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16/11/2020 Quem são e onde estão os privilégios de remuneração no serviço público federal?

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Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

Quem são e onde estão os


privilégios de remuneração no
serviço público federal?
REDAÇÃO
10 de novembro de 2020 | 12h14

Wellington Nunes, Doutor em sociologia pela Universidade Federal do Paraná, atualmente


participa de um programa de pós-doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Ciência
Política da mesma instituição, onde atua como professor e pesquisador. É bolsista do
Programa Nacional de Pós-Doutoramento (PNPD/CAPES).

José Celso Cardoso Jr., Doutor em Desenvolvimento pelo IE-Unicamp, desde 1997 é
Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA. Atualmente, exerce a função de Presidente da
Afipea-Sindical e nessa condição escreve esse texto.

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No dia 3 de setembro de 2020, o governo federal enviou ao Congresso Nacional uma proposta
de reforma administrativa (a PEC 32/2020) sob a justificativa genérica de combater os
privilégios do serviço público nacional. O argumento subjacente é que o setor público, por ter
supostamente crescido de maneira descontrolada nas últimas décadas e possuir remunerações
que imaginam exorbitantes, quando comparadas com as do setor privado, ocuparia cada vez
mais espaço no orçamento, ameaçando a solvência fiscal do Estado.

O problema é que a equipe econômica não apresentou nenhum estudo técnico que pudesse
conferir alguma sustentação empírica a esse argumento. Mais especificamente, não há um
diagnóstico claro de onde estariam localizados os privilégios que o governo diz ter a intenção
de combater. A PEC 32, aliás, embora tenha levado quase dois anos para ficar pronta, preserva
o jeitão dos programas eleitorais de governo – construídos a toque de caixa, com o objetivo de
apresentar um conjunto de intenções genéricas em períodos de campanha. Esse caráter
impressionista tem ficado cada vez mais claro desde que a proposta foi enviada ao Congresso e
pôde ser exposta ao escrutínio público.

Dessa forma, já se sabe que a pré-noção genérica de que o serviço público brasileiro seria uma
espécie de oceano de privilégios é falacioso por pelo menos quatro razões.

Em primeiro lugar, o Atlas do Estado Brasileiro, produzido pelo Instituto de Pesquisa


Econômica Aplicada (Ipea) e que reúne informações detalhadas sobre o setor público
nacional, mostra que a evolução do número de vínculos, no período 1986-2017, ocorreu
sobretudo nas esferas estadual e municipal, acompanhando a expansão da prestação de
serviços (saúde, educação, assistência social, segurança pública etc.) à população. Em
segundo, o emprego privado é dominante no país e cresce de maneira muito mais intensa do
que o emprego público. Em terceiro lugar, não há crescimento acelerado das despesas em
função do aumento do número de servidores: considerando o período 2006-2017, houve
crescimento moderado das despesas com servidores civis da ativa nos três níveis federativos,
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em relação à evolução da receita corrente líquida, mas estabilidade dessa despesa como
proporção do PIB.

Em síntese, as informações sumarizadas até aqui corroboram conclusões da terceira edição


do Panorama das Administrações Públicas: América Latina e Caribe, um projeto conjunto
da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e do Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID), publicada em março de 2020. Duas contatações
decorrentes das comparações internacionais são importantes: i) não há hipertrofia no setor
público brasileiro, ou seja, o emprego público por aqui encontra-se em nível muito próximo à
média dos países da ALC e bem abaixo da média dos países da OCDE; e ii) a taxa de
crescimento do emprego público no Brasil na última década esteve entre as mais baixas do
mundo, inclusive frente à média dos países da OCDE – que, por possuírem setores públicos
mais robustos do que os dos países latino-americanos e caribenhos, tendem a ter uma taxa de
crescimento mais lenta nesse quesito.

Finalmente, em quarto lugar, as discrepâncias entre as remunerações dos setores público e


privado são muito menores do que sugerem comparações metodologicamente questionáveis,
como as que se baseiam em médias gerais para os dois universos. Utilizando-se comparações
mais adequadas, constata-se que: i) as remunerações do setor público nacional são muito
heterogêneas e predominantemente baixas, ou equivalentes, quando comparadas às
remunerações do setor privado; ii) as maiores discrepâncias em relação ao setor privado se
concentram apenas entre os 10% mais bem pagos e nas carreiras jurídicas, de representação
externa, tribunais de contas, atividades de fiscalização e nos altos escalões da administração
presentes nos três poderes e Ministério Público; iii) se retirarmos da folha de pagamentos os
profissionais da área jurídica do setor público, a diferença de rendimentos entre este e o setor
privado cai de 13% para 4% apenas.

Diante disso, quem são e onde estão os privilégios de remuneração no serviço


público federal? Um caminho bastante óbvio é identificar a quantidade e o impacto fiscal
das remunerações que ultrapassam o teto legal para o funcionalismo público nacional –
representado pelo salário-base dos ministros do Supremo Tribunal Federal (atualmente em
R$ 39.293,32). Este valor, contudo, não leva em conta auxílios, gratificações, licenças
remuneradas etc. (os chamados “penduricalhos”). Para contornar isso, o critério aqui utilizado
foi o seguinte: foram considerados apenas os vínculos cuja média das remunerações mensais,
no ano em questão, tenha sido superior à média da remuneração que um ministro do STF
recebeu naquele ano, incluindo eventuais penduricalhos.

Para esse exercício utilizamos uma base de dados produzida pelo Atlas do Estado Brasileiro a
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Para esse exercício, utilizamos uma base de dados produzida pelo Atlas do Estado Brasileiro a
partir da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), que contém estatísticas relativas aos
vínculos de trabalho ativos e permanentes no setor público federal civil brasileiro, nos três
poderes, para os anos de 2000, 2005, 2010, 2015 e 2018. Com esse critério, a quantidade de
vínculos com remuneração acima do teto funcionalismo público, ao contrário do que muitas
vezes se imagina, está muito longe de ser exorbitante. Ao contrário, trata-se de um grupo
bastante minoritário, mas ainda assim, uma verdadeira elite em termos salariais.

