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p c o b ; *

m o a e r a a o r

história & teoria

JOÍO DE SCtMIMBLRGO

Em convênio com a

Ô SECRETARIA DE ESTADO
L IV R A R IA P IO N E IR
S á o Paulo
índice

Agradecimentos ................................................................................................. IX
A presentação.............................................................................................................. XI
Prefácio..................................................................................................................... X II

1? PAR TE

1 - Que é poder moderador................................................................................. 1


2 — A natureza do poder m od era d or.................................................................. 13
3 - A exegese do poder m oderador.................................................................... 27
4 - 0 Brasil e o poder m oderador.......................................................................... 43
5 - 0 poder moderador e o vazio do poder........................................................... 55
6 — A hermenêutica do poder m oderador.............................................................. 69

29 PAR TE

1 — Que é poder le g ít im o ................................................................................... 79


2 — Legitimidade institucional............................................................................ 93
3 — A legitimidade c o n tra tu a l............................................................................ 107
4 Legitimidade e revolução................................................................................ 121
5 O poder moderador e a le g itim id a d e ............................................................ 135
(> Os órgãos da le g itim id a d e ............................................................................. 151

3? PA R TE

1 — A filosofia do p o d e r ..................................................................................... 167


2 — A duração do p o d e r ..................................................................................... 183
3 — Os órgãos do poder....................................................................................... 195
4 — 0 povo, a representação nacional e o poder le g ítim o ............................... 211
5 - 0 sistema representativo de p a rtid o s ........................................................... 225
6 - A representação dos interesses................................................................... 241

4? PAR TE

1 — 0 partido p olítico, grupo de p re s s ã o ......................................................... 253


agradecimentos

Agradeço, antecipadamente, os meus leitores. Agradeço a co-edição deste


livro pela Secretaria de Cultura, da qual é titular o jovem e dinâmico Secretário
Deputado A n ton io Henrique Cunha Bueno. Agradeço ao Professor Paulo Edmur
de Souza Queiroz, neto do Senador do Im pério, Barão de Souza Queiroz, que mais
tempo exerceu o mandato, a gentileza do prefácio.
À
Casa de Bragança, ramo do Brasil,
pela gigantesca obra que realizaram
seus dois membros, D om Pedro I e
Dom Pedro II, no e x e rc id o do Poder
Moderador

À
memória de A n ton io G ontijo de Carvalho,
amigo perfeito, de cujo convívio, conservo,
com o todos os seus amigos, profunda
saudade.

Ào
Miguel Reale, um dos mais altos representantes
da inteligência brasileira.
A h ! ne me brouillez pas avec la République.

Corneille

L e temps est un grand maître, il règle bien des choses.

Corneille

A justiça de Deus na voz da História.

D. Pedro II

As causas perdidas poderiam ter salvado o mundo.

Chesterton

A revolução não é um jantar de gala.

Mao-Tsé-Tung

/is vezes é; depende do con ceito que se lhe tenha.

Um cético realista
apresentação

Não pretendi escrever mais uma obra original, mas trazer à atualidade uma
tese que sempre me pareceu válida para o Brasil, a do Poder Moderador, como
solução para a nossa problemática política. A bibliografia acerca do assunto é
escassíssima. Versaram-no Brás Florentino Henriques de Souza, Zacarias de Góes e
Vasconcellos, São Vicente, Uruguai, Tobias Barreto, A fon so Arinos de M elo Franco,
João Camillo de Oliveira Torres, Paulo Bonavides, e, com o opção republicana,
Borges de Medeiros. Os estudos mais profundos são, porém, os dois primeiros.
Nas páginas do meu trabalho cito os autores que se ocuparam do instituto ju rídico
e do tema. Reconheçamos que é pouco, para uma instituição que fo i adotada pelos
constitucionalistas do Im pério recém-fundado, em 1824, e extinta pelo golpe de
Estado de 15 de novembro de 1889.
O Brasil é pobre em exegetas e pensadores políticos. Nem mesmo as univer­
sidades têm suscitado fortes especuladores dessa ciência. À parte um ou outro
exem plo, digno de nota, a maioria é constituída de conformistas da onda marxista
da moda, ou cediços repetidores de autores conhecidos, mas que ninguém mais
segue, na Europa. A té mesmo adeptos de idade caduca do federalismo dos
umericanos da Independência ainda escrevem, não obstante a nula probabilidade
dc serem lidos. 0 marxismo não oferece, a rigor, uma teoria do Estado. A ditadura
do proletariado é, tão-somente, uma ditadura a que se pretende revestir o aparato
científico. A experiência soviética o demonstra suficientemente para quem a queira
lomar com o paradigma. Republicana, aristocrática no sentido técnico da palavra,
subsiste apoiada em polícia política e armas. Não fossem estas, e já teria há muito
desaparecido. A sociedade sem classes e sem Estado é uma utopia, embora teori-
ziulorcs haja que nos pretendam convencer, inutilmente, do contrário.
O PO D E R M O D E R A D O R

O estudo que me propus fazer, e espero ter fe ito , oferece uma promessa de
soluçffo do problema entre todos gravíssimo da organização política brasileira.
Nilo idolatro formas de governo, não me deixo submeter ao fetiche dos regimes.
Sou de opinião que devem ser instituídos consoante a índole dos povos. O Brasil
copiou servilmente o regime americano, sem copiar o seu sistema. Em noventa
mios, o que temos tido, com o procurei demonstrar em outro livro, é uma sucessão
de crises, ao parecer sem paradeiro. Da crise de D eodoro à crise atual, todas as
crises, esmaltadas de características diferenciadas apenas em acidentes, são análogas.
Foram engendradas na mesma incubadeira, a que desprezou as nossas tradições,
c escolheu o m odelo alienígena.
Seria possível, a meu ver, resolver as crises que acompanham a nossa História,
vampirizando-a, não raro até quase à exaustão, com o ocorreu nos surtos revolu­
cionários da década de 20, nas revoluções da década de 30, nos períodos ditatoriais
de 37 a 45 e de 64 a 79, p eríodo este ainda em curso, não obstante a abertura
caucionada pelo presidente da República, com evidente sinceridade. Bastaria,
para se alcançar essa instância, a restauração, ou instauração, do Poder Moderador.
Digo-o sem nenhum preconceito, sem “ arrière pensée” , sem preferência outra que
não a do interesse pela minha pátria. Nas páginas do livro que agora ofereço aos
leitores, demonstro que fo i terrivelmente funesta para o Brasil a extinção de
instituições modelares, úteis à nação, como o Poder Moderador, o Conselho de
Estado, o Conselho de Ministros, o Senado vitalício — que poderia deixar de sê-lo,
- e a classe dirigente. Convido os leitores a me seguirem da primeira à última
página. N ão é pedir muito.
Alguns fortes estudiosos com o Rui Barbosa, A lberto Torres, Oliveira Vianna,
João Camillo de Oliveira Torres, Pontes de Miranda, para ficarmos somente no
período republicano, que está completando noventa anos, procuram solução para
a problemática política brasileira. Notadamente A lb erto Torres, Oliveira Vianna e
João Camillo de Oliveira Torres foram mais ao fundo da questão. A lberto Torres
imaginou uma form a engenhosa de compensar a desestabilização do poder repu­
blicano. Mas sua teoria não poderia nunca ser aceita. Oliveira Vianna não propôs
uma form a de governo. João Camillo de Oliveira Torres patrocinou a restauração
da monarquia. Deram, todos eles, com o no passado, outros, valiosa contribuição à
questão política brasileira, ainda, insisto, à espera de solução aceitável. Com este
livro, venho, humildemente, acrescentar a minha a essas e outras contribuições,
todas, sem exceção, respeitáveis.

São Paulo, 31 de outubro de 1979.


prefácio

Pouco se tem escrito sobre o Poder Moderador, essa Instituição que deu,
ao Brasil, a estabilidade p olítica dos seus primeiros sessenta e sete anos de inde­
pendência. O autor disse e provou, segundo me parece, que à sabedoria intuitiva
dos constitucionalistas de 1824 se deve a adoção da idéia de Clermont-Tonnerre e
Benjamin Constant, que tão pouca aceitação obteve na teoria política universal.
Sabedoria intuitiva através da qual se conciliou a poderosa força inconsciente da
tradição, que dá consistência ao etos de um povo, com anseios de racionalidade
que o cartesianismo imprimiu na consciência da civilização ocidental. Com o bem
viu o autor, a legitimidade dos governos é reconhecida pelos governados quando
suas normas se institucionalizam pela aceitação da maioria, grande parte da qual
as interioriza psicologicamente para vê-las com o artigo de fé, como alguma coisa
incontrastável.
Para o autor, pois, há duas fontes de legitimidade: a que se prende à tradição,
denominada por ele de legitim idade institucional, e a que se prende à livre con­
venção racionalmente instituída, que o autor categoriza com o legitimidade
contratual.
Esta última, todavia, sq.se cristaliza e dura quando referida a princípios que
se erigem como totens de um p o vo . O Poder Moderador, como fica fartamente
demonstrado no trabalho de J ogo de Scantimburgo, conseguiu equilibrar os dois
impulsos dominantes no País a partir de 1822. O Imperador, com os poderes
estabelecidos nos artigos 98 e seguintes da Constituição de 1824, ungia o governo
com a legitimidade institucional, enquanto a estrutura geral dessa mesma Consti­
tuição a impregnava da legitim idade contratual que os princípios do liberalismo
O PO D E R M O D E R A D O R

lii/.lum ver nas instituições políticas racionalmente concebidas. Tradição e racio-


iiiilldade estabeleceram, pois, o equilíbrio constitucional com patível com a realidade
brnslleira.
A abolição da monarquia no Brasil pôs a nu a terrível deficiência de uma
legitimidade meramente contratual que não totem iza princípios imutáveis. Pre-
lcndeu-se “ libertar” este povo despreparado, supostamente racional, para organizar-
No contratualmente, sem nenhum tabu, nenhuma força totêmica, capaz de atribuir
An Constituições republicanas a intangibilidade necessária para que se torne estável'
um Estado, capaz de ungir seus governantes com a dignidade da legitimação.
Demonstra, assim, o autor que a institucionalização das normas políticas de
um povo, para que se firme e dure, deve sempre revestir-se de força que lhe atribua
ii Intocabilidade sacral de um tabu. Há quase dois séculos redigiu-se a primeira
Constituição escrita do mundo, a cuja sombra prosperaram os Estados Unidos da
América do Norte. Enunciaram-se, ali, em aproximadamente sete mi,!' palavras,
princípios permanentes que, intocáveis, fizeram dos americanos um autêntico
grupo totêm ico. O tabu constitucional sacralizou-se na nobre emoção de tod o um
povo, egresso da opressiva institucionalização política dos países europeus. A li
oxistia também, im plícita a usos e costumes, a Constituição regulamentar da convi­
vência dos respectivos povos, constituída, segundo Lassalle, pelas “ relações reais
ilc poder” vigentes em qualquer sociedade. Os emigrados da Am érica representavam
o inconformismo criador daqueles que se recusavam a interiorizar ou sequer aceitar
iis normas políticas dos seus países de origem. Eram os renegados do totemismo
dos respectivos grupos, presos, ainda, a tradições vinculadas ao feudalismo em
declínio. Mas, com o fo i dito, onde quer que exista duradoura estabilidade política,
deve surgir, necessariamente, um conato emocional que leve todo um p ovo a
recon^íicv. a legitimidade de seu governo. Nos Estados Unidos, com o está bem
iisslnalado por João de Scantimburgo, a Constituição, que enunciou pela primeira
voz princípios liberais intocáveis, tomou-se o avatar totêm ico da sociedade ameri-
ctinu.
No Brasil o etos patriarcal do povo estava personalizado no carisma dinástico
ilo curgo imperial, mas, ao mesmo tem po, esse povo, em suas camadas superiores,
»0 deixava atrair pela sedução do radonalismo liberal. Consolidou-se, assim, na
Constituição, com o Poder M oderador, a legitimidade institudonal e contratual do
Império. A b olid o aquele poder, as Constituições republicanas de caráter puramente
niclonul funcionaram na consciência do País com o meros cactos espirituais que,
destituídos de raízes emocionais profundas, tombam sucessivamente às primeiras
lufudas de agitação política.
Tudo isto está bem definido na exaustiva análise da história de nossas insti-
lulçOus políticas, nesse livro notável que é O P od er M oderador.

Paulo Edmur de Souza Queiroz


da Universidade de São Paulo
que é poder moderador

Quando tantas discussões se cruzam em to m o do poder moderador, sem que


«o lhe etiquete uma definição, cremos ser oportuno lançar um estudo sobre o seu
«Ignificado na nomenclatura da ciência política, com o devemos entendê-lo, qual a
itiu teoria e o papel desempenhado no Brasil, durante a sua vigência, da promul-
giiçfTo da Constituição de 25 de março de 1824, que o instituiu, ao decreto n9 1
ilr 15 de novembro de 1889, que o derrogou. Adotando no Brasil o sistema presi-
iloncialista, cujo êxito nos Estados Unidos empolgava os propagandistas da Repú-
lillca, e o sucesso aparente de seu exercício na Argçntina seduzia os republicanos
luusileiros, os responsáveis pelo golpe que derrubou o Im pério introduziram nas
iiiifituições políticas de nosso país elemento desestabilizador, com o qual não con-
invum. Suas conseqüências se fizeram manifestas desde logo, e, transcorridas nove
■Ideadas da proclamação da República, a sua estabilidade é, antes, imposta, com pre­
dom ínio do poder executivo, do que naturalmente consentida. A falta do poder
moderador vem sendo apontada. O professor Eugênio Gudin e o historiador João
Ciimillo de Oliveira Torres, coincidentemente, atribuíram às Forças Armadas esse
i>n|H3l, sobretudo com a vitória do m ovim ento revolucionário de 1964. Papel de
«ncedáneo, com o se vê, pois às Forças Armadas não'cabe função p olítica no quadro
dm instituições do Estado brasileiro, nem de qualquer Estado, no mundo. Corpo-
iiii,ao de defesa, sua atribuição é a de manter a segurança nacional, com todas as
iiiim conotações. 0 poder moderador deve ser apoiado pelas Forças Armadas,
notudamente por ser função exclusivamente monárquica, portanto, apartidária,
miprnpartidária.
1 O PO D E R M O D E R A D O R

Impõe-se-nos, portanto, definir, o poder moderador. Que é poder moderador?


