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Os enfeites corporais dos Mamaindê (Nambiquara) e a noção de cultura

Joana Miller

Em setembro de 2004, vários grupos Nambiquara se reuniram na aldeia Capitão


Pedro para decidir o local onde deveria ser construído o “Centro de Valorização Cultural
dos Povos Nambiquara”, idealizado por lideranças indígenas com a ajuda de técnicos da
Funai. Aproveitando a ocasião, um xamã sugeriu promover um encontro de xamãs da
região para fazer um teste que revelaria o xamã mais poderoso, aquele que detinha o maior
conhecimento da sua cultura. O teste consistiria em pedir para que cada xamã retirasse de
dentro do seu próprio corpo os seus enfeites e objetos mágicos tornando-os visíveis para a
platéia. Aquele que retirasse a maior quantidade de objetos seria considerado o xamã mais
poderoso. O conhecimento da cultura foi, assim, diretamente relacionado à posse de
determinados enfeites corporais.
A partir da minha experiência etnográfica junto aos Mamaindê, um grupo
Nambiquara situado na Área Indígena do Vale do Guaporé (MT), pretendo explorar a
relação estabelecida entre os enfeites corporais usados por eles e a noção de cultura.

***

Os Mamaindê dizem que, além dos enfeites visíveis, possuem também enfeites
internos que só o xamã é capaz de enxergar e de tornar visíveis durante as sessões de cura.
Ambos são chamados genericamente de wasain´du (coisa, material), termo que também
pode designar todos os pertences de uma pessoa.
Os enfeites internos não são concebidos como fundamentalmente distintos dos
enfeites visíveis. O que os torna visíveis ou invisíveis não é uma característica intrínseca a
eles, mas a capacidade visual do observador. Do ponto de vista do xamã, um ser capaz de
adotar múltiplos pontos de vista, o corpo se revelará sempre como um corpo enfeitado.
Durante as sessões de cura, o xamã costuma retirar os enfeites internos do doente,
tornando-os visíveis. Esfregando as mãos na cabeça do doente, ele retira uma linha de
algodão (kunledu) que, aos seus olhos, é um colar de contas pretas (yalikdu). No entanto, de
acordo com o xamã, não é somente ao redor da cabeça que possuímos essa linha/colar, todo
o nosso corpo está enfeitado com voltas de colar de contas pretas.
Certa vez, observei um xamã curar uma velha que sentia fortes dores no corpo. Ele
retirou algumas miçangas de dentro do seu joelho e da sua barriga e explicou que ela estava
doente porque os colares que ela tinha dentro do seu corpo (na wasain´du) haviam se
rompido. Ele acrescentou, ainda, que isso aconteceu porque ela havia guardado os seus
colares em casa da maneira errada, ela deveria tê-los guardados esticados e não dobrados.
Deste modo, o que acontece com os enfeites de uma pessoa, sejam eles internos ou
externos, a atinge da mesma forma provocando doenças que podem leva-la à morte. Nesses
casos, cabe ao xamã consertar os enfeites rompidos e recoloca-los novamente dentro do
corpo do doente.
Muitas vezes o xamã também recomenda que os doentes passem a usar mais colares
ao redor do corpo. Durante uma sessão de cura, observei um xamã retirar miçangas de
dentro do corpo de um homem e entrega-las à esposa dele que, imediatamente, fez com elas
um novo colar para colocar nos pulsos do marido adoentado. Deste modo, embora seja
invisível aos olhos das pessoas comuns, a linha/colar pode se tornar visível durante as
sessões de cura e, neste sentido, não é concebida como fundamentalmente distinta dos
colares que os Mamaindê usam externamente.
Os Mamaindê dizem que essa linha/colar é o nosso rumo, a nossa memória e
também aquilo que nos faz sonhar. Sem ela não sabemos mais onde estamos, deixamos de
reconhecer nossos parentes, ficamos perdidos, doentes. Quando isso acontece, diz-se que a
pessoa perdeu o seu “espírito” (yauptidu) ou as suas “coisas” (wasain´du). Neste contexto,
os Mamaindê costumam inclusive traduzir o termo wasain´du por “espírito”, em português,
indicando que a perda da linha/colar equivale à perda do próprio espírito. Sem a
intervenção do xamã para trazer a linha/colar de volta a pessoa pode morrer.
O mesmo se passa quando alguém perde outros enfeites corporais. Pude perceber
isso enquanto observava uma mulher fazer o cocar de penas de tucano (yalãngalodu) que
seria usado por sua filha na festa que encerra o ritual de puberdade feminina. Ela comentou
