica escrita ‘à flor da pele’, o livro apresenta como a
manutenção eclesiástica em torno da verdade prejudicou qualquer tolerância em
relação a divergências teológicas dentro da instituição. Não cabe aqui fazer um
apanhado detalhado de cada obra, mas apenas ressaltar alguns fatores que
interessam particularmente ao propósito deste texto.

Para Rubem Alves, duas coisas precisam ser consideradas quando se pensa
no campo religioso. Em primeiro lugar, a teologia não pode jamais se pretender como
ciência do divino e como tal julgar-se apta a descrever a fisiologia, a anatomia, ou
ainda a psicologia de Deus. A teologia enquanto ciência é uma ciência humana que
interpreta horizontes e símbolos religiosos nos quais as pessoas se agarram. No
entanto, antes disso, e, sobretudo, a teologia é sapiência, i.e., ela é um saber
vinculado intimamente à arte de viver e de amar, envolto em uma aura de grande
valor emocional e existencial. É uma atividade natural de todo ser humano cuja
busca é de encontrar-se no mundo e fazer dele seu lar. Em segundo lugar, a pergunta
em relação à religião (referindo-se a instituição religiosa, a igreja cristã enquanto
instituição) nunca é ‘o que é a religião’, mas ‘quem é a religião’; nunca ‘o que diz a
religião’, mas ‘quem diz a religião’. A religião pode ser compreendida de diversas
formas e ela sempre tem a ver com aquilo que se enxerga da realidade, mas nunca é a
totalidade da realidade que é enxergada e, por isso, torna-se perigoso para a religião
institucionalizada e para a teologia reivindicar para si a ‘questão da verdade’.

E o jogo da teologia?
Parece não existir coisa alguma mais desejável e saborosa que buscar
e encontrar a verdade: contemplar as coisas tais como elas são, dizê-
las num dizer transparente e preciso, que oferece aos olhos da razão a
visão da realidade, sem sombras e sem enganos...
E não se pode negar que assim seja, bastando para isso que se aceite
que a realidade já está pronta, dada, fixada, simplesmente à espera do

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olhar deslumbrado do homem que a vê pela primeira vez. Se a


realidade está pronta e acabada, dizer a sua verdade é apenas des-
velar, des-cobrir: acender a luz.
E a teologia tomou para si este ideal. Falam os filósofos sobre coisas
que estão ao alcance da razão humana. Fala a teologia sobre as coisas
que estão mais além. Ciência: conhecimento daquilo que está deste
lado. Teologia: conhecimento das coisas que estão além do horizonte.
Em ambos os casos o que está em jogo é aquele discurso adequado às
coisas.
E foi assim que o pensar correto, orto/doxia, se impôs como objetivo
final do nosso jogo de contas de vidro. E dogmas foram divinizados,
doutrinas foram cristalizadas, confissões foram recitadas, catecismos
foram repetidos – todos como expressões da verdade... E a ela muitas
fogueiras se acenderam e muito ódio escorreu das bocas. Nem sei
direito por quê. Parece que os jogadores/teólogos tiveram a curiosa e
inexplicável idéia de que o destino do corpo se dependurava em sua
capacidade para dizer a verdade e não na graça de Deus [...]19

Segundo Rubem Alves, a adesão ao método científico de construção de


conhecimento pela teologia significou a cristalização de determinadas verdades
como parâmetros em torno dos quais as crenças poderiam ser construídas e a religião
poderia ser organizada. Formou-se a instituição. E para ela não interessava mais as
peculiaridades da fé e da experiência religiosa individuais e seu acontecimento na
vida cotidiana, mas interessava a verdade absoluta sobre Deus e o que ele tem a dizer
sobre o indivíduo e sobre como este pode alcançar a salvação ou ser agraciado. Nesse
sentido, a teologia construiu dogmas e cristalizou algumas ‘verdades’, os quais
possuíam o poder de regulamentar a vida das pessoas, enquanto comunidade de fé.
As pessoas deveriam se subjugar a uma mesma experiência e a uma mesma
interpretação padronizada. Assim, surgem discussões ferrenhas sobre a virgindade
de Maria e sobre sua assunção, sobre as duas naturezas de Cristo, sobre a origem e a
natureza do pecado, sobre métodos de penitência e de absolvição da culpa.

Essas discussões sempre terminam numa disputa de poder cujo vencedor é o


dono do aval final sobre o embate. Em outras palavras, “[...] o discurso teológico é

19 ALVES, Rubem. Variações sobre a vida e a morte ou o feitiço erótico-herético da teologia. São Paulo:
Loyola, 2005, p. 75.

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sempre discurso de alguém – indivíduo ou instituição. Por trás de todo discurso


sobre Deus há um sujeito que se esconde”20. O que define se esse discurso teológico é
legítimo ou não (ortodoxo ou não) é uma disputa política, que acontece dentro da
instituição religiosa e que é decidida por quem tiver o poder da última palavra21. Isso
significa que a instituição religiosa é aquela que, em última instância, define (e
possui) as características de uma verdadeira teologia, de uma verdadeira experiência
religiosa, e que conhece a verdadeira divindade.

Para Rubem Alves, a teologia se encontra presa num círculo vicioso, do qual
ela não consegue escapar. A instituição religiosa legitima a forma como a teologia
deve se comportar e agir. Não há contestação, pois a instituição religiosa se encontra
ao lado (e a serviço) da verdade sobre Deus. E o que é ter a verdade sobre Deus? É ter
um pensamento que se cristalizou na instituição religiosa e serve de modelo de
crença. E aquilo que for contrário a esse modelo de crença gera um conflito e uma
resposta repressora. Isso significa que qualquer pensamento divergente é excluído e
precisa ser reprimido. Se ele se manifesta fora da instituição religiosa, ele é
desprezado, pois, fora da instituição religiosa (e aí se pode incluir hoje a academia de
teologia) não há legitimidade para se falar de Deus. Embora seja possível para quem
está fora da instituição religiosa falar de Deus, ele há de se sujeitar às correções do
especialista (teólogo, sacerdote...) pois é este, em última instância, que detém a
verdade sobre Deus.

Outrora, se o pensamento divergente fosse manifestado dentro da instituição


religiosa, era necessário que fosse estabelecida a inquisição e que hereges fossem
excomungados. É claro que, nos dias atuais, é comum que divergências gerem novas
religiões ou correntes teológicas distintas dentro de uma mesma religião
institucionalizada ou ainda o desligamento total dessa religião institucionalizada. Em
todo o caso, compreende-se por heresia o que se distingue do pensamento oficial da

20 ALVES, 2004, p. 45.


21 ALVES, 2004, p. 45.

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instituição religiosa. Nesse sentido, Rubem Alves ressalta que a “heresia não é algo
que se situa no plano da verdade, como oposição a ela. A heresia se situa no plano do
poder. Ortodoxos são os fortes [...]. Por isso eles se definem como portadores da
verdade e aos seus adversários como portadores da mentira”22. Ortodoxos são
aqueles que acreditam trilhar o “caminho correto” da teologia, por conhecerem a sua
“doutrina correta”. Os ortodoxos são os chefes da instituição religiosa. São aqueles
que legitimam o próprio “caminho correto” da teologia e buscam desesperadamente
pela verdade sobre Deus, que não está na realidade presente, mas na realidade que
está além do presente.

Considerações Finais

Ao término desta pequena caminhada acompanhada pelos pensamentos de


Pierre Bourdieu e de Rubem Alves pelo campo religioso, resta, talvez, ainda uma
pergunta a ser posta em discussão, sem a pretensão impreterível de uma resposta
imediata. É possível localizar a posição de Rubem Alves dentro do campo religioso?
Uma primeira consideração diante dessa pergunta é que ela não será satisfeita com
uma resposta simplória, pois o próprio Rubem Alves já esclareceu em outros
momentos que ele não se preocuparia mais com as querelas do campo religioso.
Mesmo assim, Rubem Alves graduou-se e pós-graduou-se em teologia. Foi pastor
protestante pela Igreja Presbiteriana no Brasil. Sua demissão significaria
obrigatoriamente a sua exclusão do campo religioso? Decidir-se por não mais
escrever para teólogos ou acadêmicos em geral significaria exclusão automática do
campo? Estas perguntas são necessárias de serem formuladas e de serem
acrescentadas a essa discussão. Elas evocam, na verdade, algo implícito na noção de
campo e nas relações entre os diferentes agentes que constituem o campo, tal como proposto
por Pierre Bourdieu: a questão da legitimidade e(ou) do reconhecimento que outros

22 ALVES, 2004, p. 56.

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 29


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agentes e instituições participantes do campo religioso atribuem ao pensador


mineiro.

Talvez não seja sensato ou prudente simplesmente ignorar a contribuição de


Rubem Alves à teologia brasileira. Se, dentro da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB)
ele foi acusado de subversivo e herege, isso não pode ser atribuído ao todo do campo
religioso brasileiro, visto que a IPB é apenas uma das instituições que integram o
respectivo campo. O fato é que Rubem Alves ‘brigou feio’ com a instituição que
comandava o campo religioso do qual ele especificamente participava e, mais ainda,
Rubem Alves brigou também com a esquerda teológica, i.e., com os Teólogos da
Libertação, afirmando que os ideais marxistas que eles seguiam destoavam dos
ideais marxistas propostos pelo próprio Marx, o que o deixa numa situação de
antagonismo e de tensão constante em relação aos outros agentes do campo religioso.
E os teólogos da libertação o acusavam de não pertencer ao grupo23. Além disso, ao
procurar uma compreensão (ou definição) de teologia que correspondesse aos seus
anseios e às suas angústias, Rubem Alves se aproximou significativamente daquilo
que Pierre Bourdieu chamou de ‘produções de autoconsumo’, o que põe em xeque
(pelo menos, à primeira vista e, sobretudo, aos olhos de quem não o conhece bem) a
posição do teólogo. Mais ainda, Rubem Alves forneceu uma certa legitimidade às
produções de autoconsumo diante do imperialismo da produção religiosa da elite da
instituição religiosa, ao definir a teologia como uma atividade inerente a todo ser
humano. O que, numa análise prematura, pode levar ao caos, se for levado a sério.

O fato é que o pensamento teológico de Rubem Alves (bem como o próprio


Rubem Alves, muitas vezes) sofre por causa da incompreensão. O que ele faz, na
verdade, é denunciar o poder e o saber que é utilizado especialmente no campo
religioso sobre outras pessoas, afogando e apagando outros saberes e outras
experiências de Deus. Isso não significa um imperativo pela inexistência do teólogo

23 ALVES, Rubem. Sei que a vida vale a pena... Tempo e Presença. Rio de Janeiro, n. 224, out., 1987, p.
26-27.

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acadêmico, mas sim uma mudança de perspectiva em relação à função do teólogo.


Para Rubem Alves, o teólogo precisa estar próximo das pessoas e de sua realidade
cotidiana. Ele não deve ser um colecionador de ortodoxias, mas um contador de
estórias. Ele não é um galo apto a acordar o sol, mas habilitado a despertar as pessoas
para a vida. E esse despertar não acontece por meio da aniquilação da sabedoria
religiosa popular, mas sim por meio do diálogo com esta. O teólogo é um pastor de
palavras e de esperanças. Ele brinca com os símbolos religiosos, com os sonhos, as
utopias. O teólogo reúne todos esses elementos, mesmo aqueles transformados em
cacos diante do sofrimento e abandonados ao longo do caminho pelas pessoas em
sua vida cotidiana, transforma-os num mosaico e o presenteia de volta às pessoas.
Trata-se de uma questão de perspectiva. E nessa perspectiva o teólogo se torna um
feiticeiro: fala e pelo puro poder da palavra, o dito acontece24. É a exemplo do profeta
Ezequiel (Ez 37.1-14) que Rubem Alves tece sua visão de teologia: “Gostaria que a
teologia fosse isto: as palavras que tornam visíveis os sonhos e que, quando ditas,
transformam o vale de ossos secos numa multidão de crianças”25.

Enfim, a intenção profunda de Rubem Alves é romper os limites do campo


religioso e fazer com que seu conteúdo atinja outras esferas da vida humana. Se
atualmente sua obra não é lida com freqüência nas academias de teologia, o mesmo
não se pode afirmar fora dela. O pensamento teológico de Rubem Alves, diluído
saborosamente em crônicas cotidianas, alcança um grande público e vêm se
tornando, inclusive, um forte concorrente dos modismos das publicações de auto-
ajuda. E, quem sabe, conforme já afirmado anteriormente, nada impede que, num
futuro não muito distante, teólogos e teólogas brasileiras vejam o teólogo mineiro sob
outro aspecto (o aspecto que ele gostaria de ser observado) e venha a se tornar um
referencial imprescindível para a reflexão teológica brasileira. Mas isso já será uma
outra história, ou melhor, uma outra estória, longe das novelas teológicas.

24 ALVES, Rubem. Se eu pudesse viver minha vida novamente... 8. ed. Campinas: Verus, 2004, p. 23.
25 ALVES, Rubem. Lições de Feitiçaria. São Paulo: Loyola, 2000, p. 20.

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A sociologia da religião de Max Weber interpretada por Pierre


Bourdieu: breves apontamentos

Por Alessandro Bartz*

Resumo:
Este artigo tem o propósito de apresentar a sociologia da religião de Max Weber a partir da
interpretação bourdiana da teoria da religião. Delineia-se através da sistematização de Pierre
Bourdieu, levando-se em conta a teoria sociológica weberiana da religião, observando-se o
recorte e a operacionalização do autor.

Palavras-chave:
Sociologia da religião - Max Weber - Pierre Bourdieu

“A ação religiosa ou magicamente motivada, em sua existência


primordial, está orientada para este mundo. As ações religiosa ou
magicamente exigidas devem ser realizadas ‘para que vás muito bem
e vivas muitos e muitos anos sobre a face da Terra’”.
(Max Weber).

Este artigo se propõe a apresentar a teoria da religião de Max Weber1 que se


encontra no apêndice I da “Economia das trocas simbólicas”2 de Pierre Bourdieu. A
teoria religiosa weberiana, revisada por Bourdieu, é uma análise sociológica do sistema

* Alessandro Bartz é teólogo, mestrando em Teologia no Programa de Pós-Graduação da Faculdades


EST, e direciona sua pesquisa à área de Teologia Prática, com auxílio do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.
1 O tema da religião, Weber aborda na Sociologia da religião (Die protestantische Ethik und der Geist des
Kapitalismus; Wirtschaft und Gesellschaft, cap.V; Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie – v. I, II e
III).
2 BOURDIEU, Pierre. Uma interpretação da teoria da religião de Max Weber. In Bourdieu, Pierre. A
economia das trocas simbólicas (org. Sérgio Miceli). 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 79-98.

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religioso3. Por isso, no campo religioso “teológico”, possivelmente, os agentes


religiosos, assim como os consumidores de religião (leigos), para usar a linguagem
sociológica, terão dificuldades em aceitar esse “tipo” de argumentação, sobretudo a
teoria do interesse religioso e dos papéis circunscritos aos protagonistas da ação
religiosa. Vale salientar, antes de tudo, que a linguagem é sociológica e não teológica,
quer dizer, ela parte do sentido da ação e não da revelação.

Ainda a fim de introdução, deve ser frisado que a presença da sociologia da


religião de Max Weber não aparece unicamente no primeiro apêndice da “Economia
das trocas simbólicas”, mas em toda a pesquisa de Pierre Bourdieu sobre a sociologia
da religião, como, por exemplo, na definição do campo religioso4 e na construção
sociológica do habitus5.

1. Ao apresentar a sociologia da religião de Max Weber, Pierre Bourdieu


argumenta que, em toda a sua vida, Weber se esforçou para provar a eficácia
histórica das crenças religiosas (“relação entre as intenções dos agentes e o sentido
histórico de suas ações”), contrariando o reducionismo da teoria marxista. Porém,
chegou a ser simplista ao exaltar por demais a força dos agentes religiosos na
composição da história6. Nesse sentido, o próprio Bourdieu, em tom de ironia,
levanta que tanto Marx como Weber, diante de suas teorias concorrentes e

3 Cf.: WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. v. 1, 4. ed.


Brasília: UnB : São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999, p. 279-418.
4 “O campo é compreendido por Bourdieu como o espaço social das relações de força mais ou menos
desiguais, em que os protagonistas, agentes dotados de um domínio prático do sistema, de
esquemas de ação e de interpretação, se situam com posições bem demarcadas, levando consigo,
em todo tempo e lugar, sua posição, presente e passada, na estrutura social sob a forma de habitus”.
Cf. LIMA, Fábio. Candomblé: na encruzilhada da tradição e da modernidade. In. <www.ipp-
uerj.net/olped/documentos/1273.pdf>. Acesso em 10.12.2007.
5 Para Pierre Bourdieu, o conceito de habitus é entendido como um “conjunto das disposições
inconscientes que estariam presentes em diferentes sujeitos, levando-se em conta - o que é decisivo
- que tais disposições seriam o resultado da interiorização de complexas estruturas objetivas
presentes numa sociedade” (BOURDIEU, 1992, p. 201).
6 BOURDIEU, 1992, p. 79.

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complementares, se esquecem do trabalho religioso7 que é realizado por agentes


especializados, porta-vozes institucionais poderosos, que respondem com um tipo de
prática e discurso a um tipo de necessidade e a um grupo determinado8.

Pierre Bourdieu, ao apontar para o limite de uma interpretação, salienta que,


para levar até o final a teoria weberiana sobre a religião, torna-se preciso fazer o
“levantamento das dificuldades com que Weber se defronta em sua tentativa de
definir os ‘protagonistas’ da ação religiosa: profeta, feiticeiro e sacerdote”9. Nesse
sentido, Bourdieu aponta que, em Weber, as definições e os limites de cada
protagonista religioso ficam comprometidos pelas definições universalistas de
Weber, que, para fins metodológicos, usa do “tipo-ideal”.

Dessa forma, parece que “os instrumentos de pensamento de que dispunha


Max Weber dificultavam a tomada de consciência completa e sistemática dos
princípios que adotava (ao menos de modo intermitente) em sua investigação e que,
por isso, não podiam tornar-se o objeto de uma ordenação metódica e sistemática”10.
Assim, Bourdieu menciona que, para que haja uma primeira ruptura com a
metodologia de Max Weber em sua análise dos protagonistas religiosos, busca-se
uma representação teórica “interacionalista das relações entre os agentes religiosos”,
no sentido de uma “teoria da interação simbólica”11, extraído das entrelinhas do texto
weberiano.