Como interpretar o poder moderador, quando a teoria dos três poderes está fo rte ­
mente ancorada nas inteligências, e defender os poderes com o braço de um poder
miiior constitui heresia política? É preciso dissipar essa espécie de “ poeira atôm ica”
(|iie recobre o significado de uma teoria, cuja origem mergulha na noite dos tempos,
p tem fundas raízes na História. Não houve até hoje, nem mesmo nos Estados
Unidos - sem dúvida um exem plo edificante —, estrutura de Estado na qual um
poder não se sobrepusesse hegemonicamente sobre os demais. Ainda que se argu­
mente com a posição da Suprema Corte, nos Estados Unidos, e sua competência;
aluda que se invoque o Congresso, especialmente as Comissões do Senado, sobressai,
nitidamente, desse cotejo, a preponderância do presidente. A té mesmo o presidente
Klcliard N ixon , na fase derradeira de seu drama, o drama de um chefe de Estado
colhido nas malhas de um escândalo intencionalmente armado para o desmora­
lizar, e, com ele, a instituição presidencial, até mesmo o presidente Richard N ixon
desempenhou as suas funções sobranceiramente ao Congresso. Roosevelt fo i, em
tudo, um César, embora talhado com a matéria-prima americana. Num livro aperi­
tivamente provocante, Am aury de Riencourt associou o cesarismo à presidência
americana,1 pela soma de poderes que esta detém nas suas mãos. Por mais que se
ijiieira ver no funcionamento dos poderes da república americana a autonomia e
interdependência dos poderes, a preeminência do executivo é mais do que evidente.
Tenha James Bryce,2 em livro antigo que, no entanto, conserva toda a sua
atualidade, argüido de medíocres os presidentes americanos, o poder os transfigura,
dislanciando-os do Congresso e da Suprema Corte. Já não disse o padre A n ton io
V ie iia ’ que nada muda tanto um homem quanto o subir e o descer, e o subir
ma is do que o descer? Ascendendo à posição de chefe de Estado e de governo
da nação mais poderosa da terra, o presidente adquire perante a História dimen-
sOes excepcionais. D aí o cesarismo e a desestabilização, os quais são corrigidos,
em parte, nos Estados Unidos, pela força sutil, imponderável da tradição, do
prevalecimento do direito consuetudinário sobre o positivo, e o respeito sacros­
santo à Declaração da Independência, à Constituição e suas emendas. “ O cesarismo
americano não desafia a Constituição” ;4 convive com o seu texto. Subsiste,
portanto, a nossa tese, a posição sobranceira da presidência sobre o Congresso
c a Suprema Corte, ainda que, juridicamente, sejam autônomos e interdependentes.
O (ema do governo americano já fo i demasiadamente estudado para que o exam i­
nemos aqui em detalhe. Ninguém, no entanto, convencerá o mais intransigente
adepto da separação dos poderes que o executivo, o legislativo e o judiciário
sc equivalem na estrutura do Estado americano. Bastam as prerrogativas de
encaminhar mensagem ao Congresso, o direito de veto — que, na opinião de
Munro faz do presidente, virtualmente, uma terceira Câmara — e o direito de

1 Aninury de Riencourt. The Corning Caesars. Londres, Jonathan Cape, 1957, p. 328.
lumes Uryce. The American Commonwealth. N ova Y o rk , Macmillan, 1895, passim.
’ A n lon io Vieira. Sermões. V , p. 313.
'• Anmury de Riencourt, p. 340.
Q U E É PO DER M O D E R A D O R 3

nomear funcionários para a segunda maior máquina burocrática da terra,5 e temos


aí, legalmente estabelecida, a sua supremacia. Não há dúvida que funcionam bem,
tanto quanto é possível bem funcionar no mundo de imperfeições onde vivemos,
as instituições políticas americanas. Deve-se, no entanto, atribuir seu razoável
funcionamento à sua originalidade. Quando os Pais Fundadores criaram os
Estados Unidos, procurando ficar, rigorosamente, adstritos ao princípio federativo,
ao sistema de pesos e contrapesos, dos quais a Constituição seria a garantia inaba­
lável; quando inauguraram uma nacionalidade, partindo, efetivamente, da união
dos Estados, dotaram-no, desde logo, de uma novidade, a presidência, até então
inimaginada, sobretudo com mandato a prazo certo.
Em seu estudo clássico sobre a presidência americana,6 diz Harold J. Laski
que não há instituição estrangeira com a qual possa o presidencialismo americano
sor comparado, por isso que, basicamente, não há instituição que se lhe compare,
lí essa origem natural, de que emergiu o consenso dos colonos da Nova Terra,
no fim do século X V III, a causa da sua institucionalizada estabilidade. N o mesmo
estudo, Harold J. Laski adverte sobre os resultados diferentes produzidos pela
Irusladação do presidencialismo americano a outros países. A Am érica Latina
Inteira, do M éxico à Argentina, oferece quantos exemplos se quiserem para
confirmar a advertência do publicista inglês. Não há um só país na Am érica Latina
onde o presidencialismo não tenha sido a fonte geradora de crises pandémicas,
ii antecâmara das ditaduras.que se alternam em mesmice de tal maneira terrível,
que já deveria a sua constância ter despertado nas elites políticas do continente
nllcrnativas históricas e sociopsicológicas, para os problemas que se eternizam
uniu soluções válidas. Tome-se o Chile, de Diego Portales, com o espécime de crise
i|iic rastreia o continente desde a Independência. A pátria do grande doutrinador
uno se manteve no presidencialismo de seu ideal. O M éxico que chegou ao absurdo
ilr estabilizar uma contradição nos termos — instituição e revolução — assegura
ii ülutcma político amparado numa ficção, a do partido hegemônico e oligárquico.
A Argentina, o Brasil, o Uruguai, a Colômbia, a Venezuela, e outras nações, cada
t|iiiil com as suas peculiaridades, revesam no poder fases de liberdade e opressão,
mn* quais o presidencialismo justifica a sensata reflexão de Harold J. Laski. Argu-
mcnlu-se que, se o presidencialismo funciona bem nos Estados Unidos, deve
liiiiclonar bem em qualquer outro país. A História, que é política experimental,
nuit lembra que essa regra não tem validade, por ser falsa. Não se trata de problema
l'diiuicional ou econômico. A Argentina caiu sob a ditadura de Peron, quando
i'iii padrão de vida era o segundo — e, em vários aspectos, o primeiro — país da
Am nica. O presidencialismo simplesmente degenera na América Latina, e está
ili'Ki'iiciando até mesmo na França, onde ele é, no entanto, misto; conserva-se
ini« listados Unidos por lhe ser natural, por ter nascido em seu meio e, institucio-
iiiill/mlo, lhe pertencer.

' I nillo Giraud. Le pouvoir exécutif dans les démocraties d'Êurope et d ’Amérique. Paris,
ltm iioll Sircy, 1938, p. 35; The Economist. Londres, 3-9 de dezem bro de 1977, pp. 48 e ss.
1 llniiild J. Laski. The American Presidency. Nova Y o rk , The Universal Library, 1940, p. 11.
4 O PO D E R M O D E R A D O R

A crise institucional latino-americana já fo i exaustivamente estudada por


nós,7 para que a ela voltem os em minúcia. É inútil querer impingir a um país
o regime que não se lhe adapta. Fazendo-se experiências, buscam-se justificativas
paru os malogros, o tem po vai passando, as gerações se sucedem em seu curso,
e nSo encontram solução para as crises que as atenazam. Enquanto não fo r abando-
nadu a sedutora influência americana, que alcançou êxito num único país; enquanto
o presidencialismo não fo r aceito apenas com o uma opção entre outras, mas a
que provocou mais crises, fora de seu m eio de origem ; enquanto não se eliminarem
ai escamas dos preconceitos de quantos doutrinam, escrevem, transmitem ensina­
mentos, continuaremos a patinhar dificuldades, n o perpetuum m ob ile dos reco­
meços sem fim com o os ritornelos e as litanias. Reconhecemos a impressionante
lorça do m odelo americano. Em 1976 os Estados Unidos completaram duzentos
unos sem um único golpe de Estado. Quatro presidentes foram m ortos por balas
ussassinas, e o sistema continuou a sua rotatividade. Prostrado o presidente
Kennedy, em Dallas, o vice-presidente, Lyndon Johnson, assumiu o cargo, perante
uma ju íza de interior, e o trauma do povo americano não abalou as suas sólidas
instituições, herdadas, na sua parte substancial, da velha Inglaterra. N o Brasil -
para citarmos exem plo nosso —, o presidente Costa e Silva fo i declarado clinica­
mente im pedido de continuar a exercer a presidência; em lugar de ser convocado
o vice-presidente legalmente eleito, assumiu o governo uma Junta Militar. Como
eituva em evolução um processo p o lítico que dependia não só da caução com o
du própria ação dos militares, estes não permitiram a investidura do vice-presidente.
É Irrelevante investigar se estavam certos ou errados os militares. 0 vice-presidente
nffo fo i empossado, e, decorridos alguns dias, fo i eleito pelo Congresso, segundo
ug normas legais, outro presidente, escolhido nas fileiras do A lto Comando das
Forças Armadas. Impute-se ao presidencialismo, ou, mais especificamente, à deses-
tabilização dos poderes, essa crise, com o outras, análogas, de que é cena imensa —
uma espécie de cinemascope gigantesco — a Am érica Latina inteira, com um sistema
de empréstimo que não se institucionalizou, nem, a nosso ver, se institucionalizará
no continente.
Com o diz A fon so Arinos de M elo Franco8 “ não existe, no D ireito Consti­
tucional, tese mais estudada e controvertida que a da separação de poderes.
Delineada desde muito antes de Montesquieu, fo i, contudo, no célebre capítulo
VI do livro X I do D e lE s p rit des Lois que o grande pensador a propósito da
Constituição da Inglaterra desenhou, de forma mais nítida do que até então fora
feito, a teoria da separação” . Já dissemos, no estudo sobre a América Latina,
que Montesquieu fo i iludido por falsa ótica, quando observou em três poderes,
apenas, a organização do Estado, mas se lermos, atentamente, esse capítulo nele
encontramos a im plícita idéia do poder moderador, com o fo i ele entendido no

' lodo do Scantimburgo. O Destino da América Latina. São Paulo, Companhia Editora N acio­
nal, I9bb, passim.
■ A lo n io Arinos de M elo Franco. Presidencialismo ou Parlamentarismo. R io, José Olim pio,
IVJH .p. 299.
Q UE É PO D E R M O D E R A D O R 5

Império e deve ser corretamente interpretado na Constituição de 1824. Acentua


Motesquieu,9 que “ não haverá também liberdade se o poder de julgar não estiver
separado do poder de legislar e do executivo. Se estivesse ligado ao poder legislativo,
o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o ju iz seria
legislador. Se estivesse ligado ao poder executivo, o ju iz poderia ter a força de
um opressor” . “ Na maior parte dos governos da Europa o governo é moderador,
porque o príncipe que tem os dois primeiros poderes deixa a seus súditos o exer­
cício do terceiro.”
“ Entre os turcos, onde esses três poderes estão reunidos na pessoa do sultão,
reina um despotismo horroroso” . “ Nas repúblicas da Itália onde esses três poderes
estão reunidos, há menos liberdade do que em nossas monarquias” . N o mesmo
livro e no mesmo capítulo Montesquieu10 admite um poder moderador, quando
diz que “ dos três poderes ( . . . ) , o de julgar é, de algum m odo, nulo” . “ Restam
apenas dois e, com o esses poderes têm necessidade de um pod er regulador para
moderá-los, 11 a parte do corpo legislativo que é composta de nobres é bastante
capaz de produzir esse e fe ito ” . Aduzim os que a experiência histórica, abundan­
temente comprovada, tém dado razão a Montesquieu, mas concentrando no rei,
não nos nobres, o direito e a competência de exercer o poder regulador ou m ode­
rador. Defendemos a tese — a tese medieval — que não são poderes, mas braços
do poder, que exercem, ou devem exercer, as funções executiva, a legislativa e a
judiciária. A Inglaterra, ainda a velha Inglaterra, ilustra a tese. Na Câmara dos
Comuns o governo e a oposição de Sua Majestade legislam; no gabinete, o governo
de Sua Majestade governa; na Corte de Justiça, os juizes de Sua Majestade julgam.
Dir-se-á que forçamos arbitrariamente a argumentação em torno de nossa
tese, adotando o mesmo m odelo de que se serviu Montesquieu. Responderemos
que o poder real na Inglaterra reina mas não administra; esta é função do gabinete;
o seu governo e a sua oposição legislam de acordo com as épocas, as mudanças
iodais, os interesses das classes de que se compõe a sua sociedade, cabendo ao
chefe de Estado acatar as decisões de seus povos e evitar-lhes as tensões; os seus
Juizes fazem justiça, a fim de que não se macule a reta intenção do monarca,
cujos direitos dinásticos e tradição hereditária, prolongando-se no tem po e no
eupaço, devem estar protegidos das fraquezas, das hesitações e das ambigüidades
humanas. Embora o sistema político britânico se nos apresente cheio de .para­
doxos,11 essa é a sua estrutura, e nessa perspectiva devemos interpretá-lo, se não
dulsermos cair em erros. Usando o vocábulo república no velho sentido medieval -
u respública — diremos que a Inglaterra é “ uma república organizada na forma
de monarquia” ,13 mas vemos no monarca inglês uma das formas de poder mode-

* Montesquieu. D e L 'Esprit des Lois. Paris, Garniér, Livro X I, Cap. V I.


