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A Poesia e os Deuses

H.P. Lovecraft & Anna Helen Crofts

Era uma úmida e sombria noite de abril, logo após


o fim da Grande Guerra, quando Márcia se descobriu
sozinha com estranhos pensamentos e desejos, anseios
inconfessáveis que pairavam no espaçoso escritório do
século XX, para fora nas profundezas do ar, e para oeste,
nos olivais distantes da Arcádia1 que ela vira apenas em
sonhos. Entrara no quarto em abstrações, desligara os
candelabros brilhantes, e agora reclinava-se em um divã
confortável ao lado de uma lâmpada solitária que
derramava sobre a mesa de leitura um brilho verde tão
tranqüilizante quando o luar quando passava pela
folhagem cercando um antigo altar.
Vestida com simplicidade em um vestido curto de
dormir, por fora ela parecia um produto típico da
civilização moderna; mas aquela noite ela sentia o golfo
imensurável que separava sua alma de todo o prosaico
que a cercava. Seria por causa da estranha casa onde
vivia, aquele refúgio gelado onde as relações eram
sempre tensas e os habitantes pouco mais que estranhos?
Seria isso ou seria algum maior e menos explicável
deslocamento no tempo e no espaço, por ter ela nascido
muito tarde, ou muito cedo, ou muito distante dos
desejos de seu espírito para jamais se harmonizar com as
coisas feias da realidade contemporânea?

1. Arcádia, região na parte central do Peloponeso, Grécia. Na


mitologia grega, era a residência de Pã, deus da natureza e padroeiro
dos pastores, e centro do seu culto. (Nota de Transcrição)

1
Para dispersar o temperamento que a engolfava mais e
mais a cada momento, ela pegou uma revista da mesa e
procurou alguma peça suave de poesia. A poesia sempre
aliviara sua mente preocupada melhor do que qualquer
coisa, embora muitas coisas na poesia ela havia visto
apartada da influência. Sobre as partes até mesmo dos
versos mais sublimes pairava um vapor gelado de feiúra
estéril e tensão, como a poeira sobre uma vidraça através
da qual se assiste a um magnífico crepúsculo.
Virando distraída as páginas da revista, como se
procurando um tesouro elusivo, ela subitamente
descobriu uma coisa que dispersou seu langor. Um
observador poderia ter lido seus pensamentos e lhe dito
que ela havia descoberto alguma imagem onírica que a
levava mais perto de seu objetivo inalcançado do que
qualquer imagem ou sonho que jamais tivera antes. Era
apenas um pedaço de verso livre, aquele piedoso
compromisso do poeta que entremeava a prosa mas a
que faltava a divina melodia dos números; mas que
possuía em si toda a música não-estudada dos bardos
que vivem e sentem, que se agarram estáticos à beleza
desvelada. Despidos de regularidade, ainda assim
possuía a harmonia das palavras aladas, espontâneas,
uma harmonia que fugia do formalismo, da prisão das
convenções dos versos de que ela havia conhecido. Ao ler
aquilo, tudo o que a cercava gradualmente desaparecia, e
logo só havia sobre ela as neblinas do sonho, as
purpúreas e estreladas neblinas além do tempo, onde
somente os deuses e os sonhadores caminham.

2
A Lua sobre o Japão,
Lua branca borboleta!
Onde sonham os Budas
Ao som do cuco que chama...
As brancas asas de borboletas lunares
Flutuam nas ruas da cidade,
Calando em silêncio as lanternas inúteis
Nas mãos das meninas
A Lua sobre os trópicos,
Botão curvado de branco
Abrindo as pétalas lentamente no calor dos céus...

O ar está cheio de odores


E langorosos sons cálidos...
Uma flauta zumbe sua música de inseto para a noite
Sob a pétala lunar curvada dos céus...
A Lua sobre a China,
Lua cansada do rio do céu,
O movimento da luz nos salgueiros é como o brilho de mil
peixinhos de água doce
Em águas escuras;
Os azulejos das tumbas e templos decaídos brilham como ondas,
O céu se enche de nuvens como as escamas de um dragão.

