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Claudio Naranjo

A Música Interior
Por uma Hermenêutica da expressão sonora

Traduzido do original em Espanhol por


Eduardo de Carvalho Ribeiro
Instruções para o uso deste livro

Este é um livro pdf interativo, assim o leitor pode ouvir aos exemplos musicais e assistir
aos vídeos apenas clicando na partitura ou símbolo desejado. Eu recomendo
especificamente este método de leitura do texto em uma tela de computador como meu
preferido.

Claudio Naranjo
Índice

Breve nota aos leitores ...............................................................................................04

Uma dedicatória em forma de PREFÁCIO AUTOBIOGRAFICO .......…..……….……………..06

Prólogo, por Fernando Palacios...................................................................................10

1. A maneira de Introdução: música, significado e cura..............................................13

2. Proto-semântica Musical, e o jogo do colorido tonal no tempo .............................17

3. Motivos, frases e sentenças musicais ......................................................................36

4. A construção de significados através da forma musical ..........................................69

5. Como em Beethoven a forma sonata e a estrutura sinfônica se tornam metáforas de


um processo evolutivo .............................................................................................113

6. A viagem do herói na estrutura sinfônica ...……….....................................................123

7. A intuição de uma morte prematura em Schubert ....…………………...........................149

8.O mundo vivencial de Brahms através da obra desconhecida de Tótila Albert .......184

9. Sobre coração da Música .........................................................................................213

10. Algo mais sobre o Ditado Musical de Tótila Albert ................................................232

Índice das obras musicais citadas ................................................................................235

Sobre o autor ...............................................................................................................237


Breve nota aos leitores

Embora minha motivação inicial ao empreender este trabalho fosse a de preparar o


caminho para a obra poético-musical ainda inédita de Tótila Albert, que necessitará ser
apresentada em forma de um livro em pdf interativo, me dizem que consegui (e posso
crer) um resultado mais amplo, vindo a produzir algo que tem faltado na educação
musical e na cultura: uma reflexão sobre a música que dê a devida importância à nossa
experiência musical, em vez de desprezá-la como um fato extra-musical meramente
subjetivo e irrelevante.

Durante os primórdios de sua carreira literária, Bernard Shaw 1 foi crítico musical, e
uma vez escreveu uma sátira do que se considera ordinariamente a crítica musical
através de um comentário do famoso solilóquio de Hamlet que começa por “to be or
not to be”. Li isto em minha adolescência em uma revista HighFidelity, e recordo de
seu começo, em que dizia: "o autor valentemente, expõe seu tema no infinitivo, e essa
passagem que, em sua brevidade, condensa os significados do negativo e do
alternativo, decididamente reexpõe no infinitivo; e assim chegamos ao primeiro ponto
e vírgula. A frase seguinte recebe sua ênfase, decididamente, no adjetivo
demostrativo…etc”.

Porque nos resulta divertido este parágrafo? Não só porque seria ridículo que um
crítico literário se limitasse em seu comentário desta passagem a assuntos puramente
gramaticais, mas porque algo semelhante fazem os críticos musicais ao suporem que a
música é só ritmo, melodia, harmonia, contraponto, timbre e outros assuntos formais
ou físicos.

Não é parte de nossa cultura musical acadêmica, especialmente, o sentir que a música
é um simbolismo, sonoro que transmite significados. E quando se põe isso sobre a
mesa, é prontamente rebatido com “não existe nenhuma relação entre a expressão
musical e a linguagem verbal…" – coisa que é bastante certa, ou que não alude a
música aos fatos do mundo exterior. E as pessoas se confundem com tais argumentos,
como se a única possibilidade da música aludir a conteúdos extra-musicais fosse a
onomatopéia e que além dos sons do mundo exterior não existisse um mundo interno,
que é o verdadero território da música e da vida mesma.

Conheço pessoas que pensam que o acadêmico infectou a música como a tudo mais,
distraindo aqueles que buscam o saber do saber mesmo, que é sobretudo a
compreensão da realidade vivida, e levando-os a uma espécie de espuma conceitual
que interessa sobretudo aos presumíveis sabedores, e penso que não só na música se
não que na vida, o pensamento frequentemente se constitui em um substituto da
comprensão vivida e por isso se assemelha a uma patologia cultural.

1
George Bernard Shaw (Dublin, 26 de julho de 1856 – Ayot St. Lawrence, Hertfordshire, 2 de novembro
de 1950) - escritor, crítico musical e teatral, ganhador do Prêmio Nobel de literatura em 1925 e do Óscar
em 1938.( http://es.wikipedia.org/wiki/Bernard_Shaw)
Por isso não são aos acadêmicos ou aos músicos profissionais que quero dirigir este
livro, mas às pessoas comuns, às quais o vício empobrecedor da musicologia tem
descuidado de uma introdução relevante à música que é parte de nossa cultura, e isso
ocorre precisamente, ao lado de outros comentários que aqueles próprios da
musicologia, a exigir que todos saibam ler a notação musical.

Mas não se requer notação musical para falar de música hoje em dia, pois podemos ir
além das limitações de um livro impresso em papel. Por isso este livro tomou a forma,
principalmente de um documento interativo para a ilustração do Ditado Musical de
Tótila Albert e de diversos exemplos musicais em áudio e vídeo.

Não me resta mais do que agradecer a Eduardo Ribeiro, que apesar de sua vida muito
ocupada como professor universitário e regente de orquestra me ofereceu ocupar-se
das ilustrações acústicas e da notação musical em meu manuscrito; a Peggy e Juanita
Richter, que me ajudaram com as traduções de Tótila Albert, assim como a Patxi del
Campo, meu editor, e ao admiravelmente talentoso Fernando Palacios pelo privilégio
de seu Prólogo.
Uma dedicatória em forma de
PREFÁCIO AUTOBIOGRÁFICO

Minha mãe admirava aos grandes homens, e creio que os músicos lhe pareciam
especialmente grandes, sendo ela mesma de cultura musical e boa pianista amadora
(muito apreciada em sua forma de tocar por seu amigo Claudio Arrau, em honra do
qual escolheu meu nome). Graças à conjunção de seu interesse nas celebridades
musicais com o fato de que meu pai fosse não só um bom provedor, mas um homem
generoso e muito atento a satisfazer aos desejos de minha mãe, posso recordar a
presença de muitos músicos na casa de minha infância. Com o tempo, minha mãe se
transformou em uma célebre anfitriã para os músicos estrangeiros que passavam por
nosso país, que não eram poucos, pois devido à segunda guerra mundial, muitos
grandes músicos europeus viajavam à América do Sul.

Me parece que foi precisamente à partir de Claudio Arrau que se deu a conhecer no
grêmio musical a disponibilidade e agradável ambiente da casa de minha mãe; e foi
assim como me chegaram a ser bastante familiares durante a infância a presença de
Erich Kleiber, Mischa Elman, Herman Scherchen, Jascha Horenstein e outros. Dizia
Arrau, se parecia a casa de minha mãe ao salão dos Mendelssohn na Alemanha do
século XIX.

E naturalmente quis minha mãe que eu também fosse músico, embora nunca tenha
me dito, pese a que quando chegou para mim o momento de escolher uma profissão e
quando quis seguir tal caminho, se opusesse veementemente a ele. Devo ter
percebido seu desejo sem necessidade de palavras durante minha infância, sem
dúvida; pois quando era criança não me sentia amado por ela, implicitamente concebi
que talvez conseguisse um dia atrair seu amor chegando a ser um grande homem.

Quando à partir dos seis anos de idade comecei a receber classes de piano, entretanto,
não posso dizer que me entusiasmaram. Isso simplesmente constituiu uma das rotinas
de minha vida até o dia em que com os alunos do internato em que cursava o primeiro
ano de humanidades fui levado a um cinema de Valparaíso para a ver um filme
intitulado “A Canção Inesquecível” 1 sobre a vida de Chopin, começou a música a
comover-me. Ao começo unicamente a música de Chopin me comovia, levando-me ao
choro e ao êxtase; e então, naturalmente, o desejo de tocá-la acelerou enormemente
meu progresso pianístico.

Foi nessa época, por volta dos 11 anos de idade, quando minha fascinação por Chopin
atraiu a atenção de um amigo de minha mãe que, apesar de sua profissão de
arquiteto, foi um dos talentos musicais mais extraordinários que conheci. Aquiles
Landoff não só podia tocar ao piano a música do filme mais recente visto no cinema,

1
A Canção Inesquecível (A Song to Remember) é um filme biográfico de 1945. Conta a vida do pianista e
compositor polonês Frédéric Chopin. Foi dirigida por Charles Vidor e protagonizada por Cornel Wilde
(como Chopin), Merle Oberon (como George Sand), Paul Muni (como Józef Elsner), Stephen Bekassy
(como Franz Liszt) e Nina Foch.( http://es.wikipedia.org/wiki/Cancion_inolvidable)
mas também reproduzia de ouvido passagens difíceis de obras tais como as baladas de
Chopin. Era amigo pessoal de Arthur Rubinstein, com quem compartilhava essa paixão
chopiniana que agora eu começava a sentir, e em resposta ao entusiasmo que
percebeu em mim, deu-me um dos maiores presentes de minha vida ao me dar as
gravações que Cortot e Rubinstein haviam feito das polonaises, das mazurkas, dos
scherzos, dos estudos, prelúdios e baladas de Chopin.

Logo que terminou o período de meu internato, entrei no Conservatório Musical de


Viña del Mar e tive a oportunidade de entablar uma amizade pessoal com outros
aficcionados à música que conheci no ambiente de minha mãe. Ouvindo-os tocar e
tocando para eles, diria que aprendi mais do que no Conservatório. Particularmente
aprendi com a proximidade a um jovem musicólogo chamado Frederico Heinlein, que
recentemente se havia mudado da Argentina e se alojou durante algumas temporadas
em nossa casa. Só décadas mais tarde chegaria a ser conhecido no ambiente musical
chileno, ensinando no Conservatório Nacional e tornando-se o crítico musical mais
apreciado do país, que fazia suas resenhas no diário El Mercurio.

Durante minha infância, era ele uma pessoa bem reservada, só o conheciam seus
amigos, e tive a boa sorte de poder sentar-me inumeráveis horas junto a ele durante
os meses de férias, quando tocava uma a uma as sonatas de Mozart e de Beethoven.

Durante os últimos anos das Humanidades, tendo mudado de Viña del Mar para
Santiago, passei a ser aluno da Escola Moderna de Música, aonde estudei piano com
Elena Waiss e composição com René Amengual; e posteriormente ingressei ao
Conservatório Nacional, aonde estudei contraponto com Domingos Santa Cruz e
Gustavo Becerra. Apesar de ter ganhado alguns concursos musicais, tanto de
composição como de piano, se opuseram meus pais – temerosos por minha
sobrevivência – a que me dedicasse profissionalmente à música, e ao entrar na escola
de medicina me vi tão ocupado pelo ritmo dos estudos que fui me afastando do piano
e também da composição musical.

Foi neste período, entretanto, que recebi a mais significativa das influências musicais,
só que desta vez não de um músico, senão que de um poeta. Ou mais especificamente,
um poeta ao qual os chilenos só conheciam como escultor; e que, mais exatamente,
foi um iluminado em quem penso hoje mais como se fosse um profeta, por mais que
fosse um desses completamente ignorados em sua terra.

Embora tenham transcorrido 40 anos desde a morte de Tótila Albert, apenas através
de alguns livros meus se chegou a conhecê-lo um pouco (especialmente em referência
a sua visão do patriarcado como raiz dos males da sociedade e a propósito de sua
epopéia “O Nascimento do Eu” — Die Geburt aus dem Ich) – à qual dediquei o último
capítulo de “Cantos do Despertar”. Mas nada se sabe ainda de sua inédita obra
poético-musical, que tão profundamente apreciei e de cujo conhecimento me sinto
responsável como herdeiro material dos correspondentes manuscritos; e só neste livro
começo a divulgá-la. E é principalmente para dar conta disso que escrevo este livro —
por mais que trate também de outros temas. Só que se trata de temas nos quais me
interessei precisamente à raiz de meu grande interesse pelo “Ditado Musical” de Tótila
Albert, ao que me refiro explicitamente em sua última parte.

Este misterioso e inusitado “Ditado Musical” me levou a uma compreensão mais


profunda da música que, paradoxalmente, não se tornou um estímulo para que me
aprofundasse na interpretação ou na composição, senão que, ao contrário, me levou a
sentir-me um compositor insignificante. E coincidiu isso com que, uma vez terminados
os estudos de medicina, veio a absorver parte de meu tempo um novo entusiasmo – e
também uma nova necessidade. Tomando maior consciência de uma infelicidade até
então tão implícita que se havia tornado invisível, comecei a sentir a necessidade de
conhecer-me melhor; e depois de muito tempo sentindo-me limitado pelos estudos e
minha profissão, surgiu em mim um impulso de busca espiritual. E é assim como,
sendo já médico, gravitei em direção à psiquiatria; pois via esperanças para mim na
Psicanálise e me atraiam as coisas das quais falava Jung. E embora com o passar do
tempo me decepcionaria da Psicanálise e de Jung, me tornei psicoterapeuta, e depois
viajando para a Califórnia pude desenvolver-me mais através de outras ajudas e
influências, tais como as de Fritz Perls, Leo Zeff, Bob Hoffman, Suzuki Roshi, Idries
Shah, Oscar Ichazo, Suleyman Dede e uma série de mestres tibetanos.

Chegou, naturalmente, um momento em minha vida em que tive algo para dar, e é
lógico que tenha tomado isso a forma de uma síntese entre muitas influências e
disciplinas. E foi natural também que entre os ingredientes de meu trabalho
encontrasse algum lugar a música, pois minha compreensão da música me permitiu
gerar formas originais de escuta musical aplicadas à experiência meditativa e à
psicoterapia.

Mas não só em minha atividade de ajudar a outros em seu processo de


amadurecimento psicoespiritual veio a influir minha formação musical. Um resultado
do impacto juvenil da obra de Tótila Albert foi que desenvolvi um interesse na reflexão
filosófica sobre a música, e mais especificamente em torno a como a música funciona
como uma linguagem, ou como sistema simbólico que faz possível a comunicação de
vivências; especialmente, em como a música, mais do que ser só música, funciona em
nós como um alimento espiritual. E já que meus modestos aportes me parecem uma
ponte em direção ao interesse de um futuro público na obra poético-musical de Tótila
Albert, que neste livro começo a dar conhecimento, me resultam algo assim como um
engaste apropriado para tal jóia.

Já entrando no ano em que me torno um octagenário, considero este livro como parte
de uma missão que a vida me assinalou de ser o anunciador ou herdeiro de meu
mentor; e assim como em outro momento de minha vida me pareceu que minha
formação musical tenha tido o sentido principal de chamar a atenção deste ser
extraordinário, e de ter, assim, constituído um estímulo ao nascimento de uma
amizade que tanto significou em minha vida, agora, tantos anos depois, me parece
como se a formação musical que providencialmente recebi poderia ter tido
principalmente a função de me preparar para a tarefa da qual este livro é o primeiro
passo: a de servir de uma ponte para o mundo acessar tal obra tão valiosa como alheia
à moda intelectual imperante entre os músicos acadêmicos.
Não estaria completa esta explicação autobiográfica acerca de minha relação com a
música sem uma referência ao estímulo que significou para a explicitação de minhas
ideias sobre a filosofia da música e de minhas explorações em sua utilização para o
desenvolvimento da consciência o encontro com a musicoterapia através do convite a
diversos congressos e reuniões especializadas — e particularmente à iniciativa de Patxi
del Campo, diretor da Escola de Musicoterapia de Vitoria, graças a cuja iniciativa tive o
privilégio de uma série de estimulantes encontros com Tony Wigram, Karl Pribram,
Fernando Palacios, o psicanalista argentino Héctor Fiorini e outros em Oma, nas
proximidades de Guernika.

Foi também Patxi quem me convidou a publicar um livro com uma síntese de minhas
contribuções — “livro” que tomou a forma de uma série de documentos digitais em
forma de um livro pdf interativo, que a tecnologia atual oferece como a melhor
alternativa para a apresentação de um texto com ilustrações tanto sonoras como
visuais.

Se a dedicatória mais apropriada para um livro é uma que reflita a gratidão àqueles
que contribuiram em sua gênese, espero ter explicado quem são, e só me falta
enumerá-los:
minha mãe, Julia Cohen de Naranjo,
meu xará Claudio Arrau, que foi para mim como um padrinho,
Aquiles Landoff e Frederico Heinlein, a quem recordo como os amigos de minha mãe
que foram mais inspiradores para mim durante a infância,
Tótila Albert, a quem posso chamar um pai espiritual,
Elena Waiss, minha sábia professora de piano,
e Patxi del Campo, quem através dos últimos vinte anos me estimulou a por em
palavras algo do que compreendi acerca da música como espelho da consciência.
Prólogo

Há olhos que sabem ler conversações nos lábios das figuras de porcelana; aonde outros só
encontram névoa, decifram quadros como se fossem livros e descobrem mundos inteiros escondidos
em poemas; olfatos com memória de elefante capazes de recordar epopéias completas; e sabores
com ares de laboratório. Existem ouvidos que podem escutar sussurros através das paredes, ouvir
rangidos entre o matagal em um bosque, distinguir uma humilde nota falsa em um fortíssimo de
uma orquestra, decifrar mensagens nas melodias e sentir desejos irrefreáveis de cadenciar os ritmos
com as palavras. Ouvidos, enfim, que sempre encontram o fio de Ariadne nos labirintos musicais.
Cláudio Naranjo possui todos estes ouvidos. Sua bússola certeira lhe permite orientar-se em
qualquer zigurate sonoro, nos naufrágios sabe localizar a balsa da salvação: é como se sempre
possuísse a chave mestra da caixa de segredos. Tolstoi escreveu que "a música é a taquigrafia da
emoção". Cláudio é o taquígrafo que desvela em suas análises os segredos aos quais os ouvidos
desorientados não podem aceder. Acostumado a refletir e investigar aquilo que está além dos
sons, sua escuta curiosa, disposta a se expor sem proteção, está sempre pronta para iniciar uma
viagem, para ir em busca do silêncio e medir-se com o desconhecido. Cláudio considera que a
música preenche certos vazios interiores, ou seja, opera como um espelho que nos faz dar-nos
conta do que se passa. Em efeito, a música não é apenas um jogo estético, contém outros
muitos fenômenos que nos interessam conhecer. Este livro tão singular nos introduz neste processo
místico de Schubert, que "morre antes de morrer"; na "viagem do herói", que não é outro que
Beethoven; em Bach, "o coração da música"... Aprofundando mais e mais nos compositores
"imprescindíveis", nos conduz por um caminho de sabedoria e paixão, que culmina na incomparável
sensação de "escutar de verdade".

Dispomos de muitas possibilidades para escutar música que combinamos de forma aparentemente
casual em cada momento, e nossa atenção vagabunda nos permite passar de uma a outra segundo o
interesse que nos move à obra. Como a mente decide, ao final acabamos sendo escravos de nossas
próprias reiterações: há quem encontra prazeres supremos degustando certo tipo de ruídos (os
fanáticos das motos, sem ir mais longe, desfrutadores exclusivos de seus próprios detritos),
enquanto que outros se extasiam na contemplação de um simples som repetido "ad infinitum"; há
os que, incomodados com estranhos estrabismos sonoros, encontram paraísos nos sons da seleta
alta fidelidade (fugindo da incomodidade da música ao vivo); inclusive aqueles que apenas desfrutam
comparando versões de seus intérpretes favoritos, sem interessar-se demasiado nas obras, por
muito surpreendentes que sejam; conheço engenheiros de som que podem perceber um débil "clic"
em uma gravação com dezenas de pistas, mas incapazes de distinguir aonde há uma boa canção; do
mesmo modo existem produtores de pop que conseguem acertar o alvo nos gostos reinantes, mas
se tornam frios diante de uma sinfonia de alta graduação. No caminho contrário, ou seja, naquele
das escutas mais profundas, misteriosas e proveitosas, Cláudio nos descobre a figura de Tótila
Albert, o poeta que, em uma espécie de transe, sentia a necessidade de transcrever as palavras que
ouvia quando escutava música sublime. Tótila não escrevia, senão que descobria; a própria lógica
dos sons lhe ditava as palavras, o que o levou a dizer que havia assumido o papel de secretário de
Beethoven. Como menciona o pensador Simon Leys "os pintores, os filósofos, os poetas, mas
também os novelistas - inclusive os inventores e os sábios - alcançam todos a verdade pelos
atalhos da imaginação". Nesse terreno trabalham Tótila e Cláudio: se o labor poético do maestro é
um fascinante exercício de imaginação, a aportação do discípulo ao oferecer-nos esse tesouro oculto
e realizar os meios para facilitar sua escuta não fica atrás.

Quando a linguagem quer se aproximar à ressonância musical se converte em poesia. Se a aspiração


das artes visuais a ser música choca com o manejo do tempo, a poesia o tem mais fácil, pois de certo
modo é música. Poesia e música tem tantas qualidades afins que resulta evidente convocar seus
lugares de convivência, suas semelhanças não podem ser fruto do azar. Nesse transcendente ponto
de dissolução entre ambas linguagens se encontra o trabalho de Tótila que tanto comocionou a
Cláudio quando lhe foi descoberto. Ha algo em seu trabalho que me recorda a essa descrição que
Ítalo Calvino faz de Zora, uma de suas "Cidades invisíveis": "Esta cidade que não se apaga da
mente é como uma armação ou uma retícula em cujas casinhas cada um pode dispor as coisas que
quer recordar”. Essa retícula é a que nos ativam Cláudio e Tótila neste livro. Suas análises tem a
virtude de, através do assombro, fixar e ordenar os acontecimentos da música em nossa memória.

Música e poesia são condensação de tempo, só elas sabem sujeitá-lo, desatar seus nós e mostrar as
mudanças e acontecimentos; com essa capacidade de transfiguração conseguem nos deixar
pasmados. "Tudo é arrastado pelo tempo, tudo se consome e envelhece sob a ação de sua usura",
asseverou Aristóteles. Quando ambas as artes se manifestam, esse tempo dormido se desperta,
desdobra e caminha, deixando que seus cabos se entremesclem em um processo inexorável fora
de nosso controle. Como a vida, mostram um desejo de mudança, um afã em continuar e mudar as
coisas e uma tendência a desaparecer. "A música não imita a natureza, imita a palavra", nos indica
José Luis Téllez, "a fala tem um caráter linear correlativo com sua própria temporalidade". Em
efeito, a música está mais próxima à literatura que às artes visuais, porque compartilha com aquela o
princípio de continuidade formal. O que fazem os clarinetes de klezmer, as surdinas dos metais do
jazz, os pedais das guitarras elétricas, os violinos romenos ou as percussões índias senão "falar" com
uma linguagem muito próxima à vocal, como os tambores falantes do Senegal ou os assobios da
ilha de Gomera? Em certo modo toda música opera de maneira similar: comunicação através do
tempo.

Embora não exista nenhuma pureza química nas generalidades, quando um compositor toma um
poema para convertê-lo em canção, o poeta se sente orgulhoso, escolhido (se não é Goethe, claro);
entende que suas letras serão elevadas a uma arte superior, pois, como tantas vezes se disse, todas
as artes aspiram a ser música. Não obstante, parte do trabalho do compositor será o de encurtar o
espectro rítmico da linguagem dos versos para oferecer uma via pessoal; também limitará a melodia
intrínseca dos poemas - sempre mutável, segundo seja sua leitura - por uma concreta; introduzirá
ênfases aonde o considere, mesmo que o poeta não as tenha considerado; e lidará de igual modo
com o resto dos parâmetros. Se o “convertedor” musical é Schubert, o poema alcançará sem dúvida
uma dimensão artística insuspeitada, mas se não tiver tanta sorte a redução expressiva que se
associará ao poema nos fará sentir saudades dos versos virgens desprovidos de outros acréscimos
supostamente artísticos.

Como vemos, o trabalho de unir forças para transformar poemas em canções, que tem sido feito
desde séculos, é aplaudido por uma maioria. Coisa que não ocorre com o trabalho inverso, que goza
de certo desprestígio: aplicar um poema a uma melodia preestabelecida é causa de estupor
entre a “polícia acadêmica”, dado que, segundo ela, o caráter abstrato da música fica
“diminuído”, simplificado e encaixotado em um significado semântico solitário. É óbvio que não se
tem em conta que pode ocorrer algo similar na direção contrária que mencionei: uma melodia
pode ser melhorada com um texto adequado, do mesmo modo que o ritmo de um bom relato
pode acrescentar interesse a uma música anódina. Que a música não tenha sido criada para
esse fim não quer dizer que não se possa utilizar como suporte de um texto. Pretenda ou
não, toda música canta e conta (afortunadamente, o despreconceituoso mundo do jazz não anda
com melindres e trabalha com igual entusiasmo em ambas direções: no repertório convivem tanto
uma infinidade de melodias antigas às que se acrescentaram vários textos, como melodias de
canções que se interpretam sem texto algum).
Um sentimento inesperado me assaltou na adolescência quando, por razões que não vem ao
caso explicar, me propus escutar música sinfônica, concretamente a Abertura de Tannhauser. Suas
melodias exultantes e seu alento épico me produziam reações interiores inexplicáveis, intuia que era
uma música extranhamente construída a minha medida (como sabemos, isto ocorre sempre). Em
nenhum momento me preocupei em saber se seus temas tinham algum significado dentro da ópera
a que pertenciam. Era uma música excitante, completa, e isso bastava, não necessitava mais
explicações: cantarolei suas melodias de forma compulsiva, lhes pus letras diversas, tirei suas
harmonias na guitarra e as converti em canções que cantava de memória (os textos, mesmo os
incompreensíveis, se recordam melhor quando se cantam, por isso é mais fácil memorizar poesia que
prosa). Quando anos depois me sentei diante de um aparelho de rádio para ouvir a ópera completa,
apetrechado com o libreto em dois idiomas, me surpreendi - embora de certo modo o esperava - ao
comprovar que aquelas melodias tinham letra própria (e não era a minha!), se cantavam em alemão
e formavam parte do drama. Comprovei que todas as notas, antes virgens, conviviam intimamente
com o texto, ou seja, possuíam um significado: o tremendo "crescendo" inicial correspondia à
entrada dos peregrinos; no tema brioso, Tannhauser cantava as maravilhas do amor mundano; os
serpenteantes giros velozes das cordas nos situavam no monte de Vênus... Por uma parte me senti
traído, mas por outra senti o alívio de corroborar que, como vinha intuindo na escuta de qualquer
música instrumental, atrás de cada melodia se ocultavam poemas que devia descobrir. E não só isso:
cada intervalo, cada giro melódico, tudo tinha um significado, ou, melhor dizendo, muitos
significados. Se as notas ascendiam ou descendiam não era porque sim, haviam razões para
explicar os porquês de todos seus giros e das cavalgadas dos acordes na partitura. As traduções
podiam ser ambíguas e, porque não, contraditórias, mas aí é onde estava a graça, nesse segredo de
vozes que se podiam escutar ao auscultar as notas. A artista Carmen Santonja (compositora e
autora das letras das canções do duo Vainica Doble) me contou algo parecido: seu pai lhes
cantava as sinfonias de Beethoven com letras improvisadas; com esse jogo de infância conseguiu
que, desde meninas, suas filhas cantarolassem as sinfonias de cabo a rabo, e esta bagagem lhe
serviu, a Santoja, de treinamento para escrever nos últimos anos de sua vida alguns dos melhores
contos musicais que se conhecem, formas musicais aonde texto e música cavalgam juntos, embora
em distintos cavalos. Aqueles de nós que sempre temos pensado que este tipo de jogos poético-
musicais, ademais de produzir-nos um imenso prazer, eram parte substancial de nossa pessoa,
encontraremos no livro do sábio Naranjo argumentos novos que insistem no poder da música para
falar a nós de nós mesmos.

Quando, em uma reunião em um lugarejo perdido, Cláudio nos revelou a uns poucos escolhidos o
"mundo secreto" de Tótila Albert, não só encontramos resposta a muitas perguntas, senão que,
ademais, como ocorre quando exploramos passadiços ocultos, entramos em um terreno
desconhecido aonde se unem a arte, a magia e a vida. Nessa obra tão peculiar se nos permite
escutar simultaneamente a composição e seu processo, e se abre de par em par e se impõe como
via necessária o canal das emoções. As vezes nota a nota, outras compasso a compasso, sempre
melodia a melodia, tema a tema... o poeta escreve seus versos sobre os pentagramas clássicos
(como se fosse o libreto de uma ópera) e nos mostra uma visão homóloga da música, com
múltiplos significados. Os poemas não só são soberbos, senão que lidos enquanto escutamos a
música aos quais aludem parece que traduzem o conteúdo aparentemente inefável dos
pentagramas ao âmbito das palavras, e isto aporta sentidos ocultos às obras.

Não obstante, uma questião me sobreveio: a música não era essa arte abstrata e assemântica que
refletiam alguns livros e que meus professores não deixavam de indicar? Ante a experiência dos
Ditados Musicais e das análises de Cláudio entendi que a emotividade é tão inerente à música como
a representação à pintura, e essa natureza emotiva provém desde as origens e se encontra em
todos os estilos e todas as formas: a emoção e a forma pulsam desde o embirão, e estão destinadas
a jogar juntas. Se um som solitário é um simples acontecimento, dois já descrevem uma trajetória
interrogativa, formando uma ameba protomelódica com afã de significar; com três já encontramos
sossegos e desassossegos, tensões e distensões, triângulos com seu pequeno drama interno; e com
quatro se apresentam os contrastes, as dissonâncias e mil fatores mais. Tudo isto, combinado com
ritmos, durações, repetições e variações, produz um crescimento à maneira de uma viagem aonde
não param de ocorrer coisas. Copland dizia que a grandeza de uma composição é inversamente
proporcional à nossa capacidade de dizer de que se trata. Sem dúvida, embora um estilo tenha
rasgos de frigidez matemática, serão sempre aparentes, pois não podemos descrever estilo algum
como puramente abstrato, sempre encontraremos argumentações sutis, sejam ou não propostas
pelo compositor. A ambigüidade, a imprecisão, a assemanticidade da música não são senão acicates
inspiradores para os poetas, que, como os músicos, exploram a condição humana. Ante a fria e
desumanizada ideia dos formalistas, a música mostra seus significados em forma de emoções, e
quanto mais provoca, mais viva está. Como nos conta Philip Ball, toda obra de arte supera sua
primigênia razão de ser, e portanto, se mostra disponível para que cada qual a escute como quer e
a interprete a sua maneira. A música também trata de algo, embora esse algo não o
compartilhemos com o compositor. Segundo Naranjo, “a música é um simbolismo sonoro que
transmite significados, nada como ela comunica nosso mundo vivencial”. A música não é só música,
daí que proponha a obra de Tótila como antídoto ao dominante preconceito surgido das
interpretações superficiais que se tem feito da música absoluta desprovida de significantes. Nos dois
últimos séculos se criaram barreiras intelectuais que evitavam os terrenos perigosos das
especulações dirigidas ao significado da música. Afortunadamente, os tempos tem mudado, por um
efeito de ação-reação se iniciou um movimento que foge da falsa literatura e recupera o falar de
música de uma maneira mais rigorosa. Nos cursos de Análise Musical da UIMP (Cuenca), em
programas de rádio - "O Divã e a Cabala" ou "Música e Significado" de Luis Ángel de Benito (RNE) - e
em algumas publicações - "Música e Retórica no Barroco", de Rubén López Cano - se tem mudado o
ponto de vista: se deve analisar a música desde muitos ângulos, conectar sua linguagem com seus
irmãos, buscar as dimensões significantes e mirar-nos nela. É necessário deixar de comentar
exclusivamente "o que rodeia a música" e passar a falar da música de verdade. Há muitas formas
de fazê-lo. Uma das mais clarividentes e belas está neste livro. Agora, quando Vladimir Jankélévitch
se pergunta "o sentimento do inexprimível, não deixa mudos a quem o experimenta?", entendemos
que verbalizar qualquer sentimento é futilidade se não for por meio da música e poesia. Em seu
universo interno está tudo: a música conflui com a poesia, a dança e a vida e, por tanto, com todas as
artes.

Fernando Palacios, 2013


1 A maneira de introdução: música, significado e cura

Para os primitivos, e nos alvores das grandes civilizações, assim como para os
medievais e os renascentistas, para os compositores do barroco e no geral os
românticos, tem sido evidente que a música serve como meio expressivo, funcionando
em forma comparável à linguagem; e daí sua proximidade no período medieval à
retórica, outra componente do trivium 1 junto às matemáticas.

Entre os modernos, sem dúvida, é moda dizer que a música não significa nada. Desde
que o disse provocadoramente Stravinsky, o repetem quase todos os músicos
profissionais, e muitos já o vinham dizendo desde o livro de Hanslick 2 sobre “o belo na
música”.

Porque Hanslick era respeitado como um crítico, teve êxito entre os músicos
entendidos sua afirmação de que a melhor música nem se refere ou deve fazer
referência a experiências extra-musicais; mas convém explicar que não é exato que o
conceito da “música absoluta” introduzido por Hanslick seja algo equivalente à opinião
comum de que a música “não significa nada”; pretende, melhor, que as experiências às
quais acedemos pela música “não são deste mundo” ou traduzíveis a tais termos como
o conteúdo das artes representativas, para as quais a forma é só algo assim como uma
roupagem. E tampouco devemos pensar que ao não ser a música representativa
(exceto em casos óbvios como a tempestade na sinfonia Pastoral de Beethoven, ou na
música composta para balé ou cinema) isto equivalesse à afirmação de que não tenha
um conteúdo. Pois a insignificância do conteúdo referencial na música em nada
contradiz o que mais interessa, qual seja, que nada como a música comunica nosso
mundo vivencial.

Se diz que nossos parentes Neanderthal (que tinham crânios algo maiores que os
nossos mas ao parecer tiveram a desvantagem de não serem tão agressivos ou astutos
como nossos congêneres) não chegaram à fala, mas cantavam. Já não recordo os
argumentos de alguém que escreveu um livro acerca disso, apenas que me pareceram
plausíveis, e me é fácil imaginar as origens da linguagem no gesto e no uso da voz.
Imagino, também, que funciona em forma inconsciente nossa compreensão da
linguagem vivencial da música apesar de nossa insistência em declará-la uma “arte

1
Trivium - Trivium significa em latim "três vias ou caminhos"; agrupava as disciplinas relacionadas com a
eloquência, segundo a máxima Gram. loquitur, Dia. vera docet, Rhet. verba colorat ("a gramática ajuda a
falar, a dialética ajuda a buscar a verdade, a retórica colore as palavras). Assim compreendiam a
gramática (lingua -"a língua"), dialética (ratio -"a razão") e retórica (tropus -"as figuras").
(http://es.wikipedia.org/wiki/Trivium#Las_siete_artes:_Trivium_et_Quadrivium).
2
Eduard Hanslick (Praga, 11 de setembro de 1825 - Viena, 6 de agosto de 1904) foi um musicólogo e
crítico musical austríaco. Foi defensor do formalismo na música, em contraposição ao idealismo
romântico da época. Sua elegante prosa lhe reportou uma grande reputação, ao par que suas ideias lhe
provocaron várias disputas com outros músicos e críticos musicais. Sua obra mais importante é Vom
Musikalisch-Schöenen ("Do belo na música"), editada pela primera vez em 1854.
(http://es.wikipedia.org/wiki/Eduard_Hanslick).
pura” que talvez só nos agrade por causa de certas características matemáticas da
ordenação dos sons.
Mas creio que observamos mal a realidade quando insistimos em que a música seja
algo como uma arte decorativa, assimilável a certas formas geométricas que podem
agradar-nos por sua simetria ou por um sentido da unidade na diversidade; pois
enquanto assim teorizamos não tomamos em conta o importante que é a música para
nós, nem a verdade que encontra eco no mito de Orfeu, que nos apresenta a música
como algo que pode comover até aos deuses do inferno.

Começa Manuel Valls seu livro sobre “a música no abraço de Eros” com um capítulo
intitulado “o poder extra-musical da música” no qual põe em relêvo precisamente o
contraste entre nossas opiniões teóricas e nossa experiência prática, chamando a
atenção a coisas tão óbvias como que uma litania monótona, ou uma cantilena apenas
sussurrada adormecem os sentidos e inclinam o ânimo ao sono, tanto que o rítmico
bater da percussão que acompanha a dança guerreira de uma tribo selvagem estimula
o impulso agressivo e convida ao combate.

Mas mais importante ainda que o uso da música na guerra e no trabalho me parece
um uso implícito que sempre esteve em vista de um simples bem-estar que a música
nos induz, que não poderia ser reduzido a um simples “prazer dos sentidos”. Hoje
chamaríamos “terapêutico” a esse efeito que descreve Dorotéia em uma passagem de
Dom Quixote ao dizer que “a experiência me mostrava que a música compõe os
ânimos descompostos e alivia os trabalhos do espírito”.

Assim como Hanslick quis defender a Brahms da crítica dos entusiastas da Nova Música
Alemã (os quais, encabeçados por Liszt e Wagner, propugnavam um ideal musico-
literário), quero agora eu defender antecipadamente a obra poético-musical de um
artista até agora praticamente desconhecido — Tótila Albert — com algo assim como
um antídoto ao prevalente preconceito surgido de uma interpretação superficial de
Hanslick, o qual a parte de só haver querido dizer que a música é inefável (e não
exatamente que não transmitisse nada) só escreveu movido por uma exageração
ideológica, nascida da conjunção da grandiosidade propagandística de Wagner com o
narcisismo de Liszt.

Isto me proponho fazer através dos capítulos deste livro, que tratam principalmente
dos diferentes aspectos da música: a hermenêutica musical, entendida como a
investigação das correspondências vivenciais das obras musicais (ou fragmentos delas),
e seu aspecto terapêutico, entendido como seu efeito sobre nossa vida emocional e
espiritual.

Me parece que não se pode negar o aspecto extra-musical da música ante uma
exploração hermenêutica que revele convincentemente seu aspecto “interior”, ou
vivencial, que é nossa resposta propriamente musical ao fenômeno estritamente
material de uma “arquitetura de sons”; nem se pode tampouco negar um efeito extra-
musical a uma música que otimize nossa consciência, seja na forma transitória do
transe ou na forma duradoura do efeito terapêutico.
Embora aborde este livro os dois temas enunciados — o da música como transmissora
ou reprodutora de vivências do compositor a seu público e aquele da música como um
meio de otimização ou elevação da consciência — não chega a abordar explicitamente
algo que o título deste capítulo propôs em forma implícita, qual seja uma teoria da
cura. Mas a enuncio desde já afirmando que se a música é algo como um alimento
psico-espiritual, que nos eleva, sana ou faz melhores, isso é assim precisamente
porque se torna possível seu funcionamento como um meio ou uma “linguagem” de
comunicação vivencial.

Embora bem poderia ter chamado a este livro, como este capítulo “música, significado
e cura”, preferi anunciá-lo com o título mais simples de “ensaios sobre hermenêutica
musical”, pois o que contribuo neste é minha própria capacidade de traduzir em certa
medida o conteúdo aparentemente inefável da música ao âmbito das palavras — não
porque a música seja propriamente traduzível em palavras, senão na esperança de que
possa esta reunião de documentos audiovisuais (ou escritos) ajudar a que alguns,
tornando-se melhores escutadores, possam receber a influência sutil de compositores
aos quais costumamos considerar meros artífices dos sons, e que, sem dúvida, tem
constituído invisivelmente poderosos guias espirituais para a cultura ocidental.

Possa também o conjunto de minhas reflexões musicais servir de engaste à jóia que os
atraiu a si e que por sua vez os inspirou; o Ditado Musical de Tótila Albert — que
apresento ao final desta coleção.

Embora originalmente concebi este conjunto de escritos e conferências filmadas como


um pequeno livro com alguns DVDs agregados, o progresso informático tornou
possível ultimamente a inserção de arquivos de áudio e vídeo no contexto de
documentos pdf, pelo qual transformei tal projeto em um áudio-livro com ilustrações
em áudio e vídeo, possíveis de ler em um computador.

Cumprirei ao completar este trabalho o compromiso adquirido implicitamente com a


aceitação da herança literária de Tótila Albert, confiando em que o que digo lhe sirva
de ponte ao futuro público de seu “Ditado Musical”. Penso que este conjunto de obras
encerram tal bendição que não posso deixar de sentir que ao cumprir com minha
função de heraldo ou semeador deste corpus de meditações musicais tenho o
privilégio de fazer algo de grande significado histórico.
2 Proto-semântica musical e o jogo do colorido tonal no tempo

A música ocorre no tempo, como a poesia e como a dança — e se assemelha à dança


pois é feita de gestos e implica em uma coreografia. É também algo como a poesia; a
tal ponto que Beethoven ao se referir a seu ofício preferiu não usar a palavra alemã
comum para compositor, “komponist”, senão que introduziu na lingua o têrmo
“tondichter” — poeta de sons.

Ocorre a música no tempo como nós mesmos existimos no tempo, e é natural que
sintamos o fluir do som como uma metáfora espontânea de nosso devir. Isto equivale
a dizer que a música é como uma viagem, e que pode muito bem tornar-se uma
metáfora sonora de nossa grande viagem — quer dizer, de nosso processo evolutivo.

Avançamos em direção ao futuro em cada momento musical e sentimos esse avanço


em direção ao futuro como um fluir, como um deslizar-se, como um vôo, como um
caminhar, um saltar ou correr, um avançar com esforço contra um obstáculo, como
um afã apressado ou um deixar-se levar agradavelmente por uma corrente, etc.

O tempo — ou velocidade de nosso avanço — se relaciona com a esfera afetiva, de


modo que um allegro evoca alegria, um adagio, sofrimento ou seriedade, um andante,
naturalidade, etc.; e muitos gestos podem caracterizar nosso avanço pela vida através
do veículo da música. Escutemos, por exemplo, “Passos na neve” — um entre os
prelúdios do primeiro caderno de Debussy, em que o reiterado motivo de duas notas
nos sugere passos, sua progressão melódica ascendente nos sugere avanço, enquanto
que a independência algo dissonante da melodia com respeito a tais “passos” nos
sugere algo como solidão, e também um estar perdido:

Debussy – Passos na neve (…Des pas sur la neige)


Diversos ritmos sugerem gestos específicos, e assim como o “salteado”:

evoca o passo brincalhão de alguém que ocasionalmente avança sobre o mesmo pé,
ou a sucessão reiterada de duas notas curtas e uma mais longa, um ritmo de galope:

Também certos motivos melódicos que contém um salteado (como na introdução à


Patética de Beethoven) podem sugerir o suspiro, e a aceleração de um pulso constante
evoca o bater do coração (como no poema sinfônico “Morte e Transfiguração” de
Strauss, em que podemos até perceber o momento em que, na metade da obra, o
coração para de bater e a alma começa sua ascenção pelo espaço). Mas na realidade
rítmica de uma composição dada, tais ritmos geralmente desempenham também uma
função sintática, de modo que o repetir-se de uma sequência rítmica nos transmite
que as frases musicais correspondentes, assimiladas através desta correspondência,
devam ser entendidas através de uma mútua referência ou contraste.

Assim, por exemplo, quando o sujeito de uma fuga se repete a uma quinta superior
(resposta), sentimos algo comparável a uma elevação de seu conteúdo afetivo a um
nível superior de ênfase, que por isso nos faz vibrar de entusiasmo:

Bach – O Cravo Bem Temperado 1, fuga n.2 em Dó menor

Mas não me estenderei mais sobre a linguagem do ritmo (que mereceria ser tratada
melhor por um conhecedor do tambor africano ou da tabla hindú) a não ser assinalar
que certos elementos rítmicos se combinam com as “notas da escala” e às vezes com
harmonias, formando algo assim como “moléculas musicais” chamadas “motivos”, que
podemos também considerar proto-melodias.
Nunca me preocupei em inventariar os ritmos elementares, mas está à vista quais
sejam os “átomos musicais” melódicos — segundo a frequência dos graus sucessivos
das escalas musicais.

Na música clássica chegou a dominar o uso de apenas duas escalas ou modos musicais,
por mais que no medievo, na antiga Grécia, na civilização clássica chinesa e na Índia
tenham sido utilizadas outras. Mas em todos os casos se observa o fenômeno da
repetição das entonações a intervalos de uma oitava, de modo que as notas inicial e
final da escala se reconhecem (apesar de sua distância de uma oitava) como a mesma.
E também através de muitas culturas se dá especial importância ao quarto e ao quinto
graus da escala. E é que não se trata de uma simples convenção tradicional, senão de
um fato natural — que é que se sucedem estas (a quarta, a fundamental e a quinta) no
assim chamado “círculo de quintas”, que resulta da sequência de harmônicos de uma
nota fundamental (e que por sua vez derivam da divisão de uma corda ou coluna de
ar).

Eis aqui a sucessão de duas quintas sucessivas: as notas Fá, Dó e Sol ascendentes.

Se partimos do Dó e a consideramos a nota fundamental de uma escala a quinta


sucessiva que é o Sol, corresponde ao quinto grau da escala correspondente:

Este intervalo nos dá uma sensação muito clara de elevação desde um estado de
repouso a um de tensão. Por outro lado, se consideramos agora o intervalo entre o Dó
com a quinta precedente, o Fá,
percebemos este intervalo como uma caída que nos deixa uma sensação de passar a
um estado de maior repouso. E ainda quando este Fá se escute por cima do Dó,

esta ascenção nos soa como uma chegada a certa estabilidade, e não a uma posição
instável como o quinto grau. São contrastantes o intervalo de quinta ascendente e o
de quarta ascendente, como a quarta ao começo da Marsellesa ou a quinta no
chamado da trompa de Sigfried:

Marsellesa

Sigfried, chamado da trompa

Ambos os graus da escala, a quarta e a quinta, na música hindú se dizem os ministros


do primeiro grau. E como comento mais adiante podemos compará-los ao sol e à lua
por suas características semânticas.

Em nossa escala a oitava se divide em uma sucessão de sete sons contíguos em que se
relacionam as notas sucessivas segundo intervalos de um tom ou de meio tom; e
diferem o modo maior do menor em que o terceiro, o sexto e o sétimo graus destas
são menores ou maiores, respectivamente:
Ouçamos primeiro a escala maior ascendente,

e agora os intervalos de terça e sexta, que como já expliquei, são maiores:

Agora escutemos a escala menor ascendente,


e agora os intervalos de terça e de sexta menor:

Por último escutemos o contraste entre uma terça maior e uma terça menor,

e o contraste entre uma sexta maior e uma sexta menor:

Poderia parecer que as diferenças de colorido entre as notas musicais fossem


demasiado sutis como para merecer um comentário — mas espero demonstrar na
continuação que devemos ver em tais sutis proto-significados os “átomos” dos quais,
ao se constituirem em “moléculas musicales” se constroem significados mais
específicos e aparentes.

Mas convêm que introduza já uma maior precisão: falar de “notas musicais” não é o
mesmo que falar de sons isolados, pois o que costumamos chamar as “notas musicais”
são os tons no contexto de uma escala da que formam parte e implicitamente se
relacionam tais sons com a nota fundamental de tal escala. Pode-se dizer que esta
nota fundamental da escala está no ouvido ou na memória auditiva de quem as
escuta, e isto por sua vez se pode traduzir em que tais notas implicam intervalos com
respeito a tal tônica. E ao dizer que as notas musicais são algo como os átomos do
mundo melódico deveríamos, com mais precisão, dizer que são os intervalos tais
átomos: os intervalos dos tons com respeito à nota fundamental da escala, e mais
amplamente também os intervalos entre um tom e o tom sucessivo.

Poderia parecer que o colorido dos tons musicais dependesse simplesmente de sua
maior ou menor frequência, de maneira semelhante a como depende da frequência da
luz seu colorido. Mas não é assim no mundo acústico, como venho explicando, pois
não é da frequência de um som senão da relação entre esta frequência e outra que
dependerá seu conteúdo expressivo.

De maneira semelhante, podemos supor que a partir dos motivos e seus micro-
significados se constroem pensamentos musicais não só mais extensos, senão que
mais densamente cheios de significado — até que possamos chegar a dizer, por
exemplo, coisas tão específicas e aparentemente extra-musicais como que Beethoven
desafia a Deus, ou que Schubert se enfrente à intuição de uma morte prematura.

Se queremos compreender, então, como o mundo do som se torna veículo de um


fluxo de vivências, devemos começar pela análise destes proto-significados tão
elementares que podemos compará-los a cores ou sabores; qualidades expressivas
que não anteciparíamos a partir da consideração de suas frequências, mas sim, de
certas relações entre frequências. E embora em nossa atual escala cromática,
representada no teclado de um piano pela sucessão das teclas brancas e pretas, são 11
os possíveis intervalos ascendentes e 11 os descendentes a partir da nota que
designemos como fundamental, dois deles são de uma importância principal: os que se
situam à distância de uma quinta por cima ou por baixo de tal nota de referência.
Correspondentemente, são três as notas principais nas escalas musicais da maior parte
do mundo: a nota fundamental mesma, sua quinta superior, e a que se situa no quarto
grau da escala — que corresponde também à que se situa uma quinta por baixo da
fundamental.