10 Id., Ib.
11 lir lfo nosso.
11 André Mathiot. The British Political System. Londres, T h e Hogarth Press, 1958, p. 18.
' * /t/.. Ib., p. 22.

te
f) O PO D E R M O D E R A D O R

nidor tão sólido ainda, não obstante soprarem furiosos pelos quadrantes do
mundo os ventos revolucionários — ou, segundo uma revista americana,14 “ um
ponto fix o no mundo em mudança” . Tenha, embora, perdido grande parte de
sou poder, depois da revolução de Cromwell, a coroa inglesa ainda encerra no
sou círculo de ouro, da bela expressão de Churchill, a instituição, graças à qual
sc assegura, com o sempre se assegurou, de resistência para enfrentar as tempes­
tades, tantas vezes violentas para o “ barco que Deus na Mancha ancorou” . Por
nflo exercer o poder executivo, o monarca inglês — e, em geral, as monarquias —
nflo se envolve nas lutas de facção, nem se deixa arrastar pelas disputas dos par­
tidos e de suas dissensões internas, de seus conflitos de interesses, de suas
convergências de objetivos. É uma posição singular, que aplica o selo de garantia
durável às instituições políticas, habilitando-as a arrostar os problemas, de cuja
Irrupção se preocupam as sociedades. Segundo Ivor Jennings, o “ Parlamento con­
siste não da Rainha, da Câmara dos Lords e da Câmara dos Comuns, mas da
Ruinlia no Parlamento, da Rainha com os Lords Espiritual e Tem poral, e com
os Comuns no plenário, embora na prática representantes atuem represen-
timdo-a” .15 Para o mesmo autor o mecanismo do governo britânico, o monarca,
o gabinete e o parlamento, sustenta a democracia de que a Inglaterra é m odelo.16
Atribuím os à realeza britânica o papel de poder moderador, operando pelos
órgãos de que se compõe a sua estrutura. É a ação institucional na sua duração
histórica, nas tradições que a vivificam , no estupendo respeito pelos direitos da
pessoa humana, mais concretos do que os vagos direitos humanos dos quais tanto
se fiila em nossos dias. Fundamenta-se a coroa britânica na essência da instituição.
Diií durar no tempo e no espaço. Sua configuração moderadora encontra-se
Implícita no próprio sentido de instituição com o fundação duradoura. Imerge
na noite dos tempos a sua origem, e sempre, nas quadras fastas e nefastas, conser­
vou, inalterável, o princípio institucional que lhe deu origem. Se os Estados Unidos
romperam os laços que os prendiam à m etrópole, optando por uma novidade,
com o já dissemos, o presidente, em lugar do rei, forte mas lim itado,17 não renun­
ciaram, contudo, à herança das liberdades inglesas, que já estavam institucional-
meiite incrustadas na sociopsicologia, nos costumes e no comportamento de seu
povo. São inglesas, tipicamente inglesas, as liberdades que fazem o apanágio do
sistema americano, cuja resistência fo i posta à prova no escandaloso episódio
do Watergate. De todas as nações do mundo, a Inglaterra, e, em geral, os povos
do língua inglesa, mas sobretudo, a antiga mãe pátria, conserva o legado das
liberdades medievais, que a meia ciência e os preconceitos modernos sempre
negaram. Basta ir ao monumental estudo dos irmãos Carlyle para se obter a certidão
do origem das liberdades que, ainda, apesar de tantas e sucessivas crises, a Inglaterra,

11 lim e, 20 de junho de 1977.


1" 'ill Ivor Jennings. Parliament, Cambridge University Press, 1957, p. 3.
"> I,I., Il>., p. 526.
1 A illiu r M. Schlesinger. The Imperial Presidency. Boston, Houghton M ifflin Co., 1973, p. 2.
Q U E É PO D E R M O D E R A D O R 7

os Estados Unidos e os países de língua inglesa conservam.18 Sobre èssas liber­


dades fundou-se o poder moderador, o poder arbitrai, a cuja presença no seio
das instituições devem os povos, que não o marginalizaram, as suas liberdades
civis e os seus direitos mais caros. Não o têm explicitamente os Estados Unidos,
mas implicitamente. O sistema de pesos e de contrapesos, a tradição, o respeito
sagrado à letra e ao espírito da Declaração da Independência e à Constituição
que se lhe seguiu exercem, de fato, uma espécie de freio arbitrai à tentação dos
excessos, seja do executivo, a presidência; seja do legislativo, o Congresso.
Para o dominicano R. L. Bruckberger19, a Declaração da Independência fo i
expressão da filosofia tradicional do Ocidente, “ que decorre da Sabedoria grega, do
Direito romano e da revelação judaico-cristã” . Tão grande, extensa e profunda é a
sua ascendência espiritual sobre o povo americano, que se erigiu em regra-de-fé à
qual os poderes do Estado se submetem, prestando-lhe obediência. É nesse sentido
que afirmamos exercer a tradição, consubstanciada no grande docum ento da Inde­
pendência americana, o poder moderador. A tradição é elemento de coesão social.
Viva nos Estados Unidos, na Inglaterra, nos países de língua inglesa, em geral, é um
princípio unificador. A única nação de língua inglesa que não conservou o poder
moderador, corporificado no monarca, foram os Estados Unidos. Na república
imperial americana, a tradição, os costumes, a força incoercível da instituição,
como princípio de duração política e social, desempenham esse papel.
N o seu estudo clássico sobre a democracia americana Alexis de Tocqueville20
estabelece a distinção entre a realeza constitucional da França e a presidência
ilos Estados Unidos. O grande autor do estudo magistral sobre o sistema ameri­
cano resvala, porém, em algumas impropriedades, afirmando que o presidente
ilos Estados Unidos não se pode subtrair à obrigação de executar as leis votadas
pelo Congresso. Mas o presidente exerce, quando quer, o direito de veto, o qual,
lo n io vimos, erige-se com o outra Câmara, ao passo que o rei constitucional da
I iiuiça, dinástico e suprapartidário, exercia, na época, o poder moderador, ou
poder real. Essa era uma velha prerrogativa dos reis de França. Passando, através
tio» séculos, por várias mudanças — o absolutismo; o seu eclipse durante os anos
ilii revolução; o bonapartismo, que o extrem ou numa ditadura imperial; o libera-
IIn iiio engendrado depois de 1789 — o poder real ia buscar as suas origens nas leis
limdiimentais da monarquia, que, baseadas em regras consuetudinárias, eram obser­
vadas na França do “ A n tigo Regim e” , sobretudo nos séculos X I V e X V 21. Não
«r llvesse manifestado na França a erupção revolucionária, urdida nas “ sociétés

111 K W. Carlyle e A . J. Carlyle. A History o f Mediaeval Political Theory in the West. Londres,
Wllllun Blackwood & Sons, 111., 1942, p. 3 e passim (seis volumes).
Iu It. L. Bruckberger. A república americana. R io, E ditora Fundo de Cultura, 1959, p. 108,
limluçffo do original francês.
Alrxls de Tocqueville. D e La Démocratie en Amérique. Paris, Librairie de Medieis, 1 9 5 1 ,1,
11 IH5 c passim.
11 lut nues lillul. Histoire des Institutions. Paris, P.U .F., 1969, III, p. 318 e passim.
H O PO D E R M O D E R A D O R

de pensée” , nos clubs jacobinos e no fervedouro provocado pela Filosofia das


I uzes, o poder real teria prosseguido, poupando os sofrimentos, as dores, as mortes,
ui injustiças, sobretudo a desestabilização por que a nação gaulesa passou e
continua a passar, incerta, sempre, do rumo a tomar. Falta-lhe o poder moderador.
1’elu Constituição da V República, pretendeu, ao parecer, o general De Gaulle,
Instituí-lo, colocando-se sobranceiro aos partidos. Mas, com todo o seu prestígio,
o ieu carisma, a sua ascendência sobre o povo francês, o fascínio que a sua persona­
lidade suscitava nas multidões, o general De Gaulle, que era um César plebiscitário,
inuls do que um presidente-monarca, acabou vencido pelas contradições do regime,
Chamou o povo a um plebiscito em 1969, e, perdendo-o, recolheu-se à sua casa
de Colombey-les-deux-églises, onde, pouco depois, veio a morrer. O presi­
dente Giscard d’Estaing esforçou-se para convencer o povo de ser o presidente
de todos os franceses, mas temos visto que não alcançou êxito. A única república
presidencial onde as regras do jo g o maioria-minoria são respeitadas é a americana.
Ninguém pôs em dúvida a vitória de Kennedy sobre N ixon , por menos de 1%.
Nas demais repúblicas presidenciais fica, sempre, um resíduo de inconformismo
com as derrotas. Nas monarquias, segundo Locke, as leis fundamentais do reino
obrigam o rei à sua observância.22
N o velho Portugal vigorou uma espécie de poder moderador, em época
anterior ao Constitucionalismo com o qual se iniciou a grande crise que estuou
na morte de D. João V I, na guerra do miguelismo, nas sucessivas críticas à Carta,
durante o século X IX , no governo autoritário de João Franco, no assassínio do rei
I) Carlos, na deposição de D. Manuel II, na proclamação da República, no assas­
sínio de Sidonio Pais, na ascensão de Salazar, na deposição de Marcelo Caetano,
e no calvário, sob cujos sofrimentos, exangue das suas mais sólidas energias, a
pequena grande nação peninsular ainda padece. O poder moderador fo i, mesmo,
lolapado pelo liberalismo. N o Brasil salvou-o D. Pedro II. Para os velhos tratadistas
portugueses, a monarquia era limitada pelas ordens. “ Correspondendo às forças
naturais da sociedade, organizadas e hierarquizadas em vista ao entendimento
e bases do comum, as ordens do Estado eram, dentro de seus foros e privilégios,
as depositárias natas dessas leis fundamentais’ . Legislação positiva, destinada a
normalizar e a coordenar as exigências da vida quotidiana, tomava o ‘costume’
como base e consagrava a experiência com o sua regra inspiradora.” 23 Se essa
organização se deform ou, vindo a se lhe introduzir o absolutismo, deve-a à revo­
lução com o processo de instabilidade permanente, cuja origem vamos encontrar
no século X V III, quando o mundo fo i agitado por movimentos intelectuais e
econômicos,24 acentuando-se o seu desenvolvimento e a sua ação nefasta no

I I John Locke. Segundo Tratado. X V III, 200.


■1 A ntonlo Sardinha. Prefácio à Memória para a História e Teoria das Cortes Gerais do Visconde
de Santarém. Lisboa, Imprensa Régia, 1827 (prefácio s/d).
14 1 1 nçols Dreyfus. L e Temps des Révolutions. Paris, Larousse, 1968, p. 15; Winston S.
Churchill. A History o f the English Speaking People. Londres, Cassei and Com pany, 1957,
Vol. Ill, p. V I I e passim.
Q U E É PO D E R M O D E R A D O R 9

século X IX , com o romantismo sob todas as formas de sua influência nas socie­
dades da época. N o século X IX , o filósofo e jurista suíço-francês Benjamin
Constant elaborou a teoria do poder real, adotado pelo constituinte imperial
em 1823, com a denominação de poder moderador, tendo a sua obra uma finali­
dade única, a de preservar a chefia monárquica do Estado da desestabilização
intermitente causada pelas lutas de partidos. Benjamin Constant procurou conciliar
o liberalismo da França post-bonapartista, com a instituição monárquica. Como
os partidos são focos de tensões, sob cujo choque as sociedades se estiolam, se
não forem neutralizadas no vértice supremo da chefia neutra do Estado, o poder
real se constitui nesse amortecedor. As ondas, furiosas ou não, das disputas p o lí­
ticas, tantas vezes, com o sabemos, envoltas em passionalidade, devem quebrar-se
na sobranceira neutralidade desse poder, cuja posição é de eqüidistância dos jogos
de facções, dos interesses pela conquista do poder, e com o este é rotativo, sujeito
a mudanças, inadjudicado, portanto, a uma longa permanência em cargos de
mandato, sua carga emocional se reduz, em benefício da nação.
É função do poder conservar a sociedade. D aí ser-lhe necessária a institucio-
nalidade. O “ pacto” , com o vem em Jean Jacques Rousseau, é “ a consagração da
instabilidade social, visto que, definindo com o única fonte da soberania, a soberania
dos indivíduos, anula os grupos sociais e econômicos, a cuja coordenação o Estado
preside, para deixar, por um lado, a soberania nas mãos do bando que a conquista
e, ppr outro, a comunidade sem forças nem órgãos que legitimamente a expressem,
entrégue à cupidez dos interesses parasitários que se lhe sobrepõem 'e a acabam
de escravizar” .25 O poder moderador não deriva de um pacto, com o queria
Rousseau, mas do consenso, com o queria Santo Tomas, e, em geral, os escolás­
ticos. “ Suponhamos” , diz Rousseau, “ os homens chegando àquele ponto em que
os obstáculos prejudiciais à sua conservação no estado da natureza sobrepujam,
pela sua resistência, as forças de que cada indivíduo dispõe para manter-se nesse
estado. Então, esse estado prim itivo já não pode subsistir, e o gênero humano,
•e não mudasse de vida, pereceria” . ” Ora, com o os homens não podem engendrar
novas forças, mas somente unir e orientar as já existentes, não têm eles outro
meio de conservar-se senão form ando, por agregação, um conjunto de forças,
que possa sobrepujar a resistência, impelindo-as para um só m óvel, levando-as
a operar em concerto” .26 Nasce desse m odelo de racionalismo o “ pacto social” ,
o contrato que iria mudar a terra, na linha impetuosa de todos os erros filosóficos
que dela derivaram. A utopia de Rousseau iria fazer tanto mal à civilização e à
cultura dos povos, que ainda não se lhe recenseou a extensão. Rousseau não teve
u originalidade dos criadores, mas fo i um precursor; condensando no seu pensa­
mento os desvios do reto caminho da verdade, a verdade que se fundava no
consenso medieval, impingiu-os aos seus pósteros. Quando a teoria do poder
real — ou moderador — fo i elaborada, a influência de Rousseau já se fizera sentir.

