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André Antoine no Brasil: a polêmica com Artur Azevedo

A ndré Antoine no Brasil:


a polêmica com Artur Azevedo

J oão Roberto Faria

A
o contrário do romantismo e do realismo, Diante do universo ficcional naturalista,
o naturalismo teatral encontrou imensas que se queria tão próximo da realidade, as rea-
dificuldades para se aclimatar no Brasil. ções de críticos e de leitores comuns foram di-
De um modo geral, nossos autores dramá- versas, desde a aceitação incondicional do que
ticos e nossas platéias, no último quartel parecia então uma forma moderna de fazer lite-
do século XIX, preferiram as formas populares ratura à recusa de todos os postulados estéticos
do teatro cômico e musicado – opereta, mági- do movimento fortemente influenciado pela ci-
ca, revista de ano, comédia de costumes – ao ência do tempo. Assim foi em relação ao roman-
drama sério, voltado para a representação das ce, sobretudo na França, a despeito do enorme
mazelas sociais e humanas. Claro que houve sucesso popular de um Émile Zola. Quando o
tentativas naturalistas importantes, principal- mesmo Zola tentou levar ao teatro os procedi-
mente com Aluísio Azevedo, que adaptou O mentos naturalistas para criar uma nova drama-
Mulato para o teatro e escreveu algumas peças turgia e recriar a realidade no palco, as reações
com características do movimento literário que contrárias aumentaram, seja por causa dos con-
abraçara já como romancista. Émile Zola tam- teúdos dos seus romances, muitas vezes consi-
bém esteve presente nos palcos brasileiros, com derados imorais, seja porque o resultado artísti-
as adaptações de seus romances Thérèse Raquin, co das adaptações deixava a desejar.
L’Assommoir e Nana. Igualmente ganharam Para levar o naturalismo ao palco, Zola
adaptações teatrais os romances naturalistas de contou com a inestimável colaboração de André
Eça de Queirós, O Primo Basílio e O Crime do Antoine, que em 1887 criou o Théâtre Libre,
Padre Amaro, ambos motivo de muita polêmica em Paris. Nesse teatro, que foi um verdadeiro
literária. Graças à presença de companhias tea- laboratório de ensaio, ao longo de sete anos
trais estrangeiras, outros autores e peças com ca- Antoine encenou dezenas de peças de escritores
racterísticas do naturalismo puderam ser conhe- naturalistas e ao mesmo tempo desenvolveu
cidos e apreciados, a exemplo de Ibsen e suas uma nova maneira de conceber o espetáculo tea-
peças Os Espectros e Casa de Boneca. tral, com base em idéias muito próprias acerca

João Roberto Faria é professor titular do Departamento de Literatura Brasileira da FFLCH-USP.

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da exatidão do cenário – que devia corresponder eles ocuparam o Teatro Lírico, onde represen-
ao que eram as descrições nos romances natura- taram nada menos que vinte e nove peças, en-
listas –, da iluminação, dos figurinos e da inter- tre elas algumas tentativas dramáticas do natu-
pretação – o ator devia imaginar uma “quarta ralismo, como Jacques Damour, peça em um ato
parede” separando o palco da platéia –, tudo vi- tirada de um conto de Zola, que havia figurado
sando a um efeito de conjunto. Antoine revo- no primeiro espetáculo do Théâtre Libre, em
lucionou a cena francesa e muitos dos seus pro- 1887, e La Fille Elisa, adaptação do romance
cedimentos foram então adotados em outros homônimo de Edmond de Goncourt. O reper-
teatros parisienses. Mas além de admiradores, tório, desigual, continha várias peças curtas de
ele teve muitos críticos, que não souberam ver pouca importância, que serviam apenas para um
em seu trabalho o nascimento da encenação ator ou uma atriz demonstrar o seu talento, al-
moderna. O mais poderoso dos críticos teatrais gumas comédias inspiradíssimas de Courteline,
franceses, Francisque Sarcey, não aceitou nem alguns vaudevilles centrados no tema do adulté-
as inovações de Antoine e muito menos as pe- rio, Os Espectros de Ibsen, Poil de Carotte de Jules
ças de cunho naturalista ou que se afastavam do Renard e boas peças de autores caros a Antoine,
modelo da então chamada “pièce bien faite”. como Eugène Brieux, François de Curel, Geor-
Sarcey já se opusera a Émile Zola e não acredi- ges Ancey, Maurice Donnay, Lucien Descaves,
tava que se pudesse fazer teatro sem o uso das Henry Bernstein, Hauptmann e Sudermann.
convenções, cuja natureza anti-realista incomo- Todos esses dramaturgos eram muito requisita-
dava os escritores naturalistas. dos pelos teatros de Paris e representavam o que
Tudo o que ficou resumido nos dois pa- havia de mais atual na dramaturgia.
rágrafos anteriores era do conhecimento do A expectativa criada em torno da vinda
meio teatral brasileiro e dos nossos intelectuais, de Antoine foi muito grande. Os principais jor-
igualmente divididos entre os que acreditavam nais do Rio de Janeiro dedicaram bastante es-
nas possibilidades do naturalismo no teatro e paço para explicar a trajetória, o repertório e as
aqueles que eram contrários a um teatro feito idéias do artista, que desde 1897 vinha obten-
sem o uso das convenções. Entre esses últimos, do enorme sucesso à frente do Théâtre Antoine,
e fiel seguidor das idéias de Francisque Sarcey, o sucedâneo do Théâtre Libre, mas organizado
estava Artur Azevedo, nosso mais completo ho- como companhia dramática profissional. O Jor-
mem de teatro do século XIX, autor que domi- nal do Brasil de 30 de junho de 1903, por exem-
nou a cena carioca entre 1873 e 1908. Em plo, ocupou toda a primeira página e a metade
1899, Artur já havia polemizado com um inte- superior da segunda com uma detalhada maté-
lectual do seu tempo, Luís de Castro, a propó- ria assinada por Cunha e Costa. No mesmo dia,
sito de Ibsen, autor que a seu ver era um grande artigos de divulgação não assinados foram tam-
pensador, mas não um dramaturgo. O que se bém publicados na Gazeta de Notícias e no Jor-
vai ler em seguida é uma polêmica nascida nes- nal do Comércio. Já n’O País, Artur Azevedo as-
se clima de discussões a respeito do naturalismo sinou o seu. Trata-se de um artigo que mostra
no teatro, envolvendo justamente André Antoi- bem o quanto estava a par do teatro francês do
ne e Artur Azevedo. Pouca gente sabe que o fa- seu tempo. Além de apresentar resumidamen-
moso criador do Théâtre Libre esteve no Brasil em te a história do Théâtre Libre, ele destaca entre
1903 e que seus espetáculos foram tão admirados as conquistas de Antoine a revelação de vários
quanto criticados por nossos intelectuais. dramaturgos franceses e estrangeiros de valor, a
formação de bons intérpretes e a criação de uma
A vinda de André Antoine e sua troupe ao Rio nova maneira de encenar peças, que teria leva-
de Janeiro foi o principal acontecimento teatral do os outros teatros parisienses a cuidar melhor
do ano de 1903. Entre os dias 1o e 26 de julho do espetáculo. Artur lembra que Francisque Sar-