O gráfico 1 mostra a proporção de vínculos acima do teto, por poder da República – ou seja,
estamos considerando a enorme diferença existente entre os três poderes em termos de
vínculos absolutos. Como se nota, as maiores proporções observadas na série foram de 0,27%
no Legislativo em 2010 e 0,27% no Judiciário em 2018; no caso do Executivo, a maior fração
observada também ocorreu em 2018, mas na casa dos 0,17%. Em termos gerais, a proporção
de vínculos acima do teto é maior no Legislativo e principalmente no Judiciário. Por outro
lado, também é possível perceber que há um viés de alta desses supersalários ao longo do
tempo: no Executivo desde 2010 e no Judiciário desde 2005.

Gráfico 1: Proporção de vínculos acima do teto do funcionalismo público.

Fonte: elaboração a partir de dados do Atlas do Estado Brasileiro, Ipea.

Portanto, o que vai acima não deve confundir o leitor: não se trata de argumentar que a
proporção de vínculos públicos federais com remuneração acima do teto do funcionalismo
seja irrelevante; trata-se, sim, de dar ao fenômeno a relevância e o peso que ele de fato possui.
Dito de outro modo, se o objetivo de uma eventual reforma administrativa for, de fato,
combater privilégios, os supersalários do funcionalismo não podem ficar de fora – sob pena de
a proposta do governo perder totalmente a credibilidade perante a opinião pública.

A fim de facilitar o trabalho do Ministério da Economia e do Congresso Nacional, é possível


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ajustar o foco da análise para identificar os órgãos, definidos com base na razão social dos
empregadores, pelos quais estão distribuídos a elite salarial do funcionalismo público federal.
De maneira mais específica, é possível desagregar os dados do gráfico 1 pelos órgãos públicos
aos quais pertencem os vínculos com supersalários. Isso feito, percebe-se muito claramente
que, dentro de cada um dos poderes, há grande concentração dos vínculos com remuneração
acima do teto, em alguns poucos órgãos da administração pública federal. Os gráficos 2, 3 e 4
mostram esses dados, por poder da República, para os anos de 2015 e 2018.

Gráfico 2: Distribuição dos supersalários por órgãos do Sistema de Justiça.

Fonte: elaboração a partir de dados do Atlas do Estado Brasileiro, Ipea.

Gráfico 3: Distribuição dos supersalários por órgãos do Legislativo e TCU.

Fonte: elaboração a partir de dados do Atlas do Estado Brasileiro, Ipea.

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Gráfico 4: Distribuição dos supersalários por órgãos do Executivo

Fonte: elaboração a partir de dados do Atlas do Estado Brasileiro, Ipea.

O resumo da ópera é o seguinte: a elite salarial do funcionalismo público federal é facilmente


identificável, concentra-se principalmente no Ministério Público da União, Tribunais
Regionais e Superiores, na Câmara dos Deputados, no Senado, no Tribunal de Contas da
União e no Ministério das Relações Exteriores.[1] Em outros termos, são procuradores,
desembargadores, juízes, dirigentes do serviço público federal, deputados, senadores,
diplomatas, ministros e secretários de ministérios – categorias profissionais que, como
sabemos, várias delas não estão incluídas na proposta de reforma administrativa (PEC
32/2020) enviada ao Congresso. O que levanta muitas dúvidas sobre se governo e parlamento,
de fato, têm interesse em atacar os privilégios do serviço público nacional.

Tudo somado, há sim que se promover mudanças no sentido da diminuição dos hiatos
salariais entre setores público e privado, mas para tanto, dois objetivos devem ser perseguidos
simultaneamente. De um lado, é fundamental recuperar e reativar uma perspectiva
(governamental, empresarial e sindical) e políticas públicas de maior e melhor regulação e
reestruturação dos mercados privados de trabalho, no sentido de se buscar menores taxas de
desemprego e informalidade, assim como maiores taxas de produtividade e recomposição
salarial, inscritas em trajetórias de recuperação do crescimento econômico em bases mais
sustentáveis dos pontos de vista produtivo, ambiental e humano.

Por outro lado, é fundamental realizar ajustes remuneratórios no setor público, levando em
consideração os determinantes e as especificidades presentes em cada nível federativo de
governo (Federal, Estadual e Municipal), bem como atentando para as situações discrepantes
em cada poder da União (Judiciário, Legislativo e Executivo). Por exemplo: a maioria dos
problemas remuneratórios discrepantes poderia ser resolvido simplesmente aplicando-se,
sem exceções, o teto remuneratório do setor público a cada nível da federação e poder da
república. Além disso, é preciso eliminar ou diminuir drasticamente os adicionais de
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remuneração que muitas vezes se tornam permanentes em vários casos, distorcendo para
cima os valores efetivamente pagos a uma minoria de servidores e funções privilegiadas.

Isso tudo para dizer que os problemas de remuneração, alardeados pela atual área econômica
do governo por meio da grande mídia e base parlamentar, são a exceção e não a regra dentro
do funcionalismo público, em qualquer recorte analítico que se queira utilizar.

[1] No caso do MRE, é provável que essa alta incidência se deva, em parte, ao grande número
de servidores (diplomatas, oficiais de chancelaria etc.) trabalhando no exterior e recebendo
seus vencimentos e gratificações em moeda estrangeira, o que, considerando o valor atual da
moeda nacional, redunda em remunerações elevadas – acima do teto constitucional – em
moeda local.

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