que se alguém roubasse aquele cocar a sua filha poderia morrer imediatamente, pois ela
perderia o seu espírito (yauptiu). Fiorini (1997) relatou algo parecido para os grupos
Nambiquara do sul do Vale do Guaporé. Ele observou que os Manairisu consideravam
determinados objetos, principalmente os enfeites corporais, uma extensão do seu próprio
espírito (yaukitsu) e acrescentou ainda que as crianças costumavam usar muitos colares
porque o seu espírito era considerado mais vulnerável ao ataque de espíritos malévolos.
Price (1989:681) também mencionou brevemente a importância que os grupos Nambiquara
do cerrado conferiam aos ornamentos corporais. Segundo ele, as coisas feitas pelas pessoas
(yegnk´isu, artesanato), como colares e enfeites, se opõem aos objetos naturais – plantas ou
animais – são “coisas espirituais”. Elas são carregadas de mistério e usadas junto ao corpo,
especialmente no ritual.
Os casos relatados acima indicam que, neste contexto etnográfico, os enfeites
corporais usados pelas pessoas podem, em algum momento, ser considerados o seu próprio
espírito (yauptidu). Deste modo, a doença é freqüentemente descrita como uma perda dos
enfeites corporais e as práticas xamânicas que visam a fixação do espírito ao corpo
implicam, como vimos, em enfeitar o corpo com muitas voltas de colar de contas pretas.
Mas se, de acordo com os Mamaindê, a posse dos enfeites corporais confere a um
sujeito a sua capacidade de ter consciência, memória, rumo - qualidades que são
equacionadas à noção de espírito – em determinados contextos os enfeites se revelam, eles
mesmos, sujeitos. Durante as sessões de cura, a linha/colar costuma falar com o xamã.
Assim, ao retira-la de dentro da cabeça do doente, o xamã esfrega a linha/colar entre as
mãos levando-a para perto de seus ouvidos. Após escutar o que a linha/colar lhe contou, ele
revela a todos o que aconteceu. Só então, o doente consegue se lembrar do que se passou
com ele e começa a melhorar.
Mas não é apenas no contexto do xamanismo que os enfeites corporais podem se
revelar como sujeitos. Durante o período de reclusão que caracteriza o ritual de puberdade
feminina, a menina reclusa não pode usar enfeites sob o risco deles se transformarem em
animais perigosos. Ao final da reclusão, faz-se uma grande festa e a menina é retirada da
casinha em que ficou presa pelos convidados que vieram de outras aldeias Nambiquara.
Nesta ocasião, ao contrário da reclusão, o seu corpo deve ser super-enfeitado com adereços
de vários tipos e muitas voltas de colar de contas pretas. Um dos cantos rituais equaciona a
menina ao colar de contas pretas que ela usa. Neste momento, ela também pode ser
chamada de da wasain´du (minha coisa, meu enfeite), principalmente pelos seus pais, que
também devem fazer muitas voltas de colar para dar aos convidados que a retiraram da
reclusão. Assim, se na reclusão os enfeites corporais se tornam perigosos porque podem se
transformar em animais, na festa que marca o final do ritual os enfeites se tornam
indispensáveis e são identificados à menina de tal modo que ambos passam a ser uma coisa
só (wasain´du).
No mito, o estatuto humano dos enfeites e dos objetos feitos pelas pessoas se torna
ainda mais evidente. Há um mito mamaindê que conta como as pessoas se transformaram
em animais no momento em que uma criança abriu uma cabaça que continha a noite
(escuridão) em seu interior. Até então, os animais que existiam eram mantidos presos em
um buraco controlado por um pajé “dono” dos animais. Nesse tempo o sol nunca se punha,
tudo era claro e visível. Até que um dia as crianças desobedeceram as ordens do pajé e
abriram o buraco dos bichos deixando-os escapar. Como castigo, o pajé deu uma cabaça
que continha a noite em seu interior para uma criança segurar, mas a cabaça estava cheia de
marimbondos. Sem conseguir resistir às picadas do inseto, a criança largou a cabaça e
gritou avisando que ia escurecer (“kanahlehnuuu...”, vai escurecer!) e, então, a noite se
espalhou pelo mundo. Neste momento, as pessoas e os objetos que elas faziam (machado de
pedra, cesto cargueiro, flecha) deram origem a vários animais. A criança virou um tipo de
coruja (urutau) que grita à noite. Os velhos viraram uma espécie de macaco (kondu) que
tem o pêlo branco. O machado de pedra falou que gostava de derrubar árvores para comer