Entre as brumas do sonho a leitora gritava para as


estrelas rítmicas, de seu deleite na chegada de uma nova
idade da canção, um renascimento de Pã.2

2. Pã, na mitologia grega, deus dos bosques, dos campos e da


fertilidade, filho de Hermes com uma ninfa. Sendo parte animal, com
chifres, patas e orelhas de bode, era uma divindade vigorosa, deus
dos pastores. (Nota de Transcrição)

3
Semicerrando os olhos, ela repetia palavras cuja melodia
jazia oculta como cristais no fundo de um rio antes do
amanhecer, escondidas apenas para brilharem com
refulgência ao nascer do dia.

A Lua sobre o Japão


Lua branca borboleta!
A Lua sobre os trópicos,
Botão curvado de branco
Abrindo as pétalas lentamente no calor dos céus.
O ar cheio de odores
E langorosos sons cálidos...
A Lua sobre a China,
Lua cansada no rio do céu...

Além das brumas coruscava divina a forma de um


jovem, de capacete alado e sandálias, levando na mão um
caduceu,3 e de uma beleza incomparável na Terra. Diante
do rosto da adormecida ele três vezes girou o bastão que
Apolo4 havia lhe presenteado em troca pela concha de
nove cordas da melodia, e sobre sua testa ele colocou
uma coroa de louros e rosas.

3. Caduceu, bastão simbólico coroado por duas asas e com duas


serpentes entrelaçadas. Entre os gregos antigos, o caduceu era levado
pelos heraldos e pelos mensageiros como emblema de seu ofício e
como marca de inviolabilidade pessoal, porque era o símbolo de
Hermes. (Nota de Transcrição)
4. Apolo, na mitologia grega filho de Zeus e Leto. Era um músico
talentoso que deliciava os deuses tocando a lira. Também ficou
famoso como arqueiro e atleta veloz e foi o primeiro vencedor dos
Jogos Olímpicos. Deus da agricultura e da pecuária, da luz e da
verdade, ensinou aos humanos a arte da medicina. (Nota de
Transcrição)

4
Então, adorando, Hermes5 falou:
— Ó Ninfa6 mais bela que as irmãs de cabelos
dourados de Ciene ou que as atlantes que habitam o céu,
amada de Afrodite7 e abençoada por Palas,8 descobriste
de fato o segredo dos Deuses, que jazem na beleza e na
canção.

5. Hermes, na mitologia grega, mensageiro dos deuses, filho do deus


Zeus e de Maia, a filha do titã Atlas. Como especial servidor e
carteiro de Zeus, usava sandálias e capacete alados e levava um
caduceu de ouro, ou vara mágica, com serpentes enroladas e asas na
parte superior. (Nota de Transcrição)
6. Ninfas, na mitologia grega e romana, divindades menores ou
espíritos da natureza, que vivem em arvoredos, fontes, bosques,
pradarias, rios e águas do mar, e são representadas por jovens e belas
donzelas que gostam da música e da dança. (Nota de Transcrição)
7. Afrodite, na mitologia grega, deusa do amor e da beleza,
equivalente a Vênus romana. Na Ilíada de Homero aparece como
filha de Zeus e Dione, uma de suas companheiras, mas em lendas
posteriores é descrita brotando da espuma do mar e seu nome pode
ser traduzido como “nascida da espuma”. (Nota de Transcrição)
8. Atena, uma das deusas mais importantes da mitologia grega. Na
mitologia romana, chegou a ser identificada com a deusa Minerva,
também conhecida como Palas Atenéia. Saiu já adulta da proteção do
deus Zeus e foi sua filha favorita. Ele confiou a Atena seu escudo,
adornado com a horrorosa cabeça da górgona Medusa, sua “égide” e
o raio, sua arma principal. (Nota de Transcrição)

5
Ó profetisa mais adorável que a Sibilia de Cumas9
quando Apolo pela primeira vez a viu, tu falaste
verdadeiramente da nova era, pois mesmo agora em
Mênalo, Pã dorme inquieto seu sono, desejoso de acordar
e ver ao seu redor as pequenas faunas com coroas de
rosas e os antigos sátiros.10 Em sua visão divinaste o que
nenhum mortal, à exceção de alguns a quem o mundo
rejeita, lembraste-te: que os Deuses nunca morrem, mas
apenas dormem o sono e sonham os sonhos de Deuses
em jardins das Hespérides11 repletos de flores de lótus
além do amanhecer dourado.