Vamos agora examinar o restante das notas, e começarei com a sétima nota – Si – a
qual está um semitom abaixo da tônica e parece diferente de todas as outras notas da
escala pois é a menos estável. Pode ser comparada à Lua que circula ao redor da Terra
e não é propriamente um planeta mas um satélite. “Si” está em um ponto sem
repouso e deseja com intensidade cair sobre a tônica. É uma suspensão aonde poderia
estar a tônica, uma nota entre as outras que apresenta uma das maiores tensões. E
chamamo-la tensão no sentido de que anseia pela resolução. Podemos dizer isto da
sétima maior em geral e da segunda menor ascendente mas em especial quando estes
intervalos estão em relação com a tônica. Se o “Sol” deseja cair na tônica, o desejo do
“Si” de cair na tônica é da mesma natureza, por isto podemos dizer que está
relacionado à dominante. Sem dúvida ele é parte do acorde de dominante, e neste
ponto de nossa consideração de notas individuais, penso que posso inserir um
parênteses sobre harmonia; pois não é verdade que exista algo como uma nota
puramente melódica independente da harmonia, pois que em qualquer nota ouvimos
os harmônicos – os quais funcionam como acordes ocultos.

Assim quando ouvimos o primeiro grau da escala,


(que continuarei a chamar “Dó”), então, ouvimos um Sol juntamente com o Dó,

e eventualmente um Mi,

particularmente quando o registro é grave e quando o instrumento utilizado é rico em


parciais ou harmônicos, e mesmo quando não somos hábeis para discriminar estas
notas adicionais flutuando sobre a fundamental elas dão uma certa qualidade
harmônica que continua a aparecer em uma nota isolada. Já que isto é também
verdade com respeito ao quinto e ao quarto graus da escala – assim como para todas
os outros – isso justifica minha denominação ocasional destas notas com as palavras
Tônica, Dominante e Subdominante, que são tecnicamente reservadas aos acordes.

Um acorde é um grupo de notas tocadas simultâneamente, e os acordes mais simples


são as chamadas tríades maiores e menores, que são resultado da superposição de
duas terças sucessivas sobre os sucessivos graus da escala; que é o mesmo que agregar
a uma nota uma terça superior e uma quinta.

Escutemos o acorde de Dó maior (Dó+mi+sol):

Fá Maior (Fá+la+dó):
e Sol Maior (Sol+si+ré):

primeiro como tons simultâneos e agora em forma sucessiva ou “harpejada” para


assim ouvirmos mais claramente a terça e a quinta:

Por último escutemos a sucessão destes mesmos acordes para que o caráter de cada
um deles possa ser melhor apreciado no contexto de seu conjunto:

Se as notas são acordes implícitos como propus, as sequências de sons aparentemente


simples tem algo do caráter das progressões harmônicas, pelo que a consideração das
progressões harmônicas básicas, poderia nos esclarecer o caráter sutil das
correspondentes sequências de notas isoladas.
Escutemos algumas sequências, começando com a tônica-dominante-tônica:

Comparemo-la agora com a de tônica-subdominante-tônica:

E escutemos agora a muito frequente sucessão de subdominante-dominante-tônica,


que recebe na musicologia o nome de “cadência perfeita” porque nos faz sentir que
chegamos ao fim de uma frase.

Se escutamos agora a sequência dominante-subdominante-tônica,

nos chama a atenção quão menos convincente nos soa esta sequência.

Qualquer intervalo melódico, então, sugere uma progressão oculta de acordes e tem
um caráter por si mesmo, de modo que as notas da escala não se diferenciam só pela
frequência, senão pelo caráter (cor) que lhes é dado por sua relação com respeito ao
primeiro grau ou “Dó”.

Temos tratado até agora da nota fundamental da escala — o Dó arquetípico podemos


dizer (mais além de que segundo sua frequência vibratória possa ser uma nota
qualquer) e de seus “dois ministros” o Fá e o Sol; e vimos que o Si — a “nota sensível”
que precede ao Dó, se caracteriza por uma tal tendência a cair sobre a tônica pelo que
a sentimos como uma personificação desse desejo; e podemos agregar, também, que
essa intensa “sede da tônica” evocada pelo “Si” não só se relaciona com sua
proximidade ao Dó, senão com o fato de que forma parte do acorde de Dominante
(Sol-Si-Ré), caracterizado por essa mesma característica vontade de regresso ao som
fundamental — “regresso a casa” que em certos contextos percebemos como regresso
ao divino.

Continuemos agora nossa indagação dessas qualidades específicas das notas da escala
(e mais amplamente, dos intervalos possíveis desde a tônica) — que são qualidades
que podemos comparar às cores ou aos sabores, e que como as cores mesmas
implicam certo tom afetivo característico.

Na China da antiguidade, segundo nos disse Marius Schneider 1, se assimilavam as


notas da escala pentatônica aos elementos, e o mesmo Marius Schneider descobriu
que também representam notas musicais os capitéis (que representam animais) das
colunas em torno ao pátio central do monastério de San Cugat, próximo a Barcelona.
Sua demonstração foi possível porque ao estabelecer o padrão de sua sequência e
buscar possíveis correspondências entre os animais e as notas, pode descobrir que se
correspondiam tais capitéis com as notas do hino do mesmo monastério. Mas, além
disso, descobriu Schneider que as correspondências entre as notas e os animais se
correspondiam a uma antiga tradição da Índia clássica.

Algo semelhante é querer estabelecer correspondências entre as notas da escala e as


cores, e há pessoas dotadas de sinestesia que estabelecem tais correspondências em
forma espontânea. Mas é interessante saber que os sinestésicos não estão de acordo
com respeito às cores e notas, senão que estabelecem correspondências de maneira
algo pessoal. Podemos interpretá-lo dizendo que melhor se trata de algo semelhante
ao pensamento metafórico, que serve para iluminar as coisas mas que não devemos
converter em um pensamento dogmático.
Dito isto, podemos dizer que se o Dó é como a terra, o Sol é como o sol, e o Fá é como
a lua.
Mas, qual é a cor do Dó? Como origem dos sons e fundamento, poderíamos dizer que
negro; mas não se presta também a metáfora do branco?
Digamos que o Dó inferior é Negro e que o da oitava superior, Branco.
Qual é então a cor do Sol? Devemos pensá-lo tendo em consideração o Fá, com o qual
está em uma relação de simetria — e isto sugere que suas cores respectivas sejam o
vermelho e o azul, pelos extremos opostos do arco íris, com sua sugestão de ação e
repouso, respectivamente.

1
Marius Schneider (1903-1982) - musicólogo alemão cujas obras se destacam por seu original enfoque
baseado em intuições antropológicas e cimentado sobre profundos conhecimentos de simbologia e
mitologia antigas. Sua obra fundamental é A origem musical dos animais-símbolo na mitologia e
escultura antigas onde propõe um sistema de correspondências simbólicas baseado na sinestesia e no
pensamento analógico que pode resultar revelador para os estudos estéticos. Elémire Zolla definiu esta
obra como "a única completamente iniciática do século XX". Schneider foi mestre de Juan Eduardo
Cirlot. (http://es.wikipedia.org/wiki/Marius_Schneider).
E que podemos dizer agora das notas restantes da escala: o Ré, o Mi e o Lá?

O mais conhecido teórico do classicismo alemão — Hugo Riemann 2 — considerava que


os acordes construídos sobre o 2º o 3º e o 6º graus da escala se correspondem com os
acordes principais já comentados de Tônica, Subdominante e Dominante — e por isso
deu ao acorde sobre o Lá o nome de “Tônica relativa”; chamando Dominante relativa
ao acorde sobre o Mi e Subdominante relativa ao acorde sobre o Ré. Mas talvez
haveria sido mais apropriado enumerá-las em uma diferente sequência, pois se
relacionam as notas Ré, Lá e Mi (relativas à subdominante, tônica e dominante
respectivamente) como frequências sucessivas no círculo de quintas 3:

2
Hugo Riemann (1849-1919) - musicólogo e pedagogo alemão. Riemann teve uma reputação mundial
como escritor de temas musicais. Entre suas obras mais conhecidas se incluem o Musiklexikon, um
dicionário completo de música e músicos, o Handbuch der Harmonielehre (Manual de Harmonia) e o
Lehrbuch des Contrapunkts (Manual de Contraponto). (http://es.wikipedia.org/wiki/Hugo_Riemann).
3
Círculo de quintas - Em teoria musical, representa as relações entre os doze tons da escala cromática,
suas respectivas armaduras de clave e as tonalidades relativas maiores e menores. Concretamente, se
trata de uma representação geométrica das relações entre os 12 tons da escala cromática no espaço
entre tons. Dado que o têrmo «quinta» define um intervalo ou razão matemática que constitui o
intervalo diferente da oitava mais próximo e consonante, o círculo de quintas é um círculo de tons ou
tonalidades estreitamente relacionadas entre si. Os músicos e os compositores usam o círculo de
quintas para compreender e descrever tais relações. O desenho do círculo resulta útil na hora de
compor e harmonizar melodias, construir acordes e deslocar-se a diferentes tonalidades dentro de uma
composição.

(http://es.wikipedia.org/wiki/Circulo_de_quintas).
Assim como na escala maior são maiores os acordes que se formam sobre a nota
fundamental, a subdominante e a dominante, se trata de acordes menores no caso
destas notas sobre os graus 2º, 3º e 6º que agora comentamos. E em cada caso estes
acordes, que se situam uma terça abaixo daqueles com respeito aos quais são
“relativos”, tem duas notas em comum com aquele.

Segundo a análise de Riemann, então, poderíamos representar os parentescos ou


relações entre seis das notas na escala (excetuada a nota sensível) como dois
triângulos invertidos superpostos — aquele das notas fundamentais dos acordes
maiores com seu vértice no alto, e aquele das notas que geram acordes menores com
o vértice para baixo, em analogia com seu caráter triste:

Diferem a escala de Dó maior e a de Dó menor segundo o caráter das notas em seu


terceiro e sexto graus, de modo que aonde na escala de Dó maior há um Mi, na escala
menor encontramos um Mi bemol, cuja entonação é de um semitom mais baixo; e
analogamente, aí aonde no modo maior há um Lá, o substitui na escala menor um Lá
bemol. Basta com isto para imprimir às melodias construídas nas tonalidades maior ou
menor um caráter mais alegre ou triste, respectivamente, como podemos
compreender quando comparamos os intervalos contrastantes:
Consideremos agora os intervalos de terça, e proponho que o façamos em primeiro
lugar comparando-os no contexto harmônico dos principais acordes a que pertencem.
Mas convêm que insira aqui outro parêntese de análise harmônica e aproveite este
momento para convidar a meus leitores a que reparem como varia o acorde
incompleto formado só por uma nota com sua quinta superior quando se introduz
entre tais duas notas a terça — que se situa à distância de uma terça tanto com
respeito à nota inferior como à superior:

Como descrever o efeito desta terceira nota que completa o acorde?

É como se um “acorde de quinta” — que é um acorde incompleto — tivesse seu ventre


em sua nota fundamental e sua cabeça em sua nota superior, mas lhe faltaria ainda o
coração.

Uma vez que agregamos ao acorde de Dó um Mi ou um Mi bemol (que o converte em


um acorde propriamente tal, ou, como se diz, uma tríade) lhe agregamos seu elemento
afetivo — seja ele alegre ou triste:

Houve um tempo em que a música foi só melódica ou monódica e um tempo (durante


a idade média e o renascimento) em que o contraponto a várias vozes só permitia
intervalos de quinta ou quarta. Mas logo nasceu a harmonia propriamente dita, que
empresta à música seu rico envoltório afetivo, com a introdução da terça:
Organum (Musica Enchiriadis)

Mas deixemos esta digressão sobre a harmonia para voltar ao tema mais simples dos
intervalos em sua expressão melódica, retomando o tema dos intervalos de terça e
especialmente o intervalo de uma terça desde a nota fundamental ou tônica — quer
dizer, o Mi.

Mas antes de voltar ao tema do caráter expressivo da terça, quero mencionar um fato
físico-matemático e acústico; e é que por mais que se diga que todas as notas da
escala musical sejam geradas a partir do círculo de quintas, não é tão certo isto em
relação com o Mi, que se situa a uma distância de demasiadas quintas com respeito ao
Dó para que sua vibração seja audível. As terças, que nos resultam tão harmoniosas,
derivam por outra parte da divisão de uma corda em cinco partes, e isto parece que
lhe dá sua particular beleza e doçura — de modo que constituem o intervalo preferido
quando se quer improvisar o acompanhamento de uma voz por outra no canto
popular.

Escutemos agora o intervalo melódico de Dó a Mi:

A pergunta acerca de seu caráter pode tornar-se mais fácil se o comparamos com os
intervalos já comentados de Dó-Fá e Dó-Sol:
O passo de Dó a Sol é como aquele desde a terra ao cume de uma montanha, e o
passo de Dó a Fá é um ascenso a um planalto em que podemos repousar, mas em
ambos os casos sentimos que chegamos a alguma parte — que é como dizer que se
tratam de intervalos que percebemos como estáveis. Por mais que a dominante seja
uma nota/acorde que tende à tônica, e que isto seja algo que percebemos como uma
certa medida de tensão que busca uma descarga, isso não contradiz que nesse cume
podemos sentir-nos relativamente enraizados. Mas quando em vez de saltar do Dó à
quinta superior saltamos só à terça, é duvidoso que possamos dizer que chegamos a
alguma parte; em vez disso nos sentimos na metade do caminho em direção a alguma
parte:

Corresponde este ao caráter expressivo do Mi e seu nome de “mediante”. Há nela algo


de lugar neutro — mais neutro que a própria tônica, pois aquela nos faz sentir que
tocamos o fundo do espaço musical ou a raiz da árvore sonora.
Também nos ajuda a compreender o intervalo de terça a comparação com aquele de
segunda — que é o que media entre notas sucessivas da escala.
Que se trate da segunda menor, como a que separa o Si do Dó e também o Mi do Fá,

ou da segunda maior (como a que vai do Dó ao Ré),

sendo o intervalo de segunda a distância mínima entre duas notas, uma sucessão delas
nos chega como um deslizamento ou um serpentear.

Serpenteia, por exemplo, a melodia do Bolero de Ravel, constituída principalmente de


segundas, e por contraste, quando aparece uma terça sentimos que a melodia dá um
pequeno salto:
Mas quando uma melodia avança a saltos, não o faz usualmente através de uma
sucessão de terças, senão através de uma combinação de terças e quartas, pois assim
se constituem os “harpejos” — que podemos descrever como o desmembramento
melódico dos acordes.

Assim no tema da primeira sonata de Beethoven,

que não se trate de uma escala ascendente senão de um harpejo nos transmite a
impressão de um avanço fogoso, como alguém que tivesse pressa para chegar e o
conseguisse calçando essas botas de sete léguas que dão notícia nos contos de fadas.

Mas se queremos entender melhor o caráter do Ré na escala de Dó devemos ir além


de sua função de primeiro passo em uma escala ascendente. Mais nos valerá saborear
o intervalo isolado, simplesmente, e buscar um gesto equivalente. Talvez o
encontremos em um levantar a cabeça, talvez em levantar um poco as mãos desde
nosso dorso, voltando as palmas para diante, talvez em dar um passo; todos estes
gestos expressam algo como um abrir-se, um sair ao encontro de algo ou alguém.

Embora, como explicava, o músico tenha a sua dispor não menos de 22


notas/intervalos, pois são onze os ascendentes e outros 11 os descendentes na escala
cromática, me parece suficiente para esta introdução ao tema que conclua com o
exame das notas da escala tonal — e para isto só me falta a consideração do intervalo
de sexta — que corresponde tanto ao Lá (na escala menor) quanto ao Lá bemol.

Mas convêm observar que, como no caso das demais notas da escala, o sexto grau
define um duplo intervalo com respeito à nota fundamental ou primeiro grau. Por um
lado, se situa este sexto grau a uma sexta (maior ou menor — segundo a tonalidade)
acima da tônica; por outro, se situa uma terça (menor ou maior) abaixo desta:
(Também os intervalos de quinta e quarta são complementares, resultando um da
inversão do outro):

Da mesma maneira são complementares a segunda e a sétima, as quais até agora não
foram referidas:

Em todos estes casos sentimos certa afinidade entre os intervalos complementares, de


modo que os de segunda e sétima são dissonantes, os de quarta e quinta consonantes
e os de terça e sexta compartilham um caráter particularmente harmonioso, suave ou
doce.
O caráter expressivo da sexta ascendente contêm essa doçura, mas além disso nos
resulta uma transposição ou metáfora afetiva de mesma amplitude, de modo que
poderíamos traduzí-lo através da ideia de generosidade, dadivosidade, amor ou
empatia — como na famosa Cavatina do Quarteto op.130 de Beethoven, aonde o
impulso dadivoso da sexta ascendente (que se eleva desde o quinto grau da escala ao
terceiro) se prolonga ainda mais além na continuação da melodia:
Tratando-se da sexta menor — no intervalo de Dó a Lá bemol — se combina o caráter
já comentado de gesto expansivo e amplo com a característica sensação de
incompletude que se associa ao tom menor, resultando a combinação destes dois
“proto-significados” em algo que poderíamos traduzir como uma grande aspiração ao
amor que se vê frustrada, transformando-se assim em um intenso anseio, — como na
famosa valsa (op. 64, no 2. em Dó# menor) de Chopin:

Comentei a respeito do contraste entre o modo maior e o modo menor dizendo que se
distinguem estes segundo o caráter maior ou menor de seu terceiro e sexto graus, sem
chegar a mencionar até agora ainda que também se diferenciam nossas duas escalas
musicais clássicas em seu sétimo grau, que é menor na escala menor descendente —
embora se conserve a sétima maior na forma ascendente para assim conservar o
caráter da nota sensível e seu caráter cadencial.

Embora desde Debussy tenhamos nos acostumado a escutar dissonâncias que não
busquem resolução, o intervalo de sétima maior, tão dissonante como o de segunda
menor do qual é inversão, raramente se encontra como uma harmonia isolada no
repertório clássico e em forma melódica nos impressiona como um salto à oitava
superior modificado por uma apoggiatura 4.

Mais comum é a sétima menor, que encontraremos um pouco mais adiante no já


citado Bolero de Ravel, cujo comentário incluirei no capítulo seguinte, que além de
contribuir a um nível mais amplo de análise musical, servirá para revisar o já dito
acerca da fenomenologia dos intervalos e do colorido expressivo das notas.

4
Apoggiatura (it.), Apojiatura (port.) - Em música, é um signo que se conhece como ornamento
musical. Também é denominada apojiatura larga em contraposição à apojiatura breve que é a
acciacatura. Uma apojiatura musical supõe o fato de esquivar a nota que viria exigida pela estrutura
melódico-harmônica e em vez de interpretá-la imediatamente, se chega a ela de forma indireta, mesmo
com o risco de produzir uma dissonância. O termo provêm do verbo italiano appogiare que significa
«apoiar». (http://es.wikipedia.org/wiki/Apoyatura).
3 Motivos, frases e sentenças musicais

Continuarei agora com a consideração de unidades de significado musical mais extensas


que os simples intervalos — começando por essas breves unidades melódicas que o
léxico da música designa como “motivos”, assim como as melodias um pouco
mais extensas que costumam constituir os sujeitos das fugas.
Talvez não exista um motivo musical mais famoso do que aquele das quatro notas que
encabeçam a Quinta Sinfonia de Beethoven:

Não só lhe responde o mesmo motivo deslocado um tom mais baixo, senão que se
constrói o primeiro tema da sinfonia, na continuação, a partir desta mesma estrutura
constituída pela tripla reiteração de uma nota seguida por outra de maior duração, uma
terça maior mais baixa:

Se deve a fama deste motivo inicial da Quinta Sinfonia de Beethoven precisamente por
sua densidade de significado.
Schindler, que foi um secretário para Beethoven, afirma que para o compositor este
motivo era como “o chamado do destino à porta” — e desde então sempre se tem
relacionado com a reação de Beethoven ante o conhecimento de que estaria
condenado à surdez. E uma vez que assim compreendemos as fatais 4 notas,
compreendemos também espontaneamente a resposta de Beethoven à voz do destino
com as 4 notas seguintes: uma resposta desafiante, não menos forte que a terrível
ameaça que se lhe apresentou; uma determinação de não deixar-se vencer, senão que
de colocar toda sua força a serviço da superação dos obstáculos que parecem impedir-
lhe o caminho.

Se comparamos os intervalos musicais aos átomos dos diversos elementos que


constituem o mundo material, devemos comparar a estas unidades sonoras compactas,
constituídas de umas poucas notas e um ritmo, que são os motivos, às moléculas. E
embora ninguém antes de Beethoven construiu sua música tão sistematicamente a partir
de motivos, também podemos encontrar algo semelhante no barroco, e já então
podemos discernir um conteúdo expressivo em tais “moléculas musicais”.
Se costuma pensar em Bach como o representante máximo da música pura, e não se
costuma buscar significados nas fugas do Cravo Bem Temperado. Mas, é verdade que no
tema de uma destas fugas só encontramos um prazer abstrato, sem relação com nossa
experiência de vida?

Consideremos o tema da primeira fuga em Dó maior, do primeiro caderno.

Fuga n. 1 – O Cravo Bem Temperado 1 - J.S.Bach

Focalizemos por agora nossa atenção na breve escala ascendente de seu começo, que nos
leva do Dó inicial ao Fá. Quem escuta não sabe necessariamente que a obra estará na
tonalidade de Dó, e por isso o ascenso do Dó ao Fá nos impressiona como um que vai
desde a dominante (ou mais propriamente o quinto grau) à Tônica1.

Nos sentimos avançar compassadamente e sem pressa com esta melodia até o que
percebemos como um ponto de chegada, e por isso este cerimonioso ou digno avanço
se torna uma metáfora implícita de nosso caminho universal. Pois não é nosso destino um
ir desde aonde estamos até o fim natural de nossa existência, para ali repousar?

1
Tônica - primeira nota (ou grau) da escala. Assim também se denomina a nota que define a tonalidade
de um acorde e que portanto lhe dá parte de seu nome. O acorde de tônica tem função de repouso no
sistema tonal. A tônica é o ponto de partida e de retorno e a ela fazem referência todos os demais
acordes do discurso musical. (http://es.wikipedia.org/wiki/Tonica_musica).
Mas passemos agora à continuação do tema, que compreende outras duas quartas
ascendentes — só que já não como intervalos que a melodia recorre nota a nota, senão
como intervalos mais rápidos, como se se satisfizesse a vontade expressiva do compositor em
chamar atenção à sua estrutura fundamental.

Aparte das notas rápidas descendentes que introduziram esta segunda parte do sujeito que
ilustrei (e que percebemos como algo semelhante a uma conjunção), o padrão dos três
sucessivos intervalos de quarta ascendente que escutamos até agora — o primeiro
recorrido passo a passo e os dois restantes esquematicamente, como em resumo, poderia
comparar-se a um tronco grosso do qual nascem duas ramas; ou, explicado de outra maneira,
é como se o motivo da passagem ascendente dirigindo-se a um fim se refletisse em seguida
em duas micro-variações. É como se alguém cantasse: “dignamente avançamos em direção
ao divino, que é nosso lar, e este encaminhar-nos em direção a nosso fim é o caminho de
todos — deste e daquele — até que…”;

Mas para completar esta frase necessitamos escutar e discernir a forma da terceira porção
com que conclui o sujeito da fuga:

Como se pode apreciar, consiste este final uma vez mais de duas sequências de quatro notas
sucessivas, só que agora em forma de escalas descendentes.

Assim como escutamos duas quartas ascendentes que nos pareceram ramas em que se
refletia a estrutura de um tronco, agora também estas quartas descendentes nos parecem
derivadas desse tronco original — só que o motivo ascendente foi invertido, de modo que o
que ao começo era um ir agora nos impressiona como um regresso. Se poderia resumir o
processo como algo semelhante a “vamos todos em direção a nosso nobre fim, tanto
estes como aqueles, e todos logo regressamos em último termo a nosso ponto de partida,
aonde podemos repousar”.

Escutemos agora a fuga inteira, que nos permite contemplar a reiteração múltipla do já
escutado e comentado.
Passemos agora à consideração de uma estrutura musical algo mais extensa: o começo
da ária “Lascia ch’io pianga”, da ópera Rinaldo, de Haendel.

O que escutamos está constituído claramente por quatro segmentos simétricos, e a


semelhança rítmica entre estes quatro segmentos põe de relevo suas respectivas
diferenças. Podemos observar como entre os três primeiros a semelhança é maior, tal
como nas famosas quatro notas que encabeçam a Quinta Sinfonia (entre as quais, às
três primeiras, responde por contraste a quarta), também neste conjunto de frases
musicais, às três primeiras responde, por contraste, a frase final.

Mas agora vejamos mais detalhadamente a frase inicial, construída sobre o motivo de
um semitom ascendente:

Sendo a tonalidade Fá maior, começa a meloda no terceiro grau e ascende dando o


menor dos passos que nossa música permite, que é uma segunda menor, ao quarto
grau. Somente partindo deste terceiro grau e partindo da sensível se pode ascender um
semitom em uma escala maior, mas a partir da sensível se cai, como comentamos,
sobre a tônica, com um efeito muito diferente do da presente melodia, na qual o
semitom ascendente insinua para nós um tímido ascenso, um ascender apenas, cujo
caráter de tentativa se vê reforçado pela repetição da primeira nota. Sugere esta
repetição, seguida do tímido ascenso e logo, ademais, uma repetição da nota a que se
chegou, uma voz balbuceante entrecortada por um soluço.
Mas também a repetição desta primeira nota, junto à repetição da seguinte,
estabelece um padrão rítmico que funciona como uma unidade métrica que homologa a
unidade melódica em que se insere este semitom com as seguintes notas, e logo a estas
com as duas restantes, tornando aparente através disso suas relações mútuas, que as
dotam de significado contextual.
Assim, contrasta o simples e poderíamos dizer tímido semitom ascendente Lá-Sib com o
salto ascendente Sol-Dó, da frase seguinte, que, começando uma nota mais baixa,
alcança uma nota mais alta:

Este intervalo de uma quarta ascendente que se inicia um tom mais baixo que o já
escutado nos sugere um recuar para avançar; e sua continuação, que responde
simetricamente ao mesmo semitom ascendente (ao final da semi-frase que escutamos)
com o semitom descendente Sib-Lá nos resulta tão satisfatório como uma exalação após
uma inalação, particularmente porque esta segunda semi-frase seguinte da melodia, que
completa a anterior, nos leva de regresso ao ponto de partida.

Escutemos agora as duas semi-frases em seu conjunto.

E escutemos agora uma vez mais as quatro unidades melódicas que escutamos ao
começar: as duas unidades melódicas até agora analisadas, que compõe o que se
costuma chamar o “antecedente”, e as duas seguintes, que completam uma sentença
musical e costumam designar-se como o “consequente”.
Observamos uma simetria entre a primeira e a segunda frase, mas, como caracterizar a
terceira destas?

O específico dela não é tanto seu caráter ascendente (como a primeira) nem
descendente (como a segunda), senão o fato de que foi deslocada a unidade melódica
vários grau acima, de modo que seu começo ascendente leva a melodia a seu pico de
elevação máxima até agora. Nos resulta esta terceira frase (tanto pela altura de seu
início como pela altura melódica a que se remonta, assim como pela variação rítmica,
que percebemos como uma aceleração) algo como uma intensificação máxima do que
se vem dizendo — algo assim como nas séries de adjetivos comparativos da gramática,
nas quais o último têrmo é um superlativo.

Mas apesar de escutar um superlativo não chegamos ao final da sentença musical, que
se completará com uma frase bastante diferente das três anteriores — como se
constituísse esta uma resposta ao conjunto de todas elas.
E que nos sugere esta metáfora musical?
Algo como “inclusive neste caso”, diria eu. E isto empresta um significado especial à
quarta frase conclusiva. É como se alguém que expressou seu amor através da mirada
implorante e adorante na primera frase, e logo através do gesto mais expansivo da
segunda — quase como de insinuar um abraço —, quisesse agora comunicar que seu
amor seguirá sendo constante sempre. Esta frase final então nos chega como a
declaração de amor propriamente dita.

Embora tenha me limitado aqui ao comentário desta primeira “sentença” da famosa


ária de Haendel, me parece que se queremos entender sua beleza quase mágica
necessitamos tomar em conta algo que ainda foi não tornado explícito: a particular
intensidade expressiva ante a qual tudo que foi dito até agora fica estreito como
explicação. Ante o contraste entre o explicado e a magia da escuta, me parece que a
explicação que faz falta seja uma até agora não formulada nas análises musicais — que é
que o conteúdo vivencial do primeiro gesto da música, em certo modo permanece em nós,
como pano de fundo a todo o restante.
Assim como a tônica é um ponto de partida e de regresso no mundo das frequências
sonoras; no mundo das vivências se estabelece também uma vivência específica ao
início de uma composição, que impregna tudo o que segue. Pois tudo o que segue
define seu sentido como um desenvolvimento do mesmo, uma transposição do mesmo
ou um contraste com respeito ao mesmo. Se percebemos uma grande delicadeza, então,
nesse aparentemente insignificante passo do Lá ao Sib,

pelo fato mesmo de que supomos que é uma mesma pessoa a que segue cantando, lhe
atribuímos uma continuidade no sentir que já se expressou; e assim, o que se sucede no
tempo não é inconexo, senão que um desenvolvimento orgânico que leva sempre
implícita sua raiz.
Os primeiros compassos das Variações Goldberg.

Sabemos que Bach escreveu as Variações Goldberg em resposta ao desejo de um patrono,


que lhe havia solicitado uma música apropriada para estimular o sono. Poderia resultar
algo cômico pensar que uma das consciências mais despertas tenha empreendido a tarefa
de facilitar o sono ao conde Keyserling (em cuja corte Goldberg foi cravista) — mas não é
assim se consideramos que o cair no sono (particularmente para uma pessoa insone)
requer uma atmosfera de paz e confiança, que pode ser para a mente algo assim como a
presença da mãe para uma criança: algo que seja percebido como parte do mundo
próprio mais que uma ameaça externa, e algo que evoque um ânimo tranquilo mais que
a agitação das paixões. Podemos entender a tarefa de Bach, então, como a de convidar
seu ouvinte ao descanso através de um envoltório sonoro ótimo a seu abandono, um
que evoque o sentir que tudo está bem — e ao mesmo tempo, que não o evoque em
forma tão solene que requeira sua atenção. Mais que de um equivalente musical dos
dias da criação no Gênesis (depois de cada um dos quais Deus declara que “foi bom”), se
trata, melhor, de algo que evoque esse “tudo está bem” como o poderia sentir um bebê
junto ao peito materno, ou inclusive o feto no ventre da mãe — que se entrega à
operação de leis universais em um absoluto não fazer.

Nos parece que a melodia desta Ária poderia se inserir naturalmente (e não
espetacularmente) na perfeição de uma corrente universal, e nos parece que disto,
precisamente, poderia derivar sua própria perfeição. Nos parece adivinhar algo assim
como uma regularidade matemática por trás da arquitetura sonora; e entretanto, não se
nos ocorre falar de algo tão grandioso como “a música das esferas”. E não é que não se
trate precisamente de uma conformabilidade a leis universais, senão que isto se nos dá a
escala “familiar” e íntima, e não a escala “planetária” ou “cósmica,” como no raga (ou
qualidade estilística) da sublimidade.

É esta Ária de Bach um alto exemplo daquilo que pode justificar expressões tais como “o
tao da música” ou “música transpessoal”: música que flui de tal maneira que evoca um
processo eterno e onipresente. E, entretanto, o faz sem nos levar à exaltação, senão ao
repouso. Diríamos que o Tao nos fala nesta música em seu aspecto yin — como uma
presença feminina que convida nossa passividade receptiva.

Como pode ser isto possível?

Indagarei na continuação acerca de como os elementos básicos da música — tempo,


ritmo, notas e intervalos, harmonias, progressões harmônicas, modulações e
contraponto — podem nesta obra de Bach transmitir tal “paisagem emocional.”

Começo pela primeira frase, que ocupa os primeiros dois compassos:


Ouçamo-la agora sem os adornos:

Que diferença! A frase desnuda exibe em forma demasiado óbvia seu esqueleto
harmônico de tônica que passa a dominante (embora uma dominante suavizada pela 1ª
inversão2, que permite um movimento mínimo do baixo).

A ênfase nas apojiaturas 3 emascara este esqueleto como um flexível manto arrojado
sobre seus “ossos,” de modo que escutamos ao mesmo tempo a ligeireza volúvel deste
manto melódico e a regularidade compassada do ritmo ternário da harmonia tocada pela
mão esquerda.

Consideremos agora a melodia desta primeira frase com maior atenção. Começa esta na
nota fundamental, como é tão frequentemente o caso na música barroca. E para onde
se encaminha? Para baixo? Para cima?

2
Inversão - Qualquer nota de um acorde pode ser transportada de uma oitava a outra, em um
processo chamado inversão. Através deste processo de inversão se consegue uma variedade de texturas.
Cada inversão vem definida pelo baixo ou nota mais grave das que formam o acorde. São irrelevantes
para cada inversão, por conseguinte, tanto a ordem das notas, como sua aparição ou não no acorde, com
exceção da mais grave. Em acordes de três notas existem somente três tipos de inversões: Estado
fundamental: realmente não é uma inversão senão o acorde em seu estado natural, com a tônica no
baixo. Primeira inversão: com a terça no baixo. Segunda inversão: com a quinta no baixo.
(http://es.wikipedia.org/wiki/Acorde)
3
Apojiatura - O termo provêm do verbo italiano appoggiare que significa «apoiar». Em música, é um
signo que se conhece como adorno musical. Também é denominada apojiatura larga em contraposição à
apojiatura breve que é a acciaccatura. Uma apojiatura musical supõe o fato de esquivar a nota que viria
exigida pela estrutura melódico-harmônica e em vez de interpretá-la imediatamente, se chega a ela de
forma indireta produzindo uma dissonância. (http://es.wikipedia.org/wiki/Apoyatura)
Antes que nada, segue adiante, pois no segundo tempo se repete a nota fundamental.
Não é que não vá a nenhuma parte. Ao se repetir, segue por onde vai, ou melhor:
“avança em linha reta”, por assim dizer, persistindo em sua direção, sugerindo assim
estabilidade.

Já no terceiro tempo, sem dúvida, podemos dizer que a melodia sobe, e é só depois de
haver evocado com suas duas primeiras notas um avanço pausado e neutro,
desapaixonado, que as duas notas seguintes (da frase e da escala de Sol) — com um ritmo
pontuado no terceiro tempo — nos indicam um gesto ativo. Ativo porque ascendente,
ativo também porque se multiplicam as notas no tempo, e ativo ademais porque assim o
sugere o pontuado em comparação com o que seria uma simples sucessão de duas
colcheias 4.

E assim como este começo de uma frase musical nos resulta “ativo”, sua continuação no
segundo compasso nos resulta passiva: consiste em uma caída em cascata melódica
através do acorde de dominante 5, que termina na nota dominante mesma ou quinto
grau da escala.

Se equilibram nela, sem dúvida, a qualidade passiva da melodia descendente com a


qualidade ativa própria da dominante (grau de máxima tensão na escala) com respeito à
tônica que é o grau de maior repouso. O resultado desta superposição de níveis
complementários se torna algo assim como um “cair para cima”: um movimento
repousado que termina em uma posição de desequilíbrio. E quanta perfeição nos evoca

4
Colcheia – uma das figuras rítmicas da teoria musical. O ritmo musical se define como a
organização de pulsos e acentos. Um ritmo pode ter um pulso constante e os acentos geram a métrica e
os compassos de 2, 3 e 4 tempos. Se tomamos uma figura rítmica como unidade de pulso ou tempo,
definimos as proporções rítmicas. As figuras rítmicas básicas são a semibreve (4 tempos), a mínima (2
tempos), a semínima (1 tempo) e a colcheia (½ tempo). (http://es.wikipedia.org/wiki/Ritmo,
http://es.wikipedia.org/wiki/Corchea).
5
Dominante - em teoria musical corresponde ao quinto grau de uma escala tonal diatônica. Segundo
o contexto pode fazer referência, bem simplificadamente à quinta nota da escala, ou bem ao acorde que se
forma sobre tal nota e/ou à função tonal e sonoridade correspondentes. O conceito de dominante se
entende no âmbito da harmonia funcional na música tonal. Na maioria das ocasiões, a dominante se refere
à função dominante (tensão ou instabilidade) que por oposição à função tônica (repouso) é gerada
pela existência da sensível em acorde formado sobre o quinto grau.
(http://es.wikipedia.org/wiki/Dominante_musica).
esta juxtaposição equilibrante dos fatores melódico e harmônico! Ouçamos mais uma vez
a primeira frase completa:

F1

A segunda frase, entre o terceiro e quarto compassos se assemelha suficientemente à


primeira como para que escutemos nela uma relação lógica do tipo: “e isto também.”

F2

Mas há uma diferença, e inclusive podemos falar de um contraste, em vista de que (junto
a uma variação melódica) este eco da primeira frase começa uma oitava abaixo da
primeira, e se acompanha de uma harmonia diferente.

Estas diferenças, entrentanto, se vêem equilibradas pela reiteração da estrutura melódica


básica. Se traduzirmos a primeira frase como “é o caso que todo A leva a B” a segunda
nos soa algo assim como “e também é certo que A’ leva a B’,” ou então “também
em condições diferentes é certo que partindo de A se chega a B”.

Só que a música não só contempla, senão que canta, e portanto celebra que —
por assim dizer — “todos os rios vão da cordilheira à planície”.

Vamos agora à terceira frase, que é eco da primeira em transposição de quinta (quer
dizer, começando na nota dominante).

F3
O quinto grau (dominante) inicial da melodia (ativa) se contrapesa agora com a suave
harmonia da tônica em primeira inversão, e em vez da estrutura harmônica de I-V temos
esta vez a progressão I-II 6.
Esta frase nos soa algo assim como um segundo “também neste caso (harmonicamente
diferente) o já afirmado é certo” (E louvado seja o céu!), e desemboca imediatamente em
uma conclusão que como na análise anterior de “lascia ch’io pianga” não só nos
impressiona como consequente da frase F3 senão como uma resposta ao conjunto das
três frases isomórficas que escutamos até agora.

F4 = G

Só agora se nos torna aparente que a forma das quatro frases em seu conjunto não é só
a simples estrutura binária convencional de F1/F2, F3/F4, senão algo que escutamos
como (F1, F2, F3) → G, designando como “G” a uma frase que a primeira vista não
reitera às anteriores senão que, propondo algo diferente, parece lhes responder
conjuntamente.

6
Progressão - Na música ocidental, a harmonia é a subdisciplina que estuda o encadeamento de
diversas notas superpostas; isto é: a organização dos acordes. Se chama «acorde» à combinação de três
ou mais notas diferentes que soam simultaneamente (ou que são percebidas como simultâneas,
embora sejam sucessivas, como em um harpejo). Os passos entre um e outro acorde são chamados de
progressão e quando há uma sequência de passos semelhantes a progressão se denomina marcha
harmônica. O estudo da harmonia se refere geralmente ao estudo das progressões harmônicas e dos
princípios estruturais que as governam. (http://es.wikipedia.org/wiki/Armonia).
Consideremos mais detidamente agora a forma em que está constituída esta conclusão
da primera sentença da Ária (que, por sua vez, constitui a metade de sua primeira parte).

Seu esqueleto harmônico é o de uma cadência perfeita7 (I-IV-V-I), o que lhe dá uma
qualidade particularmente conclusiva. A isto também contribui que se nos faça presente
agora o quarto grau da escala: Bach parece haver reservado a subdominante 8 para essa
frase conclusiva como para realçar seu sentido e torná-la aqui mais preciosa. É como se
até agora tudo houvesse sido terra e sol (tônica e dominante) e agora pela primeira vez se
nos fizesse presente a lua, ou a água.

Já basta o aspecto rítmico desta última frase para que notemos sua maior densidade de
notas, o que como uma frase verbal com mais palavras nos sugere uma afirmação mais
enfática; e embora a melodia se centre no deslizamento descendente pelo acorde de
dominante (constituindo uma condensação acelerada do fim da primeira frase e de cada
um de seus ecos) se completa com uma espécie de mini-coda que resume este gesto
descendente e por sua vez o completa, levando-o do Lá superior à tônica uma nona
abaixo.

Sua estrutura parece nos dizer, em resposta ao triplo enunciado que a precedeu: “não só
é certo que todas as águas correm de cima abaixo, senão que ainda as que procedem do
mais alto (sugerido pelo Lá superior) desembocam no mar” (caída sobre o Sol
inferior).

7
Cadência perfeita – no estudo da harmonia tonal, o termo cadência significa uma série de acordes (ou
fórmulas melódicas) que costumam coincidir com o fim de uma seção em uma obra. A cadência perfeita
se produz pela sucessão dos graus V (dominante) a I (fundamental), produzindo uma clara sensação de
repouso. (http://es.wikipedia.org/wiki/Cadencia).
8
Subdominante - em teoria musical é a quarta nota de uma escala. O acorde de subdominante se
simboliza com o número romano IV. Sua expressão harmônica deriva de seu afastamento da tônica,
criando um movimento de forças que leva naturalmente ao acorde de dominante, o pico da força e
que contêm o ímpeto de retorno ao acorde de tônica. (http://es.wikipedia.org/wiki/Subdominante).
Aparte de constituir uma cadência perfeita, a 4ª frase conclusiva rompe o padrão
formal que até agora vinha se repetindo, porque seu antecedente (sua primeira parte)
não é um eco das antecedentes nas frases prévias (A) senão das semi-frases
consequentes (B).

Esta última ilustração nos permite escutar sua correspondência com os “predicados” das
três frases anteriores, e correspondentemente sentimos que já não se fala do mesmo
(ou seja — do mesmo sujeito) que nelas; se fala agora especificamente daquilo que nelas
se afirmava — como para reafirmá-lo ou ir além em sua formulação. Que se predica deste
predicado que se tornou sujeito da oração?

As duas notas seguintes, que iniciam a semi-frase consequente, constituem seu resumo,
porquanto o intervalo de 6ª descendente desde o Lá superior reitera o começo e fim de
sua cascata melódica em ritmos pontuados. As notas que seguem, concluindo a frase,
constituem uma prolongação de seu descenso em direção à tônica. Um equivalente
verbal desta estrutura se poderia ilustrar com algo assim como: “se em todos os casos,
grandes e pequenos rios vão ao mar; todos, os rios (b) como dizia (b’) vão ao mesmíssimo
mar (c)”.

Sentimos que com estas quatro frases, tradicionalmente analisadas como A-B, A’-B’, A”-
B”, A’’’-B’’’ mas escutadas também como F, F’, F”- G, se completou o enunciado de um
pensamento. Mas a música continua, e compreendemos que este pensamento musical é
só um “antecedente” ao qual responderá outro como consequente, e ao qual logo dois
novos pensamentos se sucederão na segunda metade da Ária, da qual analisamos até
agora só uma quarta parte.

Embora nesta análise parcial não tenha conseguido aproximar-me a uma explicação
da serena perfeição desta música mais que um dedo apontando à lua, espero que a
tentativa de fazê-lo tenha constituído um pequeno passo em direção ao esclarecimento
da semântica musical. Em lugar de prosseguir com a análise, entretanto, me
conformarei com assinalar como pode ser em princípio possível a explicação de
significados musicais complexos a partir de significados elementares, e como a
reiteração — a maneira de rima estrutural — serve na música para estabelecer relações
de insistência e por sua vez de contraste que implicam sugestões sintáticas e lógicas.

Passo agora a algo um pouco mais complexo ao abordar uma análise do começo da

Cavatina do quarteto opus 130 de Beethoven.

Disse alguma vez Beethoven que esta Cavatina era o mais sagrado que havia composto,
e nos basta com escutar sua frase inicial para estar de acordo.

De onde vem esta sacralidade?

Naturalmente, da experiência do compositor antes de mais nada, mas tratemos de nos


acercar à experiência que evoca em nós para observar se há algo mais que possamos
dizer dela que nos explique sua misteriosa qualidade.

Há algum outro atributo nela que possamos especificar, aparte de “sagrado”? Algum
têrmo que nos resulte particularmente apropriado para descrevê-la? Diria eu, em primeiro
lugar, “nobreza,” e ao perguntar-me, em seguida, que é aquilo a que estou dando o
nome de “nobreza,” me parece que é “o humano” em sua expressão máxima: uma
sublimidade humana, que poderia contrastar-se com a emoção estética mais comum de
sublimidade divina ou sobrehumana, ou titânica, que associamos tanto ao Beethoven
heróico.

Mas, como explicar o que quero dizer por “humano” (em contraposição a
“sobrehumano”)?
Implica para mim o humano desta melodia uma grande pureza e por sua vez uma grande
profundidade, e sentimos que se trata de uma melodia impregnada de um intenso amor;
mas principalmente se trata de um amor sofrido, e de um amor magnânimo em meio ao
sofrimento. E ao dizer isto creio haver encontrado o quid do que chamei “nobreza”: uma
atitude virtuosa diante da dor.

Usualmente se entende que quando Aristóteles explica famosamente que a tragédia


cumpre uma função de catarse não faz mais que reconhecer que as pessoas necessitam
dar expressão a sua dor, mas me parece que o fenômeno real pelo qual tem importância
para nós a expressão do sofrimento através da arte é mais complexo — e é que as
grandes obras de arte nos ensinam a sofrer bem; ou seja, a sofrer sem diminuirmo-nos
através de nossas resistências ao sofrimento.
Me parece que nisto consiste a “nobreza” ou “atitude virtuosa ante a dor” que
estamos comentando.

Mas, como pode ser possível a expressão sonora de tal nobreza? Onde está a magia da
Cavatina, por assim dizer? Vejamos se posso contribuir em algo a desvelá-la.

A frase introdutória se abre com uma sexta ascendente (desde a dominante em


anacrusa9), com caída na harmonia de tônica depois de uma antecipação que evoca um
suspiro.

A sexta ascendente é o mais expansivo e magnânimo dos intervalos, como corresponde


ao maior entre os intervalos consonantes, e já seu mero enunciado (em um tempo lento
e ritmo de suspiro) sugere um coração que mantém sua atitude generosa em meio ao
sofrimento.

Ademais, um cromatismo quase modulante do baixo precede a melodia desde o segundo


tempo do compasso introdutório, e isto, como pano de fundo a uma melodia muito
simples, evoca intensificação emocional, pois a pressão sobre os limites da tonalidade se
torna dramática e nos sugere profundidade.

9
Anacrusa (do grego ἀνάκρουσις [anákroːsis], retrocesso) - em música faz referência à nota ou grupo de
notas sem acento que precedem ao primeiro tempo forte de uma frase, portanto vai colocado antes da
barra de compasso. (http://es.wikipedia.org/wiki/Anacrusa).
Após o canto do 2º violino com o cello e a viola (que poderia equiparar-se à voz de um
narrador que começa com algo assim como "era uma vez") começa o canto
propriamente dito com esta sexta ascendente do 1º violino já comentada, e poderia
dizer que a essência da frase que segue é simplesmente a descida do Sol ao
Fá, só que esta resolução do Sol ao Fá se vê ornamentada e retardada por um
ascenso e descenso melódico que sugere fortemente um suspiro e acentua a
intensificação emocional; assim depois da expressiva sexta, a continuação da melodia
em uma subida nos faz sentir um "ir além” de seu gesto amoroso que sugere inclusive
um anseio de continuar a subida até a oitava superior, um “ir assim até o fim” —
só que torna a descender, e não só ao Sol senão mais baixo até o Fá.

Depois de um eco da introdução no 2º violino — também com seus cromatismos — que


anuncia agora a segunda frase do 1º violino e sublinhará sua analogia com a primeira,
começa esta segunda frase uma nota mais baixa que a anterior (coerentemente com a
caída que foi a essência da frase precedente), imitando a primeira frase e por sua vez
contrastando com ela:
Embora a melodia não reitere a sexta ascendente imitando seu “suspiro”; termina em um
gesto ascendente, o que nos sugere um erguer-se ante a dor. E logo em vez de completar
seu descenso na tônica, como corresponderia a uma progressão melódica descendente
até certo ponto esperada, ascende de um salto à dominante.

As três notas ascendentes que seguem começam uma terça acima do já alcançado pela
melodia, e sublinham o gesto de alçar-se, particularmente porque a frase não se
detem na tônica senão que a sobrepassa. É como se alguém que disse “me levanto”
dissese agora “e mais: me levanto (heroicamente) até meu limite”.

Na continuação escutamos o salto de sexta descendente e a sucessão das notas Lá bemol -


Sol
A caída Lá bemol – Sol, é um eco das duas caídas precedentes e nos comunica através
de sua altura (um tom mais elevado que aquela ao fim da frase inicial) que a atitude de
se erguer deixou o indivíduo em um nível de maior satisfação ou plenitude. Só agora
tornamos a ouvir a progressão Sol-Fá original, que continua com uma frase na qual aquilo
que era fundo se torna figura como parte da frase conclusiva de uma primeira sentença
(ascendente).