Uma segunda ruptura, na tentativa de eliminação das dificuldades de Max


Weber, seria

7 O sociólogo Pedro de Oliveira afirma que no conceito de trabalho religioso reside a maior
contribuição à sociologia da religião por Pierre Bourdieu. Para ele, “há trabalho religioso quando
seres humanos produzem e objetivam práticas ou discursos revestidos de sagrado, e assim
atendem a uma necessidade de expressão de um grupo ou classe social”. Oliveira, Pedro A. Ribeiro
de. A teoria do trabalho religioso em Pierre Bourdieu. In: TEIXEIRA, Faustino. Sociologia da religião.
Petrópolis: Vozes, 2003, p. 182.
8 BOURDIEU, 1992, p. 79.
9 BOURDIEU, 1992, p. 80.
10 BOURDIEU, 1992, p. 81.
11 BOURDIEU, 1992, p. 81.

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subordinar a análise da lógica das interações que podem se estabelecer


entre agentes diretamente defrontados e, particularmente, as
estratégias que os opõem, à construção da estrutura das relações
objetivas entre as posições que ocupam no campo religioso, estrutura
que determina a forma que podem tomar suas interações e a
representação que delas possam ter.12

Nesse sentido, Bourdieu levanta que a metodologia weberiana não leva em


conta o interesse em jogo, tanto em relação ao serviço dos leigos, quanto a “serviço
dos diferentes agentes religiosos”13. Isso porque o interesse no campo religioso leva a
satisfação de um tipo específico de interesse. Nesse sentido, ocorre a crítica ao
método weberiano, porque, ao não apontar para o jogo dinâmico dentro do campo
religioso, quando a necessidade religiosa não é especificada, levando-se em conta os
diferentes grupos e classes, a definição da necessidade religiosa torna-se limitada.

2. Bourdieu aponta que interesses religiosos podem ser distintos14. Por


exemplo, os interesses mágicos são parciais e imediatos, distinguindo-se dos
interesses religiosos. Quando mais dependente da natureza, e ocupando um lugar
inferior na hierarquia social, a tendência é uma religião de interesses mágicos15. Nas
tradições mais campesinas, a religiosidade comumente se orienta ao ritualismo
metereológico, sendo que a religiosidade ética se reduz a uma moral tipo do ut des
(toma lá dá cá). Já nas zonas mais urbanizadas, de economia burguesa, o interesse
religioso é mais contínuo e racional, o que gera outro tipo de moral e de relação
religiosa.

O sociólogo ainda defende que o processo de moralização e de


sistematização que conduz da magia à religião depende não só de interesses dos dois
protagonistas (sacerdote, profeta), mas também das transformações da condição

12 BOURDIEU, 1992, p. 81-2.


13 BOURDIEU, 1992, p. 82.
14 Cf. esquema p. 83.
15 BOURDIEU, 1992, p. 84.

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econômica e social dos leigos16. Para Bourdieu, pode-se falar de interesses religiosos
quando surge uma demanda ideológica, isto é, a

espera de uma mensagem sistemática capaz de dar um sentido


unitário à vida, propondo a seus destinatários privilegiados uma
visão coerente ao mundo e da existência sistemática, e dando-lhes os
meios de realizar a integração sistemática de sua conduta cotidiana.
Portanto, capaz de lhes fornecer justificativas de existir tal como
existem, isto é, em uma determinada posição social.17

Nesse sentido, e aqui para a análise sociológica é importante, a função social


da religião não é unicamente livrar os leigos da angústia existencial, mas, sobretudo,
a religião tem importância e função social, pois fornece “justificativas sociais de
existir enquanto ocupantes de uma determinada posição na estrutura social”18,
definição essa que está implícita nas análises religiosas weberianas19.

Assim, os sistemas de interesses religiosos são determinados pela situação


social. Isso implica que uma mensagem religiosa capaz e efetiva para um
determinado grupo, de ação simbólica, é aquela que pode fornecer um sistema de
justificativas de existência a determinada posição social20. Nessa linha de raciocínio,
Bourdieu pode afirmar que

as demandas religiosas tendem a organizar-se em torno de dois


grandes tipos que correspondem a dois grandes tipos de situações
sociais, ou seja, as demandas de legitimação da ordem estabelecida
próprias das classes privilegiadas, sentimento de dignidade prendido
a convicção da própria excelência e perfeição de conduta de vida, e as
demandas de compensação próprias das classes desfavorecidas (religiões
de salvação) [...] [que se funda na promessa de salvação do

16 BOURDIEU, 1992, p. 85.


17 BOURDIEU, 1992, p. 86.
18 BOURDIEU, 1992, p. 86.
19 Para a sociologia, conforme Oliveira, a religião é objeto de estudo somente quando desempenha
funções sociais. Ela existe em função de determinada realidade e situações econômicas especiais.
OLIVEIRA, 2003, p. 180.
20 BOURDIEU, 1992, p. 86.

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sofrimento] e no apelo da providência capaz de dar sentido ao que


são a partir do que virão a ser.21

3. Sobre a concorrência no campo religioso pelo poder, para Bourdieu, a


especificidade está no fato de que o alvo tem residência no

monopólio do exercício legítimo do poder de modificar em bases


duradouras e em profundidade a prática e a visão do mundo dos
leigos, impondo-lhes e inculcando-lhes um habitus religioso
particular, isto é, uma disposição duradoura, generalizada e
transferível de agir e de pensar conforme os princípios de uma visão
(quase) sistemática do mundo e da existência.22

Nesse ínterim, Bourdieu faz notar que, na luta pela concorrência religiosa, os
instrumentos e estratégias utilizadas dependem da autoridade religiosa, levando
ainda em conta a posição na divisão do trabalho23 e a posição na estrutura objetiva.

Na divisão e diferenciação do trabalho religioso, os fatores poderosos nessa


diferenciação são compostos pela oposição entre os produtores da religião, capazes
de criar uma visão sistemática do mundo, profetas, e a Igreja, “organizada com vistas
a exercer de modo duradouro a ação prolongada necessária para inculcar uma tal
visão e investidas da legitimidade propriamente religiosa, que constitui a condição
do exercício desta ação”24.

Acompanhando o pensamento weberiano, Bourdieu remete à diferenciação


entre o profeta e o corpo sacerdotal. Enquanto que o profeta baseia-se na ação
carismática exercida pela força da palavra profética, descontínua, extracodiana e
temporal, a ação do corpo sacerdotal é exercida pela força de “método religioso de

21 BOURDIEU, 1992, p. 87.


22 BOURDIEU, 1992, p. 88.
23 Quando os agentes religiosos, sob a lógica de economia de excedentes, podem viver só de bens
simbólicos, livres do trabalho material, ocorre a divisão social do trabalho religioso. Porém, essa
fase já é a conquista da luta pela habilitação da condução dos bens religiosos.
24 BOURDIEU, 1992, p. 89.

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tipo racional”, que tem sua força de ação contínua e cotidiana, auxiliado por um
aparelho administrativo potente e organizado burocraticamente25.

Nesse sentido, para que o profeta inculque uma conduta de vida de efeito
duradouro, é necessário que a profecia morra, no intuito de não mais ser uma
mensagem de ruptura à rotina e à ordem social, incorporado ao corpo sacerdotal
“moeda cotidiana do capital original de carisma”26. No fim, conforme Bourdieu, na
luta pelo exercício legítimo do poder religioso, o que vai prevalecer é a autoridade e a
força que se conquistou no transcorrer da luta.

4. Sobre a legitimidade religiosa, Bourdieu tece que ela é resultado direto das
lutas passadas pelo exercício legitimo da religião. O que ocorre de forma violenta e
depende das armas materiais ou simbólicas que os agentes pelo monopólio do
exercício religioso legítimo podem usar nas relações de peleja religiosa. O sociólogo
destaca que, enquanto a autoridade do profeta é estabelecida a cada instante,
dependendo da oferta e demanda de serviço religioso, o sacerdote “dispõe de uma
autoridade de função que o dispensa de conquistar e de confirmar continuamente
sua autoridade e o protege das conseqüências do fracasso de sua ação religiosa”27.

5. Para Bourdieu, o poder religioso é o produto de um negócio (transação)


entre agentes religiosos e leigos, onde o interesse de cada categoria deve ser
contemplado, sendo que o poder que os agentes religiosos detêm derivam do
princípio de estrutura das relações de força simbólica28. O poder do profeta está
baseado na força de um grupo que ele mobiliza e representa interesses dos leigos
ocupantes de determinada posição na estrutura social. Nesse sentido, o profeta, que é
portador de um carisma pessoal, uma qualidade extraordinária, tem uma força
organizadora e mobilizadora, porém, não há de se esquecer que o profeta, em

25 BOURDIEU, 1992, p. 89.


26 BOURDIEU, 1992, p. 90.
27 BOURDIEU, 1992, p. 90.
28 BOURDIEU, 1992, p. 92.

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comunicação com os leigos, geralmente aparece em períodos de crise, períodos de


transformação econômica, destruição e enfraquecimento de tradições e valores “que
forneciam os princípios da visão do mundo e da conduta na vida”29.

Nesse ponto, Bourdieu contesta a concepção de carisma weberiano como


propriedade individual e ligado à natureza. Para Bourdieu, o profeta acumula um
poder simbólico que representa algo já existente, uma inconformidade que, mesmo
implícita inconscientemente, é portadora de uma mensagem de um grupo e, por isso,
tem propriedade sobrenatural e sobre-humana. Ainda a sistematização realizada
pelo profeta que é produzida em transação direta com os leigos não é de coerência
lógica, mas prática:

a profecia legitima práticas e representações que têm em comum


apenas o fato de serem engendradas pelo mesmo habitus (próprio de
um grupo ou de uma classe) e que por esta razão, podem ser vividas
na experiência comum como se fossem descontínuas e incongruentes,
porque a própria profecia tem como principio gerador e unificador
um habitus objetivamente coincidente com o dos seus destinatários.30

Para resolver o conflito entre o corpo sacerdotal e o profeta, depende-se


também da força dos grupos anexados e mobilizados nas relações de força religiosas.
O resultado desse conflito, segundo Weber, pode ser o mais diverso, começando pela
supressão física do profeta e até mesmo pela anexação da profecia, passando, é claro,
pelas formas de concessões parciais31. As forças externas assumem pesos desiguais
na sistematização da mensagem religiosa original e dependem da conjuntura
histórica, entre elas, as demandas dos leigos, a concorrência entre o profeta e o
feiticeiro, tendências internas em torno da divisão do trabalho.

Quando o carisma é desvinculado do profeta, para se ligar à instituição,


ocorre a formação da Igreja, que, para Weber, é burocraticamente organizada com

29 BOURDIEU, 1992, p. 92-3.


30 BOURDIEU, 1992, p. 94.
31 BOURDIEU, 1992, p. 94.

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um corpo de profissionais (sacerdotes), depositária e administradora de um carisma


de função, que se opõe à seita “comunidade de pessoas qualificadas
carismaticamente de maneira estritamente pessoal”. A Igreja, para Weber, é hostil ao
carisma “pessoal”, isto é, “profético, místico ou extático, que pretende indicar um
caminho original em direção a Deus”. Na medida em que a Igreja burocratiza o
carisma, no sentido de “banalização (Veralltaeglichung) do carisma, a Igreja apresenta-
se como uma empresa cotidiana, organizada hierarquicamente, com regulamentos,
benefícios, ordem...”32

A prática sacerdotal e também a mensagem que ela impõe e inculca


devem sempre as suas características mais importantes às transações
incessantes entre a Igreja que, em sua condição de concessionária
permanente da graça (sacramentos), dispõe do poder de coerção
correlato à possibilidade de conceder ou de recusar os bens sagrados,
e as demandas dos leigos que pretende liderar religiosamente e dos
quais provém seu poder (temporal e espiritual).33

Para Weber, de acordo com Bourdieu, pelo esforço de regulamentação da


conduta de vida dos leigos, a Igreja vê-se obrigada a fazer consentimentos em sua
visão de mundo principalmente à fração dos leigos que a Igreja extrai rendimentos e
poder. Nesse sentido, com o monopólio dos bens de salvação, mais contraditória e
divergente, os interesses religiosos, a ação de prédica e de cura das almas, mais
ainda, a ação dos agentes religiosos, terão que se diversificar, criando uma
ambigüidade no sistema religioso, pelo fato de se buscar um “denominador religioso
entre as diferentes categorias de receptores”34.

Os intérpretes profissionais (sacerdotes) têm a função de reinterpretação da


mensagem religiosa original, contribuindo para o trabalho de adaptação e
assimilação e permitindo a comunicação entre a mensagem religiosa, destinatários
primordiais, e os novos receptores, portadores de interesses e visão de mundo

32 BOURDIEU, 1992, p. 96.


33 BOURDIEU, 1992, p. 96.
34 BOURDIEU, 1992, p. 97.

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 40


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diferenciados daqueles. Do mesmo modo, os sacerdotes, em defesa aos ataques


proféticos e à classe dos leigos intelectualizados, precisam delimitar a doutrina
religiosa, dotando-se de instrumentos simbólicos, homogêneos, mas também
coerentes e distintivos, criando elementos balizadores da prática religiosa.

Ainda a Igreja, no sentido de um corpo de sacerdotes qualificados para o


exercício do poder religioso, precisa munir-se de armas na concorrência com o
feiticeiro (mago), que é um

pequeno empresário independente, alugado em ocasiões oportunas


por particulares, exercendo seu ofício fora de qualquer instituição
comumente reconhecida e, amiúde, de maneira clandestina, contribui
para impor ao corpo sacerdotal a ‘ritualização’ da prática religiosa e a
anexação de crenças mágicas.35

A profecia de origem é submetida a uma sistematização e a uma banalização


(cotidianização) pelo corpo sacerdotal, o que respondem a uma economia de carisma,
no sentido de a prédica (mensagem) e a cura das almas serem entregues a
funcionários permutáveis, qualificados profissionalmente através de um
aprendizado homogêneo (criação de um habitus religioso), na procura de adaptação
aos interesses dos leigos, e na munização na luta contra os concorrentes.

Essa sistematização, que Bourdieu chama de “sistematização casuístico-


racional”, constitui a exigência fundamental para que funcione uma burocracia

da manipulação dos bens de salvação, no sentido de que permitem a


quaisquer agentes (isto é, permutáveis) o exercício de maneira
contínua da atividade sacerdotal, fornecendo-lhes os instrumentos
práticos – escritos canônicos, breviários, sermonários, catecismos etc.
– que lhes são indispensáveis para o cumprimento de sua função a
um menor custo em carisma (para eles mesmos) e a um risco menor
(para a instituição), sobretudo quando lhes é necessário ‘tomar

35 BOURDIEU, 1992, p. 97-8.

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posição em relação a problemas que não foram resolvidos pela


revelação’.36

Apontamentos críticos

A teoria religiosa weberiana, revisada por Bourdieu, é uma análise sociológica


do sistema religioso. Pierre Bourdieu, ao sistematizar mais ainda a sociologia da
religião de Max Weber, faz um recorte hermenêutico muito pessoal. O sociólogo
executa um recorte teórico e de conteúdo, faz suposições do que não foi escrito,
enfim, como tem o objetivo de revisitar a sociologia clássica, é perfeitamente aceitável
que focalize alguns elementos, mas não fique preso a eles, comparando-os com
outros autores e indo além deles, o que se observa no apêndice sobre a teoria da
religião de Max Weber supracitado.

Contudo, vale ser frisado que, ao escolher determinados conceitos e ao jogá-


los em seu método de interpretação, Pierre Bourdieu desfocaliza conceitos
importantes da teoria da religião de Weber e, dessa forma, pode fazer a crítica37. Isso
porque Bourdieu parte da teoria de Max Weber sobre a religião, procurando
apresentar a comunicação religiosa dentro de uma terminologia econômica, de
transação, o que chama muito a atenção do leitor, não acostumado a esse tipo de
linguagem no campo religioso.

Possivelmente, os agentes da religião, assim como os consumidores de


religião (leigos), para usar a linguagem sociológica, terão dificuldades em aceitar essa
argumentação, sobretudo a teoria do interesse religioso e dos papéis circunscritos aos
protagonistas da ação religiosa. Vale salientar, conforme já havíamos mencionado,
que a linguagem é sociológica e não teológica, quer dizer, ela parte do sentido da
ação e não da revelação.

36 BOURDIEU, 1992, p. 98.


37 Como não há espaço para aprofundamentos, unicamente se traz um exemplo: o conceito de
carisma. Observa-se nos apontamentos citados que o conceito weberiano é desqualificado, tirado
de seu ambiente criativo, tornando-se emblema durkheimiana.

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Ainda, mesmo que Bourdieu assinale e faça notar as limitações de Weber, ao


analisar a religião, fica evidente que o objeto de estudo de Pierre Bourdieu tem como
fundamento uma burocracia institucional muito rígida, européia, muito diferente do
que se viu na América Latina, sobretudo, nos anos 1960-70, quando os “sacerdotes”,
para falar de religião cristã, tomam um discurso profético. Aliás, essa foi a base
teológica que se utilizou no embate contra a instituição tradicional. Embora,
conforme foi visto em Max Weber, o protagonista religioso profético, com o tempo,
ou é eliminado da instituição, ou é agregado por ela. Pode-se observar que muitos
dos profetas da época hoje ocupam os lugares sacerdotais que criticavam.

Enfim, a linguagem sociológica da religião pode ser útil na tomada de


consciência daqueles que produzem e consomem religião, no sentido de
possibilidade de racionalização das metas no campo religioso. Ainda os
consumidores (leigos) podem observar como os profetas e os magos (curandeiros,
benzedeiras) ocupam o espaço religioso e seu destino na sanção sacerdotal, mas isso
é outra história.

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Bourdieu e o Culto Cristão: relatos de uma observação

Por Felipe Gustavo Koch Buttelli*

Resumo:
Este artigo é o resultado de uma observação, situada numa pesquisa mais ampla que procura
compreender o papel do culto cristão na constituição das diferenças sociais, dos papéis que
diferentes agentes desempenham no universo das relações sociais. A pesquisa é amplamente
respaldada pela análise bourdieusiana, a qual projeta sobre uma prática eclesial – a
celebração litúrgica comunitária – referencial crítico que visa possibilitar compreender o
culto como lugar de diferenciação social. Neste sentido, este artigo, ainda que
experimentalmente, trabalha com o cerne da investigação proposta nesta pesquisa mais
ampla. Após ser realizada aplicação de referencial teórico bourdieusiano em uma observação
de um culto ordinário, pode-se perceber que nada no culto está livre de prerrogativas
distintivas que (re)afirmam o lugar social dos determinados agentes. Esta reflexão crítica visa
representar acréscimo à prática eclesial, atentando para aqueles momentos em que ela não
exerce sua função primordial – a de acolher com amor pessoas em suas diferenças.