9. Cumas, cidade fortificada e costeira da antiga Campânia. Foi


fundada em aproximadamente 750 a.C. por colonos de Cálcis e
Cime. Segundo Estrabão, foi à primeira colônia grega estabelecida na
Itália. Converteu-se em um poderoso centro comercial. A cidade foi
controlada pelos romanos em aproximadamente 340 a.C. (Nota de
Transcrição)
10. Sátiros, na mitologia grega, divindades dos bosques e montanhas,
com chifres e caudas e às vezes com pernas de bode. Os sátiros eram
os companheiros de Dionísio e passavam seu tempo perseguindo as
ninfas, bebendo vinho, dançando e tocando siringa, flauta ou gaita.
(Nota de Transcrição)
11. Hesperides, na mitologia grega, filhas do titã Atlas ou de Hesper,
a estrela vespertina. Ajudadas por um dragão, as hesperides
vigiavam uma árvore com galhos e folhas de ouro, que dava maçãs
também de ouro. (Nota de Transcrição)

6
E agora aproxima-se a hora de se despertar, quando o
frio e a feiúra perecerão, e Zeus12 se sentará uma vez
mais no Olimpo.13 Já o oceano sobre Pafos14 tremeu em
uma espuma que apenas céus antigos presenciaram
antes, e à noite em Helicon15 os pastores ouvem estranhos
murmúrios e notas semilembradas. Florestas e campos
tremem ao crepúsculo com o tremeluzir de lívidas
formas saltitantes, os oceanos imemoriais trazem curiosas
visões sob pálidas luas.

12. Zeus, na mitologia grega, deus do céu e soberano dos deuses


olímpicos. Corresponde ao deus romano Júpiter. Segundo Homero,
Zeus era considerado pai dos deuses e dos mortais. Não foi seu
criador; era seu pai no sentido de proteger e ser o soberano tanto da
família olímpica, como da raça humana. Zeus presidia os deuses no
monte Olimpo, na Tesália. Zeus era o filho menor do titã Cronos e da
titã Réia e irmão das divindades Posêidon, Hades, Héstia, Deméter e
Hera. (Nota de Transcrição)
13. Olimpo, montanha de 2.917 m de altitude, a mais elevada da
Grécia, situada na fronteira da Tessália com a Macedônia, próximo
ao mar Egeu. Segundo a antiga mitologia grega, este era o lugar
onde moravam os deuses. No cume, ficavam seus palácios,
construídos por Hefesto. A entrada para o Olimpo era uma porta de
nuvens protegida pelas deusas conhecidas como as Estações. (Nota
de Transcrição)
14. Pigmalião, na mitologia romana, escultor de Chipre. Durante
muitos meses, dedicou-se a esculpir uma mulher belíssima e acabou
se apaixonando loucamente pela estátua. Suplicou então a Vênus
que lhe mandasse uma mulher semelhante à sua obra. A jovem, a
quem Pigmalião chamou Galatéia, correspondeu ao seu amor e lhe
deu um filho, Pafos. (Nota de Transcrição)
15. O helicon é uma tuba com o tubo enrolado em forma circular, da
qual o sousafone é uma variante. (Nota de Transcrição)

7
Os Deuses são pacientes, e dormiram muito, mas nem o
homem nem os gigantes destruirão os Deuses para
sempre. No Tártaro16 os Titãs17 se contorcem e sob o
furioso Etna18 choramingam os filhos de Urano e Gaia.19
O dia agora amanhece em que o homem deverá
responder por séculos de negação, mas ao dormir os
Deuses se tornaram tolerantes e não o atirarão no poço
criado para os degeneradores de Deuses. Ao invés disso,
sua vingança acabará com a escuridão, a falácia e a feiúra
que viraram a mente humana; e sob as revoluções do
barbudo Saturno20 os mortais, uma vez mais sacrificando
para ele, viverão na beleza e no deleite.