Esta termina em uma elaboração da caída do Fá sobre a tônica de Mi bemol, de


modo que ouvimos a frase já conhecida “do narrador” como uma interpolação. O
efeito das 3 frases que formam esta sentença (a segunda delas com uma espécie de eco
agregado e intensificador) é algo como:

1) aqui estou cantando minha dor


2) e não me deixo vencer por ela, deixando-me apagar a chama de meu coração
3) e posso dizer-lhes que em conclusão (voz do narrador) fico em paz.

Este último significado é sublinhado pela repetição (a maneira de uma minicoda) no 2º


violino.

Examinemos agora a sentença que segue, que começa com a frase:


Esta frase resume o dito até agora, reiterando a frase inicial e concluindo-a, em
essência, com a conclusão da sentença anterior. É como se dissesse: “sofro, me ergo
com inteireza e permaneço em paz,” (economizando-nos o processo pelo qual se chegou
a ela) depois de sintetizar o essencial do expressado em uma única frase, segue adiantado
com o desenvolvimento de seu pensamento. Apenas terminada esta primeira frase, a
reiteração imediata da tônica final introduz um grupo de três notas

que nos fazem sentir que, em certo modo, quem as enuncia se põe “mãos à obra”: em
vez de deter-se para gozar o repouso da tônica, mas continua o gesto descendente, que
do repouso passa agora a evocar uma busca de maior profundidade, algo assim como um
voltar-se para dentro, e em seguida deste voltar-se para dentro surge um gesto
expansivo que parece prolongado com a mesma naturalidade com que se prolonga
uma exalação com uma inspiração. Mas tão logo a pequena frase (ou palavra?)
descendente passa pela tônica, a frase ascendente que constitui, em essência, sua
inversão, nos surpreende com um Mi natural que sublinha a tônica e encaminha a
passagem modulatoriamente à tonalidade de Fá.
Escutamos o efeito combinado deste ascenso pelo Mi natural com o deslocamento
(transitório) da tônica de Mi bemol a Fá como uma abertura ou liberação, em que se
encaminha a melodia em direção a um espaço maior — por mais que a muito fugaz
tonalidade menor nos tenho feito presente o sofrimento.

A frase seguinte de Dó a Sol vem se constitui em uma terceira variação do motivo


escutado já duas vezes, só que com um Dó superior intercalado como uma interjeição, e
uma amplificação do ritmo ao passar do Sol ao Láb,

Mas ainda se repite una vez mais o gesto ascendente do Sol ao Sib no compasso seguinte,
e torna a se repetir em forma variada como um ascenso algo mais amplo ao passar do Sol
ao Si.

Escutemos agora o conjunto do que viemos comentando em forma fragmentária para


apreciar a progressiva intensificação do gesto ascendente que segue como inversão ao
motivo suspiroso do semitom descendente com que se iniciou esta parte da segunda
frase; intensificação que deciframos implicitamente como metáfora de um erguer-se
progressivamente de alguém que vem de adotar uma atitude de integridade ante o
sofrimento.
A conclusão desta frase — a sequência Fá#-Sol-Láb — constitui uma transposição
aproximada da sequência Ré-Mi-Fá da frase anterior, e nos sugere que depois do
gesto de recolhimento com que começou este mini desenvolvimento, e depois do gesto
de abertura ou liberação com que se continua, o processo de abertura ou progresso se
prolonga. O Dó reiterado por cima desta progressão melódica, como sugeri, nos
impressiona como algo equivalente a uma exclamação (assim como o “Ai!” que lhe
agrega ênfase ao que se está dizendo; ou como um “preste atenção”).

E não menos ênfase aporta à frase a variação rítmica, na qual a sucessão de duas
colcheias foi substituída, nas últimas notas, por uma sucessão de uma semínima e uma
mínima. O efeito expressivo disso é comparável à situação de alguém que, chegando a
proferir um pensamento particularmente importante ou surpreendente, o enuncia com
deliberada lentidão. É comum em tal caso que o que fala levante um pouco a voz, e
assim ocorre também ao chegar esta frase a sua última nota: Beethoven o indica com
um crescendo fugaz.
Depois de duas frases modulatórias nos sentimos neste momento na subdominante de
Dó menor, e chegar a ela através de uma muito lógica progressão ascendente não lhe tira
o caráter de algo assim como um tatear em direção a um espaço novo, ou o abrir de uma
porta inesperada. A reiteração (levemente variada) da frase no compasso seguinte (em
que o 2º violino faz eco ao 1º) nos chega como o ato de quem, depois de haver
formulado um pensamento desconcertante, o repete como querendo entendê-lo mais
cabalmente antes de seguir pensando.

2º violino

A frase seguinte, com só duas notas

é eco da que já escutamos duas vezes, mas apesar de começar, como ela, no Sol,
implica em uma amplificação da segunda ascendente a uma terça maior, e isto sugere um
novo tatear na exploração de uma altura crescente por quem até agora só se elevou até o
Láb.
É como se depois de dizer com certo dramatismo “posso inclusive chegar até aqui” e de
haver tomado um momento assimilando sua experiência se perguntasse: “e não seria
possível saltar a uma altura ainda maior?” E nos encontramos já no ponto mais alto da
escala — a sensível cadencial, e isto contribui a que sintamos quão enfaticamente
afirmativa é a resposta — porquanto esta vai encabeçada pela tônica de Dó (que é
transitória, pois imediatamente se transforma em dominante de Fá menor).

Poderia dizer que neste Dó termina a sentença, mas se superpõe nela um final e um
começo — ou pelo menos se trata de uma conclusão menos conclusiva que o que seria
uma simples chegada ao Dó — pois me parece significativo que o salto de sexta
descendente nesta “palavra final” da frase que escutamos seja o inverso, recíproco ou
contrário da sexta ascendente com que Beethoven iniciou sua melodia. Como se este,
consciente ou inconscientemente, quisesse nos dizer que chegou a inverter seu gesto
inicial de amor doído pelo outro que é como uma chave para sua fechadura.

Tudo que foi exposto nos últimos 3 compassos é agora re-exposto com uma repetição
nos 3 seguintes, nos quais a reiteração do motivo da sexta descendente nos confirma a
importância de seu significado:
Muito se tem falado sobre a atitude heróica do período da primeira maturidade de
Beethoven — caracterizado por uma resposta forte ante o desafio dos obstáculos, e eu
mesmo tenho assinalado com frequência o contraste entre tal atitude heróica (ou
contra-fóbica) com a nobre aceitação da dor durante o que poderíamos chamar sua
segunda maturidade; mas a consideração destes primeiros compassos desta Cavatina nos
convida a observar a continuidade ou semelhança que permaneceu além de tal
contraste: segue sendo Beethoven um que se ergue valentemente ante a dor, apenas já
sem fúria; e podemos dizer também que em não transformar seu sofrimento em fúria
manifesta uma coragem ainda maior que a de seu heroísmo juvenil: uma coragem que
requer vulnerabilidade, ao resistir à tentação de armar-se e de substituir o sofrimento
por agressão. Um Beethoven mais santo em sua invisibilidade, que renunciou à ameaça e
à dramaticidade do desafio.

O Bolero de Ravel.

Se tento explicar em palavras o que me diz o Bolero de Ravel, o primeiro significado que
discirno é o da tônica, tão reiterada nele. Posso dizer da tônica que é o “lar musical,” a
base de tudo o que a música faz, fundo onipresente, começo e fim esperado que evoca
em nós a base, o alfa e ômega de tudo: o Divino.
O primeiro compasso e meio são um adorno em torno à tônica.

A melodia é a um grupeto variado que escutamos como celebração, carícia, referência


periférica que nos faz mais presente o centro tonal e por fim seu valor. Difere de um
simples discorrer em torno ao Dó, sem dúvida, pela presença de um Lá, que preenche um
nicho rítmico e ademais sai da estrutura harmônica mais simples ou convencional que
haveria pedido um Sol.

A segunda frase (metricamente semelhante à primeira em seu começo, mas com uma
defasagem rítmica com respeito ao compasso), responde a A com A’. Ouçamos agora a
sucessão das duas:

Esta segunda frase responde também à tônica com a dominante, e ao giro de quatro
notas descendentes com uma variação melódica em que modifica a chegada à última
nota com um salto (de 3ª ascendente) em vez de graus conjuntos.
A terceira consiste em uma série melódica primeiro descendente e logo ascendente que
funciona como um adorno da dominante que por sua vez a prolonga e a exalta —
deixando para uma quarta frase (eco da 1ª) a volta à tônica.

Esta quarta frase constitui uma variante rítmica das anteriores, mas que em contraste
com a anterior, começa por ascender e logo descende, mas não termina diretamente
no Dó, senão que prolonga sua chegada a este retrocedendo ao Mi.

O pensamento musical não terminou, sem dúvida, já que em vista de que se chega ao Dó
na parte fraca do primeiro tempo, a métrica nos faz esperar uma continuação. E embora
Ravel deseje terminar seu pensamento musical na dominante, combina o jogo rítmico de
postergar o Sol com a caída do Fá ao Ré que ouvimos como um eco do salto anterior
Lá-Dó na 1ª frase.

Já este Ré nos faz sentir que estamos na dominante, que vem a ser confirmada com a nota
dominante propriamente dita, que chega “como quem não quer nada”, no 2º tempo do
compasso e se prolonga durante todo o compasso seguinte. E só agora chegamos ao fim
de um semi-período. Observemos que a estrutura da melodia se cinge em torno ao acorde
descendente de tônica para proceder logo ao Ré-Sol dominante.
Até agora analisamos um pensamento musical composto de 4+1 mini-frases das quais a
quinta tem certo caráter de apêndice que nos diz algo assim como “continuará”,
deixando-nos à espera de uma resposta ao pensamento até agora enunciado.

Nos impressiona o pensamento musical deste apêndice como de alguém que havendo
afirmado algo parece estar por dizer algo mais, mas que em vez de confirmar ou
elaborar o dito, termina questionando-o ou agregando à afirmação escutada uma nova
pergunta ou inclusive a proposta de um novo assunto.

A resposta a tudo o que ouvimos vai dos compassos 13 ao 21 e contrasta com o escutado
porque até agora a melodia só se moveu entre notas do acorde de tônica, por mais que
nos sugira ao final um passo à dominante, tanto que a frase seguinte está construída em
torno a uma sucessão de três acordes diferentes: primeiro o de dominante,

logo a subdominante,

e por último a subdominante relativa (que como acorde de sétima, percebido


retrospectivamente, adquire certa função de “dominante da dominante” apesar de
manter-se o Fá sem o sustenido o que o transformaria em um acorde de sétima
dominante maior estabelecendo o Sol por modulação como novo centro da tonalidade).

Escutamos pois nesta “resposta” ao antecedente que celebrou o Dó (para terminar


propondo um Sol) uma mensagem que é transmitida em boa parte pela harmonia (sutil
porquanto apenas melódica, mas acentuada por sua dissonância com o pedal invariável
de tônica, que torna esta harmonia implícita mais aparente).

Em síntese: depois da “larga celebração” do Dó através da primeira frase, escutamos em


seguida como o Ré (com função de dominante) passa rapidamente à subdominante para
desembocar não no Sol (até certo ponto esperado) senão no Fá; e logo, em seguida à
subdominante relativa — e tudo, após uma frase reiterada de ênfase e suspensão,
prepara a cadência de dominante sobre a tônica.
Vejamos o que nos diz analisando “palavra por palavra”, por assim dizer.

Se a frase inicial do Bolero nos sugere uma celebração do D ivino, como nos soa o
começo deste segundo enunciado em seu discurso?

Apesar de que o foco melódico comece pelo Ré em vez do Dó, a analogia nos sugere
“mais do mesmo”; quer dizer, a reiteração do giro melódico celebrativo, um grau mais
alto nos soa um pouco a “e também neste caso, vale o dito” ou bem a “assim como rendi
homenagem ao Dó, rendo agora homenagem ao Ré” (o tom que segue ao Dó na escala
ascendente, que é por sua vez emblemático do acorde que segue em importância no
círculo de quintas relativo ao Dó — a saber, o de dominante).

Mas além de haver no começo desta segunda frase no Ré reiteração, com sua sugestão
de “também é o caso,” o fato de que se trate de uma nota superior sugere
intensificação, e a maior dissonância do Ré com respeito ao pedal de Dó nos chega
também como uma insistência em sua afirmação, que constitui algo assim como um
desafio à “lei da gravidade” tonal e harmônica. Este matiz semântico de “mais”, ou de
intensificação se verá em seguida confirmado pela reiteração dupla do giro em torno ao
Fá, e outras características da segunda frase.

Por exemplo: assim como a primeira frase longa permanece no âmbito do acorde de Dó
durante toda sua duração, esta que lhe segue responde a esse “Dó monolítico” com uma
sucessão harmônica, e, portanto, contrapõe ao imóvel o movimento, a variação e o
desenvolvimento. Melodicamente, uma sucessão algo assimétrica de um maior número
de frases vem responder aos primeiros oito compassos simétricos já analisados.
Proponho que a frase inicial desta segunda sentença do Bolero evoca em nós por sua vez
um persistir e uma intensificação do dito já na glorificação “monolítica” da nota
fundamental — e portanto, do fundamental em nossa experiência da vida e de nós
mesmos. As frases 7, 8 e 9, em sua rápida sucessão, nos evocam por sua vez mais do
mesmo — tal como seria o caso de alguém que depois de haver dito “sim” reiterasse:
sim, sim e sim.

Mas não há em sua sequência só reiteração, senão, como vimos, passo da dominante à
subdominante e à subdominante relativa — que convida um retorno à dominante, e tudo
isso é algo que sentimos como a passagem de um estado de tensão a um de relaxamento,
e também como parte de um vaivém de tipo respiratório em que a inspiração é seguida
pela exalação. E poderia parecer que a continuação da entrega ao não esforço volta a
fazer-se tensão e desejo de inspirar. (Recorde o comentado na Ária de Bach como um
“cair para cima”).

É digno de notar que a frase, iniciada em um Ré superior vem parar em um Ré


inferior em que – pese o contexto harmônico e a progresão descansada em que se
insere, implica tensão por sua dissonância e portanto nos pede o “ar” de uma resolução.

Como se superpõe em nossa percepção todos estes elementos semânticos de afirmação


(ou, a nível emocional, adoração) reiterada e variada através de uma sequência que
começa no Ré superior dominante e termina em um Ré inferior? Poderia explicá-lo
através da imagem de alguém que, dando passos semelhantes, vai se encontrando em
posições diferentes ao largo de seu percurso, ou então aquela de um que, afirmando
uma e outra vez o mesmo, vai descobrindo nisso novas implicações, ou que persistindo
em uma mesma atitude atravessa diversos estados de ânimo: assim, tanto quanto que
“6”

implica um erguer-se (que se nos afigura um gesto por sua vez varonil e
generoso), “7”
nos faz sentir descansadamente em casa,“8”,

um eco de “7”, exalta por repetição esta evocação de um “estar em casa” tanto que a
reiteração seguinte, ainda mais abaixo, evoca em nós isso ao que aludi em termos de
experiência respiratória, que bem poderia ser considerada como esse princípio universal
evocado pelo símbolo taoísta do yin-yang. Neste, o ponto branco no coração do campo
negro e o ponto negro no coração do branco, querem significar como o yin se faz yang e
o yang se faz yin; mais como cada princípio por intensificação leva a seu oposto. Neste
caso o descenso melódico que nos havia levado “para casa” (quer dizer, à
subdominante — termina sua evocação de uma tônica além da tônica) continuando,
por levar-nos do descanso a um repouso asfixiante. Particularmente o eco de “9”

em “10”,

prolongando o Ré nos parece como o ato de um mergulhador que começa a se


entreter demasiado debaixo d´água, e logo necessitará respirar.

“9” e “10”
Mas em vez de “10” o compositor poderia nos permitir recuperar o alento com a
melodia em “11”.

O que faz Ravel em vez disso é responder a 6+7+8+9 com uma frase binária 10+11 na qual
a primeira metade pode ser entendida como uma “suspensão estrutural”: um “adorno”
que, intercalado no discurso musical, nos faz esperar um pouco mais a já esperada
cadência de dominante e tônica.

Chegamos ao fim de uma macro-estrutura A (de cinco frases breves), B (formada por
sete unidades melódicas menores), e agora escutaremos sua repetição. Uma vez mais
escutaremos o contraste entre o imóvel e fundamental e um movimento em que o
enunciado pareceria fragmentar-se assim como a luz branca se quebra em uma série de
cores, que neste caso sucedem tão organicamente, que evocam um vaivém intrínseco à
lei da vida.

Continua o Bolero, depois disto com uma terceira parte, de estrutura também binária, e
tudo isso se repetirá dezessete vezes até desembocar em uma espetacular coda — mas
já não prosseguirei o comentário detalhado da obra; só chamarei a atenção a como a
frase com que começa esta terceira parte, eco da que encabeça a primeira (glorificação
do fundamental) e da que encabeça a segunda que alude a uma glorificação do Ré — e
por consequência do que procede de, segue a, e também contrasta com a (e o)
fundamental, significa uma vez mais um “também neste caso”, assim como uma
reiteração (já estabelecida como glorificante) com respeito a uma nota (ou situação)
mais distante ainda da tônica: o Si bemol; 7º grau da escala.

E a melodia logo progredirá ao Ré bemol (mais distante ainda da tônica em termos


harmônicos) e com muita insistência o afirmará através da repetição.
Sentimos com isso, que, mais que com o simples Ré da segunda sentença ou o Sib
da terceira, que o que canta e portanto celebra extende seu gesto celebratório a
tudo, por remota que seja da tonalidade (reiterada sempre pelo pedal rítmico).

Escutemos a terceira sentença completa, que na prolongação de seu descenso


evoca uma vez mais uma ruptura progressiva da simplicidade.

E novamente o final do Bolero, como uma coda (com um salto abrupto da


tonalidade a Mi maior) reiterará este significado de ruptura de limites e passagens
em direção a espaços crescentemente distantes e inesperados. Tudo isso evoca
em nós um gesto por sua vez expansivo e abarcador, pois a ruptura de limites
nada rompe, já que prevalece sobre ela a continuação de elementos que nos
sugerem o inalterável. É como se ainda a expansão em direção ao remoto,
ocorresse no seio do onipresente, fundamental e simples, e que a celebração do
fundamental houvesse culminado na celebração do acidental e complexo – sempre
em um contexto unificante que nos permita perceber como ornamento e derivação
que exalta a mesmidade do simples.
4 A construção de significados através da forma musical

Já que a música funciona como um veículo capaz de transmitir vivências (e assim o


sentiam os maiores compositores) parece justificado falar de uma “linguagem musical”;
mas já que não se pode dizer que se pareça esta à linguagem verbal e conceitual, em que
certas palavras estão convencionalmente associadas a certas coisas, há quem prefere
evitar este termo. Falemos ou não de “linguagem”, sem dúvida, fica de pé a pergunta
de como pode a música, que é pura arquitetura sonora, funcionar como um “espelho da
alma” sem um repertório de significados precisos? Me parece que teve razão Schumann
ao dizer "Se queres compreender o significado da música, compreende sua forma"; pois
pareceria que, diferentemente da poesia, em que a forma contém o significado, a
forma na música o encarna. E tanto que na poesia se pode extrair o significado da
forma, na música não se pode ter uma coisa sem a outra.
Mas, como pode uma configuração sonora tornar-se (para empregar o termo de
Suzanne Langer) uma “forma significante”?

Até agora tenho proposto que os significados expressos pela música constituem uma
construção na qual surgem algo assim como moléculas de significado a partir de certos
proto-significados elementares, e tais moléculas de significado se combinam para gerar
significados mais complexos. Tais proto-significados se associam ao tempo, a motivos
rítmicos e a intervalos.
Podemos comparar os intervalos musicais (ou as notas, que no sistema tonal os
implicam por sua distância à nota fundamental) às cores; e cabe recordar que os chineses
tinham um sistema pentatônico em que associavam as notas aos elementos.
Segundo Marius Schneider, se associavan as notas na música hindú arcaica com animais, e
poderiam associar-se a outras tantas coisas. Em uma conferência que uma vez dei em
Jerusalém falei de como se podem relacionar as notas musicais com os sefirots do que se
chama o “rosto inferior” (Zeir Anpin) na árvore da vida da Cabala, e em uma das
reuniões com Patxi del Campo, Karl Pribram e Tony Wigram em Oma estabeleci
relações analógicas entre as notas musicais e os deuses gregos clássicos.

Passando a uma linguagem analógica tomada de nossa experiência habitual no mundo


natural, poderíamos alternativamente dizer que a nota fundamental de nossas escalas
(maior ou menor) é algo assim como a terra, de modo que tudo o que sai da tônica quer
voltar a ela, e que por isso se torna a tônica uma metáfora sonora do ser mesmo, além de
todo atributo, porquanto que as restantes notas no sistema tonal nos impressionam como
atributos do ser.

Temos proposto, também, que a quinta superior,


que é o mais distante da nota fundamental a que se pode chegar (já que elevar-se sobre
ela é sentido como uma caída em direção à nota fundamental em uma oitava superior)
se poderia comparar ao sol sobre nossas cabeças; entanto que a quinta inferior à nota
fundamental,

(que em uma escala de Dó é o Fá) poderia por sua sugestão de relaxamento comparar-se
à água, que escorre para baixo, ou a um lago.

Uma vez conheci em Tóquio a uma musicóloga alemã que ao fazer uma análise dos lieder
de Schubert havia comprovado que as harmonias de dominante (sobre o 5º grau da
escala) coincidiam em seus textos com conteúdos que expressavan maior excitação
que os de subdominante (quer dizer, sobre a nota uma quinta abaixo da fundamental),
que a sua vez se correspondiam com textos alusivos a maior relaxamento. Mas, quanta
distância há entre os elementos proto-semânticos ou átomos de significado da
música e o fato de que em uma obra musical possam expressar-se vivências tão
complexas como um pressentimento da morte (como na Inacabada de Schubert), ou uma
atitude de desafio ante a morte no último quinteto do mesmo; ou o que vai além, um
desafio à morte através de uma postura de celebração da beleza, como comentarei a
propósito do começo de seu último quinteto. Constitui um desafio tão difícil para a
mente filosófica compreender como se pode chegar a partir de tais “átomos de
significado” à grandeza dramática das obras musicais, que se compreende que alguns
caiam na tentação de adotar o preconceito que tem dominado na musicologia durante o
último século, segundo o qual a música não significa nada, e só obedece a leis estéticas
misteriosas, que talvez algum dia poderemos explicar sem referência a vivências extra-
musicais.

Mas o fato de que a música nos impressione como “pura” ou não, depende muito de
nossa maneira de escutá-la. E pode-se dizer que o caráter abstrato e quase matemático
de certas obras (que podem sugerir uma “música pura” ou “absoluta”) de nenhuma
maneira implica uma ausência de significado, senão que pelo contrário um tipo de
significado comparável ao que propõe a Cabala quando diz que “Deus criou o mundo com
números e com letras”.

Mas voltemos (agora à luz do já analisado) à minha pergunta inicial de como é


possível entender que a música, sendo pura forma, se torne em um meio de comunicação
de vivências.
Aparte de que seja possível através da forma a elaboração de significados complexos a
partir de significados elementares como aqueles dos tons, penso que pode a música
gerar significados (pese a sua falta de referências ao mundo exterior) através da auto-
referência — e que tal auto-referência opera através da repetição e da variação.

Em grande parte da música clássica européia, pelo menos, volta o discurso musical a
cada momento a algo que já se disse, mas com uma variação, e é através de tal
variação do já escutado que consegue comunicar algo.

Consideremos esta proposição a través do exame de um fragmento musical tomado do


romantismo tardio: a oitava variação sobre a Passacaglia que constitui o tema do quarto
e último movimento da quarta e última sinfonia de Brahms.
Escutemos primero o tema ao começo mesmo deste 4º movimento. Embora a ilustração
escrita só reproduza a melodia, incluí como ilustração em áudio a versão orquestral,
cuja passagem harmônica modulante (com uma dominante da dominante) ao chegar ao
quinto grau sugere algo assim como a travessia de um abismo na transição do quarto ao
quinto grau culminante da melodia e através disso uma profunda transformação.

Vamos agora à 8ª variação, já anunciada.

Consiste ela em uma melodia tocada pela flauta com um acompanhamento harmônico
muito simples. Eis aqui a variação completa:
Sentimos que esta melodia cria um ambiente de solidão — já pelo fato de se tratar de
uma melodia tocada por uma flauta solo; já o motivo inicial,

nos sugere um querer ir, que fica em suspensão.


Podemos pensar em alguém que balbucia, e que depois de dizer algo fragmentário e se
interromper, volta a fazer a tentativa de ir um poco além no que disse. Também
podemos traduzir a metáfora musical em um encaminhar-se a uma altura maior, e que
logo ao interromper-se, recomeça agora desde mais alto, como aproveitando certa
elevação já alcançada.

E não só nos evoca o escutado a solidão de alguém que está encaminando-se ao alto
com uma intermitência que nos evoca a de um balbuciar, senão que também uma
forte aspiração — esse anseio que em alemão se chama Sehnsucht.
E que dor, a de estar buscando algo que não se alcança.

Retrocedamos agora para considerar com mais detalhes como está construída esta
melodia na tonalidade de Mi menor.

Escutemos primero só a nota fundamental,

o Mi que anuncia com seu acorde de tônica a tonalidade de Mi menor corresponde


também à primeira nota do tema sobre o qual todo este quarto movimento da
quarta sinfonia é uma série de variações.

Logo escutamos uma série de quatro notas ascendentes que podemos compreender
como uma variação em torno à segunda nota da escala ascendente (que é a seguinte
no tema). Mas podemos compreender estas quatro notas como se estivessem
compostas, em primeiro lugar, por uma repetição variada do Mi que escutamos, e
agora voltamos a escutar precedida por um semitom ascendente, e logo por uma
variação da segunda nota do tema (o Fá sustenido), ao qual se agregou um semitom
ascendente.
O escutado até agora, sem dúvida, se nos mostra como a sucessão de dois blocos
sonoros: o primeiro, composto pelo Mi inicial, e o segundo pelas quatro notas
ascendentes.

O que segue em continuação constituirá por sua vez uma variação destes dois blocos, e
se inicia agora com uma frase que é a exata repetição da que escutamos.

E continua com outra frase que começa em um grau mais elevado (Fá sustenido) quase
sugerindo com isso apenas a intenção de alcançar uma altura maior. E efetivamente
chega mais alto esta nova frase, só que surpreendentemente além do que poderíamos
haver esperado, e isto novamente se traduz em um efeito expressivo, que agora nos
sugere a intensidade desse anseio de elevação já mencionado. Mas não se sustenta a
altura alcançada impulsivamente através dessa intensa aspiração, já que a continuação
da passagem nos sugere que o caminhante que tão esforçadamente chegou a tal altura
começa a se deslizar para baixo como alguém que chegou ao máximo de sua energia.

Uma vez mais, a frase seguinte constitui uma imitação rítmica das precedentes, e
isso nos leva a percebê-la em referência àquelas. Mas assim como a frase que acabamos
de analisar termina em um salto ascendente – só levemente matizado com um
descenso “suspirante” final,
a segunda parte da frase seguinte que segue ao deslizamento comentado nos
impressiona como a chegada a uma altura estável, como se o alcançado primeiro de
um salto de novo se alcançasse agora sem esforço (por efeito da harmonia de tônica).

Passemos agora à consideração do seguinte segmento melódico – novamente


constituído por dois blocos simétricos que reiteram em forma variada o conteúdo
dos anteriores.

Uma vez mais continua a melodia com a repetição do que acabamos de escutar, e uma
vez mais isso nos sugere a intenção por parte de quem enuncia o pensamento
musical de comunicar-nos que pretende remontar-se além do já dito. Mais do que isso,
este recurso de repetir o que vem sendo dito para estabelecer o que foi um final para
um novo começo, se repete ao passar do primeiro bloco sonoro deste fragmento ao
segundo. Assim, a nota Si com que termina o primeiro ao repetir-se ao começo do
segundo se estabelece como ponto de partida para outro salto para o alto – que
chegará mais alto que o até agora alcançado pela melodia.

E uma vez mais o seguinte episódio desta sequência ascendente que se modela
segundo a melodia ascendente da Passacaglia constitui um eco de algo escutado
precedentemente; só que em vez de,

escutamos agora:
Mas uma vez mais o salto ascendente do buscador sedento terminará em um suspiro
e será seguido por esse deslizamento cromático da melodia, e assim como o tema da
Passacaglia retorna à tônica, sentimos nesta variação que o caminhante volta a casa.
E como no tema, também regressa satisfeito pois já não vive como uma frustração o
não haver alcançado o infinito, senão que sente que fez o que pôde e está bem.

O fato de que o padrão rítmico das frases, já não seja o de 5 notas seguidas de outras
5, senão que de 7+3 contribui a nosso sentir que, havendo já o imaginário caminhante
alcançado a satisfação que buscava, descende até seu lugar de repouso em forma mais
rápida — como é comum nos descensos, que não se acompaham de tanto esforço
como os ascensos. E apreciamos que o que já tenha chegado à oitava superior do Mi
inicial (que sentimos como sua estatura completa) já não necessita outra coisa do que
voltar a casa, de maneira análoga a como depois de cada inspiração nos contenta
exalar; e por isso, por mais que vá descendendo do que tanto havia ansiado elevar-se,
sentimos que o faz com plena aceitação, como alguém que regressa satisfeito consigo
mesmo e em paz depois de sua aventura.

Embora tenha introduzido em minha explicação o termo lógico-matemático de “auto-


referência”, através dele só lhe dei um caráter abstrato ao que na composição e
análise da música se chama “sequência”, que é a simples repetição variada através da
transposição, da ampliação de certos intervalos, da variação harmônica, da modulação,
etc. Mas o que objetivamente é a repetição variada é algo que subjetivamente
percebemos como uma referência de cada fragmento melódico ao precedente, e
podemos dizer que tem lugar uma “modulação” de certo esquema subjacente, usando
um sentido diferente da palabra “modulação” do que esta tem usualmente na música,
semelhante melhor dizendo ao que tem na expressão “frequência modulada” que se
utiliza no contexto de transmissões radiofônicas (nas quais a variação de uma
frequência básica se faz portadora de um eco da sequência de sons registrada por um
microfone, e através dela da linguagem e seus significados).

Quero agora chamar a atenção sobre outro aspecto na construção musical sobre o qual
nunca encontrei um comentário, e para isso citarei o começo de uma sonata de
Mozart, um músico com respeito ao qual se pretende às vezes que transmite um
significado mínimo. Costumava dizer Cláudio Arrau a seus alunos que se devem tocar
as sonatas de Mozart com um espírito semelhante ao da ópera, e entendo tal
afirmação como equivalente a dizer que mesmo no piano se deve fazer sentir o espírito
do bel canto, e que isso por sua vez equivale a dizer que não só convém tocar de
maneira expressiva, senão que como se a melodia estivesse dizendo algo.

Há estudantes de piano que abordam as sonatas de Mozart como exercícios de pouco


conteúdo humano, tal como imaginamos em geral a era do Rococó como uma de
frivolidade e afetação. Assim como se aborrecem ao tocá-las, uma interpretação
demasiado mecânica de Mozart pode resultar aborrecida a nós que a escutamos, e por
isso o começo da sonata em si bemol K333 (ou K315c) poderia nos resultar como uma
música apenas decorativa.

Mas nada nos impede de tocar o mesmo imaginando que alguém está cantando ou
dizendo algo…

O primeiro que deverá nos impressionar é o que já nos foi anunciado pelo mero
fato que, como encabeçamento deste movimento, escreveu Mozart a palavra
“Allegro”. Os allegros das sonatas clássicas se definem por seu tempo rápido, que
por sua vez nos transmite um estado de ânimo “animado”, vivaz, efusivo.
Observamos que começa este allegro com uma frase descendente. E assim como
as frases ascendentes nos sugerem um “ir em direção a”, esta frase descendente
nos sugere melhor um “vir de”.

É como se alguém chegasse cantando: Aqui venho alegremente!


Frase que logo se completa em:

que nos chega como um gesto muito amoroso

e caso se tratasse de uma Ária em uma ópera, essas cinco notas agregadas poderiam
dizer "Para servir-te" ou algo semelhante.
Reiterando: Alguém disse “Alegremente venho

para servir-te!
E na continuação escutamos uma repetição variada do que já comentamos.

Um primeiro aspecto desta variação é que se deslocou a melodia para baixo em um tom,
constituindo assim o que se chama uma sequência. Outro é uma mudança harmônica do
acompanhamento desde a tônica (ou acorde sobre a nota fundamental da tonalidade à
a dominante), ao acorde do quinto grau, que implica uma tensão e uma tendência a
retornar à tônica; uma terceira característica desta reiteração variada, é que precede a
esta nova frase algo assim como um novo encabeçamento, que poderíamos comparar a
uma conjunção.

Mas voltando à consideração do conteúdo expressivo, que se passa quando se repete o


dito um pouco mais baixo e em uma harmonia alternativa?

A variação nos chega como algo comparável à conjugação de um verbo, em que se


aplica a mesma ação a diferentes pessoas, ou como outra transformação gramatical que
aludisse a outro tempo.
É como se dissesse esta segunda frase: E amanhã voltarei também, se tu o queres;

Ou, em forma mais abstrata: “o dito também é válido para uma circunstância diferente”.

Vejamos agora como continua o enunciado musical:

Em primeiro lugar, observamos que já não se trata, nesta terceira parte da sentença
musical, de uma simples repetição variada do que escutamos já duas vezes; e nem
sequer se trata de uma frase musical de estrutura semelhante às anteriores. Pois se as
frases anteriores compartilham uma estrutura binária
neste caso podemos observar que a frase está constituída por três partes; primeiro:

Em segundo lugar uma repetição variada dela:

E em terceiro lugar o seguinte:

Se atendemos ao aspecto semântico sugerido por esta terceira frase, creio que devemos
observar que nesta se faz muito presente a repetição de um fragmento melódico que
nos recorda os finais das frases anteriores:
e há uma repetição:

E duas vezes se repete esta repetição, pois duas vezes se repete, em forma variada, a
frase que a contém.
Antes de considerar a terceira parte desta frase ternária, entretanto observemos que as
duas primeiras, que são um eco algo condensado e variado das que já escutamos e
comentamos, parecem comunicar uma confirmação entusiasta do anteriormente dito,
como se dissessem: “qualquer dia que tu digas!”

“Quando queiras! Não tem mais que me dizer!”

Depois do que, se torna óbvio que a escala ascendente com que começa a frase terceira
e final é algo equivalente a “Porque eu estarei muito contente! Muito contente! Me
entusiasma!”
Ao risco de parecer redundante resumirei o explicado: escutamos um pensamento
musical,

com sua resposta (o que se chama antecedente e consequente)

e logo um eco dela:

e em seguida escutamos — um pouco assimetricamente — uma afirmação que se pode


analisar em três segmentos:
Primeiro:

Logo:

E por último:

É claro que nesta estrutura binária, um,

dois,
é seguida por uma ternária, um,

dois,

e três,

Ou seja: se nos apresenta uma coisa, logo outra coisa simétrica, e como conclusão: uma
sequência de três frases musicais; e a mim me parece que esta introdução de uma
forma ternária, que rompe um esquema, que até agora consistia em frases em espelho,
nos faz sentir que estamos em um metanível da linguagem: não estamos falando do
mesmo, ou é como se entrasse uma terceira pessoa, que dissesse: "Minha conclusão é
esta".
Assim, se entendemos a primeira frase como algo como:

"Aqui venho muito contente,

disposto a servir-te”

e entendemos a segunda frase como uma resposta em que a mulher interpelada


responde "E eu me alegro muito do que me ofereces",

a terceira nos chega como a voz de outro personagem, que diz: "Cada vez que isso
acontece…
(e) cada vez que isso acontece…

Eu me ponho muito contente”,

e repito o conteúdo correspondente à repetição da frase como se se tratasse de duas


pessoas como quando em uma ópera de Mozart dois personagens cantam algo
sucessivamente repetindo o mesmo.

Vejamos em outro exemplo, tomado de outra sonata (n.17 em sibM, KV 570 comp. 32-
35) que escreveu Mozart posteriormente na mesma tonalidade. Se trata de uma
passagem muito romântica (e Mozart costuma ser muito romântico) do adagio:

Nos parece que começa esta passagem como uma declaração de amor. Se imaginamos
que alguém está cantando seu amor a outra pessoa:
poderíamos imaginar que simplesmente lhe diz: "Aqui estou, declarando meu amor". E
podemos pensar que na seguinte frase, simétrica, é ela quem responde:

“E eu, igual” Mas podemos também, alternativamente, pensar que se trata da mesma
pessoa que agora transmite à sua amada em seu canto que o dia de amanhã seguirá
cantando igualmente; mas a primeira frase se refere a um sentimento presente e a
seguinte a um sentimento de um imaginário amanhã.

O caráter da frase conclusiva é especificamente conclusivo, e já seu começo em uma


nota mais alta nos sugere algo comparável ao que é na linguagem um superlativo, ou
um “sempre”.
Podemos dizer que esta frase conclusiva nos sugere algo como generalização, de modo
que se foi dito até agora: "me agradam teus olhos” e logo “me agrada tua voz”, o que se
diz agora é algo como “tudo em você me agrada”. Ou se o enamorado professou sua
disponibilidade hoje e amanhã, agora diz que seu amor será para sempre. Ou
alternativamente, se estabelecemos uma analogia com adjetivos comparativos como
“grande” e “maior”, para traduzir este último pensamento musical nos corresponde
empregar o adjetivo superlativo: “máximo”.

Resumindo então, é como se a estrutura musical fosse composta de uma frase:


seguida por outra semelhante

e logo uma terceira que se divide en três:

e esta última é como a voz de alguém que dissesse: "Em síntese:…” O conteúdo desta
terceira proposição já não está no mesmo terreno que as anteriores, nem no diálogo,
senão que constitui algo como uma reflexão retrospectiva, uma tentativa de passar a
algo mais universal.

Me parece que opera nestes exemplos de estrutura sintática ternária a enigmática


universalidade de um ritmo que se usa muito nas ruas, quando a gente quer vociferar
uma mensagem política:

um
dois
um, dois e três —

como em:

"O povo
unido,
jamais será vencido!"
que podemos encontrar em inumeráveis variações.
Diria que expressa este ritmo um pensamento implícito em que se combina a simples
enumeração com uma recapitulação, de modo que depois que se diz “um” e logo “dois”
ocorre como se alguém explicasse "Agora, antes de continuar, vamos recapitular; quer
dizer, vamos mirar panoramicamente para captar em seu conjunto o que se vem
dizendo". E há nisso algo assim como uma perspectiva musical.

Às vezes a música não só reitera, senão que reitera de maneira implícita, como no
começo da primeira sonata de Beethoven.

Primeiro, diz a primeira frase:

e logo:

Mas depois de haver dito uma coisa

e outra,

a meloda poderia comparar-se ao que diz alguém que recapitula mas sem citar de
maneira literal o que foi dito (o que seria repetir as duas frases completas que
escutamos); alude melhor dizendo ao já dito citando de cada uma das duas frases só o
final — antes de ir além com uma extrapolação de ambas.

Voltamos a encontrar a mesma estrutura ao começo da 5ª sinfonia de Beethoven. No


motivo inicial,

escutamos uma afirmação; logo ouvimos a famosa resposta desafiante

e com elas temos algo assim como dois pilares, entre os quais fluirá uma terceira coisa.
E que é essa terceira cosa que flui? Tem três partes, das quais a primeira é

a segunda
e a terceira está dividida em três partes: 1, 2, 3.
E novamente a terceira parte é de estrutura ternária, embora muito breve 1,2 3.

Costumamos escutar na música o aspecto binário, mas às vezes (como aqui) não nos
damos conta que aparece uma ternaridade, que sugere uma metalinguagem.

Mas passemos agora à consideração de pensamentos musicais mais extensos, e mais


especificamente daquelas obras muito simples cuja estrutura se conhece na musicologia
como “forma canção”. Mais exatamente, como podemos entender o sentido desta
forma constituída por três partes em que a última é uma repetição da primeira, de
modo que podem ser representadas pelas letras ABA.

Schumann, quando teve filhos, dedicou muita atenção a ensinar-lhes a entender a


música, e inclusive antes de ser pai escreveu suas “Cenas Infantis”, em que obviamente
imaginou tê-los; segundo os títulos das peças que integram este ciclo, que se referem a
conteúdos específicos, parece haver querido sensibilizá-los a como a música fala, como
se se referisse a algo.

A primeira das cenas infantis — Opus 15, (1838) — se chama: "Dos países e gentes
estrangeiras" (Von fremden Ländern und Menschen). Eis aqui a primeira parte:
A melodia começa com uma sexta menor:

Entre os intervalos musicais, como já vimos, a sexta é muito expansiva, e tem algo doce;
diríamos que não é como saltar a uma pedra, senão a uma pradaria:

Embora a sexta menor esteja apenas meio tom acima da quinta, que é mais estável, não
é um lugar aonde o compositor ficará por muito tempo:

Já comentei que a sexta maior comunica um gesto muito generoso porque evoca
satisfação, tanto que a sexta menor, que evoca certa insatisfação, evoca também um
anseio. E o anseio aqui (reforçado pelo acorde de dominante da dominante, que nos
leva ao horizonte da tonalidade) apoia o significado que Schumann nos comunica de
"querer conhecer algo longínquo"

Nos é fácil imaginar ao pai que tem sobre os joelhos um menino pequeno e que quer lhe
explicar como é o mundo que ele ainda não conhece, um mundo além de seu atual
horizonte.
Logo a segunda parte da composição, construída sobre um intervalo de segunda
ascendente (que evoca um ir) é mais ativa, já que não expressa tanto o anseio do
conhecimento senão o entrar na aventura, um sair ao encontro do mundo.

Há algo de imperativo neste motivo de segundas ascendentes em terças, como se se


dissesse: “Vamos conhecer isso! Vamos a essas terras!” É já uma aventura este gesto
afirmativo em que podemos também perceber certa valentia:

O menino está sendo convidado a tornar-se grande.

O conteúdo desta segunda parte então, é o deleite da aventura, que é na realidade uma
aventura imaginária, ou uma aventura do conhecimento.
Mas depois desta breve segunda parte voltamos novamente à primeira, pois tal é a
estrutura do que se chama “forma canção”; a mais simples das formas musicais que é a
estrutura comum de todas estas cenas infantis: ABA.
Mas, segue comunicando-nos o mesmo agora a repetição do já escutado na primeira
parte? Melhor podemos dizer que a repetição depois de um episódio contrastante
(chamemo-lo neste caso “a aventura”) nos comunica certo sentido de retorno a casa,
que implica uma maior paz. É como se a primeira parte houvesse sido um chamado à
aventura, mas depois da aventura mesma, a tercera parte se torna, por seu contexto,
um retorno após a aventura, em que a ênfase está em algo como “não nos esqueçamos
que tu estás em casa, sobre meus joelhos, experimentando o prazer de que te estou
contando um conto”.
Poderíamos dizer que há agora uma consciência maior de estar em casa que quando se
estava pendente de uma iminente aventura. E se nos perguntamos porque é uma forma
tão universal esta ABA, poderíamos responder que quando se volta ao começo depois
de havê-lo deixado, a volta a casa já não é a mesma que antes de sair.

O matiz novo que lhe dá ao significado musical a volta ao começo depois de um episódio
intercalado pode ser algo diferente do que no exemplo precedente chamei uma “volta a
casa”, sem dúvida, como podemos ver na seguinte Mazurca de Chopin (Opus 63, nº 2),
que também se ajusta à forma ABA e começa assim:

Começa a melodia com um Ré bemol, que no tom de Fá menor se situa uma sexta sobre
a nota fundamental ou tônica.

Já topamos várias vezes em nossas análises com esta sexta menor como um intervalo
que sugere anseio.
Mas observemos também que se acompanha esta sexta nota da escala com uma
harmonia que identificamos como a dominante, que constitui um acorde de tensão
sobre a tônica — isto é, um que percebemos como querendo cair sobre a tônica.
Ademais, observemos que entre o Dó que escutamos no baixo antes de qualquer outra
nota, e que seguimos ouvindo quando entra a melodia com esse Ré bemol, se produz
uma forte dissonância,

que não é precisamente de meio tom senão que de duas oitavas mais meio tom (mas
que consideramos equivalente a um semitom) e que nos faz sentir por sua dissonância
algo como uma estocada, que poderíamos traduzir em palavras como um “Ai!”. E já que
se prolonga esta nota inicial da melodia durante dois tempos e algo mais, o que lhe dá
um caráter muito cantado, podemos precisar que se trata de um “Ai!” cantado mais que
de um “Ai!” gritado; e como aonde há canto há amor — sentimos que aqui o canto
abarca, e de alguma manera assimila a dor.
Escutamos na continuação deste brevíssimo “Ai” melodioso uma caída melódica

que, por se tratar de uma escala descendente menor, associamos com o pranto, e
abruptamente se continua com um giro melódico que tanto por seu ritmo como por seu
caráter ascendente nos impressiona como muito elegante.

Escutemos novamente a sucessão deste pranto ao que parece responder o sujeito


sofredor com um gesto de bom humor:
Não só tem sustentado o que canta sua atitude amorosa apesar de sua dor, senão que
está disposto a dar esse salto ascendente que, mais que um mero cantar, nos comunica
essa disposição para dançar que é a quintessência da mazurca. Em síntese, nos
transmite o escutado até agora o ânimo de alguém que sofre sem estar de nenhuma
maneira deprimido, pois em lugar de reagir com desânimo melancólico, adota uma
posição de celebrar a vida.

Escutamos em seguida o que se anuncia como uma repetição do escutado, mas que se
descobre como uma repetição variada em que ao “pranto” inicial não responde já esse
gesto alegre e elegante que tão característico nos parece da personalidade social de
Chopin, senão que uma espécie de pranto estrangulado e retorcido pela contenção.

Poderíamos interpretar esse pranto contido como o aspecto mais íntimo do compositor,
que subjaz a sua máscara alegre e aristocraticamente refinada. E se escutamos as duas
frases comentadas como um único pensamento musical, então, podemos pensar na
vivência de alguém que depois de reagir a um sofrimento com o controle habitual de
quem se move no mundo, penetra algo mais em si mesmo e se encontra com sua
intimidade.

Na continuação escutamos uma terceira versão de todo o escutado até agora: primeiro,
a “tristeza compensada” (podemos chamá-la agora que a explicamos), só que
intensificado seu gesto “compensatório” alegre por uma breve excursão à tonalidade
maior, e logo a tristeza vivida na pele, que agora se nos apresenta de maneira também
intensificada, por uma variação mais cromática e por uma repetição parcial, que
extende a duração da melodia como se se prolongasse o pranto mesmo.

Não comentarei tão detalhadamente a porção intermédia ou “B” desta mazurka, que
não só é mais alegre senão que mais singela, assemelhando-se seguramente às
mazurcas que naqueles tempos bailavam alegremente os camponeses polacos. É como
se o eu que vem cantando ou falando dissesse: “Bom! ponhamos já nossa tristeza de
lado. Consolemo-nos com o que há de positivo na vida! Unamo-nos à festa, onde há
tantas moças bonitas!” Escutemos esta parte intermédia (B) da mazurca simplesmente
para poder apreciar na continuação como nos impressiona a repetição da seção “A” já
analisada.
Para mim, o efeito desta volta à melodia inicial é o de uma volta do indivíduo a esta
parte dele da qual tentou se distrair, mas que não consegue calar, de modo que agora
chora ou canta a plena voz, como querendo compensar seu silêncio e sugerir também
que não pode se identificar profundamente com a alegria superficial da festa.
Podemos imaginar que esta volta do tema inicial é algo comparável a um desses
solilóquios de Shakespeare nos quais o personagem que se supõe na intimidade
compartilha em realidade com seu público coisas que só se diz a si mesmo. Só que o
efeito desta fidelidade do personagem a seu mundo interior transforma sua atitude, e
sua insistência em sua tristeza termina, paradoxalmente, por devolver-lhe a alegria.
Assim nos fazem sentir, não só o passo transitório a Fá maior (cinco compassos antes do
final) senão que também a forma harpejada em que Chopin indica que se devem tocar
os acordes que acompanham a passagem final, que já interpretamos como um pranto
labirinticamente voltado sobre si mesmo, mas que agora escutamos como integrado a
essa atitude elegante do começo e ainda como algo que alcançou certa conotação
triunfal. A dinâmica (que indica agora “forte” e não “piano” como ao começo) também
contribui a que aquilo que se havia vivido em forma tão melancólica pudesse ser vivido
agora em forma, se não menos dolorosa, ao menos enaltecida, ao acompanhar-se de
um sentir algo assim como um "que forte sou, em meio de todo este sofrimento da
vida!".

