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A Poesia e Os Deuses PDF
A Poesia e Os Deuses PDF
1
Para dispersar o temperamento que a engolfava mais e
mais a cada momento, ela pegou uma revista da mesa e
procurou alguma peça suave de poesia. A poesia sempre
aliviara sua mente preocupada melhor do que qualquer
coisa, embora muitas coisas na poesia ela havia visto
apartada da influência. Sobre as partes até mesmo dos
versos mais sublimes pairava um vapor gelado de feiúra
estéril e tensão, como a poeira sobre uma vidraça através
da qual se assiste a um magnífico crepúsculo.
Virando distraída as páginas da revista, como se
procurando um tesouro elusivo, ela subitamente
descobriu uma coisa que dispersou seu langor. Um
observador poderia ter lido seus pensamentos e lhe dito
que ela havia descoberto alguma imagem onírica que a
levava mais perto de seu objetivo inalcançado do que
qualquer imagem ou sonho que jamais tivera antes. Era
apenas um pedaço de verso livre, aquele piedoso
compromisso do poeta que entremeava a prosa mas a
que faltava a divina melodia dos números; mas que
possuía em si toda a música não-estudada dos bardos
que vivem e sentem, que se agarram estáticos à beleza
desvelada. Despidos de regularidade, ainda assim
possuía a harmonia das palavras aladas, espontâneas,
uma harmonia que fugia do formalismo, da prisão das
convenções dos versos de que ela havia conhecido. Ao ler
aquilo, tudo o que a cercava gradualmente desaparecia, e
logo só havia sobre ela as neblinas do sonho, as
purpúreas e estreladas neblinas além do tempo, onde
somente os deuses e os sonhadores caminham.
2
A Lua sobre o Japão,
Lua branca borboleta!
Onde sonham os Budas
Ao som do cuco que chama...
As brancas asas de borboletas lunares
Flutuam nas ruas da cidade,
Calando em silêncio as lanternas inúteis
Nas mãos das meninas
A Lua sobre os trópicos,
Botão curvado de branco
Abrindo as pétalas lentamente no calor dos céus...
3
Semicerrando os olhos, ela repetia palavras cuja melodia
jazia oculta como cristais no fundo de um rio antes do
amanhecer, escondidas apenas para brilharem com
refulgência ao nascer do dia.
4
Então, adorando, Hermes5 falou:
— Ó Ninfa6 mais bela que as irmãs de cabelos
dourados de Ciene ou que as atlantes que habitam o céu,
amada de Afrodite7 e abençoada por Palas,8 descobriste
de fato o segredo dos Deuses, que jazem na beleza e na
canção.
5
Ó profetisa mais adorável que a Sibilia de Cumas9
quando Apolo pela primeira vez a viu, tu falaste
verdadeiramente da nova era, pois mesmo agora em
Mênalo, Pã dorme inquieto seu sono, desejoso de acordar
e ver ao seu redor as pequenas faunas com coroas de
rosas e os antigos sátiros.10 Em sua visão divinaste o que
nenhum mortal, à exceção de alguns a quem o mundo
rejeita, lembraste-te: que os Deuses nunca morrem, mas
apenas dormem o sono e sonham os sonhos de Deuses
em jardins das Hespérides11 repletos de flores de lótus
além do amanhecer dourado.
6
E agora aproxima-se a hora de se despertar, quando o
frio e a feiúra perecerão, e Zeus12 se sentará uma vez
mais no Olimpo.13 Já o oceano sobre Pafos14 tremeu em
uma espuma que apenas céus antigos presenciaram
antes, e à noite em Helicon15 os pastores ouvem estranhos
murmúrios e notas semilembradas. Florestas e campos
tremem ao crepúsculo com o tremeluzir de lívidas
formas saltitantes, os oceanos imemoriais trazem curiosas
visões sob pálidas luas.
7
Os Deuses são pacientes, e dormiram muito, mas nem o
homem nem os gigantes destruirão os Deuses para
sempre. No Tártaro16 os Titãs17 se contorcem e sob o
furioso Etna18 choramingam os filhos de Urano e Gaia.19
O dia agora amanhece em que o homem deverá
responder por séculos de negação, mas ao dormir os
Deuses se tornaram tolerantes e não o atirarão no poço
criado para os degeneradores de Deuses. Ao invés disso,
sua vingança acabará com a escuridão, a falácia e a feiúra
que viraram a mente humana; e sob as revoluções do
barbudo Saturno20 os mortais, uma vez mais sacrificando
para ele, viverão na beleza e no deleite.
