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Joana Miller
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Os Mamaindê dizem que, além dos enfeites visíveis, possuem também enfeites
internos que só o xamã é capaz de enxergar e de tornar visíveis durante as sessões de cura.
Ambos são chamados genericamente de wasain´du (coisa, material), termo que também
pode designar todos os pertences de uma pessoa.
Os enfeites internos não são concebidos como fundamentalmente distintos dos
enfeites visíveis. O que os torna visíveis ou invisíveis não é uma característica intrínseca a
eles, mas a capacidade visual do observador. Do ponto de vista do xamã, um ser capaz de
adotar múltiplos pontos de vista, o corpo se revelará sempre como um corpo enfeitado.
Durante as sessões de cura, o xamã costuma retirar os enfeites internos do doente,
tornando-os visíveis. Esfregando as mãos na cabeça do doente, ele retira uma linha de
algodão (kunledu) que, aos seus olhos, é um colar de contas pretas (yalikdu). No entanto, de
acordo com o xamã, não é somente ao redor da cabeça que possuímos essa linha/colar, todo
o nosso corpo está enfeitado com voltas de colar de contas pretas.
Certa vez, observei um xamã curar uma velha que sentia fortes dores no corpo. Ele
retirou algumas miçangas de dentro do seu joelho e da sua barriga e explicou que ela estava
doente porque os colares que ela tinha dentro do seu corpo (na wasain´du) haviam se
rompido. Ele acrescentou, ainda, que isso aconteceu porque ela havia guardado os seus
colares em casa da maneira errada, ela deveria tê-los guardados esticados e não dobrados.
Deste modo, o que acontece com os enfeites de uma pessoa, sejam eles internos ou
externos, a atinge da mesma forma provocando doenças que podem leva-la à morte. Nesses
casos, cabe ao xamã consertar os enfeites rompidos e recoloca-los novamente dentro do
corpo do doente.
Muitas vezes o xamã também recomenda que os doentes passem a usar mais colares
ao redor do corpo. Durante uma sessão de cura, observei um xamã retirar miçangas de
dentro do corpo de um homem e entrega-las à esposa dele que, imediatamente, fez com elas
um novo colar para colocar nos pulsos do marido adoentado. Deste modo, embora seja
invisível aos olhos das pessoas comuns, a linha/colar pode se tornar visível durante as
sessões de cura e, neste sentido, não é concebida como fundamentalmente distinta dos
colares que os Mamaindê usam externamente.
Os Mamaindê dizem que essa linha/colar é o nosso rumo, a nossa memória e
também aquilo que nos faz sonhar. Sem ela não sabemos mais onde estamos, deixamos de
reconhecer nossos parentes, ficamos perdidos, doentes. Quando isso acontece, diz-se que a
pessoa perdeu o seu “espírito” (yauptidu) ou as suas “coisas” (wasain´du). Neste contexto,
os Mamaindê costumam inclusive traduzir o termo wasain´du por “espírito”, em português,
indicando que a perda da linha/colar equivale à perda do próprio espírito. Sem a
intervenção do xamã para trazer a linha/colar de volta a pessoa pode morrer.
O mesmo se passa quando alguém perde outros enfeites corporais. Pude perceber
isso enquanto observava uma mulher fazer o cocar de penas de tucano (yalãngalodu) que
seria usado por sua filha na festa que encerra o ritual de puberdade feminina. Ela comentou
que se alguém roubasse aquele cocar a sua filha poderia morrer imediatamente, pois ela
perderia o seu espírito (yauptiu). Fiorini (1997) relatou algo parecido para os grupos
Nambiquara do sul do Vale do Guaporé. Ele observou que os Manairisu consideravam
determinados objetos, principalmente os enfeites corporais, uma extensão do seu próprio
espírito (yaukitsu) e acrescentou ainda que as crianças costumavam usar muitos colares
porque o seu espírito era considerado mais vulnerável ao ataque de espíritos malévolos.
Price (1989:681) também mencionou brevemente a importância que os grupos Nambiquara
do cerrado conferiam aos ornamentos corporais. Segundo ele, as coisas feitas pelas pessoas
(yegnk´isu, artesanato), como colares e enfeites, se opõem aos objetos naturais – plantas ou
animais – são “coisas espirituais”. Elas são carregadas de mistério e usadas junto ao corpo,
especialmente no ritual.