Palavras-Chave:
Culto Cristão - Liturgia - Performance - Bourdieu - Observação

1 Considerações preliminares:

Este trabalho de observação não tem a pretensão de ser uma análise objetiva
da realidade, mas um ensaio, uma experiência. Menciono isso pelo fato de que
algumas afirmações que me proponho a fazer têm um caráter bastante subjetivo,
podendo soar injustas ou até irreais para quem não concebe a realidade a partir dos
mesmos pressupostos que aqui serão lançados. No entanto, esse exercício de
observação de um culto da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)
tem por objetivo alçar vôo sobre outra forma de abordagem e de análise do tema:

* Teólogo protestante brasileiro, atualmente faz mestrado em teologia no Programa de Pós-


Graduação das Faculdades EST, em São Leopoldo/RS, com apoio do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Sua pesquisa aborda o tema da liturgia sob a
perspectiva de Gênero, Teologia e Antropologia/Sociologia.

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culto. Por isso, ainda que provisória e questionável, ela representa um acréscimo no
âmbito da investigação científica que se realiza na Escola Superior de Teologia (EST)
e na maneira de se conceber a vida cultual dentro da própria IECLB.

As afirmações que podem resultar de uma análise a partir do conceito de


poder e do seu respectivo exercício dentro do espaço ritual de um culto não devem
ser tomadas como juízo de valor de pessoas, mas como resultados de uma análise de
toda uma estrutura que se organiza em torno do culto. Essa estrutura, dentro da qual
personagens desempenham funções determinadas, não é nada mais do que um
retrato (ou uma micro-estrutura) de como a própria sociedade se organiza. Sendo
assim, a específica contribuição teológica que se visa obter não está em si na própria
análise, que faz uso de pressupostos da sociologia, mas na crítica que perpassa a
análise e vai para além dela, a saber, a pergunta pelo efetivo resultado do culto
cristão para aquelas pessoas que dele participam. Está cumprindo o culto a sua tarefa
de ser um espaço para a atualização (anamnese) da história da salvação do próprio
Cristo, gerando assim vida boa para a Igreja e para o mundo? Ou o culto é só mais
um espaço onde se perpetuam as relações de poder e de domínio existentes na
sociedade? É isso que se pretende averiguar a seguir.

2 Da Observação

Justifica-se inicialmente a opção pela observação de um culto da IECLB,


igreja da qual participa o observador. A dúvida que se estabelece subjacentemente é
da maneira de observação mais eficaz: a) aquela supostamente neutra, na qual o
observador não toma parte no grupo, nem no culto em si, procurando com esse
distanciamento resguardar certa objetividade frente ao engajamento político-social,
bem como aos efeitos do envolvimento psicológico e emocional que naturalmente
advêm do contato com um grupo humano; ou b) se a chamada observação participante1

1 Aqui o que se compreende por observação não tem respaldo bibliográfico sobre a pesquisa social.
Como observação participante compreende-se o olhar parcial e comprometido de alguém que
pertence ao grupo e que celebra culto conjuntamente.

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não é capaz de compreender mais profundamente as características internas de


determinado grupo, percebendo, assim, mais proficuamente os valores que são
cultivados nesse grupo e as posições das personagens envolvidas nele, bem como a
luta interna entre os subgrupos e as suas especificidades históricas. Para responder a
tal questionamento, faço uso das palavras de Pierre Bourdieu, o qual nos
acompanhará nessa observação sistematizada:

É com a condição de saber que se pertence ao campo religioso, com os


interesses aferentes, que se pode controlar os efeitos dessa inserção
no campo e retirar daí as experiências e informações necessárias para
produzir uma objetivação não redutora, capaz de superar a
alternativa do interior e do exterior, da vinculação cega e da lucidez
parcial.2

Portanto, ao se ver superado o paradigma da objetividade neutra, é possível


compreender alguns benefícios na análise engajada, contanto que o próprio
observador faça um esforço de auto-análise3, descobrindo-se dentro do campo como
um personagem que tem sua história dentro da história do próprio grupo. Esse
esforço visa desconstruir uma pretensão de objetividade neutra de alguém que não
pode manter-se neutro dentro do grupo. O grande benefício dessa análise engajada é
a partilha com os valores do grupo - não representando o acordo tácito com os
pressupostos dominantes do grupo – sabendo o que dentro do grupo tem
importância, com que valores se está corroborando e com quais se está rompendo.

3 O Culto

3.1 O espaço fora do templo

Logo ao lado da entrada do templo, no saguão interno da Igreja, havia uma


banca para a venda de livros – todos eles de caráter religioso, conforme a

2 BOURDIEU, Pierre. Coisas Ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 112.


3 BOURDIEU, 2004, p. 113.

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confessionalidade luterana. Nessa banca, trabalhavam voluntariamente três


mulheres.

Mais adiante, havia uma mesa com dois homens (um deles era o tesoureiro
da paróquia) sobre a qual havia um bilhete dizendo: “atualização dos membros”.
Eles tinham uma lista de nomes, dos membros da paróquia, e aceitavam o
pagamento das contribuições.

Bem à frente da porta do templo algumas senhoras (aparentemente com mais


de 60 anos) se reuniam e cumprimentavam umas às outras, ficando ali até o início do
culto. O pastor A4 conversava com estas senhoras e cumprimentava outras pessoas
que iam chegando. Sua esposa logo chegou também, cumprimentando as pessoas,
principalmente as mulheres que conversavam na frente da porta.

Havia mais dois agrupamentos. Um grupo de homens (cinco ou seis)


também aparentando mais de 60 anos. Um pouco mais retirada estava uma senhora
(também com cerca de 60 anos) que recebia abraços esporádicos de pessoas de todos
os outros grupos – a qual, eu suspeitava, era uma enlutada, o que depois veio a se
confirmar.

Algumas senhoras da Ordem Auxiliadora de Senhoras Evangélicas (OASE)


arrumavam a mesa do chá – enquanto outras na cozinha preparavam-no. Antes de o
sino soar, as pessoas foram lentamente entrando no templo.

3.2 No templo

Um senhor (vice-presidente da comunidade) era o recepcionista, dando às


pessoas que entravam um hinário Hinos do Povo de Deus I (HPD I) e a folha de culto,
com a ordem da liturgia. Muitas pessoas (aproximadamente 15% do total de

4 Aqui se fará referência aos dois pastores (homens) que oficiaram o culto como A e B.

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participantes) chegaram atrasadas, até 15 minutos depois do início pontual do culto,


às 10 horas (posteriormente, pude perceber que muitos dos que chegaram atrasados
eram parentes/conhecidos das duas famílias enlutadas).

A liturgia (liturgia de entrada) iniciou sendo ministrada pelo pastor B que


proferiu uma acolhida bastante inclusiva. Fez um convite irrestrito (inclusive a
pessoas de outras religiões) à ceia que se realizaria. O pastor B fez referência à
tradução simultânea para a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) que foi feita por
uma voluntária (membro da paróquia). Esse trabalho de tradução para LIBRAS é
efetuado no primeiro domingo de cada mês. O pastor B ainda fez menção e saudou
as famílias enlutadas. Após isso, convidou as crianças a participarem do culto infantil
e, enquanto as duas voluntárias que organizavam o culto infantil convidavam as
crianças, a comunidade cantou um hino (n. 117 do HPD I).

A liturgia seguiu com o Votum (invocação do Trino-Deus), leitura do lema da


semana (Mateus 11.28) e a leitura do salmo 16 em responsório com a comunidade
(sempre sentados). À leitura do salmo, seguiu o canto do Glória (glória ao Trino-
Deus). Após isso, de pé, a comunidade confessou os pecados (pastor B leu uma
confissão escrita por Martim Lutero) respondendo “sim” à pergunta se confessavam
os pecados segundo aquela leitura. Em seguida, o pastor proferiu: “ como ministro
ordenado pela Igreja, eu declaro a absolvição dos vossos pecados...”, o que foi uma
absolvição do ministro e não um anúncio da graça como constava na folha de culto. À
confissão dos pecados, seguiu o Kyrie Eleison e o Gloria in Excelsis (cantados) e depois
a comunidade sentou-se e cantou um hino (n. 161).

Na liturgia da palavra, o pastor B ainda realizou a leitura do texto bíblico de


Gálatas 3. 14-21 e, enquanto a comunidade cantava Aleluia, o pastor A subiu à estante
de leitura e leu o evangelho previsto para o dia, o qual seria o texto da prédica: Lucas
9. 51-56.

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O tema da prédica, assim como o tema do culto, era “os limites te protegem”.
Ao verificar no texto bíblico que Jesus proibira seus discípulos de mandarem cair
fogo do céu sobre a Samaria, a prédica fez menção às proibições que nos são
impostas na vida, pelas diversas pessoas e situações, como contendo algo de
positivo, de proveitoso para o nosso aprendizado, como no caso dos discípulos.

Após a prédica, a comunidade foi convidada a, de pé, confessar sua fé


segundo o Credo Apostólico. Em seguida, como preparo para a Santa Ceia, a
comunidade cantou o hino (n. 141).

Na liturgia da ceia, os dois pastores tomaram parte na organização. O pastor


B proferiu o diálogo de abertura da Oração Eucarística, tendo, dentro dela, executado
somente as seguintes partes: Prefácio, Sanctus e Palavras de Instituição5 (comunidade
ouviu de pé). Após a leitura da Narrativa da Instituição, a comunidade orou o Pai
Nosso e distribuiu o Gesto da Paz.

Antes da distribuição da Ceia, a comunidade cantou o hino n. 49 e, logo após,


o pastor B explicou como deveriam se organizar os grupos que vinham à frente (em
semicírculos) de maneira que os que estavam no meio do semicírculo (de frente para
o altar) ficavam abaixo da escada (degraus) que sobe até a Mesa Eucarística (altar). A
Pia Batismal ficava, no nível superior da escadaria, ao lado da Mesa. As pessoas que
se posicionavam nas laterais do semicírculo teriam que ficar em algum dos degraus
da escadaria, enquanto alguns poucos ficavam ao lado da Mesa, da qual os pastores
partiam para entregar o cálice com suco de uva. Dois membros da comunidade
(homens) foram convidados a colaborar na distribuição das hóstias (um deles era o
próprio vice-presidente, que participara na entrada do culto, e o outro era um
membro ativo da comunidade).

5 Termos utilizados neste texto conforme o Livro de Culto da IECLB. Ver MARTINI, Romeu R. Livro de
Culto. São Leopoldo: Sinodal, 2003, p. 19.

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Por quatro ou cinco vezes trocaram as pessoas do semicírculo, até que todos,
inclusive os músicos (pianista e grupo de canto que auxilia na liturgia) e os dois
pastores tomassem a Ceia. Os semicírculos eram dispersos após uma pequena bênção
e envio que um dos pastores realizava, mencionando um versículo bíblico. Muitas
pessoas o escutavam e depois dobravam os joelhos e baixavam a cabeça como uma
espécie de reverência em direção da cruz. A ceia é realizada de maneira bem
silenciosa, tendo apenas o acompanhamento musical do pianista.

Após a liturgia da Ceia, o pastor B fez a oração memorial para duas famílias.
Na primeira menção, o pastor pediu que a família do falecido se colocasse de pé para
a comunidade identificá-la. Após isso, fez a leitura dos dados da pessoa falecida e
referiu-se ao seu sepultamento no Cemitério Evangélico (da comunidade) com as
seguintes palavras: “[...] foi sepultado cristãmente [sic] no Cemitério Evangélico”.
Para a segunda família enlutada, o pastor agiu da mesma maneira. No entanto, pelo
fato do falecido ter sido cremado (provavelmente por isso), o pastor não fez a
menção acima de que havia sido “sepultado cristãmente” [sic]. Após a oração
memorial, foi feito um interlúdio (musicado).

Seguiu-se a leitura dos avisos.

Após os avisos, seguiu a coleta, acompanhada de um hino e, como liturgia


de despedida, foi realizada a Oração de Intercessão e a Bênção Final. O culto encerrou-
se após o canto do hino n. 181. Os dois pastores recepcionaram as pessoas na saída
do culto, as quais, em fila, cumprimentavam os mesmos.

3.3 Fora do templo

Enquanto a maioria das pessoas ficou conversando, olhando os livros e,


alguns poucos, conversando com as duas pessoas na mesa de pagamento das
contribuições, outra grande parte das pessoas que freqüentaram o culto

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permaneceram dentro do templo para conversar com as famílias enlutadas. Os pais


buscaram as suas crianças com as orientadoras do culto infantil. Aparentemente, os
mesmos grupos que ficaram conversando antes do culto continuaram reunidos após
o culto. Lentamente, as pessoas foram embora.

4 Diálogo com o Texto

O texto que será utilizado aqui para servir de referencial para a análise da
observação é do livro A Economia das Trocas Lingüísticas de Pierre Bourdieu, os seus
dois primeiros capítulos, A Economia das Trocas Lingüísticas e Linguagem e Poder
Simbólico6.

4.1 A economia das trocas lingüísticas

Neste primeiro capítulo, Bourdieu se empenha em demonstrar que a


linguagem nunca é neutra. Na sua crítica à filosofia intelectualista da linguagem,
Bourdieu procura explicitar que o pressuposto da lingüística estruturalista (fala
saussuriana), de que a fala e a língua são semelhantes a um “corpo” cifrado ou
codificado, o qual só pode ser decifrado a partir do estudo e do conhecimento dos
códigos e de suas regras lingüísticas, se equivoca por não levar em consideração as
condições de produção tanto da linguagem como de qualquer forma de discurso7.

Em sua formulação, Bourdieu concebe o universo da lingüística, como tantos


outros espaços de manifestações da cultura, enquanto algo suscetível às interações e
à dinâmica do próprio mercado. Sendo assim, um discurso é um produto, o qual tem

6 BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Lingüísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: EDUSP,
1996, p. 9-128.
7 BOURDIEU, 1996, p. 23-24.

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seu produtor – que está condicionado a produzir um discurso de determinada


maneira – e seus receptores. Assim ele expressa:

O que circula no mercado lingüístico não é “a língua”, mas discursos


estilisticamente caracterizados, ao mesmo tempo que cada locutor
transforma a língua comum num idioleto, e do lado da recepção, na
medida em que cada receptor contribui para produzir a mensagem
que ele percebe e aprecia, importando para ele tudo aquilo que
constitui sua experiência singular e coletiva.8

Pelo fato de que as condições sociais de quem formula um discurso e de


quem o recebe sempre são determinantes para o conteúdo do próprio discurso, assim
como para o poder de coação que ele poderá exercer, Bourdieu acaba por concluir
que não há palavras neutras. Esses discursos sempre extraem sua eficácia da
correspondência entre a estrutura social na qual ele foi concebido com a estrutura
social de quem o recebe9.

Posteriormente, o autor reflete sobre as condições necessárias para que um


discurso adquira legitimidade, de forma que ele possa ser aceito pelo grupo que o
escuta e possa ter eficácia de produzir no grupo aquilo que professa. Fazendo a
análise da língua padrão10 – no processo de unificação lingüística da França após a
Revolução Francesa – Bourdieu identifica alguns mecanismos que são utilizados para
gerar a aceitação (imposição) de uma maneira de se falar por todos aqueles que
vivem num mesmo espaço geográfico, embora tenham diferentes maneiras de falar
(vocabulário, gramática, dialeto de uma região, etc.). Alguns desses mecanismos são
estritamente ligados ao poder do próprio Estado e de sua coação estabelecida pelas
ocasiões oficiais. Dentre esses espaços, situa-se também o sistema de ensino escolar,
que corrige as maneiras diferentes de se falar a partir da língua padrão, oficial.

8 BOURDIEU, 1996, p. 25.


9 BOURDIEU, 1996, p. 27.
10 BOURDIEU, 1996, p. 31.

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Professores e professoras adequam a língua das crianças àquela “criada” pelo corpo
de especialistas na área da lingüística11.

Para Bourdieu, essa unificação lingüística instaura uma “comunidade


lingüística”12, a única capaz de sustentar relações de dominação, nas quais os
dominantes são aqueles que têm maior desenvoltura e capacidade de falar e proferir
discursos mais adequados ao modo de falar oficial. Evidentemente, os que detêm
maior domínio sobre o modo de falar correto são aqueles que têm essas disposições
geradas em seu habitus13, desenvolvido desde a infância pelo sistema escolar14 e pela
maneira de se falar em seu meio familiar, também condicionado a falar da maneira
oficial. Aqueles que exercem domínio em determinada estrutura social são aqueles
que têm, antecipadamente, certa distinção15 em relação àqueles que são dominados.

Essas constatações nos indicam que a função da fala e do discurso proferido


está diretamente relacionada com a noção de poder simbólico e de violência
simbólica. O poder simbólico (autoridade de um discurso, de quem o locuciona) é
um poder previamente estruturado pelas classes dominantes e também capaz de
estruturar todas as classes, aos dominantes a se perpetuarem como tais e aos

11 BOURDIEU, 1996, p. 31.


12 BOURDIEU, 1996, p. 32.
13 Para uma conceituação mais detalhada de habitus, veja: BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, p. 59ss. Habitus, resumidamente, poderia ser descrito como
disposições permanentes, geradas por um sistema de assimilação de um respectivo modus operandi,
incorporado e constantemente manifesto pela postura, pelos gostos, pela fala e por todas formas de
expressão (hexis corporal). Esse habitus tem o poder de estabelecer a distinção, que torna explícita a
diferenciação daqueles que pertencem à classe dominante, dos que a visam (pequena burguesia
ascendente – a qual faz uso da hiper-correção para tornar-se semelhante à classe dominante) e
daqueles que são tacitamente dominados, reconhecendo seu débito em relação àqueles que têm o
poder.
14 Bourdieu elabora esta postulação profundamente no texto A Reprodução: Elementos para uma
teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982, escrito junto com Jean-Claude
Passeron.
15 BOURDIEU, 1996, p. 39ss.

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dominados a permanecerem dominados, reconhecendo a ordem social como


legítima16.

Nesses termos, um discurso é tão mais poderoso quanto maior for o seu
reconhecimento por parte do grupo social ou da sociedade em geral, através de seus
sistemas de reconhecimento (diplomas, títulos, etc.). A pessoa que tem competência
legítima para proferir determinados discursos a tem por haver recebido
estatutariamente autoridade de um grupo de pessoas. Essa autoridade, quando
manifesta na performance17 do ator social, tem poder de instituir realidade e, portanto,
de ser seguida ou imitada por aqueles que a observam18. A partir dessa constatação,
Bourdieu afirma que a eficácia de qualquer discurso, inclusive do discurso religioso
ou ritual, está assentada na dominação simbólica situada no âmbito das trocas
lingüísticas.