16. Tártaro (mitologia), na mitologia grega, a região mais baixa dos


infernos. Segundo Hesíodo e Virgílio, o Tártaro é fechado por portas
de ferro e está tão abaixo do mundo subterrâneo de Hades quanto a
terra está em relação ao céu. (Nota de Transcrição)
17. Seres fantásticos da mitologia grega. (Nota de Transcrição)
18. Etna, vulcão do sul da Itália situado na costa oriental da Sicília.
(Nota de Transcrição)
19. Urano (mitologia), na mitologia grega, deus dos céus, casado com
Gaia. Era o pai dos titãs, dos ciclopes e dos hecatonquiros, gigantes
de cem mãos e 50 cabeças. Os titãs, guiados pelo seu soberano,
Cronos, destronaram e mutilaram Urano e do seu sangue que caiu
sobre a terra surgiram as três Erínias ou Fúrias que vingaram os
crimes de parricídio e perjúrio. (Nota de Transcrição)
20. Saturno (mitologia), na mitologia romana, antigo deus da
agricultura. Nas lendas posteriores foi identificado com o deus grego
Cronos, que depois de ter sido destronado por seu filho Zeus
(Júpiter, na mitologia romana) fugiu para a Itália, onde governou
durante 'a idade de ouro', um tempo de paz e felicidade completas.
(Nota de Transcrição)

8
Esta noite tu conhecerás o favor dos Deuses, e verás no
Parnaso21 os sonhos que os Deuses têm há eras enviado à
Terra para mostrar que não estão mortos. Pois os poetas
são os sonhos dos Deuses, e a cada era alguém deve
cantar, sem que o saiba, as mensagens e a promessas dos
jardins de lótus, que ficam além do crepúsculo.
Então, em seus braços, Hermes levou a donzela
que sonhava através dos céus. Brisas gentis das torres de
Éolo22 os que soergueram acima de mares quentes e
aromáticos, até que subitamente chegaram a Zeus,
presidindo a corte sobre o Parnaso de duas cabeças,
sentado em seu trono dourado flanqueado por Apolo e as
Musas à sua direita, e pelo coroado Dionísio23 e o
prazenteiro Baco24 à esquerda.

21. Parnaso, montanha da Grécia, de 2.457 m de altitude. Na


mitologia grega, ela estava consagrada ao deus Apolo. Acreditava-se
que este era o lugar predileto das musas e lugar de adoração dos
deuses Pã e Dioniso. (Nota de Transcrição)
22. Éolo, nome de duas figuras da mitologia grega. A mais conhecida
era a do guardião dos ventos. Vivia na ilha flutuante de Eólia com
seus seis filhos e suas seis filhas. Outro Éolo da mitologia grega foi o
rei de Tessália. Era o filho de Heleno, antepassado dos helenos, os
antigos habitantes da Grécia. (Nota de Transcrição)
23. Dionísio, na mitologia grega, deus do vinho e da vegetação, que
ensinou aos mortais como cultivar a videira e como fazer vinho.
(Nota de Transcrição)
24. Baco, na mitologia romana, deus do vinho, identificado com
Dionísio, o deus grego do vinho. Filho de Zeus (Júpiter) é
caracterizado de duas formas: uma, como deus da vegetação; a
segunda caracterização do deus aponta os mistérios de uma
divindade que inspirava cultos orgiásticos. (Nota de Transcrição)