mel e, assim, se transformou em irara (animal de dentes afiados que come mel). As flechas
envenenadas usadas para caçar viraram cobras venenosas. As perneiras de algodão do pajé
viraram lacrais. Um tipo de cuia feito de cabaça falou que ia virar jabuti porque não queria
pegar chuva. O cesto cargueiro virou onça e é por isso que a onça tem a pele pintada como
o trançado deste cesto. Os Mamaindê dizem que, ainda hoje, os cestos cargueiros
abandonados no mato podem se transformar em onça e voltar para atacar o seu dono. No
final do mito afirma-se: “todos esses animais são feitos de gente” (nuna´ã yuhga nagayanã
weisilatwa), indicando que, assim como as pessoas, os objetos que elas fabricavam tinham
o estatuto de sujeitos.
É interessante notar que, no mito, os objetos que têm o estatuto de sujeitos são
justamente aqueles fabricados pelas pessoas, o que os torna, neste sentido, portadores de
uma agência humana. Ao definir o significado do termo wasain´du, os Mamaidê enfatizam
justamente esta característica dos objetos assim designados: “wasain´du é tudo aquilo que a
pessoa tem, principalmente o que ela faz ou usa”. Assim, a idéia de que os objetos são
portadores de uma agência humana é o que os torna potencialmente humanos. A esse
respeito, Viveiros de Castro ([1996] 2002:361) observou que “os artefatos possuem esta
ontologia interessantemente ambígua: são objetos, mas apontam necessariamente para um
sujeito, pois são como ações congeladas, encarnações materiais de uma intencionalidade
não material”. Neste sentido, podemos dizer que, para os Mamaindê, os enfeites corporais e
as coisas feitas pelas pessoas são uma espécie de epítome da noção de espírito na medida
em que são concebidos como portadores de uma agência humana, estando necessariamente
remetidos a um sujeito.
Procurei demonstrar até aqui que os enfeites corporais podem ser concebidos como
sujeitos e, ao mesmo tempo, como aquilo que define um sujeito capaz de ter consciência,
memória, rumo e intencionalidade próprias. Contudo, não posso deixar de observar que,
segundo os Mamaindê, existem também outros tipos de seres que possuem enfeites. O
espírito do monstro canibal dayukdu, considerado o “dono” (wagindu) do macaco-aranha
por ser uma versão aumentada desta espécie, costuma roubar a linha/colar dos Mamaindê
durante o sonho e colocar a dele em seu lugar. A pessoa afetada fica muito doente, esquece
os seus parentes, perde o rumo e o seu espírito (yauptidu) passa a viver no mato,
acompanhando o dayukdu. Neste caso, os Mamaindê também dizem que a pessoa que tem a
sua linha roubada/trocada pelo dayukdu torna-se parente dele (na waintadu) e passa a
enxergar os seus próprios parentes como se fossem bichos, (nadadu, animal grande e
perigoso, predador). A troca de enfeites corporais com o dayukdu equivale, neste sentido, a
uma troca de perspectivas.
Para os Mamaindê, a maior parte das doenças é provocada pelo roubo da linha/colar
pelo dayukdu. Quando isso acontece, o xamã deve retirar da cabeça do doente a linha
deixada pelo dayukdu e colocar uma nova linha. Deste modo, o processo de transformação
desencadeado pelo roubo da linha/colar é interrompido. A pessoa volta a reconhecer os seus
parentes e o seu espírito (yauptidu) deixa de vagar pelo mato, seguindo o dayukdu. Assim, a
experiência da transformação é descrita pelos Mamaindê como uma troca de enfeites
corporais. Neste caso, podemos dizer que a posse dos enfeites corporais é o que define um
sujeito capaz de ter consciência e perspectiva próprias e, sobretudo, o que lhe confere a
possibilidade de se transformar em outro tipo de gente.
Mas seria errôneo pensar que a posse dos enfeites corporais é um atributo
ontológico fixo de cada espécie de sujeito. Quando perguntei aos Mamaindê se eles já
nasciam com enfeites por dentro do corpo, as respostas variavam. Algumas pessoas diziam
que sim e outras contestavam veementemente esta afirmação. No entanto, todos
enfatizavam que o xamã deve sempre trazer novos enfeites para colocar no corpo dos
doentes. Neste caso, o que importa para os Mamaindê não é saber se eles já nascem com
enfeites, mas ressaltar a possibilidade de perde-los, de ter os enfeites trocados ou roubados
por outros seres. Portanto, só faz sentido pensar nos enfeites corporais como componentes
da pessoa quando a pessoa está inserida em uma relação.