8
Esta noite tu conhecerás o favor dos Deuses, e verás no
Parnaso21 os sonhos que os Deuses têm há eras enviado à
Terra para mostrar que não estão mortos. Pois os poetas
são os sonhos dos Deuses, e a cada era alguém deve
cantar, sem que o saiba, as mensagens e a promessas dos
jardins de lótus, que ficam além do crepúsculo.
Então, em seus braços, Hermes levou a donzela
que sonhava através dos céus. Brisas gentis das torres de
Éolo22 os que soergueram acima de mares quentes e
aromáticos, até que subitamente chegaram a Zeus,
presidindo a corte sobre o Parnaso de duas cabeças,
sentado em seu trono dourado flanqueado por Apolo e as
Musas à sua direita, e pelo coroado Dionísio23 e o
prazenteiro Baco24 à esquerda.
9
Tanto esplendor Márcia jamais vira antes, seja acordada
ou em sonhos, mas seu brilho não a feria, como teria feito
a radiância do fenomenal Olimpo; pois nesta corte menor
o Pai dos Deuses havia temperado suas glórias para a
visão dos mortais. Ante a boca cinzelada da caverna
corícia sentavam em uma fileira seis nobres formas com o
aspecto de mortais, mas com as posturas de Deuses. Estes
a sonhadora reconheceu de imagens deles que havia
visto, e sabia que não eram outros senão o divino
Menides, o averno Dante, o mais que mortal
Shakespeare,25 o explorador do caos Milton,26 o cósmico
Goethe27 e o musófilo Keats.28 Aqueles eram os
mensageiros que os Deuses haviam enviado para dizer
aos homens que Pã não havia morrido, mas apenas
dormia; pois é na poesia que os Deuses falam aos
homens. Então falou o Trovão:
— Ó filha — pois, sendo uma da minha
interminável linhagem, és de fato minha filha — olha os
tronos de marfim e honra os augustos mensageiros que
os Deuses enviaram para que nas palavras e nos escritos
dos homens possa ainda haver traços de beleza divina.
10
Outros bardos têm homens justamente coroados com
lauréis que duram, mas estes Apolo coroou, e estes eu
pus em lugares apartados, como mortais que falaram a
linguagem dos Deuses. Muito sonhamos nos jardins de
lótus além do Oeste, e falamos apenas em nossos sonhos;
mas chega a hora em que nossas vozes não mais ficarão
silentes. É um tempo de despertar e de mudança. Uma
vez mais Faeton29 voa baixo, segando os campos e
secando os rios. Na Gália,30 ninfas solitárias com cabelos
em desordem choram ao lado de fontes que não existem
mais, e inclinam-se defronte de rios vermelhos como o
sangue dos mortais. Ares31 e seu trem avançaram com a
loucura dos Deuses e retornaram Phobos e Deimos
glutões com desejo antinatural.32
11
As luas de Telus com lamento e as faces dos homens são
como as faces de Erínies,33 mesmo quando Astréia voou
para as estrelas, e as ondas de nossas preces abrangia
toda a Terra, salvo este alto pico. Entre esses caos,
preparado para anunciar sua vinda mas escondendo sua
chegada, mesmo agora aqui se encontra nosso
mensageiro mais novo, e em cujos sonhos estão todas as
imagens que outros mensageiros sonharam antes dele.
Ele é o que escolhemos para reunir um todo glorioso toda
a beleza que o mundo já conheceu antes, e para escrever
palavras que ecoaram toda a sabedoria e a amabilidade
do passado. É ele que proclamará nossa volta e cantará os
dias por vir, quando faunos34 e dríades35 encherão suas
florestas de beleza. Guiada foi nossa escolha por aqueles
que agora se sentam defronte da gruta corícia em tronos
de marfim, e em cujas canções tu ouvirás notas de
sublimidade pelas quais daqui a anos tu conhecerás o
maior dos mensageiros quando ele chegar.
12
Ouvi suas vozes, pois um por um ele cantam par vós
aqui. Cada nota, tu deverás ouvir novamente na poesia
que está por vir, a poesia que deverá trazer a paz e o
prazer à tua alma, embora ainda devas buscá-las por
anos vazios. Ouça com diligência, pois cada corda que
vibra oculta aparecerá par ti após teu retorno à Terra,
como Alfeu, afundando em suas águas na alma de Hela,
aparece como a aretusa de cristal na remota Sicília.