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cey, o principal crítico teatral da França na oca- nal, não o impressionara mais que alguns ou-
sião, recebeu o Théâtre Libre “com um pé atrás”, tros que já haviam representado no Brasil.
que fez muitas restrições ao modo de interpre- Nos espetáculos dos dias 2, 3 e 4 de ju-
tação de Antoine – porque falava baixo e virava lho, Antoine apresentou respectivamente: a co-
as costas para a platéia –, mas que nos últimos média Boubouroche, de Courteline, e La Fille
tempos o elogiava bastante e, se não tivesse Elisa; L’Honneur, de Sudermann; Les Rempla-
morrido em 1899, acabaria por reconhecer a çantes, de Brieux, e Jacques Damour. No Correio
revolução feita pelo artista. Afinal, “Antoine foi da Manhã de 5 de julho, Artur Azevedo escre-
um frondeur implacável: abriu uma nova cor- veu um folhetim no qual afirma que, exceção
rente à produção dramática, abalou costumes e feita a L’Enquête e La Fille Elisa, as outras peças
tradições, criou ideais artísticos e literários. O seu não se afastam dos velhos moldes dramáticos.
nome ficará eternamente ligado à história do A seu ver, do repertório primitivo do Théâtre
teatro”. Libre, restaram “as peças que utilizaram as fór-
Como se vê, é com extrema simpatia e mulas consagradas pelo uso e que foram escri-
boa vontade que Artur Azevedo apresenta o ator tas por dramaturgos hábeis que, depois de um
e encenador francês aos seus leitores. E é com assomo fugaz de independência e rebeldia, se
entusiasmo que registra as suas impressões do convenceram de que sem aquelas fórmulas não
primeiro espetáculo dado pela companhia dra- há teatro possível”.
mática de Antoine, composto por duas peças: O argumento faz lembrar Sarcey, que de
L’Enquête, de Henriot, e Blanchette, de Brieux. fato é mais uma vez evocado para negar o valor
N’A Notícia de 2/3 de julho, escreve que a pri- das experiências naturalistas no terreno da dra-
meira é “menos uma peça que um estudo patoló- maturgia: “experimento, ao ver em cena La Fille
gico” e resume o seu enredo: “Um magistrado Elisa, ou qualquer outro drama sem princípio
epilético matou um colega sem ter consciência nem fim, isto é, sem exposição nem desenlace,
disso, e é, por casualidade, o juiz de instrução en- a mesma desagradável impressão que o velho
carregado do respectivo inquérito. Numa cena, crítico sentia”. Essa peça tirada de um romance
realmente empolgante, descobre-se que foi ele de Edmond de Goncourt, no entanto, fazia gran-
o assassino, e o desgraçado cai fulminado”. A de sucesso junto ao público, porque o seu se-
peça é desinteressante, mas Artur passou por cima gundo ato era na quase totalidade um discurso
desse detalhe, maravilhado com a interpretação de feito num tribunal, com duração de trinta e cin-
Antoine, com sua incrível naturalidade em cena: co minutos, no qual Antoine, no papel de um
“Não se pode imitar a verdade com mais talen- advogado, fazia com muito brilho a defesa da
to; aquilo não é representar: é viver”. mocinha, uma prostituta pobre que assassinara
Em relação a Blanchette, peça que Lu- o namorado. Na verdade, tal discurso possibili-
cinda Simões já havia representado no Brasil e tava resumir o romance e suas teses naturalistas,
que põe em cena os conflitos entre um casal de relativas à influência do meio e da heredi-
operários e a filha que estudou num bom colé- tariedade no comportamento da protagonista.
gio, Artur não se manifestou, limitando-se a Artur Azevedo volta a escrever sobre as
louvar mais uma vez a interpretação naturalista interpretações de Antoine, mas com menos en-
de Antoine – “o espectador esquece-se de que tusiasmo, enfatizando que não o vê como um
está no teatro” –, o desempenho da atriz Suzanne revolucionário da arte de representar. Embora
Desprès no papel da protagonista e a “harmo- considere o trabalho do ator “completo como
nia de conjunto” da representação. Apesar dos imitação da vida”, a ponto de fazer o especta-
elogios, dizia aguardar o trabalho de Antoine dor se esquecer de que está no teatro, afirma que
em outras peças “para apreciar a apregoada no- tivera essa mesma impressão vinte anos antes,
vidade dos processos do grande artista” que, afi- com atores da Comédie Française representando