11 An ton io Sardinha. Id., ib., p. C C X X X V ; cf. Charles Mannas. Dictionnaire, várias edições.
14 Jean Jacques Rousseau. D o Contrato Social. Livro I, C apítulo V I.
Il) O PODER M ODERADOR

Como dizia Gaston Morin, “ Rousseau pode, com títu lo justo, dar-se com o teórico
dos despotismos, assim com o da liberdade. A o menos, porém, no seu pensamento,
o despotismo repousa sobre a idéia de liberdade. É a tese do Contrato Social''’ } ' 1
A tormenta da revolução francesa, a ascensão, fastígio e queda de Bonaparte,
o Jucobinismo, o terror, o Im pério, a Restauração, o triunfo irresistível do libera­
lismo o da consciência burguesa, essas foram as etapas com as quais se marcou
o pouoso itinerário da França de uma realeza à outra. A França, toda ela, era
"m altrc à penser” , influindo, portanto, decisivamente no caminhar da humanidade,
iilò mesmo em povos aparentemente mais distanciados de seu foco impressionante.
Na América, a revolução americana já produzira efeito, e seu presidencia­
lismo fora adotado pelas nações que se tornavam independentes da Espanha, com a
únlcii exceção do Brasil, em cujo destino atuara o imponderável, a fuga da fam ília
mui du sede da monarquia lusitana para a sua colônia da Am érica, e, com essa trasla-
duçllo, acompanhando-a, a instituição monárquica, sob cuja égide se faria a inde­
pendência brasileira. Na Am érica de origem espanhola, já o vimos, iria se introduzir
iitiN suas instituições políticas um fator de perturbação, o presidencialismo, com os
lies poderes autônomos e interdependentes. O caudilhismo, de que não se curou
nté liojc o continente, viria a ser a regra, desfilando pela História das nações iberó-
loiiiis os aventureiros, que supriam a lacuna da autoridade não institucionalizada
polo decalque americano, com a autoridade do carisma — ainda que a palavra do
vocabulário de Max Weber mal se lhes adapte — sobre os indo-americanos que se
llios ucorrilhavam. Como vemos a força das idéias é irresistível no conquistar adep-
los, quundo elas encontram campo fértil para se desenvolver. Teria a Am érica de
sor pulco do choque de culturas, com a introdução da filosofia política de Locke,
Kousscau, Montesquieu e Kant, principalmente, e a sobrevivência, nas instituições
hiildoadus pelos colonizadores, da escolástica, do pensamento dos filósofos da
Compunhia de Jesus e da Ordem dos Franciscanos, da teologia católica e do indivi-
d niilismo protestante. Sabemos que é inútil lutar contra essas formas de invasão,
iiiiis subemos, também, que apresentar o itinerário do retorno às fontes — no
cuso a conciliação entre a origem natural da cultura do continente com o pensa­
mento que lhe deu form a — é um dever da inteligência. É o que fazemos. Cum-
prlino-lo. Patrocinamos o reconhecimento do poder moderador com o a solução
ilns nossas crises. Diríamos que seria essa a solução para outras crises, mas nada
lemos com o problema de povos, que também se debatem nas suas tenazes. Deve­
mos cuidar da nossa. Atribuím os à tradição, ao respeito sacrossanto pela Decla-
iiiçflo da Independência e a Constituição de 1787, à Suprema Corte e ao papel do
Congresso na estrutura do governo dos Estados Unidos, ao seu federalismo vivíssi­
mo, upesar de algumas mudanças que se lhe introduziram neste século, numa
piiluvrn, às suas instituições, a função, de fato, de poder moderador, que lhes falta
iln iliroito. Comprova-o o funcionamento de seu presidencialismo, ao contrário de
ou lios que malograram — inclusive o da França, parcialmente adotado pelo

m in Morin. La révolte des faits contre le Code. Paris, Grasset, 1920, passim.
Q U E É PO DER M O D E R A D O R 11

general De Gaulle, e cedo desgastado. As nações têm necessidade de um poder


neutro, arbitrai, suprapartidário, que lhes possa dirimir as suas tensões.
Confessamos ter pouca esperança de reencontrar o eixo do equilíbrio p o lí­
tico, esse poder moderador pelo qual tanto nos batemos e pelo qual tanto anseiam
os povos, sobretudo os povos latino-americanos. A cisão na ordem do espírito
não fo i reparada, nem vislumbramos a perspectiva de sê-lo, no mundo moderno e
neste atribulado continente. Somos, ainda, alimentados com idéias que rastreiam
a civilização e nutrem a cultura do Ocidente, procedentes da Renascença, da F ilo­
sofia das Luzes, do racionalismo e do utopismo de Rousseau. À essa utopia veio
acrescentar-se ainda a marxista, que se acompanha, desde a revolução bolchevista,
de forte carga totalitária, a única que conserva as sociedades submetidas a seu
instrumento, o comunismo, obedientes ao poder supremo. Sobraram no mundo
de hoje alguns remanescentes de poder moderador. São os que sobrevivem em
nações monárquicas, e, como dissemos, nas instituições americanas. Para não
soçobrar, alguns povos apelaram para o sucedâneo do único regime compatível
com o poder moderador, a monarquia republicana, da tese — que deve ser podada
de parte lamentavelmente superficial — de Maurice Duverger. “ As monarquias
republicanas não são regimes intermediários entre as monarquias tradicionais e as
repúblicas não monárquicas, mas a forma contemporânea que assume a república
nos países economicamente mais avançados e democraticamente mais antigos” .28
Mas essa forma de governo monárquico é um “ ersatz” , que só convém aleatoria­
mente aos povos. O autor faz o possível para convencer os seus leitores do acerto
de sua tese, mas não consegue escamotear a realidade: a monarquia republicana
é um sucedâneo. D aí impor-se ao analista dos fenômenos políticos, ao historiador,
ao estudioso dos sistemas políticos o dever de irem ao original, e este, em nossos
dias, é o poder m oden uor, em cujo recinto se podem harmonizar as correntes que
nc chocam nas sociedades de tensões de nosso tem po, e assegurar o equilíbrio —
precário, sempre, se não houver uma autoridade que o mantenha — dos poderes,
dus opiniões, das tendências, manifestas na vida dos povos, nesta fase histórica em
que os poderosos meios de comunicação influem decisivamente no rumo da civili­
zação. Esse poder — o moderador — é, insistimos, o poder neutro, arbitrai, superior
aos embates partidários, desvinculado das lutas pelo poder, mas vinculado, exclusi­
vamente, aos interesses da nação. Esse o poder que desejamos para o Brasil, para
ficarmos apenas em nosso país.

1H Maurice Duverger. La monarchie républicaine. Paris, R obert La ffon t, 1974, p. 16.


a natureza do poder moderador

0 constitucionalismo teve início nos Estados Unidos. Se houve até hoje no


mundo um pequeno grupo de homens que, efetivam ente, partindo de fórmula
antiga, criou instituições novas, esse grupo fo i o dos Pais Fundadores americanos.
Os Estados em que se erigiram as antigas colônias criadas pela coroa britânica e a
sua associação sucessiva, form ando uma federação, ou união; a Constituição
escrita suficientemente rígida para se conservar e fle x ív e l bastante para não tolher
o desenvolvimento da nova nacionalidade, e, coroando esse trabalho original, a
Declaração da Independência, não tiveram precedente nem predecessores. A Cons­
tituição de Atenas, de Aristóteles, não é uma Constituição, é, antes, uma história,
e os documentos que se registram com o tal não foram, também eles — inclusive
a Magna Carta —, constituições, com o as devemos entender. A Inglaterra deu, é
verdade, o exem plo, mas ficou na Constituição tradicional, consuetudinária, não
metodizada. Os Estados Unidos, esses alcançaram as bases do m oderno constitu­
cionalismo, tendo com o baliza de partida a Declaração da Independência de 1776
e a Constituição de 17 de setembro de 1787, adotada pelos treze primeiros Estados
Unidos. N ão vamos, evidentemente, fazer história constitucional; o nosso objetivo
é outro, é o de, convincentemente, demonstrar que o poder moderador é necessá­
rio às nações. A primeira Constituição do mundo, e as que se lhe seguiram, adota­
ram a divisão clássica dos três poderes de Montesquieu, à qual já fizem os referência.
Foi o erro que praticaram, sem cura até os nossos dias. D o fim do século X V III,
quando os Pais Fundadores deram origem aos Estados Unidos, com a Declaração da
I'I O PO D E R M O D E R A D O R

Independência, e lhes fizeram votar uma Constituição,1 proliferaram as Consti-


lulçftcs. Iod os os povos se inspiraram no m odelo americano, na sua extraordinária
p surpreendente revelação, a de uma lei escrita, submetendo a seus dispositivos
Iodos os súditos da nação, obrigando-os à obediência de normas, completadas e
nimplcincntadas por emendas e leis ordinárias que, no entanto, não podem alterar
a essência de seu texto.
VusLíssima é a bibliografia sobre a Constituição dos Estados Unidos. Dispen-
«iimo nos de citá-la. Chamamos, porém, a atenção dos estudiosos para o fenôm eno do
conliígio, cujo surto veio a rastilhar todas as nações, com a única exceção da Ingla-
Icnu, que não alterou o seu costume; nele ficou, legislando segundo a tradição,
iitmilizando leis, sem se prender aos textos escritos, ao seu formalismo, não raro,
(ilililerante. Temos a impressão, à distância, que os povos aguardavam a Consti-
Iwlçflo, c com ela se deslumbraram. Elaborada na “ era da revolução” , com o ficou
historicamente conhecido o fim do século X V III, a Constituição americana des-
biiivou um terreno virgem. V e io para enquadrar a revolução no m étodo jurídico.
I(nccrriiva-se, então, uma idade histórica e se abria outra. De 1688 a 1815, isto é, da
rxpulsüo do último rei católico das ilhas britânicas à derrota de Napoleão em
W iilerloo,2 o fo g o da revolução abalou instituições, desfez costumes, acelerou a
rvoluçíTo industrial, tendo com o imediata conseqüência a mudança de hábitos,
sohreludo no abalo às tradições, no fortalecim ento do poder real, com o absolu­
tismo; no descompromisso histórico com a estabilidade do trono, cuja sobrevi-
venciii veio a ser precária; na controvérsia sobre a legitimidade — da qual trataremos
cm outro capítulo —, no advento da monarquia constitucional, na generalização do
K'HÍme republicano, decalcado dos Estados Unidos, no ocaso das realezas, e, final­
mente, já no século X X , no estuar violento da revolução bolchevista, que iria ser
outro exem plo fascinante para o mundo, mas, também, a sua provação sem termo
piospectivo.
A revolução, como processo de mudança, chega ao último quartel do século
XX , alimentando a desestabilização do poder. Quando o Ocidente - a matriz da
irvoluçffo, segundo Toyn bee3 — iniciou o constitucionalismo, os freios da revo-
luçflo foram instituídos, mas a luta não teria tréguas. Nessa tela vastíssima, somente
uno se desestabilizou o poder em nações de língua inglesa, nem mesmo com a apa-
iciilo fidelidade aos princípios democráticos no episódio de Watergate, antes um
golpe armado pelos comissário? — ostensivos ou recessivos, não importa — da
icvoluçilo mundial, do que uma reação da pureza dos costumes políticos ameri-
Limos; ainda se mantém a Suíça o único sistema colegiado que se sustenta confede-
iiiiliimentc unido, sem coerção, e as monarquias mencionadas em outro capítulo

1 ( I il verbe le “ Constitutions” na Encyclopaedia o f Social Sciences, N ova Y o rk , Macmillan,


I1) IH
1 Win .ion S. Churchill. A History o f the English Speaking Peoples. Londres, Cassel and Com-
|intiv. I ‘ >.S7, Vol. I ll, p. V II.
1 Arnold I Toynbee. Le Monde et l’Occident. Paris, Desclée De Brouwer, 1953, passim.
A N A T U R E Z A D O PO D E R M O D E R A D O R 15

desta obra, uma das quais, o Japão, espanta o mundo neste fim de século, com o
ím peto de seu vigor econôm ico, tão robusto que os Estados Unidos tiveram, em 15
de agosto de 1971, de atenuar o seu liberalismo, introduzindo restrições protecio­
nistas no mecanismo de seu com ércio exterior. Está em crise o Sistema Constitu­
cional. Sobrevive às mudanças a Constituição americana, a única até hoje não
reformada. As emendas que lhe foram introduzidas não lhe tocaram na substância
de seus princípios inspiradores, embora os presidentes, ao contrário do que desejava
Hamilton,4 não mais são — ou nunca foram — independentes das máquinas ^ r t i-
dárias, dos “ caucus” e dos “ lobbies” . Subsiste, porém, a Constituição com o uma
regra-de-fé, no sentido que se atribua à expressão nos velhos catecismos da Sama
Madre Igreja. É preciso nela crer, respeitá-la, ser-lhe obediente, ainda mesmo nos
mais dramáticos, perigosos e difíceis momentos da União.
Ín So há outra nação que tenha tido apenas uma Constituição, regendo-a poli­
ticamente. Seria impossível arrolar aqui as Constituições de todos os povos, com o
peça em cuja força m irífica incrivelmente se crê. A Constituição é, apenas, uma
“ invenção p olítica” ,5 para conter a natural indisciplina do ser humano em socie­
dade no quadro de uma lei fundamental, de cujos princípios outras derivam. A tri­
buem-lhe, porém, desde o seu advento, poderes que lhe devem ser estranhos, com o
o de assegurar a paz política, o desenvolvimento econôm ico e social, a concórdia
interna da sociedade. Não se atina com a causa da freqüência por que as Consti­
tuições são substituídas; os analistas do fenôm eno, quando os há, deixam-se ficar
nas suas aparências, atribuindo as crises políticas a fatores exógenos, quando elas
se engendram no descompasso entre essas leis e os costumes dos povos. É impossí­
vel retroceder do constitucionalismo, por ser definitiva a sua introdução na orga­
nização política dos povos. Mas as instituições políticas que regem as nações devem
enquadrar-se numa lei que mergulhe até às profundezas da sua história, e de lá
arrecade o princípio da duração nacional. Essa lei, que chamamos- Constituição,
deve consubstanciar em seu texto o conjunto de instituições histórico-políticas
tradicionais, que regularam no passado e devem regular no futuro a vida nacional.
A Constituição nacional deve ser, com o dizia La Tour du Pin,6 um produto histó­
rico, onde não encontremos a mão do fabricante, mas uma seqüência ininterrom-
pida de causa e efeito, nascida das circunstâncias e sancionada pelo tempo. A
Constituição nacional deve ser, em síntese, um com plexo de soluções dadas, arma­
das de coesão evidente, ao problema eterno para todas as sociedades políticas, a
conciliação de autoridade e liberdade. A sociedade não é um mecanismo; é uma
criação; está sujeita, portanto, às leis naturais de que resultou. A Constituição,
que não respeita as tradições nacionais, a formação de uma cultura nacionai, as
linhas da civilização na qual essa cultura está inserida, ou não será cumprida, com o

