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Bidlioteca Pionelia de Estudos Brasileiros OS CRISTAOS-NOVOS POVOAMENTO E CONQUISTA DO SOLO BRASILEIRO (1530-1680) José Goncalves Salvador Biblioteca Pioneira de Estudos Brasileiros OS CRISTAOS-NOVOS POVOAMENTO E CONQUISTA DO SOLO BRASILEIRO Ble Mle eee Cocos © AUTOR de CrisiGos-Novos, Jesuitas © Inquisigdo (Pioneira, 4969) apresenta agora aos leifores um trabalho de grande enverga- dura no qual aborda quesfées pouco versadas da historiografia nacional e responde a algumas indagacoes suscitadas pela obra anterior, premiada com meng¢ao honrosa pelo Instituto Na- cional do Livro. Esta obra é um prosseguimento da ouira, mas sob diferentes as- pectos, quais sejam, o religioso € © social, respectivamente. Para este estudo, o Autor realizou exiensas e meticulosas pesquisas no Brasil e em Portugal — sobretudo na Torre do Tombo, nos arqui- vos Ultramarino e da Ajuda — permitindo o recolhimento de dados fundamentais para o esclarecimento da nossa forma¢ao étnica e social durante os 150 primeiros anos, bem como para o teferente 4 conquista do solo brasileiro. O livro esta dividido em duas partes, que se conjugam harmonio- samente, comecando pelo reexame da fese segundo a qual as populagoes meridionais do Brasil — a que Oliveira Viana dedi- cou uma de suas mais conhecidas obras, tirando conclusées fa- voraveis @ posicao arignisia — teriam marcado cunho aristocrdtico, tal a qualidade ou a nobreza de seus elementos formadores. GONGALVES SALVADOR susienta Donto de vista conirario, mostrande a participacao eficaz, em volume e qualidade, de povoadores ju- deus ou cristaos, pertencentes a classe média ou a niveis sociais inferiores. —Em abono da tematica geral, o Autor oferece dados e argumen- tos dignos de alto apreco, sobretudo no concernente a impor- tancia da imigra¢ao judaica, fato esse que representa, sem du- vida, uma contribui¢ao positiva em prol de estudo mais profundo acerca de nossas raizes éinicas ¢ culturais. Na segunda parte é tratada mais especificamente a presenc¢a dos Cristaos-Novos na conquista do solo brasileiro, incluindo a obtengdo de sesmarias, a exploragdao dos sertoes, o ataque aos aldeamentos jesuiticos do Paraguai e o subseqtiente recuo da linha de Tordesilhas. © quadro do bandeirismo paulisia ganha, desse modo, perspectivas novas. A valiosa contribuigao de Gon- CALVES SALVADOR recebeu o endosso da EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAo Paulo, co-editora deste langamento. LIVRARIA PIONEIRA EDITORA EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO JOSE GONCALVES SALVADOR OS CRISTAOS-NOVOS POVOAMENTO E CONQUISTA DO SOLO BRASILEIRO (1530-1680) _ _LIVRARIA PIONEIRA EDITORA EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO SAQ PAULO . Capa de Jaina Porficia Nenhuma parte deste livro poderd ser reproduzida sejam quais forem O$ mMeios empregados (mimeografia, xerox, darilografia, gravaco, re- produgao em disco ou em fita), sem a permissdo por escrico da Editora. Aos infratores se aplicam as sangGes previstas nos artigos 122 ¢ 130 da Lei a.9 5.988 de 14 de dezembro de 1 1976 Dadar as alvestor rerersades por ENIO MATHEUS GUAZZELLI & CLA. LTDA. 02515 ~ Praga Dirceu de Lima, 313 Telefore: 266-0926 Sto Paulo Impresso no Brasil Privvéeet tre Brazil Obra publicada com a colaboracao da UNIVERSIDADE DE SAO PAULO Reitor: Prof, Dr. Orlando Marques de Paiva EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO Presidente: Prof. Dr. Mario Guimaraes Ferri Comissdo Editorial: Presidente: Prof. Dr. Mario Guimaraes Feri (Instituto de Biociéncias), Membres: Prof, Dr. Antonio Brito da Cunha iinstituto de Biociéncias), Prof. Dr. Carlos da Silva Lacaz (Faculdade de Medicina), Prof. Dr. Pérsio de Souza Santos (Escola Politécnica) e Prof. Dr. Roque Spencer Maciel de Bartos (Faculdade de Educacaol, BIBLIOTECA PIONEIRA DE ESTUDOS BRASILEIROS Coordenagde OSMAR PIMENTEL A memdria de meus querides pais, Elias Goncalves Salvador e Encarnagio Goncalves Cardoso. O mew sincero agradecimenta a Fundacis de Amparo & Pesquisa do Estado de Sio Paulo e ap Institute de Alea Cultura, do Ministério da Educagdo de Portugal, 6s quais, através de suas ajudas valiosas, permitiram-me realizar excensas pesqui- sas no Brasil ¢ aaquele pais, além de manter uma proveitosa correspondéncia com aiguns ifustres historiadores do Paraguai, Argentina, Franga, Holanda ¢ Is- rae Prefacio, XT Introdugdo, XVI PARTE A A Formacao Etnica e Social das Capitanias do Sul Capitile Primetra Os Cristaos-Novos e a Questao Filogenética, 3 Capitals Segundo Os Estatutos de Pureza Sangiiinea ¢ a Nobreza do Sul, 19 Capitulo Tercerro Uma Avaliagio Quantitativa dos Cristaos-Novos nas Capitanias do Sul, 45 Capttuls Quarto O Elemento Flutuante nas Capitanias do Sul, 69 Capituls Quinta Os Cristdos-Novos Estrangeiros nas Capitanias do Sul, 85 Capituls Sexto Cristaos-Novos Portugueses Radicados nas Capitanias do Sul, 107 A. No Espirito Santo, 108 B. Na Capitania de Sao Vicente, 124 C. No Rio de Janeiro, 153 Capituls Sétimo A Contribuicdo Cultural dos Cristaos-Novos a Sociedade Luso-Brasileira, 211 PARTE B A Presenga dos Cristéaos-Novos na Conquista do Solo Brasileiro Capttule Primeiro Os Primérdios da Ocupagao do Solo, 237 Capttule Segands A Colonizacao Sistematica do Brasil, 241 ituela Terceire © Povyoamente das Cz Novos, 249 itanias Meridionais e os Cristaos- Capitula Quarta Os Cristéos-Novos ¢ a Exploracdo dos Sertaes, 263 itule Quinte © Recuo da Linha de Tordesilhas © os Cristaos-Novos, 283 (strangeiro ¢ os C dos-Novos, 319 1. Ingleses no Brasil e Cristidos-Noves, 319 2. Os Franceses ¢ a Conquista de Solo Brasileiro, 324 3. Holandeses e Cristaos-Novos no Brasil, 328 Consideragoes Finais, 369 Apéndice, 377 Abreviaturas, 383 Fontes ¢ Bibliografias, 387 indice Onomastico, 399 Prefacio José Gongalves Salvador — um dos mais respeitados historiado- res brasileiros, merecidamente acatado no Pais ¢ no estrangeiro — é bacharel ¢ licenciado em Geografia ¢ Historia pela Universidade de $a0 Paulo, bacharel em Teologia e, ainda, Doutor em Ciéncias pela entao Faculdade de Filosofia, Ciéncias e Letras da Universidade de Sao Paulo. Figura no rol dos doceates do Ensino Superior que nos infundem natucalmente respeito ¢ admiracao, Dorado da mais ala qualificacgao profissional, cultural & cientifica, revela-se, outrossim, no setor do ensino como distinto professor, exercendo o magistério no Grande Séo Paulo. José Goncalves Salvador participou do ¥ Coléquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, realizado na cidade de Coimbra, em 1963. Neste ano e em 1970, com ajuda financeira da Fundacgdo de Amparo 4 Pesquisa do Estado de Sao Paulo, da Fundacac Calouste Gulbenkian ¢ do Instituro de Alta Cultura do Ministério da Educa- so de Portugal, trabalhou nos Arquivos piblicos e particulares de Portugal, notadamente nos ricos acervos de Lisboa, ultimando segui- damente suas pesquisas em Sao Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Bue- nos Aites. José Goncalves Salvador é um dos grandes especialistas em His t6ria dos Cristias-Novos, no atinente, sobrecuda, ao papel desempe- ahado no processo de desenvolvimento da formacdo brasileira, como fos Mostra a sua produgao cientifica onde se destacam, entre outras, as seguintes obras, todas elas bem conhecidas e apreciadas. marcando-lhe a vocacio de historiador: Crivtdas-Noves, Jesutias ¢ In- quiticao — que mereceu menco honrosa do Instituto Nacional do Livro; Os transportes em Sdo Pails na pertads colonial — que em 1959 fez jus aos prémios da Academia Paulista de Letras e da Camara Mu- nicipal de Sao Paulo; A lef de smprensa e do comércty de livvos, de Filipe IL, e seus reflecos na América Luso-Espanhola — com que obteve, meri- tamente, o prémio de jornalismo da Prefeirura Municipal de Sao Paulo, em 1963. © seu labor de historiador revel: suas colaboragdes na Encyelopedia af World Merbodism, vols. I ¢ 11. Projeta-se, ademais, em seu curticulo, o valioso estado sob and- lise, que presentemente temos a honra ¢ a satisfacio de apresentar, recomendando-o, Os Cristdar-Novos: Povaamenta e Conguista do Sata Brasileiro (1530-1680). A Editora da Universidade de Sao Paulo, em co-edi¢io com a Livraria Pioneira Editora, editando este estudo, colaca ao aleance dos interessados uma obra marcante, consagradara de uma vocagio. O trabalho lé-se com gosto € proveito, tal o interesse que suscita. © poder de interpretacdo do fenédmeno histérico nele manifestado & de anotar e de imitar. Acento o cuidado posto pelo autor na sua Preparacao, recomenda-se insistentemente. A pesquisa sobre a qual as- senta custou a José Gongalves Salvador alguns anos de paciente ¢ constante labor profissional. Impressiona, logo de inicio, a sua inves- igagao tanto bibliografica, como documental. Dir-se-ia mesmo que o autor preparou-se cuidadosamente para 2 elaboracdo deste estudo, podendo, por isso, apreciar-se o seu quilate. Através de Crrstaos-Novas, Jerattas ¢ Ingutsipéo, e agora deste es- mdo — Os Cristdos-Novos: Poveamento ¢ Congutsta do Salo Brasileira — José Goncalves Salvador demonstra que 0 acervo de judeus ibé cos, notadamente portugueses, estantes no seio da populacao do Bra- sil, no decurso dos séculos XVI e XVII, fol bem maior do que se tem, cd e 14, admicido. Assim sendo, influiram com expressiva gran- deza em nossa formacao étnica, cultural ¢ econdmica. Comprova-se, de modo igual, que os Cristios-Novos participa- ram de nossa vida colonial, ajudando na conquista da terra ¢ na ex- pulsao do inimigo estrangeiro. Equivale dizer que a maioria deles mMostrou-se sempre identificada com a causa portuguesa no process de ocapagae do espace tropical — terras e dguas do Atlintico Sul — contribuindo, em todos os setores da vida, no processo de mudanca do Sistema Colonial ¢ deslocamento da fronteiza. © presente estudo toma por enfoque as Capitanias do Sul, as quais nao despertaram