Os casos relatados acima indicam que, neste contexto etnográfico, os enfeites
corporais usados pelas pessoas podem, em algum momento, ser considerados o seu próprio
espírito (yauptidu). Deste modo, a doença é freqüentemente descrita como uma perda dos
enfeites corporais e as práticas xamânicas que visam a fixação do espírito ao corpo
implicam, como vimos, em enfeitar o corpo com muitas voltas de colar de contas pretas.
Mas se, de acordo com os Mamaindê, a posse dos enfeites corporais confere a um
sujeito a sua capacidade de ter consciência, memória, rumo - qualidades que são
equacionadas à noção de espírito – em determinados contextos os enfeites se revelam, eles
mesmos, sujeitos. Durante as sessões de cura, a linha/colar costuma falar com o xamã.
Assim, ao retira-la de dentro da cabeça do doente, o xamã esfrega a linha/colar entre as
mãos levando-a para perto de seus ouvidos. Após escutar o que a linha/colar lhe contou, ele
revela a todos o que aconteceu. Só então, o doente consegue se lembrar do que se passou
com ele e começa a melhorar.
Mas não é apenas no contexto do xamanismo que os enfeites corporais podem se
revelar como sujeitos. Durante o período de reclusão que caracteriza o ritual de puberdade
feminina, a menina reclusa não pode usar enfeites sob o risco deles se transformarem em
animais perigosos. Ao final da reclusão, faz-se uma grande festa e a menina é retirada da
casinha em que ficou presa pelos convidados que vieram de outras aldeias Nambiquara.
Nesta ocasião, ao contrário da reclusão, o seu corpo deve ser super-enfeitado com adereços
de vários tipos e muitas voltas de colar de contas pretas. Um dos cantos rituais equaciona a
menina ao colar de contas pretas que ela usa. Neste momento, ela também pode ser
chamada de da wasain´du (minha coisa, meu enfeite), principalmente pelos seus pais, que
também devem fazer muitas voltas de colar para dar aos convidados que a retiraram da
reclusão. Assim, se na reclusão os enfeites corporais se tornam perigosos porque podem se
transformar em animais, na festa que marca o final do ritual os enfeites se tornam
indispensáveis e são identificados à menina de tal modo que ambos passam a ser uma coisa
só (wasain´du).
No mito, o estatuto humano dos enfeites e dos objetos feitos pelas pessoas se torna
ainda mais evidente. Há um mito mamaindê que conta como as pessoas se transformaram
em animais no momento em que uma criança abriu uma cabaça que continha a noite
(escuridão) em seu interior. Até então, os animais que existiam eram mantidos presos em
um buraco controlado por um pajé “dono” dos animais. Nesse tempo o sol nunca se punha,
tudo era claro e visível. Até que um dia as crianças desobedeceram as ordens do pajé e
abriram o buraco dos bichos deixando-os escapar. Como castigo, o pajé deu uma cabaça
que continha a noite em seu interior para uma criança segurar, mas a cabaça estava cheia de
marimbondos. Sem conseguir resistir às picadas do inseto, a criança largou a cabaça e
gritou avisando que ia escurecer (“kanahlehnuuu...”, vai escurecer!) e, então, a noite se
espalhou pelo mundo. Neste momento, as pessoas e os objetos que elas faziam (machado de
pedra, cesto cargueiro, flecha) deram origem a vários animais. A criança virou um tipo de
coruja (urutau) que grita à noite. Os velhos viraram uma espécie de macaco (kondu) que
tem o pêlo branco. O machado de pedra falou que gostava de derrubar árvores para comer
mel e, assim, se transformou em irara (animal de dentes afiados que come mel). As flechas
envenenadas usadas para caçar viraram cobras venenosas. As perneiras de algodão do pajé
viraram lacrais. Um tipo de cuia feito de cabaça falou que ia virar jabuti porque não queria
pegar chuva. O cesto cargueiro virou onça e é por isso que a onça tem a pele pintada como
o trançado deste cesto. Os Mamaindê dizem que, ainda hoje, os cestos cargueiros
abandonados no mato podem se transformar em onça e voltar para atacar o seu dono. No
final do mito afirma-se: “todos esses animais são feitos de gente” (nuna´ã yuhga nagayanã
weisilatwa), indicando que, assim como as pessoas, os objetos que elas fabricavam tinham
o estatuto de sujeitos.