9
Tanto esplendor Márcia jamais vira antes, seja acordada
ou em sonhos, mas seu brilho não a feria, como teria feito
a radiância do fenomenal Olimpo; pois nesta corte menor
o Pai dos Deuses havia temperado suas glórias para a
visão dos mortais. Ante a boca cinzelada da caverna
corícia sentavam em uma fileira seis nobres formas com o
aspecto de mortais, mas com as posturas de Deuses. Estes
a sonhadora reconheceu de imagens deles que havia
visto, e sabia que não eram outros senão o divino
Menides, o averno Dante, o mais que mortal
Shakespeare,25 o explorador do caos Milton,26 o cósmico
Goethe27 e o musófilo Keats.28 Aqueles eram os
mensageiros que os Deuses haviam enviado para dizer
aos homens que Pã não havia morrido, mas apenas
dormia; pois é na poesia que os Deuses falam aos
homens. Então falou o Trovão:
— Ó filha — pois, sendo uma da minha
interminável linhagem, és de fato minha filha — olha os
tronos de marfim e honra os augustos mensageiros que
os Deuses enviaram para que nas palavras e nos escritos
dos homens possa ainda haver traços de beleza divina.

25. Shakespeare, William (1564-1616), poeta e autor teatral inglês,


considerado um dos melhores dramaturgos da literatura universal.
(Nota de Transcrição)
26. Milton, John (1608-1674), poeta ensaísta inglês, autor de uma obra
de grande influência nos poetas posteriores. Dedicou sua prosa à
defesa das liberdades civis e religiosas. (Nota de Transcrição)
27. Goethe, Johann Wolfgang von (1749-1832), poeta, romancista,
dramaturgo e cientista alemão. (Nota de Transcrição)
28. Keats, John (1795-1821), poeta inglês, figura carismática do
romantismo. (Nota de Transcrição)

10
Outros bardos têm homens justamente coroados com
lauréis que duram, mas estes Apolo coroou, e estes eu
pus em lugares apartados, como mortais que falaram a
linguagem dos Deuses. Muito sonhamos nos jardins de
lótus além do Oeste, e falamos apenas em nossos sonhos;
mas chega a hora em que nossas vozes não mais ficarão
silentes. É um tempo de despertar e de mudança. Uma
vez mais Faeton29 voa baixo, segando os campos e
secando os rios. Na Gália,30 ninfas solitárias com cabelos
em desordem choram ao lado de fontes que não existem
mais, e inclinam-se defronte de rios vermelhos como o
sangue dos mortais. Ares31 e seu trem avançaram com a
loucura dos Deuses e retornaram Phobos e Deimos
glutões com desejo antinatural.32

29. Faetonte, na mitologia grega, filho de Hélio e da ninfa Clímene.


(Nota de Transcrição)
30. Gália, nome romano dado às terras dos celtas no oeste da Europa;
cobria grande parte da atual França, embora se estendesse além das
fronteiras do referido país. (Nota de Transcrição)
31. Ares, na mitologia grega, deus da guerra e filho de Zeus, rei dos
deuses, e de sua esposa Hera. Os romanos o identificavam com
Marte, também um deus da guerra. Agressivo e sanguinário
personificava a brutal natureza da guerra, e era impopular tanto
entre os deuses quanto entre os seres humanos. (Nota de
Transcrição)
32. Medo e terror em grego, respectivamente. Ambos são satélites do
planeta Marte (que recebeu este nome por causa do deus romano da
guerra). (Nota de Transcrição)

11
As luas de Telus com lamento e as faces dos homens são
como as faces de Erínies,33 mesmo quando Astréia voou
para as estrelas, e as ondas de nossas preces abrangia
toda a Terra, salvo este alto pico. Entre esses caos,
preparado para anunciar sua vinda mas escondendo sua
chegada, mesmo agora aqui se encontra nosso
mensageiro mais novo, e em cujos sonhos estão todas as
imagens que outros mensageiros sonharam antes dele.
Ele é o que escolhemos para reunir um todo glorioso toda
a beleza que o mundo já conheceu antes, e para escrever
palavras que ecoaram toda a sabedoria e a amabilidade
do passado. É ele que proclamará nossa volta e cantará os
dias por vir, quando faunos34 e dríades35 encherão suas
florestas de beleza. Guiada foi nossa escolha por aqueles
que agora se sentam defronte da gruta corícia em tronos
de marfim, e em cujas canções tu ouvirás notas de
sublimidade pelas quais daqui a anos tu conhecerás o
maior dos mensageiros quando ele chegar.