ainda a devida perquiricao da historiografia contemporanea, nacional e estrangeira. Ademais, o que sé escreveu, sobretudo o atincate a Sio Paulo, deixa muito a desejar, negando, inclusive, a conduta psicoldgica e as apriddes dos judeus para o ser- tanismo, que o fendmeno penetracao continental — bandeirismo paulista — contradiz e denega. © tema — Cristéos-Novos no Brasil — encontra-se ainda por desbravar. Realmente muito pouco se tem escrito com seriedade ciéntifica. Excepto os estudos de Anita Novinski, Sénia Siqueira, Arnold Wiznitzer e Eduardo Oliveira Franga, nada, ou quase nada, merece destaque. Salvo citadas abordagens, o assunto permanece omitido. Com efeiro, as Capitanias do Sul sempre andaram negligenciadas. Dilucida-as agora em grande parte José Gongalves Salvador, levan- tande genealogias e estudando o labor desempenhado pelos Cristaos-Novos nessas dreas, principalmente. De par com isso revela aspectos bem diversos de outros espacos brasileiros, destacando-se, de modo singular, a diferenca entre Sao Paulo ¢ Rio de Janeiro — a planalto ¢ © litoral. O trabalho em epigrafe acha-se desdobrado em duas partes, A primeira —"A formacao étnica ¢ social das Capitanias do Sul” — com sete capitulos. A segunda — “A presenca dos Cristins-Novas na conquisra do solo brasileiro” — composta por mais seis capitulos. Precede-as uma sugestiva inttoducao onde se problematiza o tema a ser esclarecido. © trabalho é deveras conclusive. O que José Gancal- ves Salvador se propds comprovar foi realmente demonstrado. Os indices — geral ¢ onomastico — apéndice, abreviaturas, fon- tes manuscritas ¢ impressas —, tudo, afinal, testemunha o planeja- mento € a logicidade da obra que ora apresentamos, confirmando, sobcjamente, a inteligéncia e erudigao de autor em tratar os referi- dos aspectos da atuagio dos Cristios-Novos naquelas Capitanias. Certamente a obra se ird impor, quer pelo interesse intrinseco do assunro, quer pela sericdade ¢ rigor cientifico com que foi concebida, qualificaco que se estima particularmente importante. A Ieitura do livro ratifica plenamente a nossa expectativa ¢ certi- fica o preparo euristico de Jos¢ Goncalves Salvador. E exata que nenhum historiador ¢ insensivel a determinados induzimentos ou propens6es. Entretanto o autor procurou manter-se neutral na abor- dagem do fendmeno hist6rico, cientificamente reto na verdade do evento, sereno na comprova¢io sobre a qual assenta a obra elabo- rada. Claro que nenhum trabalho intelectual esgota o tema abordado Toda layra ciencifica tem méritos deméritos. Ademais, toda ciéncia progride pelas controvérsias. Seguramente alguns eriticos mais escla- recidos encontarao deficiéncias ou lacunas. Mas, asseveramos, em- bora passiveis de reparos, nio so, de modo nenhum, suficientes para deslustrar o merecimento do estudo de José Gongalves Salvador que, afinal, na apuracdo dos resultados, apresenta saldo sobremaneira po- sitive € se exprime como uma das mais valiosas obras que nos foi dado conhecer, Através deste livro bem acabado, o autor contradiz, sem o dizer, os falsificadores do passado e as mal-avinhadas restemunhas do pre- sente, fiéis representantes de uma historiografia contemporinea sub- tepticia, dolosa ¢ fraudulenta, inserida de temperos oriundos de outras Ciéncias Humanas, que certos adeptos igualmente ingnoram, ¢ que se comprova subdesenvolvida, transferindo para © pretérito realidades de Nosso tempo, entao inexistentes, adulterando, com isso, consciente cu inconscientemente, a verdade histdrica sempre indagad MANUEL NUNES DIAS Professor Catedratico da Universidade Introducao Antropélogos, historiadores e sociGlogos tém-se ocupado em estu- dar a presenca do indigena ¢ a do escravo negro na elaboraggo do complexo sociceconémico brasileiro, mas nao deram ainda a suficiente importancia a um terceiro grupo étnico mui significarive, qual sejaodos chamados cristios-novos, nos primeiros séculos. S40 poucas as obras que tratam dos mesmos, quer as de cardter geral, quer as de natureza especi- fica’, ¢ bem assim os estudos vindos a lume em jornais ¢ revistas®. E, no entanto, j4se passaram mais de sessenta anos desde que Varnhagen abriu valiosas trilhas em sua invejavel Histiria Geral da Brasil, E impressio- nante, sobretudo, o laconisme com respeito as Capitanias do Sul. Acrescente-se, alids, que quase tudo quanto ja se escreveu, gira a0 redor da Bahia ¢ de Pernambuco,estribando-se os autores nas visitaoes do Santo Oficio em 1591 ¢ L618. Ai estao a comprovd-lo as introdugdes aos textos das mesmas, as biografias de Bento Teixeira, os alinhavos sobre a pessoa do metcador Jodo Nunes, e alguns outros estudos. Mere- cem destaque mais recentemente diversas comunicagdes de Anita No- vinski ¢ a sua obra Os Cristdos-Novos na Babia (1624-1654); 08 dois esclarecedores trabalhos do professor Eduardo de Oliveira Franca, intim- lados “Engenhos, Colonizagao ¢ Cristaas-Novos na Bahia”, ¢ “Um Pro- blema_ a Traicao dos Cristéos-Novos em 1624™. Constitui uma honrosa excecao as obras de cunho especifico Os Judens no Brasil Colonial, de Armold Wizniter, ainda que limitada em amplitude e profundidade. Nela o autor dedica uma dezena e meia de paginas ao Rio de Janeiro, no século XVIII, ¢ nada mais quanto 4s Capitanias do Sul. Sobre Sao Pauloo iléncio permanece toral®. Mas, por que essa exigiiidade? O faro decorre, certamente, de uma série de perspectivas mal formu- ladas sobre a emigrario judaica e do papel que os da progénie desempe- oharam na mesma. A deduzir das leis que |hes proibiam o ausentarem-se de Portugal, nao seriam tantos os que vieram para o Brasil, terra indspita € que teria pouco a oferecer-lhes de proveitoso. Mas, ao invés dista, os Paises-Baixos Ihes acenavam com excelentes oportunidades. No rol de tais critérios concebidos aprioristicamente, outros se enfi- leiram. Assim, jase pretendeu que a presenca da Companhia de Jesus em nosso pais, bastaria para afastar os judeus daqui, como se os inacianos fossem seus inimigos. E, a semelhante engano, foram levados historiado- res ¢ genealogistas na suposicao de que certos nomes adotados pelos sefardins os distinguiam dos legitimos cristios, ou ainda quando alguém estivesse identificade com as confrarias religiosas, ou sendo com as ordens eclesidsticas ¢ militares, ou exercesse um encargo publico. Nao se deram conta,porém, da faldcia, deixando de observar a distancia entre a tigidez das leis ¢ as realidades da vida prdtica. Nem é exato que somente se diseribuiram sesmarias aos cristios, conforme preceituavam os Forats conferidos aos donatérios capitaes-mores € as Ordenacies do Reino. Se assim fosse, seriambs obrigados a reconhecer que os imigrantes da pro- génie hebréia andaram ausentes das fainas agricolas, nada mais lhes festando senio © comércio ¢ as profissées liberais. Como, porém, expli- cariamos a sua presenga na indiistria agucareira, uma vez que muitos dentre eles tornaram-se “partidistas™ de cana ¢ senhores de engenho, jé nos primérdios da colonizacao? Examinado o problema sob tais critértos, longe estaremos de alcangar a plena verdade. O movimento imigratério sofrerd duas distorgdes basila- res: a primeira, enaltecendo-o a favor do cristéo-velho, e a segunda menoscabando o afluxo hebreu, especialmente nas Capitanias do Sul. O cémputo demografico permaneceria o mesmo, mas desfigurado quanto as duas etnias brancas. De modo que, também assim, seria dificil precisar o comportamento de cada uma em relacio a outra e 4s subservientes, representadas pelos indigenas ¢ pelos escravos africanos. Note-se, todavia, além disso, que os judeus figuravam entre as pes- soas bem informadas sobre 0 ultramar portugués, e inclusive o Brasil. Gente sua havia tomado parte nas expedigées de Vasco da Gama e de Cabral. Martim Afonso de Sousa, donatario de Sao Vicente, era particu- lar amigo do cosmdégrafo Pedro Nunes. Nesta mesma profissao serviu depois o ilustre Jodo Batista Lavanha. Na qualidade de médicos da Corte enumeram-se os doutores Manuel Rodrigo de Lucena e Anténio de Lefo, ao passo que Diogo do Couto, Antonio Bocarro ¢ Duarte Nunes de Ledo foram cronistas oficiais. Ligados a D. Joao IV, arrolam-se financistas e embaixadores. E assim por diante. Por palavras e por escrito os“da nagio”foram grandes propagandistas do Brasil. Luis Mendes de Vasconcelos, em 1606, enalteceu as suas possibilidades econémicas, ¢ nisso foi imitado logo depois (1618) por Ambrésio Fernandes Brandao, autor dos Drdlogos das Grandezas do Brasil. Em 1621, Duarte Gomes Solis procurou mostrar ao rei que mais valia ocupar-se com o Brasil do que com o Oriente. Em 1629, veio a publico, 10 meio castefhano, a obra do lic. Antdnio de Leao Pinelo, Epttone de la Bibl Oriental e Ocidental. Além de tudo, as condicées no Reino transcorriam mal pata os da progénie. O Brasil, pois, era um incentivo. Havia fatores, aqui, capazes de atrai-los. E os judeus vieram em ntimero crescente. Aqui acharam o seu Paraiso. O fluxo imigeatério nunca cessou. Mesmo nas fases de impedi- mento, achavam meios para sair. Muitos possuiam navios. A Inquisigao também os enviava a cumprir degredo neseas partes. As Capitanias do Sul com maiores razGes nao escaparam @ preconcei- Tos € nem a perspectivas falazes. Admite-se, por exemplo, que a econo- mia do Rio de Janeiro, durante todo o século XVII manteve-se em nivel inferior 4 do Nordeste, ¢ que S40 Paulo, no cimo. da’ Paranapiacaba, vegetou na pobreza e no isolamenro. Pretende-se, ademais, que ne- nhuma das trés, ou mais especificamente, as vilas do planalto, ofereciam atrativos para os judeus, os quais no entender de alguns autores, gosta- vam de uma vida cOmoda € onde pudessem granjear riqueza facil. Sio Paulo, localizada 2 boca do sertao ¢ subsistindo com base no escravismo indigena, nenhum fascinio teria sobre cles. A prova estd, acrescenta-se, em que a Inquisigo jamais subiu aos campos de Piratininga. Dai o nosso interesse