O verdadeiro princípio da magia dos enunciados performativos


reside no mistério do ministério, isto é, na delegação ao cabo da qual
um agente singular (rei, sacerdote, porta-voz) recebe o mandato para
falar e agir em nome do grupo, assim constituído nele e por ele.19

Dessa maneira, o ator ou agente social que profere ou executa o discurso


performativo – capaz de instituir uma realidade específica – o pode fazer por ter em
seu habitus e em sua hexis corporal (expressão) inscritos os aspectos essenciais que
fazem com que seu discurso seja legitimamente reconhecido. Esse habitus, diz
Bourdieu, “encontra-se ligado ao mercado tanto por suas condições de aquisição
quanto por suas condições de utilização”20. Portanto, ele é construto da história que o

16 BOURDIEU, 1996, p. 44-53. Para aprofundamento na concepção de Poder Simbólico como


estrutura estruturante e estruturada cf. BOURDIEU, 1989, p. 8-15.
17 Para Bourdieu, o enunciado ou ato performativo é aquele reconhecido institucionalmente –
portanto, poder delegado ao ator pelo grupo social em virtude de suas condições sociais – com o
poder de por si próprio instituir uma realidade pelo simples fato de ser proferido e executado. Se
uma fala ou ato está destituído desse reconhecimento social, ele por si só é inócuo e não tem poder.
BOURDIEU, 1996, p. 60-64.
18 BOURDIEU, 1996, p. 59ss.
19 BOURDIEU, 1996, p. 63.
20 BOURDIEU, 1996, p. 69.

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 54


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construiu e, simultaneamente, construtor da história que possibilita seu


reconhecimento.

4.2 Linguagem e poder simbólico

A partir da afirmação de que a performance tem o poder de instituir a


realidade, Bourdieu parte para a análise da eficácia (ou da possibilidade de eficácia)
do discurso ritual, bem como da função dos ritos de instituição (também chamados
ritos de passagem). Posteriormente, o autor disserta a respeito do poder (força) da
representação21, concluindo com a constatação do engendramento político nos atos
performáticos e postulando maneiras de a realidade política subjacente nas
performances ter a capacidade de inverter (ou subverter) a ordem social instituída.

A ação performativa confere à linguagem, “e de modo mais geral, às


representações, uma eficácia propriamente simbólica de construção da realidade”22.
O agente que profere o discurso é, portanto, um porta-voz dotado de poder –
instituído pelo grupo – representando-o, personificando-o, agindo por procuração ao
falar e fazer, nomeando, assim, a realidade. Nomeando a realidade, um determinado
ator ou agente tem a autoridade de cobrar que seus interlocutores se comportem em
conformidade com aquelas categorias que o próprio agente projeta sobre o grupo e,
mais especificamente, sobre os indivíduos23.

Para ser autorizada, a linguagem precisa estar guarnecida por um capital


simbólico acumulado24. O discurso performático só opera a “magia” da

21 A representação pode ser concebida em dois sentidos: a) a própria delegação que o agente adquire,
personificando o grupo, e b) o conteúdo da sua fala como sendo correspondente às categorias que
se imputa sobre os indivíduos, tendo, assim, a representação à força de determinar a priori a ordem
das coisas socialmente constituídas como algo naturalmente ou biologicamente incontestável.
BOURDIEU, 1996, p. 81-83 e ainda as páginas 107-116.
22 BOURDIEU, 1996, p. 81.
23 BOURDIEU, 1996, p. 82-83.
24 BOURDIEU, 1996, p. 83.

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 55


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transformação social quando suas palavras de ordem estão respaldadas pelo capital
simbólico, poder acumulado, tanto pelo grupo quanto pelo agente que o profere. Em
suma, as palavras só surtem efeito quando autorizadas ou legitimadas por um poder
(capital) simbólico, sem o qual elas cairiam no vazio, não podendo operar na
realidade aquilo que elas pretendem25.

Quanto ao discurso ritual, Bourdieu afirma que a linguagem performática do


agente só é autorizada e pode surtir efeito quando se mantém vinculada àquele
“contrato” inicial, àquela delegação do grupo, sem a qual as palavras perdem sua
autoridade. Ao analisar críticas de fiéis à renovação litúrgica levada a cabo por
jovens padres católicos na França, Bourdieu lança algumas condições necessárias
para que o agente instituído de poder não acabe incorrendo no erro de fazer “aquilo
a que não foi instituído”. Assim, a performance, para ser capaz de instituir a
realidade, deve ser executada a) pela pessoa certa, b) no lugar certo, c) no momento
certo, d) durando o tempo certo, e) fazendo uso do comportamento correto, f)
utilizando a linguagem (terminologia) correta, g) vestindo a indumentária correta e
h) utilizando os instrumentos corretos26.

Aglomerando os fatores descritos, verifica-se três níveis de condições para a


eficácia da performance (por exemplo, na pregação e na liturgia): deve ser executada
pela pessoa previamente autorizada a fazê-lo, numa situação legítima com os
interlocutores legítimos e fazendo uso da forma (aspectos formais) legítimos27.
Percebe-se que o conteúdo parece ser algo irrelevante na análise de Bourdieu, quem e
como parecem ser mais determinantes para a eficácia de um discurso do que o que.

Num segundo momento, Bourdieu analisa os ritos de instituição. Sua proposta


de tratar os consagrados ritos de passagem (sistematizados por Arnold van Gennep)
como ritos de instituição tem a intenção de revelar o que, para ele, é o mais

25 BOURDIEU, 1996, p. 85-89.


26 BOURDIEU, 1996, p. 86ss.
27 BOURDIEU, 1996, p. 91.

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importante nesses ritos, a saber, não a passagem em si, mas a capacidade de instituir
a diferença. Assim, os ritos não são balizados pela situação a que eles remetem, mas
pelo corte arbitrário que eles exercem, capaz de definir a realidade, concebida
socialmente, como algo inscrito na natureza das coisas, portanto, na irrevogabilidade
das conseqüências dos ritos para os que o sofrem (são permitidos) e os que não o
podem sofrer28.

O rito de instituição não ajuda o ser humano a identificar as mudanças


naturais na vida e seus ciclos (como supõem aqueles que tratam dos ritos de
passagem), mas, pelo contrário, as institui verdadeiramente, criando, muitas vezes, a
diferença entre as pessoas onde não existiria necessariamente. Como exemplo, trata
dos ritos de circuncisão, os quais criam uma diferença no homem. O homem se
diferencia da mulher, a qual não pode sofrer esse tipo de rito. Nesse rito de
instituição, não se constata apenas a diferença biológica entre homem e mulher, mas
se institui no homem uma segunda natureza socialmente constituída, a qual traz
consigo uma série de funções que devem ser exercidas por um homem (o que é
homem, esta é a atribuição exercida no rito) e o que não pode ser exercido por uma
mulher (mulher é aquilo que o homem não pode ser, a mulher não pode ser o que o
homem é)29.

Os ritos de instituição são, portanto, ações performativas que fazem uso de


um agente, socialmente legitimado, para verbalizar (instituindo) e consagrar as
diferenças, criando categorias de percepção dicotômicas nos indivíduos como:
destinos sociais positivos ou negativos, consagração ou estigma de indivíduos (ou
grupos de indivíduos), etc. Essa ação performativa do rito tem, portanto, o poder de
inscrever duradouramente no habitus e na hexis corporal dos indivíduos que sofrem o
rito (e dos que não o sofrem) as disposições necessárias para que estes se tornem
definitivamente aquilo que lhes foi atribuído, nomeado, instituído. Baseado nessa

28 BOURDIEU, 1996, p. 97-100.


29 BOURDIEU, 1996, p. 100-103.

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inscrição permanente, os corpos irão relacionar-se entre si na sociedade manifestando


aquele aspecto que denota quem eles são (natureza social), como no modo de falar, de
comportar-se, no tipo de linguagem utilizada, nas roupas (anéis, medalhas, insígnias)
ou marcas no corpo, etc.30. Todos esses signos correspondem ao capital simbólico
adquirido pelas pessoas, gerando conhecimento e reconhecimento do grupo social,
mantendo, assim, visível, ainda que tácita, a diferença entre os que dominam e os
que são dominados.

Quanto à força da representação31, Bourdieu apresenta sua tese de que a


realidade é concebida numa luta entre discursos, o mais legítimo com maior poder
para constituir a realidade, conforme aquilo que ele representa. Isso significa que não
existe uma correspondência entre a realidade em si (re) e a representação do mundo
social, concebida pelo discurso dominante. As representações do discurso dominante
são, no entanto, poderosas a ponto de fazer com que as pessoas percebam (imagens
mentais) a realidade a partir daquilo que ele professa (mesmo aqueles que são
dominados). Essa crença32 na representação dominante é condição prévia para que o
discurso seja eficaz, embora, ela em si não seja algo consciente, mas legitimamente
aceita pelo fato de que quem formula o discurso religioso adquiriu o necessário
capital (poder) simbólico. Fundamentado nessa crença (conhecimento e
reconhecimento) da ordem social como concebida pelo discurso dominante, o
enunciado performativo do ritual coletivo continua sempre recriando as categorias
de percepção, propostas pelo discurso dominante.

Como último ponto de discussão que é interessante para este trabalho, Pierre
Bourdieu reflete sobre os limites da eficácia política33 que está permanentemente
incutida em todos os aspectos demonstrados anteriormente. A luta existente entre os

30 BOURDIEU, 1996, p. 97-106.


31 BOURDIEU, 1996, p. 107-116.
32 Sobre o tema da crença, condição prévia para a aceitação de um discurso, recomendamos para
aprofundamento: BOURDIEU, Pierre. A Produção da Crença: contribuição para uma economia dos
bens simbólicos. Porto Alegre, Zouk, 2006, especificamente as páginas 19-34.
33 BOURDIEU, 1996, p. 117-126.

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discursos dos diferentes grupos sociais para elaborar o discurso socialmente aceito de
classificação objetiva da realidade é subjacente a todos os mecanismos, dos quais
fazem uso esses mesmos discursos no processo de inculcação e de somatização dos
seus respectivos valores. Sendo também a linguagem e os discursos rituais e coletivos
espaço onde há consagração de um determinado discurso e condenação de outro ao
desaparecimento (já que o discurso dominante elabora as categorias de percepção do
que existe e do que não existe), cabe a consideração de que todos os enunciados
performáticos têm uma condição essencialmente política e, como se afirmou no início
desta reflexão, nunca neutra.

Compreendido isso, é importante averiguar a concepção de Bourdieu a


respeito de doxa34. Doxa, para Bourdieu, é o acordo fundamental que serve de base
para toda a compreensão da ordem social. Evidentemente, a doxa não corresponde
automaticamente à realidade em si, mas é a visão de realidade elaborada pelo
discurso dominante, representada em enunciados performativos pelos agentes
socialmente reconhecidos como legítimos, os quais têm sua autoridade assegurada
pelo reconhecimento do grupo (crença) em virtude do capital simbólico e, portanto,
da distinção que esses agentes detêm diante de outros indivíduos.

Para Bourdieu, aqueles que pretendem manter a doxa – o acordo


fundamental que rege a compreensão da realidade e a categorização da mesma –
intacta são os ortodoxos, a saber, a elite dominante que tem interesse em que a ordem
social permaneça como está. De outro lado, existe uma série de grupos e discursos
(talvez melhor seja a palavra "interesses"), nem sempre organizados e nem sempre
autoconscientes, para os quais a representação da realidade do discurso dominante
não interessa, pois os mantêm enclausurados em categorias negativas e inferiores,
portanto, sempre em dívida com os que participam da elite dominante.

34 BOURDIEU, 1996, p. 119.

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Justamente por causa desse conflito de interesses é que existe a possibilidade


de mudança da percepção da ordem social e da natureza das coisas. Bourdieu
menciona que aqueles que procuram alterar a doxa, ou seja, alterar a maneira de se
conceber a realidade e da sociedade organizar-se, necessitam estabelecer uma
subversão herética35.

O discurso herético deve contribuir não somente para romper com a


adesão ao mundo do senso comum, professando publicamente a
ruptura com a ordem ordinária, mas também produzir um novo
senso comum e nele introduzir as práticas e as experiências até então
tácitas ou recalcadas de todo um grupo, agora investidas de
legitimidade conferida pela manifestação pública e pelo
reconhecimento coletivo.36

Nesse intento, o enunciado performativo adquire importância, pois enquanto


“pré-visão política é, por si só, pré-dição que pretende fazer o que anuncia”37. A
representação manifesta na performance herética tem o mesmo poder, na medida em
que adquire reconhecimento de determinado grupo, de fazer existir realidade, de
produzir aquilo que enuncia. Bourdieu chama isso de pré-visão paradoxal38 e compara-
a a uma utopia, programa ou projeto que visa subverter a ordem ordinária. A
performance representativa tem poder nessa subversão política, já que ela anuncia
uma subversão cognitiva, da compreensão da ordem das coisas, uma conversão da
visão de mundo.

Há, naturalmente, uma série de estratégias dos detentores do discurso


dominante de desmobilizarem e de abafarem as críticas vindas do discurso herético.

35 BOURDIEU, 1996, p. 118. Heresia, para Bourdieu, é o discurso que discorda da doxa. Sendo a doxa
compreendida como o discurso dominante acerca da visão de mundo – discurso que se torna senso
comum e determina como dominados e dominantes concebem a realidade – a heresia é, portanto,
uma visão alternativa daqueles dominados que, desvinculando-se da visão dominante, conseguem
vislumbrar uma ordem social diferente, mais justa. Esse discurso herético, desempenhado nas
performances dos heresiarcas, tem características de um discurso profético, que anuncia uma nova
maneira de conceber as relações sociais até então velada.
36 BOURDIEU, 1996, p. 119.
37 BOURDIEU, 1996, p. 118.
38 BOURDIEU, 1996, p. 118.

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Essa luta se faz presente em vários grupos sociais, em várias sociedades,


constantemente. E, nesse processo de enunciação de uma nova percepção da
realidade e de categorização das pessoas que nela atuam, cabe saber, como menciona
Bourdieu, se “a luta entre as classes é revolucionária tendo como alvo derrubar a
ordem estabelecida ou apenas uma luta de concorrência, espécie de corrida na qual
os dominados se esforçam por se apropriar das propriedades dos dominantes”39.
Esta é certamente uma excelente pergunta a qualquer elaboração de crítica à ordem
estabelecida.

5 Algumas considerações a respeito do culto

Como mencionado anteriormente, não se pretende aqui fazer nenhum juízo


de valor, nem alguma apreciação de um comportamento, mas exercitar uma crítica
experimental, trazendo para a análise do culto (acima observado) um pouco do
referencial teórico da sociologia apresentado por Pierre Bourdieu. Pelo fato de que eu
mesmo participo do grupo que analiso, essa análise não tem por interesse ser
destrutiva, mas construtiva, na medida em que se acrescenta uma maneira não
convencional de se analisar o culto, a saber, a partir da sua fundamentação
sociológica, preferindo observar com o referencial teórico de alguém que não
compartilha dos valores internos do grupo. Considero como concernente à vocação
evangélica, condizente com uma tradição advinda da reforma protestante, o intuito
de sempre questionar e reconstruir a ordem das coisas (no caso, a ordem da vida
cultual) visando a maior adequação aos valores do evangelho, como a inclusão e a
subversão da ordem deste mundo.

- A abertura do pastor A antes do culto, recepcionando as pessoas,


cumprimentando-as, bem como a participação da sua esposa, embora aqui possa se
questionar qual o caráter da presença da esposa. Qual é o papel da companhia da

39 BOURDIEU, 1996, p. 125.

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esposa do pastor (agente autorizado a proferir o discurso)? Faz ela parte desse
agente? Ou ela é só mais uma pessoa saudando a seus e a suas conhecidas? Se for o
caso de a esposa do pastor fazer parte desse “agente autorizado”, então deveríamos
sempre direcionar o foco no agente autorizado para dois locais: o pastor em si e a sua
esposa, verificando no decorrer do culto qual função executa cada um deles. Além
disso, se a esposa compõe o agente autorizado, deveríamos sempre observar a ação
performativa do pastor (pastora) em relação à sua condição de solteiro ou casado.

- Grupo de mulheres conversando na frente da porta e grupo de homens se


cumprimentando. Também isso tem o seu caráter de acolhida àquela pessoa que
chega ao espaço onde ocorrerá o culto, no entanto, aqui se faz necessário
percebermos a divisão do espaço existente entre os grupos. Ela pode (provavelmente
deve) estar relacionada à divisão social entre homens e mulheres. Verifica-se,
portanto, que o espaço reservado a homens não é o mesmo reservado a mulheres.
Um exemplo disso é a banca de livros e a banca para o pagamento das contribuições.
A banca de venda de livros é coordenada por três mulheres e a banca de atualização
financeira da comunidade é composta por dois homens. Há nessa divisão claramente
uma concepção do papel do homem e da mulher: a mulher é responsável pela venda
de materiais educativos, sendo o papel da mulher referente à instrução das pessoas
acerca dos temas da fé – ainda que em ambiente privado, pois o espaço público
geralmente é reservado ao homem – e o homem é responsável pelo controle
administrativo da comunidade.

- Pessoas conversam com uma senhora enlutada. As pessoas que conversam


com a senhora enlutada, provavelmente manifestando suas condolências,
demonstram um gesto de carinho e afeto acolhedor para com uma pessoa que passa
por um momento de dor. Aqui é interessante percebermos que a senhora enlutada
compõe em torno de si outro grupo. Muito provavelmente, em outro momento, essa
senhora estaria no grupo das senhoras que conversavam na frente da porta da igreja.
No entanto, o luto cria um novo espaço em torno dela e de sua família, o que pode

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ser visto de duas maneiras: Ela mesma não se sente à vontade para tratar dos temas
cotidianos com as suas conhecidas (hipótese que acho mais provável) ou o grupo de
senhoras não cria um espaço acolhedor para conversar com a senhora enlutada sobre
seu luto. Talvez as duas hipóteses ajam sutil e simultaneamente.

- Durante a liturgia de entrada podemos perceber uma seqüência de gestos


(performances) essencialmente acolhedores: a) acolhida inclusiva, b) convite irrestrito
à ceia, c) saudação às famílias enlutadas, d) tradução do culto para a LIBRAS
(durante todo o culto) e d) o convite às crianças para o culto infantil. Na minha
opinião, esses gestos podem ser considerados como heréticos, sobretudo a tradução
para LIBRAS, tendo em vista que há carência de espaços onde pessoas com
deficiência auditiva, crianças, pessoas enlutadas e pertencentes a outros credos sejam
tão efusivamente acolhidas, no qual podem se sentir bem-vindas.

