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Sentia o passeio me pisar a cada passo.

Não sei há quantas horas andava, nem tão pouco


sei se me deslocava. Poderiam ser as ruas que ultrapassavam o meu corpo imóvel, umas
atrás das outras. Os pensamentos, banda sonora da minha realidade, eram céleres e
numerosos em demasia para a minha consciência. Desconfio que a incapacidade de lidar
comigo mesmo estaria a materializar-se algures no meu aspecto ou movimento, tendo em
conta a quantidade de olhos que me caiam. Eu ignorava esses olhares incertos de peões,
que cumpriam a sua tarefa de andar sem alaridos pelo passeio, com a leveza de quem sabe
que é uma questão de tempo até todos estarmos mortos!

"​Toda esta merda, problemas causados pelo tamanho da mente! Mas foda-se, não tenho
tido tempo nenhum, tenho tido tanto que fazer...​"

Aproximei-me do afastamento, necessário para exigir à rua que parasse de me percorrer.


Tinha chegado ao destino. Uma porta de madeira gasta separava a barbearia do resto da
existência. Entrei. Covil pequeno, pintado de infiltrações e pouca iluminação. O velho
barbeiro encontrava-se curvado com a navalha na mão. Concentrado no corte da mente do
cliente sentado à sua frente, assinalou a minha entrada apenas com um fugaz olhar.
Aguardou até que eu me sentasse para parar momentaneamente o corte e me olhar
fixamente. "Boa tarde. Então diga lá que memórias quer que lhe corte hoje?"; perguntou-me
com uma voz áspera e um sorriso sombrio. A senhora que se encontrava ao meu lado à
espera da sua vez riu-se (baixinho, para não quebrar muito o melancólico silêncio do local)
e se o cliente com a mente a ser cortada estivesse consciente também se teria rido. Já eu,
tinha a mente demasiado grande para conseguir no imediato enquadrar bem a frase. Ri-me
apenas por cortesia. O velho barbeiro manteve um grande e enrugado sorriso ao longo do
momento que se destinou à apreciação da sua humorística frase. Quando o momento
morreu, encolheu os lábios e relaxou a face até ao ponto da inexpressividade, virou-se para
o cliente e prosseguiu com o trabalho. Mais tarde percebi que a pergunta era uma piada do
velho sobre o seu ofício, afogada de sarcasmo e alguma crueldade. A efectividade da
lâmina estava justamente no desconhecimento dos seus efeitos. Não sabia que conteúdos,
formas ou memórias me iriam ser cortadas para cair ao chão que nem cabelo e barba.
Afinal de contas, se recordar o que esqueci, voltará tudo ao mesmo. Há que simplesmente
confiar na lâmina do barbeiro e na capacidade da mente de se reajustar às talhadas.

Continuava preso, a não perceber se eu estava ali ou se o ali estava em mim. E odiava a
ideia de não saber que partes minhas iriam parar ao caixote do lixo. Cortar a mente não é
propriamente uma obrigação que me encha com prazer mas era facto que já a tinha
demasiado grande. Tentarei não voltar a procrastinar o seu corte. Sei desde pequeno que
ter a mente grande é fonte de problemas. Prometo não voltar a deixar crescer até ao ponto
em que a mente cai sobre os olhos e eu deixo de distinguir o que é real do que é imaginado.

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