pelo assunto. Preferimos enfocar os estudos nas Capitanias do Sul, campo ainda mal conhecido na fase em aprego: 1530 a 1680. © Rio de Janeiro e Sao Paulo prestam-se a comparacdes admirdveis, de um lado por sua relativa Proximidade, edooutro por suas diferengas geoccondémicas ¢ “modus vivendi”. Se é que “a gente de nacio” se localizou nas duas dreas, como de fato sucedeu, pergunta-se: que influéncia o “habitat” gerou sobre cada niicleo? Qual o seu procedimento ¢ formas de arividade? Quais as respectivas concribuicdes? Naturalmente o problema da identificagao dos individues foi o que mais nos preocupau. Sem resolvé-lo, como haveriamos de discernir as atores e de acompanhar-ihes a acdo? Assim, fomos ouvir primeiro os genealogistas, mas cles nos confundiram, excetuando-se ¢ inclito Cris- tovao AlZo de Morais. Procuramos, a seguir, os réis das fintas que se cobraram aos judeus ¢ nao os encontrames em parte alguma, As evidén- cias proporcionades pelas atas das Cimaras, pclas habiliragdes de génere ao sacerdécio ¢ as Ordens Militares, pouco ajudaram. As visitacoes de 1591, 1618 e 1627 também nao adiantaram muito. Os cadernos manda. dos copiar por Eduardo Prado, ¢ ainda inéditos, nao atiram luzes sobre a capitania de Sao Vicente. Certa vez informou-nos 0 professor José Perez, que, se féssemos a Torre do Tombo, em Lisboa, 14 acharlamos um livro tmanuscrito com os nomes de inumeros judeus, muitos dos quais do Brasil. Entao, para ld nos dirigimos em 1963, ¢, de fato, logo vimos o precioso alfarribio, pois os funciondrios do arquivo conhecem-no bem pelo titmlo de Litro Grande doi Homens do Santo Oficio®. Nele estio arrolados por ordem alfabética os individuos que foram senrenciados pelo Tribunal de Lisboa desde o perdao geral de 1605. Vem até meados do século X VIL. Consticui fonte valiosa gracas aos informes que oferece. E falho, porém, quanto as capitanias de Sdo Vicente ¢ Espirito Santo, apresenta lacunas sobre o Rio de Janeiro no século anterior. Mas outros documentos do mesmo arquivo concorrem para eliminar alguns dos sence Assim, processadas as identificacoes foi possivel conhecer as pessoas €, €m muitos casos, formalizar os seus quadros genealdgicos. Tinhamos, agora, por conseguinte, uma base para clucidar os quesitos que aos acu ram & mente. Queriamos saber, antes de tudo, se, na realidade, a pora scfardim glcancou © Brasil, ¢ mais particularmente as Capivanias do Sul. Nao se daria o caso de efetiv “8 apenas quanto jd estivesse bem adentrada a colonizaciio, sendo menores os sactificios, ou, por ventura, os da estirpe figuraram entre os piongiros do novel Pais? De que regides procederam? Foram muitos ou poucos? Que ambiente os aguardava aqui? Qual © seu estado civil? Que profissées tinham? Os solreiros casaram-se deniro da propria emia ou sucederam-se enlaces exogamicos? Mas o espirita da época nao era contrario a isto, quer do lado catélico. quer do judaico? Foram macrimdnios fecundos, se admitirmos que o hibridismo étnico é nocive? Dentro, ainda, da mesma linha de pensamento, evocamas a situagio em Portugal, onde sofriam perseguicies e nado mais lhes facultavam as judiarias. Vindo para o Brasil, rentavam viver em guetos ou separados dos restantes europeus? Que tipos de relacionamento mandyeram com respeito aos vizinhos? Agiram em Sio Paulo ¢ no Rio de Janeiro da mesma forma? Foram valiosas as suas contribuigGes sociais e culturais? Enfim: eles se interessavam pelo bem da terra? Que atitude tiveram face a0 desbravamento do solo e 4 presenca de esteangeiros, tais como france~ ses, ingleses, holandeses, ¢ mesmo espanhdis? Eis porque, em respostaa esses considerandos, dividimos a obra em duas partes. Ver-se-a pelaleitura que ambas se entrosam perfeitamente. E mais: que ela nao esgota o assunto. Alargamos apenas a contribuicao que outros estudiosos jai vém prestande. Demos um passo adiante em fossa promessa anterior, quando publicamos Cristdar-Noves, feiuftes ¢ Ingnisi¢éo ¢ deliberadamente evitamos proceder a maiores detalhes.? Fica, desta vez, langado um novo desafio a nds préprios que €0 de, em préximo langamento, rratarmos da questio econdmica nos seus miltiplos aspectos. Na oportunidade traremos 4 cena as relagGes preva Jecentes ao redor do Atlaatico Sul. Notas 1 - Esti neste rol duas monografias de Solidénio Leite Filho sobre os judeus no Brasil, ¢ a Histérta Secreta do Brasil, par Gustavo Barroso; 3 Breve Histéria dos Jedeas io Brasil, de Jac Serebrenick: a obra Or Judens na Histiria no Brasil, eferita por Afsiaio Peixoto ¢ outros. Todas, porém, falhas as veres, visto basearam-se em fontes secutdirias, Nio merece igual confianca a Histérie dos Liracliies ne Brasif, de isaac Reizman, 2 - Incluiriamos aqui os artigos ¢ comunicagGes de Aarénio Baida, de Pedro dé Azevedo © de Joie Licio de Azevedo, somando uma devena. se tanto, Além, naturalmente, dos isformes que este nos legow ax ffitiria de Antinio Vieira {191B), na Hisideia das Cristdos- Novas Portugueses (1921) € nas Noves Epandforas (1930), 4 - Francisco Adoipho Varnhagen. Histiria Geral do Brasil. Sao Paulo: Edigbes Melboramecatos. + Sido também de sua lavra: “Notas ao Diiirio de Pero Lopes de Sowsa", em que se refere aas da prognie cristd-nova, ¢ "Excertos de virias Listas de Condena- dos Pela Inquisican de Lisboa desde o ano de 1711 so de 1767, compreen— dendo s6 brasileires ou colonos estabelecides no Brasil”, ie Ree. do imssiz” Hist. ¢ Geogr. Brasileiro, 1X, 14d, ¢ tomo VIL - As liseas foram ampifadas ultimamente por Arnold Wiznitzer na revista Adnde Vanes, ano XIE. 1953. 4 + Anais do IV Simpério des Proféssores Untversitavies de Histéris, Sio Paulo, 1969, pp. 181 © segs. ~ Revita de Histiria, da USP, n.° 93, 1970, pp. 21 © segs ~ Arnold Wirniczer. Os Jedews ne Brasil Colonial, Sio Paulo: Livraria Pioneiza Editora, 1966. @ + Tratase de um volume pesado, com 1.136 folhas, de 0,43 por 0,30 em. mais ou menos. Foi redigido peto Dr. Luis Alvares dg Rocha, depois que deizou o cargo de promotor da Inquisicao em Lisboa, + O material é fareo. Basta citar 0s Cadermes da Promotaria, of Autat Pracessoats dos Rts, os bradizes das Reconciliados, 03 Livros dos Presos Ricas, os da Receita do Pesce e ourros, 8 - Sao Paulo: Livraria Pioneira Editora ¢ Edirora da Univ. de Sio Paulo, 1969. PARTE A A FORMACAO ETNICA E SOCIAL DAS CAPITANIAS DO SUL Potesi ITAIM Buenos Aires BS. Matias Capitanias Paraiba do . Norte Recife 2 Salvador By 3 a a Capitan, do Sul Ria de Janeiro Santos (As Capitanias do Sul no Século XVI Je Tordesithas CAPITULO PRIMEIRO OS CRISTAOS-NOVOS E A QUESTAO FILOGENETICA A Peninsula Ibérica foi o cadinho onde, através dos séculos, se fundiram os mais diversos grupos émicos. Ao substrato formado em tempos remotos, sobrepuseram-se sucessivamente os fenicios, os gregos, os fromanos, 05 godos, € por Liltimo, os mouros, além de numeroses filhos da Africa negra. A contribuigao dos hebreus nao se afigura menos importante, porque o luxe imigratério manteve-se quase ininterrupto, ¢ ainda que confinados em comunas separadas, judiarias ou guetos, até fim da Idade Média, casos houve de cruzamentos ¢xogamicos ¢ ndo poucos. Eles prdéprios, a fim de resistirem 4 assimilacao, defendiam a endogamiae cultivavam suas tradicGes religiosas. Nao sao, pois, de admirar, os confli- tos com as populagGes nativas desde, talvez, quando se radicaram na Peninsula. Aos motivos de ordem étnica, social e religiosa, juntaram-se, certamenre, os de narureza econémica, porquanto certos individuos da estirpe exerciam destacadas posicdes na vida publica, ao passa que outros exploravam atividades financeiras com lucros exorbitantes. Mas nao se pense que a animadversio surgida fosse generalizada, permanente € radical, ¢ sim local e extempordnea, conforme as circunsrancias. Embora de dificil absorgao, o fudeuw nunca foi inassimilével por indole. A Histéria, a5 genealogias, as inquirigGes de génere ¢ os proces- sos do Santo Oficio af esto para mostrar o contrério, comprovando a miscigenagao de parte a parte, tanto assim que nenhuma classe social escapou, fosse por bastardia ou por legitimo casamento. Lembre-se, a propdésito, que D. Pedro [, cognominado 0 “justiceiro”, teve de suas duas amantes israelitas, D.* Tereza Lourengo ¢ D4 Inés de Castro, descenden- tes que se integraram na alta nobreza. Um deles, D. Joao 1, ainda quedu- Plamente prejudicado, por causa do sangue e do abastardamento, rornou- sé 6 fundador da dinastia de Avis, sendo elevade ao trono pelo pove comum. Igualmente participavam da seiva considerada infecta, D. Afonso de Barcelos, sobrinho de D. Pedro ¢ 18 Inés, ¢ de quem se originou a furara dinastia dos Bragangas, e D* Isabel de Aragao, mulher do rei Fernando de Castela, Mesmo este carregava nas veias 0 sangue cristio- novo que the transmitira a mae, D.4 Joana Henriques.’ E quem desco- nhece 0 famoso prior do Crato, D. Anténin, pretendente 4 sucesso da coroa portuguesa em 1580? Eta cle filho do principe D. Luis ¢ de uma israelita.? Assim, ngbres e plebeus, clérigos e gente de todas as classes & profissGes participaram do caldeamento peninsular. Ainda em pleno. século XVII, quando vigoravam leis impedindo os casamentos mistes, eles se realizavam. Por esse tempo, dizia com acerto o padre jesuita, Diogo de Arede, que os cristos-noves estavam de tal modo incorpora- dos as familias cristas-velhas que nenhuma havia de consideragio isenta de sangue hebreu. Em 1674, 0 agente diplomatico da Coroa, em Roma, Gaspar de Abreu de Freitas, escreve que Portugal é uma nagao de marra- nos, cettamente em virtude da infusao do sangue hebreu pela via thatrimo- nial. Eles tinham-se incorporado em grande parte*. No cnranto, as discri- minacdes chegaram até ao governo do marqués de Pombal, quando certas casas blasonavam de seu pretenso puritanismo, fato que levou o ministroa abolir as duas etnias, obrigando-as a se conjugarem por meio de casamen- tos, Portanto, a integracdo de fata sé aconteceu depois disso. Judicinsa— mente escreveu entio o padre Alexandre de Gusmao, ridicularizando a quantos se jactavam de possuirem boa cepa, pois nao a tinham, € para isso. bastava uma anilise desde os bisavds. © préprio clero ¢ a nobreza, escudados na Inquisic¢ao, haviam revar- dado, por uma série de motivos, o efetivo entrelagamento étnico dos dois grupos. Veja-se, por exemplo, o que se passou em decorréncia das medidas decretadas por Filipe [1 a Li de marco de 1628. Em troca de elevada quantia oferecida pela gente da nacio hebréia, ele lhes concedeu, entre outras faculdades, a de se casarem, se quisessem, com pessoa de linhagem crist@-velha, conforme acabavam de solicitar. O impacto cau- sado foi wemendo e a reacao ainda maior, constrangendo o rei a voltar aurds, Na oportunidade, os israclitas foram acusados por toda a sorte de males advindos ao Reino. Propalava-se em tais escritos que eles cram os culpados pelo enfraquecimento do valor Jusitano, por terem inoculade o judaismo, religido ¢ raga, ou ainda, que o tinham debilitado pelo amor do 4 luxo é das riquezas incutidos ao povo', E evidentemente os argumentas foram levados aré ao absurdo para impressionar a Filipe, mas mma coisa € inegavel: o alarme contra a clevada porcentagem de sangue hebreu na populacio portuguesa. Quanto, porém, ao enfraquecimento daquele valor de que sobejamenre Camées se vangloriava, devemos procurd-lo nos eventos € circunstincias da época ¢ ndo na miscigenagao. Vem a calhar, nesse sentido, as expressGes do cscritor Guide Bedarida, quando diz: “CJ tmtereciante notare che Spagnol e Portoghest divengona protaponisti della storia del mondo non quando sf tiberano cle "scorie” semitiche, ma quande it tora vechia sangue iberiva reselia imprepnatiosimo de vasti nuove apporti semitici, net sec, MV e XVI". Contdo o fenémeno heterogamico portugués 940 cessou 15 Reino enem fora dele. individuos nascidos de um tao complexo caldeamento € entrando em contato com novas e diferentes populagdes desde a tomada de Ceuta, ndo podiam ser escravos exagerados de preconceitos ¢ nem de discriminagées legalisras. Mesmo o hebreu, em face das situagdes pre- dominates nas terras das conquistas, teve, por vezes, que abrir mao de escripulos étnicos. Sirva de exemplo a colonizagae da ilha de Si0 Tome, cujo donatario, Alvaro de Caminha, levou consigo para li, a fim de povoé-la, judeus ¢ degredados, e deu a cada um deles uma escrava. Mas, logo depois, enviaram-lhe também os filhos des judeus arrancados & forca das pais. De modo que, consoante afirma certo historiador. “é dor Filbos dos colonos ¢ das escravas que dsscende a nobrexa ow classe mais eats de Sao Tome, No Brasil, por sua vez, a8 circunstancias ¢ o meio ambiente exigiram que o colonizador fosse compreensivo, tolerante ¢ adapravel. Sem adap- tagdo e sem a amizade do indigena dificil lhe seria a subsisténcia, sobre- tudo em se tratando dos que vieram nas primeiras décadas, tais como degredados, ndufragos, aventureiros e feirores, muitos dos quais deviam ser judeus. De 150] a 1514, o Brasil esteve arrendado a um consércio de cristdns-novos, encabegado por Fernia de Noronha. Posteriormente, @ Inquisi¢ao langou para cd intimeros judeus e ontros vieram espontanea- meate. Por muito tempo seriam a maioria da populagio branca. Esses primeiros individuos desempenharam papel de suma importincia no povoamento © na furura colonizagao da terra porque, granjeando a confianga dos indigenas, foram admiridos ao seu convivio, aprendendo a Jingua nativa e aparentando-se com eles através de unides ou casamentos. E desse modo, incutiram-thes, provavelmente, idéias e anigas tracicdes a exemplo da lenda diluviana. Talvez, inclusive, hajam batizado acidentes Beograficos e contribuide com vocabulos hebraicos para o Tupi, ante- riormente 4 chegada dos jesuitas’. A situagdo de que desfruravam permitia-lhes favorecer aos que chegaram dali em diante. Por isso, conclui-se que o adventicio nem sempre recebeu ma aco- thida. Caciques houve, no Norte e no Sul, que o admitiram na familia. Sao bem conhecidos os nomes de Diogo Correia, o Caramuru, ¢ de Jodo Ramalho, dentre outros, cujos exemplos logo se generalizaram. An- chieta, escrevendoa 16 de abril de 1553, declara que os indios considera- vam uma grande honra terem filhas casadas com portugueses®, Alids, a mulher indigena sentia forte inclinagdo para com o homem branco, o qual chegava solteiro a nova terra, ou sem a familia, Este, pois, impelido pelo sexo e€ pela forca do ambiente, buscava uma companheira ou reduzia & escravidao aquela que pudesse. Os préprios clérigos vieram incentivar tal situagéo, conforme escreveu o padre Nobrega, esclarecendo que eles diziam publicamente aos homens ser-Ihes licito pecarem com suas escra- vas®, E assim, através de ligacdes fortuitas ou de unides duradouras, sema sangio ou com a béncio da Igreja, surgieam os mamelucos, fucuros troncos das mais antigas familias. A mulher branca sé tardiamente passou ao Brasil, sendo precdrio sempre o seu niimero aqui. Tal eraa falta, que o Padre Nébrega, em 1549, recomendou enviassem do Reino até as “erra- das”, pois achatiam bons casamentos, e, de novo, em 1552, lembraa D. Joao II a caréncia de mulheres brancas™, A facilitar, outrossim, a inter-relagao do hebreu com o indigena surgiu o problema da origem deste, levantado aqui ¢ ali. Divulgou-se, juntamente com outras hipéreses, a de que proviria de uma tribo israelita desaparecida, segundo registrou o padre Simao de Vasconselos, ¢ Joseph Barbosa de Sa, ainda no século X VIII aceitava"'. O fato é que, na verdade, tais enlaces se realizaram nos primeiros tempos ¢ depois, Assim, entre as fulhas do Caramurn, uma, pelo menos, Madalena Alvares, casou com o cristio-nove Afonso Rodrigues. E quanto as de Jodo Ramalho, Beatriz foi a mulher de Lopo Dias, também da progénie israelita, como o seriam, de igual forma, Pascoal Fernandes ¢ Bartolomeu Camacho, genro do patriarca andreense. Com suas netas casaram-se os cristiios-novos Manuel Fernan- des e Cristévao Dinis. Muitos casos semelhanctes aparecem na wisitacdo ao Nordeste em 1591. Aré fidalgos se uniram a mamelucas, a exemplo de Jorge Ferreira, capitio-mor de Santo Amare (1543 a 1557) e de Sio Vicente (1567 a 1571), o qual se casou com Joana Ramalho. $40 provas da inexisténcia de preconceitos racisras entre o branco € 0 silvicola. A etnia indigena nao causava repulsa ao portugués, mesmo sendo judeu;aocontra- fo, Prezava os filhos, associando-os em seus empreendimentos € introduzindo-os na vida civil jocal, mais ou menos & semelhanga do que sucedia no Paraguai, onde os mamelucos (mesticos) também usufruiram da posicao do pai castelhano, Jé 0 autor dos Didloger das Grandesas do Brasil constarara isso. E dele o testemunko segundo o qual o Brasil se povoou primeiramente com degredados e gente de mau viver, sem nobreza, destituida de bens matetiais ¢ pouco afeita A politica, mag a terra lhes foi de tal maneira prodiga que os filhos aqui nascidos passaram a gozar de melhor situacio social ¢ econémica. E com o passar dos anos, muitos homens nobres € fidalgos, em aqui chegando, se aliaram a eles por casamento, “em farma que se ea feito entre todo: uma misiura de sangue assds nobre"'. nenhuma outra capitania a afluéncia do sangue indigena penetrou mais profunda ¢ persistentemente na formagao étnica da sociedade quanto aa de Sao Vicente, gracas ao movimento sertanista das bandeiras, que catreava para o planalto sempre novos contingentes. Aqui, em razio do sistema econdmico predominante, o negro africana quasc nenhuma influéncia exerceu. A miscigenacao foi obra exclusiva do branco, cnstao-novo ou velho, com © aborigine e descendenté e, no transcorrer dos anos, também entre as duas etnias ibéricas. Deste modo Francisco Vaz Coelho, Martim Rodrigues Tendério, Pedro Vaz de Barros e seu inmio Anténio, Bernardo de Quadros e Luis Gomes da Costa, todos de linhagem hebréia, casaram-se com mulheres de inteiro sangue lusitano. ‘Ora, se isto sucedia no seio das familias mais representativas, 0 que nao se passaria com as de menor projecao? Panlo Prado é mesmo de parecer que a concorréncia de sangue hebreu em Sao Paulo nao foi inferior 4 do ariano, como pretendia Oliveira Viana nas Populayoes Meridionais. Ele acreditava, assim como nés, que o planalto de Piratininga oferecia condicdes excepcionais aos perseguidos pela Inquisigdo. Em sintese: asilo, seguranga, liberdade, a indulgente protecao dos jesuitas, etc. Admite, ainda mais, que o tipo ético resultante ficou marcado de modo sensivel pelos elementos que entraram a sua Constituicao™, Que caracteristicas revelaria entéo? Jul- gamos nds, 4 luz da histéria paulista, que seriam tracos fisiondmicos, maior resisténcia biolégica, mais adaptabilidade ao meio, amor 4 liber- dade, extraordinaria mobilidade. o destemor, enfim. De certa forma, € até certo ponto, algo de semelhante se deu em Buenos Aires, a qual, também, no inicio do povoamenta ponco de ~ convidative apresentava. A entrada ali de sefarditas alterou a sua econo- mia. Em 1622, um quarto da respectiva populacao era de pormpueses, que, segundo os estudos de Machain, deviam ser judaizantes, ou melhor, cristaos-aove: ainda mais enfatico o socilogo Ingenieros, quanda, acerca do influxo israelita na etnia rioplatense, se expressa dizendo: "Uma de las elementos muds decisivos em la constituicitn de ba sociedad reoplatense , fuéle ghundanie imigraciin de jadies portugueses , mercado- res los mds: actuaban como factor de progresso aconomico y desenvatetan i tos Adbitos ade contrando que intciaron ta prosperidad de estas regiones”. E prossegue: Apesar de las dificultades opuertar por los expandler, us sigio despucs era descendiente de judtas partugueses buena parte de la geute principal. Segin puede inferir-se del analises de los apellidos portenis dela épaca”*5_ A medida que se desenvolvia a colonizagao do