- Na confissão dos pecados podemos observar algo interessante. O pastor B,


ao dizer as seguintes palavras: “como ministro ordenado pela Igreja, eu declaro a
absolvição dos vossos pecados...” evocou toda a autoridade a qual lhe foi concedida
pelo próprio grupo. Ao falar essas palavras específicas, o pastor B evocou todo o
capital simbólico do qual é detentor para diferenciar-se das outras pessoas – agentes
não autorizados – procurando assim, provavelmente, anexar àquelas palavras o
poder simbólico que ele próprio possui. Em muitas outras propostas litúrgicas, tem-
se utilizado a expressão “anúncio da graça” (o que estranhamente consta na folha da
ordem do culto), o que representa uma concepção de que o ministro ordenado é um
ser completamente dependente da graça como todas as outras pessoas. Embora essa
expressão possa ter o efeito de ser mais poderosa para instituir a realidade que
enuncia (conforme a análise de Bourdieu) pode-se perguntar se o pastor (ministro
ordenado) tem de fato essa prerrogativa. Por que a frase “como ministro ordenado”
foi proferida? É necessário ele reapresentar o acordo fundamental com o grupo, na
atribuição de sua função representativa, para que o enunciado do perdão dos
pecados surta o efeito que visa? Esta é uma questão específica que extrapola os

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limites e interesses da abordagem da sociologia, podendo ser respondida apenas pela


reflexão teológica. Eu, no entanto, não aderiria a esse tipo de formulação, tanto para
não soar como algum representante instituído para uma função e que pretende atuar
em outra, para a qual não foi instituído, quanto para não incorrer na soberba
teológica de usurpar uma função que pertence unicamente a Deus.

A interpretação da Palavra, pregação do texto de Lucas 9.51-56, na qual foi


enfatizado o tema “os limites te protegem”, não pode ser vista desvinculada também
de uma postura ideológica. Evidentemente, esse juízo é muito subjetivo e talvez, ao
escutar a prédica, poucas pessoas tenham identificado algum aspecto político. Talvez
nem mesmo eu acredite nisso. No entanto, é importante avaliar se a mensagem de
que há aspectos impeditivos que nos são para a proteção não está vinculada a um
mecanismo para gerar resignação. Quando fala sobre a eficácia política, Bourdieu
menciona que o discurso dominante sempre tende a manter os dominados no
silêncio, no reconhecimento dos seus limites como naturais, e, portanto, no incentivo
à resignação. Essa seria uma questão a se discutir numa análise mais minuciosa da
pregação em si, o que não é possível aqui.

A distribuição da Ceia. Neste espaço, acho importante mencionar o


resguardo natural pelo poder de determinados momentos da liturgia.
Evidentemente, a ceia, sendo uma das principais tarefas da Igreja, também é uma das
tarefas que mais se necessita de reconhecimento do grupo para ministrar. A prédica,
nesse contexto de comunidade, muito raramente é realizada por uma pessoa não
ordenada. Só em situações de urgência ou experimentais (caso de estágio de uma
pessoa em formação). Da mesma forma, a Santa Ceia é um momento para o qual o
agente que a executa necessita de reconhecimento público. Fazendo-se necessária –
por questão de tempo (ver Bourdieu acima, na reflexão sobre a eficácia do ritual) – a
delegação de uma parte da performance do rito para dois outros agentes não
institucionalmente reconhecidos. Acima, mencionamos que as pessoas convidadas a
colaborar eram a) o vice-presidente da comunidade, que já havia exercido uma

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função na recepção no culto (entrega de hinários e folhas de culto) e b) um membro


reconhecidamente ativo na comunidade. Essa função delegada era, no entanto,
relativa somente à entrega da hóstia (o que denota que a hóstia é vista como
detentora de menos poder simbólico do que o vinho – pois os agentes autorizados
não poderiam conceder o papel de maior importância para os não-autorizados),
sendo realizada por estes de maneira bastante silenciosa e recatada, explicitando a
reverência e o respeito naquele gesto para o qual eles não eram previamente
autorizados pelo grupo (mas eram autorizados pelos agentes autorizados).
Poderíamos fazer aqui uma série de perguntas a respeito dos fatores determinantes
para que agentes não-autorizados possam tomar parte na ação performativa do
ritual. É necessário que sejam homens? Não pode ser mais democratizada a
atribuição dessa tarefa? É necessário que sejam ligados à administração da
comunidade? Pode-se desenvolver uma longa discussão sobre esse fato.

Como último aspecto que eu gostaria de abordar (embora muitas outras


questões possam ser discutidas) e talvez o mais polêmico de todos, menciono a
oração em memória. Aqui o pastor B proferiu duas formulações diferentes para as
duas famílias enlutadas. Para a primeira, a qual sepultou seu ente no Cemitério
Evangélico, o pastor disse: “[...] foi sepultado cristãmente [sic] no Cemitério
Evangélico”. Para a família do segundo, que foi cremado na cidade, essa frase foi
omitida. Aqui acho muito pertinente a análise de Bourdieu a respeito dos ritos de
instituição (ver acima). A fala performativa é capaz de instituir socialmente aquilo
que enuncia, tendo, no rito de instituição (que é o que seria a oração em memória –
pertencente ao complexo de ritos de passagem da morte) caráter de diferenciação
entre aqueles que passam pelo rito e os que não passam. Quando o agente, ator da
performance, enuncia que aquele que foi sepultado conforme a tradição da
comunidade, no Cemitério Evangélico da comunidade, foi sepultado de maneira
cristã e o outro, que não foi sepultado da mesma maneira, não foi sepultado de
maneira cristã, evidentemente, está estabelecendo uma diferença entre os dois. O que

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corresponde à tradição40 da comunidade, corresponde ao modus operandi


especificamente cristão. O que não foi sepultado conforme a tradição da comunidade
não corresponde ao modus operandi especificamente cristão. Essa diferenciação,
embora não seja oficial na IECLB, tem o poder de consagrar os valores dominantes
na comunidade. Sabe-se que o sepultamento é um evento que envolve a dimensão
financeira, principalmente, porque o cemitério é da comunidade e representa uma
fonte de renda considerável. Dessa maneira, o pastor B está consagrando uma
prática, ainda que possivelmente inconsciente (talvez ele nem percebeu a
diferenciação que fez). Para deixar claro ao restante do grupo que o sepultamento no
Cemitério Evangélico é aquele preferido como prática de sepultamento cristão, o
pastor B fez uso do enunciado performativo, que, conforme nos explica Bourdieu,
tem o poder pelo reconhecimento do próprio grupo de instaurar uma realidade.
Sendo assim, o pastor B fez uso do enunciado performativo para insitar as pessoas a
sepultarem no Cemitério Evangélico, garantindo assim a subsistência financeira do
Cemitério, o que gera lucros financeiros para a própria comunidade.

40 Uma análise deste fato que levasse em consideração o peso da tradição talvez fosse mais profícua e
apresentasse mais elementos explicativos para tal diferenciação. O argumento do peso da tradição,
portanto, é perfeitamente válido, embora aqui tenha se preferido dissertar sobre a possibilidade de
aspectos econômicos também exercerem força no julgamento que o ator da performance faz das
pessoas envolvidas. A opção pelo fator econômico e não pelo fator da tradição – que, reafirmo,
talvez seja mais forte – se dá pelo fato de que este ensaio pretende mostrar a
multidimensionalidade dos aspectos que estão envolvidos no julgamento social. O argumento
econômico é sempre o mais espinhoso, do qual mais se procura fugir, no entanto, ele está presente,
como ressaltaria a tradição marxista, à qual Bourdieu deve muitas de suas idéias.

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Bourdieu e o fazer teológico

Por Nivia Ivette Núñez de la Paz*


Por Rogério Sávio Link**

Resumo:
O presente artigo tematiza a relação entre Bourdieu e o fazer teológico. Mesmo que este
entrecruzamento, para o pensamento de alguns, seja difícil de ser estabelecido, assumimos a
tarefa. Acreditamos que os pressupostos bourdianos podem contribuir com a teologia na
medida em que eles exigem um compromisso profético com o Evangelho.

Palavras-chave:
Bourdieu – teologia - trabalho religioso - profetismo

Por que tentamos fazer essa relação?

Durante o ano de 2007, o Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo


(NEPP), do qual fazemos parte, debateu artigos da obra de Pierre Bourdieu com o
objetivo de estudar sua compreensão sobre o funcionamento do sistema religioso.
Uma das questões levantadas foi se seria possível fazer uma correlação entre a
teologia e a sua obra. Devido à desmistificação que Bourdieu faz do sistema religioso,
seria possível abstrair alguma contribuição para a teologia? Este artigo pretende ser
uma possível resposta para essa questão. Ela será dada a partir do entrecruzamento
de alguns dos postulados bourdianos e as nossas pesquisas.

* Nivia Ivette Núñez de la Paz é doutoranda do PPG da Faculdades EST e bolsista CNPq. Pesquisa o
fenômeno religioso Comunidade Canção Nova, perguntando pela identidade que decorre da
relação entre religião e mídia. Endereço eletrônico para contato: nivianpaz@yahoo.com.br.
** Rogério Sávio Link faz doutorado, como bolsista da Capes, em teologia e história na Faculdades
EST em São Leopoldo, Rio Grande do Sul. Seu tema de estudo é a migração e formação do
luteranismo na Amazônia. Endereço eletrônico para contato: linkrogerio@yahoo.com.br.

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A concepção bourdiana do sistema religioso

Para entender como Bourdieu problematiza a religião, é necessário


compreender, primeiramente, como ele estrutura o campo de análise. A terminologia
usada por ele para definir o campo religioso pertence ao mundo judaico-cristão e,
portanto, é muito familiar para a teologia, a saber, sacerdotes, profetas,
magos/feiticeiros e leigos. Essa terminologia foi utilizada por Max Weber que, por
sua vez, influenciou a análise de Bourdieu. O sacerdote seria aquele que, por
excelência, representa a instituição estabelecida. É aquele que vai produzir a partir de
dentro e vai defender a instituição. Ele não produz o novo. “O profeta, ao contrário, é
o agente religioso que, em situações extraordinárias, de crise, ou a partir de grupos
marginais, produz por seu discurso ou sua prática uma nova concepção religiosa”. Já
o feiticeiro é um autônomo que utiliza o imaginário religioso para “atender interesses
imediatos e utilitários de sua clientela”1.

Identificamos, de imediato, o grupo sacerdotal com o clero2 e os profetas com


aqueles que, em determinado momento, questionam ou modificam a ortodoxia pela
qual o clero se rege. Entre os profetas, podem ser encontrados tanto leigos quanto
clérigos. Os feiticeiros são aquelas pessoas identificadas como benzedeiras e fazem
parte da chamada religiosidade popular3. Os leigos, por sua vez, são aqueles a quem
se dirige a produção religiosa, ao mesmo tempo em que costumam ser
desapropriados de dita produção4. Nesse sentido, a tendência ao estudo das

1 OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro. A teoria do trabalho religioso em Pierre Bourdieu. In: TEIXEIRA,
Faustino (org.). Sociologia da Religião: Enfoques teóricos. Petrópolis: Vozes, 2003, (p. 177-197.) p.
186s., 188.
2 Nomeados como reverendos, padres, pastores, obreiros etc., segundo a denominação a qual
pertencem.
3 A religiosidade popular é toda e qualquer expressão religiosa que está fora do controle das
instituições religiosas oficiais. É a partir dessa concepção que André Droogers vai analisar a
religiosidade popular luterana. Cf. DROOGERS, André. Religiosidade Popular Luterana. São
Leopoldo: Sinodal, 1984.
4 Cf. BOURDIEU, Pierre. Gênese e estrutura do campo religioso. In: MICELI, Sergio (org.). A
economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1992, (p. 27-78.) p. 39.

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religiosidades populares constitui-se numa tentativa de valorização da produção


religiosa dos leigos.

O campo religioso, propriamente dito, tem como princípio a existência de um


grupo especializado na produção dos bens religiosos (o clero) e de um grupo que
produz excedente econômico (os leigos) para sustentar esse grupo especializado que,
em troca, produz o sustento espiritual. Bourdieu chama essa transação que se
instaura entre igreja e fiéis de “economia da oferenda”5. Essa objetivação do sistema
religioso desvenda que a igreja é também uma empresa. Só que essa objetivação é
reducionista e pode levar ao esquecimento de que faz parte da sua existência a
necessidade de negar esse fato. Assim, Bourdieu afirma que “a verdade da empresa
religiosa é a de ter duas verdades: a verdade econômica e a verdade religiosa, que a
recusa”6.

Para dar conta de explicar essa economia, Bourdieu usa a expressão


“economia dos bens simbólicos”. Nessa relação, o preço do serviço deve permanecer
escondido7. Uma igreja não pode dizer que ela está “vendendo salvação”. Quando
essa relação é explicitada, ocorre a crise, semelhante ao que ocorreu com a Reforma
Protestante no século XVI. Ao vender indulgências, a Igreja Católica Romana
explicitou e desmistificou a relação econômica implícita, o que provocou a reação de
parte de clérigos e leigos.

A tendência para o monopólio dos bens religiosos e a exclusão dos leigos

Segundo Pedro Ribeiro Oliveira, o que Bourdieu traz de original para a


discussão sobre o problema da autonomia da religião como um campo de análise é a
noção de trabalho religioso. As relações sociais produzidas pela religião, embora

5 Cf. BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: Sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996, p. 158.
6 BOURDIEU, 1996, p. 184s.
7 Cf. BOURDIEU, 1996, p. 161ss., 193.

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falem do “transcendente”, “sobrenatural”, “absoluto”, são “bem ‘terrenas’, [...] têm


muito a ver com as alianças ou antagonismos entre os grupos ou classes”. Assim,
quanto mais afastados estão os produtores especializados dos consumidores, mais
autônoma e especializada é a religião. Uma igreja nessas condições é extremamente
clericalizada e dá a impressão de não necessitar dos leigos, como se fosse um sistema
que paira sobre tudo8. Nas palavras de Bourdieu:

As diferentes formações sociais podem ser distribuídas em função do


grau de desenvolvimento e de diferenciação de seu aparelho
religioso, isto é, das instâncias objetivamente incumbidas de
assegurar a produção, a reprodução, a conservação e a difusão dos
bens religiosos, segundo sua distância em relação a dois pólos
extremos, o auto-consumo religioso, de um lado, e a monopolização
completa da produção religiosa por especialistas, de outro lado.9

Como o campo religioso tende a mover-se em direção ao completo domínio e


monopólio dos agentes especializados, pode-se perceber nas diferentes igrejas uma
tendência para excluir ou tornar cada vez mais submissa a participação dos leigos. O
acesso ao clero torna-se gradativamente mais exigente. As instituições de saber
teológico (seminários e faculdades de teologia) tendem a ser muito mais
especializadas.

Conflitos decorrentes do monopólio

Esse movimento em direção ao monopólio ocorre num campo de conflito que


pode transparecer tanto entre o clero e os leigos quanto dentro do próprio clero10.
Como observa Oliveira, ao interpretar Bourdieu:

Essa tendência do campo religioso à autonomia completa é


contrabalançada pela reação dos grupos e classes sociais
desprivilegiados, que buscam um sentido alternativo para justificar

8 Cf. OLIVEIRA, 2003, p. 181ss.


9 BOURDIEU, 1992, p. 40.
10 Cf. BOURDIEU, 1992, p. 62, 67.

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sua condição existencial, recorrendo à autoprodução religiosa ou a


agentes marginalizados pelas instituições dominantes. Há, portanto,
duas fontes de tensão internas ao campo religioso: uma, que opõe
“agentes especializados” à autoprodução dos “leigos”, e outra que
opõe os “agentes especializados” entre si no atendimento às
demandas leigas.11

Portanto, dessas tensões entre agentes especializados e leigos e entre agentes


especializados e outros agentes especializados, surgem os conflitos dentro das
instituições religiosas. As diferentes linhas teológicas são expressões dessas tensões.
No caso da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), como
estratégia de barganha, os leigos luteranos usam, no discurso (mas também na
prática, em alguns casos), ameaças de mudarem para a IELB (Igreja Evangélica
Luterana do Brasil). Com esse tipo de ameaça, eles tentam neutralizar ou diminuir
tensões decorrentes de posicionamentos diferentes, mas também tentam conseguir
algum tipo de vantagem frente à instituição. As ameaças são freqüentemente usadas
para conseguir recursos financeiros ou para abrir um novo campo de atuação
pastoral12. Elas também surgem quando os leigos não concordam com os
posicionamentos dos pastores locais. Assim, os obreiros tendem a ceder perante os
membros para evitar conflitos maiores13. Os pastores, por exemplo, podem falar
abertamente sobre política com aqueles que não são membros. Na presença dos
membros, as palavras tendem a ser atenuadas e comedidas.

Por outro lado, mesmo que um clérigo queira contestar o sistema, ele é
condicionado a reproduzi-lo, pois sua manutenção vem da ordem. “Em uma
sociedade dividida em classes, a estrutura dos sistemas de representações e práticas
religiosas próprias aos diferentes grupos ou classes, contribui para a perpetuação e
para a reprodução da ordem social [...]”14. Assim, os contestadores são acusados por

11 OLIVEIRA, 2003, p. 185s.


12 Cf. LINK, Rogério Sávio. Luteranos em Rondônia: o processo migratório e o acompanhamento da
Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil 1967-1987. São Leopoldo: Sinodal, 2004, p. 64ss.
13 Cf. BOURDIEU, 1992, p. 67.
14 BOURDIEU, 1992, p. 52s.

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aqueles que estão nas direções das instituições de não fazerem mais parte da igreja,
de estarem subvertendo a ordem. “Neste sentido, por estar investida de uma função
de manutenção da ordem simbólica em virtude de sua posição na estrutura do
campo religioso, uma instituição como a Igreja contribui sempre para a manutenção
da ordem política”15.

No caso das tensões entre os agentes especializados, Bourdieu afirma:

O conflito pela autoridade propriamente religiosa entre os


especialistas (conflito teológico) e/ou o conflito pelo poder no interior
da Igreja conduz a uma contestação da hierarquia eclesiástica que
toma a forma de uma heresia do momento em que, em meio a uma
situação de crise, a contestação da monopolização do monopólio
eclesiástico por parte de uma fração do clero depara-se com os
interesses anticlericais de uma fração dos leigos e conduz a uma
contestação do monopólio eclesiástico enquanto tal.16

Como exemplo dessa tensão, podemos citar o surgimento e, em alguma


medida, o desenvolvimento da Comunidade Canção Nova (CCN). A CCN faz parte
da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) e, ao mesmo tempo, da Renovação
Carismática Católica (RCC). Reconhecida como precursora das comunidades de vida
no Brasil, a CCN conflitou tanto com outras práticas existentes na igreja quanto com
a própria instituição, ao instaurar um modo diferente de convívio. Nas suas palavras:
“homens e mulheres vivendo juntos em sadia convivência”, que significava a
inauguração de uma nova forma de viver em comunidade dentro da ICAR.

O fato de fazer parte da RCC e identificar-se com a sua proposta teológica


imprime a CCN uma marca contestatória com relação à igreja tradicional. A ICAR,
no olhar da CCN, necessita transformar-se, buscando sintonia com o tempo presente
e com o contexto no qual se encontre inserida. A CCN, no olhar da ICAR, representa
a subversão da tradição e, talvez, até a indisciplina clerical, mas é tolerada pelo fato
de conseguir diminuir o número de leigos que abandonam a igreja.