Assim, embora termine a mazurca com soluços, pelo simples fato de que chegam estes
depois do episódio intermédio alegre, como uma repetição, se vem elevados a um certo
caráter monumental. É como dizer: "Aqui estou eu soluçando, e nisto há uma nobreza”.
Nesta volta da música a si mesma, então, não só há uma reafirmação, senão que uma
transformação do significado que deriva de que a escutamos como uma conclusão. Esse
caráter de conclusão transmite a condição de uma pessoa que se ama tanto, e ama
tanto sua experiência no aqui e agora que não só a canta, senão que lhe eleva um
monumento a esse ato de cantá-la.
Começamos com a análise de breves passagens musicais e passamos logo à
consideração da mais elementar das formas. Se avançamos agora à consideração de
uma forma musical mais complexa devemos proceder à análise de obras em que se
combinam dois ou mais temas, e embora isto seja algo que encontra seu máximo
desenvolvimento no que se chama a “forma sonata”, começarei por algo um pouco mais
simples — por mais que historicamente tenha surgido posteriormente à forma sonata
mesma, introduzida por Haydn, cultivada por Mozart e levada à maturidade plena por
Beethoven.

Os convidarei a acompanhar-me em uma reflexão sobre o conteúdo expressivo da


primeira Balada de Chopin, Op. 23.

Depois de começar com uma nota grave oitavada (que supomos seja a tônica)
escutamos uma melodia ascendente como uma onda que nos sugere algo como uma
aspiração ao alto que poderíamos dizer a essência do Romantismo. Se trata de um
movimento ascendente:

Como a metáfora de alguém que se está levantando e saindo do escuro e querendo


remontar-se a algo luminoso, como buscando o ar, ou a vida mesma. Podemos dizer que
há nele uma busca de liberação, de plenitude, de auto-realização por parte de alguém
que se encontra em um estado de encolhimento, dobrado sobre si mesmo.
Termina o movimento ascendente com um breve descenso que evoca um suspiro,
e continuando escutamos uma reiteração variada desse suspiro musical (introduzido por
um grupeto 1);

por último, parece resumir-se ainda mais esse gesto de suspiro (por parte de alguém
cujo anseio não alcançou a satisfação que buscava) em uma brevíssima frase de apenas
três notas que nos soa como se o que vinha nos falando de si mesmo através dessa
onda ascendente de aspiração, agregasse, a maneira de resumo, algo assim como um:
"Assim é a vida".

É esta uma frase que termina em um acorde muito doce, cuja doçura está na
dissonância de uma nota (mi bemol) que recordo a um entusiasta de Chopin chamar “a
nota azul”:

Se trata de uma harmonia muito chopiniana, que suponho ninguém havia utilizado
antes (embora falte em algumas edições, talvez por uma correção demasiado
acadêmica). É como um “Aiii!”, essa dissonância que só acentua a doçura da harmonia, à

1Grupeto (do italiano gruppetto, "pequeno grupo") - em música é um ornamento melódico que consiste
em uma rápida sucessão de um grupo de três ou quatro notas que por graus conjuntos rodeiam à nota
escrita, que se considera a nota principal. (http://es.wikipedia.org/wiki/Grupeto).
semelhança de certos odores pútridos que usam os perfumistas para intensificar a
fragrância de outros agradáveis.
Mas tudo isto não foi senão a introdução ao primeiro tema da Balada, que escutamos a
continuação:

Mais exatamente, alternarão neste tema esta frase inicial que tem algo de suspiro
resignado, e duas notas que lhe seguem, que sugerem que esta resignação não é a de
um que permanece quieto, senão que, pelo contrário, um que segue buscando algo.

E se repete a sucessão da frase ascendente suspirante e as duas notas seguintes,


sempre no mesmo ritmo, mas em diferentes configurações melódicas e harmônicas,
mas sempre com um desejo de resignação, como se nos dissesse cada vez a repetição
do “motivo suspirante” algo assim como "Assim é a vida!"
A repetição da mesma ideia musical em diversas variantes melódicas e harmônicas nos
impressiona como se Chopin nos dissesse que uma busca universal nos leva a todos a
buscar de inumeráveis maneiras diferentes e a reiteração das mesmas seis notas se
volta nesta passagem algo assim como um estribilho que como resposta à variável
entonação das duas notas que alternam com ele nos impressiona como se alguém
estivesse formulando uma lei universal, e concluísse: "Vá por onde vá, tome sua busca a
forma que tome, sempre chegas ao mesmo.” Mas logo vai entrando em uma paixão
maior no desenvolvimento do tema, e a sentimos indicada primeiro através da figura do
baixo e logo pelo trinado:

A intensificação se continua depois do trino no baixo com a introdução de oitavas fortes


em uma sequência melódica ascendente do mesmo baixo, termina o episódio com uma
nova ideia melódica que corresponde ao ambiente de tristeza resignada que já
escutamos e talvez reconhecida como típica de Chopin.

Mas ainda não terminou o primeiro episódio da Balada, que podemos comparar ao
primeiro grupo temático de uma sonata. Algo assim como uma cadência de grande
expressividade introduz uma vez mais um suspiro musical que resume o espírito que
viemos escutando.
Essa filigrana melódica que introduz Chopin ao final do primeiro compasso nesta última
passagem pareceria um puro virtuosismo, mas é como o equivalente de uma explosão
emocional em que a densidade do conteúdo se traduz não só em intensidade senão que
nos sugere uma grande sensibilidade — comparável talvez àquela de uma mãe que dá
toda sua atenção a uma criança muito preciosa e querida. Mas termina a frase uma vez
mais em um suspiro algo equivalente aos suspiros e gestos de resignação que
escutamos. Em outras palavras, o grande amor dessa passagem ornamental não muda a
atmosfera de "Assim é". "Tão triste, embora tão cheio de amor!".

Escutamos em seguida algo que poderíamos comparar ao que em uma sonata é


a passagem modulatória que separa os dois temas na exposição;

Este episódio virtuosístico desemboca no segundo tema da Balada, que se


anuncia primeiro “como quem não quer nada”, sem que pareça um tema, todavia, de
maneira comparável a como na música hindú às vezes o intérprete passa
gradualmente da afinação de seu instrumento ao raga sobre o qual improvisará sua
variação.

Este tema pastoril é algo bem diferente da dolorosa aspiração ao infinito do começo.
Diria-se melhor que estamos agora em um paraíso terrenal.
Sentimos que pertence esta música à mesma categoria que esse gênero na poesia
espanhola antiga que se chama “pastoril”, em que dialogam o pastor e a pastora, como
arquétipos de seres que podemos interpretar como idealizações de um estado natural e
paradisíaco da vida.

Começa este tema como algo aprazível e pacífico, mas logo se torna também
celebratório:

como se cantasse “Cantemos à felicidade!” E se torna inclusive extático o canto.


Ao repetir-se o tema se alcança uma maior exaltação – embora sempre dentro da
atmosfera serena do pastoril, mas conclui com algo de resignação.

Novamente nos encontramos aqui com uma passagem de transição algo decorativa,
inspirada no primeiro tema, mas evocadora de uma atmosfera mais alegre, como
corresponde depois de um episódio de plenitude.

Como se pode adivinhar das notas finais da passagem que escutamos, o que vem agora
é uma reaparição do primeiro tema — só que já não em Sol menor senão que em Lá
menor – ou seja um grau mais alto, como se quisesse anunciar com isto uma intenção
de erguer-se por parte do que expressa o canto.
E assim é, tanto no desenvolvimento da melodia, na qual as duas notas ascendentes vão
conformando uma sequência que vai sempre mais alto, como na dinâmica, que indica
ao intérprete uma crescente sonoridade.
Culmina o desenvolvimento do tema esta vez em uma reaparição do que chamamos o
tema pastoril – só que a modalidade serena se transformou agora em uma modalidade
plenamente extática quase triunfal porquanto a sentimos não só como uma expressão
de felicidade senão como o júbilo de uma liberação que implica o haver deixado atrás a
atmosfera algo pesante e resignada do começo da Balada.
Depois deste clímax que percebemos como uma liberação saudável no mundo interno
algo melancólico e introvertido do compositor, chegamos a uma terceira passagem
virtuosística de caráter mais atmosférico, que nos transmite a alegria exaltada de quem
conquistou tal triunfo interior.

Mas como já deixa adivinhar a passagem citada em áudio, compreendemos agora que
este último episódio virtuosístico foi algo como uma explosão de alegria em meio ao
desenvolvimento do segundo tema que agora volta a reaparecer e continua em seu
desenvolvimento.
Um novo intermezzo separa o que escutamos de uma nova reaparição do primeiro tema
da Balada, e poderíamos perguntar-nos se acaso pretende Chopin algo assim como uma
reexposição ou a introdução de uma ideia mais nova. Muito cedo chegaremos a sabê-lo,
pois nesta reiteração do tema já escutado parece que algo não andava bem. Ao começo
só escutamos a reiteração do tema em Sol menor, mas quando a melodia tenta um
ascenso comparável ao de sua aparição anterior, o acompanhamento harmônico
permanece fixo como se houvesse paralizado um mecanismo, fazendo-nos sentir a
presença de uma disfunção. E a mesma melodia em sua insistência nos transmite um
sentir comparável a alguém que se asfixia, e insiste não só em respirar senão em abrir
caminho além da obstrução.

Poderíamos comparar o sentido expressivo da passagem ao sentir de alguém que se deu


conta de que está preso, e ao não conseguir recuperar sua liberdade grita “Deixe-me
sair daqui!”

Mas como já escutamos, o obstáculo fica por fim atrás, e sua presença só leva a que o
sentido de superação do fenômeno explosivo nos resulte ainda mais triunfal que a
aparição anterior do mesmo tema. E é essa a carga emocional da coda da Balada: um
puro entusiasmo pela liberdade finalmente conseguida ao transcender uma aspiração
bloqueada, ou um estado vital de implícita opressão. Agora só fica o júbilo de que o
obstáculo foi deixado atrás, e o desejo de celebrar essa vitória.
Em resumo, percorremos um proceso que nos levou desde um começo de melancolia
resignada a uma explosão de plenitude e logo à confrontação e superação do obstáculo
que implícitamente tinha reduzido a expressão do compositor a sua acostumada tristeza.
Podemos dizer que se trata da história da liberação da alma, — como em tantas lendas
e mitos. Como culminação de tudo isto, sentimos que o desdobramento de todo o
virtuosismo chopiniano da coda está a serviço de nos fazer sentir a imensa abundância
da vida ademais de abundância do entusiasmo e do amor de quem conseguiu liberar-se.

Termina aqui meu comentário à forma e significado desta primeira Balada de Chopin,
escrita depois do estabelecimento da forma sonata (e que constitui uma alternativa ao
desenvolvimento típico do material temático naquela); mas agora retrocederei
cronologicamente para considerar no próximo capítulo a forma sonata propriamente
dita, assim como o aparente mistério de seu êxito histórico incomparável.
5 Como em Beethoven a forma sonata e a estrutura sinfônica se tornam metáforas de
um processo evolutivo

1 Prelúdio

Venho desenvolvendo o tema da música como proceso acústico-semântico no qual,


embora o aspecto material da música seja uma pura sequência sonora, o correlato
psíquico de sua percepção nos permite dizer que o sonoro se constitui em um veículo
de significados.

Na música cada instante significa, e cada instante contribui à construção do significado


através de intervalos, ritmos, motivos e as formas mais abarcadoras da arquitetura
sonora.

A obra é proceso, mas fica nossa mente depois de escutá-la em um ponto preciso ao
que seu transcurso nos levou. Como um tapete mágico, nos leva a música por um
labirinto de mundos, mas o processo de sua viagem nos deixa em um estado que dista
do estado inicial assim como difere o estado do corpo antes e depois de receber
alimento.

É a música linguagem e coração virtual: experiência emocional latente, que só em nós


pode chegar a tornar-se emoção propriamente dita. Alude, melhor, a música a nossa
experiência emocional, mas está além (e aquém) da emoção: conduz e organiza a
emoção, que só se reproduz em nós se lhe damos nosso coração, em um ato
semelhante ao de um ator que se identifica com seu personagem ao emprestar-lhe
sua voz e seus gestos.

O processo da linguagem musical no tempo, às vezes, se faz metáfora da Grande


Viagem, e a obra, símbolo sonoro da vida.

Paradoxal, é que o fluidíssimo meio sonoro sirva para cristalizar um processo interior
ainda mais evanescente. Mas em último termo é o logos eterno o que encarna no
evanescente melos — em incontáveis variações.

Mas se vamos além e falamos da música não somente como processo sonoro e
semântico, senão como processo que reflete o devir da vida, ou do desenvolvimento
da consciência, isto já não se aplica a toda música, pois só de certo tipo de música se
pode dizer que nos fala de um processo evolutivo. Nem uma marcha militar comum e
corrente nos fala do processo da vida, nem o canto Gregoriano, nem um prelúdio de
Debussy, por exemplo.
2 Beethoven, poeta de sons e cantor da “grande viagem”.

Herman Scherchen 1 afirmava que Beethoven injetou na música européia algo muito
diferente do que havia sido até então, e me parece certo. Em seu primeiro período,
como Haydn e como Mozart, Beethoven usou formas musicais existentes, mas chegou
a fazer com elas algo radicalmente diferente.

Apesar da tendência dos musicólogos à interpretação da música como um fenômeno


estético puro, sem referência a conteúdos expressivos, não puderam ignorar este
extraordinário caso de Beethoven, que significativamente resistiu a usar a palabra
então usual de “Komponist” (compositor) para inventar uma nova: “Tondichter” (poeta
de sons).

Todos os críticos estão de acordo em discernir três períodos sucessivos na vida e obra
de Beethoven. A música de seu primeiro período nos soa muito a Haydn e a Mozart.
Mas mais tarde, embora use as mesmas formas musicais, sentimos que houve uma
mudaça que vai além do que se pode descrever em termos puramente formais, ou
sequer musicais.
Ademais, sabemos que pouco antes de compor a “Eroica”, esteve Beethoven a ponto
de tirar sua vida, embora se decidiu por fim a não fazê-lo. O sabemos porque nos
deixou um documento comovedor acerca deste momento de transição em sua vida: o
testamento de Heiligenstadt. E é difícil não relacionar o conteúdo deste documento
com sua música daquela época — particularmente com a terceira sinfonia e a quinta,
que começou a escrever pouco depois.

Também coincidem os críticos em caracterizar a segunda etapa da carreira


beethoveniana como “heróica”. É como se Beethoven houvesse expressado em
termos musicais o que no mundo verbal da mitologia e dos contos fabulosos tem sido
chamado o “mito do herói” — processo arquetípico invariante através de lugares,
épocas e pessoas, que parece encarnar a estrutura da “viagem da vida” — quer dizer,
a estrutura do desenvolvimento humano completo.

Porque não haveria de encontrar uma expressão musical este mitologema do qual se
recolhem tantas variações na história da mitologia? 2 Se queremos buscar a expressão
musical deste mito do herói, em nenhuma parte iremos de encontrá-la tão vívida e
evidente como na “Eroica” e na Quinta sinfonia de Beethoven.

1
Hermann Scherchen - (Berlin, Império alemão, 21 de junho de 1891 – Florença, Itália, 12 de junho de 1966)
foi um regente e arranjador alemão especialista em compositores clássicos do século XX tais como Richard
Strauss, Anton Webern, Alban Berg e Edgar Varèse. (http://es.wikipedia.org/wiki/Hermann_Scherchen).

2
Como demonstrei em “Cantos do Despertar/O Mito do Herói através das Grandes epopéias do Ocidente”,
também nos grandes poemas épicos se pode discernir o mesmo conteúdo.
J.N.Sullivan 3 escreveu um magnífico livro sobre Beethoven em que atende a seu
processo espiritual, e diz que neste período central de sua obra são duas as
experiências fundamentais que o caracterizam: a experiência do sofrimento e a do
desafio.
Bem sabemos que o principal sofrimento na vida de Beethoven, então, foi o de sua
surdez; e penso que é muito difícil falar da Eroica ou da quinta sinfonia sem percebê-
las como expressões do encontro de Beethoven com a tragédia de seu destino.
No caso da quinta sinfonia podemos dizer que o processo de superação deste
aparente obstáculo chega a sua expressão mais espectacular, já que seu finale é
claramente um canto de vitória e uma apoteose, em que Beethoven emerge como um
conquistador de seu destino.

Me parece interessante que este tema apareça também no Fidelio, porque se trata ali
explicitamente de um drama de liberação, e isto confirma o significado sugerido pelos
desenvolvimentos da quinta sinfonia, que é aquele da vitória sobre a vida e sobre si
mesmo. O contraste entre a expressão vitoriosa desta melodia e o material melódico
anterior no curso da sinfonia, está naturalmente reforçado pela mudança de Dó
menor a Dó maior.

Se é certo que a música é expressão da experiência humana, sentimos que Beethoven


emergiu vitorioso de uma grande luta consigo mesmo, e apesar do que possa sugerir
sua conduta escandalosa, não posso duvidar que em um sentido importante tenha
chegado a dominar sua natureza passional.

Depois desta vitória, as obras do período intermédio de Beethoven contém uma carga
menor de dor, e melhor nos soam como uma expressão da natureza. Isto é muito
explícito no caso da Pastoral, e algo mais metafórico que diretamente alusivo à
natureza na sétima sinfonia. Mas creio que por mais que haja elementos
programáticos ou descritivos na sinfonia Pastoral, nos equivocaríamos ao pensar
demasiado literalmente em “natureza”, e a obra não teria a importância musical que
se concorda universalmente se não fosse porque evoca também em nós — como
depois também na sétima, uma natureza além da dos bosques e da tempestade.

Certamente Beethoven foi um grande amante dos bosques e da natureza, que foi para
ele um estímulo para a experiência de estados muito exaltados de consciência. Mas
tanto em seu caso como no de todos nós, a natureza externa nos afeta porque ressoa
com uma natureza interna, ou uma natureza universal, ao evocar o estado
organísmico ou natural da mente: nossa psiquê em seu estado livre. E seguramente
nosso amor à natureza resulta em que ela nos permite evocar aquilo em nós que
difere e precede a nosso eu civilizado e ao aprendido de nossa cultura, colocando-nos

3
John William Navin Sullivan (1886 – 1937), jornalista e escritor científico inglês, foi o autor de Beethoven:
His Spiritual Development, J. W. N. Sullivan. Mentor Books, New York, 1927.
em contato com uma espontaneidade profunda, e não somente a vida de folhas, flores
e pássaros.

Este período em que toma particular relevo em Beethoven a celebração do natural ou


da natureza, é uma transição à transcendência propriamente dita, e é na nona sinfonia
em que nos encontramos já na nova etapa, da qual podemos dizer que ali a expressão
do eu individual dá passo à expressão do sentimento de humanidade — que se
estenderá através dos últimos quartetos de Beethoven também: seu período de plena
maturidade, ao qual só chegou depois de alguns anos de relativa esterilidade.

Nestes últimos cinco quartetos em que se expressa a maturidade da consciência de


Beethoven aparece às vezes uma felicidade sobrenatural, e não há nada na música
que possa comparar-se. Diria também que apesar do sublime corpus de música
religiosa de Bach, nada na música como estes quartetos nos faz sentir ante uma
consciência que se abriu ante o sofrimento, deixando atrás tanto a queixa como o
desafio.

Ante tal evolução de sua obra, podemos dizer que Beethoven foi alguém que começou
sua vida como músico no sentido corrente da palabra mas chegou a sê-lo em um
sentido novo e até agora desconhecido do termo. E não se trata somente de que
chegasse a por as antigas formas musicais a serviço da expressão de suas emoções
pessoais. A expressão de emoções é algo que havia se tornado explícito na música
desde Monteverdi, e em Beethoven é algo secundário a algo muito mais importante: o
uso da música como expressão de uma aventura interior que a maioria das pessoas
não chega sequer a conhecer; essa “viagem” dos mitos e das epopéias, cuja natureza é
uma transformação profunda que jaz latente em nossa natureza e justamente por isso
sabemos reconhecer quando a encontramos expressa em tais criações arquetípicas.

Creio que é o reconhecimento implícito deste fato extra musical o que leva a dizer que
uma orquestra que não tocou todas as sinfonias de Beethoven não é ainda uma orquestra.
E creio que haja sido também a razão ignorada do porque conseguiu impor-se Beethoven
à nobreza de seu tempo, quando se costumava considerar aos músicos apenas como
serventes especializados. O conseguiu porque era algo novo o que tinha a oferecer ao
público musical de seu tempo, muito além de uma arte decorativa do som.

Em outras palavras, que reitero agora depois de havê-lo enunciado antes de explicá-lo:
mais que expressar meramente estados emocionais, como na música que serve de
complemento a libretos operáticos, à coreografia ou ao cinema, e mais que concentrar-se
na expressão de sacralidade, como grande parte da música medieval e o melhor do
barroco, a música de Beethoven pode dizer-se um equivalente sonoro daquelas obras
literárias em que vemos encarnado “o mito do herói.”
Nem toda literatura se centra no processo da transformação auto-criativa (no contexto da
qual se insere para alguns o processo criativo artístico), mas talvez seja a mais significativa
e fundamental. Já a epopéia de Gilgamesh — legado dos Sumérios, ao começo da história
da literatura — pretende dar conta dessa “grande viagem” que é possível ao ser humano
mas sobrepassa os limites da humanidade comum; e pode arguir-se que já a história dos
patriarcas no livro do Gênesis é um documento alegórico acerca da evolução da
consciência individual. Por outra parte, Homero, “mestre dos Gregos,” não faz outra coisa
que falar-nos dessa aventura universal através de suas duas epopéias de conquista e
retorno, e mais transparente que todos eles em sua intenção é Dante, e talvez não menos
inspirado pela experiência pessoal, Goethe.

Situar a Beethoven junto a eles é afirmar que suas obras refletem o universal mas sempre
individual processo do desenvolvimento da consciência de maneira semelhante a como
muitos quadros de Monet tomam por tema único o tanque de lótus que com suas
próprias mãos construiu como objeto ideal para sua arte.

Mas creio que já disse o suficiente a maneira de introdução ao tema específico que me
propus desenvolver — que é o de como a forma sonata se prestou em Beethoven e em
seus herdeiros como veículo para tal conteúdo.

3 A “forma sonata” como metáfora sonora da evolução da consciência.

Se pode dizer que em sua evolução a forma sonata recolhe influências da ópera, e que
derivou da suíte instrumental, em que diversos episódios musicais se sucedem em forma
variável e aparentemente arbitrária.
É em Haydn e Mozart que a forma sonata alcança sua maturidade, podemos dizer, e em
Beethoven alcança sua perfeição. Mas, porque a forma sonata, precisamente, haveria de
chegar a constituir algo assim como a culminação da música européia antes da era
moderna?

Em outras palavras: Porque a maior parte das obras sinfônicas e instrumentais dos
compositores dos séculos XVIII e XIX tem em comum uma sucessão de alegro, adagio,
minueto (ou scherzo) e finale rápido (usualmente em forma de rondó), assim como seus
primeiros movimentos se cingem a um constante padrão formal para que o que se reserva
o termo musicológico “forma sonata”?

Antes de expor minha resposta a isso, sem dúvida, devo abrir um parêntese para explicar
muito simplesmente o que se chama “forma sonata”, e começarei por explicar que tal
expressão não se refere à sucessão dos 3 ou 4 movimentos que compõe a maioria das
sonatas instrumentais, senão à estrutura musical que caracteriza usualmente aos
primeiros movimentos destas (embora também a outros movimentos). E não só falo de
sonatas instrumentais, senão que também de outras obras, como sinfonias, quartetos e
obras de câmara, ademais de aberturas e concertos para instrumentos solistas e
orquestra. Em suma, a forma sonata domina todo o repertório da música entre os tempos
de Haydn e a primeira metade do século vinte.
Se trata esta de uma forma que compreende a sucessão de três partes, a primeira das
quais inclui usualmente dois temas. Poderia comparar-se esta parte inicial do “movimento
de sonata” à primera parte de uma ópera, em que nos dão a conhecer os personagens —
e assim como na ópera os personagens principais são um homem e uma mulher, se
costuma chamar aos dois temas da exposição de uma sonata “masculino” e “feminino”.

Vejamos na primeira sonata de Beethoven, cujo primeiro tema já empreguei como


ilustração de um assunto sintático musical.

Beethoven. Sonata para piano op.2, n.1 – 1º movimento – tema 1

Beethoven. Sonata para piano op.2, n.1 – 1º movimento – tema 2

A segunda parte da forma sonata recebe o nome de “desenvolvimento”, e nela o


compositor nos faz sentir as possibilidades dos temas, que ademais interatuam como
quando em uma ópera se põem em relação os personagens segundo certo argumento
dramático. Mais que uma interação dos temas, sem dúvida, sentimos na maior parte das
sonatas que o desenvolvimento é algo equivalente a uma posta a prova dos personagens
em uma situação dolorosa, e às vezes ante a presença de obstáculos ou a malignidade.
Beethoven. Sonata para piano op.2, n.1 – 1º movimento – início do desenvolvimento

No Quinteto para Piano e Cordas de Schumann, também sentimos no desenvolvimento o


progresso através de uma dificuldade, mas não se trata tanto de uma superação de algo
maligno como o trabalho ou esforço que implica o viver.

A terceira parte do movimento de sonata se chama a “reexposição”, e pode constituir algo


muito próximo a uma reiteração do que já foi escutado na exposição, só que com uma
típica mudança de tonalidade: diferente da exposição em que o segundo tema se
apresenta em uma tonalidade diferente à inicial (isto é, não na tônica senão na
dominante, ou na tônica relativa), na reexposição escutamos este segundo tema na
tônica, e isso nos faz sentir como se houvéssemos chegado por fim a casa. Ou, dito de
outra maneira, embora a exposição e a reexposição sejam praticamente iguais, a mudança
de tonalidade de seu segundo tema nos faz sentir que a volta ao já escutado ao começo
não é o equivalente a uma estrutura circular, senão que melhor algo como uma forma
espiral, na qual se repete o já escutado (ou vivido) em outro nível. E não é isto algo que
sentimos às vezes na vida ao encerrar um ciclo de experiência? Dizia T.S.Eliott 4 em
“Quartetos” que ao fim de nosso caminho voltamos ao ponto de partida, mas podemos
conhecê-lo como pela primeira vez.

4
Thomas Stearns Eliot, conhecido como T. S. Eliot (St. Louis, Missouri; 26 de setembro de 1888 - Londres; 4
de janeiro de 1965) foi um poeta, dramaturgo e crítico literário anglo-estadunidense. Representou um dos
cumes da poesia em língua inglesa do século XX. (http://es.wikipedia.org/wiki/T.S._Elliot).
Beethoven. Sonata para piano op.2, n.1 – 1º movimento – reexposição

Como dizia, apareceu a forma sonata no período chamado “clássico” da música que
seguiu ao barroco, e que Haydn levou a sua perfeição formal, empregando-a não só em
suas sonatas e quartetos senão que em suas numerosíssimas sinfonias; mas não sentimos
ao escutar a Haydn o mesmo que começamos a sentir em Mozart, cujas obras nos soam
como mais impregnadas por sua experiência pessoal da vida; e o processo de
humanização da sonata, através do qual o que era uma mera arquitetura sonora se faz
metáfora de uma experiência pessoal de desenvolvimento culmina em Beethoven, e mais
especificamente, em Beethoven depois que este, saltando por sobre sua própria tumba,
renasce a um novo nível de desenvolvimento psico-espiritual.

Mas respondo já a minha pergunta acerca do “porque da forma sonata”, explicando que
embora seguramente para Haydn tenha constituído esta só uma intuição formal, ou ao
sumo a intuição de possibilidades expressivas que ele mesmo não chegou a compreender
de primeira mão por não haver vivido esse processo interior de transformação (que,
ademais, muito poucos chegam a conhecer) mas sim que o viveu Beethoven. Por isso,
desde Beethoven em diante podemos dizer que a forma sonata é uma forma sonora
orgânica que reflete a forma de um fluir organísmico, e ainda, por isso, a forma de um
processo da vida universal, ainda além de sua encarnação biológica ou de sua
manifestação na maturação do indivíduo.
Os musicólogos, como tanto tenho repetido, não gostam muito da atribuição de
conteúdos extramusicais à música, e por isso já não gostam da antiga linguagem que
designa os temas da exposição de uma sonata como “masculino” e “feminino” mas, não
será que a expressão sistemática do encontro entre as partes contrastantes de nosso ser
não seja algo que nos permita justamente compreender o êxito da forma sonata? Não
será, em termos mais específicos, que vivemos divididos entre nossas propensões ternas e
agressivas (que se associam ao feminino e ao masculino), e que a música desempenhe
para nós uma função terapêutica ao mostrar-nos como integrá-las?

Podemos conceber a forma sonata como um recipiente musical, algo assim como um
molde no qual podemos verter as metades masculina e feminina de nosso próprio corpo
de experiência, e uma vez que nos tornemos a música podemos nos deixar guiar pelo
compositor através da seguinte trama da forma sonata que segue à exposição — o
desenvolvimento, através do qual uma terceira configuração integra as duas gestalten que
havíamos conhecido por separado. Seguir vivencialmente este processo implica
naturalmente remontar-se a uma consciência mais englobadora, vivendo de certo modo
uma síntese.

Trata-se do contraste entre a agressão e o afeto ou do masculino fecundante e o feminino


receptivo, ou daquele entre a tonalidade maior afirmativa e a tonalidade menor triste
(como no primeiro movimento da nona sinfonia de Beethoven), pode-se pensar que um
dos atrativos da forma sonata tem derivado, podemos pensar, em que nos serve como
artefato mágico para refletir um processo dialético entre nosso yang e nosso yin internos;
e assim como se tem demonstrado que os sonhos servem a nossa saúde mental
independentemente que os recordemos, pode ser que o que escuta uma sonata se
beneficie de sua virtude terapêutica mais do que sabe — pois ao falar de sua experiência
musical tudo se lhe torna um simples “prazer de escutar” ou “gosto pela música.”

Como já expliquei, depois do desenvolvimento se repete na forma sonata a exposição,


mas com mudanças que nos fazem sentir este regresso como um fim de viagem.
O que agora escutamos é algo que já conhecíamos, mas que conhecíamos enquanto
estávamos de viagem, por assim dizer; tanto que agora o reconhecemos como o solo no
qual teremos que permanecer, e talvez como o solo ao que pressentimos que
entregaremos nossos ossos.
Escutar a recapitulação depois do desenvolvimento da forma sonata nos soa como um
retorno ao nível arquetípico ou primário desde o qual o desenvolvimento procedeu — só
que agora nos chega talvez como algo percebido desde uma distância serena, sem a
tensão dramática que havia introduzido a dominante. Nos soa o tema agora como mais
neutro, mais objetivo, com menor sensação de suspensão; como se um narrador estivesse
dizendo-nos algo que “é assim.”
Entre a exposição e a recapitulação, então, sentimos que teve lugar uma transformação —
e frequentemente esta transformação nos evoca uma intensificação emocional e uma
luta. Assim como também durante o desenvolvimento o desmembrar-se dos temas nos
sugere um desmembramento psíquico.
Tal como no mito de Osiris, nos grandes desenvolvimentos da música podemos falar de
desmembramento e decomposição, ao mesmo tempo que da gestação de algo novo, que
coincide com a reexposição do que já ouvimos. Pois o que não nos era resposta ao
começo, se nos torna resposta depois da crise atravessada durante o desenvolvimento. E
a reexposição só pode ouvir-se à luz de seu passado no desenvolvimento.

O simples recurso musical de uma recapitulação variada através da modulação serve, pois,
como analogia musical de um processo de transformação com um ponto de partida e um
ponto de chegada — que é por sua vez algo assim como o ponto de partida desde uma
perspectiva diferente.
Mas segue ainda à reexposição propriamente dita o que se chama a coda, que nos faz
sentir que o âmbito ao que chegamos com a reexposição não é um âmbito cerrado, senão
que algo aberto em direção ao futuro e a uma evolução ulterior. É como se depois de
haver chegado ao centro do mundo, o compositor nos dissesse, antes de despedir-se, que
agora pode prosseguir a viagem em uma dimensão desconhecida.

Beethoven. Sonata para piano op.2, n.1 – 1º movimento – coda

A “forma sonata” que examinamos só nos leva até ao final do primeiro movimento dos
três ou quatro que usualmente compreendem a maior parte das sonatas e obras de
câmara, concertos e sinfonias.

Mas assim como nos perguntamos pelo porque da forma sonata, devemos perguntar
também pelo porque da estrutura sinfônica, que chegou a se impor de igual maneira
como uma forma ideal. Incluirei este tema, sem dúvida, junto a uma consideração mais
detida do sentido metafórico da forma sonata, no próximo capítulo.
6 A viagem do herói na estrutura sinfônica

As sinfonias de Mozart, como as de Haydn, tipicamente começam com um primeiro


movimento na forma que veio a chamar-se “alegro de sonata”, ao que se segue um
movimento lento e doloroso, o adagio. Segue a continuação um minueto, ligeiro e algo
mundano em seu convite à dança, para logo terminar com um movimento rápido que
frequentemente tem a estrutura de um rondó (forma musical em que alterna um tema
a maneira de estribilho com diversos “episódios” contrastantes).

Nas sinfonias de Beethoven, o clássico minueto é substituído por um “scherzo”, sempre


de tom alegre mas já não mundano, como corresponde em obras que nos tem levado
através de uma profunda transformação da consciência; e os grandes compositores que
desenvolveram seu legado — Schubert, Schumann e Brahms conservaram não só a
forma de quatro movimentos que nos evoca a das quatro estações, senão o scherzo
beethoveniano.

Será que esta sucessão, como a “forma sonata” do primeiro movimiento, também se
corresponde com a estrutura de um processo interior no desenvolvimento da
consciência?

Se é verdade que não emergiu a sonata instrumental (e formas afins como o quarteto, a
sinfonia e o concerto) “por nada”, senão por corresponder-se estruturalmente sua
forma aparentemente abstrata com a forma de um processo vivencial e espiritual, não
são já as “quatro estações” uma metáfora aplicável a nossa experiência da vida?

Disso tratarei agora, mas também ilustrarei melhor o já exposto, pois ao expor a ideia
de que a “forma sonata” tem sua razão de ser em um isomorfismo entre esta particular
organização da construção sonora e a forma de um processo psico-espiritual, tenho
procedido de maneira até agora algo abstrata, e me parece que tanto o tema do
desenvolvimento da consciência como o de sua relevância às sinfonias de Beethoven
requer um tratamento mais detalhado da experiência musical.

Antes de mais nada convém que retorne ao tema dessa “viagem do herói” a que tenho
comparado tanto à forma sonata e à estrutura da maior parte das composições em que
esta se insere no repertório clássico.
Como já mencionei, a expressão “a viagem do herói” se refere a uma formulação
narrativa que segundo alguns (e em meu próprio parecer 1, como no de Joseph
Campbell, embora não no da maioria dos acadêmicos) reflete um processo de
desenvolvimento espiritual.

1
Formulado em um capítulo de Cantos do Despertar intitulado “a viagem do herói como teologia
mística”.
Não é outra coisa a “viagem do herói” que a aventura que cada um de nós empreende
na medida em que, respondendo a uma vocação de busca, empreendemos um processo
de transformação que jaz em nosso potencial de maneira comparável a como a
metamorfose jaz nos gens dos insetos. É seguramente para desenvolver tal potencial
que nascemos, só que devido a uma patologia psico-social à qual em maior ou menor
medida nos adaptamos, a maioria da pessoas permanece em uma condição larval, e a
situação do mundo chegou a ser uma de subdesenvolvimento generalizado.
Umas poucas pessoas empreendem essa “viagem interior” que jaz em nosso potencial,
e aqueles que a empreendem entram em algo que se encontra expresso em um tipo de
literatura que aparentemente tem muito pouco a ver com o mundano: uma literatura
que poderíamos chamar mágica, particularmente no caso desse tipo de contos que se
chamam precisamente “contos de fadas” ou “contos mágicos”, pelo fato de refletir,
justamente, vivências que, por não serem deste mundo, se expressam simbolicamente
de uma maneira não realista. Mas não me deterei nisto além de citar as observações de
Otto Rank, de Frazer, Vladimir Propp e outros acerca de como uns poucos ingredientes
narrativos se repetem através de muitas histórias e muitos mitos, sugerindo a expressão
de experiências universais muito importantes.
Partindo da proposta de Joseph Campbell de que as regularidades nas histórias se
correspondem com certa sequência de etapas em um desenvolvimento interior,
proponho ali um itinerário da “viagem interior” algo mais complexo que a dele, o qual
descreveu a “viagem del herói” como uma de simples ida e regresso. Se atendemos à
experiência da maturação espiritual, assim como a alguns dos relatos alegóricos desta,
diria que é mais exato descrever o processo como uma dupla viagem, em cuja expressão
narrativa se alcançam dois apogeus ou “vitórias” — que se correspondem com uma
iluminação espectacular mas parcial ao começo do caminho de desenvolvimento
místico, e logo uma iluminação definitiva ao fim deste, que não se alcança senão depois
de uma aparente regressão ou caída: uma viagem aos infernos, purificação ou “noite
escura da alma”, que para quem a vive se assemelha a uma espécie de morte em vida.

Passando à música, me parece apropriado começar o desenvolvimento deste tema da


“viagem do herói” em referência à música do período heróico de Beethoven; apesar de
que quando se diz que com Beethoven começa o “romantismo” (embora se acostume a
considerá-lo mais um clássico que um romântico) só nos remetemos às definições
habituais de romantismo, sem reconhecer que o assunto específico que introduz
Beethoven na música não é tanto a expressão de emoções pessoais ou “românticas”,
senão que melhor seria dizer esotérico — no sentido de que o processo de
transformação sanadora e liberadora é algo não só desconhecido para a maioria das
pessoas senão que também para a cultura mesma.

Scherchen, o grande regente nos tempos de minha juventude, disse em um livro seu
intitulado “A natureza da música” que em certo modo Beethoven havia sido o inventor
da música européia, embora seja óbvio que não só havia vindo evoluindo a música
através dos séculos precedentes e o próprio Beethoven se havia nutrido de Mozart e
Haydn, e mais amplamente do que se chama às vezes o Rococó. Mas, que é isso que
introduziu na música Beethoven ao entrar no que se chama seu período “heróico”, que
reconhecemos também como um começo do romantismo?

Me parece a explicação disso que tanto chamou a atenção de seus contemporâneos e


que marcou a música posterior para sempre não é algo que deve ser buscado através de
uma análise da música propriamente, mas antes através da reflexão sobre o que ela nos
transmite; e penso que foi esse algo que muitos de seus contemporâneos perceberam
não só através de sua música mas também através do contato pessoal com o
compositor. E estou convencido que se Beethoven conseguiu o patrocínio de tantos
nobres daquela época que até então haviam tratado aos músicos como simples
servidores especializados, foi porque sentiram nele uma grandeza ante a qual a melhor
caracterização estava na palavra “gênio” que nessa mesma época começava a ser usada,
mas que deveríamos entender mais profundamente.
Dois grandes gênios viveram na Alemanha na mesma época: Goethe e Beethoven, e
sentiram ante eles os alemães uma reverência incomparável. Mas seguramente não
haveriam sabido explicar em que consistia isso que chamavam gênio por carecer do
vocabulário ou dos antecedentes culturais necessários.
O fenômeno do gênio é algo que jaz em uma dimensão completamente diferente do
talento (que é uma pura habilidade específica), e ao falar de Beethoven dizia Goethe
que era como uma “força da natureza”; por outro lado dizia Beethoven de si mesmo
(através de Bettina Brentano, segunda carta desta a Goethe) que se considerava o
homem mais próximo a Deus em sua época. E penso que isso que sentimos como uma
“grandeza” nos gênios lhes chega de um desenvolvimento extraordinário da
consciência, que vai além de sua arte específica.

Em nossos dias, depois de um longo tempo em que o mundo ocidental se familiarizou


com os conceitos do oriente acerca do desenvolvimento espiritual, podemos dizer que
os verdadeiros gênios são pessoas auto realizadas ou pessoas que através de sua vida e
arte avançaram pela senda da auto-realização. Em outros termos, poderíamos dizer que
não estava errado Beethoven ao sentir uma cercania ao divino, e que é precisamente
essa vivência do divino o que dá a sua música uma importância especial (por mais que
isto não lhes parecesse evidente a seus contemporâneos, para os quais sua música não
soava para nada “religiosa” de acordo aos cânones de seu tempo).
Se sabe que Beethoven concebia a música como uma “comunicação de coração a
coração” e que lhe decepcionava que as pessoas só a gozassem ou chorassem sem
chegar a recebê-la com suficiente profundidade como para serem transformadas por
ela. Ocasionalmente, entretanto, sua música toca profundamente a alguns que tem a
eloquência suficiente para explicá-lo, e então nos parece que aqueles falam por muitos
outros que, sem tal eloquência, vivem o impacto musical sem saber explicá-lo.
Como já comentei, penso que se “estetizou” excessivamente a música, de modo que ao
concebê-la como “arte” isso nos distrai do fato de que seja algo mais do que
ordinariamente consideramos arte – ao desconheer que a verdadeira arte a é porque
também é algo mais. Um escritor suíço contemporâneo, Eric Emmanuel Schmitt, autor
da obra de ficção chamada Kiki van Beethoven, escreveu também posteriormente um
ensaio que em sua publicação em forma de livro leva como título “Quando penso que
Beethoven está morto e tantos cretinos vivem!” uma frase recolhida de uma professora
de piano que teve o autor em sua infância; e suspeito que pese ao grande amor à
humanidade que expressa a nona sinfonia, também durante sua juventude Beethoven
deve haver sentido que vivia como um gênio entre cretinos. O livro que nos deixou
Schmidt é uma obra autobiográfica em que logo de compartilhar acerca de seu
entusiasmo juvenil com Beethoven, e de como durante uma larga parte de sua vida
havia chegado a considerar seu entusiasmo juvenil como algo superado com a
maturidade, um novo despertar (precipitado pela escuta de Fidelio) lhe permitiu
compreender, agora mais explicitamente, que é o que Beethoven lhe havia transmitido
e como se tratava de algo de valor perdurável. Assim, por exemplo, compreendeu como
a escuta da Tercera Sinfonia havia incidido em sua mente transformando seu sentido do
tempo de tal maneira que em vez de ser este algo assim como um canibal que o
devorava, era um poder de ação. Disse: “Beethoven me reinstalava no posto de
pilotagem”. E compreendendo muito bem que toda música influi em nossa vida
espiritual, de modo que os clássicos não são somente provedores de som senão que
provedores de sentido, se pergunta Schmitt como se poderia formular a espiritualidade
especificamente beethoveniana. Escolhe três termos: humanismo, heroísmo e
otimismo.
Com respeito à explicação do primeiro destes, disse que lhe inoculava Beethoven sua
“religião do homem”, e isso me parece uma expressão sumamente certa, e coincidente
também com o dizer de Von Büllow que se a música de Bach era a do Pai a de
Beethoven era a do Filho.

Falar de uma religião do homem é falar da sacralidade do homem, ou, alternativamente,


falar do humano como sagrado; e eu diria que essa dimensão nova que introduz
Beethoven na música é uma que traduz uma evolução espiritual a que poucos chegam
mesmo entre os espiritualistas pois é uma coisa sentir-se movido pela devoção a uma
grande divinidade externa e superior e outra sentir a divindade no próprio coração.
Certamente se conhece através da vida de Beethoven como foi um lutador, mas uma
coisa é dizer que uma pessoa tenha o rasgo caracterial da pugnacidade, e outra dizer
que combate desde um profundo sentido da dignidade, que lhe dá a fortaleza
necessária para tornar-se um guerreiro ao serviço de seus ideais. É isto o que chamamos
heroísmo, embora quando se fala da “época heróica” de Beethoven não se reflete tão
profundamente, e só se pensa no compositor como um revolucionário que,
decepcionado com Napoleão, elevou o ideal de heroísmo a um arquétipo. Disse Schmitt
mais adiante que com Beethoven Deus percebe que a arte não se dirige já a Ele, senão
aos homens. O divino empalidece substituído pelo humano. É certo que o indivíduo
Beethoven conserva um vocabulário cristão, e torna seus os valores evangélicos, mas a
um amigo que invocava a Deus lhe disse Beethoven: “homem, ajuda-te a ti mesmo”.
Poderíamos dizer que sua música foi a primeira música humanista da história.
Em outra parte de seu livro se extende Schmitt sobre como desde sempre os homens
detestam a condição humana, se acomodam mal ao que são e preferem aos deuses, as
estátuas ou a árvores, querendo identificar-se com algo além de seus problemas, mas
que Beethoven, lúcido, sabe que uma trajetória humana representa um combate no
qual o indivíduo é vencido e alguém poderia dizer “para que lutar, então, em vista da
derrota”. E se responde (ou melhor Beethoven, devorando-o com seus olhos negros lhe
responde): “o objetivo não é mudar a condição humana tornando-se imortal, onisciente
e todo-poderoso, mas sim habitar a condição humana. Para chegar a isto devemos
aceitar nossa fragilidade, nossas fraquezas, nossos tormentos, nossa perplexidade,
despojar-nos da ilusão de saber, fazer o duelo da verdade, reconhecer ao outro como
irmão em questionamento e em ignorância”.
“A isso chamo humanismo” — conclui — “e para manter-se nele se deve lutar contra o
medo….que é o que se chama coragem, e para perseverar na coragem se requer altivez
e para sentir-se bem se necessita superar a tristeza, o ódio do provisório, a ânsia de
possessões; para preferir o abrir os braços e celebrar a existência; e isso é o júbilo,
humanismo, coragem, culto da altivez, eleição de júbilo. Isso é o que propõe Beethoven,
e a isso chamo eu uma Ética”.

Diria eu que foi uma coincidência que Beethoven fosse um herói em dois sentidos
diferentes da palavra: por uma parte, foi heróico por sua coragem, tanto em sua
maneira de relacionar-se com a sociedade como em sua atitude de sobrepor-se
valentemente ante os obstáculos da vida. Mas ficaríamos diminuídos se pensásemos
que o heróico não é outra coisa que a valentia de um rebelde que viveu nos tempos da
revolução francesa e se sentiu superior aos demais; pois ademais foi um herói nesse
sentido mais interno e espiritual da palavra que se empenha em explicar Schmitt ao
escrever acerca de uma coragem que dá as mãos a uma “escolha de júbilo”, que implica
por sua vez uma ética.

Ao falar de uma “viagem do herói”, certamente, não aludimos a um determinado tipo


de personalidade — (possivelmente valente e apaixonado na forma de afrontar os
desafios da vida, como no caso de Beethoven) — senão ao fato de que seja alguém que
viveu essa “aventura da alma” que o leva além de sua personalidade condicionada e
ainda mais além da consciência ordinária. Estamos falando, então, de uma condição em
certo modo mais que humana (embora também mais plenamente humana que a
condição ordinária); condição que os gregos atribuíam aos heróis, e que em uma
linguagem moderna às vezes se designa como a “auto-realização”. Mas antes de
examinar a expressão musical do tema de “Beethoven o herói” no sentido mitológico da
palavra, convém que diga algo acerca do heróico de Beethoven no sentido mais comum
do termo, que se nos faz presente quando o compositor pensa em dedicar a Sinfonia
“Eroica” a Napoleão.

Seguramente viu Beethoven em Napoleão uma projeção de sua própria coragem, de sua
determinação, seu idealismo e capacidade de triunfar em sua busca de um ideal
revolucionário, pois viu nele a culminação e triunfo das esperanças depositadas na
Revolução Francesa. Pois após a revolução, logo de terminar com o velho regime, se
havia transformado em um caos e um terror, parecia que Napoleão houvesse resgatado
seu propósito original de liberar a Europa do despotismo das velhas monarquias. Só
que, quando se proclamou imperador, se decepcionou Beethoven pensando (como
também pensaram outros) que havia caído no mesmo amor ao poder que havia
caracterizado o antigo regime em primeiro lugar.

Não cabe dúvida que Beethoven foi um homem de grande valentia que soube impor
seus valores sem inclinar-se ante valores falsos nem sentir-se limitado pelas opiniões de
seus contemporâneos; e seguramente ter sido heróico neste sentido lhe serviu para
tornar-se herói em um sentido mais profundo da palavra, segundo o qual chamamos
herói àquele que triunfa na busca de si mesmo e na realização de seu próprio potencial
e tarefa.
Em outras palavras, seguramente o fato de que Beethoven tivesse a força e a coragem
de levar adiante seu sonho ou missão como compositor lhe permitiu também
transpassar os limites da condição ordinária da humanidade, e assim chegar a fazer da
música algo mais do que esta havia sido até então.

Mas tentemos agora compreender melhor esta transformação da música. Poderíamos


começar por dizer que a música barroca foi algo assim como uma celebração do
universo, ou do poder criador divino refletido no universo. Mas já na música de Mozart
encontramos algo muito diferente, pois nela sentimos que se deu um passo desde o
divino ao humano. Diríamos que a música de Mozart é um eco da ópera, e assim como o
teatro e a ópera são espelhos da vida, a música de Mozart sugere um implícito drama
musical.
Mas Beethoven significa algo muito diferente do que Mozart para a história da música. É
humana ou divina a música de Beethoven? Ambas as coisas e também algo diferente.
Pois embora em Beethoven nos encontremos com o humano em seu aspecto de devir
— não se trata aqui desse devir que é o tema de tantas obras de teatro e ópera que
poderíamos caracterizar como um “devir horizontal”, pois o drama musical
beethoveniano parece não ser propriamente deste mundo, senão consiste melhor no
drama do homem que busca o absoluto encaminhando-se a um mundo superior. Se
trata, pois, do drama da auto-realização, que é justamente isso a que se tem chamado
na literatura “a viagem do herói”.