***

Os Mamaindê descrevem o poder xamânico como a posse de muitos enfeites


corporais dados ao xamã pelos espíritos dos mortos e também pelo xamã que o iniciou nas
técnicas do xamanismo. Assim, dentre todas as pessoas, o xamã é aquele que possui a
maior quantidade de enfeites corporais. Os dois xamãs atuantes na aldeia Mamaindê se
distinguem das outras pessoas por estarem sempre usando muitas voltas de colar de contas
pretas. Um deles nunca deixa de usar também enfeites feitos com linha de algodão ao redor
dos braços e da cabeça.
O processo de iniciação xamânica pode ser descrito como um tipo de morte. O
futuro xamã leva uma surra de borduna dos espíritos dos mortos e desmaia (/do-/, morrer).
Neste momento, os espíritos dos mortos dão a ele os seus enfeites e objetos mágicos
(muitas voltas de colar de contas pretas, braceletes e perneiras de algodão, cocar de penas
de tucano, um tipo de lança feita de madeira, à qual os Mamaindê se referem como “espada
do pajé” – walukadu - algumas flechas e uma cabaça). Esses enfeites são chamados de
wãninso´gã na wasaina´ã (as coisas do pajé) ou de wãnin wasaina´ã (coisas mágicas) e são
responsáveis pelo seu poder xamânico.
Além dos objetos e enfeites corporais, o futuro xamã também recebe dos espíritos
dos mortos uma mulher-espírito que se tornará sua esposa (na de´du). Essa mulher-espírito
é descrita como uma onça (yanãndu) que passará a acompanhar o xamã, sentando-se
sempre ao seu lado durante as sessões de cura, “como se fosse o seu cachorro”. Neste
contexto, o xamã pode se referir a sua mulher-espírito como da mãindu (minha criação), da
yanãndu (minha onça) ou, genericamente, como da wasain´du (minha coisa), o que inclui
todos os seus enfeites e objetos mágicos.
Ao adquirir os enfeites e objetos dos espíritos dos mortos, o xamã passa a ver o
mundo como eles adquirindo assim o conhecimento xamânico. Neste caso, os enfeites
(wasain´du) do xamã podem ser considerados “objetificações” das relações estabelecidas
com os espíritos dos mortos. Penso que é neste sentido que a mulher-espírito do xamã pode
ser dita na wasain´du (sua coisa).
Para não perder o seu poder xamânico, ou a sua “mágica” (na wãnindu), o xamã
deverá respeitar uma série de restrições alimentares e sexuais. Deste modo, ele evita que a
sua mulher-espírito o abandone e leve consigo todos os seus enfeites. Assim, a relação
estabelecia com os espíritos dos mortos, que resulta na posse dos seus enfeites corporais, é
o que confere ao xamã o conhecimento xamânico, a capacidade de ver as coisas que aos
olhos das pessoas comuns são invisíveis e de torna-las visíveis.
A relação entre o conhecimento xamânico e a aquisição de enfeites corporais
também foi apontada pelos Mamaindê como o motivo pelo qual os espíritos do mato
costumam roubar os seus enfeites corporais. De acordo com um xamã, o espírito “dono” do
macaco-aranha (dayukdu) rouba os enfeites dos Mamaindê para ter xamã para ele. Assim,
do mesmo modo que os Mamaindê precisam recorrer à perspectiva dos mortos para obter o
conhecimento xamânico (literalmente “objetificado” na forma de enfeites corporais), os
espíritos do mato adquirem o conhecimento xamânico através do roubo dos enfeites
corporais dos Mamaindê.
Durante as sessões de cura, o xamã deve resgatar os enfeites roubados dos doentes
com a ajuda dos espíritos dos mortos que, em troca, recebem comida dos vivos para
continuarem atuando como auxiliares do xamã. Boa parte das músicas de cura se refere aos
enfeites trazidos pelos espíritos dos mortos: o espírito chega dizendo que vai procurar o