33. Erínias, também Fúrias, na mitologia grega, as três deusas


vingadoras: Tisífone (a vingadora do crime), Megera (a vingadora
dos céus) e Aleto (a sempre irada). Na maioria dos relatos são filhas
de Géia e Urano e às vezes recebem o nome de filhas da Noite. (Nota
de Transcrição)
34. Fauno, na mitologia romana, neto do deus Saturno, venerado
como deus dos campos e dos pastores. Eram acompanhadas pelos
faunos, criaturas metade homem, metade bode, equivalentes aos
sátiros gregos. Fauno é o equivalente romano do deus grego Pã.
(Nota de Transcrição)
35. Seres, juntamente com as ninfas, cultuados pelos gregos, que em
contraposição aos romanos e outros povos, não cultuavam as fadas.
(Nota de Transcrição)

12
Ouvi suas vozes, pois um por um ele cantam par vós
aqui. Cada nota, tu deverás ouvir novamente na poesia
que está por vir, a poesia que deverá trazer a paz e o
prazer à tua alma, embora ainda devas buscá-las por
anos vazios. Ouça com diligência, pois cada corda que
vibra oculta aparecerá par ti após teu retorno à Terra,
como Alfeu, afundando em suas águas na alma de Hela,
aparece como a aretusa de cristal na remota Sicília.
Então, ergueu-se Homero,36 o mais antigo dos
bardos, que tomou de sua lira e cantou seu hino a
Afrodite. Márcia não conhecia uma só palavra de grego,
mas mesmo assim a mensagem não caiu em seus ouvidos
em vão, pois na rima críptica estava aquilo que falava a
todos os mortais e Deuses, e não precisava de intérprete.
Assim também as canções de Dante e Goethe,
cujas desconhecidas palavras marcavam o éter com
melodias fáceis de ler e adorar. Mas finalmente sotaques
lembrados ressoaram ante a ouvinte. Era o Cisne de
Avon, antes um Deus entre os homens, e ainda um Deus
entre os Deuses:
Escreve, escreve, que com o curso sangrento da
guerra, Meu caro mestre, seu filho querido pode jazer;
Abençoa-o em casa na paz, enquanto que eu, de longe,
Seu nome com zeloso fervor santifico.
Um sotaque ainda mais familiar surgiu quando
Milton, não mais cego, declamou harmonia imortal:

36. Homero, nome tradicionalmente atribuído ao famoso autor da


Ilíada e da Odisséia, as duas grandes epopéias da Antigüidade na
Grécia. (Nota de Transcrição)

13
Ou deixa tua lamparina à meia-noite
Acesa em alguma torre solitária,
De onde eu possa vigiar o Urso
Com o três vezes grande Hermes, ou tirar da esfera
O espírito de Platão,37 para desenrolar os mundos ou as vastas
regiões que detém a mente imortal, que deve procurar
Sua mansão neste abrigo de carne.

*****

Por vezes deixa a bela tragédia


Em cetro e manto passar como o vento,
Presenteando Febe ou a linhagem de Penélope38
Ou a história da divina Tróia39

Por último veio a jovem voz de Keats, de todos os


mensageiros a mais próxima do fauno:

37. Platão (428- 347 a.C.), filósofo grego, um dos pensadores mais
criativos e influentes da filosofia ocidental. (Nota de Transcrição)
38. Penélope, na mitologia grega, filha de Icário, rei de Esparta,
mulher de Odisseu, rei de Ítaca, e mãe de Telêmaco. Seu marido
esteve ausente por mais de 20 anos, como conseqüência da guerra de
Tróia, mas ela nunca duvidou que ele regressasse e se manteve fiel.
(Nota de Transcrição)
39. Tróia, nome da antiga Ílion, cidade celebrizada na epopéia grega
Ilíada, situava-se no extremo noroeste da Ásia Menor, na atual
Turquia. Ilo, filho de Tros (que deu origem ao nome Tróia), foi o
lendário fundador da cidade. O herói Hércules, ao conquistar a
cidade, assassinou Lamedonte, filho e sucessor de Ilo. (Nota de
Transcrição)

14
As melodias ouvidas são doces, mas as que não se ouvem
O são mais; por isso, pífaros ainda doces, tocai...

*****

Quando a idade desgastar esta geração,


Tu permanecerás, em meio a outros lamentos
Que não os nossos, amigo do homem, a quem dirás
“Beleza é verdade — verdade bela” — isto é tudo
Que sabemos na Terra, e tudo que precisamos saber.