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peças de atualidade. Antoine teria apenas aper- sua trajetória artística e suas idéias teatrais. O
feiçoado a naturalidade já presente nas interpre- teatro estava cheio, segundo os relatos da épo-
tações de atores como Got, Coquelin, Delamay ca. E já no início da leitura do seu texto, depois
e outros. de contar que antes da viagem procurara infor-
Para finalizar o folhetim, Artur dá mais mações sobre o Brasil, e que lhe haviam dito
uma alfinetada na troupe francesa, comparando alguns disparates, relativos a serpentes nos cor-
a encenação de L’Honneur com a que fora feita redores dos hotéis e bandos de macacos nas ruas,
um ano antes no Rio de Janeiro pela compa- Antoine solta a primeira carapuça. Diz que não
nhia dramática de Dias Braga. Não que os bra- viu os tais macacos e papagaios nas ruas do Rio
sileiros tivessem representado melhor a peça de de Janeiro e que, “à guisa de serpente”, o que
Sudermann; mas “o confronto foi honrosíssimo encontrou “foi tão somente o velho espírito de
para os artistas do Recreio Dramático”. Assim, Sarcey, que eu supunha adormecido no paraíso
um tanto ironicamente, conclui o nosso come- dos folhetinistas, e que descobri agachado sob
diógrafo: “Agradeço ao ilustre Antoine ter nos as flores de um dos vossos críticos principais” 1.
trazido a esmola da sua arte impecável, ter nos É possível imaginar o susto e o incômo-
proporcionado o inefável ensejo de o admirar e do de Artur Azevedo. Mas Antoine mudou de
aplaudir; mas agradeço-lhe também e princi- assunto e passou a falar sobre a importância que
palmente o nos ter mostrado que a nossa prata da dava à excursão de seu grupo à América do Sul,
casa não é, graças a Deus, um reles pechisbeque”. assim definindo os seus objetivos:
Seria de se esperar que o folhetim seguin- “De fato, o único intuito verdadeiramente
te viesse repleto de restrições. Até porque entre interessante que nos anima, não consiste de
as peças que deviam ser comentadas – La Tante modo algum na pretensão, que talvez nos fos-
Léontine, de Maurice Boniface e Édouard Bo- se por vós atribuída, de dar-vos a conhecer
din; Mariage d’Argent, de Eugène Bourgeois; uma companhia de atores superior a esta ou
L’Indiscret, de Edmond Sée; e Son Petir Coeur, àquela.
de Louis Marsolleau – não havia nenhuma obra- Laborando talvez em erro, visamos, entretan-
prima. Apenas as duas primeiras, comédias to, mais alto e queremos, sobretudo, apresen-
centradas na questão do dinheiro, ofereciam al- tar-vos um quadro original, sumário, mas sig-
gum interesse, porque apresentavam, respecti- nificativo e completo da atual produção dra-
vamente, a corrupção do burguês rico e do cam- mática na França. O que mais ambicionamos
ponês pobre. Mas Artur, escrevendo agora n’A é mostrar-vos, num agrupamento caracterís-
Notícia de 8/9 de julho, refere-se apenas por alto tico, único pelas ligações e comparações que
ao repertório até então encenado e até lamenta exige, uma obra importante de cada um dos
a pouca afluência da sociedade fluminense ao autores dramáticos que se revelaram em nos-
Teatro Lírico. Mal sabia ele que algum desafeto so teatro e se impuseram ao público nestes
tivera a idéia de mostrar o folhetim anterior a últimos quinze anos.
Antoine, traduzindo-lhe evidentemente as pas- Numa palavra, desejaríamos que apreciásseis,
sagens que não lhe eram favoráveis. Na noite por exemplos alternados, a importante evo-
do dia 10, o folhetinista brasileiro estava no seu lução teatral realizada na França e que, pode-
posto para assistir à adaptação do conto Bola de mos afirmar com segurança, se fez sentir na
Sebo, de Maupassant, e para ouvir a anunciada quase totalidade da produção dramática eu-
e esperada conferência de Antoine, na qual o ropéia. Por maior que seja, em suma, a in-
encenador deveria falar sobre o Théâtre Libre, dulgência com que vos aprouve julgar-nos,