4 The Federalist. Encyclopaedia Britannica, Chicago, U .S .A ., 1952, n9 68.


5 Walter Hamilton. A rtigo na Encyclopaedia o f Social Sciences. Op. cit., artigo “ Constitu-
cionalism” .
6 La Tour du Pin. Vers un ordre social chrétien. Gabriel Beauchesne, 1929, passim.
I* O PODER M ODERADOR

iid o 1891, ou será objeto de críticas, com o a de 1967, com a sua Emenda. O traço
(|uo Oliveira Viana7 notou na mentalidade dos republicanos históricos, a crença
no poder das fórmulas escritas, é o mesmo que, transcorrido mais de meio século,
período durante o qual irrecenseáveis foram as mudanças registradas no mundo,
iiiNoiira, com o um denominador comum, a mentalidade da nossa “ classe política” .
I*iiiu aqueles sonhadores, dizia Oliveira Viana, pôr em letra de forma uma idéia era,
ila xl mesmo, realizá-la. Vimos que o belo monumento ju ríd ico elaborado pelo emi­
nente Rui Barbosa fo i colocado à margem da nossa vida p olítica; prevaleceu durante
h I República o parafeudalismo das oligarquias estaduais, concertadas, por interde-
i ipiuléiicia, com o poder central. Das demais Constituições falamos em outro capítulo.
O constitucionalismo só se ajustou no Brasil com a Constituiçïo de 1824, isto
6, mais precisamente, com o poder moderador, sábia instituição, bebida pelos
constituintes do Im pério nas lições de Benjamin Constant, o jurista, político,
romancista suíço-francês. N ão tivesse o Império caído ao golpe de 15 de novembro
dn 1889, e, provavelmente, a Constituição de 1824 estaria vigente, atualizada por
emendas. Os sucessores do imperador, com o estamento político que com eles
ninavam, adaptariam a Constituição sem alterar-lhe a substância. Evidentemente
nflo se argumenta em história com os condicionais, embora tenhamos, no passado,
m on dado a essa espécie de jo g o , que, agora, os americanos praticam com o nome de
factual history. Mas, com base nos fatos, podem-se fazer reflexões, e uma dessas
4 que a Constituição seria conservada, sobretudo porque o poder moderador era
ii sua peça de resistência. É da natureza desse poder im pedir a desestabilização dos
trís poderes clássicos da divisão de Montesquieu, embora no " L ’E sprit des L o is ”
sr|a defendido o exercício do poder executivo pelo monarca. Montesquieu não
cnnhecia o fenôm eno da desestabilização do poder, nem poderia o seu fecundo
Hénlo penetrar no futuro, e de seu arcano extrair argumento para a sua tese. V eio
a ser demasiado com plexo o Estado. O executivo no Brasil comanda vastíssimo
exército de burocratas, tem a competência de nomear funcionários, dispõe de
repartições com o o Ministério da Fazenda, o Banco Central e o Banco do Brasil -
competência que o sobranceia em face dos outros poderes — sendo, portanto, um
poder cuja preponderância o confunde com o próprio governo.
A desestabilização só poderá ser corrigida no funcionamento contínuo dos
poderes por um poder neutro. Dela não cogitou Montesquieu em sua tese, mal
(íhscrviida na Inglaterra. Era um teórico o autor de L ’E sprit des L o is ; estudava,
lliuva conclusões, procurava apoiar-se em exemplos, mas não possuía a experiência
vivida do poder. Montesquieu viajou, teve contacto demorado com vários povos e
vrtilus camadas sociais; conheceu príncipes, políticos, financistas, mas lhe faltou a
nxpcrlência, e, sobretudo, o gênio da antecipação. Não se lhe poderia desdobrar
A vlsflo o mundo futuro do século X X , deste final de m ilênio e do que nos é dado
liiover, com base no formidável avanço da ciência e da técnica, do fenôm eno
liinocríitlco e do p rin cíp io das nacionalidades, para o m ilênio próximo. Das cento

’ i llivcliii Vlnnu. O Idealismo da Constituição. São Paulo, Companhia Editora Nacional,


I '> l‘J , ixissim.
A N A T U R E Z A D O PO D E R M O D E R A D O R 17

e cincoenta e uma nações com as quais conta o mundo,8 apenas uma dúzia não
tem o poder desestabilizado, com hegemonia do executivo. Quase cento e quarenta
hipertrofiaram o executivo, contra todas as reflexões de Montesquieu, o qual, de
resto, não fo i suficientemente lido, analisado e meditado. A té mesmo um terrível
colegiado, o da União Soviética, oligarquia rígida, indestrutível — ao menos a breve
prazo —, constituída por “ m oto-próprio” pelos oligarcas que o com põem , externa
a imagem de executivo subordinado ao Partido Comunista, igualmente uma oligar­
quia, uma espécie leiga de clero, acorrilhando às suas ordens clericais, ao seu breviá­
rio e à sua Vulgata a população das repúblicas soviéticas. Os soviets aplaudem uni­
formemente as decisões do Presidium; o judiciário pratica justiça ideológica, por­
tanto, é iníquo. Os colegiados de Atenas e Veneza também foram oligarquias. Só
não o é o colegiado da Suíça, singular exem plo de estupendo sucesso de governo
bem I sucedido, que recentemente os comunistas vêm procurando desmoralizar.
Benjamin Constant previu a desestabilização dos três poderes, e, por isso,
devemos averbar-lhe uma nota de louvor por seu gênio na doutrinação política.
Infelizm ente não o estudam, não o conhecem, não o lêem, e sua notável intuição,
que fo i corporificada na Constituição do Im pério do Brasil, não é trasladada para as
instituições políticas de outros povos, em nosso tempo. Poderia salvá-las o talento
excepcional de Benjamin Constant, mas com o não se vai ao fundo de pensamentos
de tanta densidade com o o seu, uma teoria política de primeira grandeza é, apenas,
matéria de exercícios acadêmicos. Para Benjamin Constant9 “ a fraqueza de qual­
quer parte do governo é sempre um mal, fraqueza que não diminui em nada os
inconvenientes que se temem, e destrói as vantagens que se esperam” . “ Ela não
opõe obstáculos à usurpação, mas abala a garantia, porquanto a usurpação é o efeito
dos meios que o governo absorve, enquanto a garantia é a de seus meios legítim os” .
Prossegue Benjamin Constant, que o governo fraco pode ser invadido, e para evitá­
-lo procurará reforçar-se, chegando, então, à “ usurpação sem lim ites” . Daí, ser a
Constituição um ato de concórdia, que fixa as relações recíprocas do monarca
com o povo. Para Benjamin Constant a Constituição e o constitucionalismo eram,
portanto, fatos consumados. Cabia ao exegeta fixar em seus dispositivos a esta­
bilidade do poder. Se no “ A n tigo Regim e” nunca fora argüida a legitimidade ou
ilegitimidade do poder, as transformações por que havia passado e estava passando
o Ocidente introduziram-lhe uma novidade, a Constituição escrita, e no seu texto
a teoria dos três poderes. Começara a “ idade da revolução” , em cujo sorvedouro o
mundo iria se engolfar, sem paradeiro, até os nossos dias. O “ A n tigo Regim e” ficou
na História conhecido com o francês, mas por analogia pode ele ser estendido a
outros reinos, até mesmo aos reinos bárbaros do leste, da Alemanha à Santa Rússia.
Se as instituições francesas não se encontram na sua plena expressão sob os senhores
teutônicos e os autocratas eslavos, nem o brilho da civilização gaulesa alcançou

8 Na segunda metade de 1977.


9 Benjamin Constant. Collection Compléte des Ouvrages. Paris, Chez P. Plancher, 1818,
I V volume. C f. I, p. V II; Paul Bastid, Benjamin Constant et sa doctrine, Paris, Librairie
Armand Colin, 1966, 2 volumes, passim.

m
18 O PO D E R M O D E R A D O R

esplendor na Germânia e na Rússia, deve-se buscar explicação para essa lacuna em


colapso trágico,10 o da Cristandade ocidental. O Papado, com o instituição religiosa-
-temporal, não chegou até à Alemanha, mas apenas a alguns de seus reinos, nem à
Santa Rússia, que se conservou cesaro-bisantina. N a aurora da Idade Moderna irrom­
pia na Alemanha o Grande Reform ador, núncio inconsciente do Grande Inquisidor,
e menos de trezentos anos depois começariam a tombar o regime do Pai, tão
caro à psicanálise, e a força estabilizadora d o poder do Estado, que também emergia
leigo, desvestido de compromissos religiosos.
Historicamente, foram os Estados Unidos o primeiro Estado leigo do mundo,
mas com o os povos não podem viver sem um carisma — no sentido weberiano11
do vocábulo — o concentraram na Declaração da Independência e na Constituição.
A revolução francesa, preparada pelas “ sociétés de pensée” e pelo partido intelec­
tual,12 viria dar novo rumo à revolução americana, desencadeando fanatismos reli­
giosos, tão bem postos em destaque por Tocqu eville,13 mas comprometeu o caris­
ma, pois o localizou no povo, esse ente coletivo, cuja oscilação, cada vez mais ao
sabor dos meios de comunicação — mass media —, provocou o advento do D itador e
das ditaduras intermitentes, na quase totalidade das nações da Terra, depois de ter
mergulhado a própria França no caos e no terror, os quais suscitariam o Salvadorr
Napoleão, o homem providencial, a quem a França confiou seu destino.14 F o i nessa
agitada cena, nesse convulsionado ambiente,1S quando os Bourbons já haviam
retom ado o poder na França, que Benjamin Constant publicou a sua obra. Estavam­
-lhe, ainda, frescos na memória o terremoto passional da revolução francesa, quando
a sede dos deuses16 fo i aplacada com sangue; a ascenção do primeiro cônsul, a
fundação do Im pério e de uma dinastia pelo herói de tantas batalhas; o ocaso do
soldado genial, que acreditou demasiado no “ sentido da História” e que se pode
torcer a lei natural, cujas balizas conduzem os povos no tem po e no espaço.
O grande m érito de Benjamin Constant fo i o de oferecer uma opção válida
para a estabilidade do poder. Quem conhece a sua biografia, a sua vida aventurosa,
a sua formação cultural, vê-se diante de personagem complexa. Nascido em Lau­
sanne, na Suíça, fo i confiado a professores alemães, depois ingleses e, finalmente,
franceses. Radicando-se na França, participou de lutas políticas, envolveu-se em
aventuras amorosas, escreveu um romance clássico, A d olp h e, e morreu, em 1830,
no ano em que Hugo lançava, pelo Hernani, o romantismo. Morreu com 63 anos de

10 A rn old J. Toynbee. A Study o f History. Londres, O x fo rd University Press, 1954, vol. V II,
p. 403 e ss.
11 Max Weber. Economia y Sociedad. M éxico, F on do de Cultura Economica, vol. I, p. 257
e ss.
12 Daniel Mornet. Les origines intellectuelles de la Révolution Française. Paris, Librairie
Arm and Colin, 1933, passim.
13 A lexis de Tocqueville. L'Ancien Régime et la Révolution. Paris, Gallimard, 1 9 6 7 , pp. 68-9.
14 Jean Tulard. Napoléon ou le mythe du Sauveur. Paris, Fayard, 1977, passim.
15 Léon Daudet. Deux idoles sanguinaires. Paris, A lb in M ichel, 1939, passim.
16 Anatole France. Les dieux ont soif. Varias edições.
A N A T U R E Z A DO PO DER M O D E R A D O R 19

idade, depois de “ ter vivido” , com o, segundo Eça de Queiroz, diziam os antigos.
Para quem fo i liberal e individualista, ao extrem o da intransigência, Benjamin
Constant surpreende com a sua teoria do poder real, denominada poder moderador
pelos constituintes do Im pério do Brasil. É paradoxal que espírito contraditório
com o fo i o amante de Madame de Staèl tenha sido o autor de uma fórmula, que
conciliava — e, para nós, ainda concilia — o liberalismo que sucedeu às guerras
napoleônicas, ao soçobro do Im pério do pequeno grande corso, ao Estado-espe-
táculo, sob tantos aspectos “ kitsch” , criado por Napoleão. Adotando a tese de
Benjamin Constant em 1824, demonstraram os constituintes do primeiro reinado
que estavam perfeitamente atualizados com as idéias da época. Não poderia o jovem
imperador D. Pedro I prolongar o absolutismo. Sobre já ter D. João V I adotado a
Ccnstituição portuguesa, a época se assinalava pelo seu pleno liberalismo, e, com o
sabia, não se deve bracejar contra as correntes, sobretudo quando elas são irre­
sistíveis. Oliveira Lim a descreve o comovente episódio da aprovação por D. João V I
da Constituição portuguesa: “ . . . Dom João compareceu e renovou todas as decla­
rações, repetiu todas as juras, confirmou todas as promessas, referendou todos os
compromissos e sancionou todos os atos do seu herdeiro, aceitando antecipada­
mente qualquer Constituição que viesse de lis b o a e que ali se acabava de aclamar
na ignorância do que pudesse ser, na certeza em todo o caso para os militares euro­
peus de que seria a tutela portuguesa reimposta ao Brasil” .17 Fervia a ideologia libe­
ral. Acentua Oliveira Lim a que Dom João resistira, mais por experiência de governo
do que por inteligência política, à convocação das Cortes “ na form a antiga” .18
Estava ganha pelas novas idéias a causa do liberalismo, da monarquia constitu­
cional. Compreendeu-o seu filho, que prolongou no trópico a sua Casa, a gloriosa
Casa de Bragança à qual tanto deveram da Restauração à deposição de D. Manuel II
em Portugal, e Pedro II no Brasil, as duas nações de origem portuguesa, cristã,
mediterrânea, fecundadas ambas pelo mesmo centro de irradiação cultural, a mesma
religião, o mesmo sentido do humano. Proclamada a Independência um só caminho
se abria ao jovem — 24 anos — príncipe, o de ceder ao liberalismo triunfante.
Possuía D. Pedro intuição bastante para se convencer que essa deveria ser a sua
única escolha. Ligado estreitamente a Napoleão pelos laços de parentesco, através
do casamento com Leopoldina, primeiro, e, embora rompidos na França, com
Am élia de Leuchtcnberg, em seguida à sua viuvez, sabia D. Pedro que deveria dotar
o novo Im pério de uma Constituição liberal, onde, no entanto, uas prerrogativas
reais ficassem preservadas, sem que lhe fosse apenas reservada uma posição decora­
tiva. N ão vamos entrar aqui, por estar totalmente ultrapassada, na querela do con­
ceito de Estado liberal. Na época eram, porém, vivíssimas as distinções entre con­
quista da liberdade, em abstrato, das liberdades concretas, e da instituição do
Estado liberal.19 Não era o caso do Brasil. A qu i não lutaram os brasileiros pela