15 BOURDIEU, 1992, p. 72.


16 BOURDIEU, 1992, p. 62.

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Bourdieu e a teologia profética

A análise de Bourdieu desmistifica a religião, pois torna público aquilo que


deveria permanecer velado. O próprio discurso teológico seria formulado pelos
especialistas como um produto a ser “vendido” para os leigos, demonstrando, assim,
o seu caráter econômico. Ao afirmar que a religião teria a função de manutenção da
ordem simbólica, denuncia a participação das instituições religiosas na manutenção
do status quo. Dessa forma, torna difícil para os especialistas e para as instituições
responsáveis pelo fazer teológico reconhecer em Bourdieu um parceiro para o
diálogo. Mas é justamente aqui que reside a proximidade entre Bourdieu e a teologia.
Ele ajuda no fazer teológico porque explicita as relações de dominação das
instituições e dos agentes. Ao desvelar as relações sociais implícitas no trabalho
religioso, ele está assumindo uma posição profética. Nas suas palavras:

[...] a contestação profética (ou herética) da igreja ameaça a própria


existência da instituição eclesiástica no momento em que põe em
questão não apenas a aptidão do corpo sacerdotal para cumprir sua
função declarada (em nome de recusa da “graça institucional”), mas
também a razão de ser do sacerdócio (em nome do princípio do
“sacerdócio universal”).17

O profeta é aquele que desestabiliza a instituição religiosa. Para nós,


Bourdieu pode ser considerado um profeta. Para a teologia, esta posição profética é
central. Representa a dinâmica do Evangelho, na medida em que tira as igrejas e
instituições das amarras que o mundo impõe e possibilita o surgimento de vozes e
grupos contestatórios que são expressão dessa dimensão profética. As diferentes
correntes teológicas que contestam ou contestaram em um determinado momento as
instituições tradicionais representam essa dimensão profética. Elas denunciam a
rotinização da igreja e chamam para uma vivência evangélica mais autêntica.

17 BOURDIEU, 1992, p. 61s.

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As mulheres vão à rua, os homens ficam em casa: reflexões


preliminares sobre a Rede de Enfrentamento à Violência
contra a Mulher de São Leopoldo

Por Ezequiel de Souza*


Por Laura Zacher**

Resumo:
O presente artigo é resultado parcial de uma pesquisa para o Seminário IV em Sociologia:
Prática de análises sociológicas, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A pesquisa
foi realizada junto à Rede de Enfrentamento à Violência contra a Mulher de São Leopoldo
(REVM-SL). Tendo em vista os avanços nas políticas públicas das mulheres no município de
São Leopoldo, a pesquisa procurava entender essas transformações de forma processual.
Chegamos à REVM-SL por indicação de uma integrante e, a partir de observação
participante e questionários, algumas hipóteses foram formuladas. Encarando a REVM como
um movimento social organizado, problematizamos sua atuação em relação à mobilização,
caráter e divulgação das informações. Elementos que pretendemos elucidar na continuidade
da pesquisa são o capital social das pessoas integrante e sua influência na posição dentro da
Rede, as transformações no campo de produção de políticas públicas para as mulheres e a
relação dessas transformações no contexto mais amplo da sociedade.

Palavras-chave:
Violência contra a mulher - movimentos sociais - análise de redes sociais

Apresentação do objeto: a «Rede de Enfrentamento à Violência contra a


Mulher» da cidade de São Leopoldo (2006–2007)1

A Rede de Enfrentamento à Violência contra a Mulher é um movimento2 que


integra diferentes entidades que possuam trabalho direto e indireto com o tema

* Ezequiel de Souza é mestrando em Teologia na Faculdades EST, bolsista do CNPq.


** Laura Zacher é graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e
bolsista do Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania da mesma Universidade.
1 Agradecemos à colaboração de Alda Fortes e Walfrido da Silva pela leitura do rascunho do artigo e
pelas importantes colaborações. Agradecemos também ao CNPq, cujos recursos contribuíram para
a boa execução dessa fase da pesquisa e ao professor Marcelo K. da Silva pela orientação acerca da
análise de redes sociais.

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“mulher” no município de São Leopoldo. Ela surgiu no ano de 2006, após ser
constatado durante o processo de Pré-Conferências e I Conferência Municipal da
Mulher, em 2005, que havia muitas entidades que trabalhavam com o mesmo
público, sem cooperação e sem conhecimento das ações umas das outras.

A Rede é composta por várias organizações não-governamentais (dentre as


quais, o Centro Ecumênico de Evangelização, Capacitação e Assessoria – CECA; o
Círculo Operário Leopoldense – COL; e a ONG Palmares) instituições de Ensino
Superior (Unisinos e Faculdades EST) representantes do Poder Público Municipal
(Centro Jacobina; Coordenadoria Municipal da Mulher; Secretaria Municipal de
Segurança Pública) e Estadual (Brigada Militar).

Cerca de 20 pessoas participam regularmente das reuniões da Rede,


representando mais ou menos 10 entidades. O número de entidades representadas,
no entanto, não é fixo e a Rede não possui um “cadastro” das entidades que nela
participam, embora haja uma lista com as presenças que pode ser encontrada no
Centro Jacobina. As reuniões são mensais, sempre na segunda quarta-feira do mês, às
nove horas, em uma das entidades participantes. Participamos de três reuniões
ordinárias e de duas extra-ordinárias, quando acompanhamos a Comissão
encarregada de buscar informações para implantação da Delegacia Especial da
Mulher.

Problematizando os movimentos sociais a partir da constituição de suas redes

As conquistas dos movimentos feministas nas últimas décadas são


perceptíveis em vários âmbitos da sociedade3. Seus paradigmas e modelos

2 Entendemos a Rede de Enfrentamento à Violência contra a Mulher como um movimento social por
se enquadrar nos critérios propostos por Alberto Melucci, conforme a nota 11.
3 MATOS, Maria I. S. Por uma história das sensibilidades: em foco – a masculinidade. História:
Questões & Debates, n. 34, 2001, p. 45-63.

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auxiliaram na percepção da relacionalidade e historicidade dos gêneros4. Passava-se


de uma leitura essencialista dos sexos para uma leitura da construção sócio-histórica
do gênero.

A década de 1990 foi marcada pela “emergência da sociedade civil”5. “A


sociedade civil torna-se bandeira política de grupos dissidentes do Leste, os quais
passam a reivindicar liberdade de imprensa, de associação e reunião, participação no
poder, pluralismo político e estado de direito, nos termos das democracias
capitalistas”6. Também no Brasil, houve um aumento significativo da participação
social. O que chamava a atenção era o surgimento de novos canais de participação e
negociação de demandas sociais. O contexto era a reforma do Estado. A
descentralização político-administrativa era estimulada em toda a América Latina,
embora nem sempre houvesse a descentralização fiscal7. Novos atores surgem no
cenário político, compondo a sociedade civil organizada. Movimentos sociais,
organizações não-governamentais e grupos de classe passam a debater seus
interesses e suas demandas em locais criados especialmente para esse propósito.

Ora, a contribuição dos movimentos sociais para a democratização


certamente não será aquela que cabe a atores como sindicatos ou
partidos políticos. Os movimentos sociais apresentam perfis
organizativos próprios, uma inserção específica na tessitura social e
articulações particulares com o arcabouço político-institucional.8

4 SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da história: novas
perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992, p. 63-95.
5 COSTA, Sérgio. Categoria analítica ou passe-partout político-normativo: notas bibliográficas sobre
o conceito de sociedade civil. Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais, n. 43, jan./jul.
1997a, p. 3-25.
6 COSTA, Sérgio. Esfera pública, sociedade civil e movimentos sociais no Brasil. Novos Estudos, n. 38,
1994, p. 39.
7 von HALDENWANG, Christian. Governanza sistémica y desarrollo en América Latina. Revista de
la CEPAL , n. 85, abr. 2005, p. 35-52.
8 COSTA, Sérgio. Movimentos sociais, democratização e a construção de esferas públicas locais.
Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol.12, n. 35, 1997b. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
69091997000300008&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 12 dez. 2007.)

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Diante do crescimento da importância dos movimentos sociais no cenário


político, Melucci9 defende a necessidade de uma teorização sobre o conceito de
“movimento social”. Segundo ele, o que ocorre são abstrações empíricas. Ele
identifica três características que as sociedades contemporâneas têm em relação aos
agrupamentos humanos:

• Agregação social de caráter permanente;

• Função socializadora preenchida por solidariedade conflitual;

• Importância da relação entre representação e tomada de decisão e novas

formas de ação.

Melucci afirma que até os anos 1970, havia a tentativa de reduzir a ação
coletiva a efeito de crises estruturais ou sistema de crenças compartilhadas, e as
tentativas de superar estas abordagens caíram em dualismos, relegando a ação às
categorias de patológica ou marginal. Ele entende que um dos erros das teorias da
década de 1970 consistia em acentuar, por um lado, o como o movimento se
estabelece, relegando o porquê a segundo plano; ou, por outro lado, acentuar o porquê,
esquecendo o como. Na década de 1980, as abordagens integraram os movimentos
sociais em sistemas, reduzindo sua ação ao nível político:

Não obstante, as contribuições acima concentram a análise mais no


nível político do que na “sociedade civil”. Os conflitos sociais são
reduzidos ao protesto político e vistos como parte de um sistema
político. A confrontação com o sistema político e com o Estado é
apenas um fator mais ou menos importante na ação coletiva. O
conflito freqüentemente pode afetar o próprio modo de produção ou
a vida cotidiana das pessoas.10

Com essa supervalorização do político, não se percebe a dinâmica dos


movimentos sociais, que estão “se deslocando para um terreno não-político”. Dessa
forma, a influência que os movimentos estão tendo em outras áreas da vida, fazendo

9 MELUCCI, Alberto. “Um objetivo para os movimentos sociais?” Lua nova. São Paulo: CEDEC, n.
17, jun. 1989.
10 MELUCCI, 1989, p. 53.

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com que seja alterada a própria lógica das sociedades complexas. Como exposto
acima, não há uma definição clara acerca do que seja um movimento social. A maior
parte dessas definições são abstrações empíricas, onde há a tentativa de isolamento
de alguns aspectos empíricos dos fenômenos coletivos. A partir desses isolamentos,
cada autor escolhe aspectos diferentes, o que torna difícil uma comparação. Melucci
define o que entende por movimento social da seguinte forma: “Eu defino
analiticamente um movimento social como uma forma de ação coletiva (a) baseada
na solidariedade, (b) desenvolvendo um conflito, (c) rompendo os limites do sistema
em que ocorre a ação”11.

Os movimentos sociais contemporâneos estão afetando “a identidade


pessoal, o tempo e o espaço na vida cotidiana, a motivação e os padrões culturais da
ação individual”12. Deixam, portanto, de girar em torno do eixo capital-trabalho,
afetando as demais esferas da vida. Com isso, há a transformação dos atores desses
movimentos sociais. Eles são cada vez mais temporários, tendo por função a
revelação de projetos.

A atuação do Fórum de Mulheres de São Leopoldo desde 2000 tinha um


caráter de movimento social organizado, exercendo pressão sobre o sistema político
para a promoção de políticas de valorização da mulher. Substituindo o eixo capital-
trabalho pelas relações entre os gêneros, o caráter político era minimizado, não
podendo ser associado a nenhum lado do espectro político. A luta, num primeiro
momento, foi para a inclusão do tema “mulher” na agenda pública municipal.

Entretanto, com a transição do governo em 2005, houve uma alteração na


correlação de forças. A vitória eleitoral de um partido de esquerda proporcionou o
acesso a muitas das demandas reivindicadas no período anterior: criação de um
espaço institucional de formulação de políticas públicas para as mulheres e

11 MELUCCI, 1989, p. 57.


12 MELUCCI, 1989, p. 58.

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fortalecimento do Conselho Municipal das Mulheres, ainda no ano de 2005. Segundo


Bourdieu13, o campo político é resultado da relação de forças e lutas sociais de dado
momento, sendo alterado de acordo com mudanças ocorridas no trabalho de
produção de bens políticos. Assim, o empoderamento das mulheres no que tange à
formulação de políticas públicas para as mulheres ocasionou uma alteração
significativa na visibilidade de temas relacionados às mulheres.

Alberto Melucci fala de “redes de movimento ou de áreas de movimento”.


Com isso ele sugere que são pequenos grupos, que permanecem imersos e surgem
apenas para fins específicos. As redes de movimento têm três características básicas,
de acordo com Melucci:

a) Elas permitem associação múltipla; b) a militância é apenas parcial


e de curta duração; c) o envolvimento pessoal e a solidariedade
afetiva é requerida como uma condição para a participação em
muitos dos grupos. Este não é um fenômeno temporário, mas uma
alteração morfológica na estrutura da ação coletiva.14

Os movimentos sociais constituem-se de dois momentos: um de latência e


outro de visibilidade. Com o primeiro, as pessoas podem experimentar diretamente
novos modelos culturais, pois ela cria novos códigos, fazendo com que os indivíduos
os pratiquem. Já a visibilidade ocorre quando pequenos grupos surgem para
enfrentar uma autoridade política. “A visibilidade demonstra a oposição à lógica que
leva à tomada de decisão com relação à política pública”15. Esses dois momentos são
indissociáveis, pois a latência mantém os vínculos de solidariedade que permitirão a
visibilidade. A visibilidade reforça as redes submersas e fornece energia, facilitando o
recrutamento e a criação de novos grupos.

13 BOURDIEU, Pierre. A representação política: Elementos para uma teoria do campo político. In:
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
14 MELUCCI, 1989, p. 61.
15 MELUCCI, 1989, p. 61.

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Melucci entende que no âmbito cultural, a mera existência do movimento já


altera os códigos, de modo que não faz sentido perguntar pelo êxito ou fracasso. No
âmbito político, “os movimentos produzem a modernização, estimulam a inovação e
impulsionam a reforma. Aqui seu resultado pode ser medido”16. No caso do
movimento das mulheres, “o objetivo do movimento não é apenas a igualdade de
direitos, mas mais o direito de ser diferente”17. Paradoxalmente, Melucci entende que o
êxito no campo político enfraquece o movimento. Isso não significa que o movimento
termine, pois “torna-se um objetivo cultural e político que mobiliza muitos outros
grupos”.

Algo semelhante ocorreu em São Leopoldo. Uma vez criada a Coordenadoria


Municipal da Mulher, houve o risco de institucionalização das políticas públicas das
mulheres, relegando a sociedade civil organizada e os movimentos sociais ao papel
de demandante. Esse risco é muito presente nas novas arenas de debate e formulação
de políticas18. Entretanto, a convocação da I Conferência Municipal da Mulher
proporcionou, além da eleição das representantes da sociedade civil para o Conselho
Municipal dos Direitos das Mulheres, a formação de uma rede de entidades
engajadas no trabalho para a superação da violência contra a mulher.

Uma das estratégias encontradas pela Rede de Enfrentamento à Violência


Contra a Mulher foi a manutenção de uma agenda anual. Dessa forma, há a
permanente mobilização das entidades envolvidas, no sentido de celebrar as vitórias
alcançadas e rememorar as etapas que ainda precisam ser superadas. No ano de
2007, por exemplo, três metas foram estabelecidas: a confecção de um guia de
enfrentamento à violência, a realização de uma jornada de estudos sobre a violência e
a luta pela implantação de uma delegacia especializada da mulher no município. A

16 MELUCCI, 1989, p. 62-63.


17 MELUCCI, 1989, p. 63, grifo no original.
18 CÔRTES, Soraya M.V. Viabilizando a participação em conselhos de política pública municipais:
arcabouço institucional, organização do movimento popular e policy communities. Paper
apresentado no XXVI Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, 2002.

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primeira e a segunda metas foram alcançadas em outubro e novembro,


respectivamente, enquanto a última permaneceu inalcançada, embora importantes
passos tenham sido dados em sua direção.

Entretanto, a percepção da relacionalidade da violência contra a mulher


coloca em questão a participação dos homens na luta por sua superação. Bourdieu
entende que “a força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa
justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se
enunciar em discursos que visem legitimá-la”19. A partir das inserções nas reuniões
da Rede, a ausência masculina tornou-se evidente. Esse fato esconde uma falsa
premissa de que a violência contra a mulher é uma questão que diz respeito apenas
às mulheres. Esse tipo de pensamento fomenta o antagonismo entre homens e
mulheres20.

Já é consenso entre os estudiosos das redes sociais que não apenas os


vínculos internos, mas também os vínculos externos estabelecidos entre os membros
de uma determinada rede entre si e com membros de outras redes são de extrema
importância para a mobilização de recursos entre setores subalternos. Ao contrário
das elites, que constituem círculos fechados de relacionamento, com o objetivo de
não dispersar seus capitais simbólicos e materiais, por exemplo, o sucesso de
movimentos sociais só é viável caso sua mobilização for aberta. Isso garantiria a
ampliação das oportunidades estruturais de tais grupos segregados.

As relações da rede

A partir da discussão teórica anteriormente apresentada, construímos a


seguinte problemática de pesquisa: a Rede de Enfrentamento à Violência contra a

19 BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 18.
20 SCOTT, 1992.

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Mulher constituiria uma rede egocentrada? Como o tipo de rede que se configura no
caso da Rede de Enfrentamento à Violência contra a Mulher influencia a sua prática?
Para procurar responder, adotamos, para este trabalho, o método de pesquisa
denominado «Análise de Redes Sociais». Propomos, a partir de uma abordagem
relacional, uma análise de redes sociais amparada na análise quali-quantitativa,
através da construção de sócio-gramas e matrizes que receberão tratamento
estatístico. Com a técnica “bola de neve”, conseguimos entrevistar os principais
atores sociais que participam da Rede de Enfrentamento à Violência contra a Mulher.
Então, formulamos um questionário semi-aberto a ser aplicado entre os membros da
rede. O roteiro de entrevista buscava principalmente:

• Traçar o perfil do membro da rede, através do levantamento de sua idade,

gênero, escolaridade e função exercida na entidade à qual pertencia;


• Histórico do vínculo entre representante-entidade e entidade-rede;

• Nível de participação tanto do representante quanto de sua entidade na

rede;
• Mapear quais os vínculos estabelecidos e quais não;

• Averiguar qual o nível de participação da rede em outras esferas, como a

intermunicipal, a estadual e a nacional;


• Averiguar qual a abrangência da divulgação das informações produzidas

pela rede para o restante da comunidade.

Durante as reuniões semanais da REVM, distribuímos os questionários entre


os membros presentes, pedindo que os mesmos respondessem os mesmos assim que
possível. Ao final de uma semana e meia recebemos cinco questionários dos oito
questionários entregues para os representantes das entidades-membro da Rede. Com
o objetivo de não ficarmos limitados às respostas formais dadas pelos membros ao
questionário, buscamos realizar uma pesquisa de campo nos eventos promovidos
pela REVM, para vermos nas práticas dos atores como as relações entre eles eram

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estabelecidas, como construíam seus vínculos, assim como se dava o fluxo de


informações entre os mesmos21.