Brasil, aumentava o ero de curopeus, portugueses, sobretudo, além de espanhdis, ¢ guns raros flamengas, tranceses ¢ ingleses, cristaos-velhos no geral, mas nem sempre de ilibada pureza étnica, E também com elementos dessa espécie que se entrecruza a gente de linhagem hebréia, de que sao demonstracdes na capitania de Sao Vicente o casamento do capitao-mor Jerénime Leitio com a judia Inés Castelo (ou Mendes), o de Isabel de Almeida, filha de Anténio de Proenga, com o hebreu Francisco Vaz Coelho, o de Luzia Leme, filha de Ferndo Dias Pais, com o cristio-novo Pedro Vaz de Barros, homem dos mais atuantes na vida local. E, igual- mente, em muitas outras familias se imiscuim o sangue sefardita por intermédio dos descendentes de Lopo Dias, de CristGvao Dinis, dos Gomes da Costa, de Francisco Vaz Coellto, de Bernardo de Quadros, dos Tavares, ¢ de outros, os quais se espalharam por quase todas as. vilas seiscentistas ¢ atingiram inclusive o Rio de Janeiro e a Bahia E curioso, igualmence, que muitas familias, em cujo seio havia clérigos, admitiram, nao obstante, determinado cristao-novo pela via matrimonial™®, A socie~ dade colonial era, sem davida, bem menos fechada do que no-la mostram: 08 genealogistas, embora diferencas existissem de regido para regiao. Ro caso de Sao Paulo e Rio de Janeiro, assemelhando-se mais este tiltimo a Bahia ¢ a Pernambuco, gragas a feigio de suas cconomias muito pareci das. Os documentos paulistas comprovam que os casamentos s€ proces- savam, via de regr: 2 dentro da prépria capitania, e, mais particularmente, no planalto, em vista do seu relativo isolamento determinado pela serra de Paranapiacaba. Quando, porém, algum individuo portador de certas qualidades ai se detinha, acabava absorvido pelo meio social. Assim, rorna-se patente terem sido raras as familias que conservaram incélume a eugenia cristi-velha, 0 que também nos da a tazio da unidade social existente na “republica” de $40 Paulo. A interpenetracao €cnica na capitania martim-afonsina, foi, pois, das mais ponderaveis ja antes da luta entre as facedes dos Pires ¢ Camargos, mas acentanu-se quando ambas se pacificaram por meio de um acordo estabelecide pelo governador-geral, conde de Atouguia. A tal respeito dizia uma consulta do Conselho Uleramarino, a 2 de maio de 1674: “e depots de concessay ada peredao do Conde de Atougiia, nao bouve até o presente controvércia algumut, canter eitdo unidas por casamento wmas fami Gas com outras, dando-se ao descobrimente do certain, eat fabrica, elavoura dos frusos dat terra’? Esse fate foi confirmado rambém pelo ouvidor-gerai, André da Costa Moreira, quando, no referido ano, esteve em correi¢ao na vila planaltina. Eis como se expressa: “ertaram mutto aparentados wns com outros assim por sangsinidade como porafinidade, pelo que nds era porstvel guardar-se 0 rigor da lef nas pessoas gue ha de seguir os cargos desta Repiblica™®, E anos mais tarde, ou seja, a 9 de maio de 1700, outro ouvidor, Anténio Luis Peleja, em carta a D, Pedro H, repetia a mesma coisal®, E ainda depois, ¢ um filho da propria capitania, José de Gois e Morais, frato da miscigenagio paulista, que a esta se reporta, Em 171, necessitando de uma dispensa para casar-se com Ana Ribeiro, arrazoa que as familias de Sao Paulo achavam-se “te trateedas amas com as auiras, coma a@ todas € notirig”?, Ora, em tais condicdes, visto inexistir um puritanismo eugénico, originou-se entre as familias o espirito de cli, comunitario, gragas ao parentesco, 4 inrerdependéncia mitua ¢ a interesscs em comum. Os membros sa0 muitos, mas o corpo é@ um so. A voz da cabeca, todos se movimentam ¢ entao as bandeiras singram os sertdes. A principio, é a .gente do patriarca Jodo Ramalho que se manifesta. Depais, sao os Pires € os Garcias, unidos aos Dinis, aos Fernandes povoadores, aos Cunha Gago, aos Vaz de Barros © aos Taques. E o grupo que combate os Camargos e seus parnidarios, ¢ que, em parte, promove a restauracdo dos jesuitas a0 seu colégio em Sao Paulo, de onde haviam sido expulsos, Ba facoaio que melhor reproduz a tradiggo israelita de unides consanguineas. Os germes do antagonismo Pires-Garcia versus Camargos, nao sio bem conhecidos. Talvez fossem mais de um os morivos € estivessem entrelagados, Em 1612, quando da agitacao contra os jesuttas, os Tagues os Vaz de Barros parecem afastados do conflito, descontenrando, quem sabe, aos Camargos. Aré 1635 a politica local € dirigida por elementos dos Pires, mas os Camargos ¢ partiddrios conseguem afastar da ouvidoria a Antonio Raposo Tavares, genro de Manoel Pires, e depois também a Simao Borges de Cergueira, ligado aos Leme, Dias Pais ¢ aos Taques. Em 1640, estes iltimos nao participam da expulsdo dos jesuitas. Os Pires- Garcia, entretanto, apdiam o regresso deles, exaramente an tempo em que o padre Vieira aruava na Corte a favor dos cristées-novos. A aclama- Gao de Amador Bueno, em 1640, rejeitada pelo praprio, desapentou o grupo dos Camargos, constimuido de espanhdis &, por isso, adeptos de Filipe IV. Na ocasiéo, Manoel Gil, genre de José Camargo, thegou a proferir palavras de baixo caldo contra o novo rei portugués. O descm- bargador Jodo Velho de Azevedo, que, 2 seguir, veio a Sao Paulo, abriu devassa a respeito e constarou que a desayenga também tinha motivo em “wm fermenty estrangeira”?", aludinde aos espanhoss. Outro aspecto que se deve levar em conta, reside no fata de que muitos do partido dos Pires tinham sangue hebreu, ou estavam ligados a ele por enlaces conjugais, direta ou indiretamente, rais como os Garcia Velho, os Motas, os Vaz de Barros, os Taques, os Dias Pais, os Lopes de Medeiros, ¢ outros, Uma cvisa sabemos: que a questin émnica foi trazida 3 baila em plenaconienda. Assim quando cm 1728 se fizeram as inquirigdes de génere de um descendente do velho Pedro ‘Taques, para habilitacao & leitura no Paco, antigos moradores de Sic Paulo disseram que esse pade- cewa fama de cristao-novo, levantada ao rempo dos Camargos, que, alids, 0 tinham chamado de judeu*®. Caliinia da oposigan? Talvez. Era uma forma de vinganga comum naqueles dias, mas o rumor permancceu por mais de um século, como se percebe. Na capitania do Rio de Janeiro, a guestao émiva-social comou, aos poucos, ramos bem diferentes dos operados na sua vizinha de Sao Vicente. La, conquanto fossem mumerosos os indios catequizados, cerca de 3.000 em fin du século XV1, sua contribuicdo afigura-se pequena, declinando a seguir, porque o escravo negro [he foi comando o lugar. Contudo, também aqui o europeu se cruzou com o indigenae com o filha da Africa, mas de modo insignificance no perfodo quinhentista, O 10 branco, via de cegra, tomou por mulher a europdia. Os mestigos sao bastardos quase sempre. Além disso, o indigena ¢ o africano repeliam-se mutuamente. Em conseqiiéncia, deu-se o retardamento na uniformidade étnica ¢ social, a0 contrério do que sucedeu na capitania vicentina onde o negro penetrou em cxigua propercio™. Elementos da nacio hebréia chegaram 4 Guanabaraa partir de Esticio de Sa, como adiante revelaremos. Se, porém, gozaram de plena liberdade nos dias da conquista, ela hes fugiu logo depois. A vigid-los constante- mente havia um comissdrio do Santo Officio. Mesmo elementos do povo ou do gaverno Jhes observavam a conduta. Era ineggivel a indisposi¢ao para. com os hebreus, E por que? De um Iado, por causa dos privilégios concedidos aos cristios-velhos ¢ da presenga das autoridades prelaricas, do outro, em virtude de a indistria acucareira local © o seu comércio terem caido, em grande parte, nas maos de cristdos-novos ¢ de judaizan- tes. Por conseguinte, formou-se aqui uma sociedade heterogénea, pois a miscigenagao das trés ragas pouco se consumau, O hebreu, que em Sdo Paulo foi comumente bem recchido, na capirania fluminense tornou-se alvo de desconfianga e de animosidade. Era natural, em vista disso, que sc precavesse e se abstraiss¢, aproximand-se tanto quanto convinha dos seus congéneres de etnia, Por ourro lado, a chagada periGdica de gente da progénie, mercadores, colonos, militares ¢ servidores pitblicos, além da catequese judaizante*, alimentavam o seu conservantismo. Mostram os autos inquisitoriais do século XVIH que os hebreus do Rio de Janeiro, embora dispersos na capitania ¢ ocupados em muitiplas atividades, formavam uma comunidade, gracas aos elos étnico-religiosos, a afeicao que cultivavam e, 4s vezes, a interesses econdémicos. Sirva de exemplo 0 enlace de Catarina Marques, filha do rico mercador José Gomes da Silva, consumado em 1694. A fesm oupcial, realizada apos a cerimOnia catélica, apenas comparecem os convivas da etnia hebréia. esa mesma gente que, a seguir, denunciada pela homonima Catarina Soares Brandao, a quem induziram a voltar-se para a lei mosaica, consti- tui o grosso dos condenados pelo Santo Oficio. Em tal ambiente e cireunstancias, ado desejavam os cristios-velhos uniGes conjugais com os de outra etnia, e nem os desta as pretendiam. Era detestavel ¢ arriscado o casamente com descendentes de judeus, por infamar a familia e incorrer no desagrado da Inquisicio, Quem, com efeiro, permirtisse o casamento com judeu ou cristao- Novo, tornava-se suspeito de ser, igualmente, da linhagem hebréia, tal if como s¢ passou com Manoel de Morais, provedor da Fazenda no Espirito Santo, por volta de 1675, porque duas filhas contrairam matriménio com individuos dessa etnia®5, No Rio de Janeiro, os Pinto Homem, descen- dentes de Brés Pereira Sarmento, por idéntico motivo auaca puderam livrar-se da pecha infamante?