17 Oliveira Lima. D om João V I no Brasil. R io , Livraria José Olim pio, 1945, p. 112 3ess.
18 Id., ib„ p. 1153.
19 Georges Burdeau. Traité de Science Politique. Paris, Librairie Générale de Droit et de Juris­
prudence, 1953, vol. V , p. 70, n? 27 e ss.
U) O PODER M ODERADOR

rniu|iililu das liberdades, ou da liberdade abstrata, com o fizeram, na onda furiosa


dn domugogia, os franceses de 1789; Dom João V I fora um rei paternal de Brasil
flxaiRNumente povoado, com uma capital pouco melhor do que um acampamento,
iniiii clussc dirigente em form ação,20 e uma opinião pública vibrátil, com o se
vcrlllcou do episódio da Constituição portuguesa, episódio no qual o monarca
llcou praticamente submergido às pressões que sobre ele desabaram. Importava,
no Diilunto, ceder à moda, e esta era liberal. Não havia com o fugir-lhe ao impe-
lullvo, nem cogitou D. Pedro de esquivar-se desse compromisso histórico.
0 jovem imperador faria votar uma Constituição liberal. Sua inspiração só
podoriu ser, naquela altura do in ício do século X IX , o m odelo de liberalismo,
llcii|uinln Constant, cujas obras já haviam chegado ao Brasil. Sem adotar a filosofia
do autor francês, D. Pedro e seus constituintes lhe adotaram o modelo. Fechada a
Amiombléia Constituinte em 1823, depois da N o ite de Agonia a que obrigou seus
mombros, o jovem e decidido imperador, D. Pedro, confiou a um Conselho a tarefa
do redigir a nova Constituição. Influenciados pelas idéias de Benjamin Constant,
olnboraiam a Constituição promulgada em 25 de março de 1824. “ Se, economi-
ciimontc” , diz José Honório Rodrigues, “ Adam Smith fo i a maior influência ( . . . ) ,
politicamente nenhuma influência ultrapassou a de Benjamin Constant, não antes
o durante a Revolução da Independência, mas depois, quando se tratou de orga-
nlziir o Estado” .21 Sua doutrina se compadecia com a época, mas tendo sido for-
iiiiidu nu interação momento-pessoa, inteligência-sociedade, deu a uma jovem nação,
cm busca de seu destino p o lítico na América, a chave de sua estabilidade, e um
oxoinplo que só não é adotado e readotado por serem espessas, ainda, as escamas
doN preconceitos no Brasil e no mundo. Uma solução facílim a para tantos proble-
miiN 6 desprezada sem m otivo algum que justifique a recusa. D. Pedro e os seus
coiiNtIluintes tiveram o bom senso de escolher o melhor regime para a nação tro-
plcul, que se emancipava na América, sem copiar os Estados Unidos já consolidados,
a iih nações hispano-americanas retaliadas por tropelias sem fim, pelo revezamento
de breves períodos democráticos e ditaduras caudilhescas.
A Am érica Latina se transformava, aos ventos que sopravam dos Estados
(Jiiidos e da Europa.22 Era preciso dotar a jovem nação de poder estável. Se a volta
no iibüolutismo estava inteiramente descartada, se não interessava ao príncipe a
lopúbllca americana, optando pela independência sob o seu cetro, impunha-se a
conciliação entre a autoridade de um monarca hereditário, o respeito ao princípio
dn legitimidade — de que falaremos em outro capítulo — e a dinastia dos Bra-
Kimças, uclamada pelo povo, selo de seu legítim o direito. Benjamin Constant era o
Unlco teórico do liberalismo e do poder real. F oi ao romancista de A d o lp h e que
iipoliirum os constituintes de 1823. O poder moderador, chave da organização polí-

411 I I '. do Alm eida Prado. D. João V I e o início da classe dirigente no Brasil. São Paulo, Com-
|xin11 1ii Kdltora Nacional, 1968, passim.
11 Iiim’ Honório Rodrigues. Independência: Revolução e Contra-Revolução, I, “ Evolução P olí-
lii u" Klo, Livraria Francisco Alves Editora, 1975/6, p. 4.
11 ( Imidr Miinceron. Les hommes de la liberté. Paris, R obert L a ffo n t, 197 2,7 4, 76, passim.
A N A T U R E Z A D O PO D E R M O D E R A D O R 21

tica do Im pério, saiu pronto da obra do indócil amante de Madame de Staél. Para
João Camillo de Oliveira Torres23 “ Benjamin Constant inspira-se na Idade Média,
ama a liberdade, teme a revolução e admira a Inglaterra” . “ Representou no direito
público o papel que Chateaubriand desempenhou no campo de outras atividades,
sendo, com o este, um meio-termo político entre De Bonald e De Maistre de um
lado, e os autores liberais e republicanos de outro” . “ . . . o Im pério adotou quase
integralmente as idéias do publicista francês” . Adverte, porém, João Camillo de
Oliveira Torres que o Im pério se afastou das idéias de Benjamin Constant, quando
elas se acharam distantes da realidade brasileira, e dá o exem plo da constituição
do Senado, que era vitalício. Sumaria Oliveira Torres “ duas ou três idéias básicas
de Benjamin Constant” . “ A primeira delas é de não possuir o povo, soberano
embora, poderes absolutos. T o d o poder conhece limites em seu emprego, está
sujeito a regras e normas, a começar pelas de m oral” . Tem , em seguida, a divisão
de poderes, que, para Benjamin Constant, eram cinco e não três, e, finalmente, a
função legislativa do Estado. D iz Oliveira Torres que Guizot se espantava com a
influência de Benjamin Constant no Brasil. Também nos espantamos, e só podemos
atribuí-la à identidade que D. Pedro I e seus constituintes encontraram na teoria
do suíço-francês com as necessidades do Im pério tropical, onde um poder execu­
tivo hegemônico degeneraria, com o degenerou, com a única exceção dos Estados
Unidos, no caudilhismo, na ditadura, na supressão das liberdades, as quais vieram a
ser, da Independência aos nossos dias, exceções intervalares.
Curiosamente, Benjamin Constant não teve em seu país de adoção influência
tão grande quanto no Brasil, embora Georges Burdeau24 observe que “ toda uma
tradição antiestatista, por se crer antiintrigante, procede de Benjamin Constant,
na França, e não representa, de longe, a expressão mais agradável do liberalismo” .
Quem, nos dias de hoje, combate a estatização crescente da economia, a inter­
venção cada vez maior do Estado em todos os dom ínios da cultura, a invasão do
setor privado pelo setor público, em tal proporção que o empresariado brasileiro,25
para ficarmos somente em nosso país, já soou o alarme da reação, o pensamento de
Benjamin Constant, e sua corporificação nas instituições políticas do Império,
deve ser desarquivado e exposto com o uma das alternativas para a solução dos
nossos problemas. A idéia do poder moderador é aqui reiteradamente defendida.
Que seja ela adotada, não, contudo, em sucedâneo, mas na sua autenticidade, com o
a doutrinou Benjamin Constant e a introduziram na Constituição do Im pério os
constituintes de 1823.
Segundo Benjamin Constant são os seguintes os poderes constitucionais:
“ o poder real, o poder executivo, o poder representativo e o poder judiciário” .
“ Surpreenderá que distingo o poder real do poder executivo. Esta distinção, sempre
ignorada, é muito importante. N ão lhe reclamo a honra, ela é encontrada em

23 João Camillo de Oliveira Torres. A Democracia Coroada. R io, Livraria José O lim pio Edi­
tora, 1957, p. 55 e ss.
24 Georges Burdeau. Op. cit., p. 180.
25 Cf. revista “ Visão” , São Paulo, número especial, 1977.
O PO D E R M O D E R A D O R

Itonne nos escritos de homem m uito esclarecido (Clerm ont-Tonnerre), que pereceu
mis desordens, com o quase todos os homens esclarecidos” . “ Há, diz ele, no poder
monárquico, dois poderes distintos, o poder executivo, investido de prerrogativas
po.slllvas. e o poder real, que é sustentado pelas lembranças e as tradições religio­
»»!»". “ Refletindo sobre esta idéia, convenci-me de sua procedência. Esta matéria
(' nov», merecendo alguns desenvolvimentos” . “ Os três poderes políticos, tal com o
uló il qui os conhecemos, o poder executivo, legislativo e judiciário, são três compe-
ItMicius que devem cooperar, cada qual de sua parte, no m ovim ento geral, mas
quando estas competências, desajustadas, se cruzam, se entrechocam e se embara-
Viim. 6 necessária uma força que as coloque no lugar. Esta força não se pode conter
iiiunu dessas competências, porquanto ela destruiria as outras; é preciso que ela
oslcjii fora, que ela seja neutra, a fim de que sua ação se aplique onde for neces-
sfiiio, e que ela seja preservadora e reparadora sem ser hostil” . Não poderia ser mais
duro o autor no formular uma doutrina para os novos tempos, o advento da monar-
qiilii constitucional, o aferimento das crises republicanas, sobretudo para neutra­
lizar os funestos efeitos do maquiavelismo, cujo fim consiste em desestabilizar o
poder, concentrando-o nas mãos do príncipe. Sob esse aspecto, Benjamin Constant
6 o anti-Maquiavel, e o Im pério do Brasil o ilustrou abundantemente, logo que,
onuerruda a fase convulsiva da Regência, deu o segundo reinado altíssimo exem plo
ilc monarquia constitucional, com sua eficácia e estabilidade surpreendentes nos
liftpicos.
Quem observa e estuda os regimes políticos de nosso tempo, da primeira gran­
de guerra, quando a Europa estupidamente se suicidou, aos nossos dias, verifica
que o maquiavelismo, com o uma espécie de poeira atômica, envolveu todas as
nações, entranhando-se nos seus costumes, nas suas leis, nas decisões de seus gover­
nos, no comportamento de seus legisladores, nos arestos de seus tribunais. R eco­
nhecemos não se darem conta numerosos governos que estão sendo maquiavélicos,
praticando no exercício do poder uma espécie, ainda que disfarçada, de maquiave-
I Ismo. São o M. Jourdain do maquiavelismo. Onde Molière diz, do ridículo bourgeois,

Par ma fo i, il y a plus de quarante ans que je dis de la prose, sans que


j ’en susse rien; et je vous suis le plus obligé du monde de m ’avoir appris
cela26,

poderemos colocar chefes de Estado e de governo de nosso tempo que diriam:


"Nndn sei, há anos que pratico o maquiavelismo sem que o soubesse” . Basta 1er e
medllar Maquiavel,27 para se ter com o exem plo o mundo de nossos dias, a política
desquitada da ética, e a supremacia do príncipe. Segundo Maritain, em Maquiavel

'■ Mollòro. Le bourgeois gentilhomme. A t o II, Cena V I.