Quando o cantor terminou, ouviu-se um som de


vento que soprava do distante Egito, onde à noite Aurora
chora às margens do Nilo a perda de seu Mennon. Aos
pés do Trovão flutuava a deusa de dedos rosados e,
ajoelhando-se, gritava: “Mestre, é hora de eu abrir os
Portões do Leste”. E Febo, entregando sua lira a
Calíope,40 sua noiva entre as Musas, preparou-se para
partir para o reluzente e enorme Palácio do Sol, onde já
esperavam inquietos os garanhões presos à biga dourada
do Dia. Então Zeus desceu de seu trono esculpido e
colocou a mão sobre a cabeça de Márcia, dizendo:

40. Musas, na mitologia grega, nove deusas e filhas do deus Zeus e


de Mnemosine. As musas presidiam as Artes e as Ciências e
acreditava-se que inspiravam os artistas, em especial poetas,
filósofos e músicos. Calíope era a musa da Poesia épica, Clio da
História, Euterpe da Poesia lírica, Melpómene da Tragédia,
Terpsícore da Música e da Dança, Erato da Poesia amorosa, Polimnia
da Poesia sagrada, Urania da Astronomia e Talia da Comédia. (Nota
de Transcrição)

15
— Filha, a aurora se aproxima, e é bom que
retornes antes do despertar dos mortais à tua casa. Não
chores pelo vazio de tua vida, pois as sombras das falsas
crenças breve se dissipará e os Deuses uma vez mais
andarão por entre os homens. Procurai incessantemente
por teu mensageiro, pois nele encontrará paz e conforto.
Pela palavra dele teus passos serão guiados à felicidade,
e em sonhos de beleza teu espírito encontrará aquilo que
procura. — E, quando Zeus terminou de falar, o jovem
Hermes gentilmente enlaçou a donzela e elevou-a em
direção à estrelas evanescentes, para cima e para oeste,
sobre mares nunca vistos.
Muitos anos se passaram desde que Márcia
sonhou com os Deuses e seu conclave no Parnaso. Nesta
noite ela se encontrara sentada no mesmo escritório, mas
não está só. Partiu o velho espírito do desassossego, pois
ao seu lado se encontra um cujo nome brilha com a fama:
o jovem poeta dos poetas a cujos pés está o mundo. Ele
lê, de um manuscrito, palavras que nunca ninguém
jamais ouviu, mas que quando ouvidas trarão ao homem
os sonhos e os desejos que perderam tantos séculos atrás,
quando Pã deitou-se para repousar em Arcádia, e os
grandes Deuses retiraram-se para dormir em jardins de
lótus além das terras das Hespérides.

16
Nas súbitas cadências e ocultas melodias do bardo o
espírito da donzela finalmente encontrou descanso, pois
ali ecoavam as mais divinas notas do Orfeu da Trácia,41
notas que moviam as próprias rochas e árvores dos
bancos de Hebrus. O cantor se interrompe, e com
ansiedade pede um veredito, mas o que Márcia pode
dizer senão que a canção foi “feita para os Deuses”?
E, enquanto ela fala, vem novamente uma visão de
Parnaso e o som distante de uma voz poderosa dizendo:
“Por sua palavra deverão seus passos ser guiados à
felicidade, e em seus sonhos de beleza teu espírito
encontrará tudo que almeja”.

41. Orfeu, na mitologia grega, poeta e músico, filho da musa Calíope


e de Apolo ou de Eagro, rei da Trácia. Recebeu a lira de Apolo e
chegou a ser tão bom músico que não teve rival entre os mortais. É
mais conhecido pelo seu desafortunado matrimônio com a ninfa
Eurídice. Pouco depois da cerimônia de casamento, a noiva sofreu
uma picada de cobra e morreu. (Nota de Transcrição)

17

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