* ¢, por isso, muitos outros filhos da cerra foram dar com os costados nos catres de Santo Oficio, no comeco do século XVIIL De modo que, quaado os pais eram desobedecidos pelos filhos, deserdavam-nos, ral como fez o capitéo-mor Francisco Gomes Ribeiro a Indcia, porque se casou com F. de Lucena, cristio-novo. E esse no foi o nico caso?’, salvo quando a noiva cristi-nova trazia um dote valioso, ou quando o pretendente cristio-novo possuia condicdes vanta- josas. No Reino, em 1629, adotou-se como critério para impedir os casamentos mistos, que a noiva nao levasse em dote ao marido cristio- velho mais do que dois mil cruzados, visto que os hebreus, para sua melhor seguranca, escolhiam genros da etnia cristé-velha, 0s quais, alids, também achavam aquilo um bom negécio®® Os “da nagfio” faziam o mesmo, preferindo os da sua prépria etnia aos demais, ainda que o pretendente fosse de remota linhagem hebréia ¢ viesse de ourras plagas, pois o surto comercial do Rio de Janeiro com o Reino € conquistas possibilitava esse “desiderarum”, mais do que is vilas de Sao Vicente. Conhecemos, a propésito, sumerosas familias que pri- Maram por agir assim, Uma delas, a dos Mendes de . teve os filhos casados com pessoas da seiva israelita ¢ inclusive os nove netos, nascidos de Beatriz e de Duarte Ramires de Ledo. Outra foi a dos Paredes; também as dos irmaos Diogo e Alvaro da Costa; a dos Vale da Silveira, a dos Gomes Mourio, a dos Rodrigues de Andrade, a dos Mendes da Paz, ados Calassa, a dos Nunes Idanha, e rantas mais. S6 muito raramence se encontra em suas primeiras geragées algum enlace com crist Isso, todavia, no prova que o hebreu fosse visceralmente contririo 4s exogamias, segundo ja vimos, ¢ no Rio de Janeiro os exemplos se tepetem numerosos. Poucas, no entanto, as familias que vieram a se conservar puras, etnicamente. Mas o curioso, é que, muitas dentre as de cristos-novos, embora recebessem em seu seio certos individuos da cepa cristivelha, mantiveram a crenga mosaica ¢ a ensinacam aos des- cendentes, sinal de que a prezavam mais, a8 vezes, que ao proprio sangue. Quando convinha, os progenitores buscavam a um dos fururos con- sortes fora do meio local, recorrendo a procurador de confianga, a quem. enviavam para tal fim o respectiva documento, passado em cartério. Assim, a4 de main de 1612, o cristio-novo Pedro Fernandes de Melo e 12 sua mulher subscreveram uma escritura de dote a favor de wés irmas dele, com a condicéo de uma casar-se com Luis Pires, ¢ este, por seu turno, no dia seguinte, passou procuragdo ao pai, Gaspar Luis, ao tio Alvaro Lopes, e a seus irmios Anrémio Roiz e Bartalomeu Roiz pata lhe receberem por esposa a uma das referidas candidatas ¢ embarci-la, a0 que se deduz, para o Rio de Janeiro”, A exogamia, contudo, fa além das uniées legitimadas. Relacdes extraconjugais eram mais ou menos comuns em todo o Brasil, dando origem a bastardos, quer mamelucos quer mrulatos. Da capitania de Sio Vicente, vem-nos & lembranca as filhas de Diogo Gongalves Castelao, ouvidor ali, nascidas de mulheres indias, as quais, depois, quando se casou com a judia Branca Mendes, levou para o novo lar, sendo bem acolhidas por esta. Tinha dessas coisas a sociedade colonial. O capitio- mor, Pedro Vaz de Barros, deixou de diversas indias sete bastardos, ¢ 0 filho, Anténio, quatro. No Rio de Janeiro, entao, a moral descambou aos poucos. Em meados do século XVI parece ter decaido a nivel aunca visto. B que a populacdo tinha aumentade muito com o desvio de emigrantes para cd. A licenciosidade se avolumou. As mancebias germi- naram, envolveado ctistios-velhos, judeus ¢ negros. Os fatos af estao. Martim de Sa era bastardo, filho de Salvador C. de Sie de uma judia. Dingo Teixeira, preso pela Inquisicao em 1619, tinha uma filha de certa cristé-velha, mulher de Diogo Pinto. © judeu Aaténio Gomes Vitoria vivia ilicitamente com outra congénere. A mulher legitima de Luis Peres sabia que © marido andava de amores com a crista-nova, Sebastiana Vozada. Tampouco a negra africana escapava 4 concupiscéncia do branco, mesme sendo judeu. Por exemplo, Silvestre Mendes Caldeira, mercador e senhor de engenho, teve quatro filhos de sua amdsia, 2 parda Cararina Gomes da Luz, eo irmao Antonio Peres Caldeira, wrés, de outra. Luis de Paredes, deixou da preta Leonor, pelo menos quatro. E assim procederam os cristaos-novos Salvador Cardoso Coutinho, Baltazar Ro- drigues Coutinho, Diogo Pereira, Jodo Correia Kimenes, e outros, pais, todos eles, de bastardos mulacos. Até clérigos cristias-novos, como os padres Bento Cardoso e Joao Peres Caldeira, deixaram bastardos, filhos de negras. A diferenca com a capitania de Sao Vicente consiste em que os mesticos $40 mamelucos, produto dos cruzamentos branca € indigena. No Rio sio mulatos, ou pardos, como cram conhecidos. Pergunta-se, em vista disso, se as unides entre duas etnias diferentes seriam menos frutiferas, geneticamente, do que as endogamicas, apenas entre arianos ou entre sefarditas? E dificil dizer, porque, no caso do 13 Dianalto de Piratininga, em virtude do sistema econémico instaurado, 0 morador se ausentava freqtientemente para o sertio em demanda de indios ou de tiquezas mineralégicas, rareando o convivio no lar, ow perecia ainda vigoroso no “hinterland”. Sahe-se, apesar de mdo, que Lopo Dias teve seis filhos da primeira mulher ¢ numerosos netos. De Cristaviio Dinis conhecem-se trés filhas, todas com geragao. Manuel Fernandes Ramos, tronco dos Fernandes povoadores, foi pai de doze, um dos quais, Baltazar, deixou treze. Francisco Vaz Coelho deixou larga descendéncia de seus onze filhos. Pedro Vaz de Barros, além dos bastar- dos, deixou oito. © castelhano Martim Rodrigues Tendrio, além dos filhos naturais, teve quatro legitimos e dezenove netos. Bernardo de Quadros, seis filhos, todos com getagio, exceto um. © bandeirante Antonio Raposo Tavares casou por duas vezes mas s6 deixou quatro filhos, 4 passo que o irmio Diogo, menos sertanista, deixou onze de dois matriménios. Nore-se contudo, que os trés primeiros, acima, ¢ Francisco Vaz Coelho, nao foram sertanistas. No Rio, an contrérie, a grosso da Populagdo vivia sedeatariamente, entregue 4 industria agucareire € ao comércio, gozando de condigées que lhe facultavam maior proliferagao. Mas, em onze casos de casamentos mistos estudados, verificou-se qué a média de filhos cra de apenas quaro. Admitimos, porunto, que esta questio ndo é cugénica, nem énica, puramente, e nem depende sé de conceitos religiosos, ¢ sim de fatores diversos. Guido Bedarida, por exemplo, norou qué na Italia a classe menos prolifera eraa burguesa, a qual limitava © niimero de filhos para dar-lhes melhores condigdes* Dos onze casamentos mistos do Rio de Janeiro, as profissées dos senicores assim se classificam: dois eram funciondrios publicos ¢ tiveram, respectivamente, sete ¢ quatro filhos; dois, senhores de engenho, um dos guais teve trés filhos, mas ignora-se a respeito do autro: dois profissionais liberais, cada um deles com trés filhos; trés mereadores, com seis filhas cade um, trés militares, com quatro filhos, onze ¢ um, féspectivamente. Quem mais filhos gerou foi o capitao Lucas do Couto, cristio-nove, com onze, mas Sua irma Luiza no deixou nenhum. O de maior prole, a seguir, foi o funciondtio Francisco Alvares da Fonseca, com sete: E, finalmente, os mercadores** Muitos bastardos, no obstante, quer da capitania vicentista quer do Rio, chegaram a alcan¢ar uma boa situacao exatamente porque os genito- res possuiam bens. Na familia Vaz de Barros nada menos do que quatro mamelucos atingiram 0 sacerdécio. O mulato, porém, tinha de vencer Preconceitos, mas, assim mesmo, ainda que alguns fossemn portadores de sangue hebreu e negro e, por conseguinte, duplamente impedidos, subiram, social ou profissionalmente, gracas 28 condicées do genitor. Verificamos, desse modo, que a filha de Silvestre Mendes Caldeira casou com o cristio-novo Joao Roiz Calassa, senhor de engenho em Itabuna; a do padre Bento Cardoso, com o mercador espanhol Henrique Homem; a de Luis de Paredes, com Joao Afonso, senhor de engenho; as de Anrénio Peres Caldeira, com homens abonados. Um dos filhos cursou a Universidade de Coimbra e ordenou-se clérigo com 0 nome de padre Joao Peres Caldeira. Outro padre, rev. Francisco de Paredes igualmente mes- tiga, era filo de Luis de Paredes. Teodoro Pereira da Costa, filho de Diogo ede uma escrava negra, formou-se em medicina, apesar dos tempos, € veio aclinicar em sua terra natal. O mulato José Correia Ximenes andava nos estudos, em 1713, quando o Santo Oficio o prendeu por judaizar?. A populagio do Rio de Janeiro em fins do século XVII nmha a constitui-la as etnias ariana, semita, amerindia e negra, distribuidas so- dalmente ¢ de maneira bem diversificada ¢, portanto, cevelando maior heterogeneidade que a da capitania vicentina. Outro fator que determi- nava tal situacdo decorria das condicSes econdmicas dos individuos, como bem notara Brandénio ao classificar os moradores do Brasil em cinco condigdes: os homens do mar, os mercadores, os oficiais mecanicos (ou artesdos), os assalariadus ¢ os lavradores, distinguinde-se entre estes os sénhores de engenho ¢ os partidistas c, por Ultimo os escravos,que o autor nfo inclui nessas caregorias™. Temos, por conseguinre, com respeito ao Rio de Janeiro e o seria para diversas outras capitanias, quatro. classes dentro da hierarquia social, sendo que entre as trés primeiras, formadas por brancos, a tansposicao para a imediatamente superior era. possivei, bastando ao individuo a aquisigio de fortuna ou apresentar uma boa folha de servicos 4 Coroa. JAo mesmo nao sucediacom oescravo africano, sempre relegado ao servilismo. Assim, aparece ao dpice da pirdmide a elite, ou aristocracia, representada pelo alto funcionalismo, alids diminuto, mas prepotente, arrogante, ¢ geralmente mal quisto pelos que Ihes eram inferiores. Nela encontamos de quando em quando homens portadores de sangue semita, a semelhanga de Martim Correia de $4 ¢ de Salvador de Benevides, seu filho, No extreme oposto acha-sea classe dos escravos, cuja maioria é de negros africanos, ¢ cada vez menora de indios, em vista da protecdo que os jesuitas lhes dispensavam e¢ do doras. A segunda em importincia em a da burguesia, na qual estio incluidos