É por isso que sentimos em Beethoven a presença do divino: porque o herói em sua
busca do divino já reflete uma ordem divina. E na medida em que o ser humano chega à
fruição de seu caminho, se faz divino em certa medida — tal como os heróis gregos se
divinizavam e por isso se tornavam dignos de um culto ainda mais solene que o dos
deuses.

Diz-se que com Beethoven começa a música a ser concebida como auto expressão do
compositor — e isso é certo; mas se se quer com isso implicar que o interesse que
desperta em nós Beethoven é aquele da autobiografia musical (em forma semelhante
sentimos que o autobiográfico dá sentido à Sinfonia Fantástica de Berlioz) nos
equivocaríamos. Melhor diria que teve Beethoven imitadores, os quais, impressionados
pela possibilidade de usar a música como narrativa da própria experiência, fizeram o
mesmo; mas não tem o mesmo interesse a biografia (musical ou não) de um Berlioz do
que a de um Beethoven, pois Beethoven é um que mesmo sem sabê-lo (no sentido de
haver podido traduzir em palavras) era alguém em um caminho semelhante ao dos
místicos, e se sentiu que merecia a pena a expressão de sua experiência individual deve
ter sido porque também sua verdadeira vida foi precisamente essa vida extraordinária
dos místicos e dos heróis — que por estar latente em cada um de nós, se torna
arquetípica e de interesse universal.

Algo semelhante ao que disse Berlioz se pode dizer também de Strauss — que tanto
talento teve para traduzir qualquer coisa à linguagem musical. Entre os poemas
sinfônicos de Strauss, um deles se chama precisamente “Uma Vida de Herói”, mas o
suposto heroísmo de Strauss é muito mundano ou exterior em comparação com o de
Beethoven, e por isso não nos afeta tão profundamente. E como poderia ser de outra
maneira? Diria que Strauss, apesar de seu imenso talento musical, simplesmente não
chegou a ser alguém que percorreu essa viagem interior da transformação, que lhe
haveria dado a capacidade de dar forma à viagem do herói (mesmo em seu “Assim
Falou Zarathustra”) desde sua experiência própria.

Se queremos, então, considerar uma expressão genuína da viagem do herói na música,


devemos recorrer a um compositor que haja efetivamente atravessado por essa grande
transformação que conhecem as tradições espirituais, que faz referência a uma morte
interior e um novo começo. E me parece que por muitos problemas de caráter que
tivesse Beethoven, tal transformação se nos torna aparente através da evolução de sua
música primeira em direção ao novo estilo de seu período heróico e logo ao que
caracterizou sua obra dos anos de sua plena maturidade, que incluiu a nona sinfonia e
seus cinco últimos quartetos.
Beethoven - Quarteto de cordas Op. 131 - último movimento

Para afirmar que a música de Beethoven seja um equivalente sonoro dos mitos,
entretanto, deveríamos poder assinalar certa evidência de que sua música, como os
mitos da transformação, não só se remonta desde a esfera das paixões ordinárias à de
vivências extraordinárias como a compaixão universal e o êxtase, senão que alude às
vivências de morte e renascimento que constituem o núcleo universal da transformação
— tanto na vida humana como nas expressões simbólicas da “viagem interior”.

Me parece que a demostração mais clara disso está no desenvolvimento do primeiro


movimento da Quinta Sinfonia de Beethoven, mas antes de considerar a passagem
específica que nos transmite a experiência de derrota mortal convém que atendamos ao
conteúdo expressivo deste primeiro movimento desde seu começo.

Já expliquei que Beethoven parece haver nos dado uma pauta sobre o significado do
motivo inicial do primeiro movimento ao referir-se a este como um “golpear do destino
à porta”,
e agregaria que embora se tenha duvidado que o transmitido por Schindler seja
fidedigno, “si non è vero è ben trovato”: sabemos que a Quinta Sinfonia foi escrita na
mesma época que a Terceira, e que uma e outra respondem ao gesto de desafio heróico
do compositor ante o grande golpe da surdez, diante da qual pensou Beethoven
inicialmente tirar-se a vida, embora logo houvesse optado por algo ainda mais difícil:
enfrentar-se a seu déficit como quem agarra a um touro pelos chifres, e triunfar. É
coerente tal atitude, da qual nos informa Beethoven em seu famoso “Testamento de
Heiligenstadt”, com a que nos transmitem as seguintes quatro notas, que respondem às
quatro do “chamado” com tão valente desafio ante a grande ameaça a seu projeto de
realização musical que é fácil imaginá-las como o equivalente musical exato do último
gesto na vida do compositor, quando depois de haver estado prostrado em coma
durante longo tempo, se levantou repentinamente em seu leito de morte em resposta a
um relâmpago (ou trovão?) levantando seu punho ao céu:

Na continuação do primeiro tema escutamos o auto-retrato musical de um que põe


todas as suas energias em ir adiante em sua determinação de superar uma resistência:
Culmina o primeiro tema no que se poderia dizer um gesto de liberação e por sua vez
plenitude, comparável ao famoso desenho de Leonardo Da Vinci de um homem nú, de
pé e com os braços em cruz, que nos sugere ao ser humano em plenitude:
É como se Beethoven através deste primeiro tema nos dissesse: “lutarei, avançarei,
porei minha fúria na conquista dos obstáculos até poder erguer-me plenamente como
um ser livre”.
Em seguida escutamos o tema “feminino”, como corresponde à forma sonata do típico
Primeiro Movimento Sinfônico, e podemos interpretar o conjunto destes dois temas não
só como se sucedem em uma ópera (com suas respectivas árias) a aparição em cena do
herói e da mulher amada, senão como a passagem da tensão ao relaxamento no curso
de um processo natural, depois que a tensão alcançou aquilo para o qual se
encaminhava. Eis aqui o começo do segundo tema (com o contraponto das quatro
“notas fatídicas” do primeiro):

Podemos também pensar que não se trata de um drama exterior senão a presença na
mente do indivíduo de sua parte masculina e feminina, uma polaridade tão própria de
sua mesma estrutura como os dois hemisférios cerebrais, ambos levados por um
mesmo ideal, em colaboração em uma mesma empresa de superação.

Mas passemos agora ao desenvolvimento: essa parte intermédia da Forma Sonata na


qual muitas vezes assistimos a um enfrentamento dialético deste material temático com
o aspecto sombrio da vida.

Neste caso sentimos que o inimigo é superior ao herói, e é fácil conceber este
desenvolvimento, no qual se escuta um desmoronamento do tema, como uma batalha,
em que o herói vai perdendo partes de seu corpo até cair, aparentemente derrotado.
Não escutamos nesta passagem como é derrotado o herói por uma força avassaladora,
para logo voltar a levantar-se como se o animasse uma nova fonte de energias?

Escutemos uma vez mais esta passagem, que poderíamos comparar com o que nos
mitos é o típico encontro do herói com o dragão, no qual a cada embate fica o herói
mais maltratado; e tenhamos presente que a figura melódica que se vai desmembrando
é o motivo das seis notas que escutamos durante a exposição nas trompas e
comentamos como expressão da plenitude que alcança o herói depois de haver
conseguido erguer-se ante o desafio do fatídico chamado do destino:
Em contraste com esta forma plena podemos apreciar a fragmentação progressiva que
Beethoven submete a seu personagem.

Primeiro escutamos duas vezes sucessivas o motivo completo de seis notas, cada vez
seguido de uma resposta descendente nos baixos e ascendente nos sopros:

Logo escutamos uma primeira mutilação do motivo, ao qual lhe falta a última nota, e
como um eco se repetem as duas últimas notas deste fragmento de maneira que nos
impressionam como algo ainda mais fragmentário:

Por último se reduz a “parte do herói” neste enfrentamento a uma nota só, como um
precário signo de sobrevivência — uma nota que se repete a volume decrescente como
alguém que já desfalece por haver perdido quase inteiramente suas energias:
Finalmente, contudo, assistimos a uma reincorporação do herói, que parece fazer um
esforço sobre humano, mas cai uma vez mais:

Sua recuperação estável, entretanto, coincide com o início da reexposição, agora com
um tutti orquestral em fortíssimo:
Conhecemos uma metáfora musical mais convincente de morte e renascimento?
Aparte do explicado acerca de como na forma sonata a reexposição do segundo tema
aparece na tonalidade inicial, pondo assim de relevo o aspecto de “volta a casa” ao
evocar em nós a volta ao já escutado ao começo, na específica reexposição da quinta
sinfonia, a principal diferença entre a exposição e a reexposição é que nesta última
aparece um breve solo de oboé:

Constitui este um episódio lírico que nos sugere que o herói vencedor não só leva agora
um penacho simbólico de sua vitória, senão que neste herói renascido houvesse uma
vontade de cantar. E há também nesta breve passagem a sugestão de uma maior
reflexão, uma atitude mais amorosa, e também algo elegíaca, como se o herói não fosse
insensível ao custo de sua vitória.

Mas não termina a forma sonata com a reexposição, senão com o que se chama a coda:
uma “cauda” ou agregado final, que na Quinta Sinfonía de Beethoven é de inusitada
extensão, comparável à do desenvolvimento mesmo, e que poderia equiparar-se a um
segundo desenvolvimento.
Sugerem as codas dos movimentos em forma sonata algo assim como a abertura de
uma nova dimensão, depois da conclusão do ciclo espiral; ou, em outras palavras, a
continuação do movimento espiral em direção a um espaço desconhecido — como
sempre é o caso no curso da vida mesma, sempre aberta a uma evolução futura.
O escutado nos dá a ideia de um mais além pela inversão da terça descendente que
dominou até agora o movimento.

Outro elemento novo nesta coda é a transformação do motivo inicial em um que


conserva o ritmo mas já sem a terceira descendente nem a ascendente, o que lhe dá
uma neutralidade ou caráter de força pura que não teria sentido sem tudo o que
escutamos previamente. Já o escutamos em alternância com o motivo das quatro notas
com terminação ascendente (primeiro em uma segunda e logo em uma terça).

Significativamente, ademais, termina o movimento com uma reiteração de seu tutti


inicial que já não percebemos como ameaçador, já que a tal ponto o reconhecemos
como algo que Beethoven assimilou e converteu em uma expressão de seu próprio
poder.
Passemos agora a uma consideração do primeiro movimento da terceira sinfonia, pela
qual haveria sido lógico começar, tanto desde o ponto de vista cronológico como
porque seu nome mesmo a assinala como a ilustração mais pertinente do tema deste
capítulo. Não o fiz assim porque a sinfonia “Eroica”, com que se inicia um novo período
não só na obra de Beethoven senão na própria história da música, é menos típica em
alguns aspectos, entre os quais está o fato de que contém não menos que cinco “grupos
temáticos” (como se prefere chamá-los na musicologia mais recente) em vez dos
acostumados dois temas na exposição de um primeiro movimento.

Assim como o primeiro movimento da quinta sinfonia comença com as dramáticas e


famosas quatro notas da orquestra em uníssono, seguidas por sua repetição um grau
abaixo, também a terceira sinfonia começa com uma breve introdução, que neste caso
consiste em dois fortes e breves acordes de tônica:

Estes acordes na tonalidade de Mi bemol maior que parecem não querer dizer mais que
“aqui estou, a ponto de começar minha história” e poderiam se comparar ao abrir-se da
cortina antes de uma primeira cena em uma obra de teatro, poderiam também
comparar-se a duas colunas entre as quais atravessará o “tema do herói” que
escutamos na continuação. Nos transmitem um ânimo forte e dinâmico, como o allegro
mesmo.
Já o começo do primeiro tema, que escutamos imediatamente continuando na voz
masculina dos cellos, nos induz à evocação de alguém que vai avançando — mas que
logo parece deslizar-se em direção a algo escuro.
Embora esta melodia nos sugira ao começo um avanço confiante, logo seu descenso em
dois semitons sucessivos, que nos leva fora da tonalidade, nos resulta algo assim como
uma entrada no desconhecido, inesperado e algo alarmante.
Escutemos primeiro o avanço confiante, despreocupado e quase brincalhão desta
melodia, como uma brincadeira infantil.

E agora escutemos o mesmo seguido pelo deslizamento desde o âmbito luminoso


diurno até algo que percebemos como uma zona escura.

Interrompi artificialmente o pensamento musical nesta ilustração, contudo, já que é


difícil separar o descenso melódico dos cellos (e a mudança harmônica correspondente,
que nos leva fora da tonalidade em direção ao que se poderia dizer um mundo paralelo)
da aparição dessa nota aguda (Sol nos violinos) que se repete sugerindo algo assim
como uma luz, um farol ou uma estrela — mas sobretudo um ideal ao qual encaminhar-
se. Assim como quando Dante se encontra com seu guia ao descobrir que estava
perdido na “selva escura”, aparece para Beethoven essa luz justamente quando se
insinua em seu caminho o perigo. E escutamos em seguida como essa nota luminosa
ascende, levando logo a uma caída impetuosa da melodia que nos sugere que, já
passado o momento de alarme, o herói está novamente bem encaminhado e seguro de
si.
Embora espere que sirvam estes comentários sobre o começo da Eroica a maneira de
contexto a nosso presente tema da morte e renascimento do herói, não procederei
agora a uma análise completa da exposição desta sinfonia, senão que passo já ao
desenvolvimento, e mais especificamente a esse momento no desenvolvimento que se
poderia entender como uma analogia ao mítico encontro do herói com o dragão.

Ocorre este momento no desenvolvimento da Eroica depois de uma fuga, cuja coerência
— como é usual nas fugas que Beethoven insere em suas sinfonias — nos leva a sentir
que a experiência do compositor chegou a um alto grau de integração, e é tal estado de
feliz coerência, que implicitamente percebemos como um de sintonia com uma ordem
cósmica, o que vem a interromper é algo assim como uma desordem e estridência de
proporções também cósmicas, ante as quais já perdemos o sentido de melodia e ritmo.
Me parece que nada tão agressivamente contrário aos usos rítmicos e harmônicos da
música houvesse sido composto antes desta passagem de Beethoven, e talvez nem
sequer depois dele até Stravinsky.
Eis aqui a passagem em questão:
O compasso de três tempos por compasso já havia sido alterado por Beethoven em sua
exposição e em meio de seu primeiro tema, através de ocasionais “hemiolas” 2 em que o
ritmo de dois sustitui intermitentemente o de três, mas em perspectiva tais hemiolas da
exposição nos parecem agora uma preparação ou anúncio da ruptura rítmica muito
mais intensa deste desenvolvimento, em que o inesperado do ritmo nos faz perder todo
sentido métrico previsível. Por outro lado, uma repetição de acordes dissonantes a
grande intensidade também nos faz perder o sentido ordinário de progressão melódica
ou harmônica, de modo que apesar do motivo dos saltos ascendentes que sugerem uma
vontade de conquista e superação muito beethoveniana, sentimos a passagem
principalmente como a erupção de uma potente vontade destrutiva.

Finalmente, cessa o assalto do caos e as notas reiteradas das cordas nos fazem sentir
que o herói sobreviveu; e sentimos que sua simples sobrevivência ao embate de um
poder tão avassalador nos revela a medida de sua própria força.

Mas deixo agora o comentário do primeiro movimento da Eroica para abordar o tema
mais amplo da estrutura sinfônica, já anunciado no encabeçamento deste capítulo.

2
Hemiola - em música é a razão métrica 3:2. Consta de dois compassos de três tempos (como o compasso
de 3/4, por exemplo) executados como se fossem três compassos de dois tempos (como o de 2/4). Ao
executá-los alternadamente dá como resultado o padrão rítmico de 1-2-3, 1-2-3, 1-2, 1-2, 1-2, etc. Outra
maneira de analisá-lo é como a alternância entre um compasso de 6/8 (1-2-3, 1-2-3) e um compasso de
3/4 (1-2, 1-2, 1-2). Em ritmo hemiola faz referência a três pulsos de igual valor no tempo normalmente
ocupado por dois pulsos. (http://es.wikipedia.org/wiki/Hemiola).
Diríamos que o Primeiro Movimento da Eroica é algo comparável ao Outono entre as
quatro estações: uma época na qual algumas espécies frutificam e se colhe o fruto; uma
época de maturação em que também se percebe o começo de um declínio. Embora
sintamos o verão como um máximo, em certo sentido o outono é ainda mais que o
verão já que é o começo de uma caída. Pois apesar de que caem as folhas das árvores,
caem estas em uma sinfonia de cores de singular beleza, e apesar de que sentimos que
se acerca o inverno, sentimos também um máximo de maturação. Se nos oferece por
isso o Outono como uma metáfora natural dessa fase da vida interior em que o herói,
embora glorioso por seu encontro com a luz, intui o começo de sua viagem pela noite.

O movimento seguinte da Eroica — como de costume um adagio — foi chamado por


Beethoven “Marcha Fúnebre pela Morte de um Herói”, e diríamos que se corresponde
com o Inverno. E assim como podemos dizer que o primeiro é eco da experiência
iluminativa no caminho interior, o segundo é eco dessa morte na alma que na tradição
cristã se chama a “noite escura da alma”.
Digamos que, em termos do mito de Osíris, o primeiro movimento corresponde ao auge
do rei no final de seu reinado, e durante o segundo movimiento Osíris vai na barca dos
mortos enquanto sua esposa e irmã Ísis o chora e o busca.

Mas não só o adagio da Eroica é de caráter fúnebre. Não menos fúnebre nos parece o
começo do 2º movimento da 4ª sinfonia de Brahms, por exemplo:
Tampouco se limita ao mundo sinfônico que a sucessão do primeiro movimento ao
segundo — tipicamente uma de allegro a adagio — se corresponda com a sucessão de
um outono a um inverno interior na viagem da alma.
Vejamo-lo no belo quinteto para piano e cordas de Schumann:
Assim como segue ao Inverno a Primavera, segue ao típico adagio na estrutura sinfônica
um terceiro movimento ligeiro, animado, mas não impetuoso, que sugere um retorno à
vida.
Nas sinfonias de Haydn o terceiro movimento havia sido um minueto, mas Beethoven
substituiu esta dança que associamos tanto aos salões do Rococó por um scherzo, mais
compatível com a estatura mítica de suas sinfonias.
Tanto quanto que o minueto só sugere o retorno da dança depois da imersão na dor, em
Beethoven os scherzi sugerem o começo de um retorno à vida depois da contemplação
da morte — e na Quinta Sinfonia assistimos ao que se poderia descrever como uma
batalha entre a sombria tonalidade de Dó menor — que domina no chamado do destino
e no movimento lento que o segue — e a luminosa tonalidade de Dó maior, que se
continuará no apoteótico movimento final. Também no terceiro movimento da Eroica
sentimos a ebulição de uma vida nova como corresponde à chegada de uma nova
Primavera:

Se nos perguntamos pelo conteúdo do quarto e último movimento das sinfonias de


Beethoven e dos que o seguiram, é natural que pensemos que seja congruente com a
próxima e última etapa do caminho interior: aquela que na teologia mística cristã se
chama a “via unitiva” e que corresponde à plenitude de alguém que não só renasceu à
vida espiritual depois de havê-la perdido, senão que agora conseguiu integrar a
percepção do espírito à sua vida no mundo.
Se na quinta sinfonia esta apoteose do finale se expressa como um triunfo, na Eroica
sentimos que se trata melhor de uma celebração, ou um festejo.
O 4º movimento da Eroica tem a estrutura de um tema com variações, cujo tema
Beethoven toma de uma obra sua anterior, escrita para um balé intitulado “As Criaturas
de Prometeu”. Só citarei aqui uma das variações (alla polacca), que por sua festividade
terrena bem poderia ser coerente com a celebração de um matrimônio.
Só Beethoven viveu e cantou o processo da transformação?

Creio que com o que se sabe de Beethoven e o que nossa cultura chegou a
compreender no curso do tempo transcorrido desde sua época, não é difícil aceitar que
Beethoven tenha sido um que alcançou a maturidade espiritual característica dos
iluminados por mais que não tenhamos outro testemunho disso que sua própria música.
Aparte da transformação de sua música mesma através de sua vida, o que mais nos leva
a sentir que Beethoven tenha chegado a uma realização mística apesar de ter tido os
modos de um bárbaro, é a música de seu terceiro período — que nos chega não só
como grande música, senão que nos transmite a presença de um grande espírito. Em
sua nona sinfonia e em seus últimos quartetos (como na Cavatina do Op.130), já não
encontramos ao herói visivelmente heróico a caminho de sua realização, senão ao herói
que se despojou do heroísmo; ou seja, ao titã que recuperou sua simples humanidade
vulnerável e que, apesar de seu grande sofrimento, está de “volta à casa”.

Mas depois de considerar o caso de Beethoven se nos apresenta a pergunta de quantos


outros músicos podem ter vivido um processo semelhante. Naturalmente, não podemos
deixar de pensar em Bach como um cuja música expressa tanta sacralidade que
seguramente foi dotado de uma mente muito elevada; mas uma coisa é uma mente
elevada, e outra coisa uma música que reflita o processo através do qual o indivíduo
alcançou tal elevação. Por mais que Bach possa haver atravessado por uma grande
transformação, não nos parece evidente que sua música constitua a expressão dessa
grande viagem da alma. Melhor, Bach nos parece um desses serafins cuja existência
estivesse dedicada a cantar louvores a Deus e à perfeição de sua criação. Mas se
voltamos à afirmação já proposta de que com Beethoven se inicia uma nova música,
onde, depois dele podemos encontrar um segundo exemplo de auto-realização
musicalmente documentada? Aonde mais podemos dizer que nos encontramos com
algo assim como uma autobiografia espiritual musical?
Penso que o encontraremos no caso do contemporâneo de Beethoven que também
viveu em Viena e o admirou profundamente, mas que durante sua vida ficou eclipsado
pela fama do titã: Schubert. À análise de seu processo dedicarei um capítulo separado.
7 A intuição de uma morte prematura em Schubert

Poderia haver intitulado este capítulo “A experiência de morrer antes de morrer em


Schubert” se não fosse porque “a experiência de morrer antes de morrer” poderia
parecer um jogo de palavras. Mas estas palavras as pronunciou Maomé, sem
nenhum ânimo de jogar com a linguagem e também o místico cristão Angelus
Silesius, que afirmou que “aquele que não morre antes de morrer, depois de morrer
se apodrece”; quer dizer, que viver a morte antes da morte física é uma maneira de
aceder à transcendência. E em todas as tradições místicas nos encontramos com o
conceito de uma grande luz que chega com uma morte interior; e se fala de “morrer
em Deus” como no cristianismo, ‘nirvana’, ‘aniquilação’ no budismo, ou na tradição
sufi ‘faná’, que também se traduz como aniquilação.
Quando a mente ordinária desaparece, se abre a consciência a uma nova dimensão,
e não é uma novidade dizer isto no contexto do misticismo ou no do xamanismo.
Quando os antropólogos estudaram os xamãs, que poderiam dizer-se os inventores
da música – pois todas as culturas arcaicas estiveram muito vinculadas com a música
através dos ritos, alguns de cura, outros religiosos – encontraram que no seio da
cultura xamânica é muito comum aquilo que em outras religiões se apresenta como
realidade mítica. Se fala de Cristo que morre e renasce, por exemplo, ou de Osíris
que faz uma viagem à morte e logo renasce em forma de Hórus, e são muitos os
heróis que tem uma história parecida, como Joseph Campbell 1 explicou em seu
notável livro “O Herói das Mil Faces”. Mas entre os xamãs essa realidade mítica da
morte e ressurreição aparece encarnada na vida individual dos xamãs. Quando
Amundsen 2 explorava o pólo Norte, por exemplo, encontrou a alguém que lhe
explicou que havia morto lutando contra um urso polar, e a outro que havia estado
muitos dias insconsciente e logo voltou à vida depois de um viagem ao inferno. Em
outras palavras, encontrou que muitas histórias pessoais tinham o selo da
experiência interior de uma morte e de um renascimento ocorridos como parte de
uma grande transformação, e que esta transformação pode às vezes incluir uma
série de etapas que incluem uma passagem pelo inferno, uma espécie de purgatório
ou um ascenso ao céu. Um xamã pode dizer, assim, que se encontrou com o Senhor
da Morte – ou com o Senhor das Enfermidades – que lhe deu o dom de curar-se para
depois poder ajudar aos demais. E podemos já dizer através de tantas experiências
deste tipo que a Grande Viagem da alma é uma realidade humana universal, só que
nos tempos modernos são poucas as pessoas que reconhecem estas coisas

1
Joseph John Campbell (26 de março, 1904 – 30 de outubro, 1987) foi um mitólogo, escritor e
professor estadounidense, melhor conhecido por seu trabalho sobre mitologia e religião comparada.
Sua obra é vasta, abarcando muitos aspectos da experiência humana. Uma de suas principais obras
The Hero with a Thousand Faces (O herói das mil faces) trata do mito em várias culturas.
(http://es.wikipedia.org/wiki/Joseph_Campbell).
2
Roald Engelbregt Gravning Amundsen (Borge (Østfold), Noruega, 16 de julho de 1872 – Mar de
Barents, 18 de junho de 1928). Foi um explorador norueguês das regiões polares. Dirigiu a expedição
à Antártida que pela primeira vez alcançou o Pólo Sul. Também foi o primeiro em cruzar a Passagem
do Noroeste, que une o Atlântico com o Pacífico, e formou parte da primeira expedição aérea que
sobrevoou o Pólo Norte. (http://es.wikipedia.org/wiki/Roald_Amundsen)
universais, que principalmente deixaram seu eco nos mitos, de modo que ainda
quando os eruditos as reconheçam, são poucas as pessoas que as viveram. Mas já
tratei do tema da “Viagem da Alma” na música, e só em aparência estou abordando
um tema diferente ao por em relevo a experiência da morte; ou, no caso de
Schubert, o fato de que esta “morte psíquica” tenha se apresentado a um
compositor através da ameaça real da morte física – o que é uma circunstância não
tão diferente daquela de Beethoven, que chegou a se preparar para tirar a vida antes
de enfrentar o desafio de viver e cumprir com sua intuída missão musical apesar de
sua surdez.

Mas dizer que Beethoven foi alguém que chegou a uma consciência superior à dos
demais mortais resulta mais fácil de crer que dizer algo semelhante de Schubert, que
viveu como um desconhecido e cujo trajeto musical não constitui uma evidência tão
inquestionável de uma transformação.
Dizer que Schubert viveu um “morrer antes de morrer” é dizer que viveu um
processo místico, e isto não está na ideia de Schubert que tem sido transmitida até
agora em suas biografias.

Mas assim como no caso de Beethoven, uma grande desgraça despertou ao


compositor a um nível de vida superior, também no caso de Schubert é possível
discernir algo semelhante: uma grande desgraça coincidiu com a passagem de um
primeiro período a um segundo período na história de sua obra.
É bastante claro. Algo sucede ao redor de 1822 (seis anos antes de sua morte aos 31
anos de idade em 1828), e a partir de então a música de Schubert se torna mais
profunda.
Porque é mais profunda? E porque digo que lhe ocorreu uma grande desgraça?
Porque a desgraça de sua morte tão prematura foi algo que desde então pôde já
antecipar.
Sabemos que algumas pessoas despertam ante a dor da morte alheia, como ocorreu
a Dante com a de Beatriz, e também de pessoas cuja vida atravessa por uma
profunda transformação quando eles mesmos sobrevivem a acidentes quase fatais,
que algumas vezes os levaram até a morte clínica durante alguns minutos – como
estudou Kenneth Ring 3 e descreveu como “N.D.E. (Near Death Experiencies)”, mas
pareceria que o caso de Schubert foi o de quem chegou a “dar-se por morto” e
aceitar profundamente sua mortalidade com a simples notícia de sua enfermidade
fatal.
Sabemos que foi internado em um hospital em 1822, 6 anos antes de sua morte, a
causa da sífilis, e que a sífilis, nesses tempos, era algo comparável ou pior que a AIDS
hoje, de modo que deve haver-se sentido vítima de uma enfermidade incurável, e
em uma situação de grande perigo. Se se examina a música que escreve à luz desta

3
Kenneth Ring (1936) - é professor emérito de psicologia na Universidade de Connecticut e um
investigador no campo dos estudos sobre experiências próximas à morte (EPM). É co-fundador e ex-
presidente da International Association for Near-Death Studies (IANDS) e é o editor fundador da
revista Journal of Near-Death Studies. Seu livro Life at Death foi publicado por William Morrow and
Company em 1980. (http://es.wikipedia.org/wiki/Kenneth_Ring).
situação em sua vida, não é difícil sentir que as alusões a tal fatalidade vão além da
simples coincidência.

Mas antes de começar o exame da música do segundo período de Schubert,


equivalente à do período heróico de Beethoven, devemos saber que,
diferentemente de Bethoven, Schubert não foi um músico famoso durante sua vida;
só foi um músico popular no pequeno mundo de seu círculo de amigos. É certo que
sua música chegou a ser quase uma instituição em Viena, aonde as reuniões de
amigos em que um ou outro cantava chegaram a chamar-se as ‘schubertíadas’, mas
apesar de ser um compositor extraordinário de lieder (canções), isto só o tornou
popular, mas não alguém reconhecido como ‘grande’. Ninguém, enquanto Schubert
viveu, o sentiu como um grande compositor.

Escutemos o começo do quarteto No. 14, “A morte e a donzela”.

Que diz esta sucessão de cinco notas fortes descendentes?

Nos parece que Schubert logo responde a elas com uma afirmação simétrica:

Como na Quinta Sinfonia de Beethoven, escutamos uma frase algo agressiva,


precisa, implacável. Parte a frase desde acima, e mais precisamente do quinto grau
da escala, chamado de dominante, que é a mais distante da nota fundamental em
quanto tensão sonora, ou seja, a que nos faz sentir tensão máxima com respeito à
tonalidade do quarteto. Essa nota superior seguida por esse ritmo de três notas
breves e uma longa
evoca em nós o começo da quinta sinfonia de Beethoven com sua “chamada do
destino”,

e seguramente foi assim também para os contemporâneos de Schubert, já que


quando morreu Beethoven, um ano antes que Schubert, seu cortejo fúnebre foi
semelhante ao de um imperador.

Esta chamada: “pa-pa-pa-pam” não só tem um significado intrínseco, ao qual


Beethoven já havia recorrido, senão que tem também um significado histórico, que o
torna quase uma citação. E também Schubert faz o que já havia feito Beethoven:
repete o motivo uma nota abaixo, como quem diz: “A isso, esta é minha resposta”.

Depois de encontrar-se com esta realidade tão dura, que nos diz Schubert?

Antes de mais nada, escutamos uma pergunta, como a de quem não dá completo
crédito ao que acaba de saber, ou busca saber mais. E parece também, implorar, ou
talvez chorar.
E se prolonga sua atitude nas frases seguintes, como alguém que afligidamente quer
saber quando e como:
Por fim, dando-se já por inteirado, enfrenta a sua circunstância trágica, começando a
“digeri-la”, ou, poderíamos dizer: preparando-se ante o inevitável.

É valente o encontro dramático ante o anúncio de sua morte prematura, a atitude de


Schubert irradia tal beleza, que mesmo o terrível se torna belo. Diríamos que
encontrou uma atitude nova; uma forma nova de estar com a morte, que reflete seu
heroísmo e nobreza. Em outras palavras, se encontra a si mesmo. E como no próprio
Beethoven, há quase uma vitória na prontidão de Schubert à entrega a seu destino.
Algo semelhante encontramos ao começo do último quarteto de Schubert (Op.161):
primeiro o sobressalto ante o encontro com o terrível,

logo as perguntas (Verdade? Quando? Como?),


e em seguida o por-se a trabalhar sobre isso, como quem digere a nova
circunstância. Mas escutemos novamente o comentado desde o começo, para seguir
agora adiante

Schubert – Quarteto n. 15 - D.887

Passemos agora à consideração de uma sinfonia praticamente contemporânea ao


quarteto “A morte e a donzela” – a famosa “Inacabada”.
Porque é inacabada esta sinfonia que Schubert obviamente não terminou? Se sabe
que ele tinha a intenção de continuar mas não teve a inspiração necessária para isso.
Poderíamos dizer que teve a intenção de escrever uma sinfonia completa, mas uma
coisa é a vontade do músico e outra a inspiração. Diríamos que a inspiração lhe
haveria ditado algo que, desde o ponto de vista da intenção do compositor, frustrou
seu propósito; mas desde um ponto de vista diferente, não é a sinfonia “inacabada”
com seus dois movimentos algo assim como um auto-retrato da vida incompleta de
Schubert?; como se a obra que flui através de sua inspiração houvesse sabido mais
que sua mente consciente?
Tem uma extranha perfeição esta sinfonia, que é comparada precisamente à Quinta
de Beethoven – se bem que a vivência em ambas é muito distinta, como
corresponde ao contraste entre a personalidade de ambos compositores. Pois
Beethoven foi alguém que enfrentou seu medo com uma valentia desafiante, desde
que de menino havia aprendido a não deixar-se dominar por seu pai de quem teve
que defender-se com força. Schubert, por outro lado, foi uma pessoa muito terna. Se
pode dizer que também foi temeroso, mas não um desses que avança
impetuosamente, como Beethoven, senão um que tende a retroceder com timidez,
e cuja coragem, pouco agressiva, pode nos parecer debilidade.
Eu diria que a coragem de Schubert é um coragem ‘crística’, que “oferece a outra
face”. Parece não ter coragem alguém que responde à agressão sem raiva, mas, não
faz falta ter coragem para receber a agressão sem violência? Na vida alguém que não
se revolta é crucificado.
E Schubert foi um crucificado, em certo modo, ao dedicar-se a exaltar a beleza
quando a vida lhe exigia ganhar dinheiro e ser mais prático. Era um sonhador, se
poderia dizer, ao entregar-se a uma vocação que poderia caracterizar-se como um
sacerdócio da beleza.
Seu pai tinha uma escola e lhe ofereceu que trabalhasse nela. Mas Schubert decidiu
dedicar-se ao seu, que era a música. Mas não tinha o mecenato que conseguiu
Beethoven com seus gestos de titã que se movia entre os nobres como alguém de
uma nobreza superior que lhe dava o gênio, e por isso sua falta de dinheiro o levava
eventualmente a passar fome, e por anos não teve um piano. Que alegoria viva,
escrever música de tal qualidade e não ter um piano! Se sabe que às vezes escrevia
no papel com que se cobriam as mesas do restaurante. Não é coragem aceitar uma
vida tão difícil por não desviar-se de seu caminho? Podemos pensar que foi alguém
que se sacrificou por sua vocação, e teve a valentia considerável mas pouco visível
de ser fiel a si mesmo.

Escutemos agora o começo de sua oitava e penúltima sinfonia, chamada


“Inacabada”, contemporânea ao quarteto “A morte e a donzela.”

Escutamos uma afirmação ou uma pergunta?


Me parece uma pergunta. Ao não terminar a melodia na nota fundamental, senão
no quinto grau da escala (de Si menor), parece esperar uma resposta.
É uma pergunta que parece surgir da obscuridade, uma pergunta lúgubre.
Digamos que se trata de uma pergunta acerca da morte mesma, tal como o começo
do quarteto “A morte e a donzela” propõe com o tema em forma de afirmação.

Em resposta à pergunta que parece formular a vida mesma – ou a morte mesma se


manifesta agora “o herói” da obra mas ao usar o termo “herói” não quero implicar
que seu ânimo seja semelhante ao desafio beethoveniano – senão todo o contrário.
Para um que escuta superficialmente, poderia a melodia ágil e suave dos violinos
parecer alegre, assim como melhor parecia alegre Schubert mesmo em sua
introversão e delicadeza apesar de levar sua tragédia por dentro. Mas para alguém
que preste melhor atenção as notas repetidas de dois em dois dos violinos
transmitem um tremor – e aonde há tremor, em geral há medo. E o motivo reiterado
de quatro notas nos baixos, como um eco do chamado do destino na Quinta Sinfonia
de Beethoven, nos confirmam a onipresença do ameaçante.

Pareceria que o que escutamos é o estado mental de alguém que se pergunta se é


na verdade tão terrível como lhe parece sua situação. É mortal? E não só treme,
senão que vacila, em um estado ambivalente, encaminhando-se em uma direção e
logo na oposta.

Assim, então, se auto-descreve Schubert em seu próprio tremor e insegurança, até


que sua música compartilha conosco algo assim como seu abrir-se a uma inspiração
superior.
Escutamos algo como uma voz oracular:
É como se o céu se abrisse e dissesse: “Esta é a Lei”. “Assim está decretado que seja
a vida: todos temos que viver este processo.” Alternativamente, é como se a visão
do indivíduo se abrisse por um momento a uma perspectiva cósmica, segundo a qual
tudo vai e vem em ciclos…
Mas à voz oracular responde com um gesto de dor, já que desde o ponto de vista da
alma individual, há ainda apego à vida, e portanto dor. É como se escutássemos um
“Ai!”

Ilustrei a passagem com um fragmento de partitura orquestral, que permite apreciar


melhor como na passagem em que escutamos a “voz do destino” se apresenta em
contraponto com o tremor dos violinos e também com a ameaça das quatro notas
fatídicas nos baixos, e na qual se aprecia como o “Ai” de dor nos chega com o timbre
potente das trompas.
Logo segue o diálogo entre o indivíduo e a voz oracular que poderíamos conceber
como um Eu superior. E sentimos que este exige coragem ao jovem tímido e doce
que ainda não conhece o terrível, como se lhe dissesse “Torna-te homem!”
E agora, logo após uma breve introdução, comparável às cortinas que se abrem em
um proscênio, aparece o herói propriamente dito, capaz de se enfrentar à morte em
vista da serenidade de sua perspectiva cósmica.
E ainda no terno e doce Schubert encontramos um momento de desafio
beethoveniano. Mas segue uma passagem de pura contemplação pelo resto da
exposição deste movimento em forma de sonata. Recupera o herói a paz de alguém
que compreende que assim como giram as estrelas, tudo na natureza obedece a
suas leis, que compõe uma visão cósmica harmoniosa em que as coisas começam e
terminam sem tragédia.
Mas ao entrar no desenvolvimento a música nos surpreende novamente com a
ameaça, e entendemos que a serenidade alcançada é ainda intermitente. Pois uma
coisa é que o indivíduo possa remontar-se por momentos à visão cósmica dessa “voz
oracular” e outra que chegue a integrá-la completamente em seu ser, chegando a
uma plena aceitação da existência como é. No curso do desenvolvimento nos parece
que o herói foi submetido a sucessivas provas das quais emergiu vitorioso,
convertido finalmente em um herói maduro, triunfante e completo.
Ameaça e desenvolvimento.
Escreveu Schubert dois movimentos: o allegro e o andante. Escutemos agora o
princípio do segundo:

Alguns maestros de orquestra não dão suficientemente relevo ao baixo em


‘pizzicato’, como se só interessasse o que ocorre no registro agudo. Mas me parece
que é essencial a escala descendente do baixo, que sugere o descenso a uma tumba
– ou mais exatamente ao “reino das sombras”.
Alterna este motivo do descenso com uma voz celestial, que contrasta com a voz de
além-túmulo sugerindo uma presença que sobrevive à morte; já que se trata de uma
melodia que sugere por sua volta sobre si mesma algo como uma forma espiral,
poderíamos tomá-la como a sugestão de uma forma embrionária; quer dizer, a
incubação de uma vida superior.

Uma e outra vez alterna o descenso à morte com a alma embrionária que parece
gestar-se precisamente pelo contato com a obscuridade, mas deixo aqui o
comentário deste movimento que regressarei em um capítulo posterior. Passemos
agora à sinfonia que compôs Schubert depois da “Inacabada”, chamada às vezes “A
Grande” por suas proporções monumentais.
Se ao compor a Inacabada Schubert não havia avançado o suficiente em seu
desenvolvimento psicoespiritual como para abordar a expressão musical completa
dessa metamorfose que só havia vivido em suas fases de heroísmo ante a
adversidade e dor, nos interessa saber se no curso dos anos posteriores chegou a um
nível de experiência que lhe permitiu dar expressão ao nível unitivo do caminho.
Quando Schubert compôs sua última sinfonia, creio que não só havia atravessado a
experiência da morte e se encontrado consigo mesmo, senão que regressou ao
mundo cotidiano como alguém que regressa desde o “além”. E esse terceiro
movimento sinfônico que havia sido originalmente um ‘minueto’ e sugeria o
regresso ao mundo comum, é para Schubert aqui, como para Beethoven, a
expressão da experiência de alguém que enfrentou ao mais trágico e regressa ao
mundo de todos os dias com uma atitude leve mas profunda. Curiosamente, sabe
transmitir-nos Schubert neste o ambiente de uma festa popular na qual já não se
sente em casa depois de sua entrada no mistério da existência.
Mas antes de passar à consideração do último movimento desta última sinfonia de
Schubert, me parece oportuno mencionar que antes de abordar a composição desta
sinfonia, compôs Schubert seu famoso ciclo de canções intitulado “Winterreise”
(Viagem de inverno), que escreveu no mesmo ano, e que se poderia considerar a
expressão da “noite escura da alma” de Schubert.
Mas antes de citar algo da parte mais dolorosa deste ciclo, citarei algo de uma das
primeiras canções, quando recém se vai adentrando em seu Inverno. Se chama “A
Tília”, e não só é uma das mais conhecidas, senão que uma de grande interesse na
medida em que reflete a personalidade do compositor.
No prefácio a uma edição dos textos destas canções que me presentearam vejo que,
ademais, foi esta peça uma das preferidas de Hans Castorp, o personagem da
Montanha Mágica de Thomas Mann 4. Se a descreve aí, ademais como “uma peça
completamente alemã”; não é uma parte de uma ópera senão uma canção,
patrimônio popular e obra mestra ao mesmo tempo, que justamente por isto
recebia seu particular selo espiritual. Esta música é um lied de Schubert, “A Tília”,
que desde os primeiros compassos, diante do portão, captura o coração de Hans
Castorp como se lhe contassem um segredo inalcansável e o reenviassem a algo que
estava acima de si mesmo, a um mundo misterioso e indefinível, e o herói manniano
“sente que ama esse lied.”
Eis aqui a primeira parte da famosa canção “A Tília”, que fala do sentir-se protegido
e em paz, antes de que, com a segunda parte, começe a soprar o vento e se
desencadeie a tempestade. Os sucessivos versos da tradução do texto que cito a
continuação se correspondem com as sucessivas frases musicais na canção.

4
Thomas Mann (Lubeck, Alemanha, 6 de junho de 1875 – Zurique, Suiça, 12 de agôsto de 1955) - foi
um escritor alemão, nacionalizado estadounidense. É considerado um dos escritores europeus mais
importantes de sua geração. Mann é recordado pela profunda análise crítica que desenvolveu em
torno à alma européia e alemã na primeira metade do século XX. Para isso tomou como referências
principais a Bíblia e as ideias de Goethe, Freud, Nietzsche e Schopenhauer. Thomas Mann recebeu o
Prêmio Nobel de literatura em 1929, «principalmente por sua grande novela, Os Buddenbrook, que
tem merecido um reconhecimento constantemente incrementado como uma das obras clássicas da
literatura contemporânea». (http://es.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mann)
Winterreise – Der Lindenbaum (A Tília)
Na fonte próxima ao portão há uma tília
e às vezes à sua sombra tinha doces sonhos

De sua ramagem me chegavam


muitas doces palavras
alegre ou triste que estivesse
continuamente me chegavam

Hoje de novo caminhei


na noite escura
e mesmo na escuridão
cerrei meus olhos

E suas ramas murmuravam


como dizendo
“Vem aqui, amigo
aqui encontrarás a paz”

Mais adiante a música se faz eco de como segundo o texto começa a soprar o vento
e se desencadeia a tempestade.

O vento frio soprava


em meu rosto
voou-se meu chapéu
e nem dei a volta

São muitas as horas de caminho


que me separam de lá
e ainda lhe escuto murmurar
“lá encontrarás a paz”
Como já expliquei, foi Schubert uma pessoa muito doce e amistosa. Não teve um lar cálido
na casa paterna nem chegou a estabelecer um lar. Foi como uma dessas pessoas que
gostam mas sentem falta de um lar, com sua intimidade ao redor do fogo, pois não a tem.
Recordo que quando menino me presentearam um livro sobre Schubert cujo título era
“Schubert e seus amigos”, no qual se destacava a relação cálida com aqueles que o
rodeavam. Dada a sua calidez delicada, quando entra em contato com a dor, esta tem o
caráter de desolação, de solidão, de frio invernal – que é o contrário do calor de um lar.
Por isso quando falamos da coragem de Schubert, devemos pensar na coragem que envolve
suportar a solidão, o frio. Tudo isto o preparou ao enfrentamento com a morte, e de ambas
as coisas fala a “viagem no inverno”, que é a obra que mais comoveu a Schubert durante
sua composição – e temos o testemunho de como chorou ao compartilhá-la com seus
amigos ao piano.
Creio que depois do encontro com um eu superior na “Inacabada” e outras obras, com o
correspondente nível superior de inspiração superior ademais da vivência de estar próximo
de si mesmo, passou, como todas as pessoas que entram neste caminho, por um momento
de desolação. Só depois disto chega a última sinfonia, aonde se reencontra consigo mesmo
e avança um passo além.
Mas escutemos ainda o último lied deste ciclo, que se chama “Der Leiermann” (O Tocador
de realejo). Se compara implicitamente neste peça com alguém que ganha a vida tocando
um realejo, que depende da caridade das pessoas e ninguém escuta; um velho sem sapatos
pisando no solo frio, a quem às vezes ladram os cães. Vemos nesta a um Schubert
sacrificado à sua arte de maneira semelhante a como se vê no “jardim das delícias” de Bosch
a alguém que está crucificado sobre uma harpa.
Escutemos esta peça de composição muito simples, e de uma austeridade tal que nos faz
sentir o inverno com sua desolação. Me parece importante conhecê-la antes de escutar a
sinfonia, porque em seu último movimento recordaremos ao tocador de realejo, só que
agora transformando sua simplicidade miserável na de uma apoteóse.

Winterreise – Der Leiermann (O tocador de realejo).


Penso que a última fase (unitiva) do caminho interior, que se associa à experiência da
completude, se corresponde com o que Stanislav Grof 5, psicólogo tcheco conhecido por sua
investigação das experiências induzidas pelo ácido lisérgico, chamava a fase vulcânica na
sequência das “matrizes perinatais.”
Explica Grof que as quatro fases no curso do nascimento biológico se correspondem com
quatro estados interiores característicos que se observam no curso de tais experiências, de
modo que associa o que chama a primeira “matriz perinatal” a algo como a recordação da
vida intrauterina antes do começo das contrações do parto, durante a qual tudo vai bem na
paz do ventre materno e a pessoa se sente como no paraíso.
Logo vem o momento das contrações uterinas quando ainda não começa a dilatação do colo
do útero; e podemos pensar que o feto se sente sem espaço, sufocado, sem possibilidade
de movimento, e é para ele como um inferno, e fala Grof de uma segunda matriz perinatal
em referência a estados interiores no adulto que se assemelham a essa condição pela qual
todos atravessamos antes de nascer.
Quando inicia o caminho através do canal do parto, entretanto, apesar de que haja pressão,
o feto avança; e diria eu que a terceira matriz perinatal, na qual sofremos mas sentimos a
esperança de progredir, corresponde com o que o cristianismo tem concebido como um
purgatório.
Grof descreve a última etapa do nascimento biológico como mais espetacular, e como uma
em que a mãe perde sangue e se podem romper tecidos, mas a situação é tal que há algo
superior à dor; como no caso de um vulcão que explode. Vivencialmente, esta quarta matriz
perinatal é uma em que se vive um êxtase explosivo, que pode acompanhar-se de visões de
conteúdo titânico.
Já propús que os “estados perinatais” aos que se refere Grof ao falar de “matrizes” se
correspondem às fases do desenvolvimento místico, de modo que o xamã tipicamente
ascende pelos céus em sua viagem interna antes de descender ao inferno, logo encontra um
equilíbrio sua consciência ao regressar à terra, que é como um centro desde o qual se
poderá deslocar a outros mundos, e por último alcança algo assim como um parto espiritual
que tem as características de um salto a um novo nível do despertar. É o aspecto vulcânico
do nascimento, vivência interior que não existe no mundo externo, exceto talvez em nossa
experiência de quando nossa cabeça teve que atravessar a pelve óssea de nossa mãe e
seguramente nos sentimos à beira da morte.
Começa este movimento, rapidíssimo, com algo como as arquetípicas trombetas da
ressurreição, e logo escutamos algo assim como um vento que varre com todo o conhecido.
A alegria própria do tempo veloz pareceria vir justamente de um deixar tudo para trás por
parte de um que dá um salto em direção à transcendência.