1 A conferência de Antoine foi publicada no Jornal do Comércio de 11 de julho de 1903, à p. 2.

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cumpre-me dizer-vos que não são os artistas Depois dessas palavras, Antoine faz um breve
e sim os autores do Teatro Livre e do Teatro histórico da batalha naturalista no teatro, lem-
Antoine que aqui se acham em excursão”. brando as dificuldades enfrentadas por Zola,
Antoine sabe que a platéia brasileira já aplaudi- Flaubert, Daudet e Becque. E aponta o inimi-
ra grandes artistas estrangeiros como Réjane, go número um das tentativas de renovação na-
Sarah Bernhardt e Duse, em peças sentimentais, turalista: Sarcey, “alojado no rés do chão do mais
fábulas romanescas e poéticas que nada tinham poderoso dos nossos jornais”. Procurando ser
a ver com o seu repertório. Por isso chama a justo com a memória do grande crítico, o con-
atenção para a obra dos autores dramáticos que ferencista elogia a honestidade e a sinceridade
vai representar: com que ele defendia os seus pontos de vista.
Definindo-o como “o guarda consagrado das
“Os nossos autores compreenderam e senti- nossas instituições teatrais”, explica que se de-
ram que depois de todos os esplendores, de-
mora um pouco em falar sobre “esse adversário
pois de todo o prestígio estéril da forma, da
morto”, porque “vim encontrar aqui o seu nome
imaginação e da fantasia, o público moder-
e as suas doutrinas na pena de um dos vossos
no, já então mais educado, lhes pedia outras
críticos mais autorizados. Reli, traduzidas para
novelas menos pueris, escritas não para em-
a minha língua, as suas frases, que entre nós fi-
balar e adormecer a sua miséria e o seu labor,
caram famosas sobre a peça bem-feita”.
mas, pelo contrário, para estimular o seu es-
Era a segunda alusão a Artur Azevedo. A
forço, para acostumar cada qual ao livre exa-
terceira viria logo em seguida, depois de Antoi-
me de si próprio e dos outros, fazendo nascer
ne criticar as idéias teatrais de Sarcey. Dizia que
no coração do homem a audácia de aperfei-
çoar-se e de viver melhor.
insistia nesse ponto, porque lhe pareceu “tornar
As modestas histórias de camponeses, de sol-
a ver o velho defensor do vaudeville, surpreen-
dados, de operários, de marafonas, que aqui dendo o eco das suas teorias numa parte da vos-
vos apresentamos, correspondem todas a um sa imprensa”. A quarta e última foi a mais enfá-
problema social, a uma tara, a um abuso ou a tica. Antoine afirma que Sarcey “atacou cruel e
uma iniqüidade. perfidamente Becque (...), querelou obstinada-
E é assim que o teatro, por intermédio dos mente com Zola e a escola de Médan; repeliu e
jovens desta escola e desta época, e graças a excomungou os Goncourt”. E conclui:
essas obras, longe de perder-se por caminhos “O velho mestre do Temps esteve, pois, sem-
transversos ou por estradas desconhecidas, pre em oposição com o que nós admiramos
retorna ao seu ponto de partida, à sua função e, bem se pode dizer, somente no dia em que a
essencial. Deixa de ser um lugar de distração sua exaustada mão de bom trabalhador deixou
e de prazer, quase o mau lugar em que entre escapar-se-lhe o cetro da crítica que o teatro
nós escapou de transformar-se com o vaude- francês teve a sua liberdade. Se, conforme me
ville e a opereta. Passa outra vez a constituir
disseram, vos anima a bela e legítima ambi-
um meio de ensinar, a tribuna, a cátedra fecun-
ção de criar um teatro verdadeiramente são e
da em que se discutem as verdades eternas.
vivo, uma casa de arte nacional, defendei-vos
É um prazer um tanto severo, concordo; mas
dos Sarcey – se existem entre vós – e não os
porventura não será bom que esse farol seja
deixei manietar e esterilizar o vosso esforço”.
de quando em quando reaceso para manter a
irradiação da arte e da beleza? Segundo o Jornal do Comércio, essas palavras fo-
A grande honra do teatro naturalista e o úni- ram entusiasticamente aplaudidas. Estaria ain-
co merecimento dos obreiros do Teatro Livre da Artur Azevedo no teatro? Antoine termina a sua
foi justamente isso: sentir essa necessidade e conferência falando mais uma vez sobre a impor-
tentar restabelecer essa irradiação”. tância de Zola e dos escritores naturalistas para