' ’ Miii|iilnvcl. Oeuvres Completes. Paris, Gallimard, La Pléiade, 1952, passim\Octavio de Faria.
Machiavel <• o Brasil. R io, Civilização Brasileira, 1933, passim, e toda a vastíssima bibliogra-
f ii miIiip d atilor de O Príncipe.
A N A T U R E Z A DO PO D E R M O D E R A D O R 23

o mal e a injustiça alcançam êxito na política, sob a forma, tantas vezes louvada,
do sucesso im ediato.29 N os Discursos, Maquiavel mostra-se indiferente às formas
de governo; sua visão pessimista do homem era convicta, e o alheamento da moral
uma regra de sua visão política. Vem os que a teoria de Benjamin Constant era
antimaquiavélica, e o Im pério do Brasil, sobretudo o segundo reinado, fo i tudo
o que houve de menos próxim o do maquiavelismo.
F o i possível, na fase de grandes mudanças da História, quando a revolução
derrubava princípios, abalava instituições, erigia o desrespeito à autoridade com o
norma, elaborar uma doutrina susceptível de neutralizar os efeitos nocivos da sub­
versão. “ A monarquia constitucional tem esta grande vantagem, ela cria o poder
neutro na pessoa do rei, já, por sua vez, cercado de tradições e de lembranças, e
revestido de um poderio de opinião, que serve de base a seu poderia p o lític o ” .
“ O verdadeiro interesse do rei não é que um dos poderes derrube o outro, mas que
todos, concertadamente, se apóiem, se entendam e atuem.” 29 Faz, em seguida, o
autor, exposição de sua teoria, acentuando:30 “ O vício de quase todas as Consti­
tuições tem sido o de não criar um poder neutro, mas de colocar a soma de auto­
ridade da qual ele deve ser investido num dos poderes ativos” . Prossegue o autor,
advertindo sobre o perigo dessa concentração de poder. “ Quando esta soma de
autoridade se encontra reunida no poderio legislativo, a lei, que deveria se estender
sobre objetos determinados, se estende ao todo, havendo arbítrio e tirania sem
limites. Daí, os excessos das assembléias do povo nas repúblicas da Itália, as do
parlamento, as da convenção, em algumas épocas de sua existência” . É o predo­
m ínio cego do número sobre a razão, que teve na revolução francesa o seu maior
e sinistro exemplo. “ Quando a mesma soma de autoridade se encontra reunida no
poder executivo, há despotismo. Daí a usurpação que resultou na ditadura roma­
na.”
A hipertrofia do executivo é, praticamente, a regra em todas as repúblicas
presidenciais, com a exceção — que nos dispensamos de, mais uma vez, justificar —
dos Estados Unidos. D o M éxico à Argentina o poder está concentrado no executivo,
e o que temos é o seu predom ínio, dando origem a pressões sobre a sociedade
civil e a reações, que causam a inquietação popular. Benjamin Constant previu essa
desestabilização do poder, que se tornou realidade depois da revolução francesa,
isto é, depois que o furor da subversão extinguiu o “ A n tigo Regim e” , sobrepôs
as assembléias populares às hierarquias do poder, e reverteu a ordem da represen­
tação. O jurista suíço-francês, que tanta influência teve no Brasil, soube afuroar o
fenôm eno inteiramente novo, que fo i a ordem inédita dos três poderes disputando­
-se o primado político-social e engendrando crises terríveis, com o todas as que se
assinalaram na França da revolução à V República; nos países americanos, da Inde-

28 Jacques Maxitain. Principes d ’une politique humaniste. N ova Y o rk , E dition de La Maison


Française, 1944, p. 173 e ss.
29 Benjamin Constant. Id., ib„ p. 15.
30 Id„ ib„ p. 17.
H O PODER M ODERADOR

prm lénda aos nossos dias — com a exceção dos dois reinados e dos Estados Uni-
(U»h e nos demais países da Europa, da Ásia e da Á frica, onde só se salvaram até
HW»» iiN monarquias e a Suíça, e os de língua inglesa, singular privilégio, que recla-
iiin um livro inteiro para ser explicado, se não bastarem as considerações contidas
iion I ii olua.
Insiste Benjamin Constant na sua tese: “ A monarquia constitucional nos
o ln o c c ( . . . ) este poder neutro, indispensável a toda a liberdade regular” .31 A
llmlórla de D. Pedro I I 32 ministra-nos o mais dignificante exem plo da superiori-
iliiilo do regime do poder neutro sobre os regimes presidenciais, os parlamentares —
liojc monarquias republicanas — atuais ou os de I I I e I V repúblicas francesas, e
inrHino o misto da V República francesa, criado por De Gaulle para si mesmo.
Nno elaborou uma teoria para uma época o jurista do poder real — ou poder mode-
m u Io i mas para todas as épocas; fronteando uma quadra histórica de crises pore-
Ii i i i I o n , deu a receita para o seu tempo. Mas a crise de então se prolonga, multipli-
1 'inlii pelo número de nações que vieram a ocupar a cena política do mundo. O
Ipiiipo é linear e constante. Se não há regimes permanentemente modernos, nem
lo^lmos superados, bastando a sua alternação no poder, através da História, para
i omprovar a tese, há, contudo, mudanças que, uma vez operadas, aceitas ou admi-
lldiiN, nu tornam irreversíveis. O cesarismo sobrevive, mas a monarquia de Luis X I V
1« I ms X V seria hoje de tod o impossível. As democracias, da Grécia ao presente,
vPm pussando por grandes transformações. Se Clístenes não teria lugar em nenhuma
nii(,ílo democrática de nosso tem po, os reis e seus conselhos, os arcontes, os aisime-
iip Iiis, os tiranos também não estariam configurados em instituições modernas,
to m o mi llclade, que excessiva simplificação erige, ainda hoje, em m odelo supremo
ilii pcilcita democracia. Em Rom a, a realeza, a república oligárquica e o império
mio durum nunca lugar ao povo com o o entendemos segundo uma perspectiva e
• oiicollos contemporâneos. Aparenta-se a democracia atual com a democracia
iilonlonse menos por suas virtudes, do que por seus vícios; as ditaduras e as tiranias,
cMftiiN sc assemelham em todas as idades históricas. A realeza passou, também, por
mudanças, sobretudo vindo a ser pela sagração, na palavra de Renan, o oitavo
mu uimcnto. Quando, pois, Benjamin Constant elaborou a sua teoria do poder real,
ou moderador, para nós estava articulando velhas instituições em gênero novo.
I jimcntiivelmente a sua autoridade no mundo do pensamento não igualou a de
I oi/kc. Montesquieu, Rousseau. Sua vida aventurosa, a época em que viveu, de tran-
■ii«, il»», dc grandes reformas, testemunha atento dos excessos da revolução francesa,
du dcNincdida ambição napoleônica, fundando num im pério que não teria conti­
nuidade, ainda que L ’A iglon não morresse; a restauração dos Bourbons, as crises a
i|iu: nssistiu e das quais participou abriram-lhe a inteligência, graças à qual lhe deve-

" hl, lb p. 19.


11 lli Mm l.vrii. História de D. Pedro II. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1938, 3 volu-
IIIou, iKisxlin; Pedro Calmon. História de D. Pedro II. R io, Livraria José O lym pio Editora,
I ' 1' . S volu m es,passim.
A N A T U R E Z A D O PO D E R M O D E R A D O R 25

mos, no Brasil, a teoria do poder moderador, e seu desdobramento, a democracia


coroada de Império. F oi Benjamin Constant grande pensador p olítico. Sua obra
está esquecida, por militarem contra as suas idéias os preconceitos que tanto preju­
dicam os povos. Mereceria, no entanto, reviver, e restaurar no Brasil o regime pelo
qual ansiamos, sem sabermos, ou sem termos coragem de o definir e proclamar.
a exegese do poder moderador

Vimos que um pode/' neutro é necessário para não se desestabilizarem os


demais poderes do Estado. Veremos agora com o fo i defendida no Brasil essa idéia,
provavelmente inaceitável em nossos dias por ser demasiado simples e por toldarem
iin idéias, ainda, os preconceitos que tanto perturbam a vida da nação brasileira,
com o da maioria das nações. O jurista Braz Florentino Henriques de Souza1, autor,
t’m nosso país, do melhor estudo sobre o poder moderador, reserva-o para as
monarquias constitucionais, apoiando-se em Benjamin Constant e seus argumentos
mi defesa da teoria. “ Pois bem, nós estamos convencidos, até à prova em contrário,
de que a teoria do poder real ou pod er moderador, tal com o a aceitou dos
publicistas franceses a Constituição brasileira, responde suficientemente (. . . )
rt dificuldade apontada: e desde então esse poder supremo, colocado acima dos
imtros, aparece-nos, não com o uma criação fantástica ou um devaneio de imagi-
imçffo, mas com o a expressão de uma grande necessidade governativa, como um
olemento indispensável de ordem e de verdadeira liberdade, e com o a mola
principal nos governos monárquicos, constitucionais e representativos como o
nosso". As repúblicas parlamentares não havia em seu tempo, e as presidenciais
loenlizavam-se na Am érica anglo-saxônia, Estados Unidos, e todas na América

1 llriiz Florentino Henriques de Souza. D o Poder Moderador. R ecife, Tipografia Universal,


I K(i4, p. 10.
; n O PO D E R M O D E R A D O R

ilc origem espanhola. Emergira o regime m onárquico, sepultado o “ A n tigo


Kogiinc” sob a revolução francesa, com os Bourbons e, depois, com Napoleão III;
iiiim demais nações, prevalecia o mesmo regime. Os Estados Unidos seriam, porém,
o exem plo atraente de regime bem sucedido, e iriam irradiar sua influência fasci­
nante pelo mundo inteiro. Mas não caíram as monarquias por debilidade intrínseca,
ou por não corresponderem às aspirações e necessidades dos povos. Derrubou-as,
segundo a tática hoje conhecida com o dominó, a revolução, esse processo
subversivo de mudança. Com os reinos e o sistema, se engolfaria na crise, irreme­
diavelmente sem paradeiro, a paz, com a qual não mais contou a Humanidade,
senão em breve interregno, o da Belle É poque, quando, no entanto, nas profun­
dezas do corpo social, em conspirações, em páginas de jornais lidas mais ou
inenos distraidamente, em livros atirados à rosa-dos-ventos da opinião pública,
era urdida a imensa transformação política da qual somos comparsas, atores e
vítimas, ao mesmo tempo.
Braz Florentino não entra nessas especulações, mas coloca — com o o fizem os
em outro capítulo — a desestabilização dos três poderes na divisão tripartida,
argüindo-a de logicamente inexata. Se os três poderes, cuja teoria vem de
Aristóteles, mas fo i melhor exposta por Montesquieu, já no século X V III, não
se conservam harmônicos e independentes — e a História de todas as nações,
inclusive a dos Estados Unidos, no-lo comprova —, pois um deles, o executivo,
os desequilibra, ou desestabiliza, impõe-se a necessidade de um poder neutro.
Braz Florentino acentua esse papel do poder m oderador: “ parece que o poder
moderador, encarregado de manter essa divisão e harmonia, é quem na verdade
simboliza o poder de suprema regulação, é quem fecha a porta à desordem e à
tirania, para tê-la aberta somente à segurança e à tranqüilidade pública” .2 Especi­
ficamente sobre o Brasil, defende Braz Florentino a investidura do poder moderador
na pessoa do monarca hereditário. “ Mas nós dissemos, ainda, que o poder mode­
rador era a monarquia; e a monarquia personificação do soberano de direito ( . . .)
distingue-se por dois caracteres principais: a unidade e a permanência ou perpetui­
dade. Ora o poder moderador não é um senão enquanto reside na pessoa do
Imperador exclusivamente-, ele não é permanente ou perpétuo, senão enquanto
transmite-se p o r sucessão à descendência legítima do Imperador, segundo a ordem
regular da primogenitura e representação. De maneira que não teria podido a
Constituição proclamar, com verdade, o governo do Brasil com o m onárquico
(art. 39), a não serem as aplicações concretas que desse grande princípio fez nos
arts. 49, 98 e 117” . “ Em sua idéia capital, e prescindindo das diferentes m odifi­
cações por que há passado, a monarquia nunca fo i efetivamente senão - o mando
supremo da sociedade confiado às mãos de um só hom em - , e não sendo também
outra coisa o poder moderador entre nós, segue-se, ainda, que o p od er moderador,
o só ele, é a monarquia no Brasil” .3

' Ul, th., p. 15.


' U I, lh., pp. 27-8.
A EXEGESE DO PO D E R M O D E R A D O R 29

Braz Florentino já conhecia, em sua época, as experiências republicano-


-prosidenciais. Toda a América, dos Estados Unidos à Argentina, com a exceção
do Brasil, era republicana, embora, quando seu livro fo i publicado, a França de
Napoleáo III já tivesse invadido o M éxico, e Maximiliano da Áustria havia sido
coroado imperador, para ser fuzilado três anos depois, abandonado pelo imperador
dos franceses. Seu julgamento é, portanto, de quem sopesa os regimes, anali­
sando-os segundo as suas virtudes intrínsecas, o bem comum, que cabe aos regimes
assegurar aos povos, e o desenvolvimento com o um fim temporal a atingir.
Justifica Braz Florentino a chefia suprema da nação, no exato sentido da palavra,
polo monarca. “ Ora, supondo os diferentes poderes políticos, instituídos pela
nuçffo, as principais autoridades dela, e com o outros tantos chefes, que devem
conduzi-la à felicidade, que é a sua terra da promissão; e supondo mais o poder
moderador com o existência separada e independente dos outros poderes, e com o
encarregado de velar sobre a independência, equilíbrio e harmonia de todos eles
(o que tudo é uma realidade pela Constituição), é claro que o Imperador, a quem
esle últim o poder fo i delegado privativamente, aparece-nos, e não pode deixar
do ser considerado com o chefe supremo, dos outros poderes políticos, e conse­
qüentemente da nação que os instituiu” .4
A tese do chefe da nação deve ser conjugada à da chefia das famílias das
quuis se com poe a nação. A Braz Florentino faltou em sua época o concurso da
psicunálise, à qual é cara aquela tese. Estudou Roger Bastide o fenôm eno do Pai
na sociedade, e concentrou nele a origem da monarquia. “ O pai pode ser primeiro
idealizado — teremos então a monarquia” .5 O rei exterioriza, portanto, o respeito
votado ao pai. “ Mas, ao lado do respeito subsiste o ódio, o que explica que em
todos os regimes haja partidos de oposição. A democracia sucede, pois, à monar-
quiu, pela revolta dos filhos contra a autoridade pessoal ( . . . ) ” . “ As revoluções
sflo também um regresso a uma situação familial, a do pai pelos filhos. Mas, com o
o com plexo paterno pode ser mais ou menos intenso, as revoluções, partindo
da mesma causa, podem evoluir diferentemente” .6 Uma das causas da crise
política contemporânea localiza-se na eliminação, inconsciente, na maioria dos
casos, da figura d o Pai nas sociedades humanas. N ão se trata do patriarcalismo
que caracterizou uma época da nossa História, mas desse chefe das famílias, com o
o chefe da fam ília sobre ela deve ter autoridade. N ão a tendo, as sociedades
resvulam para as crises endêmicas, parciais, englobando-se na crise geral, de que
o mundo contemporâneo é um espetáculo medonho. Quando, pois, defendemos
o poder moderador com o uma garantia, a mais eficiente, de paz, estamos vendo na
suu instituição o meio para vencermos o círculo das crises parciais e da crise global.
Braz Florentino doutrinou certo. Nenhum outro autor fo i tão com pleto
quanto o professor de Recife. Trouxe ele para o Brasil os ensinamentos de Benjamin

4 Id., ib., p. 29.


5 Rogcr Bastide. Sociologia e Psicanálise. São Paulo, IPE, 1948, pp. 144 e 55.
6 Id., ib., p. 145.
JO O PO D E R M O D ER AD O R