É interessante notar que, no mito, os objetos que têm o estatuto de sujeitos são
justamente aqueles fabricados pelas pessoas, o que os torna, neste sentido, portadores de
uma agência humana. Ao definir o significado do termo wasain´du, os Mamaidê enfatizam
justamente esta característica dos objetos assim designados: “wasain´du é tudo aquilo que a
pessoa tem, principalmente o que ela faz ou usa”. Assim, a idéia de que os objetos são
portadores de uma agência humana é o que os torna potencialmente humanos. A esse
respeito, Viveiros de Castro ([1996] 2002:361) observou que “os artefatos possuem esta
ontologia interessantemente ambígua: são objetos, mas apontam necessariamente para um
sujeito, pois são como ações congeladas, encarnações materiais de uma intencionalidade
não material”. Neste sentido, podemos dizer que, para os Mamaindê, os enfeites corporais e
as coisas feitas pelas pessoas são uma espécie de epítome da noção de espírito na medida
em que são concebidos como portadores de uma agência humana, estando necessariamente
remetidos a um sujeito.
Procurei demonstrar até aqui que os enfeites corporais podem ser concebidos como
sujeitos e, ao mesmo tempo, como aquilo que define um sujeito capaz de ter consciência,
memória, rumo e intencionalidade próprias. Contudo, não posso deixar de observar que,
segundo os Mamaindê, existem também outros tipos de seres que possuem enfeites. O
espírito do monstro canibal dayukdu, considerado o “dono” (wagindu) do macaco-aranha
por ser uma versão aumentada desta espécie, costuma roubar a linha/colar dos Mamaindê
durante o sonho e colocar a dele em seu lugar. A pessoa afetada fica muito doente, esquece
os seus parentes, perde o rumo e o seu espírito (yauptidu) passa a viver no mato,
acompanhando o dayukdu. Neste caso, os Mamaindê também dizem que a pessoa que tem a
sua linha roubada/trocada pelo dayukdu torna-se parente dele (na waintadu) e passa a
enxergar os seus próprios parentes como se fossem bichos, (nadadu, animal grande e
perigoso, predador). A troca de enfeites corporais com o dayukdu equivale, neste sentido, a
uma troca de perspectivas.
Para os Mamaindê, a maior parte das doenças é provocada pelo roubo da linha/colar
pelo dayukdu. Quando isso acontece, o xamã deve retirar da cabeça do doente a linha
deixada pelo dayukdu e colocar uma nova linha. Deste modo, o processo de transformação
desencadeado pelo roubo da linha/colar é interrompido. A pessoa volta a reconhecer os seus
parentes e o seu espírito (yauptidu) deixa de vagar pelo mato, seguindo o dayukdu. Assim, a
experiência da transformação é descrita pelos Mamaindê como uma troca de enfeites
corporais. Neste caso, podemos dizer que a posse dos enfeites corporais é o que define um
sujeito capaz de ter consciência e perspectiva próprias e, sobretudo, o que lhe confere a
possibilidade de se transformar em outro tipo de gente.
Mas seria errôneo pensar que a posse dos enfeites corporais é um atributo
ontológico fixo de cada espécie de sujeito. Quando perguntei aos Mamaindê se eles já
nasciam com enfeites por dentro do corpo, as respostas variavam. Algumas pessoas diziam
que sim e outras contestavam veementemente esta afirmação. No entanto, todos
enfatizavam que o xamã deve sempre trazer novos enfeites para colocar no corpo dos
doentes. Neste caso, o que importa para os Mamaindê não é saber se eles já nascem com
enfeites, mas ressaltar a possibilidade de perde-los, de ter os enfeites trocados ou roubados
por outros seres. Portanto, só faz sentido pensar nos enfeites corporais como componentes
da pessoa quando a pessoa está inserida em uma relação.
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Avery, Thomas, 1977, “Mamaindé Vocal Music”. Ethnomusicology, n.3, sept. 1997.
Price, David, 1989, A Nambiquara puberty festival: the onset of female puberty is
regarded as a maiden´s passage to womanhood and is celebrated by the Nambiquara of
Brazil with a festival of dance and song, s.n.