colar que o doente perdeu para traze-lo de volta e anuncia que tem muitos enfeites para dar
ao xamã. Algumas músicas também falam que os espíritos dos mortos estão chegando para
“comer junto” com os seus parentes vivos e se referem à comida como na yohdu (seu
pagamento).
Em um artigo sobre a música vocal dos Mamaindê, Avery (1977) menciona o fato
de uma música ter sido classificada como “música de cura” (wãninso´gã hainsidu), embora
o texto se referisse especificamente à troca e o comentário sobre a música indicasse que os
espíritos estavam satisfeitos com a troca realizada. Deste modo, as sessões de cura podem
ser descritas como um tipo de troca na qual se obtém os enfeites trazidos pelos espíritos dos
mortos. Assim, é possível afirmar que, neste contexto etnográfico, a perspectiva dos mortos
é fundamental para definir a identidade dos vivos.
Além disso, como vimos, os enfeites corporais são também repositórios do
conhecimento xamânico. É a posse de muitos enfeites corporais dados pelos espíritos dos
mortos que confere ao xamã a capacidade de ver o mundo como eles. Neste sentido, é
interessante notar que os enfeites também podem ser considerados repositórios da agência
dos mortos. Os Mamaindê dizem que, sempre que o xamã faz algum objeto, os espíritos
dos mortos estão fazendo junto com ele. Por isso, ele deve ter o cuidado de deixar uma
panela com chicha ao seu lado para que os espíritos dos mortos possam beber.
A confecção de outros enfeites, como a saia de buriti usada nos rituais e os brincos
de madrepérola, também implica o estabelecimento de relações com os espíritos
considerados “donos” do buriti e das conchas usadas para fazer os brincos. Nos dois casos,
os Mamaindê devem oferecer chicha e comida para esses espíritos para evitar que eles
fiquem com raiva e provoquem doenças, principalmente nas crianças que têm o espírito
mais vulnerável ao ataque de espíritos malévolos.
Podemos perceber, assim, que os enfeites corporais usados pelos Mamaindê são
repositórios de relações estabelecidas com outras espécies de sujeitos (espíritos dos mortos
ou espíritos do mato) e que essas relações são fundamentais para a constituição da pessoa.
Assim, a produção dos enfeites pode ser descrita como uma relação de apropriação de algo
que é feito por Outros.
É interessante notar que nem sempre a apropriação dos objetos dos espíritos implica
em uma relação de partilha alimentar. Em alguns casos, basta que o xamã olhe para os
enfeites dos espíritos para se apoderar deles. Neste caso, diz-se que o xamã “copia”
(eududenlatwa, olha e pega) os enfeites dos espíritos. Foi deste modo, que os Mamaindê
aprenderam a fazer o cocar de penas de tucano usado no ritual de puberdade feminina. O
xamã “copiou” o cocar usado pelo “povo da água” (nahon nagayanadu).
Mas o ponto que eu gostaria de ressaltar aqui é que, para os Mamaindê, a aquisição
dos enfeites corporais é um mecanismo fundamental para a constituição da pessoa e, ao
mesmo tempo, aquilo que permite a sua transformação. Como vimos, a posse dos enfeites
corporais é o que define um sujeito capaz de ter consciência, memória, intencionalidade e
também aquilo que o torna visível para outros tipos de gente, tornando-o passível e
transformação. Assim, o que o espírito “dono” do macaco-aranha enxerga e rouba dos
Mamaindê são os seus enfeites corporais. Neste caso, a troca de enfeites equivale a uma
troca de perspectivas. Os enfeites corporais usados pelos Mamaindê são, portanto,
materializações das relações sociais que constituem um sujeito neste contexto etnográfico.