Participamos da Jornada “Violências: vários olhares”, promovida pela Rede


de Enfrentamento à Violência contra a Mulher no dia 23 de novembro de 2007, na
antiga sede da UNISINOS, em São Leopoldo. Dois dias antes, no dia 21 de
novembro, também participamos em evento semelhante em Novo Hamburgo, cidade
a poucos quilômetros de São Leopoldo, intitulado “III Fórum Regional pelo Fim da
Violência à Mulher, Criança e Adolescente”22, promovido pela Coordenadoria
Municipal da Mulher (CMM) de Novo Hamburgo com o apoio do Centro
Universitário Feevale e da Unimed Vale dos Sinos. O evento reuniu representantes
da Rede de Atendimento e Apoio à Mulher de Novo Hamburgo (Pró-Mulher) e
estava inserido nas ações da CMM, que buscam a orientação e a capacitação da rede
por meio de reuniões de formação continuada. A rede é formada por membros de
delegacias, conselhos (Saúde, Idoso, Entorpecentes), entidades assistenciais, núcleos,
guarda municipal, Brigada Militar, técnicos em saúde e terapeutas, representantes de
Unidades Básicas de Saúde (UBSs) e das secretarias de Trabalho, Cidadania e
Assistência Social (Stcas), e de Saúde (Semsa), entre outros.

Reflexões finais

A hipótese central na qual este trabalho se amparava era a de que a Rede de


Enfrentamento à Violência contra a Mulher, dada a sua multiplicidade de atores e
rotatividade dos mesmos, não se constituiria numa rede egocentrada, mas
institucionalmente centrada. Ou seja, não possuindo entre seus membros uma figura

21 STEINER, Philippe. A sociologia econômica. São Paulo: Atlas, 2006.


22 FÓRUM Regional discute ferramentas para o fim da violência contra a mulher, criança e
adolescente. Disponível em:
<http://www.novohamburgo.rs.gov.br/index.php?language=&content=news&id=935>.Acesso
em 13 dez. 2007.

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carismática, no sentido weberiano, mas sim um forte enraizamento na sociedade


civil, a proeminência não seria de um líder carismático, mas das instituições ali
representadas, elas sim possuindo legitimidade para exercer o poder.

Decorrente deste perfil de rede, a REVM garantiria uma importante


característica política na luta contra a violência contra a mulher: por não ter um
caráter carismático, ela conseguiria se instituir enquanto uma rede “de Estado”, e não
clientelística, ou seja, promovendo os interesses comuns baseados nos princípios do
Estado de Direito e não nos interesses privados de um líder carismático ou nos
interesses políticos pessoais do seu grupo.

Trabalhamos também com a hipótese de que a Rede de Enfrentamento à


Violência contra a Mulher seria uma rede centrípeta e não centrífuga no que diz
respeito à divulgação da informação, já que, por ter enraizamento social profundo,
seria capaz de promover uma ampla circulação das informações àquelas mulheres
que sofrem violência. Tal circulação não garantiria apenas a denúncia, abrigagem das
vítimas em local seguro e julgamento dos casos de violência contra a mulher, mas
também a prevenção e sensibilização da comunidade em geral sobre a questão. Essas
hipóteses vêm se confirmando no decorrer da pesquisa. Ao mesmo tempo, apesar de
representar um grande avanço para a efetivação dos direitos das mulheres, a Rede
possuiria os seguintes limites:

• pequena interação com outras redes que tratam da mesma questão;

• pouca comunicação com outros níveis, como intermunicipal, estadual e

nacional.

Na continuidade da pesquisa, pretendemos avaliar as relações internas e as


trajetórias dos atores, a fim de identificar como os diferentes capitais estão
distribuídos. Além disso, procuraremos identificar relações de conflito e/ou tensões
que possam decorrer das diferentes posições ocupadas dentro desse espaço.

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Referências

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CÔRTES, Soraya M.V. Viabilizando a participação em conselhos de política pública


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Paper apresentado no XXVI Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, 2002.

COSTA, Sérgio. Categoria analítica ou passe-partout político-normativo: notas bibliográficas


sobre o conceito de sociedade civil. Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais, n. 43,
jan./jul. 1997a, p. 3-25.

COSTA, Sérgio. Esfera pública, sociedade civil e movimentos sociais no Brasil. Novos Estudos,
n. 38, 1994.

COSTA, Sérgio. Movimentos sociais, democratização e a construção de esferas públicas


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FÓRUM Regional discute ferramentas para o fim da violência contra a mulher, criança e
adolescente. Disponível em:
<http://www.novohamburgo.rs.gov.br/index.php?language=&content=news&id=935>.
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MATOS, Maria I. S. Por uma história das sensibilidades: em foco – a masculinidade. História:
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MELUCCI, Alberto. “Um objetivo para os movimentos sociais?” Lua nova. São Paulo:
CEDEC, n. 17, jun. 1989.

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STEINER, Philippe. A sociologia econômica. São Paulo: Atlas, 2006.

von HALDENWANG, Christian. Governanza sistémica y desarrollo en América Latina.


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Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 85


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A eternização do arbitrário cultural masculino: apontamentos


sobre a obra A Dominação Masculina de Pierre Bourdieu

Por Felipe Gustavo Koch Buttelli*

Leitura de:

BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. Do
original La Domination Masculine, 1998.

Introdução

A obra A Dominação Masculina é certamente uma das mais conhecidas de


Pierre Bourdieu. Baseada em sua pesquisa etnográfica entre os Cabilas do norte da
África, sua atenção não pôde deixar de concentrar-se nas relações de gênero.
Segundo o próprio autor, sua suspeita é de que aquela tradição carrega intensamente
o que poderia se chamar de inconsciente das sociedades mediterrâneas. Ainda que
também neste contexto a diversidade cultural, típica da era da globalização, e os
processos de modernização tenham deixado suas marcas, para Bourdieu, é possível
encontrar muitas explicações sobre o inconsciente – já um tanto camuflado – das
sociedades da Europa Central e, por conseqüência da sua história colonizadora, de
boa parte da sociedade ocidental.

Os resultados desta pesquisa serviram de base para diversas obras de


Bourdieu. Embora fosse tema recorrente em sua pesquisa na Cabilia, a dominação

* Teólogo protestante brasileiro, atualmente faz mestrado em teologia no Programa de Pós-


Graduação das Faculdades EST, em São Leopoldo /RS, com apoio do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Sua pesquisa aborda o tema da liturgia sob a
perspectiva de Gênero, Teologia e Antropologia/Sociologia.

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masculina, até 1998, só havia sido tangenciada por artigos pequenos. No entanto, esta
sua reflexão – ainda que rápida e incompleta – contribuiu bastante para a discussão
que se desenvolveu desde os anos 60, sobretudo na ordem do movimento feminista.
Bourdieu teve ampla receptividade, tanto que alguns conceitos que apresentava para
descrever o processo de dominação masculina tornaram-se senso comum, tais como
habitus, incorporação da dominação, etc. Suas teses foram logo bastante questionadas
e criticadas, principalmente pelo seu caráter supostamente determinista. Também a
compreensão de Bourdieu sobre a ineficácia do trabalho de conscientização foi
rechaçada.

Não pudera ser diferente. A reflexão feminista era (e ainda é) fortemente


engajada e o conceito de conscientização tornava-se importante na prática de
mulheres que procuravam a libertação das estruturas androcêntricas. Este trajeto de
negação de um determinismo social e de exaltação da prática conscientizadora é
justificável, visto que nas batalhas cotidianas para criar um espaço novo para as
mulheres, lidar com este entrave epistemológico seria demasiadamente penoso e
desmobilizante.

Ao retomar a discussão em 1998, ampliando-a, atualizando-a e respondendo


a críticas, Bourdieu ressalta que o trabalho de feministas trouxe muitos frutos
positivos para a organização social, abrindo novos espaços e frontes de atuação para
mulheres que ainda não existiam. No entanto, sua contribuição é reafirmada. Ele
percebe que a abertura para as mulheres do espaço público não representou uma
equalização nas relações de gênero. O processo de diferenciação entre homens e
mulheres se deslocou, atuando muito mais na apreciação do valor da atividade
masculina e feminina. Em poucas palavras, a forma de organização social
androcêntrica permanece.

É baseado nesta constatação que ele parte para demonstrar que a mudança
social, que gere igualdade nas relações de gênero, deve partir das instituições que

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produzem e reproduzem o imaginário androcêntrico – família, escola, Igreja e


Estado. Este imaginário continuamente se reforça, criando nos corpos e nas mentes
de homens e mulheres disposições permanentes para perceber a dominação
masculina como algo naturalmente justificável. Para esta importante tarefa, ainda não
plenamente (ou apenas superficialmente) realizada, que Bourdieu se dedica nesta
obra e em muitas outras, como em A reprodução, onde se reflete o papel da escola na
produção de uma ordem elitista dominante.

A Dominação Masculina deve, portanto, fazer parte das leituras daquelas e


daqueles que visam desmistificar os processos que nos enclausuram em papéis
sexuais fixos, papéis estes que são tão pesados para os homens, mas muito mais
pesados para as mulheres.

A Obra

O foco de atuação da análise de Pierre Bourdieu – e ele mencionaria, do


empenho feminista – deveria ser modificado do lugar no qual inicialmente aparenta
estar para outros lugares, ou seja, da esfera das relações domésticas, embora este foco
ainda seja demasiado importante, para uma focagem que perceba a construção das
relações de dominação na esfera pública e social. Esta seria composta por instituições
capazes de eternizar o arbitrário cultural da dominação androcêntrica: a família, a
escola, o Estado e a Igreja.

Em Uma Imagem Ampliada, Bourdieu apresenta sua tese fundamental sobre o


complexo processo através do qual homem e mulher são arbitrariamente
diferenciados. Após haver construído sua tese (para a qual se reservará aqui maior
espaço) baseado nos cabilas, em Anamnese das constantes ocultas, Bourdieu procura
resquícios desta cultura – propriamente mediterrânea – na sociedade européia. Em
Permanências e Mudanças, Bourdieu já apresenta uma análise crítica da sociedade

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hodierna, vislumbrando encontrar onde houve mudanças perceptíveis em relação a


uma sociedade tradicionalmente androcêntrica e onde pode-se afirmar continuarem
os processos de diferenciação, negativos para mulheres e positivos para homens.

Uma imagem ampliada

Para Pierre Bourdieu, a dominação masculina pode ser compreendida como


tendo sustentação em uma divisão arbitrária entre homens e mulheres. Esta divisão é
concebida através de oposições binárias, que classificam uns e outros segundo
adjetivos opostos, sendo reservados os positivos a homens e os negativos a mulheres,
como, por exemplo: alto-baixo, reto-curvo, seco-úmido, etc. respectivamente (ver
tabela em BOURDIEU, 1998, p. 19). Esta maneira de se classificar (taxinomia) homens
e mulheres, a partir de um esquema de oposições binárias, é o princípio de um
trabalho de construção social dos corpos, que visa tornar verdadeira – fatídica – a
divisão arbitrária que o próprio esquema de pensamento dominante formula.

Esses esquemas de pensamento, de aplicação universal, registram


como que diferenças de natureza, inscritas na objetividade, das
variações e dos traços distintivos (por exemplo em matéria corporal)
que eles contribuem para fazer existir, ao mesmo tempo que as
naturalizam, inscrevendo-as em um sistema de diferenças, todas
igualmente naturais em aparência; de modo que as previsões que eles
engendram são incessantemente confirmadas pelo curso do mundo,
sobretudo por todos os ciclos biológicos e cósmicos. (BOURDIEU,
1998, p. 16).

Nesta passagem, Bourdieu apresenta como as oposições homólogas, em


verdade, não percebem divisões pretensamente naturais que existem na ordem das
coisas, mas categorizam, ou produzem, arbitrariamente estas oposições, ou seja,
criam uma diferença natural. Este processo faz uso de características físicas existentes
no plano biológico. No entanto, faz uso dele, quase como um apoio, no qual
fundamenta uma diferença que é construção social. Assim, as diferenças sociais

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parecem fundamentadas em diferenças biológicas, quando na verdade elas


(diferenças sociais) são capazes de criar cognocitivamente categorias de percepção
que geram esta impressão. Seu argumento se concentra, então, em afirmar que o
biológico é criação do social.

Dado o fato de que é o princípio de visão social que constrói a


diferença anatômica e que é esta diferença socialmente construída
que se torna o fundamento e a caução aparentemente natural da visão
social que a alicerça, caímos em uma relação circular que encerra o
pensamento na evidência de relações de dominação inscritas ao
mesmo tempo na objetividade, sob a forma de divisões objetivas, e na
subjetividade, sob forma de esquemas cognitivos que, organizados
segundo essas divisões, organizam a percepção das divisões
objetivas. (BOURDIEU, 1998, p. 20).

Em seqüência, Bourdieu atenta para a circularidade deste processo de criação


da realidade social e biológica, que é o fundamento das relações de dominação,
inclusive – e neste trabalho sua maior preocupação – das relações entre os sexos. A
lógica da dominação já está presente no trabalho de construção social do biológico, o
que faz parecer que toda dominação seja justificada por ser verificável no plano
biológico (que é construto social). Sendo assim, a lógica da dominação é
desconhecida, não aparece nos discursos sobre a realidade social ou biológica, pois se
encontra na gênese do processo. Pelo fato deste ser cíclico, a ordem social e biológica
sempre tende a reforçar a lógica da dominação que as constitui. (BOURDIEU, 1998, p.
32).

Se a relação sexual se mostra como uma relação social de dominação,


é porque ela está construída através do princípio de divisão
fundamental entre o masculino, ativo, e o feminino, passivo, e porque
este princípio cria, organiza, expressa e dirige o desejo – o desejo
masculino como desejo de posse, como dominação erotizada, e o
desejo feminino como desejo de dominação masculina, como
subordinação erotizada, ou mesmo, em última instância, como
reconhecimento erotizado da dominação. (BOURDIEU, 1998, p. 31).

Seguindo adiante no que se refere à construção social dos corpos – este


arbitrário cultural que sofre o processo de naturalização, fazendo parecer que os

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corpos são o fundamento da diferença social entre homens e mulheres, quando na


verdade os corpos, como os percebemos, já carregam as insígnias dos preconceitos
sociais favoráveis aos homens e desfavoráveis às mulheres – Bourdieu menciona que
ela (a construção social dos corpos) atinge homens e mulheres nas suas práticas
cotidianas. Assim, o processo de oposições homólogas está presente na maneira com
que mulheres e homens lidam com o seu corpo, pertencendo o homem a um espaço
que não cabe à mulher e vice-versa. Há apreciação positiva para as tarefas, lugares e
comportamentos masculinos, enquanto, aos comportamentos, tarefas e práticas
femininas se reserva uma apreciação negativa. Para Bourdieu, esta maneira de
relacionar-se se impõe também à vida sexual, ou, como ele chama, à divisão do
trabalho sexual. O comentário acima expõe aquilo que ele compreende como parte
do processo de construção dos corpos. O princípio de divisão social que naturaliza as
diferenças, corporifica-se no homem a tal ponto de criar nele o próprio desejo pela
dominação, enquanto que na mulher – a qual, por causa deste processo vicioso e
inconsciente, contribui para sua dominação – existe o desejo e o prazer, como de
quem realiza sua vocação, em ser dominada e subordinar-se, até mesmo em nível
sexual, à agressão de ser possuída, violentada, dominada. Não sem críticas
permanece esta postura de Bourdieu, sobretudo pelo trabalho de feministas.

Bourdieu reconhece que essencial neste trajeto de construção dos corpos é a


maneira como acontece a “somatização das relações sociais de dominação”, ou a
“incorporação da dominação”. A partir das oposições homólogas (alto-baixo, reto-
curvo, fora-dentro, etc.), formam-se categorias de percepção que projetam sobre o
corpo (biológico) as categorizações dos dominantes, formando-os em corpos sociais
(ainda que se queira considerá-los naturais) que já carregam de antemão as insígnias
distintivas que estabelecem funções, lugares, posturas sociais diferenciadas para
homens e mulheres. Indo um pouco além na sua reflexão, ele menciona que há duas
operações imprescindíveis nesta sociodicéia masculina: “ela legitima uma relação de

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dominação inscrevendo-a em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela uma
própria construção social naturalizada” (BOURDIEU, 1998, p. 33).

O trabalho de construção simbólica não se reduz a uma operação


estritamente performativa de nominação que oriente e estruture as
representações, a começar pelas representações do corpo (o que ainda
não é nada); ele se completa e se realiza em uma transformação
profunda e duradoura dos corpos (e dos cérebros), isto é, em um
trabalho e por um trabalho de construção prática, que impõe uma
definição diferencial dos usos legítimos dos corpos, sobretudo os
sexuais, e tende a excluir do universo do pensável e do factível tudo
que caracteriza pertencer ao outro gênero – e em particular todas as
virtualidades biologicamente inscritas no “perverso polimorfo” que,
se dermos crédito a Freud, toda a criança é – para produzir este
artefato social que é um homem viril ou uma mulher feminina.
(BOURDIEU, 1998, p. 33).

Este processo de construção duradoura dos corpos de homens e mulheres,


suportes das diferenças que geram, respectivamente, destino social positivo e destino
social negativo, e a somatização destas diferenças e de seus efeitos nos corpos não
surge da noite para o dia. Não é através de um rito apenas que um homem se torna
homem conforme os padrões de determinada sociedade, muito embora os ritos de
instituição tenham um imenso poder de diferenciação e sejam simbolicamente muito
eficazes. O trabalho de construção da realidade simbólica é um trabalho sutil e
imperceptível de criação simbólica das categorias de percepção social do mundo. É
um trabalho de inculcação longo e duradouro que possibilita a construção de um
habitus adaptado à visão de mundo dominante – isto é, androcêntrica. Assim, ao se
fixarem nos corpos, já que esta construção simbólica efetivamente se somatiza, as
relações entre homens e mulheres só podem ser de conhecimento e reconhecimento
tácito e automático da legitimidade do exercício do poder de um sobre o outro.

Portanto, o comportamento prático dos corpos está inalienavelmente


condicionado a todo processo simbólico de criação da diferença social – tornada
auto-evidente, natural, percebida como inquestionável pelo senso comum. Assim, a
maneira de postar-se, de exibir seu corpo, de andar em público, de relacionar-se com

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pessoas de outro sexo, sobretudo para as mulheres, está condicionada a reproduzir o


valor simbólico que a doxa, o discurso dominante e androcêntrico, lhes atribui:

A educação elementar tende a inculcar maneiras de postar todo o


corpo, ou tal ou qual de suas partes (a mão direita, masculina, ou a
mão esquerda, feminina), a maneira de andar, de erguer a cabeça ou
os olhos, de olhar de frente, nos olhos, ou, pelo contrário, abaixá-los
para os pés etc., maneiras que estão prenhes de uma ética, de uma
política e de uma cosmologia (...) (BOURDIEU, 1998, p. 38).