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o teatro e particularmente para o Théâtre Libre. crítica da época. Assim, em relação ao repertó-
Pede aos ouvintes compreensão para o repertó- rio de Antoine, alguns críticos manifestaram o
rio apresentado: nem todas as peças são obras- seu desagrado com os assuntos tratados em
primas, mas representam tendências importan- cena. Na Gazeta de Notícias de 9 de julho, por
tes da dramaturgia francesa. Por último, explica exemplo, lia-se que “os espectadores da compa-
que os espetáculos que está apresentando são nhia Antoine estavam fatigados de tanta análise
prejudicados pelas condições precárias do Tea- da miséria humana. O bisturi naturalista, de que
tro Lírico: faria questão o Zola, espalhara pela sala uma
desolação”. Em compensação, nenhum folhe-
“Apresentamo-nos, entretanto, ao vosso jul-
tinista deixou de apontar a excelência dos intér-
gamento, os meus camaradas e eu, em condi-
pretes. Os elogios não eram somente para
ções verdadeiramente e muito especialmente
Antoine e Suzanne Desprès, mas também para
defeituosas. Este recinto de ópera ou de cir-
Signoret, Grand, Matrat, Grumbach, Van-Do-
co, as dimensões desta sala, tudo aqui nos
ren e outros artistas.
embaraça e prejudica. As peças e as persona-
Quanto à conferência propriamente dita,
gens que vos tentamos exibir ficam forçosa-
sua repercussão foi razoável no meio jornalís-
mente incompletas, sem a sua atmosfera, o
tico. Os folhetinistas resumiram o seu conteú-
seu meio, a sua perfeita encenação. Estes ce-
do – apenas o Jornal do Comércio a publicou na
nários são ridículos e, entretanto, nada se tor-
íntegra –, ao lado dos comentários sobre a peça
na mais preciso a estas obras de vida e de rea-
representada na mesma noite, mas não fizeram
lidade, nas quais a decoração, aqui como lá,
observações interessantes. Evidentemente, nin-
deve representar o papel que as descrições re-
guém além de Artur Azevedo sentiu-se atingi-
presentam no romance.
do pelas palavras de Antoine, que o transforma-
Alguns cenários que dificultosamente pude-
ram numa espécie de “Sarcey brasileiro”. Pego
mos trazer (porque esse material não tinha sido
de surpresa, porém, ficou na defensiva no fo-
feito para viajar), na ilusória esperança de re-
lhetim do Correio da Manhã de 12 de julho.
constituir, uma vez ao menos, diante dos vossos
Magoado, sentiu-se vítima de um golpe baixo,
olhos, um pouco da vida de uma peça, desa-
porque não mostraram ao encenador francês o
parecem aqui lugubremente, afogados em treva.
que havia escrito de positivo sobre ele. Quanto
Achamo-nos completamente privados do es-
a Sarcey, justificava tê-lo mencionado uma se-
sencial, da própria alma do teatro – a luz! Só
mana antes, pela seguinte razão: confessar leal e
ela pode dar cor a um cenário, à sua exten-
honestamente aos seus leitores “que não tinha
são, às suas perspectivas. A luz atua fisicamen-
podido emancipar o meu espírito das teorias do
te no espectador como o poema o sugestiona.
mestre; foi para os pôr de sobreaviso contra tudo
Sem ela, não pode uma peça exercer a sua
quanto eu pudesse dizer dos novos processos de
íntima significação”.
produção dramática”.
Apesar de todos os problemas apontados por Artur Azevedo afirma não estar fechado
Antoine, os espetáculos foram invariavelmente ao movimento de renovação dramática. Fossem
elogiados pelos principais jornais do Rio de Ja- os novos autores como Henry Becque e Bri-
neiro. E por uma única razão: nossos cronistas eux... Mas sua preferência é pelas tradições do
não davam muita importância aos acessórios de teatro francês, “tradições que devem ser respei-
uma encenação; não tinham ainda olhos para tadas, e constituem um patrimônio universal”.
enxergar o espetáculo em sua totalidade, preo- Por isso, não aprecia as “tranches de vie” apre-
cupados que estavam com o texto dramático e sentadas por Antoine. Não via nesse tipo de
com o desempenho dos artistas. De um modo peça um caminho para o teatro brasileiro. Além
geral, sobre esses dois elementos debruçava-se a disso, seu modelo de organização dramática era