milicares graduados, proprietirios de engenhos, certos funciondrios publicos, individuos de profissdes liberais, declinio das entradas 15 mercadores ¢ talvez alguns partidistas ou foreiros, grande parte deles pertencentes, outrossim, alinhagem sefardira, conforme teremos ocasido de revelar. E logo a seguir, vinha, entdo, a classe dos homens livres, ou ove comum, constinida por artesdos das mais diversas modalidades: feitores de engenho, mestres de acticares, capatazes, carpinteiros, etc, € nela se cacontravam numerosos da ernia, judews e cristios-noves. [menor grupo} ~ alte administragia militares gradusdes, sanhore: de sngenho, eldriges, moreadores, profissionais likerais, etc. ortesios, Feitores de angenho, cepatazes, atc, # — thomens fivrest GROS E AMERINDIOS. A formacan émica e social da capitania do Espirito Santo devia assemelhar-se mais 2 de Sido Vicente que a do Rio de Janeiro, tendo afluide para li elementos da nacdo hebréia desde: o comeco ¢ na decorrer do século XVII, mas seu admero nao parece equipatarse ao de ne- nhuma das donardrias do Sul suas co-irmas, Excero a industria acucareira que se deseavolveu ali em fins do quiahentismo ¢ nas Primeiras dEcadas do seguinte, poucns meins de vide restavam e todos precarios. Par isso, as demais a ofuscavam, Sabemos, contudo, de enlaces matrimoniais cferuados 14 entre os “da fagao"y cristios-velhus, ou que, julgamos serem cristios-velhos, como & 9 caso do juizordindris Manuel de Morais que possuia duas filhas casadas com cristiios-novas; de Joao Gomes Leitio ¢ sux Mulher Maria Duarte, cuja filha, Guiomar Roiz Cabeca de Vaca se casou com Manuel de Paredes da Costa; de Gomes Fernandes ¢ Isabel Gomes, pais de Lecrécia Barreto, que se consorciou com Tomas Ruiz, neto de Belchior Ruiz. Ao lado desses, houve unides também com mulheres do gentio, dai resultando os bem conhecidas mamelucos, alids comuns em todo o Brasil fla época. O negro, do mesmo modo que na capitania mardim-afonsina, quase neahuma influéncia exerceu na formagio social do Espirito Santo, av periodo hist6rico em apreco, muito embora existissem ld diversos enge- nhos trabalhados por escravos africanos. técraves imaior grupo) 16 Noras 1 Isaac da Cesta, Naber Pamiilies Among The Sephardi: Jews, pp, 58, 123. 2 ~ Luiz Augusco Rebello daSilva. Histerns de Portugal mos seowlos XW e XVUI, ©. 1, pp- 2 . 3 - Aga 3 Likcio de Azevedo Mist. do: Criscns-Nowes Portuguese, 343 4 ~ Apad Licio de Azevedo. Op. cit.. pp. LB7 ¢ 197. + Quanto aos argumentos de Alexandre de Gusméo, leia-se a sua obra Geneslogia Geral da Nagdo Porteguésa. Cpia no LHG.B., Bia de Janeiro. 5. - Guido Bedariada, Ebbret D'lvalia, p. 55. 6 + Adriane Ancero. Hist, Econdmica, vol. IV, p. 139. 7 - Dessas analogs daremos exemplos no Capirulo VIL. § - Rev LH.G.B.. tH, ano de 1916, p. 356, O°- Pe. Serafits 5, Leite, Carter dos Prameivos Jeswites, vol 1, p. 270 10 - Hidem, etl, pp. 119, 120, 344. Il - Pe. Simin de Vasconcelos, Liv, [, das Notécta, p. LVIL. + José Barbosa de Si, Didiogos Gevgrdficu, Cronoligices, Politicas ¢ Natunsis. - Branddnio também esposa essa opinifio nos Dédloges das Grandezas do Brasil, & p. 14. 12 - Ambrosio Fernandes Brando. OP. dt, p. 155. 13 - Apwd AE, Taunay. Sao Paulo wo séowo XV, «TV, pp. 109 € sexs. + Paulo Prado, Panlistive. 44 - Ro de Lafuente Machain, La: Portxguctes et Buetsor Aire, p. 85. TS + José Ingenieros. La Exoluciin de las ideas argentinas, vol. 1, p. 125. 16 - LG. Salvador. Op. ct. - Wer, tunbém, o estudo gencalogico que se encontra mais adianee. 17 - AHLULB. Jan. of. Rev. LA.G.B., tomo especial, 1, 1986, p. 71, 22° 63. 18 - Apud Pawdistice, p. fat, Vol II, 328 a 331. 19 - AELUR Jan, of, Ree, LH.G.E, tomo especial, 1, 1956, p. 71, n° 63. 20 - Apud Peulistve, 21 - AJA.U. — Auro efeuado pela Dr. Jodo Velha de Azevedo. 22. ANT.Tombo, Leit, dor Bachwreis, m. 4, P., n° 30. 23 - Nesta mesma capitania a miscigenacao com a indigena diminuiu sensivelmente desde que cessou @ sertanismo preador. 24 - J.GSalvador. Critedas-naves, Jesmiter ¢ Ingatsigao- - Vero estuda genealdgico mais adiante, especialmente caps. V ¢ VL. 23 - A.N.T-Tombo. Ing. de Lishoa, proc. 7394, Ys - AN.TTomba, Heb. 0. Cerio, letra A, m. 44.0.0 1 27 + J.GSalwador. Cristdas-novos, Jesafias ¢ Inquisicéo - Cardoso de Miranda. 0 Cede des Goragie, pp. 249 2 333, 28 + J, Licio de Azevedo. Gp. cit., pp. 113 © 200. 29. ANLRJ., edd. G16, fils. $2, 53, 58 ¢ 59. 30 - Guido Bedarida. Of, et., p. 53. 31 - Todos os exemplos squi citados, bem como nas pdginas anterjores, referem-se a cfistlos-novos, & cacegae, talvez, de AntGnio Raposo Tavares. 32 - A.N.T. Tombo. Ing, de Listas, processos do Rip de Janeiro. 33 - Brandénio, Op. et., pp. 46 € 47. i? OS ESTATUTOS DE PUREZA SANGUINEA E A NOBREZA DO SUL Os genealogistas, frei Joboatio e Pedro Taques, bem como frei Gaspar da Madre de Deus insinuam que elementos da nobreza reinol tenham participado de nossa formago érnico-social, ¢ com isso influfram sobre Oliveira Viana, Taunay ¢ outros, Eles davarn grande importincia a tinalos, a mercés honorificas e a provancas de génere, acreditando que seus portadores fossem de etnia crista-velha ou descendentes de antigas prosa- pias. Frei Gaspar chegou até a dizer que “a nobreza de Sao Paulo se conservon pura’. Que espécie de nobreza, contudo, era a mesma, ¢ os fidalgos vindos para o Brasil seriam isentos de “linhagem infecta”, conforme a terminologia da época? Ja vimos come pela superposic¢ao de povos invasores diferentes se formou a pepularae ibérica. Os submetidos passavam 4s classes inferio- Fes, a0 passe que os conquistadores constitulam as dominantcs. Tal fenémeno repetiu-se por mais de uma vez alterando a estrurura social. E acresce ainda que as classes ndo permaneceram fechadas rigorosamente, impedindo o acesso a individuos menos privilegiados. Uma guerra ou uma revolta politica podiam modificar tais escaldes, a exemplo do que sucedeu no comes¢o do reinado de D. Afonso Henriques, pois quantos 0 serviram no campo de Ourique (1139) foram guindados a nobreza, estendendo-se a mercé aos descendenres. Assim nasceu a monarquia portuguesa, a qual, no rempo do Mestre de Avis (1385 - 1433), sofreu flova mudanga, porque, na revolta que liderou contra o dominio estran- geiro, a velha nobreza permaneceu fiel a Castela, e ele contou com o apoio do povo e da burguesia, pelo que depois elevou a muitos dos companheiros, nivelando-os com os nobres de sangue. 19 © fim da Idade Média, caracterizado por notiveis modificagées, alterou ainda mais o quadto social europeu, permitindo de novo & burguesia, enriquecida agora pelo comeércio com o Oriente, a penetracao nas classes da nobreza por casamentes ¢ por servigos prestados a Coroa. Nem se deve olvidar que muitos eram judeus ou cristios-naves. Alids, a nobreza ibérica estava marcada de ha longo tempo pelo sinete do sangue hebreu. Sirvam de exemplo as figuras histéricas de el-rei D. Jodo 1 de Portugal ¢ a de D. Fernando de Aragio. ‘Os bastardios no seio das alras prosdpias, nem se fala, tantos foram os casos. Todavia, imimeros desfrataram da legitimacio obtida pelos geni- rores. Estao nesse rol dois dos mais insignes governadores gerais do Brasil nos primérdios da administragao colonial. Referimo-nos a Tomé de Sousa e a Mem de Sa, Quero meio para a ascensio em Portugal e na Espanha foi, em diversas ocasifes, a passagem para o Cristianisma e bem assim os enlaces matrimoniais. Titulos nobilidrquicas muitas vezes refle- tem apenas uma parte da verdade. Veja-se, especialmente, o que sucedeu entre amédia, entre a pequena nobrezada Espanha eo habitance israclita. E impossivel dizer até que ponto chegou a miscigenas’o, mas, por ora, lembrarfamos que os condes de Punhoenrosto, os de Benavente, os de Maiorca, os de Cepilho ¢ os duques do Infantado, todos receberam o e hebrew? apore de sang Em Portugal os fatos se reproduzem. O seu exclusivismo nunca se revelou tio cerrado quanto o dos Reis Catélicos ¢ dos sucessores. E dai, também, a liberalidade na concessao de fidalguias. J mencionamos 0 caso dos bastardos. Das heterogarnias ou enlaces com elementos sefardins, falam alto e bom som os 4.° condes de Redondo, os bardes da Ilha Grande, os viscondes de Vila Nova, de Asseca, de Barbacena e tantos mais*. Havia, portanto, uma nobreza que se pode intitular fidalga, tradicional, e uma outra adquirida por enlace ou por servigos feitos no Reino ¢ fora. E nisco os reis ibéricos tiveram imitadores em toda a Buropa. Na Italia, tal suceden com os Portaleone, que eram de linhagem israelita. Ali, de igual modo, 0 papa Ledo X concedeu o grau de conde ao compositor Giovani Maria de Medici; ao passo que, na Turquia, os Mendes (ou Nassi) tornaram-se duques de Naxos. Muito, antes, porém, que se finde a Idade Média, vao surgindo na Espanha cereas restri¢des ao ingresso na vida publica, nas ordens militares e nas éclesiasticas, nas universidades e a algumas profissdes liberais. Ao tempo do Mestre de Avis, Portugal jd era, praticamente, uma nacionali- dade, 0 que nao se dava com o vizinho pais, c qual, além de apresentar 20 muiltiplos dialeros, jaziaem parte sob ¢ dominio des mouros, adeptos do islamismo. A reconquista deveria operar-se, por conseguinte, com o apoio das forcas cristas. O conflito assumiu, assim, também, carder religioso € racista, fomentador da exigéncia imunizante, ou seja do exclusivismo henzitico. Finda a luta, a unidade geopolitica obtida representava a vitéria dos arianos catélicos sobre os semitas, pelo que os vencedores firmaram-se, entao, na idéia da superioridade sanguinea e se atribuiram qualidades que negavam aos vencidos. A eles cabia todo o prestigio; as altas dignidades no Estado eram suas por direito; as fungdes eclesidsticas pertenciam aos legitimos filhos da nacao; o matriménio honroso era o concebido entre cristios da velha etnia, Povo, nobreza e aristoctacia formavam a naciona- lidade. Os demais individuos nfo faziam