Tendo compreendido como acontece a construção social dos corpos, que


biologiza ou naturaliza a visão dominante androcêntrica, e como que esta construção é
incorporada ou somatizada, inscrevendo nos corpos estruturas de percepção do
mundo social que diferenciam homens e mulheres (em nível de compreensão do
mundo e de prática) a partir de um sistema de oposições homólogas, na qual ao
homem cabem as categorias positivas e à mulher as negativas, Bourdieu parte para a
explicação daquilo que ele entende como sendo a maneira através da qual estes dois
processos ocorrem: a violência simbólica.

Para Bourdieu, a construção social de homens e mulheres – que se incorpora,


de fato, fazendo parecer que é natural esta maneira de concebê-los – está fundada na
ordem simbólica (BOURDIEU, 1998, p. 45). Esta ordem simbólica é conhecida e
reconhecida, aceita em forma de crença, de adesão dóxica, ou seja, irrefletida, não
carece comprovação, não tem que ser pensada ou afirmada como tal, pois o habitus
de homens e mulheres está condicionado a perceber o mundo somente a partir das
categorias de percepção que esta ordem simbólica imputa.

Para fazer melhor compreendido o que Bourdieu entende por simbólico, ele
mostra justamente aquilo que não é sua compreensão de simbólico, rebatendo críticas
e más compreensões vinculadas à sua tese. Para Bourdieu, violência simbólica não
minimiza a violência física e não quer desvirtuar a importante discussão sobre
violência doméstica. A violência simbólica é o fundamento, aquilo que justifica a
agressão – no sentido de oferecer razões para que homens possam arrogar-se a

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prerrogativa de tornarem-se agressores. Violência simbólica não é irreal, não efetiva,


ou como ele expressa, “espiritual”, e, por isso, desvendá-la é importante para
compreender a “objetividade da experiência subjetiva das relações de dominação”
(BOURDIEU, 1998, p. 46).

Outra crítica seria aquela, sobretudo das feministas, de que Bourdieu


eternizaria a condição submissa das mulheres. Ele procura evidenciar, portanto, que:

[...] longe de afirmar que as estruturas de dominação são a-históricas,


eu tentarei, pelo contrário, comprovar que elas são produtos de um
trabalho incessante (e, como tal, histórico) de reprodução, para o qual
contribuem agentes específicos [...] e instituições, famílias, Igreja,
Escola, Estado. (BOURDIEU, 1998, p. 46).

E é justamente porque percebe a contribuição de agentes específicos


(individualidade) e de instituições (coletivo social) na imposição de uma dominação,
fundamentada numa ordem simbólica dominante, que Bourdieu não cai no
alternativismo entre a coerção mecânica (que seria a imposição social sobre o
indivíduo) e a submissão voluntária (escolha individual, livre, deliberada ou
calculada). Seus críticos o acusam, ora de pender para um lado, ora para outro pelo
fato de não haverem percebido que:

O efeito da dominação simbólica (seja ela de etnia, de gênero, de


cultura, de língua etc.) se exerce não na lógica pura das consciências
cognoscentes, mas através dos esquemas de percepção, de avaliação e
de ação que são constitutivos dos habitus e que fundamentam, aquém
das decisões da consciência e dos controles da vontade, uma relação
de conhecimento profundamente obscura a ela mesma. (BOURDIEU,
1998, p. 49s.).

A dominação é, portanto, espontânea e extorquida. Por isso, ele é alvo de


críticas daqueles que acreditam ser possível reverter o quadro de dominação
chamando os dominados para um exercício de conscientização. Segundo sua tese, a
tomada de consciência não surte efeito automaticamente, já que a dominação está
alicerçada no mais profundo dos corpos que foram expostos duradouramente a um

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processo de construção de categorias de percepção. Pode-se dizer que, da mesma


maneira que a construção de um habitus fundamentado na visão dominante
androcêntrica requer um intenso e longo trabalho, o trabalho de conscientização
também requer um intenso exercício de reconstrução das categorias de percepção e,
portanto, de julgamento do mundo social. Sobre isso, Bourdieu afirma: “se é
totalmente ilusório crer que a violência simbólica pode ser vencida apenas com as
armas da consciência e da vontade, é porque os efeitos e as condições de sua eficácia
estão duradouramente inscritas no mais íntimo dos corpos sob a forma de
predisposições (aptidões, inclinações)” (BOURDIEU, 1998, p. 51).

Tendo em vista a ineficácia deste trabalho de conscientização, Bourdieu


aponta para aquilo que ele chama de revolução simbólica como um caminho de
reversão do processo de dominação. Esta revolução consistiria em modificar as
“condições sociais de produção” dos discursos, aos quais são expostos
duradouramente dominantes e dominados, fazendo uso das instituições produtoras
e reprodutoras do discurso de dominação (família, escola, Estado e Igreja).

Quanto às categorias de dominantes e dominados, Bourdieu ressalta que são


categorias imputadas tanto a homens quanto a mulheres. Não há necessidade de se
dissertar a respeito da condição dos dominados (mulheres) como uma condição
negativa, apreciada como menos valorosa. Muito embora esta classificação nem
sempre seja automaticamente reconhecida como um fardo – há mulheres até hoje que
prefeririam não viver em uma época de liberação feminina, achando mais
interessante permanecer com os espaços e as tarefas que tradicionalmente eram
atribuídas a elas. No entanto, até isso é fruto da dominação. Contudo, Bourdieu se
empenha em demonstrar que a virilidade e a violência, como destinos impreteríveis
para os homens, não devem ser sempre considerados privilégios. Por vezes, o peso a
se pagar para tornar-se um homem “verdadeiramente homem” é bastante elevado.

O privilégio masculino é também uma cilada e encontra sua


contrapartida na tensão e contensão permanentes, levadas por vezes

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ao absurdo, que impõe a todo o homem o dever de afirmar, em toda e


qualquer circunstância, sua virilidade [...] A virilidade, como se vê, é
uma noção eminentemente relacional, construída diante dos outros
homens, para os outros homens e contra a feminilidade, por uma
espécie de medo do feminino, e construída, primeiramente, dentro de
si mesmo. (BOURDIEU, 1998, p. 64 e 67).

Anamnese das constantes ocultas

Após haver exposto sua tese principal a respeito de como acontece o


processo que resulta em relações sociais de dominação masculina, baseada,
sobretudo, em sua análise etnográfica da Cabilia, Bourdieu procura compreender de
que maneira as características apresentadas neste esboço teórico estão presentes,
ainda que em um nível profundamente inconsciente, nas sociedades ocidentais ditas
“desenvolvidas”. Como principal argumento para tal, o autor menciona que ao haver
qualquer tipo de identificação ou familiarização com os conceitos apresentados, ou
com as categorias que compõem as estruturas de oposições binárias, percebe-se que
esta cosmovisão (em princípio cabila) também deve estar arraigada em um
inconsciente social nas sociedades ocidentais.

A despeito de todo empenho feminista e de todos os resultados dele


advindos – como o maior acesso a mulheres a posições ou espaços sociais
tradicionalmente masculinos – Bourdieu argumenta que há uma tendência de
diferenciação entre o valor de tarefas efetuadas por homens ou mulheres, ainda que
sejam as mesmas. Para ele, isto se dá porque a masculinidade como nobreza é uma
baliza para compreender a valoração das atividades masculinas e femininas. “[...]
como nos faz lembrar a diferença entre um cozinheiro e uma cozinheira, entre o
costureiro e a costureira; basta que os homens assumam tarefas reputadas femininas
e as realizem fora da esfera privada para que elas se vejam com isso enobrecidas e
transfiguradas.” (BOURDIEU, 1998, p. 75).

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E quanto ao processo de socialização, através do qual acontece a criação de


um homem masculino e de uma mulher feminina, Bourdieu considera claramente
perceptíveis mecanismos que estabeleçam funções e valores diferenciados a mulheres
e homens, atingindo-os em seus corpos, conformando-lhes segundo regras tácitas
daquilo que é permitido fazer e do que não o é.

[...] se apresentam como coisas a serem feitas, ou que não podem ser
feitas, naturais ou impensáveis, normais ou extraordinárias, para tal
ou qual categoria, isto é, particularmente para um homem ou para uma
mulher (e de tal ou qual condição). As “expectativas coletivas”, como
diria Marcel Mauss, ou as “potencialidades objetivas”, na expressão
de Max Weber, que os agentes sociais descobrem a todo instante,
nada têm de abstrato, nem de teórico [...] (BOURDIEU, 1998, p. 72)

Bourdieu considera que o apreço, a valoração e a visão que se tem do próprio


corpo são elementos que deflagram a existência de uma diferenciação entre homem e
mulher na sociedade hodierna. Para ele, o ser feminino é sempre ser percebido.

A dominação masculina, que constitui as mulheres como objetos


simbólicos, cujo ser (esse) é um ser-percebido (percipi), tem por efeito
colocá-las em permanente estado de insegurança corporal, ou melhor,
de dependência simbólica: elas existem primeiro pelo, e para, o olhar
dos outros, ou seja, enquanto objetos receptivos, atraentes,
disponíveis. Delas se espera que sejam “femininas”, isto é,
sorridentes, simpáticas, atenciosas, submissas, discretas, contidas ou
até mesmo apagadas. E a pretensa “feminilidade” muitas vezes não é
mais que uma forma de aquiescência em relação às expectativas
masculinas, reais ou supostas, principalmente em termos de
engrandecimento do ego. Em conseqüência, a dependência em
relação aos outros (e não só aos homens) tende a se tornar
constitutiva de seu ser. (BOURDIEU, 1998, p. 82).

No que diz respeito à maneira de como as mulheres vêm os homens,


Bourdieu elabora uma análise sobre a obra da romancista Virginia Woolf Passeio ao
Farol. Diferente da visão que o homem projeta à mulher, a qual ela aceita e incorpora,
manifestando-a na maneira de apreciar seu próprio corpo, a visão feminina da visão
masculina se caracteriza pela lucidez. Ao analisar um casal de personagens,
Bourdieu compreende que o homem é um ser socializado para aderir aos jogos que

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constituem a vida social. Jogos estes que são depositários de poder simbólico e que,
portanto, são indispensáveis para a vida social. Nestes jogos o homem exercita sua
libido dominandi. Neles o homem deve confirmar toda a expectativa que se lançou
sobre a criança. Por isso, ser homem – para Bourdieu – é sempre ser criança,
procurando através dos jogos infantis (tais como a política, a guerra e muitas outras
discussões tipicamente masculinas) tornar-se aquilo que dele se espera.

A mulher é socializada para assistir a estes jogos de fora. Ela não compartilha
da gravidade que parece tão urgente nestes jogos. As mulheres são cúmplices dos
homens nestes jogos (quando não são moedas de troca, como nas páginas 55 e
seguintes – a economia dos bens simbólicos). No entanto, elas são também lúcidas e
sabem que o valor da existência não está na confirmação da masculinidade
vencedora dos jogos sociais. Elas compartilham da lucidez dos dominados que, muito
embora sofram as sanções sociais destes jogos, sabem que é apenas um jogo de
confirmação ou não das expectativas e dos desejos sociais impostos aos homens e que
se tornam de fato desejo por poder.

Permanências e Mudanças

Neste encaminhamento final de sua obra, Bourdieu propõe-se a refletir, após


haver dissertado sobre a atualidade de sua tese também na sociedade ocidental,
sobre aspectos que proporcionam mudanças ou que as impedem na forma atual de
organização social. Para Bourdieu, o trabalho de construção de dominação masculina
é um trajeto de eternização da História. Para ele, os pressupostos de uma cultura
androcêntrica – como já afirmara na primeira parte do texto – são eternizados pela
história. Para reverter este quadro, seria necessário um trabalho histórico de des-
historicização. Isto consistiria em não somente perceber na história que as mulheres
ocuparam posições de menor valor, mas de desconstruir e desvendar os motivos
pelos quais elas ocupavam este espaço e os homens mantinham o privilégio. Seria

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necessário um trabalho histórico engajado, que não apenas constata, mas milita em
favor da desconstrução destes pressupostos androcêntricos.

Este trabalho de reconstrução da “história das mulheres” necessitaria


impreterivelmente de uma análise sobre os “agentes e instituições” responsáveis pela
produção e reprodução dos pressupostos da cultura androcêntrica, estes que agem
na masculinização do homem e na feminização das mulheres em todos os tempos e
lugares. Seu foco de análise – embora ele não parta para o trabalho de desconstrução
– são as instituições que constituem a visão de família patriarcal e paternalista, como
a Igreja, a família, o Estado e a escola. Para Bourdieu, estas instituições se entrelaçam
e confirmam umas às outra em seu trabalho de construção de gênero.

Ao perceber fatores de mudanças que aconteceram no último século,


sobretudo aquelas motivadas pelo movimento feminista, Bourdieu não deixa de
considerar os imensos progressos que ocorreram, sobretudo no acesso das mulheres
à educação secundária e acadêmica (universitária). Ele considera essencial para que
isso tenha acontecido uma mudança da constituição das famílias que,
sistematicamente, adiaram o casamento e reservaram pra si menos filhos. O acesso
da mulher ao trabalho em ambiente público (saindo de casa) colaborou pra isso. No
entanto, a despeito de todo o progresso que houve no sentido de democratizar mais o
acesso das mulheres a estes locais e a estas funções, antes estritamente masculinos,
Bourdieu assinala que a diferenciação entre masculino e feminino continua
acontecendo:

Enfim, as próprias mudanças da condição feminina obedecem sempre


à lógica do modelo tradicional entre o masculino e o feminino. Os
homens continuam a dominar o espaço público e a área de poder
(sobretudo econômico, sobre a produção), ao passo que as mulheres
ficam destinadas (predominantemente) ao espaço privado
(doméstico, lugar de reprodução) em que se perpetua a lógica da
economia de bens simbólicos, ou a essas espécies de extensões deste
espaço, que são os serviços sociais (sobretudo hospitalares) e
educativos, ou então aos universos da produção simbólica (áreas
literária e artística, jornalismo, etc.). (BOURDIEU,1998, p. 112)

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Se é possível constatar o maior acesso das mulheres a um ambiente até então


restrito a homens, como pode Bourdieu afirmar que esta separação entre o masculino
e feminino ainda ocorre? Isto se torna particularmente evidente pelo fato de que o
acesso das mulheres ao espaço público ocorre majoritariamente nas áreas de trabalho
relacionadas com o ensino, com o cuidado e com o serviço – o que evidencia a sua
permanência em funções relacionadas ao trabalho doméstico, de cuidado e de
educação primária (socialização). O trabalho das mulheres continua assim situado no
âmbito da reprodução da ordem masculina e impregnado pelo caráter da
voluntariedade, típico do papel das mulheres na visão androcêntrica (BOURDIEU,
1998, p. 112). Para ele, a mulher ainda permanece subordinada ao homem quanto às
posições de autoridade e de hierarquia e ao homem ainda se reservam
prioritariamente as posições que exigem conhecimento técnico e específico, enquanto
às mulheres cabem os postos que carecem uma formação mais generalizada. O
argumento principal (o qual vê-se no tópico masculinidade como nobreza, nas
páginas 71 e seguintes) é de que quando as mulheres acessam profissões masculinas
elas (as profissões) automaticamente se desvalorizam, sendo o inverso também
verdadeiro.

Bourdieu situa a mulher, ainda hoje, como personagem importante dentro do


mercado de bens simbólicos, sendo elas astutas nas estratégias de reprodução do
capital simbólico e social. Ainda que de maneira diferente daquela retratada na
tradição cabila, na qual as mulheres eram objetos de trocas simbólicas entre homens,
para Bourdieu, na sociedade atual, as mulheres preservam, no ambiente público
(sobretudo empresarial) e doméstico, a tarefa de serem responsáveis por manter a
empresa, por exemplo, ou seus filhos e o próprio marido (e ela mesma,
evidentemente) esteticamente apresentáveis, de maneira que demonstrem as
insígnias de distinção social da família, ou do meio de trabalho, e adquiram maior
projeção simbólica e social.

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Apontamentos finais e críticos sobre a obra

Ao encaminhar sua reflexão para o final, Bourdieu ainda procura reafirmar a


sua idéia, muito marcante em todas suas obras, e pela qual foi bastante criticado, de
que a força da estrutura ainda opera fortemente, mesmo em uma sociedade
caracterizada como “pós-moderna”, na qual o indivíduo estaria pretensamente livre
dos dualismos estruturais determinantes, podendo fazer valer aquilo que Bourdieu
chama de ilusão da autonomia do indivíduo. Para ele, pelo fato de haverem sido criadas
duradouras disposições para perceber o mundo como ele se apresenta, a autonomia
em relação às dualidades que diferenciam homens e mulheres é uma tentativa de
achar que, pelo simples fato de escolher ou desejar ser livre delas, o ser humano
moderno pode alterar uma realidade, bastante camuflada, de dominação masculina.

No entanto, como post-scriptum, Bourdieu procura oferecer uma saída para


este determinismo, postulando a tese de que o amor seria capaz de sensibilizar
homens e mulheres a criarem uma realidade social distante dos diversos exercícios
de dominação cotidianos.

Esta opção parece ter sido uma escolha fácil do autor para um problema que
ele mesmo criou. Ou talvez tenha sido uma resposta fácil àqueles que não
conseguiam se convencer da sua tese de que somente um intenso trabalho de
revolução simbólica, que incidisse sobre as instituições que produzem e reproduzem
maneiras de ser, poderia, lentamente, reverter uma realidade social que, cada vez
mais atenuada, continua sustentada por uma visão de mundo androcêntrica.
Bourdieu não necessita “pedir desculpas” por criticar. Seu próprio trabalho de
desconstrução crítica já parece estar prenhe de um amor por uma futuridade livre do
domínio cultural, simbólico, social e econômico de uma elite que não se constitui por
mérito nem por vontade divina, mas por herança. É na procura por demonstrar esta
herança e tentar desconstruí-la enquanto valor aceito universalmente para atribuir
destino positivo a uns e negativo a outros que reside o mérito de Bourdieu.

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Como citar esta revista

Como citar esta revista:

Protestantismo em Revista. São Leopoldo, v. 14, set.-dez. 2007. ISSN 1678 6408 Disponível em:
<http://www3.est.edu.br/nepp/revista/014/ano06n3.pdf> Acesso em: 30/05/2008

Como citar um artigo desta revista:

(Exemplo)

BUTTELLI, Felipe Gustavo Koch. Bourdieu e o Culto Cristão: relatos de uma observação.
Protestantismo em Revista. São Leopoldo, v. 14, set.-dez 2007, p. 44-66. ISSN 1678 6408. Disponível em:
<http://www3.est.edu.br/nepp/revista/014/ano06n3.pdf> Acesso em: 30/05/2008.

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 102

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