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definitivamente a Comédie Française, não o borosa: “Para explicar a atenuação de certos efei-
Théâtre Libre. tos cênicos, Antoine queixa-se da vastidão do
A publicação da conferência de Antoine Lírico, e, sobretudo, da falta de luz, que, diz ele,
no Jornal do Comércio permitiu a Artur Azeve- é a alma do teatro, opinião que me parece me-
do voltar à polêmica com dados mais precisos. nos do revolucionário do Teatro Livre que do
N’A Notícia de 16/17 de julho, ele defende ex-empregado da companhia de gás”.
Sarcey dos ataques sofridos e esclarece a sua pró- Essas palavras mostram a força do pole-
pria posição em relação à peça bem-feita, dizen- mista, mas não fazem justiça a Antoine, o pri-
do que não é escravo da teoria, que não leva o meiro encenador europeu que, seguindo o e-
seu sarceysmo ao extremo e que não faz ques- xemplo de Wagner, em Bayreuth, apagou as luzes
tão de fórmulas exatas. O que quer de uma peça da platéia, para que o espectador concentrasse
de teatro “é que seja lógica, bem escrita, e me sua atenção no espetáculo, que por sua vez pôde
divirta fazendo-me rir ou sensibilizando-me”. incorporar novas experiências com a ilumi-
Um exemplo de peça assim era Un Client Sé- nação. Nosso comediógrafo mostrou-se mais
rieux, de Courteline, que Antoine havia ence- uma vez arredio às conquistas do nascente tea-
nado na noite de 14 de julho. Para Artur, não tro moderno, embora tenha defendido mais à
se tratava de uma peça bem-feita e talvez nem frente a necessidade da renovação dramática,
mesmo de uma peça, no sentido convencional afirmando que sempre aconselhou os empresá-
do termo, mas ele riu bastante e se divertiu: “é rios a que “procurassem na produção moderna
quanto basta para que eu não reclame absoluta- algumas peças com que fossem habituando pou-
mente o que lhe falta como produção teatral”. co a pouco o público aos novos processos da
Na mesma noite em que foi representada arte”.
a comédia de Courteline, subiu à cena também Tudo indica que Artur Azevedo ficou
Os Espectros, de Ibsen. Artur calou-se a respeito realmente agastado com a conferência de An-
da peça, limitando-se a defini-la como “genial toine e que perdeu o interesse em ver os seus
cacetada”, expressão irônica e paradoxal em que espetáculos. A prova disso é que se ausentou do
o segundo termo deve ser compreendido como Rio de Janeiro por alguns dias, escrevendo no
sinônimo de coisa chata e maçante. Se em 1899, folhetim de 23/24 de julho que não lhe pergun-
quando Casa de Boneca fora encenada no Rio tassem nada a respeito dos teatros. Uma sema-
de Janeiro, ele já havia demonstrado incompre- na depois, noticiando a partida da troupe fran-
ensão em relação à obra do dramaturgo norue- cesa para Buenos Aires, refere-se apenas a La
guês, a encenação que presenciou não o fez Clairière, de Maurice Donnay e Lucien Des-
mudar de idéia. caves, que havia sido representada na noite de
Na seqüência do folhetim vêm os ataques 23 de julho. É possível, pois, que tenha deixado
diretos a Antoine. Artur mantém a opinião de de ver entre dez e doze peças do repertório en-
que algumas peças do repertório apresentado cenado no Teatro Lírico, entre elas Le Marché,
são “insignificâncias” e que não tinha sentido de Henry Bernstein; Poil de Carotte, de Jules
uma companhia dramática viajar da Europa ao Renard; La Nouvelle Idole, de François de Curel;
Brasil para trazer “tendências”. Melhor seria se L’Âge Difficile, de Jules Lemaître; e Voiturier
tivesse deixado em Paris “esses ensaios anódinos, Henschel, de Hauptmann.
e só nos trouxesse o que exprimisse, não uma Se a dramaturgia trazida por Antoine não
tendência, mas um resultado definitivo”. Nem agradou a Artur Azevedo, os intérpretes, ao con-
mesmo a explicação acerca das condições pre- trário, o deixaram satisfeitíssimo. Não importava
cárias do Teatro Lírico escapou da crítica do a peça representada, o espetáculo era sempre
nosso folhetinista, que aproveitou um dado bi- “delicioso”, não apenas pelo trabalho individu-
ográfico de Antoine para fazer uma ironia sa- al de um artista, mas também pela harmonia do

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conjunto. Suzanne Desprès, Signoret, Grand, Azevedo que se intitula o Sarcey da América
Matrat, Grumbach e Van-Dorem mereceram do Sul, e ao termos nossa primeira e única
elogios – alguns calorosos –, mas o chefe da entrevista, farejei o inimigo.
companhia pagou pelas carapuças da conferên- Ele cobriu-me de flores e depois começou a
cia: “Antoine é um excelente ator, com o lasti- atirar-me com todos os velhos chavões de há
mável defeito de se reproduzir todas as vezes que quinze anos: inutilidade da mise en scène, fa-
se não encarrega de um papel profundamente tias de vida, peças bem feitas... confeccionei
característico. Em algumas peças sacrifica tanto então em dois dias e duas noites a minha con-
os efeitos teatrais aos seus processos de natura- ferência e o fustiguei durante uma hora, sob
lismo à outrance, que chega a parecer medíocre; os aplausos entusiásticos da platéia, encanta-
entretanto, em outras, como na Clairière, vibra, da com esse espetáculo. Sete ou oito chama-
sacode os nervos ao espectador, e mostra haver das e sete mil francos de receita. O diretor do
estudado deveras a sua arte”. Temps daqui precipitou-se no meu camarim,
A querela poderia ter terminado com esse arrancou-me o manuscrito e no dia seguinte,
folhetim, não fossem as provocações lançadas de manhã, às oito horas, apareceu todo tra-
por Antoine nos meses seguintes. Em agosto, duzido. Grande efeito. Destruí esse homem
ele teria escrito uma carta a Edmond Sée, con- no espírito dos seus compatriotas.
tendo críticas ao público do Rio de Janeiro, No dia seguinte, o presidente da República,
conforme registra Olavo Bilac em folhetim es- que seguia com cuidado a questão, acompa-
tampado na Gazeta de Notícias de 23 do mes- nhado de duas filhas, mandou-me chamar
mo mês. Em outubro, no dia 17, o Correio da durante o espetáculo à sua tribuna para me
Manhã reproduz uma segunda carta do artista, felicitar”.
enviada ao escritor Gabriel Trarieux e publicada A agressão gratuita de Antoine não merecia res-
no Gil Blas de Paris, na qual ele comenta a re- posta inteligente, com idéias e argumentos. Ar-
cepção que teve no Rio de Janeiro e volta a ata- tur Azevedo, irritado, escreveu n’O País de 19
car diretamente Artur Azevedo. No balanço que de outubro um artigo ainda mais violento, cha-
fez, considerou que o grande público não sou- mando o seu desafeto de mentiroso e desequi-
be apreciar a sua arte, mas que os folhetinistas librado mental. Além disso, desqualificou-o como
em geral a compreenderam muito bem. ator, dizendo que quando o viu na estréia da
Quanto às peças apresentadas, salientou: companhia no Rio de Janeiro, admirou o talen-
que La Dupe, de Georges Ancey, e La Nouvelle to com que imitava os cacoetes de um epilético,
Idole, de Curel, não agradaram muito; que Les mas ao vê-lo em outros papéis, concluiu que
Remplaçantes e Blanchette, de Brieux, L’Âge eram sempre “os mesmos trejeitos, as mesmas
Difficile, de Jules Lemaître e La Main Gauche, contrações nervosas, o mesmo caimento de pál-
de Pierre Veber triunfaram; que Au Théléphone, pebras e o mesmo arrastamento de pernas”. E
de André de Lord e L’Enquête, de Henriot fo- isso só podia significar uma coisa: “comecei a
ram recebidas como em Paris, sem explicar o dizer de mim para mim que o homenzinho
que isso significava; que Courteline foi bastan- estava gravemente enfermo” 2. Como se vê, já
te apreciado; que Poil de Carotte, de Jules não havia mais possibilidade de um debate lite-
Renard, e La Fille Elisa, de Ajalbert provocaram rário e teatral. As questões estéticas que haviam
“espanto e transportes um pouco preparados”; sido levantadas pelos folhetins anteriores de Ar-
e que Os Espectros, de Ibsen não foi compreen- tur e pela conferência de Antoine ficaram em se-
dida. Na parte em que se refere a Artur Azeve- gundo plano, suplantadas pelos ataques pessoais.
do, escreveu:
“A imprensa está bastante adiantada. Toda- Seria exaustivo e desnecessariamente repetitivo
via, o lugar de chefe é exercido por um certo comentar todos os folhetins que foram escritos