Então, ergueu-se Homero,36 o mais antigo dos
bardos, que tomou de sua lira e cantou seu hino a
Afrodite. Márcia não conhecia uma só palavra de grego,
mas mesmo assim a mensagem não caiu em seus ouvidos
em vão, pois na rima críptica estava aquilo que falava a
todos os mortais e Deuses, e não precisava de intérprete.
Assim também as canções de Dante e Goethe,
cujas desconhecidas palavras marcavam o éter com
melodias fáceis de ler e adorar. Mas finalmente sotaques
lembrados ressoaram ante a ouvinte. Era o Cisne de
Avon, antes um Deus entre os homens, e ainda um Deus
entre os Deuses:
Escreve, escreve, que com o curso sangrento da
guerra, Meu caro mestre, seu filho querido pode jazer;
Abençoa-o em casa na paz, enquanto que eu, de longe,
Seu nome com zeloso fervor santifico.
Um sotaque ainda mais familiar surgiu quando
Milton, não mais cego, declamou harmonia imortal:
13
Ou deixa tua lamparina à meia-noite
Acesa em alguma torre solitária,
De onde eu possa vigiar o Urso
Com o três vezes grande Hermes, ou tirar da esfera
O espírito de Platão,37 para desenrolar os mundos ou as vastas
regiões que detém a mente imortal, que deve procurar
Sua mansão neste abrigo de carne.
*****
37. Platão (428- 347 a.C.), filósofo grego, um dos pensadores mais
criativos e influentes da filosofia ocidental. (Nota de Transcrição)
38. Penélope, na mitologia grega, filha de Icário, rei de Esparta,
mulher de Odisseu, rei de Ítaca, e mãe de Telêmaco. Seu marido
esteve ausente por mais de 20 anos, como conseqüência da guerra de
Tróia, mas ela nunca duvidou que ele regressasse e se manteve fiel.
(Nota de Transcrição)
39. Tróia, nome da antiga Ílion, cidade celebrizada na epopéia grega
Ilíada, situava-se no extremo noroeste da Ásia Menor, na atual
Turquia. Ilo, filho de Tros (que deu origem ao nome Tróia), foi o
lendário fundador da cidade. O herói Hércules, ao conquistar a
cidade, assassinou Lamedonte, filho e sucessor de Ilo. (Nota de
Transcrição)
14
As melodias ouvidas são doces, mas as que não se ouvem
O são mais; por isso, pífaros ainda doces, tocai...
*****
15
— Filha, a aurora se aproxima, e é bom que
retornes antes do despertar dos mortais à tua casa. Não
chores pelo vazio de tua vida, pois as sombras das falsas
crenças breve se dissipará e os Deuses uma vez mais
andarão por entre os homens. Procurai incessantemente
por teu mensageiro, pois nele encontrará paz e conforto.
Pela palavra dele teus passos serão guiados à felicidade,
e em sonhos de beleza teu espírito encontrará aquilo que
procura. — E, quando Zeus terminou de falar, o jovem
Hermes gentilmente enlaçou a donzela e elevou-a em
direção à estrelas evanescentes, para cima e para oeste,
sobre mares nunca vistos.
Muitos anos se passaram desde que Márcia
sonhou com os Deuses e seu conclave no Parnaso. Nesta
noite ela se encontrara sentada no mesmo escritório, mas
não está só. Partiu o velho espírito do desassossego, pois
ao seu lado se encontra um cujo nome brilha com a fama:
o jovem poeta dos poetas a cujos pés está o mundo. Ele
lê, de um manuscrito, palavras que nunca ninguém
jamais ouviu, mas que quando ouvidas trarão ao homem
os sonhos e os desejos que perderam tantos séculos atrás,
quando Pã deitou-se para repousar em Arcádia, e os
grandes Deuses retiraram-se para dormir em jardins de
lótus além das terras das Hespérides.
16
Nas súbitas cadências e ocultas melodias do bardo o
espírito da donzela finalmente encontrou descanso, pois
ali ecoavam as mais divinas notas do Orfeu da Trácia,41
notas que moviam as próprias rochas e árvores dos
bancos de Hebrus. O cantor se interrompe, e com
ansiedade pede um veredito, mas o que Márcia pode
dizer senão que a canção foi “feita para os Deuses”?
E, enquanto ela fala, vem novamente uma visão de
Parnaso e o som distante de uma voz poderosa dizendo:
“Por sua palavra deverão seus passos ser guiados à
felicidade, e em seus sonhos de beleza teu espírito
encontrará tudo que almeja”.
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