5
Stanislav Grof (n. 1 de julho de 1931, Praga, República Tcheca - antigamente Tchecoeslováquia) - é um dos
fundadores da psicologia transpessoal e um investigador pioneiro no uso dos estados alterados de consciência
com o propósito de sanação, crescimento e introspecção. Grof recebeu o prêmio VISION 97 concedido pela
Fundação de Dagmar e Vaclav Havel, em Praga, a 5 de outubro de 2007.
Mais adiante, o que domina é uma sensação de avançar; mas não é a peregrinação de
Schubert o caminhante, pois há aqui uma grande força que parece arrastá-lo. Também há
uma sensação de iminência; sentimos que algo vai se suceder. Mais, está chegando! Está
por chegar! Minha associação pessoal é a dos espermatozóides que vão chegando ao óvulo
que espera ser fecundado.
Nos sentimos em uma viagem ao desconhecido, como poderia ser em uma versão musical
de algum dos livros que se escreveram sobre a viagem dos mortos para além do mundo
familiar.
E cada vez mais. Como quando nos jogos infantis dizemos “quente! quente! quente! Está
cada vez mais perto!”

Mas passo agora a aquilo para o qual citei a canção do tocador de realejo ao final da Viagem
de Inverno, que corresponde ao segundo grupo temático. Ao começo seu caráter é
semelhante ao da canção por sua grande simplicidade e seu caráter cíclico:

Ao final do movimento, entretanto, sua simplicidade pobre se transmuta em uma


simplicidade monumental e em una monotonia sacra, que é como um haver chegado até o
centro mesmo de todas as coisas e encontrar-se ali com algo estável e inalterável.
Utilizei a metáfora do espermatozóide que chega ao óvulo; mas digamos agora que se trata
melhor da chegada do espírito humano ao Ser, ao divino ou ao absoluto.

Sentimos ao final do movimento que a consciência humana chegou a seu centro, e ao


centro da vida, en torno ao qual gira tudo, e que já não lhe falta nada mais que dizer que
“estou aqui.”

A obra mais importante das que compôs Schubert depois da Grande foi seu muito famoso
quinteto para arcos D-956, e escutaremos agora algumas passagens.
Como vimos, muitas das obras de Schubert começam com seu encontro com o terrível, e
assim ocorre também neste quinteto, só que esta vez nos parece encontrar-nos com um
enunciado já destilado; pois embora diga o mesmo que muitas outras obras, o faz
aforísticamente, em um espaço muito breve.
Já desde a frase inicial do primeiro movimento, sabemos que se tratará do encontro com
algo muito comovedor e terrível.

Agora vejamos como responde Schubert a esta espécie de “chamado do destino”.


Ante o desafio, que não podia ser mais ameçador, responde Schubert em forma obviamente
leve, brincalhona inclusive, elegante – como se quisesse nos dizer que sua resposta à morte
é a de seguir cantando.
E não poderíamos dizer que este é um triunfo sobre a morte, o permitir-se ignorá-la?
Seguimos escutando, e comprovamos que o estímulo da morte já não evoca no músico o
terror, senão que uma explosão de amor, uma dança, quase.
É esse seu triunfo – mas sumamente diferente à apoteose triunfalística, quase militar, da
quinta sinfonia de Beethoven.

Quinteto em Dó maior op. 163, D.956 – primeiro movimento


Logo vem o segundo movimento, uma das obras mais belas do repertório musical universal,
que poderíamos interpretar como um réquiem para si mesmo pela medida de paz e
aceitação que evoca: uma paz de quem nada deve evitar, pois já viu o abismo, e sabe que
nada pode fazer que tenha mais sentido do que seguir amando e cantando.

Quinteto en Dó maior op. 163, D.956 – segundo movimento, porção idílica.

Mas não é tudo aceitação e paz neste segundo movimento. Chega também o momento da
desesperação; e isso nos diz que coexistem em Schubert o que chegou à serenidade e
doçura, e aquele que ainda não superou sua personalidade humana.
Quinteto en Dó maior op. 163, D.956 – segundo movimento, porção contrastante

E recupera Schubert a paz, mas em forma dialética, pois o que escutamos depois da
desesperação e terror é uma paz mais integrada, em presença da morte e não como um
parêntese depois do encontro com esta – como se houvesse comunicado a capacidade de
paz ao desesperado.
Quinteto en Dó maior op. 163, D.956 – segundo movimento, porção integrativa

Mas escutemos agora algo do 3º movimento deste quinteto, que se ajusta ao padrão do já
comentado acerca dos Scherzos das sinfonias de Beethoven e dos românticos: nos fala da
volta à terra, o retorno ao ordinário, que é também o banal. Só que nos parece que aquele
que se encontrou com a morte vivesse até o banal com um entusiasmo intensificado.
Quinteto en Dó maior op. 163, D.956 – terceiro movimento, Scherzo

Me faz pensar no que escreve Dostoiévski quando no “O Idiota” descreve uma experiência
pessoal de quando estavam por fuzilá-lo, na Sibéria, e viu ao longe a luz do sol refletida em
uma cúpula dourada. É tal a intensidade e a beleza da vida, que se pegunta: “Se agora
seguisse vivendo, como seria possível viver com esta intensidade?”. E chega o indulto, a
ordem do czar. E se inteira de que tudo estava preparado, e era para dar-lhe uma lição. Para
provocar-lhe o pânico e castigá-lo através desta ameaça. E, claro, a cena de sua novela faz
alusão a esta experiência que teve uma influência definitiva em sua vida. É como se com
esta intensidade no sentido da vida ordinária houvesse superado o encontro com sua
mortalidade.
Quinteto en Dó maior op. 163, D.956 – terceiro movimento, Trio

Ao chegar ao trio, entretanto, sentimos como se depois desta exaltação da vida simples
escutássemos uma espécie de adeus; ou seja, uma tomada de consciência em que se
assume uma despedida da vida; não tanto a uma pessoa ou a um grupo de pessoas, senão
que à vida mesma. Escutamos agora uma música intensamente elegíaca, tal como quando
se chora a um morto, só que se trata do pranto do que morre mais que o daqueles que
participam em uma cerimônia fúnebre: um pranto que é a plenitude do amor ante a
separação.
Mas não é que se tenha perdido a capacidade de gozo, pois, terminado o trio se reafirma a
celebração da vida em sua simplicidade, como se esta fosse a mensagem final do
compositor.

Quinteto en Dó maior op. 163, D.956 – terceiro movimento, final do Scherzo

No quarto movimento do quinteto se segue escutando a vida terrenal, vivida sempre com a
intensidade de um visitante do além. Há um conto de Thornton Wilder, que creio tomado
da antiguidade, que trata de alguém que morreu e que pede para voltar à vida por poucos
momentos. Se lhe concede, e pode estar em sua casa sem que ninguém o veja. Quanto
amor sente por todos! Vê a sua mãe e tudo lhe parece precioso, tal como na experiência de
Dostoievski já comentada. Só que este último movimento vai além que o anterior em que
sugere a dança, mais comprometida que o canto, e mais alusiva à concretude de pisar na
terra. Como o movimento anterior, entretanto, sentimos aqui um espírito muito popular,
alusivo por extensão ao ordinário, só que sentimos que o ordinário se converteu em
extraordinário para quem o vive com tanta intensidade.

Quinteto en Dó maior op. 163, D.956 – quarto movimento


8 O mundo vivencial de Brahms através da obra desconhecida de Tótila Albert

Brahms viveu em fins do século XIX, e se deu a conhecer algo depois de Schumann,
que por sua vez foi algo assim como o sucessor de Beethoven por prestígio dentro da
Alemanha. Beethoven havia tido um contemporâneo — Schubert — de modo que
viveram em Viena ao mesmo tempo o colosso que foi Beethoven (que transformou a
música em algo diferente do que havia sido até então) e Schubert, que admirou
profundamente a Beethoven mas ao parecer foi demasiado tímido para apresentar-se
ante ele.
Se diz às vezes que com o período heróico da música de Beethoven começa o
romantismo na música, e com o romantismo começa a música a servir de veículo à
expressão pessoal dos compositores. Mas mais importante ainda que o começo da
música como auto-expressão fosse ou que já não fosse a música um eco da “música
das esferas”, como se dizia na Idade Média (em referência à ideia de que esta seria
algo assim como uma expressão sonora de leis universais), senão que melhor um eco
da vida humana, com suas paixões e o reflexo ainda de seu ser biológico. Sentimos que
Bach fala do cosmos, e que em sua música se refletem as órbitas circulares dos corpos
celestes. Mas quando se abre Beethoven a uma inspiração nova, já sua música não é
somente expressão de leis universais, senão que mais especificamente da experiência
humana.

Teve imitadores Beethoven, que quiseram expressar suas experiências pessoais em


música, — por exemplo Berlioz com sua Sinfonia Fantástica — mas embora quisessem
fazer autobiografia musical, não lhes deu um resultado tão interessante como a
Beethoven. E é que, sendo Beethoven alguém que havia realizado a si mesmo, “falar
de si mesmo” em sua música resultava mais que só falar de si mesmo, e se tornava
expressão do processo através do qual alguém pode chegar a encarnar uma dimensão
espiritual, despertando a um mundo superior.
Dizia o célebre regente de orquesta e musicólogo alemão Von Büllow 1 que entre os
“três grandes B” da música — Bach, Beethoven e Brahms — Bach era o Pai, Beethoven
o Filho e Brahms, o Espírito Santo. E seguramente o dizia como um chiste, mas me
parece que a persistência desse chiste até nosso tempo sugere que também se pode
tomar como algo mais profundo e válido. Assim, não se pode negar que a música de
Bach é a que mais se acerca a encarnar no mundo sonoro a vivência cristã do Pai
Celestial. E embora toda grande música poderia dizer-se em certo modo espiritual, a
de Bach parece transmitir-nos de maneira mais convincente que nenhuma a devoção a
um Deus transcendente - e a tal ponto era para Bach o ato de compor um ato de amor
a Deus que assinava suas obras com a expressão Soli Deo Gloria (SDG) 2.

1
Hans Guido Freiherr von Bülow (Dresden, 8 de janeiro de 1830 — Cairo, 12 de fevereiro de 1894) foi
um maestro, pianista e compositor alemão do período romântico. Foi diretor artístico e maestro titular
da Filarmônica de Berlim no período de 1887 a 1892. Sua atuação foi crucial para o sucesso de alguns
dos maiores compositores de seu tempo, como Richard Wagner. Entre 1851 e 1853 estudou piano sob a
orientação de Liszt em Weimar. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Hans_von_Bulow).
2
O compositor barroco Johann Sebastian Bach escreveu as iniciais "SDG" ao início e ao final de suas
composições religiosas e também o fez a outras, mas não a todas, composições profanas. Esta
dedicatória foi utilizada também por um contemporâneo de Bach, George Friederic Handel, por
Mas são muitas as vivências possíveis de Deus, pelo que pode dizer-se que Deus tem
“mil faces”, ou pelo menos tantas faces como indivíduos. De modo que quando em sua
frase algo humorística fala Von Büllow de Beethoven como o Filho, nos resulta
perfeitamente adequada tal afirmação como alusão ao ser humano; ou, mais
exatamente, ao ser humano como expressão do divino; do humano quando o
indivíduo, havendo-se encontrado a si mesmo, realiza sua potencialidade divina.
Em certo modo já Mozart havia sido uma “criança divina”, em cuja música o amor não
é tanto devocional, como em Bach, senão humano, e mais especificamente ternura
(como é o amor da criança, e especialmente o amor entre a criança a mãe). Por isso,
embora Mozart haja composto missas e outras obras de música devocional, foi
sobretudo na ópera que se refletiu seu gênio característico e no qual se expressou sua
personalidade; a ópera, que é antes de tudo a expressão dramática de relações
humanas. Mas se Mozart é para nós uma “criança divina”, Beethoven é um
adolescente ou um adulto: um filho que já não é uma criança, e para quem Deus não é
aquele ao qual se rende culto de joelhos nas igrejas. Acertadamente, o roteirista de
um filme recente (não historicamente exato mas muito bem concebido) intitulado O
Segredo de Beethoven 3 (2006), atribui a ele as palavras “Deus e eu trabalhamos ombro
a ombro” — afirmação que pareceria arrogante, mas que se pode compreender como
a expressão de um estado espiritual particular, pouco conhecido na cultura cristã, de
alguém em quem a relação com o divino não é a do filho obediente com o pai.

Na mística oriental se concebe a escala da devoção como uma que a pessoa começa
por amar a Deus como uma criança ao pai, logo progride a uma maior intimidade, em
que se sente ante Deus como sua mãe, e posteriormente a um amor como o dos
amantes. Semelhantemente, na relação com os mestres espirituais se reconhecem
diversas formas do amor que se sucedem através das etapas da maturação espiritual,
até que desaparece o desnível entre a consciência do discípulo ao mestre, e se diz que
já a relação de um com o outro é como “água que cai na água”. Isto implica um
reconhecimento de que a pessoa chega a não ter uma atitude tão reverente frente a
Deus como a que o caracterizava inicialmente. É como se Deus desaparecesse,
inclusive, e se fizesse puramente imanente; e assim dizem alguns a propósito do
Cântico dos Cânticos, considerado na tradição rabínica como o livro mais sagrado do
Antigo Testamento e no qual não aparece a palavra “Deus”. O amor que se expressa é
o amor humano e se considera expressão do fato de que Deus está completamente
incorporado à vida humana — que através de tal infusão do divino se eleva a uma
condição divina. Assim entendo eu a identificação de Beethoven com o Filho da
trindade cristã, que a ortodoxia identifica exclusivamente com um indivíduo histórico

exemplo, em seu Te Deum. No século XVI o místico e poeta espanhol São João da Cruz utilizou uma
frase similar “Soli Deo honor et gloria” em suas “Precauções e Conselhos”.

3
Copying Beethoven / 2006 (port: O segredo de Beethoven) é um filme dramático realizado pela
polonesa Agnieszka Holland que fez um relato ficcional do último ano de vida do compositor alemão
Ludwig van Beethoven. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Copying_beethoven)
mas que o esoterismo sempre compreendeu como a natureza profunda de cada ser
humano. Mas, como explicar que entre o “três B da música” Brahms se corresponda
com o Espírito Santo?

Poderia começar por explicar que não só no cristianismo se reconhecem três aspectos
do divino, senão que em muitas tradições espirituais, e que, ao herdar o cristianismo
um ensinamento mais antigo que falava de três princípios cósmicos, a cultura
patriarcal em que se inseriu o cristianismo haveria distorcido, masculinizando o “rosto
materno de Deus”. Assim opinam os “teólogos da libertação” ao propor que o Espírito
corresponde à figura arcaica da Mãe Divina, e que é coerente isso com a
caracterização do Espírito como amor. E que por mais que tanto o saber como o amor
transcendam aos gêneros masculino e feminino, também é certo que os meninos
varões desde pequenos se interessam mais nos jogos estratégicos que nas bonecas, e
vice-versa, e que seguramente o mundo seria menos violento se houvessem tido mais
voz em seu governo as mulheres.

Mas voltemos a Brahms, quem durante boa parte de sua vida viveu eclipsado pelo
entusiasmo popular que inspiravam Wagner e Liszt. Wagner foi uma pessoa muito
arrogante e competitiva, e diríamos hoje, em que pese a seu gênio musical sofreu de
um forte “problema de personalidade”. É significativo de sua perturbação emocional
que fosse, mais que nenhum outro, o pai do antissemitismo alemão 4 (embora o
antissemitismo tenha acompanhado ao cristianismo desde seus inícios, já que se
concebeu o cristianismo em competição com a tradição judaica e por isso houve
sempre perseguições e guetos). Tão intenso foi o ódio de Wagner aos judeus, que se o
transmitiu ao mais entusiasta de seus admiradores — Adolf Hitler — a quem através
do entusiasmo musical lhe infundiu o entusiasmo na supremacia da raça ariana que
tão fortemente se associou ao desprezo competitivo aos judeus. Se criou, ademais,
uma aliança entre o talentosíssimo e apaixonado Wagner e Liszt, outro grandíssimo
talento, que a historia posterior não tem reconhecido como tão genial por suas
composições como pareceu a seus contemporâneos, seduzidos por seu virtuosismo
nunca visto ademais de seu magnetismo pessoal e simpatia, e que quando tocava o
piano enfeitiçava a quase todos e encantava às mulheres. Por mais que não seja hoje
Liszt um compositor cuja presença no repertório tenha perdurado, o prestígio
conjunto de Wagner e Liszt levou a que se impusesse em seu tempo uma ideologia
musical que se autodenominou a nova música alemã, que propunha uma
interpretação literária da música e prescrevia que as obras musicais não deveriam
mais cingir-se a formas clásicas — como a “forma sonata” tão empregada por
Beethoven e Mozart, senão que deveria ser mais livre, deveria inspirar-se em um
programa narrativo, como Wagner em suas óperas.

4 As obras literárias de Wagner sobre a raça e seu antissemitismo refletem algumas tendências do
pensamento na Alemanha durante o século XIX. En 1850 publicou na revista Neue Zeitschrift für Musik
sob o pseudônimo de K. Freigedank (K. Livrepensamento) seu ensaio O judaísmo na música (Das
Judentum in der Musik). Nele, atacaba a seus coetâneos (e rivais) judeus Felix Mendelssohn e Giacomo
Meyerbeer, deplorava o que considerava «a judaização da arte moderna», ademais de acusar aos
judeus de ser um elemento daninho e estranho na cultura alemã.
Desde este ponto de vista que dominou a moda intelectual do século XIX, se
considerou durante um bom tempo a Brahms, que seguia compondo segundo os
cânones dos clássicos, um retrógrado. Mas não só durante sua vida foi Brahms
ganhando um reconhecimento progressivo, senão que também desde sua morte, de
modo que no curso dos anos eu mesmo que vou chegando aos 80 e fui músico desde
muito jovem pude ser testemunha do descobrimento progressivo da grandeza de
Brahms.

Embora diria que fui descobrindo eu mesmo a Brahms através de minha experiência
da música como jovem pianista, este descobrimento de Brahms foi reforçado
fortemente por uma influência extramusical: a de Tótila Albert; e assim como influiu
Tótila Albert em minha compreensão pessoal de Brahms, penso que está a meu
alcance o transpassar a outros algo da dimensão interior e sutil de Brahms que cheguei
a apreciar através de um conjunto de obras de Tótila Albert ao que este se referia
como seu “Ditado Musical”.

Como já repeti muitas vezes de diversas maneiras, falar do mundo vivencial de um


músico é algo que não tem sido muito apreciado nos círculos musicais acadêmicos, já
que entre os profissionais da música continua vivo o preconceito de que a música é
simplesmente música e não se deve tentar interpretá-la ou traduzir seu presumível
conteúdo a palavras. Por isso reiterarei minha convicção de que, sabendo-o ou não, os
músicos são mais que músicos. Diria que já ao chamar à música “música” a estamos
em certo modo diminuindo, já que com isso a transformamos em um objeto estético, e
o estético é algo de menos alcance do que o que a música costuma ser para nós.
Assim como a música surgiu com o xamanismo para levar a consciência humana a uma
maior elevação ou uma maior profundidade, passou com o tempo a converter-se em
um “bem cultural”, e segue servindo em nossa sociedade consumista principalmente
para que “nos agrade”. Beethoven deplorou tal superficialidade, e penso que quando
os vienenses chegaram a reconhecer em Brahms uma prolongação do espírito
beethoveniano, sentiram implicitamente que estavam ante uma música da mesma
natureza misteriosa e profunda que a de seu até agora incomparável predecessor.

Ao constituir a música um veículo potencial para a comunicação da consciência, seja


esta uma consciência trivial (como é usualmente o caso na que acompanha aos
desenhos animados) ou uma consciência profunda (como é o caso da grande música),
penso que os grandes músicos tem sido precisamente aqueles que nos transmitem
uma consciência profunda, e é por isso que tem constituído, o saibamos ou não, uma
influência espiritual sobre o mundo. No curso dos últimos séculos, especialmente, os
músicos vem produzindo um alimento que nos chega pelo ouvido e nos nutre sem que
nos demos conta muito bem do que nos sucede através disso, e é que nos transmitem
em suas obras a vivência de formas elevadas do amor que vão acopladas à vida
espiritual. Assim sucede sem que por isso se pense em relacioná-la com o âmbito da
religião, e sem que sequer nos demos conta da existência de uma linguagem musical
que nos transmite tais emoções superiores, que nos chegam diretamente ao
inconsciente.
Já propús que Beethoven e Schubert viveram um desenvolvimento da consciência
comparável ao que se expressa no simbolismo verbal através do mito do herói, e que
embora os místicos falem de tais coisas, as palavras nunca podem transmitir tais
experiências de maneira tão efetiva como a música e mais amplamente a arte a
evolução da consciência. Ao falar neste capítulo do “mundo vivencial de Brahms à luz
da obra de Tótila Albert” estarei propondo que também Brahms foi um que viveu essa
transformação interior que leva a um ser humano ordinário às regiões celestiais da
experiência mística, e que por isso pode converter-se em uma fonte de alimento
espiritual para quem o escuta.

Explicava que foi considerado Brahms um retrógrado durante muitos anos; mas em
compensação providencial houve alguém que já durante sua juventude se deu conta
perfeitamente bem de quem era, e este foi nada menos que Schumann — que foi para
muitos a maior autoridade musical de seu tempo aparte dos entusiastas de Wagner e
Liszt. Havia sido Schumann quem deu a conhecer postumamente ao tímido Schubert,
que só havia chegado a dar um concerto próximo ao final de sua vida (não sendo
ademais um bom pianista) e que não havia chegado a ser conhecido mais que por suas
canções, que eram para os vienenses algo assim como uma arte popular. Depois da
morte muito prematura de Schubert aos 31 anos de idade, havia sido Schumann quem
se havia interessado em descobrir seus quartetos, sonatas e sinfonias, e as havia dado
a conhecer, e haveria de ser o mesmo Schumann a quem correspondeu chamar a
atenção do grande público para o jovem Brahms.

Schumann foi um homem de grande intuição, que durante sua juventude não sabia se
deveria se considerar um poeta ou músico, mas se decidiu pela música e nela foi muito
poético. E foi também Schumann um crítico musical, cujo interesse em educar ao
público para que pudesse discriminar entre os verdadeiros talentos e os imitadores
que só chegam a ser importantes pelo bom manejo da opinião pública, o havia levado
a fundar uma revista 5. Havia nele, então uma certa militância, e quando por conselho
de um amigo o jovem Brahms, de 20 anos de idade, se apresentou à porta de sua casa
levando sob o braço sua primeira sonata para piano e outras obras, Schumann, depois
de não haver contribuído durante anos a sua própria revista, quis voltar a escrever,
para comunicar ao mundo seu entusiasmo e sua convicção de que: “Eis aqui aquele
que esperávamos!”.

E já estava retirado Schumann e viveria muito pouco ainda em estado consciente – já


depois de que tentou tirar a prpopria vida (lançando-se ao Reno pouco depois de
terminar de compor a Sinfonia Renana - que aparece como a terceira mas foi a última)
se desencadeou nele um estado de demência pelo qual quis internar-se.
(Curiosamente, haviam resgatado neste dia ao autor do famoso “Carnaval” para piano
que o havia tornado célebre em sua juventude, um casal que passeava de bote nesse
dia com os disfarces de um arlequim e de uma colombina).

5
Em conjunto com amigos e intelectuais da época fundou, em 1834, a Neue Zeitschrift für Musik (Nova
Revista para a Música) - um jornal dedicado à música. Nos dez anos em que esteve à frente deste, teve
uma rica produção artística. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Schumann).
Havia sido suficientemente inusual o pronunciamento de Schumann com respeito ao
jovem Brahms como para que este último fosse chamado (às vezes com certa ironia ou
desafio) “o messias musical”, pois parecera que o que impressionou tanto a Schumann
e inspirou essa frase sua de “o que esperávamos” não houvesse sido tanto a música
mesma de Brahms, senão a consciência que se projetava nela.

Schumann havia sido um médium ademais de um artista muito inspirado, e


poderíamos dizer que foi um homem tocado pelo espírito, e não creio que sua loucura
fosse só algo negativo. Sabemos que os loucos sabem um pouco mais que os sensatos,
pois o que o mundo médico chama “psicose” nos impressiona como um encontro da
pessoa com uma realidade mais profunda do que pode assimilar. Eu que fui médico,
que fiz minha prática em um manicômio no Chile antes de terminar minha formação,
sempre tive muito respeito aos psicóticos. E embora os médicos costumassem tratar
com superioridade aos “loucos”, eu nunca pude adotar tal atitude, pois sentia que
compreendiam coisas das quais eu não alcançava o entendimento, por mais que se
equivocassem na interpretação correta de suas profundas intuições.

Quando Schumann escreveu o famoso artigo em que figurava a frase “este é o que
esperávamos”, algumas pessoas o tomaram muito seriamente, mas outros disseram
“está meio louco este velho Schumann”; e se tornou muito difícil a vida ao jovem
Brahms desde que então teve ao público alemão e vienense à espera de chegar a
comprovar seu acerto embora mais céticos ou zombadores com respeito à profecia de
seu apreciativo protetor.

As obras de Brahms se deram a conhecer em outros lugares da Alemanha antes que


em Viena, aonde haviam vivido Haydn, Mozart e Beethoven e se havia tornado a
grande capital da música. Ser recibido pelo público vienense não era pouca coisa,
então, e lhe custou a Brahms bastante, embora quando se deu a conhecer o Réquiem
Alemão, que compôs Brahms em 1868 (pouco depois da morte de Schumann) o
público supôs que se tratava de algo muito grande e sério.
Não só com a morte de Schumann coincidiu a composição do Réquiem de Brahms,
senão com a morte da mãe de Brahms, e seu texto é um chamado à compaixão a
todos os que estão em dor. Diríamos que ao chamá-lo “Réquiem Alemão”, como se em
nenhum momento quisesse por em primeiro plano sua dor pessoal, talvez o fez porque
essa mesma dor pessoal o havia levado a sentir-se uno com a condição humana.

Pouco a pouco começou Brahms a dar-se a conhecer ao público como um grande


músico, mas seu monumental e admirável Primeiro Concerto para piano, também da
época de seu Réquiem, foi por outro lado mal recebido.
Pareceria que quando terminou seu lentamente incubado Primeiro Quarteto de cordas
sentiu Brahms que chegava a um novo nível de maestria, pois destruiu então muitos
quartetos anteriores; e só depois de sua Primeira Sinfonia triunfou ante o público
vienense.
Esta Primeira Sinfonia foi algo extraordinariamente lento em sua gestação, pois lhe
tomou nada menos que 22 anõs 6 em completar – um caso nunca visto na história da

6 Brahms iniciou a composição em 1854, mas ficou insatisfeito com o potencial sinfônico dos esboços,
utilizando-os no Primeiro Concerto para piano e no Réquiem Alemão. Completou sua Primeira Sinfonia
música. Não é o caso que tardara Brahms muito em sua elaboração, senão que, depois
de haver terminado os três primeiros movimentos e antes de abordar a composição do
quarto (que na forma sinfônica representa uma integração e culminação de todo o
anterior) teve Brahms a sabedoria de tomar seu tempo. E pensava meu amigo Tótila
que só depois da morte de seu pai sentiu Brahms que podia terminar a sinfonia, e por
isso foi especialmente admirável que Brahms houvesse sabido esperar o momento
justo em vez de prover a sua obra com um movimento final artificial.

Mas já é hora que explique quem foi Tótila Albert, à luz de cuja obra desconhecida
(segundo anuncia o título deste capítulo) posso dizer do compositor algumas coisas
que vão além do que se pode encontrar em suas biografias.

Tótila Albert foi conhecido em sua vida como um escultor, sendo seu nome muito
familiar a meus compatriotas chilenos durante minha juventude. Já havia alcançado
uma relativa fama como escultor na Alemanha durante os anos que seguiram à
Primeira Guerra Mundial, pois ali o havia enviado do Chile seu pai para que se
formasse como escultor e ali o havia surpreendido a guerra, por mais que em virtude
de sua cidadania chilena houvera podido seguir dedicando-se a sua arte e tornar-se um
artista muito fecundo a quem a crítica chegou a chamar “o Rodin alemão”. Inclusive
chegou-se a lhe oferecer o prêmio Real da Prússia, que não pôde aceitar em vista de
que, embora nascido de alemães, sua nacionalidade fosse chilena. Grande parte de sua
obra escultórica, entretanto, foi destruída, em parte pelos bombardeios da segunda
guerra mundial na Alemanha, em parte devido à relativa barbárie dos chilenos na hora
de preservar seus tesouros nacionais e também porque um escultor (como um
arquiteto) não pode dar-se ao luxo de produzir o vazado de suas obras de maior
tamanho sem a iniciativa de seus clientes. Por isso, apesar de ser um escultor algo
monumental, deixou suas obras em gesso, que é um material muito frágil, e se vai
desintegrando com o tempo mesmo nos museus.

Dizia entretanto Tótila que a escultura havia sido sua profissão, mas sua vocação a
poesia; pois em certo momento de sua vida havia atravessado por uma experiência de
“morte em vida” semelhante às que descrevi ao falar de Beethoven e Schubert,
através da qual não só havia deixado atrás sua personalidade juvenil senão que
também, por longo tempo, a escultura, para entregar-se a uma nascente inspiração
poética assim como à incubação de sua vida nova.

Não havia sido o resultado de uma busca nem da influência de uma escola espiritual
sua profunda transformação, senão que do impacto da morte de seu pai. Dizia ele que
seu amor por seu pai havia sido tão intenso como para que o houvesse seguido ao
outro mundo, e nisso se comparava a Orfeu, que por amor havia descendido aos
infernos, e com quem tinha também em comum o haver feito este caminho através de
sua inspiração poética.

no verão de 1874 e tomou mais dois anos de trabalho em revisões antes de assinar e datar a partitura e
sua Primeira Sinfonia em setembro de 1876.
(http://www.kennedy-center.org/calendar/?fuseaction=composition&composition_id=2650).
Ao falar de “inspiração” o fazia no mais literal dos sentidos, já que a poesia não era
algo do que se sentisse exatamente o autor, senão algo que lhe chegava e, mais
exatamente, algo que escutava. E havendo crescido no Chile sem a língua alemã –
apesar de ser filho de pais alemães – o ditado que recebeu à hora de tornar-se poeta
era em alemão. Havia começado por poemas isolados, mas em certo momento a
poesia tomou a forma de uma epopéia que se foi extendendo de ano em ano e de
tomo em tomo, até chegar a cinco volumes de 120 cantos cada um — com uma
extensão maior que a da Divina Comédia. E assim como na Divina Comédia Dante
apresenta a viagem universal do indivíduo até a divindade como uma viagem pessoal
do autor, o poema que Tótila escreveu constituiu a expressão de um itinerário místico
pessoal, que se extendeu entre a morte psíquica vivida depois da morte de seu pai e
seu novo nascimento — ao que costumava se referir como auto-nascimento, ou em
alemão, Selbstgeburt.

Foi Tótila uma pessoa de caráter humilde, que alguma vez me reprovou que o mirasse
“de baixo para cima”. “Não está bem” — me disse quando tinha eu uns trinta anos de
idade, “mas eu o tolero porque sei que olhas através de mim”. Tão igualitário era em
seu trato com os amigos e também com os desconhecidos, que por isso sempre se o
chamaba por seu primeiro nome, assim como também ao pai da terapia Gestalt se o
chamava Fritz 7 ou durante o Renascimento se chamaba por seus nomes de batismo a
Leonardo, Michelangelo ou Rafael. E apesar de ser eu uns quarenta anos mais novo
sempre me tratou como um amigo, embora diria eu que sempre o senti como um
profeta ou um pouco como um avô. Poderia aproximadamente dizer que foi para mim
um mestre, mas mais exato que o termo “mestre” me parece o que Don Juan, famoso
mestre de Castaneda 8, utilizava em referência a Don Genaro: um “benfeitor” –
explicando que um benfeitor é quem é capaz de transpassar uma benção sem adotar o
papel de um guia ou de um crítico.
Eu recebi a influência de vários grandes mestres, e marcaram especialmente meu
caminho Oscar Ichazo, emissário da misteriosa escola da que havíamos só tido notícia
até então através da autobiografia de Gurdjieff, e o tibetano Tarthang Tulku Rinpoche,
conhecido como construtor do monastério de Odiyan na Califórnia e por seu trabalho
na preservação do legado dos ensinamentos tibetanos. Foram eles mestres para mim
no sentido tradicional da palabra: guias, transmissores de ensinamentos tradicionais,
pessoas que lhe dizem por onde ir e por onde não ir, e que lhe põe tarefas. Tótila
Albert, por outro lado, foi só uma benção sobre minha vida através de sua
proximidade e a irradiação de sua realização interior, e só retrospectivamente vim a
saber que por sua herança viva havia sido para mim um pai espiritual.

7
Friedrich Salomon Perls (8 de julho de 1893, Berlim, Alemanha - 14 de março de 1970, Chicago,
Estados Unidos) - conhecido como Fritz Perls, médico neuropsiquiatra e psicanalista, foi o criador da
Terapia Gestalt. Depois de fugir da Alemanha nazista em 1933, Perls se estabeleceu em Johannesburgo,
África do Sul, e desenvolveu uma forma de terapia que definia como "psicanálise revisada" e que, mais
adiante, com seu traslado aos EUA, definiria como Terapia Gestalt. Até finais do decênio de 1950 e
começos do decênio de 1960, Fritz Perls se traslada a Califórnia e em 1964 procede a associar-se ao
Instituto Esalen de Califórnia. (http://es.wikipedia.org/wiki/Fritz_Perls).
8
Carlos Castañeda (segundo a revista Time, Cajamarca, 25 de dezembro de 1925 — Los Angeles, 27 de
abril de 1998) - foi um escritor e antropólogo formado pela Universidade da Califórnia em Los Angeles
(UCLA); notabilizou-se depois da publicação, em 1968, de sua dissertação de mestrado chamada The
Teachings of Don Juan - a Yaqui way of knowledge. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Castaneda).
Foi Tótila, apesar de sentir-se um irmão espiritual de Lao Tze e de Jesus de Nazaré,
uma pessoa humilde, e quando (como de costume) se falava de bobagens a sua volta,
se calava e às vezes sorria, sem apresentar-se nunca em forma petulante; mas quando
em certos momentos dizia simplesmente o que pensava, lhes desgostavam a alguns
seus juízos; e assim, por exemplo, quando o acolheu o Chile ao seu regresso da
Alemanha nomeando-o professor extraordinário da escola de Belas Artes, costumava
ocorrer que os trabalhos que a ele chamavam a atenção não fossem aqueles
apresentados pelos alunos favoritos de outros professores distinguidos, e certa falta
de diplomacia levou a que começasse a cair mal a alguns em seu grêmio. Imagino que
assim como Sócrates lhe caiu mal a tantos entre seus contemporâneos como para que
se chegasse a condená-lo, os ressentimentos e rivalidades que surgiram em torno a
Tótila foram um fator para que se fosse isolando do ambiente artístico – embora e
seguramente contribuiu a isso também o que a essa altura de sua vida já não estava
seu interesse principal na escultura senão que na poesia, e também em um desejo
(embora um tanto impotente) de sacudir à sociedade aberrante e tola em que se
sentia viver.

Havia regressado ao Chile depois de viver na Alemanha, graças à providencial ajuda de


seus amigos, absorvido em sua vocação poética. Era muito precária a situação de
sobrevivência na Alemanha para qualquer um em vista da escassez, o frio dos invernos
e a fome, mas aparentemente rodeavam a Tótila amigos convencidos de que a obra
que lhe estava sendo ditada era algo muito grande e misteriosa e que devia ser
protegida, e ademais teve o apoio do Príncipe Real que o reconhecia como um parente
(pois foi Tótila o neto de um meio irmão ilegítimo do famoso Luís II da Baviera). Por
isso podemos imaginar o desolador que foi para ele o contraste entre esta existência
protegida em uma espécie de torre de marfim, e o que seguiu quando apenas horas
antes da declaração da segunda guerra mundial, embarcou Tótila precipitadamente
num dos últimos barcos que saíam para a América do Sul. Uma vez no Chile necessitou
voltar a sua velha profissão de escultor para sobreviver, e é assim como, com o correr
do tempo cheguei a conhecê-lo, pois em torno a minha mãe se havia formado algo
assim como um salão informal no qual se reuniam especialmente músicos.

Em vista do deslocamento de tantos músicos excelentes da Europa, chegavam ao Chile


grandes regentes de orquestra e intérpretes, e se respirava música na casa de minha
infância. Um violinista vienense que era então o concertino de nossa orquestra
sinfônica nacional – Fredy Wang – trouxe consigo a Tótila quando este era recém
chegado ao país, pelo que me parece que seu rosto me houvesse sido familiar desde
criança; só que eu era um menino muito tímido e introvertido, e devo ter sentido que
nada tinha a dizer a nenhum dos importantes visitantes de minha mãe. Só quando
estava já no último ano de humanidades (ao final da década de quarenta, quando
tinha eu uns quinze ou dezesseis anos) Tótila e eu nos falamos pela primeira vez, e
então começou nossa amizade.

Caminhávamos em direções opostas por um dos caminhos no belo parque de Santiago


que rodeia ainda ao museu de Belas Artes – o Parque Florestal – ao lado do qual vivia
ele no sétimo e mais alto dos andares de um edificio, cujo terraço havia coberto de
árvores. Seu pai, que havia chegado da Alemanha no século XIX por convite do
governo chileno, era um naturalista, e não só havia sido o fundador do museu de
ciências naturais, senão que havia trazido a truta à América do Sul, experimentado
com a plantação de árvores de diferentes partes do mundo nas distintas zonas
climáticas de nosso país e havia sido um pioneiro da ecologia antes de que existisse a
palavra. Seu filho, apesar de compartilhar com o pai o amor pela natureza, havia
preferido ser artista.

Nos reconhecemos ao encontrar-nos um dia neste parque enquanto nos


aproximávamos um do outro ao caminhar em direções opostas, e não só reconheci seu
rosto chamativo com uma cabeleira “einsteiniana” em torno a uma tonsura natural,
senão que me reconheceu e saudou de maneira muito amistosa.

-Olá Cláudio! Como estás?

Sendo eu muito monossilábico então, e muito tímido, não soube que mais dizer-lhe do
que “bem, obrigado”.

-Mas, conta-me algo de ti!

E tão interessado parecia em saber algo de mim que me perguntei o que poderia dizer-
lhe, e não encontrei outra coisa que reportar que havia recentemente escrito algo para
a revista do colégio. E como quis então Tótila saber o que, exatamente, havia escrito,
lhe expliquei minha intuição de que assim como havia ocorrido na Europa séculos atrás
esse fenômeno histórico e cultural do Renascimento, teria lugar proximamente um
novo renascimento mais amplo que se originaria nas Américas e não gravitaria em
torno da arte senão em torno da psicologia. Inclusive havia imaginado que o estímulo
para esta nova onda cultural viria da Bolívia (simplesmente porque me havia sugerido
a analogia entre o Altiplano e as montanhas do Tibet).
Nunca, durante minha vida escolar me havia interessado a história, que associava a
professores muito aborrecidos, mas poucos dias atrás havia escrito de uma canetada
um par de páginas acerca desta ideia como movido por uma inusual inspiração, e estas
resultaram de imensa influência em minha vida, não só porque serviram para
estimular minha primeira conversação com Tótila senão porque minha própria
profecia com respeito à Bolívia foi um fator em que devesse prestar atenção, anos
mais tarde, a um mestre até então desconhecido que primeiramente se apresentava
como um sufi e que logo se auto-descreveu como “um emissário da tradição profética
ocidental”: Oscar Ichazo.

Quando terminei de explicar a Tótila o conteúdo de meu breve artigo, moveu a cabeça
pensativamente enquanto me dizia: “Gostaria ser tão otimista como tu!”; pelo qual lhe
perguntei a minha vez: “não pensa que vai ser assim?”

E a isto respondeu com expressão pesarosa: “eu creio que o mundo está tão louco que
se segue assim corre o risco de auto-destruir-se”.
Estávamos ainda na década dos cinquenta, e se alguém já havia expressado esta
preocupação (que desde os anos oitenta em diante tem sido tão presente) não tinha
eu notícias disso; mas não tão somente pelo conteúdo inusitado das palavras de Tótila
senão por algo em sua atitude senti fortemente que estava diante de alguém que
sabia o que dizia; ou, melhor dizendo, simplesmente sabia: era um sábio, cujo saber
não provinha de simples raciocínios ou coisas escutadas, senão de uma fonte mais
profunda. E em virtude desta percepção que talvez não haveria podido explicar tão
explicitamente então como agora, comecei, de certo modo, a segui-lo. Ou, como dizia
então, a “ordenhá-lo”; pois me parecia que com minhas perguntas queria extrair-lhe
esse saber que pertencia a uma consciência diferente à que compartilhamos com o
resto dos mortais, feita de simples impressões sensoriais, raciocínios e opiniões
alheias, e que só imperfeitamente se podia explicar racionalmente, de maneira
semelhante a como um corpo tridimensional só parcialmente pode ser descrito a
partir de sua projeção sobre um plano ou através de um determinado ângulo de visão.
Durante meu tempo no colégio esteve na moda durante um tempo um jogo em que
combatíamos lançando projéteis imaginários sobre certos pontos definidos por
coordenadas matemáticas, tentando afundar barcos igualmente imaginários e
invisíveis para nós no mapa de nossos oponentes. De maneira semelhante sentia eu
que com as respostas de Tótila a minhas perguntas ia se formando em mim uma
imagem do que ele podia ver claramente mas escapava de mim a possibilidade de
percepção simultânea, e tentava assim conceber como compreendia alguém que pode
perceber diretamente certas coisas que ordinariamente não se percebem através do
simples raciocínio.
Quando li o Banquete de Platão me encontrei aí com algo parecido ao que eu sentia
quando Apolodoro explica como ele seguia a Sócrates e aprendia de tudo o que fazia e
dizia, embora se tratasse de algo tão simples como a maneira de amarrar as sandálias.
Diria eu que se foi transformando Tótila para mim em um modelo implícito; só que não
foi ele um que buscasse discípulos, nem lhe haveria agradado que eu me referisse a
ele como um mestre. Ademais, fui eu o único discípulo que teve.

Em sua terra foi Tótila um profeta ignorado, e haveria passado à história como mais
um escultor se não fosse por nossa amizade e porque em vista de meu afã de
compreender sua visão das coisas chegou a me delegar não só seus manuscritos senão
sua missão. Isso ocorreu alguns dias antes de sua morte, durante a última vez que o vi
em sua casa; pois logo depois disso um infarto mesentérico determinou sua
hospitalização e o fim de sua vida.

Chegada a seu fim minha visita, me havia acompanhado amavelmente até a porta,
como costumava fazer nesta época em que por sua hemiplegia já não podia
encaminhar-me até minha casa, e se despediu de mim com as palavras “até logo,
Tótila” em um tom de voz que mais poderia se corresponder a um “nos vemos na
próxima semana” que a um “esta será a última vez que me verás apoiado sobre meus
pés”.
Me deixou desconcertado que me houvesse chamado por seu nome, e em vista de sua
apoplexia de uns anos atrás, me perguntei se acaso por sua condição neurológica se
havia confundido; mas percebendo então minha perplexidade, aclarou minha dúvida:
“Não: agora tú serás Tótila, e eu me vou”.

Lhe disse então que gostaria de poder ser seu continuador, mas que ele era um que
havia morto e renascido, e que eu apenas chegava a compreender essa e outras
experiências suas que não havia conhecido de primeira mão. “Tú és um que se sente
portador de uma mensagem, à que te referes como “a mensagem dos três”; ao passo
que eu, que através dos anos tenho tratado de compreender-te, sigo sem chegar à
experiência de minha trindade interior”. Como, então, poderia ser merecedor de seu
nome?

Me disse então: “Logo te chegará tudo isso! O mais importante é não forçar: tudo te
virá por si só”. E como não parecia satisfeito eu com o que me dizia, agregou: “Só te
falta uma coisa, e esta, desgraçadamente, não necessita ser buscada: o sofrimento”.

Mas como seguia pouco convencido e sem palavras, agregou: “Te chegará aos 37
anos”.

E tinha eu 37 anos de idade quando morreu meu único filho, e creio que nenhuma
outra coisa me poderia haver aberto o coração, pois ali aonde outros tem o coração eu
tinha uma pedra. Era muito intelectual e insensível; muito buscador, sim, mas também
muito limitado e um pouco autista; torpe, também; uma espécie de idiota social, que
entendia as coisas, mas não as vivia.

Desde o dia do acidente em que Matias havia morrido chorava sem parar, e só um mês
depois, de repente me dei conta: “mas tenho os trinta e sete anos que Tótila havia
antecipado!” E coincidiu também neste momento de minha vida com que pouco
depois disso começaria um retiro solitário no deserto próximo a Arica que o outro
mestre que mencionei – Ichazo – me havia prescrito, e que percebi como a ocasião de
dar sentido à morte de meu filho.

Já me havia previsto Ichazo que encontraria no deserto o que buscava, e assim foi, no
sentido que vivi uma iluminação, por mais que depois de alguns anos – como ele
também o previu – perderia essa consciência extraordinária ali conhecida e teria que
recuperá-la sem sua ajuda. E é que, como diz a teologia mística cristã, se deve
atravessar pela “via iluminativa”, e logo pela “noite escura da alma”, antes de alcançar
a fase unitiva do caminho.

Mas me adiantei a um período de minha vida em que já Tótila não vivia, e volto ao
momento em nossa amizade no qual compartilhou pela primeira vez comigo algo de
seu “Ditado Musical.”

Terminada sua epopéia, se havia sentido Tótila como flutuando sem uma finalidade
clara, pois lhe parecia que havia terminado tanto sua obra como seu caminho, até que
alguém – e isto sempre em Berlim – lhe havia trazido de presente um dos últimos
quartetos de Beethoven, que o impressionou muito profundamente. Seguramente,
como pessoa culta e ademais alemã, havia escutado a Beethoven muitíssimas vezes,
mas agora pela primeira vez o escutava com o ouvido de alguém que havia conhecido
de primeira mão a “viagem da alma”, e agora o comoveu sentir que também
Beethoven havia atravessado por um processo interior semelhante ao seu, e havia
conhecido, por exemplo, a consciência intrauterina.
Imagino que escutar a música de Beethoven com novos ouvidos foi para Tótila algo
assim como para Sigfried escutar o canto dos pássaros depois de ter-se banhado no
sangue do dragão. Assim como Sigfried, segundo o mito, pôde então entender a
linguagem dos pássaros, Tótila começou a entender o canto dos músicos, e
imediatamente se lhe tornou tão transparente a experiência íntima de Beethoven, que
concebeu dar-lhe forma a sua nova compreensão através de outra epopéia, que desta
vez não seria a “epopéia do eu” senão uma que chamaria “o tu revelado” – sobre a
viagem interior deste novo irmão espiritual a quem acabava de conhecer.

A obra que tinha terminado havia sido (a diferença da Commedia, em que a


experiência pessoal de Dante se expressa através das formas do simbolismo cristão e
greco-romano) uma epopéia fenomenológica, em que havia dado à sua experiência da
viagem interior uma forma livre de concessões tradicionais, e assim imaginava que
faria com respeito à viagem interior de Beethoven. Mas quando se aprontava para
contemplar cronologicamente a obra musical de Beethoven com a intenção de traduzir
a palavras as correspondentes vivências, e especificamente ao por a agulha de sua
vitrola sobre uma gravação da primeira das sonatas para piano de Beethoven, o
surpreendeu uma experiência aterradora que seguramente foi algo comparável ao
encontro com um fantasma: escutou palavras na música!

Tanto foi seu espanto que deu um golpe ao braço da vitrola para detê-la. Só que logo,
reposto do susto, voltou a escutar; e as palavras voltaram. Mas logo ao explorar o
fenômeno, decidiu que deixaria de lado sua ideia inicial de “interpretar” a música de
Beethoven. Em vez de por em palavras sua percepção direta das vivências do
compositor, simplesmente receberia o “ditado” da música. (E daí que posteriormente
se referiria ao corpo de obras que produziu desta maneira como o “Ditado Musical”).

Ficou interrompida essa obra, entretanto, quando Tótila, um dia antes de declarar-se a
segunda guerra mundial, partiu rumo ao Chile no último barco que saía de Hamburgo.
Havia deixado atrás seus pertences e inclusive suas obras na emergência, e deve ter se
sentido um pouco como um náufrago, ademais de sentir-se desolado pela guerra, pois
era um homem muito solidário. (Quando o conheci me pareceu um novo Jeremias por
quanto se comovia dia a dia apenas ao ler o jornal, e diria inclusive que já nesse tempo
havia chegado a constituir uma paixão dominante sua a vontade de despertar a quem
ia encontrando em direção à visão de um mundo melhor).