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André Antoine no Brasil: a polêmica com Artur Azevedo

a propósito dos espetáculos dados no Rio de Ja- Bilac elogia bastante o trabalho de An-
neiro pela troupe de Antoine. Cada jornal desta- toine como ator e encenador, admirando-se de
cou um folhetinista para acompanhar a tempo- que ele tenha conseguido ótimos resultados
rada e todos os espetáculos ganharam destaque num teatro precário, sem cenários e iluminação
nas seções destinadas à crítica teatral. Além dis- adequados. Tratava-se sem dúvida de uma bela
so, outros intelectuais e jornalistas se manifes- conquista do naturalismo “essa entronização de-
taram, escrevendo artigos ou a favor do reper- finitiva da verdade na arte de representar”, di-
tório e dos novos procedimentos cênicos, ou zia, antes de chegar à idéia principal de sua crô-
contra. A questão do naturalismo no teatro veio nica: contrapor a excelência da interpretação
à tona, evidentemente, discutida tanto em fun- naturalista à problemática e desagradável dra-
ção das peças representadas quanto da interpre- maturgia escrita sob a inspiração desse movi-
tação dos artistas. Sobre o assunto, talvez as opi- mento literário. A seu ver, o repertório de An-
niões mais sensatas e inteligentes sobre as vitó- toine, “com a sua preocupação de só reproduzir
rias e derrotas do naturalismo teatral no Brasil a verdade, é só uma fábrica de desesperos, de
tenham sido as de Olavo Bilac, que não era crí- angústias e de tédio”. A secura e a frieza das peças
tico militante mas freqüentador assíduo dos te- modernas, apresentando a vida e o homem co-
atros, onde às vezes colhia material para as suas mo eles são, afasta do teatro aqueles que querem
crônicas3. Vale a pena comentá-las. fugir das verdades do cotidiano e de si próprios:
Os primeiros espetáculos de Antoine, a-
“Ir ao teatro para admirar a epilepsia, a histe-
presentando enredos, temas e personagens ca-
ria, os desvios da sensibilidade, as perversões
ros aos escritores naturalistas, bem como
do sentido genésico, as traições e as perfídias,
interpretações que primavam pela naturalidade,
a animalidade baixa da gente do campo, a
pela imitação perfeita da vida real, despertaram
duplicidade feroz da gente das cidades, as in-
algumas reflexões em Bilac, que as aproveitou
justiças de que a vida está cheia, a arrogância
na crônica publicada na Gazeta de Notícias de 5
brutal dos fortes, a repugnante covardia dos
de julho de 1903. Para ele, a arte do intérprete
fracos, a inconsciência bestial dos que obede-
tinha chegado à perfeição com os procedimen-
cem, a vaidade insultuosa dos que mandam,
tos naturalistas. Era impossível ir mais longe, re-
é ir procurar, na sociedade e no convívio edu-
presentar com mais simplicidade, verdade e
cado, o que se encontra, com menos incô-
“humanidade”. O pano de boca do teatro “não
modo e menor despesa, na solidão. Para ver
se levanta ali para descobrir um horizonte de fic-
tudo isso, não é preciso vestir uma casaca e
ção e de sonho, mas para deixar a nu um vasto
pôr no peito uma camélia”.
espelho em que a vida se reflete, em toda a sua
realidade, e (ai de nós!) em toda a sua fealdade. Para Bilac, essa dramaturgia não podia ser defi-
Representar assim, não é só interpretar a vida: é nitiva. Era uma dramaturgia de transição. O na-
viver. E parece que aquilo é definitivamente, a turalismo havia dado uma contribuição decisi-
perfeição na arte de representar”. va ao teatro, aprimorando a reprodução da