***

Os Mamaindê não costumam traduzir o termo “cultura”, preferindo usa-lo sempre


em português. Quando lhes perguntei sobre uma possível tradução para o termo, obtive as
seguintes respostas: nusa wasainkiktadu (nossas coisas; onde /-kik-/ = nós; /-tadu/ =
nominalizador), nusa ongatadu (aquilo que nós mexemos). Devo acrescentar que o verbo
/onga-/ (mexer) é freqüentemente usado para se referir aos feitos do xamã. Deste modo, os
enfeites e objetos que o xamã torna visíveis são descritos como “aquilo que o xamã mexe”
ou como o “trabalho” ou “mágica” do xamã.
É interessante observar que nesta tradução feita pelos mamaindê, a “cultura” foi
literalmente tornada objeto e, deste modo, é algo que pode ser adquirido, roubado ou
trocado e também quantificado. Conforme enunciou o xamã, ao propor um encontro de
xamãs da região relatado no início deste artigo, o xamã com mais conhecimento da sua
cultura é aquele que tem a maior quantidade de enfeites corporais. Deste modo, o “Centro
de Valorização Cultural dos Povos Nambiquara”, ao invés de remeter à idéia de uma
identidade cultural única que antecede as relações, foi concebido como um local destinado
à demonstração da capacidade dos xamãs de adquirir outros pontos de vista.
Bibliografia

Avery, Thomas, 1977, “Mamaindé Vocal Music”. Ethnomusicology, n.3, sept. 1997.

Fiorini. Marcelo, 1997, Embodied Names: Construing Nambiquara Personhood


Trough Naming Practices. Dissertation thesis, Department of Anthropology, New York
University.

Price, David, 1989, A Nambiquara puberty festival: the onset of female puberty is
regarded as a maiden´s passage to womanhood and is celebrated by the Nambiquara of
Brazil with a festival of dance and song, s.n.

Viveiros de Castro, Eduardo, 2002 A inconstância da alma selvagem - e outros


ensaios em antropologia, Cosac & Naify, São Paulo.

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