Retrospectivamente posso dizer que foi Tótila o primeiro crítico da sociedade


patriarcal, pois Bachofen 9, quem havia descoberto nosso passado matrístico, havia
concebido a sociedade patriarcal como um passo adiante na história. E tal tem sido a
visão convencional, já que falar de sociedade patriarcal é falar de “civilização”: com o
que se alude ao tempo quando surge o calendário, começa a escrita, nascem as

9
Johann Jakob Bachofen (1815 – 1887) foi um jurista e antropólogo suíço. Bachofen se tornou um
importante precursor das teorias do século XX sobre o matriarcado, tal como a teoria da Antiga Cultura
Européia postulada por Marija Gimbutas nos anos 50 e o campo da teologia feminista e dos "Estudos
sobre Matriarcado". (http://pt.wikipedia.org/wiki/J._J._Bachofen).
grandes religiões e as grandes cidades, com suas obras monumentais – uma vez que
não havia sido descoberto todavia que (como agora sabemos pela arqueologia) foi
nessa mesma época em que nasceram a escravidão, as guerras e a injustiça social.

Tótila considerava que o patriarcado era o mal fundamental da sociedade, e albergava


uma visão alternativa consequente com tal diagnóstico. Sua visão a respeito era
semelhante à de Gurdjieff 10, a quem nunca conheceu e que predicava a necessidade
de educar seres “tricerebrados” nos quais houvesse harmonia entre intelecto, emoção
e vontade; só que se referia a nossas partes ou componentes interiores como “pai”,
“mãe” e “filho”. E assim como Gurdjieff pensava que o problema fundamental dos
humanos era a desunião entre seus três cérebros, para Tótila o mal fundamental era o
desequilíbrio interior das pessoas induzido pelo domínio patriarcal na sociedade.

Já estabelecido no Chile, voltou a escrever poesia, e principalmente poesia política, já


que o Ditado Musical que havia sido interrompido se ausentou durante muitos anos
algo assim como um aborto: um processo natural que já não poderia continuar. Pude
ser testemunha, entretanto, de como chegou a reiniciar-se este processo – já não com
Beethoven senão com Schubert.

Já enquanto estava dedicado ao trabalho com Beethoven em Berlim havia escutado a


Inacabada de Schubert, e lhe havia chamado a atenção que se lhe houvesse
apresentado a visão de um sacrifício asteca. Como explicá-lo? A imagem era de um
jovem que se havia preparado uma vida inteira para ascender à pirâmide dos
sacrifícios, aonde um sacerdote lhe arrancaria o coração para oferendá-lo ao sol (tal
como se fazia na antiguidade, antes que os Astecas começassem a sacrificar
prisioneiros de guerra). Esta estranha imagem havia deixado a Tótila com a impressão
de que na música de Schubert havia um significado que se poderia “auscultar” (como
chamava ele ao tipo de escuta que lhe havia permitido aceder ao ditado de
Beethoven). Mas passaram-se muitos anos antes de que começasse Tótila a
“auscultar” a Sinfonia Inacabada, e comprovasse assim sua intuição de que também de
Schubert poderia receber um ditado. Compreendeu também então a aparentemente
estranha imagem que se havia apresentado em Berlim, pois o texto que fluiu de sua
exploração refletia a experiência do sacrifício em Schubert, quem havia escolhido ser
fiel a sua vocação musical apesar de que esta houvesse implicado para ele uma vida de
pobreza. Descobriu assim, através de sua exploração da “Inacabada” o heroísmo de
Schubert, tão diferente do heroísmo beethoveniano agressivo; o heroísmo de uma
pessoa terna que ante a agressão, a desolação e as ameaças apenas “oferece a outra
face”.

Logo se informou Tótila acerca da vida de Schubert, e soube que a pobreza do


compositor chegava ao ponto de que não tivesse às vezes sequer o papel pautado em
que escrever sua música, pelo que não era raro que escrevesse nas toalhas de papel

10
Georges Ivanovich Gurdjieff (Império Russo, 1866 - Neuilly-sur-Seine, 1949) - foi um místico e maestro
espiritual armênio. Ensinou a filosofia do autoconhecimento profundo, através da lembrança de si,
transmitindo a seus alunos, primeiro em São Petersburgo, depois em Paris, o que aprendera em suas
viagens pela Rússia, Afeganistão e outros países. Gurdijieff foi quem introduziu o conhecimento do
eneagrama no ocidente. (http://es.wikipedia.org/wiki/Gurdjieff).
das tavernas, e que tampouco teve sempre um piano, e que teve que renunciar
inclusive à mulher que amava por não poder oferecer-lhe a segurança econômica
requerida por seus pais.

Logo passou Tótila a interessar-se em Schumann, que havia descoberto a Schubert e


dado a conhecer suas obras mais importantes; e em Schumann não só se encontrou
com outro que havia conhecido a transformação interior, senão que alguém cujo caso
punha em evidência algo assim como o fenômeno de uma “linhagem musical”: não só
uma mera cadeia de influências, senão que uma continuidade mais profunda da
consciência através das gerações. Ademais, no ditado que recebeu Tótila em tal
ocasião (de duas de suas sinfonias e outras obras) estilísticamente característico,
aparecia pela primeira vez um “personagem”: o arquétipo de Lucifer, o anjo caído que
anseia retornar à sua origem divina.

Aonde seguir, depois de Schumann? Era natural que Tótila se interessasse agora em
Brahms, a quem Schumann havia estimado tanto; só que Brahms nunca havia
chamado a atenção de Tótila, que inclusive havia albergado contra este uma atitude
preconceituosa ao fazer sua a opinião de que Brahms era um “epígono”: um imitador
falto de originalidade. Mas pude ser logo testemunha, em vista de nossa já estreita
amizade, de como ao começar Tótila a escutar a Primeira Sinfonia de Brahms,
encontrou ali um mundo insuspeitado.

Mas passemos já à escuta musical, começando pela introdução ao primeiro


movimento desta sinfonia, que leva o número de Opus 68.

Escutemos primeiro apenas alguns compassos, para logo tentar traduzir em palavras
algo acerca de seu caráter.

Brahms – Sinfonia No. 1 em Dó menor, Op.68 – 1º movimento

Desde os primeiros acordes, sentimos que entramos em uma obra monumental, cujo
conteúdo não é este ou aquele, senão o próprio Todo – o cosmos. Sentimos uma
massa sonora que pulsa, e a melodia indica um movimento expansivo.

Ouçamos este fragmento inicial uma vez mais.


Brahms – Sinfonia No. 1 em Dó menor, Op.68 – 1º movimento

Diríamos que se trata de uma progressão pesante, de modo que a pulsação rítmica e o
gesto expansivo da melodia nos impressionam como uma lenta dilatação progressiva
que sugere uma pressão que se vai exercendo com esforço contra uma grande
resistência.

No texto de Tótila, a voz que acompanha a esta melodia inicial é a da Noite Original
(Urnacht), e se dirige ao Espírito do Mundo (Welt Geist) cantando:

“Espírito do mundo,
que pesadamente carrego em mim
desde que a divinidade dorme em meu seio,
se adivinha criatura
no espaço e no tempo,
e com prazer e dor
anseia sair de mim”;

São as palavras “sair de mim” as que acompanham esse gesto explosivo na música que
talvez já esperássemos depois da trabalhosa expansão que viemos acompanhando ao
som dos golpes regulares do tímpano, e que provavelmente nos sugere implicitamente
a forte batida do coração durante um parto.

Mas se a música nos sugere fortemente um parto, também evoca em nós algo de
proporções cósmicas, e a conjunção de ambas as coisas evoca para nós algo assim
como um parto universal, uma cosmogênese ou “Big Bang”.

Todas as culturas tem seus mitos da criação. Mas, porque? Os antropólogos, um tanto
primitivamente, tem opinado que, porque os primitivos não entendem o universo
imaginam histórias para explicar sua origem; mas mais provável me parece que as
cosmogonias sejam a expressão de uma experiência humana extraordinária: um
nascimento da mente individual a uma dimensão cósmica que poeticamente se pode
apresentar como o nascimento do cosmos mesmo. E diria que é precisamente o
nascimento de Brahms a essa dimensão cósmica o que principalmente expressa este
começo de sua 1ª Sinfonia – só que tais eventos não são de natureza individual – e por
isso quem canta sua própria experiência canta também uma experiência humana
universal (pelo menos em potência).

Agora é o Espírito Universal (o Pai Cósmico, digamos) que responde à Noite Original:
“Conta!” – lhe ordena; e depois que a noite conta “um, dois e três”, determina:
“Suficiente!”
Vejamo-lo agora em um fragmento de vídeo que mostra o texto até agora reportado
em sincronia com a música correspondente:

Um dos mais antigos textos da tradição cabalista – o Sefer Yetzirah – diz que Deus
criou o mundo com números e com letras, e assim sucede no presente texto, em que
com o contar até três nasce a alma. Em seguida lhe ordena o Espírito à alma que
conte, e ela agora vai desde o um até o sete, que é a cifra (explica o Espírito) “que
transforma o criador em criatura”.

Eis aqui o correspondente fragmento do ditado, e algo mais, até o fim da introdução –
agora sem mais explicações.

Não sei quantos entre os que lêem estas páginas já se encontraram com os números
três e sete. Por suposto, toda a literatura mística está cheia deles, mas muito
especialmente se fazem presentes na figura geométrica do Eneagrama, procedente de
um misterioso esoterismo cristão que se diz que foi cultivado especialmente no
Afeganistão e do que explica Gurdjieff (quem foi o primeiro em mencioná-lo) que
alude a duas leis cósmicas designadas precisamente como “a lei do três” e “a lei do
sete”.
Em vista disso mostrei esta página a Oscar Ichazo, quem no ano de 1970 deu a
conhecer publicamente no Chile as primeiras informações acerca da aplicação do
Eneagrama à personalidade. Seu comentário de que Tótila havia sido um dos “santos
invisíveis” e o portador de uma revelação me parecem interessantes de consignar
aqui, particularmente em vista das condições de santo invisível e de portador de uma
revelação que são precisamente as que no curso deste capítulo atribuo a Brahms –
com quem Tótila tão profundamente se identificou.

Mas salto agora ao quarto movimento, com que termina esta sinfonia, e cuja
composição aparentemente necessitou esperar a morte do pai do compositor.

Começa este com algo semelhante a um Ai! – um rasgo de dor, que poderíamos
interpretar como a dor do mundo ante a experiência universal da morte.

Brahms – Sinfonia No. 1 em Dó menor, Op.68 – 4º movimento – c.1-3

Podemos interpretar o que segue como parte do proceso da dor, que ao começo é um
estado de desolação. Escutamos em primeiro lugar nesta música a vivência da morte
que se associa às tumbas e ao tétrico, à depressão, à escuridão, ao empobrecimento e
ao sobressalto – como no encontro com o fantasmagórico.

Brahms – Sinfonia No. 1 em Dó menor, Op.68 – 4º movimento – c.6-12

Há também a saudade do que se perdeu,


Brahms – Sinfonia No. 1 en Dó menor, Op.68 – 4º movimento – c.12-15

Mas chega um momento em que o sofrimento e a desesperação desembocam na


conexão com algo superior, como se em meio à desolação se abrisse o Céu.

Brahms – Sinfonia No. 1 em Dó menor, Op.68 – 4º movimento – c.20-29

E ao seguir escutando, nos parece como se uma voz celestial infundisse esperança ao
que está em dor, e isso o deixara em paz.
Brahms – Sinfonia No. 1 em Dó menor, Op.68 – 4º movimento – c.30-46

Os trombones agora parecem comunicar a paz dos mortos, ou uma intuição da


eternidade.

Brahms – Sinfonia No. 1 em Dó menor, Op.68 – 4º movimento – c.47-51

Esta paz, entretanto, se encaminha em direção a algo novo, que nos faz sentir que um
estado interior está por desembocar no canto.
Brahms – Sinfonia No. 1 em Dó menor, Op.68 – 4º movimento – c.51-60

E por fim escutamos o canto anunciado, que é um canto à plenitude, e desde a


plenitude. Costumo chamá-lo “o Canto do Bodhisatva”, em referência à concepção
Mahayânica de que aquele que termina seu caminho se torna um salvador, que se
ocupa de ajudar aos que ainda trabalham por sua liberação.

Brahms – Sinfonia No. 1 em Dó menor, Op.68 – 4º movimento – c.61-77

Estou convencido de que foi principalmente esta melodia o que levou a que, na estréia
desta sinfonia, o público vienense reconhecesse a Brahms como o continuador de
Beethoven. E me parece que embora tenha certa semelhança entre esta e a do
movimento coral da 9ª de Beethoven, a semelhança mais significativa entre ambas
seja vivencial: em ambos casos nos parece escutar mais que a voz do compositor, a voz
de um “nós” – ou a voz, poderíamos também dizer, de alguém que se tornou um
portavoz de “todos nós” por seu profundo sentido de identificação solidária com a
humanidade.
Depois de terminar Tótila seu trabalho com a Primeira Sinfonia de Brahms, procedeu a
“auscultar” a Segunda, e logo a Terceira e a Quarta; e depois trabalhou no Concerto
Duplo para Violino e Cello – uma obra de dimensões sinfônicas que segundo seu
ditado musical representa ainda outro salto de nível de consciência, expresso como
um atravessar o arco-íris. E abordou também Tótila o Primeiro Concerto para Piano de
Brahms, seus três Quartetos de Corda, o Quinteto para Clarinete e Cordas, o Trio para
Clarinete e o Trio para Trompa; um conjunto de obras cujo mero número revela a
medida em que Tótila se sentiu próximo de Brahms – em quem via alguém que havia
realizado “a harmonia dos três” da maneira mais exemplar, sem outro estímulo que
aquele que a natureza nos oferece através da experiência da morte de nossos seres
queridos.

De todas estas obras, entretanto, só me deterei aqui no Primeiro Quarteto de Brahms


(Op. 51. Número 1), por sua relevância a seu nascimento espiritual.

O fato de que ao escrever este quarteto (composto pouco depois da morte de sua
mãe) Brahms destruísse muitos outros que havia composto anteriormente nos induz a
pensar que sentiu tal mudança em sua compreensão musical que não quis que
passassem à história como obras suas todas aquelas de menor maturidade. Compôs só
três quartetos Brahms a partir de agora, e por agora citarei só um pequeno fragmento
do começo de seu primeiro movimento.

Brahms – Quarteto de Cordas No. 1 em Dó menor, Op.51, n.1 – 1º movimento – c.1-7

Se queremos traduzir em palavras o caráter expressivo desta melodia, diríamos, em


primeiro lugar, que já sua tonalidade menor nos sugere sofrimento e não alegria, e que
a combinação de seu tempo rápido com seu padrão rítmico nos transmite um
sofrimento agitado, desesperado. Já a repetição variada de um fragmento melódico na
porção final desta melodia nos faz sentir como se alguém perguntasse algo em atitude
de protesto insistente.

Brahms – Quarteto de Cordas No. 1 em Dó menor, Op.51, n.1 – 1º movimento. – c.1-7

O texto de Tótila a esta primeira frase – “Warum hast du mich verlassen” – que
traduzido ao castelhano significa “porque me abandonastes”, se pode entender como
uma pergunta doída que dirige Brahms a sua mãe em tom de reclamação.
Logo, como se aquele que perdeu a sua mãe não sabe em sua dor se voltar-se contra
Deus mesmo, sendo a mesma vontade divina responsável pela sua dor, a continuação
do texto diz: “Não o posso compreender. E Deus, odiá-lo?”

Responde agora a este primeiro pensamento musical um pensamento musical


contrastante, que nos parece expressar consolo:

Brahms – Quarteto de Cordas No. 1 em Dó menor, Op.51, n.1 – 1º movimento – c.11-15

É como se alguém dissesse ao que se lamenta tão agitadamente: “conforma-te,


homem, assim é a vida e já se te passará…”

Mas mais exatamente o insta a voz consolatória a “consolar-se com os que vivem” e a
não cair em uma atitude reclamadora: “Mantém-te entre os que dão, que muitas
vezes são culpáveis os que tomam”.

E é que enquanto não tivermos atravessado a grande transformação somos todos uns
“mamões”, fixados na atitude infantil de pedir amor. Por isso não só o consola esta voz
de sua intuição espiritual, senão que ao aconselhar-lhe sabiamente que “se ponha
entre os que dão”, o convida à vida feliz, que é a do amor e não a da reclamação.

Se escutamos o primeiro movimento inteiro depois desta introdução, se nos fará


manifesto como através da repetição variada e especialmente através da variação
harmônica deste material musical se nos vai tornando manifesta uma transformação
da atitude, que vai desde o reclame desesperado até o gozo e a plenitude. Só citarei a
coda cujo final, sugere um orgasmo.

Brahms – Quarteto de Cordas No. 1 em Dó menor, Op.51, n.1 – 1º movimento – coda

Mas passo agora ao segundo movimento, que leva como encabeçamento “Romança”,
e que poderia dizer-se (segundo o texto de Tótila Albert) a expressão dessa
primeiríssima fase do nascimento espiritual que se pode conceber como um
nascimento da vida embrionária, que precede ao nascimento propriamente dito e que
na tradição cristã se celebra como a “concepção”. Podemos concebê-la como a
fecundação da alma humana pelo divino.
No texto de Tótila Albert se corresponde esta música com a cena (tão frequentemente
tratada pelos pintores renascentistas) da anunciação a Maria.
Cito agora algo do ditado correspondente:
Continua o processo de encarnação do espírito no movimento seguinte, que
corresponde ao trabalho de parto: uma espécie de purgatório em que o indivíduo se
sente avançar trabalhosamente em direção a seu nascimento:

Brahms – Quarteto de Cordas No. 1 em Dó menor, Op.51, n.1 – 3º movimento – c.1-8

O esforço e a espera de quem avança por este purgatório de forte ressonância


prenatal não só se vêem compensados pelo saber-se avançando, senão que alternam
os períodos dolorosos das contrações com períodos de repouso que implicam uma
gozosa esperança.

Brahms – Quarteto de Cordas No. 1 em Dó menor, Op.51, n.1 – 3º movimento – trio - c.1-24
Culmina o quarteto, por fim, no nascimento propiamente dito, do qual citarei apenas a
primeira página do ditado correspondente:

Lhe resultará familiar o âmbito vivencial a que alude, segundo Tótila Albert, este
primeiro quarteto de Brahms a quem se tenha familiarizado com as investigações de
Stanislav Grof, que durante seus anos em Praga dedicados à exploração dos efeitos do
LSD, descreveu aquilo que denominou as “matrizes perinatais”: estados interiores que
aludem a situações pelas quais todos atravessamos no curso de nosso nascimento
biológico mas que se tornam referentes simbólicos para processos pelos quais
atravessamos também durante nossa vida adulta.
No primeiro capítulo de meu livro Cantos do Despertar arguí que não só é válido falar
de “estados” ou “matrizes” perinatais, senão que também de etapas perinatais que se
apresentam no curso de nossa “viagem interior” (e que tipicamente se correspondem
com etapas da viagem xamânica de que tantas versões pessoais tem recolhido os
antropólogos). Começa esta com o ascenso aos céus (que se pode entender como a
regressão ao gozo intrauterino que conhecemos antes de que começassem as
contrações do parto), segue com o descenso aos infernos e logo com a transformação
do inferno em purgatório quando, com a dilatação do colo uterino, a necessidade de
abandonar o seio materno se transforma em uma experiência de progresso através do
canal do parto. Por último, se completa a viagem, depois de uma “fase vulcânica”
explosiva, no “estado do recém nascido” – que miticamente se traduz em um retorno
à terra e fenomenologicamente na chegada a um novo equilíbrio psíquico.

Pode alguém se peguntar que validez tem esta interpretação que lhes estou
oferecendo da música através da inspiração artística de Tótila Albert, o que equivale a
perguntar-se se o conteúdo deste “Ditado Musical” tenha sido puramente a projeção
de experiências espirituais pessoais do poeta.
É válido pensar que a música constitui um registro das experiências profundas do
compositor? E em tal caso estaria certo Schumann ao dizer de Brahms que era “aquele
a quem esperávamos”; quer dizer, não simplesmente um grande talento senão que
uma consciência extraordinariamente evoluída?

Hoje em dia temos um dado mais, eu vim a sabe-lo uns vinte anos atrás quando em
um congresso em Viena, me encontrei com um personagem muito conhecido lá por
então – o Conde de Keyserling, filho de outro famoso Keyserling de quem havia lido
alguns livros em minha juventude e que havia criado uma “escola de sabedoria”. Este
seu filho – Arnold – ensinava então matemáticas na universidade de Viena; e porque
representava a rama Européia da Association for Humanistic Psychology foi em uma
das reuniões da mesma que nos havíamos encontrado. Apareceu Brahms em nossa
conversação, e me disse: “Não lestes a entrevista que fizeram a Brahms, que só agora
se publicou? Nada sabia eu desta entrevista que só agora aparecia porque Brahms
havia aceitado responder à pergunta acerca do “segredo de sua música” com a
condição de que não se publicasse tal entrevista antes de passados cinquenta anos
depois de sua morte.

Agora já se publicou essa entrevista e a li. O entrevistador, um senhor Abell, americano


que entrevistou a muitos músicos de sua época, quis saber de Brahms qual era “o
segredo de sua música”, pois tinha muito claro que a música de Brahms era diferente
de todas as demais de sua época. Brahms lhe perguntou por sua vez o que entendia
pela Musa à qual invocavam Homero e Virgílio ao começo de seus poemas, e à
resposta do Sr. Abell de que se tratava de uma figura literária que usavam os gregos
para falar da experiência da inspiração Brahms lhe respondeu rotundamente que não
se tratava de uma mera figura literária. Ele vem a explicar em certo modo mais
adiante, quando pergunta agora a seu entrevistador: “que entende o senhor quando
Jesus disse: “o Pai e Eu somos um só”?
Este, segundo Brahms, era o segredo de sua música – e isso implicava que não era na
verdade sua música. Para ele estava muito claro que a música era uma criação divina,
se tratasse de Beethoven, de Mozart, Schubert ou outros grandes criadores, e pensava
que a mesma força que podia expressar-se em fazer milagres se expressava também
no milagre criativo. Este testemunho de Brahms de haver tido acesso a uma conexão
com algo além da esfera propriamente humana é algo que seguramente não haveria
sido possível de documentar, em vista de sua extremada modéstia e reticência à
intimidade, exceto como algo destinado à posteridade, e confirma o que aqui venho
desenvolvendo sobre a fonte espiritual da música dos grandes compositores clássicos.

Em Beethoven se nos torna mais visível o fenômeno de uma inspiração supra-pessoal


em vista de que o caráter algo arrogante do compositor o levou a adotar (pelo menos
durante boa parte de sua vida) uma atitude algo titânica: ele se sentia tão próximo de
Deus que o levava a não tratar muito bem aos simples mortais, e a reclamar os
privilégios de um gênio. Brahms, por outro lado, foi alguém que viveu muito
secretamente sua experiência criativa, ante os demais ria um pouco de si mesmo e
falava humildemente de suas obras. (Quando enviou, por exemplo, seu Segundo
Concerto para Piano a uma amiga pianista lhe disse desta obra sublime e de
profundidade universal: “terás bastante exercício para teu pezinho direito”). Diria que
lhe dava muita vergonha enaltecer-se, e por isso passava de bom burguês. Mas não só
sua música e sua influência sobre nós permite intuir a profundidade espiritual de
Brahms, também o poderia fazer suspeitar sua rara generosidade, pois era esta uma
generosidade desinteressada, e são poucas as pessoas cuja generosidade é
desinteressada, sendo muito mais os que dão para receber, ou que dão para serem
apreciados, ou pelo menos para inspirar gratidão. Só quando morreu Brahms, uma
série de pessoas que haviam estado recebendo dinheiro em suas contas bancárias sem
suspeitar que fosse Brahms seu benfeitor, deixaram de recebê-lo, e só então se deram
conta de que havia sido de Brahms de quem provinham tais presentes. Também foi
notável a generosidade de Brahms com Dvorak quando ainda não havia chegado a ser
célebre e trabalhava como mestre de escola. Brahms copiou a mão uma de suas
sinfonias para dá-la a conhecer em Viena, de modo que não só foi generoso seu desejo
de ajudar a seu genial colega, senão que também à postergação de sua própria
atividade criadora ao entregar-se ao laborioso trabalho de copiar uma partitura
sinfônica.
Talvez com o que expliquei acerca da generosidade e humildade de Brahms possa
compreender-se melhor que o haja chamado um santo invisível, e que haja celebrado
o fato de que houvesse podido viver uma inspiração tão profunda sem que se lhe
notasse – o que por sua vez implicou que não “lhe subisse o fumo à cabeça” – como se
costuma dizer com respeito à húbris.
Uma humildade tão profunda frente a sua criação me parece uma prova do muito
longe que chegou Brahms em seu trajeto espiritual, e me confirma também o que
Tótila Albert, que se havia sentido um discípulo de Beethoven, chegasse a sentir a
Brahms como o compositor mais próximo a seu próprio espírito.
Dizia Tótila que ninguém como Brahms havia alcançado a harmonia dos “três
princípios” – o paterno, o materno e o filial – e se identificava ademais com ele porque
seu despertar havia sido precipitado pelo mais natural dos estímulos: a morte dos
seres queridos. Se sentia também irmanado a Brahms por seu “sentido do nós todos”
– esse sentir empático pela humanidade já alcançado por Beethoven em sua Nona
Sinfonia, que em Brahms encontra continuação e desenvolvimento.

Em meu próprio trabalho teórico, terapêutico e educacional, tenho desenvolvido a


ideia de que as três pessoas interiores que segundo Tótila integram (ou deveriam
integrar) nossa psique se caracterizam por três formas diferentes do amor,
correspondendo-se o amor compassivo e benévolo a nosso aspecto materno, o eros
ou amor instintivo a nossa “criança interior” (que coincide também com nosso aspecto
animal mais arcaico) e o paterno ao amor apreciativo, que se manifesta no sentido dos
valores e na devoção. Traduzindo a estos termos a afirmação de Tótila de que Brahms
alcançou uma exemplar “harmonia dos três”, me parece que podemos, por uma parte,
dizer que em sua música se expressa a mais rica paleta de formas do amor, e também
que em contraste com os clássicos que lhe precederam, que foram comparativamente
mais patriarcais e nos quais prevaleceu o devocional-sublime e o erótico-gozoso,
culmina em Brahms a presença do materno.
Particularmente se faz sentir a presença do amor materno em direção ao fim da vida
de Brahms, nas obras para clarinete (das que direi algo em um próximo capítulo) e nos
intermezzi para piano.

Como um novelista que se dedicasse ao fim de sua carreira a escrever contos curtos,
Brahms o sinfonista escreveu próximo ao fim de sua vida muitas composições breves
para piano que nos parecem como um destilado de seu espírito, e de muitas delas se
pode dizer o que torna explícito Brahms a propósito de uma delas, Op.117, No.1
através de uma citação poética recolhida por Herder de um cancioneiro escocês, que
alude ao ato imaginário de embalar maternalmente à própria criança interior ferida.

Schlaf sanft mein Kind,


schlaft sanft und schön!
mir dauert´s sehr,
dich weinen sehn.
Como na famosa Canção de Berço, o velho Brahms alcança uma serenidade que lhe
permite reviver a saudade amorosa desde uma distância psíquica que faz com que
suas velhas paixões sigam vibrando nele sem tirar-lhe o repouso, e a presença desta
distância dá a estas obras um caráter característicamente outonal. Mas não é só
serenidade o que estas peças para piano nos comunicam, senão que o amor por si
mesmo – uma capacidade de auto-maternagem compassiva que nos ensina a amar-
nos a nós mesmos sem que sequer o saibamos, e que agora em sua maturidade lhe
permite prescindir do amor de mulher ao que durante toda a vida renunciou por causa
de sua arte.
9 Sobre o coração da música

O conteúdo deste capítulo, apresentado originalmente em uma conferência 1, foi


originalmente anunciado como "O coração da musicoterapia" — embora com certa
vacilação em vista de que era de se esperar que entre os muitos musicoterapeutas em
meu auditório estivessem representadas teorias diversas e não me parecia que
houvesse sido sequer mencionado na literatura profissional o miolo de minha própria
teoria de porque a música não só nos agrada senão que nos faz bem: porque nos
convida ao amor.

Por isso comecei aquela conferência perguntando aos presentes o que pensavam
acerca do efeito benéfico da música aparte da musicoterapia. Pois embora a
musicoterapia seja uma prática recente, creio que possa considerar-se uma
profissionalização de algo que tem sucedido sempre espontaneamente com a música.
Poderia se dizer que a música sempre tem um efeito benéfico sobre as pessoas; e não
esqueçamos que muito antes de que aparecessem os musicoterapeutas, já o jovem e
futuro rei David tirava com sua harpa as dores de cabeça ao rei Saul.

Comecei, mais especificamente, por perguntar quem entre os que ali estavam
pensavam que a música não só servisse para induzir momentos transitórios de prazer
estético, senão que para fazer-nos melhores, ou talvez para estimular nossa evolução
espiritual, constituindo algo assim como um alimento — e estive muito contente de
comprovar que a grande maioria do numeroso público levantou a mão.

Muitas vezes digo que penso que a música se compreende pouco quando se a
considera só como um fenômeno estético, e que ao haver “estetizado” a música se a
reduz desde sua verdadeira dimensão, que é muito maior que a daquilo que se nos
aparece como meramente “beleza”. Por isso, se é certo que a música nos faz bem, é de
interesse que nos perguntemos porque; e querendo nessa ocasião recolher algumas
ideias de meu público antes de oferecer minhas próprias respostas, segui
interrogando-o.

Porque será certo isto de que a música ajude à vida, ou ajuda a nossa mente, ou —
para dizê-lo em uma linguagem mais atual — seja “terapêutica”?

Se disse que a música “transmite força”, que “o belo é bom”, que a música “exerce um
efeito biológico de aglutinar grupos”, que “acompanha aos sentimentos” (ao que
agreguei que “nos faz conscientes das emoções, operando como um espelho que nos
faz dar-nos conta melhor do que nos passa”). Alguém disse, também, que a música
“põe em contato com algo mágico, além do conhecido”, que “é uma sublimação da
angústia”, que “comove” (ao qual meu comentário foi que para os indiferentes já seria

1
Parte do pequeno congresso anunciado como “Diálogos Sobre a Música”, que teve lugar no Palácio de
Congressos de Vitória com Fernando Palacios e Ramón Andrés por iniciativa de Patxi del Campo e sob os
auspícios de sua escola de musicoterapia.
bastante comover-se, mas que haverão seguramente outros que estão já demasiado
comovidos, e a eles a música poderia fazer-lhes mal, se seu efeito só fosse esse).

Se disse também que a música nos leva a “encontrar-nos a nós mesmos”, e propus que
isso se poderia também entender como referência a que nos encontramos com algo
que é mais universal que nossa experiência meramente individual, ao expressar a
música algo que está em nós mas além de nosso “eu” cotidiano. Se disse também que
pelo fato de desenvolver-se no tempo, poderia talvez a música constituir uma analogia
de nossa vida, que também se desenvolve no tempo, e de alguma maneira convidar-
nos a considerar como nos movemos.
E disseram também outras coisas, como que a música “nos põe em sintonia com uma
harmonia”, que deixava aberta a pergunta acerca da natureza de tal harmonia, que
certamente não era a mesma coisa que o que denota esta palavra no léxico técnico da
musicologia.
Por fim cheguei a me considerar satisfeito de que a teoria que havia proposto expor
não era algo banal, e que o que podia considerar o que não houvesse sido enunciada
no percurso de um bom tempo de escutar aos entendidos podia ser suficiente como
para sustentar minha pretensão de que o que me propunha dizer, não sendo a
resposta mais popular a minha pergunta, merecia ser considerado algo original. Só
então, havendo de certo modo exorcizado minha preocupação de dizer alguma
trivialidade, declarei minha convicção de que na escuta musical opera uma cura pelo
amor.

Diz-se frequentemente que a música expressa emoções, se tem explicado até certo
ponto como o faz e se tem formulado teorias a respeito. Mas Leonard Meyer 2, autor
do primeiro livro sistemático acerca desse tema, faz uma observação que me parece
muito pertinente ao dizer que se a música somente expressasse as emoções cotidianas,
pouco nos interessaria. E estou de acordo nisso. Se só refletisse a música nosso sentir
ordinário, seria boa para acompanhar desenhos animados e até como
acompanhamento da dança, contribuindo em forma importante ao impacto expressivo
das correspondentes imagens visuais, mas não se sustentaria tal música por si só —
pois nossas emoções ordinárias não são tão interessantes sem uma perspectiva que
lhes preste um conteúdo adicional. Mas a grande música sim que nos eleva por cima
das emoções cotidianas, e nos convida a viver outro nível de nossa vida afetiva, que
podemos chamar o das “emoções superiores”.
Tal é o tema ao qual podemos, alternativamente, referir-nos como o tema do amor —
pois uma coisa é o amor que se expressa como quem representa um papel, e outra
coisa o amor verdadeiro, que escasseia no mundo cotidiano por mais que não
reparemos que a maior parte das expressões de afeto na vida das pessoas são
bastante superficiais e no fundo falsas — como as palavras ou gestos vazios.
Mas antes de prosseguir com o tema do amor na música, quero dizer umas palavras
acerca de uma visão do amor que tampouco está nos livros: uma “teoria do amor”,
poderia se chamar, que também poderia aspirar a constituir uma teoria da felicidade.

2
Leonard B. Meyer (Janeiro 12, 1918 – Dezembro 30, 2007) - compositor, escritor e filósofo. Contribuiu
com trabalhos no campo da estética e teoria da música.
(http://en.wikipedia.org/wiki/Leonard_B._Meyer).
Começarei por dizer algo que não recordo haver escutado, mas que me parece
importante de compreender e que talvez seja óbvio uma vez que se o assinala: que a
saúde mental é um estado feliz e amoroso. Em outras palavras: quando nos sentimos
bem, estamos manifestando nosso potencial amoroso; e quando, ao contrário,
estamos na neurose, — ou no samsara, ou como quer que se chame o estado de
relativa inconsciência no qual costumamos viver — nos sentimos sedentos de amor,
mas não estamos exercendo-o ou dando-o. E não o estamos oferecendo justamente
porque o estamos buscando.

Basta com perguntar-se que é o amor para dar-se conta de que ele não é algo a que se
possa responder facilmente. E é que esse estado de graça que é o amor é algo
comparável à luz branca antes que se quebre em um prisma produzindo as cores do
arco-íris.
Assim como se pode falar até certo ponto desta ou tal outra cor, mas não da luz clara
ou luz pura, podemos falar de tal ou qual qualidade ou aspecto do amor, e reconhecer
no amor certas dimensões, tal como reconhecemos que a infinidade de pontos
possíveis no espaço podem se caracterizar em função de apenas três dimensões: a
largura, a altura e a profundidade.
Algo semelhante ocorre com as cores. Só temos três receptores para as cores na
retina, e isso nos permite ver toda a rica variedade de cores do mundo. E algo
semelhante ocorre na fotografia: basta com três ingredientes básicos, a partir dos
quais se podem criar todos os demais por meio de mesclas.
Analogamente, penso que o que chamamos amor consiste em três tipos diferentes de
amor (que são como as dimensões do espaço ou as cores primárias) e infinitas mesclas
ou combinações entre eles.
Como seres tricerebrados que somos, está dotado nosso cérebro de uma parte arcaica
que às vezes se tem caracterizado como um “cérebro reptiliano” ou um cérebro
instintivo; de um cérebro médio (que como Rof Carballo descreveu a meados do
século passado, tem relação com nosso mundo emocional e que MacLean através de
estudos sobre a evolução do sistema nervoso propôs que herdamos dos mamíferos), e
de um cérebro propriamente humano — o neo-córtex — estreitamente relacionado
com a função intelectual.
Tenho proposto que assim como se pode dizer que estamos dotados de três áreas
neuro-anatômicas que dizem relação com o pensar, o sentir e o querer
respectivamente, podemos também distinguir em nossa experiência algo assim como
três pessoas interiores, de modo que nossa vida psíquica não se caracteriza tanto pela
presença de uma identidade estável senão pelo contraponto de três sub-
personalidades ou eus que podemos caracterizar como paterna, materna e filial. Falar
de “o pai, a mãe e o filho”, poderia não soar muito cristão, exceto para os teólogos da
libertação, que dizem que o Espírito Santo (que é o amor) pode ser considerado “o
rosto materno de Deus” — e Tótila Albert pensava que a mãe (em coerência com o
caráter patriarcal do cristianismo antigo, manifesto que as mulheres em tempos de
São Paulo não entravam sequer nas sinagogas) foi patriarcalizada ao transformar-se no
Espírito Santo.

Se levamos três pessoas, dentro de nós, de modo que podemos reconhecer em nós
tanto a voz normativa do “pai crítico” (como chamam na análise transacional ao super-
ego freudiano) como a voz da natureza dentro de nós (o Id de Freud) e uma terceira
que, como o “ego”, pretende uma função reconciliante entre as duas (por mais que
sua experiência predominante seja a do conflito entre a autoridade social do pai e a
vontade instintiva) não se correspondem estas partes de nossa família interior com
nossas formas de amar? Posso dizer que desde que comecei a observá-lo venho
sentindo que nossas três pessoas interiores podem se caracterizar por suas três
maneiras de amar ainda melhor que por suas funções de pensar, sentir e querer.

Naturalmente, ao referir-nos a um “cérebro instintivo” estamos implicitamente


aludindo ao “amor instintivo” ou Eros, que podemos reconhecer como o amor de
nossa “criança interior”, que é também nosso “animal interior”: quem somos quando
nascemos, dotados de uma inteligência instintiva prévia à cultura. Freud pensou que o
eros fosse a raiz de todas as demais manifestações do amor, incluídas a solidariedade e
a bondade, mas nem todo mundo esteve de acordo com ele em sua noção de que
todas estas fossem “sublimações” do amor instintivo. Mas em todo caso é muito
importante o eros na vida humana, e pessoalmente concordo com sua ideia de que
sofremos por um conflito entre a civilização e esse “princípio do prazer” que não é
outra coisa que o impulso ao amor-gozo.
Pode o gozo manifestar-se de muitas maneiras, que também nos parecem situar-se a
diferentes níveis: uma coisa é o prazer, outra a alegria, e uma terceira a felicidade, que
vai além do prazer e da dor e constitui uma satisfação que nos parece um índice da
harmonia total da pessoa e sua medida de auto-realização. Há também, ademais, esse
gozo místico ao qual se referia Santa Teresa ao falar de seus “arroubamentos”, dos
quais dizia que neles participava muito o corpo. Podemos falar neste caso de bem-
aventurança, ou êxtase, um estado em que o instintivo parece haver-se elevado a um
nível espiritual, como o expressa a representação do deus mexicano Quetzalcoatl, cujo
nome mesmo alude a uma serpente que desenvolveu asas e voa.

Penso que se pode dizer que o eros é parte de nossa essência, mas não deve
confundir-se o gozo com a genitalidade, que começa relativamente tarde em nossa
vida. Começa o Eros em nossa mais precoce vida amorosa, que não é a vida de casal
senão a relação materno-infantil, caracterizada pela ternura e as carícias. O que busca
mais tarde na vida o enamorado ou a enamorada em seu par é algo que já é conhecido
no contato precoce com a mãe, e que muito frequentemente é vivido como
insuficiente, pois talvez por viver em uma cultura patriarcal em que se transmite
através das gerações uma insuficiente maternagem, nos parece como se houvéssemos
sido separados antes do tempo ou não houvéssemos recebido o cuidado, a atenção ou
empatia que esperávamos. Como um vírus parece transmitir-se através das gerações
este deficit de maternagem que se traduzirá posteriormente em nossa própria
capacidade de maternagem ou a deterioração em nossa própria capacidade de amar.

Se chamamos “amor freudiano” a este que começa desde nosso nascimento, se


expressa na relação materno-infantil e se associa ao gozo, devemos distingui-lo de
outra forma do amor que poderíamos chamar o “amor cristão” (por mais que seja
exaltado por todas as tradições espirituais). Quando se diz "ama ao próximo como a ti
mesmo", o amor prescrito pelo imperativo de amar ao próximo não é da mesma
natureza que aquele de amar a si mesmo. Pois o amor a si mesmo é algo assim como
desejar-se a felicidade, ou como tornar-se solidário com a criança interior que levamos
em nós, que é algo muito simples. O amor ao próximo, por outro lado, implica na
expressão de uma capacidade empática, que nasce com os mamíferos (ou seja, com a
maternidade) e com a atitude da mãe ante a cria. A tigresa que protege a seus filhotes
como parte de seu próprio corpo experimenta com respeito a eles uma identificação
que permitiria teoricamente ser extendida a todos os seres, e é isso o que aparece na
vida humana: o amor universal; por mais que poucos cheguem a ele. Tal é o amor da
santidade: um amor materno estendido além da família e inclusive além da tribo ou a
nação, alcançando seu máximo desenvolvimento como compaixão por todos os seres.
Podemos chamar “empático” a este amor que permite que nos coloquemos no lugar
do outro, e que tem relação com a compaixão, que é um desejo que o outro não sofra,
e mais amplamente com a solidariedade, a bondade, o espírito de colaboração.

Mas isso não esgota as formas do amor, e o preceito cristão especifica o amor a Deus,
que inclusive põe “sobre todas as coisas”. E também o tem os budistas, apesar de não
falar de Deus (ou mais exatamente, não personificar o divino como um pai criador), ou
os taoístas. Fale-se ou não de Deus, reconhecemos que em todas as religiões é
importante um amor ao transcendente que podemos chamar devoção, ou amor ao
“mistério”, isto é, amor a uma profundidade intuída da existência.
Podemos também dizer que o amor que nos impulsiona a nossa evolução pessoal, que
é um que surge de uma intuição de nosso potencial, é da mesma natureza, de modo
que quando alguém diz: "quero fazer os esforços necessários para aperfeiçoar minha
mente e superar os obstáculos que me impedem ser mais plenamente”, está sendo
movido por uma forma de devoção. Ou inclusive quando quer limpar-se a alma, como
no impulso terapêutico, tal motivação implica a intuição de um estado superior da
consciência, à luz da qual se compreende a própria cegueira, limitação, enfermidade
ou pecado.
Podemos dizer, então, que há um amor que mira ao céu, que é o amor devocional,
independentemente de que tenha ou não o acompanhamento de um sistema
dogmático; isto é, um sistema de crenças ou um simbolismo que designe como “Deus”
a isso que se intui como maior que nós mesmos, e assim como o amor materno se
funda na percepção do outro como um “tu” — isto é, como outro “eu”, da mesma
maneira se funda este amor ao “Pai” em uma capacidade de intuir um além com
respeito aos limites de nosso eu — seja que se fale desse mistério como um Pai
celestial ou de um misterioso nada que é raiz de tudo.

Somos movidos, então, por um amor apreciativo e entusiasta que mira ao céu do ideal,
um amor compassivo que mira à terra dos seres individuais e as necessidades dos
demais, e também por esse amor que se tem chamado eros que mira ao gozo segundo
nos indica o instinto — que não necessita ser o instinto sexual grosseiro, senão que o
ditado por uma sabedoria natural e animal que é parte tão essencial nossa como
nossas partes materna e paterna ou ideal.

Já expliquei brevemente como esta formulação dos três amores como expressão de
nossas pessoas interiores se constituiu em uma elaboração da visão de Tótila Albert —
um chileno que foi conhecido em sua época como escultor, mas que dizia que a
escultura havia sido sua profissão, mas sua vocação a poesia, e que a meu juízo foi,
mais que poeta inclusive, um profeta — um desses profetas não reconhecidos em sua
terra.
Me chegou sua inspiração, afortunadamente, ao mesmo tempo que a influência de
Gurdjieff, que se interessava na educação de “tricerebrados harmoniosos”, e na noção
de que o sofrimento humano deriva da impossibilidade de coordenar nossos três
cérebros, e através da influência de ambos cheguei a desenvolver a concepção de que
nossa vida é como um contraponto a três vozes entre nossas pessoas interiores.
Como os xamãs, Tótila Albert não foi iniciado por um mestre humano ou por uma
tradição, senão que atravessou por isso que se tem chamado às vezes uma “iniciação
interior”. E esta experiência de iniciação se acompanhou de uma visão algo
semelhante à dos xamãs siberianos, que se dizem descendentes das águias. Se viu
transformado em um abutre, ou mais precisamente em um condor; e se viu levando
sobre sua asa direita a seu pai, que sinalizava ao céu, e sobre sua asa esquerda a sua
mãe, que sinalizava à terra, e ele mesmo, com uma mão sobre o coração, apontava
com a outra para adiante; e se via voando em direção a um olho, e sabia que quando
caísse nesse olho (que era ao mesmo tempo sua consciência e centro da criação) se
extinguiria sua existência individual.
E assim foi, só que voltou à vida, e o que lhe havia parecido uma extinção definitiva foi
o começo de seu novo começo — como explica sua autobiografia poética “O
Nascimento do Eu”.

Muitos anos depois, como resposta ao encargo do Presidente do Chile, Sr.Pedro


Aguirre Cerda a realizar um relevo como frontão de uma escola na capital, deu forma
escultural a esta visão com que havia começado seu vôo além da vida ordinária, e me
parece esse relevo um bom emblema de nossa potencial auto-realização. Pois integra
esta um amor (paterno) que aponta ao céu, um amor (materno) que aponta à terra e
um amor (filial) que aponta para adiante e que é também liberdade.

O Vôo do Retorno – Tótila Albert (1947)


Mas não quero estender-me mais agora sobre estes três amores que se correspondem
com nossas três pessoas interiores e cérebros, exceto para explicar melhor que, assim
como a compaixão é materna e o eros filial, o amor que deriva de nossa experiência
infantil com o pai é apreciativo ou admirativo.

O vínculo original da criança com o pai é algo mais sutil que o de receber a nutrição e
ternura materna, e consiste ao invés disso em um mirar a quem sua mãe mira. E com
isso o pai se torna para a criança um ponto de referência. Se a mãe ama ao pai, a
criança também, através de uma identificação com sua mãe, o ama. Mas como?
Através de uma receptividade que o converte em um ideal, um modelo ou guia com
respeito ao que tem valor.

Assim como entre os pássaros o pintinho segue à galinha, em nossa espécie ocorre
como se nosso filhote - o bebê - seguisse ao pai a tomá-lo como modelo, e se constitui
dessa maneira o pai em uma figura de autoridade primigênia. Desgraçadamente,
entretanto, o pai vai tomar a autoridade, e com isso abusará da autoridade,
transformando sua influência espontânea em um mando autoritário. Mas a origem da
autoridade não está nos mandatos do pai, senão no impulso a seguir do filho; o
impulso a modelar-se de acordo a um exemplo: uma imitação que se torna em impulso
a aprender.
Quando admiramos algo, nos transformamos nele, e ninguém pode impedir a um
devoto que se vá assemelhando a seu mestre.
Claro está que, pese a seu impulso natural a admirar aos grandes, a criança cedo ou
tarde vai se dando conta que no mundo degradado em que vivemos os grandes não
são tão grandes, e chega um momento em que sente que se ha equivocou ao dar a
seus pai a dignidade de deuses. E à medida em que descobre as imperfeições dos
grandes, e sua falta de sabedoria (que percebe antes de que possa dar-se conta
explícita disso) se vai rebelando ante eles e ainda ante outras autoridades no mundo. E
é uma lástima que os educadores e especialmente os políticos da educação não se
deem conta da falta de sabedoria do que se injeta às crianças, e como isto contribui a
que as crianças, embora tarde, se desinteressem da aprendizagem e desenvolvam,
inclusive, transtornos da atenção; mas uma criança chega ao mundo programada para
admirar, e “se come o mundo”, incorporando a linguagem dos seus e a cultura em que
nasceu, e tudo lhe entra muito fácil (até demasiado), já que percebe a seus pais como
deuses. É seguramente esta experiência primigênia a que revivemos quando criamos o
modelo de Deus Pai, ou aquele de Deus Mãe. Não são estas imagens inventadas, senão
que simplesmente esquecidas, pois pertencem a uma parte esquecida de nossa
infância, quando nossos pais eram deuses, que se moviam em uma dimensão que
apenas podíamos intuir.
Basta com admirar a uma pessoa o suficiente como para que se nos comecem a pegar
sua maneira de falar e outras atitudes. E basta ver qualquer filme com um personagem
heróico, trate-se de Superman ou de um admirável detetive, para que se lhe imitem os
gestos do herói. (Todos conhecemos a experiência de como ao sair do cinema
caminhamos como o herói e movemos a cabeça como ele). Tudo isso deriva do amor
admirativo, que é indispensável à aprendizagem.
E se alguém se converte no que admira, assim também ocorre com a devoção, que por
isso se torna em uma via muito direta em direção ao divino. Amar ao deus que
podemos conceber nos vai tornando semelhantes a este, como na doutrina cristã da
“imitação de Cristo”.
Só que apresentar a devoção (ou a adoração) como um mero exercício espiritual seria
desconhecer sua experiência, que põe de manifesto que o amor ao divino não é algo
tão voluntário como poderia parecer. Por isso se diz nas tradições místicas que o amor
de Deus constitui, melhor dizendo, um dom divino. E a devoção começa por ser uma
sede de Deus, uma sede metafísica que se pode confundir com uma sede de
conhecimento ou uma sede de verdade, e é uma sede de algo a que não podemos por
nome. Se queremos, podemos por o nome de “Deus”, que é um símbolo conveniente
para o aspecto profundo da existência, mas o misterioso da devoção é que o amor a
Deus não é propriamente nosso, senão que divino, e não poderia ser inventado.
Há quem teve tantos problemas com seu pai, que não conhece a atitude de respeito
em sua vida, e se tornam cínicos depreciativos. E há muito disso na cultura moderna,
no ocaso do mundo patriarcal, em que reina uma desilusão coletiva. Pareceria que
fosse bom isso, pelo fato de constituir uma resposta a um mal, mas tem o
inconveniente de acarretar uma morte generalizada dos valores. Se não há apreço, não
há valoração, e então o mundo se nos torna muito pobre, pequeno e plano.