parte desse mesmo corpo; eram aberragdes, ¢, portanto, olhados com desdém. Todo trabalho desprezivel, segundo a mentalidade que surge, é relegado ao elemento espirio. Enfim, ao heterodoxo. A idiossincrasia remonta pelo menos ao século XVI. Em concot tincia com a reconquista da Peninsula, levantou-se na Espanha cartélica cremenda reacdo contra os judeus. Em 1391 deu-se o massacre de Sevilha, que logo se propagou ao resto do pais, sob o incitamento do frade Vicente Ferrer. © inico caminho que restava para os filhos de Israel se preservarem consistia em submeterem-se ao batismo, meio de ingtesso na religido ori ‘Muitos, pois, aceitaram-no de boa fé, enquanto outros o fizeram porque [hes acenava com vantagens. E, de faro, por essa maneira, houve os que conseguiram elewar-se socialmente e vincular-se inclusive com as mais distintas familias, sobrerudo no reino de Aragio, cuja fidalguia, em pleno século XV, jd se achwa inoculada farramente pela séiva hebraica. Os clamores, como é facil prever, foram-se levanrando aqui e ali. Os mais puritanos clamavam as portas do trono, visto que, além da infusio sanguinea, os hebreus iam absorvendo o exercicio de fungdes publicas € sujeitando a si os cristios. Assim, em 1408, Afonso, o sibio, lhes proibiu oacesso arais cargos, deciso que a seguir (412) Henrique II de Castela confirmou ¢ ampliou, obrigando-os ao uso de sinais distintivos. De ora em diante nenhum poderia invocar o titulade “dom” e nem ser admitido nas profissbes de boticario, de fisico e de cirurgiao, as quais, no entender dos queixosos, se prestavam ao comerimento de abusos. Mas, passadas as agitagdes, ¢ tendo muitos deles ingressado no rol da Igreja através do batismo, voltaram a gozar desses ¢ de outros privilégios, embora tantos 21 ainda persistissem a cumprir secretamente as tradicdes inscritas no An- tigo Testamento. Fosse verdade ou simplés suspeita, a aversdo encon- trava lenha para se aquecer de tempos em tempos. Por fim, o converso Alonso de Espina sugere o recurso da Inquisigao. A idéia é bem acolhida, de sorte que, em 1478, o Tribunal é organizado sob a protecio dos Reis Catélicos. Tem como objetivos intrinsecos a defesa da fé e da filosofia politica vigente. A unidade religiosa ¢ a unidade gevgrdfica devem ser mantidas a todo custo. O Srgao policiador zela por ambas, mas o Estado lhe daa mais ampla cobertura. Um precisa do outro. A questao, entretanto, acaba por assumir também um novo cariter. Deira de ser exclusivamente teligiosa ¢ politica ¢ abarca os aspectos social € econémico, porque, na verdade, o Tribunal passa a servir aos interesses da nobreza em desabono de uma florescente classe, que eraa da burguesia, representada em grande escala por membros da raga judia, tais como prestamistas, contratadores, comerciantes, médicos, sacerdo- tes, funcionaries piblicos e outros. Em Castela e em Aragao, sobretudo, a sua influéncia pesava bastante, c, por isso mesmo, fazia-se imperioso cortar-lhes as asas. Era mister defender o prestigio social da velha, no- breza, bem como a sua posicdo econdémica, visto que oficios e ocupacoes subvencionados 4 custa do Erdrio, ¢ que se destinavam por direito aos filhos segundos da Adalguia, iam-se transferindo para as mios de conver- sos. O clero estava cheio de cristéos-novos ¢ nos Conventos subiam a muitas dezenas as religiosas da progénie aborrecida. Em 1480 as Cortes solicitaram aos Reis Catélicos o revigoramento das leis discriminarérias. Em 1481 dé-se novo morticinio de cristins-novos judaizantes. Desenvolveu-se, assim, um periodo de conflito socio-étnico- religioso, o qual se esrendeu ao século XVI ¢ marcou o espirico da nagao. © papa Sisto ['V (1471-1484), que aprovara o Santo Officio, por influén— cia de tai conjuntura, expede ao depois uma bula em que proibe aos cristaos-noves o ingresso nas ordens religiosas militares. Seguindo na mesma trilha, o inquisidor-mor, Torquemada, em 1484, determina que se impecam aos filhos € aos netos das hebreus condenados 0 exercicio de cargos piblicos, o da medicina, da advocacia © de outras profissdes, revelando desta forma sua alianca com o Estado ¢ com os interesses em jogo. As corporacées religiosas, por sua vez, passam a incluir nos respecti- vos estatutos e exigéncia da limpeza de sangue, até ai adotada mais ow menos vagamente. Por isso, a expulsdo dos judeus, em 1492, nfo causou grande estranheza. Todayia, wanscorridos alguns anos, ou seja, ao término 22 da primeira fase do Concilio Tridentino, achando-se acesa a chama da contra-reforma (Catdlica) coube ao arcebispo de Toledo, Juan Martinez Siliceo, reativar a febre discriminatéria da limpeza de sangue, pela publica 20 dos novos estatatos (1547), muito mais rigorosos do que os de 1449. A principio o papa condenou-os, devido ao extremismo que impunham, mas, aprovou-os finalmente* Em Portugal a aversio para com os hebreus esteve longe da flores- cente no pais vizinho, mesmo porque na época atris mencionada a nacionalidade ja se havia estabelecido, entregando-se os habitantes aos empreendimentos maritimes, ao comércio e 2 colonizagdo das novas terras, neles colaborando ativamente os daquela etnia. Tudo mudou, no entanto, em vista da vizinhanga com a Espanha, das tradicionais aliancas entre as duas monarquias, ¢ sobretude.a contar dos esponsais de el-rei D. Manoel com a princesa D.* Isabel, filha dos Reis Catélicos. Por fanatismo religioso, ou porque nao desejasse rer como stiditos a muitos dos que os genitores haviam expuiso em 1492, exigiu ela do pretendente, mediante compromisso por escrito, o banimento do povo hebreu®. Aceitou o Ven- turoso a imposic¢ao, mas procurau contorndta, obrigando os judeus ao batismo, pois deste modo seriam convertidas a religido oficial ¢ integrados no corpo. da nage. E mais: dererminou que pelo prazo de vinte anos no se inquirisse quanto ao seu passado a fim de evitar discriminacdes, intencao que durow pouco, ou nao se chegou concretizar, porque logo os cristios- velhos se artogaram privilégios e passaram a denominar os conversos pelo apelido de cristéas-novos, ¢ também, 2 seguir, pensou-se na cnagio do tribunal do Santo Oficio, idéia que afinal vingou. A partir de entdo, aexigéncia da limpeza de sangue mais se avolumou, envolvendo o exercicio de fun¢des religiosas ou civis. Sucedeu, por isso, que muitos cristéos-noves foram abandonando o Reino, chquanto cmis- sdrios seus trabalhavam em Roma contra os estilos da Inquisicao. Sendo. informado, D. Jodo IT chama a quatro des principais para ouvidos a respeito. Corre o ano de 1546. Fles apontam as causas, culpando nao séa Inquisigao, mas também o fato de que ja nao consentem a alguns nas miscricérdias, nos colégios, nos misveres das vilas, nem nas viagens paraa India mesmoa soldo, e, se pleiteam oficios, logo lhes vem com embargos Pedem, em consequéncia, a $. Majestade “nds jaca let, mene permite em sews FEANOE Shales ret calteame pure este gente dos créstdéns-velbas"®, Na fa, ha, enrdo, de definido até ai. Os casos sin particularizados ¢ se caminha paulatinamente para a generalidade com o beneplacito do sumo pontifi- ces. Em 1550, 0 padre Simao Rodrigues, provincial da Companhia de 23 Jesus em Portugal, insere nas constituigdes da Ordem que os criseaas- novos nao sejam admitidos nela, embora saibamos que a exigéncia custou a vingar. Por sua vez, o papa Paulo IV, em 1558, expediu um breve impedindo-os de ingressar na religiiio de Sao Francisco, ¢ nas Constirui- Ges que formulou, fez constar a necessidade da pureza de sangue para entrar ma vida eclesidstica, decisio esta as vezes revigorade por seus sucessores, outras, atenuada, dependendo do espirito de cada pontifice & do valimento dos interessados. Todos, desde Gregdrio KIM (1572- 1585) a Paulo V (1605 a 1621), a confirmaram, mas Clemente VIII, em 1598, determinou que nao houvesse impedimento @ ordenacdo de quem descendesse de judeu ou herege, bastando, naturalmente, que o candi- dato desse provas de bom criscio. Levantaram-se, porém, sérias objecées da parte do rei Filipe ¢ de alguns prelados, ¢ §. Santidade viu-se na contingéncia de expedir um novo breve a 18 de outubro de1600, excluindo aos cristaos-novos, até o sétimo grav, dos canonicatos, das prebendas, das dignidades eclesiisticas, dos beneficios ¢ de curas d’al- mas’, o que, entretanto, jamais impediu os chefes da Igreja de dispensa- rem Os casos que a consciéncia ¢ a tazdo lhes ditassem. O maior empecilho estava sempre na Inquisicdo, a qual pressionava 0 clero ea nobreza quando ndo.ac proprio rei. Assim, em 1562, nas Cortes, solicitaram os dois estados vedar aos cristios-novos o servico piblico e as profissbes de fisica-mor e de médico. Depois, em 1572, foi-lhes proibido o hdbito honorifico da Ordem de Cristo, mercé das mais cobigadas por eles® As prescricGes inibitdrias prosseguiram no governo dos trés Filipes ¢ dos sucessores, estendendo-se aos casamentos mistos, Mas, nunca, qualquer deles conseguiu fossem observadas integralmente. Apesar de todos os obstaculos, aos cristaos-novos mais do que a ninguém interessava a obtencio de um dtulo honorifico, por modesto que fosse. Almejavam-noe o buscavam avidamente, cm cspecial o habito. de uma das trés ordens religiosas militares pelas vantagens e privilégios que proporcionavam, tais como a elevagio social do agraciado, aproximando-o da nobreza de sangue, aisencao do foro civil, de impostos ede contribuig6es forcadas, a libertacdo de trabalhios julgados indignos, pois, para tanro, receberia pensao ou tenga da Coroa. Mas, para o judeu, acrescia ainda outro praveito, talvez mais lucrative, parque, acobertando-o contra perscauicaes, conferia-lhe relativa tranquilidade € desembarago de movimentos. A Ordem de Cristo, a mais dignificance entre todas, andava de continuo a alimentar-lhes o espirita, embora sabedores de que a mesma, e bem assim as restantes, se destinavam 24

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