2 Sobre a crítica teatral no final do século XIX e em especial sobre a crítica como polêmica, tal como a
exerceu muitas vezes Artur Azevedo, pode-se ler com muito proveito o texto “Crítica a vapor: a crônica
teatral brasileira da virada do século”, de Flora Süssekind (In: Papéis Colados, Rio de Janeiro, Editora
UFRJ, 1993, p. 53-90).
3 Leia-se, a propósito o belo ensaio de Antonio Dimas, “Bilac e o Teatro”. In: FARIA, ARÊAS &
AGUIAR (orgs.). Décio de Almeida Prado: Um Homem de Teatro. (São Paulo, EDUSP/FAPESP, 1997,
p. 381-404).

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sala preta

verdade em cena por meio da arte de represen- dias (...)


tar e da arte de encenar. Tratava-se de uma gran- E o pobre diabo, que ali foi buscar um pouco
de conquista, sem dúvida. Mas para o futuro era de repouso moral, sente renascer no seu espí-
preciso construir uma nova arte dramática, as- rito a grande náusea que o torturou durante
sentada sobre esse “arcabouço de verdade” da re- o dia, e vai dormir, com o desespero no cora-
presentação e feita por “uma nova geração de ção, misturando a vida real e a arte no mes-
artistas da palavra, de fixadores de sonhos, de mo desconsolado desengano”.
consoladores de almas”. Bilac quer a poesia de Não haveria na descrição das peripécias desse
volta no teatro e sugere que o modelo ainda é o suposto espectador uma das explicações possí-
eterno Shakespeare. Assim, “os encenadores, veis para a recusa do naturalismo teatral no Bra-
que quiserem ser perfeitos, terão de ser o que é sil? Provavelmente sim. O teatro, além de ser
Antoine. Mas os dramaturgos, que quiserem ser um espaço de convívio social, era um dos pou-
grandes, terão de abrir nos seus poemas um lar- cos divertimentos da época, razão pela qual fa-
go espaço para o sonho”. ziam sucesso os gêneros mais populares da re-
Essas palavras foram escritas quando vista de ano, da opereta e da mágica. Quanto
Antoine tinha encenado apenas sete ou oito ao teatro literário reivindicado pelos intelectu-
peças do seu repertório. Ao final da tempora- ais, esclareça-se que a maioria deles não viu com
da – que de um modo geral não atraiu muito bons olhos as tentativas dramáticas naturalistas
público ao Teatro Lírico, talvez porque as pe- e contentou-se com modelos buscados em Du-
ças eram representadas em francês e pouco co- mas Filho, Augier e Sardou. Nesse contexto, do
nhecidas, os assuntos desagradáveis e o preço do naturalismo interessou apenas o aprimoramen-
ingresso caríssimo –, Bilac comentou mais uma to da arte de representar com o máximo de na-
vez em sua crônica de 26 de julho as “tranches de turalidade, que aliás já havia tido entre nós vá-
vie” naturalistas. Em tom mais irônico e agressivo, rios artistas notáveis, habilíssimos intérpretes de
criticou a dramaturgia desagradável apresenta- peças realistas, como Furtado Coelho e Lucinda
da por Antoine nos seguintes termos: Simões, antes mesmo de Antoine pôr os pés no
“O homem que, durante o dia, labutou e pe- Rio de Janeiro.
nou, em contato com a miséria ou com o ego- Nos dois últimos decênios do século XIX,
ísmo dos outros, mergulhado até os cabelos por inúmeras razões, a dramaturgia naturalista
na água turva dos negócios, achando em cada não conseguiu se impor no Brasil. As peças que
esquina uma traição e em cada casa um sofri- vieram de fora foram aplaudidas com parcimô-
mento, adivinhando em cada aperto de mão nia e as que foram feitas aqui não passaram de
um interesse, vendo em cada sorriso uma experiências mal assimiladas. As reflexões e dis-
mentira, sente, ao cair da tarde, quando che- cussões sobre o assunto também não abriram
ga a hora do repouso e do divertimento, um caminho para o surgimento de uma dramatur-
grande alívio na alma, e prepara-se para pas- gia plenamente identificada com o naturalismo.
sar alguns momentos de prazer intelectual e Ficamos, pois, sem as primeiras sementes do te-
consolador. Vai ao teatro, instala-se na sua atro moderno, naquela altura já semeadas e dan-
cadeira, e espera com ansiedade, o levantar do frutos em vários países europeus. As conse-
do pano. qüências desse fato são conhecidas de todos:
Levanta-se o pano: e eis que o drama, como interrompida a seqüência histórica que viera do
um cinematógrafo perverso, começa a repro- romantismo ao realismo, nosso teatro ganhou
duzir a mesma série de misérias, de egoísmos, animação no palco, mas perdeu consistência li-
de interesses, de traições, de sofrimentos, que terária. Restrito ao circuito comercial e sem
povoam o grande teatro da vida de todos os apoio do governo, que poderia subsidiar uma

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André Antoine no Brasil: a polêmica com Artur Azevedo

companhia dramática para acolher originais formas do teatro cômico e musicado importa-
brasileiros de boa qualidade artística, nossa dra- das da França.
maturgia do período dialogou apenas com as

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