Tal é o empobrecimento de valores que caracteriza nosso tempo (e ao dizer valores


quero referir-me a tais cosas como o amor à verdade, à beleza, e à justiça), e se
alguém quer crer nos pós-modernos, é signo de maturidade intelectual que já não
creiamos em nada: se condenam as ideologias, e vai contra a moda todo pensamento
grande; mais: se suspeita que quem propõe uma ideia grande quer nos iludir, chamar a
atenção indevidamente ou preparar alguma manobra de poder.

O reconhecimento de que sofremos um déficit coletivo de amor apreciativo nos


permite compreender a relevância de que a música não só é um fenômeno espiritual
(que surgiu com o xamanismo como uma maneira de acessar a experiência religiosa,
ou ao divino) senão que, mais precisamente, é um grande veículo de expressão e
exercício do amor apreciativo — que culmina na devoção e adoração de uma realidade
ideal.
É certo dizer-se também que há música que não tem nada de sagrado, ou que é
decididamente profana. A música que escutamos nos elevadores ou nos aeroportos
não é muito sagrada e resulta inclusive difícil manter um espírito elevado em um
ambiente de muzak. E existe hoje em dia uma indústria de música engarrafada, que
segundo os entendidos serve para vender mais, assim como também se vende mais
com boa iluminação. Mas ainda em tais casos podemos dizer que o que se oferece é
um derivado do amor, só que certas pessoas preferem os derivados e substitutos do
amor ao amor verdadeiro — tanto na música como na vida.

Todas as neuroses são perversões do amor, e salvo a agressão e o terror não existe em
nosso mundo emocional outra coisa que o amor e suas perversões. Em todas as
emoções, seguramente, encontramos derivados do amor ou da sede de amor, e assim
como se busca às vezes o amor no fetichismo ou aonde simplesmente não está, o fator
curativo por excelência é que em vez de buscar o amor aprendamos a gerá-lo.
E nada como a música nos ensina a gerar o amor apreciativo. E se o objeto da vida é
chegar a algo além da vida mesma (pois a vida não só é viver mais, senão que mais que
viver) não nos basta com mover-nos em um plano horizontal, senão que também está
em nossa natureza um crescimento vertical, em busca de transcendência, sendo de
suma importância que recuperemos a sede de transcendência que nossa cultura tem
esquecido em sua ignorância inválida.
Já não há um lugar, nem no vocabulário da educação nem no das burocracias, para
referências ao divino, ou sequer para os eufemismos do divino; mas o resultado disso é
que se nos educa para viver vidas insignificantes. A gente já nem sequer busca o
sentido da vida, sim, porque não chega a dar-se conta de sua própria insignificância. Às
vezes, como dizia Kierkegaard, ao que mais aspiram as pessoas é a experiências
estéticas, como substituto do significativo; como se alguém, ao não viver uma vida
com sentido, poderia se assomar por alguns momentos à vivência do sentido através
do cinema ou da música.

Mas conviría que a música não seja apenas um substituto de nossa profundidade
perdida, senão que um lembrete e um convite à recuperação de nossa capacidade de
assombro e reverência. Há um vazio que a música até certo ponto preenche, e até
certo ponto mesmo a música que não cheira a incenso nem associamos com usos
eclesiásticos consegue preencher, e me parece que há uma fome no Ocidente de
música étnica que vem a substituir o que temos perdido ao nos tornarmos
ensurdecidos à nossa própria tradição.

Me convidaram, fazem muitos anos, a fazer uma oficina na Alemanha em que falei do
significado espiritual da música dos clássicos. E uma das participantes — uma mulher
suiça, para quem foi uma revelação as coisas que eu havia dito — me comentou que
nunca houvera imaginado que a música de Beethoven tivesse um significado espiritual.
Eu por minha vez lhe perguntei se havia se interessado anteriormente no espiritual da
música, e sendo sua reposta a isso entusiastamente afirmativa, me interesei
naturalmente perguntar-lhe em que música havia encontrado o espiritual — e me
nomeou a algunos compositores New Age como Vangelis e Kitaro.
Então compreendi o fenômeno alemão de desconexão com respeito aos valores de seu
próprio passado. E é que os alemães viveram muito duramente a experiência de ter
como pais a pessoas que não só haviam sido entusiastas seguidores de Hitler senão
grandes admiradores de seus clássicos. E esta circunstância de que coincidisse neles o
grande amor aos clássicos com algo que terminaram reconhecendo como um erro de
dimensões monstruosas que parecia haver sido, ademais, inseparável de seu idealismo
fanático, os havia levado a sentir que a admiração por esses clássicos em nada lhes
havia servido para viver vidas melhores. E se precisamente por sentir-se um povo
especial, que apreciava a Beethoven e a Goethe, se haviam tornado depreciativos de
seus “inferiores”, quer dizer do resto do mundo, como sentir que é admirável a
admiração do admirável?
Não foi esse precisamente o fanatismo do fascismo?
Me parece que algo semelhante nos tem passado a todos no mundo ocidental: a gente
está enjoada com os clássicos, e com todos os sistemas de pensamento do passado e
com o que costumava considerar-se a grande música porque não chegou a fazer-nos
melhores. Mas também é certo que temos deixado de escutar a música com os
ouvidos apropriados. E se é certo o que estou dizendo, conviria que nos interessemos
em aprender a ouvir como corresponde.
Eu creio que, a chave está em depor a atitude consumista com respeito à música:
alguém escuta ordinariamente com a expectativa de que a música lhe faça algo, ou
então se a escuta como música de fundo. Mas ambas são atitudes inadequadas. Pois o
consumismo musical que busca na música um fundo que nos faça sentir que não
estamos sós sem que chegue a molestar-nos ao reclamar nossa atenção (que
necessitamos para concentrar-nos em alguma tarefa ou então para nossa absorção
egoísta em nossa problemática) não constitui algo que possamos propriamente
chamar “escutar música”; e quando esperamos que a música nos faça bem também
entramos nela em uma atitude pouco propícia a que recebamos dela algo importante,
pois a música nos entrega seu dom, paradoxalmente, quando nos entregamos a ela de
maneira desinteressada.

A alternativa é precisamente a atitude devocional. Mas, como pode adotar uma


atitude devocional alguém que não crê em nada? Minha proposta é que, assim como
os contos de fadas “funcionam” (ou seja, nos aportam algo de maior valor que o mero
entretenimento) apesar de não serem mais do que “contos de fadas”, também a
música funciona como um conto de fadas. E que ainda as religiões funcionam como
contos de fadas, e se perde muito quando se as toma demasiado ao pé da letra. Pois se
se as toma ao pé da letra, chega um momento em que mesmo nossa ideia limitada de
“Deus” se transforma em obstáculo para encontrar a Deus.

Mais vale dizer-se, ao escutar a música "esta música, de Bach que estou ouvindo, é a
expressão da mente divina, que Bach soube intuir". Podemos tomá-lo como uma
hipótese de trabalho, semelhante à de quem diz: "Vou a dedicar-lhe toda minha
atenção a este ato de imaginação criativa, e construirei em meu interior, em um ato
teúrgico (com ajuda do estímulo musical, claro está) uma identidade com a mente
divina. E depois de contemplar a música como divina, ademais, a “trago”; a “como”, tal
como no rito cristão da comunhão se traga a hóstia consagrada e se imagina que sua
santidade se incorpora ao próprio corpo. No budismo tibetano se evoca as deidades
visualizando-as por cima da cabeça (com ajuda, às vezes, de sons musicais) e depois se
realiza o ato imaginativo de imaginar que penetram pelo alto da cabeça e descendem
pelo próprio corpo, preechendo-o com seus atributos e bendições. Algo semelhante
podemos fazer com a música se começamos por santificá-la (ou seja, concentrando-
nos sobre seu caráter sagrado) e logo identificando-nos com ela.
Mas comecemos já a por em práctica algo do que tenho descrito, começando pela
simples escuta devocional, que é uma em que se atende à qualidade sagrada do som e
dos enunciados musicais. Escutaremos algo de Bach, e lhes proponho que escutemos
com os ouvidos do mesmo Bach, para quem compor foi um serviço à glória de Deus.
Não só foi Bach um músico devocional à hora de compor suas paixões, missas ou
cantatas senão que sempre, de modo que também quando compôs seus concertos
brandenburgueses e suítes o fazia em uma atitude semelhante, e por isso costumava
assinar junto a seu nome “Soli Deo Gloria” (ou simplesmente a abreviação “SDG” (Só
para Deus é a Glória). E porque toda sua música foi uma glorificação de Deus, é
perfeitamente apropriado que tentemos escutá-la como ele mesmo se escutava, e que
ao tentar identificar-nos com sua consciência o façamos em uma atitude santificante.
Como exemplo, tomemos o começo da muito famosa Chaconne que Bach escreveu
como parte de uma de suas partitas para violino — mas que tocarei aqui na muito
convincente transcrição ao piano para mão esquerda que fez Brahms. Se trata de uma
obra profana, e se quiséssemos associá-la a algo, o mais significativo que sabemos com
respeito a sua origem é que foi composta logo após a morte de sua muito querida
esposa Maria Bárbara 3. Mas, que faz um homem devoto ante a morte de um ser
querido? Celebrar algum tipo de cerimônia fúnebre — ou seja, viver a experiência
dessa morte no contexto de sua relação com Deus.

Se escutamos só o motivo inicial da Chaconne:

Antes de mais nada, o acorde menor inicial em um registro baixo nos faz saber que quem
fala (ou melhor, canta) está triste; em seguida, o salto ascendente nos impressiona como
um voltar-se em direção ao céu em um gesto comparável ao que sugere a arquitetura de
uma igreja gótica. E embora a premissa implícita da cultura musical contemporânea (de
que a música é só música) basta para que percebamos este salto de um acorde ao outro
como belo, basta com que tenhamos proposto que a música foi para Bach um ato
devocional para que, à luz deste diferente paradigma, o mesmo gesto musical se nos
converta em algo equivalente a levantar a mirada interna em direção ao divino.

Em outras palavras, me parece que basta com a premissa de que estamos por escutar algo
de natureza devocional para que se nos torne transparente, já nos três primeiros acordes,
seu gesto de elevação ao divino. Mas continuemos agora com nossa escuta. Depois dos
três acordes iniciais que percebemos como um ato de elevação, ouvimos agora outros três
acordes cuja semelhança métrica nos leva a perceber em referência comparativa aos
primeiros. Constitui esta segunda afirmação musical o que se chama uma sequência — ou

3
Maria Bárbara nasceu em Gehren, Turíngia. Se casou com Johann Sebastian Bach durante seu mandato
como organista da igreja de Mühlhausen, St. Blasius, em 1707. Pouco se sabe de sua vida e seu
matrimônio, salvo que eram felizes. Segundo [Carl Philipp Emanuel Bach], seu segundo filho
sobrevivente, Maria Bárbara Bach faleceu em 1720 de forma repentina. Johann Sebastian Bach, nesse
momento, acompanhava a seu patrão, o duque de Köthen, já que o duque havia ido tomar as águas no
balneário de Carlsbad (o duque levaba a seus músicos para proporcionar-lhe entretenimento). Quando
se foi, Maria Bárbara tinha uma saúde normal, quando regressou dois meses mais tarde, se inteirou de
que havia morto e havia sido enterrada em 7 de julho.
(http://es.wikipedia.org/wiki/Maria_Barbara_Bach).
seja, uma transposição variada — que começa desde o ponto de chegada da frase anterior
e se remonta a algo mais acima no espaço sonoro. Escutemos agora a sucessão do motivo
inicial e a primeira variação deste:

Mais ainda que o salto inicial ao alto, este salto adicional que nos leva ainda um pouco
mais alto e nos faz sentir uma vontade de elevação; e dada a correspondência
simbólica natural entre “o alto” e o superior, o ideal e o divino, percebemos esta
vontade de elevação como uma vontade de profundização no contato com o divino.
Esta primeira frase da Chaconne conclui com um gesto de volta a si, mas na reiteração
da mesma passagem na frase musical seguinte, não se conforma Bach com estes dois
saltos ascendentes sucessivos, e ali sua continuação nos faz sentir que estes foram
apenas uma preparação para ir ainda mais alto. E mais que nunca seu enunciado
musical se nos torna agora algo análogo à forma dessas agulhas da arquitetura gótica
que tão obviamente simbolizam por sua vez a aspiração dos humanos ao divino.
Escutemos agora a frase musical completa da qual até agora escutamos os dois primeiros
fragmentos:

Se não o tivermos percebido anteriormente, se torna evidente ao chegar a este ponto


que o impulso ao divino que vinha animando a melodia desde seu começo não é de
nenhuma maneira o gesto de um mendigo lamurioso, pois nos transmite grande
dignidade.
Não é um "Ai! Como sofro porque estou longe de ti, Oh! Deus!", senão a voz de alguém
que já se sente próximo ao divino, e apesar de sua satisfação e gratidão segue mirando
ao alto. Ou seja, se trata de uma relação com Deus por parte de alguém que, em que
pese seu sofrimento, se sente basicamente bem e agradecido. E é que na esfera do
devocional cabem muitos “sabores”; talvez infinitos.

Mas só toquei este começo da famosa Chaconne de Bach como uma ponte a um
exercício devocional propriamente dito, já que ilustra muito bem quão mais presente
está a devoção na música clássica instrumental do que habitualmente pensamos.

Mas antes de descrever o exercício anunciado quero dizer, de maneira preparatória,


algo mais acerca da devoção na música. É algo que nos chega da mitologia hindú, e
que seguramente foi formulado para dar a requerida profundidade espiritual à prática
do canto dos mantras ou sílabas sagradas da religião védica. Recordo haver
encontrado em algum dos livros do já citado etnomusicólogo alemão Marius Schneider
acerca de como na tradição védica se descreve uma guerra primordial que teve lugar
entre os devas (ou deuses) e os asuras (ou titãs — também considerados
“semideuses”). Nesta guerra ganharam os deuses — que desde então ocupam a mais
alta categoria na estrutura de nosso mundo; e a lenda explica que seu triunfo se deveu
a que conheciam eles a ciência do sacrifício através do canto.
Mas, como pode o canto ser um sacrifício? O sabe quem ao cantar se entrega tão
profundamente ao enunciado de cada uma de suas sílabas sagradas, que a força de
sua devoção o leva a mergulhar-se totalmente em seu canto até desaparecer, de modo
que já não existe o cantor, senão que só o canto.
Expliquei isto aqui para que quem me leia escute agora a música sufi que reproduzo a
continuação identificando-se com o entusiasmo do que canta de maneira tão completa
como lhe seja possível.
Ou seja, os convido a cantar sem voz, mas sim de todo coração, pondo sua própria
vontade em sintonia com a deste canto, que é tanto um canto de aspiração como um
de adoração.
Aconselho a meus leitores, ademais, a começar com os olhos cerrados e logo abri-los,
sem perder o grau de entrega à intensidade do canto interior. E, se querem, podem
prover-se antes do exercício de um espelho, para que ao abrir os olhos lhes seja
possível prolongar o exercício ante a mirada do próprio rosto refletido nele. Pois assim
como existe o pudor sexual, existe também no contato com o mundo externo ou social
um pudor ao sagrado, que torna difícil mostrar-se na intimidade da comunhão musical
ante outro. E por mais que si próprio não alcance a ser um “outro”, isso não impede
que sirva como uma ponte ao encontro com um tu, e por isso, ante este tu que é
também um eu lhes recomendo que se aventurem a compartilhar um ato tão íntimo
como o da devoção, arriscando-se a desnudar a mirada; ou seja não “desinflar” a
experiência musical tirando-lhe fervor à identificação com o canto. Mais ainda, lhes
aconselho provar a irradiar o sentir da música através da mirada, como um ato de
bendição através de uma “insuflação” de sacralidade ao próprio duplo.
Alim Qasimov: Shushtar mugamunda bastachar mahnelare (Gälgäl),
Do albúm Love’s Deep Ocean.

Mas passaremos agora a uma segunda parte nesta demostração do uso da música
como veículo de amor — dedicada desta vez a ágape ou amor compassivo.

Não sei se estarão de acordo comigo em que apesar de que nossa cultura valoriza
altamente a capacidade de interessar-nos na felicidade dos demais (ou pelo menos de
não querer que as pessoas a quem queremos sofram), não somos pessoas muito
compassivas. Disse Freud que sanar é deixar atrás a ambivalência infantil, e que a
maior parte dos adultos, não havendo chegado a deixar atrás tal ambivalência, se
movem, como as crianças, entre o amor e o ódio. Persiste em nós, como quando
crianças, uma carga considerável de ódio originado com as feridas recebidas na
infância, assim como um desejo de vingança. E embora se fale, às vezes, de um
“caminho do amor” (como o predica o cristianismo), nos é difícil, por o pé nesse
caminho do amor se não conseguimos primeiro perdoar a quem nos feriu.

Mas como se pode chegar a perdoar quando se atravessou por momentos da vida que
nos doeram tanto? Nosso “aparelho psíquico” — como esta expressão já o diz, é de
natureza mecânica, e a raiva segue às injúrias sem que nossa vontade possa fazer mais
do que reprovar-nos ou aceitá-lo.
Mas existe em nós a possibilidade da compaixão, que é uma graça que escapa a nossa
existência mecânica e condicionada. E o amor de Deus é já Deus, também a compaixão
é um dom divino que nos pode levar além de nossa mecanicidade. Quando disse São
João que "Deus é amor" é a este tipo de amor que se refere, e embora possamos senti-
lo por momentos os humanos, é também algo de natureza espiritual, que escapa a
nosso limitado “aparato” e a operação predizível de seus programas e circuitos. Ao
mesmo tempo, entretanto, é profundamente humano, já que, em realidade, enquanto
não temos a capacidade de perdoar somos autômatos — ou seja, um conjunto de
reflexos condicionados. O salto ao perdão, então, é um salto que deixa atrás o
passado, e já não julga, e para remontar-se a esta experiência tão preciosa e profunda,
a música pode ser de considerável ajuda.
Tenho perguntado muitas vezes em minhas conferências ou oficinas como se pode
chegar a perdoar? E como pode desenvolver-se uma atitude mais compassiva? E
ninguém menciona a música, que é um importantíssimo estímulo para isso. E penso
que não circularia tanto a música no mundo se não fosse porque necessitamos seu
estímulo amoroso. E é que a música está entretecida de amor, e não só há nela amor
devocional, senão que também “amor humano” — que é empático, benévolo e
compassivo.
Convido a meus leitores agora a escutar uma das árias da Paixão segundo São Mateus
de Bach como estímulo para entrar em um estado de compaixão, e já bastaria com
apenas escutá-la para elevar momentaneamente nosso nível de compaixão, pois está a
música tão permeada deste sentir que basta que nos deixemos preencher por ela para
que tal estado emocional penetre em nós em certa medida. Mas faremos um exercício
algo mais complexo que o da simples escuta; um exercício que compreenderá uma
série de etapas sucessivas que explicarei antes de começar, para não interromper a
audição com demasiadas explicações escritas. Uma vez que haja explicado estas
etapas, bastará com que escreva umas breves palavras entre um segmento e outro da
gravação, e isso não distrairá do desenvolvimento progressivo da experiência através
delas.

1 — Em primeiro lugar, os convido a imaginar que parte da grandeza de Bach tenha


estado, além de seu talento especificamente musical, em uma intuição da mente
divina, e que a música desta Ária — cujo texto cantado apela à piedade divina, resuma
a compaixão ante o sofrimento de todos os seres. Durante esta primera etapa do
exercício, então, quer seja sejamos crentes ou não, nos imaginaremos rodeados de
uma música que não é outra coisa que a compaixão divina — coisa que não deveria ser
mais difícil que imaginar um unicórnio ou um dragão apesar de que não creiamos em
sua existência no mundo externo. Nos ajuda mais, seguramente, imaginar a compaixão
a partir da evocação de alguma das pessoas que conhecemos. Permitamo-nos sentir
que nos rodeia e se extende até o infinito uma compaixão universal que, consciente do
sofrimento de todos os seres e condoída, quer que possam recuperar a felicidade.

2 — Em segundo lugar, tentaremos nos identificar até onde seja possível com a
compaixão desta mente divina em que estamos imersos. De maneira semelhante
àquela em que um ator se identifica com um personagem para poder representá-lo,
podemos identificar-nos com a música além da medida em que isto já sucede
espontaneamente no ato de escuta usual. Imaginemos que somos essa compaixão
universal que se dá conta do imenso sofrimento do mundo inteiro e quer seu bem.
Naturalmente, isto não é senão um levar a uma intensidade maior algo que sucede
quando nos identificamos com a música, que já é uma expressão de compaixão, mas
terá um matiz diferente a experiência quando não só nos estejamos identificando com
a música senão com a compaixão de uma mente universal e sagrada.

3 — Em terceiro lugar, continuaremos o exercício com os olhos abertos e mirando ao


espelho que já tivemos a precaução de tê-lo conosco. Primeiro simplesmente
continuaremos a olhos abertos o exercício de identificação com a compaixão universal
que impregna a música, mas pouco a pouco começaremos a ensaiar irradiar este sentir
através da mirada a nossa imagen refletida, em um ato de bendição.

4 — Por último, sempre em contato com a mirada de nossa imagem no espelho e em


uma atitude de amizade e profunda benevolência a nós mesmos, podemos tentar
irradiar benevolência também a outras pessoas significativas em nossa vida,
começando pelas mais queridas e continuando com aquelas de quem nos separa
algum ressentimento, e tentando reparar tais relações através de um duplo perdão —
que podemos inclusive verbalizar como “te perdôo e me perdôo”. Começamos, agora,
e dividi a reprodução musical da Ária em quatro partes que meus leitores deverão
ativar sucessivamente com um clic. As instruções já escritas poderão servir novamente,
se for necessário, durante a audição do correspondente fragmento musical.
Bach, Paixão Segundo São Mateus, Ária “Erbarme Dich”

Havendo levado a meus leitores através de breves experimentos com formas de escuta
musical orientadas à intensificação do efeito da música em nós, seja no aspecto
devocional ou no de estimular nossa capacidade de compaixão, me corresponde agora
oferecer uma demonstração com respeito à terceira dimensão do amor, que tem
relação com o gozo e a felicidade.

A expressão musical do gozo nos faz presente a diversidade de experiências às que


aplicamos este termo e seus diferentes níveis, desde o vulgar ou grosseiro ao sutil e
espiritual. Serve a música para alegrar qualquer festa, e é em tais casos sobretudo a
música popular à que se recorre. A música popular pode ser por sua vez simples e
muito saudável e digna — como o flamenco, a música popular brasileira, a música
Israelense ou a da Europa oriental, que tanto inspirou a Bartok. Contém muitas
canções de amor, mas muitas em que não é o amor entre os sexos a fonte de sua
alegria, senão o amor à vida, ou o gosto pelo movimento que inspira a dança. Mas
ainda quando se trata de pura percussão, que incita tanto ao prazer do movimento,
podemos perguntar-nos quanto há nesse gozo do movimento e a liberdade do erótico
em um amplo sentido da palavra — pois parece o ritmo despertar nossa vida instintiva
além do sentimental, o dionisíaco além do “jogo do amor”, o prazer de deixar-se ir ao
gozo mesmo.

Babatunde Olatundi: Akiwowo (Canto do Maquinista)


Outro matiz do eros na música é menos “primitivo” que este da percussão (que não se
limita à música popular, nem aos tambores, como demonstra tão vivamente Stravinsky
na “Sagração da Primavera”) é de caráter terno, acariciante, e disso é um grande
exemplo Mozart.
Mozart foi uma pessoa fortemente erótica, e também terna e brincalhona, com rasgos
de criança, e tudo isso se faz muito presente em sua música, por mais que em sua
música tais rasgos se elevem às vezes a um nível tão espiritual que poderíamos falar de
um erotismo angelical ou da ternura de um serafim. Pode ilustrá-lo o Benedictus de
seu Réquiem:

Mozart, Requiem – Benedictus


A tradução musical do ato de abençoar requer uma intensidade expressiva especial, e
particularmente no caso de um texto que diz: “bendito o que vem em nome do
Senhor”. Aonde encontra Mozart tal qualidade de amor? Precisamente nesse amor
acariciante que caracteriza a relação materno-infantil, que diríamos sua especialidade,
e tanto enriqueceu os adagios de suas sonatas e concertos. Não o haveríamos
imaginado, e por isso me pareceu de especial interesse ilustrá-lo. E a propósito de
Beethoven: também em sua Missa Solemnis, tem um carácter erótico o Benedictus, o
que é fácil de apreciar pelo contraste com as partes precedentes — que cito também a
continuação.

Beethoven – Missa Solemnis


Il. Três fragmentos.

Mais óbvio, entretanto, que o eros que se expressa no prazer do movimento, do ritmo
e da intensidade, e que o eros da atitude acariciante da gentileza, é o eros que se nos
faz presente na música dos que chamamos os “românticos”.
Disse Chopin em uma carta que em sua música "escrevia com sêmen", e não nos é
difícil entender que pusesse em sua música a mesma libido que em seu
enamoramento. É frequente em Chopin encontrar passagens em que sentimos que se
acerca a um clímax de maneira análoga a quem se acerca com seu desejo a um
orgasmo.
Mas é tão óbvia essa analogia, que me parece mais interessante comentar algo menos
evidente, que é que tais passagens que se encaminham a um clímax podem ser
interpretados também, como parte de um processo de liberação por parte de alguém
que busca uma saída de sua depressão neurótica.
Na seguinte passagem da Terceira Balada, por exemplo, se avança com um sentimento
de busca em direção à plenitude,
Embora o que escutamos constitua uma intensificação progressiva que parece
responder à satisfação do desejo de quem vem cantando, se trata propriamente da
expressão da libido sexual, ou melhor de uma ânsia de liberação? Eu diria que, tal
como na Balada n.1, se trata de alguém que tende a viver demasiado encerrado em si
mesmo e deve ganhar-se através de um gesto algo agressivo a liberdade de uma
expressão plena; chega então Chopin aqui a um êxtase de prazer cuja natureza não é
outra que o triunfo de sua liberdade, que por fim lhe permite “respirar a plenos
pulmões”. Quis explicar isto para chamar a atenção sobre como o fenômeno
romântico não é sempre tão erótico como parece, nem tão sentimental, senão que
implica uma busca de plenitude que também podemos entender como uma busca do
ser, com respeito ao qual o desejo sexual e sua satisfação se transformam em algo
metafórico. Mas acaso podem separar-se nitidamente o amor romântico e a busca
espiritual? Não se busca às vezes no amor romântico o divino?

Mais que responder a isso, deixo que sirva tal pensamento como uma explicação
preliminar a um terceiro exercício, orientado esta vez à concentração sobre o êxtase
amoroso romântico através da escuta do segundo movimento do Segundo Concerto
para Piano de Rachmaninoff.

Em uma primeira fase deste, convido a meus leitores a entregar-se o mais possível à
emoção musical, tentando ser a música. Depois, abrindo os olhos, os convido a que se
permitam encarnar mais a emoção da música no próprio rosto. Se se vive plenamente
esta música que é como a recuperação do paraíso perdido, não é natural que se
permaneça sem sorrir, pelo que os convido a que se ponham ante o próprio reflexo
como um amante extático, talvez imaginando-se também como se se fosse do sexo
oposto (tal como na leitura de ficção podemos nos identificar com personagens de
qualquer sexo). Intensificamos tanto o amor à beleza como o deleite da beleza sonora,
e por último tentamos, como no exercício anterior, irradiar nosso gozo da beleza
musical através da mirada, como para infundí-la no ser que temos ante nós — e assim
rebater algo do espírito repressivo da cultura em que nos movemos, que nos ensinou a
ocultar o gozo até sepultar a espontaneidade de nossa criança interior.

Independentemente de que os três exercícios que propús constituam aplicações


terapêuticas da música que podem contribuir a que se torne efetivo seu potencial
sanador, espero que também tenham servido estes para tornar mais evidente minha
renúncia de que, sendo a música um conduto de comunicação amorosa, já sua escuta
espontânea pode bastar para que ela nos acerque ao mundo das emoções superiores.
O que mais importa para que esta escuta nos enriqueça, entretanto, não é o grau de
atenção, senão algo mais sutil: é que o tesouro vivencial da música em vez de servir
para compensar nossa vida superficial, a maneira de um substituto de nosso próprio
sentir, sirva melhor para a recuperação de nosso próprio sentir. Pois uma coisa é que a
música comunique devoção, compaixão ou gozo, e outra o que cheguemos a sentir
estas formas do amor — que é o que verdadeiramente importa porque nos enriquece.
Espero, então, que este capítulo deixe a meus leitores com uma melhor compreensão
de quanto depende de cada um de nós entrar em uma verdadeira comunhão com a
música que escutamos — encarnando-a em nosso sentir profundo e em nosso corpo
mesmo.

Para terminar, convido ainda a quem me lê a uma comunhão musical com o começo
do primeiro movimento do sexteto Op.18 No.1 de Brahms, em que apesar de certo
predomínio do amor materno se pode dizer também pleno de gozo e nobreza — de
modo que esta integração dos três amores nos faz sentir uma densidade de
experiência particularmente abundante.
10 Algo mais sobre o Ditado Musical
de Tótila Albert

No curso deste livro mencionei o Ditado Musical de Tótila Albert várias vezes e
dediquei o capítulo oito à implícita hermenêutica musical do que escreveu ao
“auscultar” algumas obras de Brahms. Contudo, apenas citei alguns versos desse
ditado, pensando que tais obras poderiam ser melhor apreciadas em um DVD. Por fim,
deixei para este capítulo não apenas a ilustração mais completa do Ditado Musical
inspirado por Brahms, senão também umas mostras do que escutou Tótila ao explorar
as obras de outros compositores. Escolhi para isso três movimentos lentos pela
facilidade de sua leitura, e convido aos leitores a assistir aos correspondentes vídeos,
nos quais mostro com uma técnica tipo karaoke a forma em que os poemas devem ser
lidos em sincronia com as respectivas obras musicais.
O primeiro dos vídeos corresponde ao texto completo para o segundo movimento da
Primeira Sinfonia de Brahms.
Se o primeiro movimento desta sinfonia, de caráter solar, reflete uma cosmogênese, e
a voz do poeta nela, identificando-se com aquela do compositor, expressa uma
identificação com uma vontade criadora cósmica, o segundo movimento, lunar, foi
concebido pelo poeta como uma segunda fase do processo da criação: o despertar da
consciência humana e a mirada para dentro desta consciência em um ato
contemplativo.

Johannes Brahms: Sinfonia no 1, segundo movimento

Segue agora o segundo movimento da Inacabada Schubert. Já chamei a atenção em


meu capítulo sobre Schubert e sobre a juxtaposição ao começo deste movimento
entre a escala descendente dos baixos (que sugere o aprofundamento da consciência
do indivíduo nessa “viajem noturna” que é uma antecipação da morte) e a melodia,
nos registros agudos (nas cordas) que com sua volta sobre si sugerem uma espiral, e
por isso, a vida embrionária. Tomei estas imagens de um comentário do mesmo Tótila
Albert, e se poderá apreciar como isso é coerente com que, segundo seu texto,
constitui esta passagem uma metáfora musical de como morte e gestação se juxtapõe
na transformação do indivíduo nesta etapa de sua viagem interior.

Franz Schubert: Sinfonia no 8 em Si menor, D 759,


Inacabada, segundo movimento
Por último, apresento o adagio do quarteto Op.135, de Beethoven. É este o terceiro
movimento do último dos quartetos de Beethoven, dos quais costuma se comentar
que o movimento final, que lhe segue, começa com notas sobre as quais escreveu
Beethoven as palabras “Muss es sein?” (É necessário que assim seja?). Como se pode
apreciar pelo texto deste ditado, o conteúdo deste movimento é uma antecipação da
morte, imaginada como uma dissolução nos elementos.

Ludwig van Beethoven: Quarteto de cordas no 16 em


Fá maior, Op. 135, terceiro movimento

Com esta miniantologia dou por terminado meu livro, esperando que minhas reflexões
sobre o conteúdo vivencial da música clássica europeia tenham servido para
neutralizar em certa medida o antagonismo de alguns, não apenas com respeito à
existência mesma de tal conteúdo, mas também com respeito à ideia de que, apesar
de que seja tolerável que um compositor ponha música a um poema, não está bem
agregar um texto a uma obra musical preexistente. Compreendo que tal opinião tenha
surgido como resposta à mediocridade habitual das melopéias que foram a moda no
século XIX, mas penso que deveria ser suspendida diante de textos de tanta grandeza
como os de Tótila Albert.
Espero, por fim, que a ilustração do Ditado Musical de Tótila que trago neste capítulo
através de alguns movimentos lentos (e por isso fáceis de ler) estimule nos leitores o
desejo de conhecer melhor seu legado poético-musical. De minha parte, produzi
alguns DVDs artesanais com a maior parte dos textos de Tótila em sincronia com as
interpretações que escolheu em seu trabalho no curso dos anos cinquenta e sessenta,
nas quais se pode compreender a forma em que se coordenam texto e música e que,
por isso, serviram de guia para a produção de versões profissionais deste repertório.
Me anima a convicção de que tais obras permitirão a muitos aprofundar no sentido
interior da música, e estou também convencido de que, independentemente de qual
seja a correspondência dos textos de Tótila à experiência de seus respectivos
compositores, se trata de obras de grande valor artístico de uma arte nova: uma arte
sacramental que para alguns resultará o veículo de uma bendição.
Índice de temas musicais citados 1

1. C 1. Claude, Debussy: Prelúdio no 6 livro 1, Des pas sur la neige. Alfred Cortot.
2. Bach, Johann Sebastian: Das wohltemperierte Klavier (O cravo bem temperado),
livro 1. Wanda Landowska.
3. Anonimo: Rex Caeli, Domine Maris (Musica enchiriadis). Capella Duriensis do
monastério de São Pedro da Ferreira.
4. Chopin, Frederic: Valsa em Dó Sustenido menor, opus 64, no 2. Alicia de Larrocha.
5. Beethoven, Ludwig van: Sinfonia no 5 em dó menor, opus 67. Wilhelm Furtwangler.
6. Handel, Georg Friedrich: “Lascia ch’io pianga”, Rinaldo. Philippe Jaroussky.
7. Beethoven, Ludwig van: Quarteto de cordas no 13 em Si bemol maior, opus 130,
Cavatina. Wilhelm Furtwangler.
8. Ravel, Maurice: Bolero. Leonard Bernstein.
9. Brahms, Sinfonia no 4 em Mi menor, opus 98, quarto movimento. Otto Klemperer
Philharmonia Orchestra.
10. Mozart, Wolfgang Amadeus: Sonata no 13 KV 333 em Si bemol. Wanda Landowska.
11. Mozart, Wolfgang Amadeus: Sonata KV 570, Adagio. Walter Gieseking.
12. Beethoven, Ludwig van: Sonata no 1, opus 2. Claudio Arrau.
13. Schumann, Robert: Kinderszenen, opus 15. Alfred Cortot.
14. Chopin, Frederic: Mazurka, opus 63, no 2. Arthur Rubinstein.
15. Chopin, Frederic: Balada no 1 em Sol menor. Arthur Rubinstein.
16. Beethoven, Ludwig van: Quarteto opus 131, sétimo movimento. Budapest String
Quartet.
17. Beethoven, Ludwig van: Sinfonia no 3. Wilhelm Furtwangler.
18. Brahms, Johannes: Sinfonia no 4, segundo movimento. Wilhelm Furtwangler.
19. Schumann, Robert: Quinteto em Mib M, 2o movimento. Arthur Rubinstein /
Guarnieri Quartet.
20. Schubert, Franz: Quarteto de cordas no 14, a morte e a donzela, 1o movimento.
Amadeus Quartet.
21. Schubert, Franz: Quarteto no 15. Amadeus Quartet.
22. Schubert, Franz: Sinfonia em Si menor, D. 759, A Inacabada. Bruno Walter / Vienna
Philharmoniker.
23. Schubert, Franz: Die Winterreise (Viagem de inverno). Der Lindenbaum (A Tília)
/ Fischer-Dieskau.
24. Schubert, Franz: Sinfonia no 9, 4o movimento. Bruno Walter.
25. Schubert, Franz: Quinteto em Do maior. Taneyev Quartet / Rostropovich.
26. Brahms, Johannes: Quarteto de cordas no 1. Vegh Quartet-Sandor Vegh
27. Brahms, Johannes: Intermezzo, opus 117, no 1. Wilhelm Kempff.
28. Brahms, Johannes: Sinfonia no 1. Jascha Horenstein, Symphony Orchestra Of The
South West German Radio.
29. Bach, Johann Sebastian / Brahms, Johannes: Chaconne. Christian Zimmermann.

1
Todos os exemplos de áudio e vídeo utilizados neste livro foram interpretados expressamente para o
mesmo pelo compositor Eduardo Ribeiro, o foram parcialmente digitalizados a partir de gravações antigas
em distintos formatos pertencentes ao arquivo pessoal do autor, e somente tem validez como guia para
o leitor, podendo este realizar sua seleção pessoal atendendo a seus próprios critérios e desde sua
biblioteca musical. Em nenhum caso forman parte da publicação. (N.del E.)
30. Qasimov, Alim: Shushtar mugamunda bastachar mahnelare (Gal gal), do álbum
Love’s Deep Ocean.
31. Bach, Johann Sebastian: Erbarme Dich, da Paixão Segundo São Mateus. Christa
Ludwig / Otto Klemperer.
32. Olatunji Babatunde: Akiwowo (Canto do Maquinista), do álbum Drums of Passion.
33. Mozart, Wolfgang Amadeus: Requiem em Ré menor, K. 626. Herbert von Karajan.
34. Beethoven, Ludwig van: Missa Solemnis. Otto Klemperer.
35. Chopin, Frederic: Ballade no 3 em Lá Bemol, opus 47. Arthur Rubinstein.
36. Rachmaninov, Sergei: Concerto para piano no 2, Adagio Sostenuto. Arthur
Rubinstein, Chicago Symphony Orchestra. Fritz Reiner.
37. Brahms, Johannes: Sexteto opus 18, primeiro movimento. Isaac Stern.
38. Beethoven, Ludwig van: Quarteto de cordas no 16 em Fá maior,
opus 135, terceiro movimento. The Paganini Quartet.
Sobre o autor

O doutor Claudio Naranjo, reconhecido psiquiatra chileno, escritor, maestro e


conferencista de renome internacional, é considerado pioneiro em seu trabalho
experimental e teórico como integrador da psicoterapia e as tradições espirituais. Um
dos primeiros investigadores das plantas psicoativas e a terapia psicodélica e um dos
três sucessores de Fritz Perls (fundador da terapia gestalt) no Instituto Esalen,
desenvolveu posteriormente a psicologia dos Eneatipos a partir da Protoanálise de
Ichazo e fundou o Instituto SAT (Buscadores da Verdade [Seekers After Truth]), uma
escola de integração psicoespiritual.
Quando não escreve, viaja por todo o mundo, consagrando sua vida a ajudar aos demais
em sua busca da transformação e tratando de influir na opinião pública e autoridades
com a ideia de que só uma transformação radical da educação poderá mudar o curso
catastrófico da história.

Trajetória

Claudio Naranjo nasceu em 24 de novembro de 1932, em Valparaíso,


Chile. Cresceu em um ambiente musical e, depois de uma incursão inicial no piano,
estudou composição musical. Pouco depois de entrar na faculdade de medicina,
contudo, deixou de compor e se dedicou mais a seus interesses filosóficos. Importantes
influências dessa época foram o visionário poeta chileno e escultor Tótila Albert, o poeta
David Rosenman Taub e o filósofo polonês Bogumil Jasinowski.
Depois de diplomar-se como doutor em medicina, em 1959, foi contratado pela Escola
de Medicina da Universidade do Chile para formar parte de um pioneiro Centro de
Estudos em Antropologia Médica (CEAM), fundado pelo professor Franz Hoffman. Ao
mesmo tempo, levou a cabo sua residência em psiquiatria na Clínica de Psiquiatria da
Universidade do Chile baixo a direção de Ignacio Matte-Blanco.
Interessado na investigação sobre os efeitos desumanizadores da educação médica
tradicional, viajou brevemente aos Estados Unidos, em uma missão designada pela
Universidade do Chile, para explorar o campo da aprendizagem perceptiva, e nesse
momento conhece os trabalhos do doutor Samuel Renshaw e de Hoyt Sherman, na Ohio
State University.
Em 1962 esteve em Harvard como profesor convidado com uma bolsa da Fulbright no
Centro de Estudos da Personalidad e no Emerson Hall, ande participou em um Seminário
de Psicologia Social de Gordon Allport. Aí mesmo estudou com Paul Tillich. Antes de seu
regresso ao Chile, em 1963, se associou com o doutor Raymond Cattell, no IPAT,
Instituto da Personalidade e Capacidade de Prova, em Champaign (Illinois), e foi
convidado à Universidade de Berkeley (Califórnia), para participar nas atividades do
Centro de Valoração e Investigação da Personalidade (IPAR). Após um novo período no
Centro de Estudos de Antropologia Médica da Faculdade de Medicina,no Chile, o
doutor Naranjo regressou uma vez mais a Berkeley e ao IPAR, aonde prosseguiu
suas atividades como investigador associado até 1970. Durante essa época se converteu
em estudante de Fritz Perls e parte da primeira comunidade da terapia gestalt, e logo
começou a oferecer workshops no Instituto Esalen.
Nos anos que o levaram a ser uma figura chave em Esalen, o doutor Naranjo também
recebeu treinamento adicional e a supervisão de Jim Simkin, em Los Angeles, e assistiu
a workshops consciência sensorial com Charlotte Selver. Chegou a ser amigo íntimo de
Carlos Castaneda e também formou parte da inovadora terapia psicodélica de grupo de
Leo Zeff (1965-66). Esses encontros frutificaram nas contribuções do doutor Naranjo no
uso da harmalina, MDA, ibogaína e outras fenil-isopropil-aminas no âmbito da
psicoterapia, descritas parcialmente em seu livro The Healing Journey.
Em 1969, foi chamado como consultor de política educativa no Centro de Investigação
criado por Willis Harman no Stanford Research Institute. Seu informe sobre o que era
de aplicação à educação desde o campo das técnicas psicológicas e espirituais então em
voga apareceu posteriormente em seu primeir livro, A Única Busca.
Durante esse mesmo período, foi coautor de um livro, com o doutor Robert Ornstein,
sobre meditação (Psicologia da Meditação), e também recebeu convite da doutora
Ravenna Helson para examinar as diferenças qualitativas entre livros representativos do
“matriarcado” e o “patriarcado” a partir de sua análise fatorial sobre escritores de ficção
para crianças, o qual o levou a escrever A Criança divina e o herói, que foi publicado
muito depois.
A morte acidental de seu único filho, ocorrida em 1970, marcou um ponto crucial na
vida de Claudio Naranjo e o levou a empreender uma longa peregrinagem, sob a guia de
Oscar Ichazo, que incluiu um retiro espiritual no deserto próximo a Arica, Chile. Em sua
opinião, este é o verdadeiro princípio de sua experiência espiritual, sua vida
contemplativa e sua guia interior.
Depois de sair de Arica, começou a ensinar a um grupo no Chile, que incluía sua mãe,
alunos de gestalt e amigos. Este grupo, que começou de maneira improvisada, deu
forma a sua atividade em Berkeley, durante a década dos setenta, e tornou possível a
criação de uma entidade sem fins lucrativos chamada Instituto SAT. Os primeiros
programas SAT receberam a visita de uma série de maestros convidados, entre eles
Zalman Schachter, Dhiravamsa, Ch’u Fang Chu, Sri Harish Johari e Bob Hoffman.
Em 1976, o doutor Naranjo foi professor convidado no Campus de Santa Cruz, da
Universidade de California, durante dois semestres, e mais tarde, de forma intermitente,
no Instituto de Estudos Asiáticos da Califórnia. Ao mesmo tempo, também começõu a
oferecer workshops de forma descontínua na Europa. Desse modo, pôde seguir
aperfeiçoando determinados aspectos do mosaico de enfoques contidos no Programa
SAT.
Em 1987 lançou um renascido Instituto SAT para o desenvolvimento pessoal e
profissional na Espanha. Desde então, o Programa SAT se extendeu com grande êxito a
Itália, Brasil, Chile, México, Colômbia, Argentina, França e Alemanha, e, mais
recentemente, à Inglaterra e Coréia do Sul.
O doutor Naranjo ensinou no Instituto tibetano Nyingma, de Berkeley; foi professor de
religião comparada no California Institute of Asian Studies (atualmente California
Institute of Integral Studies), é membro da rama norteamericana do Clube de Roma e
do Instituto de Investigações Culturais de Londres, assim como presidente honorário da
Escola Madrilenha de Terapia Gestalt e do Instituto Gestaltico de Santiago do Chile,
entre muitos outros.
Desde finais dos anos 80, o doutor Naranjo tem dividido sua agenda anual entre suas
atividades no extrangeio e seu trabalho literário em sua casa em Berkeley. Suas
numerosas publicações dessa época incluem a versão revisada de um antigo livro de
terapia gestalt, assim como três novos títulos sobre esta escola. Também escreveu três
livros sobre as aplicações do eneagrama da personalidade (Caráter e neurose, O
eneagrama da sociedade e Autoconhecimento transformador), um novo livro sobre
meditação (Entre meditação e psicoterapia) e Cantos do despertar, uma interpretação
dos grandes livros do Ocidente nas expressões da viagem interior e variações do relato
o herói. Em seu livro A agonia do patriarcado (o precedente de Curar a civilização e A
mente patriarcal) ofereceu pela primeira vez sua interpretação da crise mundial como
uma expressão de um fenômeno psicocultural intrínseco à mesma civilização — ou seja,
a desvalorização da criança, do feminino e do instinto infantil por parte de nossa cultura
guerreira— e ofereceu uma possível solução a esta situação no desenvolvimento
harmônico de nossos três cérebros. Nos últimos tempos coordenou a obra 27
personagens em busca do ser, aonde, junto a uma equipe de colaboradores no âmbito
da psicoterapia, escreve sobre o inédito assunto dos 27 subtipos da psicologia dos
eneatipos; ademais, prepara uma nova série de obras sobre eneagrama e outros temas
diversos, como hermenêutica musical. Recentemente, publicou também Ayahuasca, a
videira do rio celestial, que recolhe cinquenta anos de seu trabalho de investigação em
psicoterapia com esta bebida amazônica, e A revolução que esperávamos, por uma
política da consciência que constitua um antídoto para nosso mundo em crise.
Desde finais dos noventa, o doutor Naranjo tem oferecido muitas conferências sobre
educação e trata de influir na transformação do sistema educativo em distintos países.
É sua convicção de que “nada é mais esperançoso, em termos de evolução social, que o
fomento coletivo da sabedoria, a compaixão e a liberdade individual”.
Através de seu livro Mudar a educação para mudar o mundo, publicado em 2004, tem
tratado de estimular os esforços dos professores entre os graduados do SAT que
começam a implicar-se no projeto do SAT educação, que oferece ao pessoal docente e
aos estudantes das escolas de educação um plano de estudos complementário em
autoconhecimento, reparação de relações parentais e cultura espiritual. Devido a essas
contribuições, a Universidade de Udine lhe conferiu, no ano de 2005, um Doutorado
Honoris Causa em Educação.
No ano de 2006 foi criada a Fundação Claudio Naranjo para aplicar as propostas do
doutor Naranjo concernentes à transformação da educação tradicional em uma
educação que no descuide do desenvolvimento humano do que depende, em sua
opinião, nossa evolução social.

Links
Página web personal: http://www.claudionaranjo.net
Fundação Claudio Naranjo: http://www.fundacionclaudionaranjo.com/
Edições La Llave: http://www.edicioneslallave.com
Programa SAT : http://www.programasat.com
Outros livros de Claudio Naranjo

A velha e novíssima gestalt: Atitude e prática


A agonia do patriarcado
A única busca
Caráter e neurose*
Entre meditação e psicoterapia*
O eneagrama da sociedade. Males do mundo, males da alma*
Mudar la educação para mudar o mundo*
Cantos do despertar*
Gestalt de vanguarda*
Coisas que venho dizendo*
A criança divina e o herói
Por uma gestalt viva*
A mente patriarcal
Curar a civilização*
Autoconhecimento transformador*
27 personagens en busca do ser*
Ayahuasca, a videira do rio celestial*
A revolução que esperávamos*
A viagem interior nos clássicos do Oriente*
Psicologia dos eneatipos – Vaidade*
Gestalt sem fronteiras*
Budismo dionisíaco* * Títulos publicados e Edições La Llave

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