Constunt, difundiu-os, através das páginas de livro que se tornou clássico. Durante
o Império, os membros do Partido lib era l combateram quanto puderam o poder
moderador, argüindo-o de poder pessoal, ameaçador das liberdades, e centralizador.
"A con tece que somente andavam com razão no segundo caso. O Poder Moderador
nflo era um m odo de acentuar o caráter monárquico da Constituição; mas um
m odo de desviar a influência d o Imperador, dando-lhe atribuições definidas, impe­
dindo assim as lutas e os atritos entre os dois princípios da legitimidade (o rei
o o ministério responsável), atritos que ocorreram em quase todas as monarquias
constitucionais, conform e analisa tão bem Ferrero em dois casos típicos, o de
lAiis Felipe e o dos Savoias italianos” .7 Braz Florentino fo i claríssimo no expor
suas idéias sobre esse poder inconfundível e, mais do que inconfundível, neces­
sário, com o, para quem não se deixa cegar pelos preconceitos, o comprova a nossa
História. Estavam, pois, errados os membros do Partido liberal, e, errados em
persistência, acabaram causando ao Brasil grande mal, pois concorreram para
desacreditar e, portanto, enfraquecer o regime do chefe, do Pai, da autoridade
suprema do poder moderador. Proclamada a República nenhuma das idéias que
os propagandistas defenderam subsistiu, senão, a princípio, a federação na qual
Rui Barbosa punha redobrada, inflexível paixão, sob alguns aspectos irracional
em inteligência tão lúcida quanto a sua, mas, a partir da “ política dos governa­
dores” na primeira República e pela centralização progressiva, depois de 1930,
nem essa teve forças para sobreviver. Hoje o Brasil é, de fato, uma república
unitária, com mais de um centro de decisão no poder supremo, embora o presi­
dente deva ser, constitucionalmente, o único.
Palpita, é inegável, no fundo das instituições políticas brasileiras mutiladas
a nostalgia do poder moderador. A ênfase posta há um século por Braz Florentino
na sua exegese deveria ser retomada. Somente de longe, assinalando a sua falta,
vendo-a, sentindo-a, pode-se avaliar com o estavam mal informados os propagan­
distas da República. Os seus inimigos, na época da monarquia, o defenderiam
hoje, se não cedessem ao preconceito contra o regime. Mas não há quem não
se manifeste, ao menos, pelo seu vazio, e a falta que à nação faz esse poder, sobre­
tudo em crise com o a atual, cuja solução está obturada, e, ao parecer, sem plano
para desobstruí-la. As críticas e censura ao poder moderador eram antes produto
de preconceitos, de ressentimentos, de falsa ótica do papel desse poder do que
reflexões maduras sobre a sua essência. Um desses casos de extremado precon­
ceito era o de Tobias Barreto, que “ não gostava de Pedro II e não perdia oportu­
nidade para manifestar esta antipatia” .8 Evidentemente, a organização política
imperial não fo i perfeita, pela simples, elementar razão que não há regimes
perfeitos, nem na ordem espiritual — quem ignora que a Cúria Romana está cheia
de defeitos? — mas fo i e será o menos im perfeito, observada a relatividade das
perfeições e imperfeições humanas. Tobias Barreto não apreciava o imperador.

lodo Camillo de Oliveira Torres. A democracia coroada. Op. cit., p. 149.


" I Irrmu.s Lima. Tobias Barreto. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1957, p. 51.
A EXEGESE DO PO D E R M O D E R A D O R 31

Nnu biógrafo, Hermes Lima, não aprofunda as causas da aversão. Nem vamos,
no« outros, aprofundá-la; sobre não ser esse o nosso objetivo, não interessa à nossa
I('nc. lobias Barreto dedicou estudo ao poder m oderador,9 mas não baixou da
Hiipoi ücialidade. Para Tobias o poder m oderador não era instituição originária
iIoh costumes, mas produto abstrato da razão, tese que a História contesta. Esten­
do »0 'I obias por sessenta páginas, sem convencer, sobretudo quando argúi a
oiKiinizução política imperial de cópia da inglesa, ou, pejorativamente, mata-
lioi rITo, “ onde se podem ler os caracteres do m odelo, porém todos às avessas” .
I ohlus não teve influência direta na opinião pública, ou o que na época poderia
nim clussificada com o tal, mas avolumou a corrente da campanha contra o Império,
(|iip seria abatido por um golpe armado, do qual participou reduzida minoria
il« políticos, fanáticos, e militares inconformados, por vários motivos, que seria
loii^o urrolar, com o regime, o imperador, sua herdeira e o conde d’Eu.
Assentada a poeira da História, vemos, à distância, que o poder moderador
Irvc uma imponência, uma presença, uma autoridade, que nenhuma presidência
ir lho igualou, nem mesmo a de Rodrigues Alves, de resto antigo conselheiro
Imperial. Conserva-se, portanto, a nossa tese, a de que o poder moderador é neces-
Hflilo, com o o entendiam os tratadistas do Im pério, e os homens públicos que o
|inllocinaram. Para Joaquim N abuco,10 o reinado era do imperador. 0 chefe do
poder moderador usava, na sua plenitude, as prerrogativas reais e constitucionais.
I) Pedro II não governava diretamente e por si mesmo; cingia-se à Constituição
n As formas do sistema parlamentar, era o árbitro de cada partido e de cada
mlndista, fazia e desfazia ministérios; era o poder.11 Consciente, portanto, de
«mi pupel histórico, não queria nem suspeitar de ter validos. F o i por isso que
lU|iildou a facção áulica. “ Depois que termina o seu noviciado, e dispensa os
rofisellios de Aureliano Coutinho, e o reduz a um p o lítico tão dependente, tão
iKMoninte dos altos mistérios, com o os outros, não quer, ao seu lado e nos seus
roii.selhos, individualidades culminantes, governando com o seu prestígio e à sua
mmbra, com o se tivessem poder próprio sobre a nação” .12 Mas no exercício do
poder moderador, interpretando-lhe a letra e o espírito,Acentua Nabuco, o impe-
imlor deixava liberdade aos ministros. “ Se o imperador inspira e dirige, não
Itoverna, entretanto. Se fiscaliza cada nomeação, cada decreto, cada palavra dos
ministros, a responsabilidade é destes. 0 soberano não intervém, quase, na
miU|tiina política e administrativa, que são os partidos com suas aderências e
|oiiiit|uias oficiais, seu pessoal e suas transações. Este não quer mesmo conhecer
iln vida interior dos partidos, não estabelece relações pessoais, diretas com eles, senão

Inliius Barreto. Questões Vigentes. Edição do Estado de Sergipe, 1926, 10 volumes, IX ,


V. p. 171.
.Imiquim Nabuco. Um Estadista do Império. São Paulo, Companhia Editora Nacional,
IM .16, 2 volumes, II, p. 374 e ss.
" lil., th.
" hl., tb., p. 375.
12 O PO D E R M O D E R A D O R

com os chefes que serão um dia os presidentes do Conselho” .13 D aí somente


um monarca dinástico, investido, pela via da hereditariedade, de seu legítim o
direito, deve exercer o poder moderador.
Observando a lacuna que a sua exclusão deixou na organização política
n a c io n a l, alguns publicistas procuraram eliminá-la. A lberto Torres não poupou
críticas ao regime imperial, mas no seu projeto de Constituição introduziu um
poder coordenador, tão abstruso quanto irrealizável,14 poder que nem mesmo
o mérito do moderador consubstancia. Borges de Medeiros15 preencheu o ócio
obrigatório de seu degredo em R ecife, com um trabalho não destituído de valor,
sobretudo no acentuar o arbítrio que caracteriza a república presidencial.16
Defendeu Borges de Medeiros fosse instituído na República o poder moderador.
“ Em nossa concepção, o rol do presidente consistirá em presidir a República
com o o seu primeiro magistrado, e não com o o seu líder político. Fora da
atmosfera dos partidos e posto na posição de livrar-se de qualquer influxo dos
interesses e paixões do mundo político, há de ele reunir os predicados e requi­
sitos que fazem o verdadeiro magistrado. A sua independência deverá ser real
e insuspeitável, e a sua autoridade bastante forte para que se imponha sem
contraste. Cérebro do Estado, competir-lhe-á regular, coordenai e moderar a ação
dos outros poderes públicos, assegurando-lhes a harmonia, entre si, e o livre
exercício de cada um dentro dos limites constitucionais. Não se lhe concederá
mais o poder executivo, que é apenas um ramo do poder público. Se ele conti­
nuasse a exercê-lo, seria fatal a reincidência crônica nos males a que se propôs
sanar a revolução de 1930. Outras, porém, hão de ser as suas faculdades, e outro
o poder que elas devem conferir-lhe” . “ Separado dos poderes executivo, legislativo
c judiciário, ele constituirá o quarto poder do Estado, o poder m oderador da
República” .17 N ão atinou Borges de Medeiros que essa instituição, realidade no
Império, seria — e é — incom patível com o regime republicano, parlamentar^
ou presidencial.
O poder moderador só poderá ser exercido por um monarca hereditário,
legitimamente dinástico; sua institucionalização deverá ser histórica, apartidária
e suprapartidária, enquanto durar o sistema ju rídico dos partidos; sobranceiro
aos grupos de pressão e de interesse que naturalmente se formam e atuam nas
sociedades; às classes e aos estamentos que com põem a estrutura social e política
das nações. Para dissipar a utopia, e servir ao Brasil, devemos, portanto, voltar
aos tratadistas que estudaram o poder moderador durante o Im pério e a Repú-

13 Id „ ib„ p. 379.
14 Alberto Torres. A Organização Nacional. R io de Janeiro, Imprensa N acional, 1914, passim.
15 Borges de Medeiros. O poder moderador na República Presidencial, sem indicação de
editora, R ecife, 1933, passim.
16 Cf. João de Scantimburgo. A crise da república presidencial São Paulo, Livraria Pioneira
Editora, 1969, passim.
17 Borges de Medeiros. Op. cit., pp. 67-8.
A EXEGESE DO PO D E R M O D E R A D O R 33

blica. Imbuíram-se profundamente do papel representado no Im pério pelo


poder moderador. Este não era apenas um mero sím bolo, mas, de direito e de
fato, o poder instituído para ser a chave de toda a organização política imperial.
“ Não reservava o texto constitucional espaço exageradamente grande para as
funções do Poder Moderador, para a instituição que a singularizava aos olhos
do mundo, e que se destinava a resolver os principais problemas de ordem política
e de ordem legal oriundos da oficialização das novas aspirações democráticas pelas
antigas funções da realeza” .18 Sumária, embora, a fixação de atribuições do poder
moderador, esse era com o o sol que, apesar das nuvens, está sempre atrás, e nos
reaparece com- a sua luz e o seu calor. Introduziu-o na Constituição o próprio
D. Pedro I,19 iniciativa que é de espantar, sabendo-se não ter o muito jovem ,
dispersivo imperador freqüentado cursos jurídicos nem juristas. Leu, provavel­
mente, Benjamin Constant e, mais por intuição do que por intelecção, viu no
poder moderador a força estabilizadora dos três poderes àquela altura já instituídos
nas repúblicas americanas, sobretudo nos Estados Unidos, o padrão, a matriz,
o paradigma, a form a de todas as repúblicas presidenciais.
Se, durante todo o período colonial os governadores gerais e os vice-reis
governaram em noirçe do rei, sendo a justiça e as Câmaras Municipais braços do
poder real, mas energicamente autônomas, consoante no-lo dão conta as atas
e os documentos coevos; se, com a vinda da fam ília real passou D. João a governar
em pessoa, prim eiro com o regente da rainha, e, depois com o o chefe de Estado,
sem, contudo, tolher a liberdade dos juizes e a independência dos vereadores,
o advento do constitucionalismo, com as mudanças liberais e os efeitos das idéias da
revolução francesa nos costumes políticos e na própria estrutura política das nações,
suscitou a idéia de um poder neutro. Estava D. Pedro firmemente convencido da sua
necessidade, e o introduziu na Constituição. Reconheceu, provavelmente, D. Pedro a
intenção de Benjamin Constant. “ A intenção de Benjamin Constant era evidente­
mente a de introduzir no governo monárquico constitucional um princípio conser­
vador que desse estabilidade à vida da França, tão conturbada na sua geração. Um po­
der neutro, irresponsável dentro do limite das suas atribuições e que pudesse desfazer,
sempre dentro de uma linha conservadora, os conflitos surgidos entre os demais
poderes, estabelecendo uma espécie de equilíbrio entre o espírito de m ovim ento
e o de conservação, que se defrontam em todas as sociedades” .20 O certo é que
essa novidade surpreendente só não conquistou o sistema constitucional, por ter
a revolução, com o processo de mudança, prosseguido no seu itinerário histórico,
com prom etendo a ordem e o seu princípio. Prevaleceram os três poderes, em
geral com a hipertrofia do executivo, com o fartamente o comprovam toda a
história da Am érica Latina republicana e presidencial, e a história da V República

18 João Camillo de Oliveira Torres. A Democracia Coroada. Op. cit., p. 139.


19 Octavio Tarquinio de Souza. A vida de D. Pedro I. Op. cit., II.
20 -
A fon so Arinos de M elo Franco. Estudos de Direito Constitucional. R io, Revista Forense,
1957, p. 246 e ss.
14 O PO D E R M O D E R A D O R

Iruncosa, ao menos até à presidência Giscard d’Estaing. Lamenta Joâo Camillo


dc Oliveira Torres ser pouco rica a bibliografia sobre a Constituição de 1824;21
diremos, sem nuances, que é paupérrima. Sua importância na consolidação do
Império, a plasticidade admirável de seus institutos, as atribuições do poder
moderador quebrando o “ tabu” dos três poderes, deveriam ter sido estudados;
aerlii uma contribuição a crises futuras, nas quais a nação bracejaria. Mas apenas
uns poucos tratadistas a analisaram. Interessam-nos os estudos sobre o poder
moderador, o qual, compadecendo-se, exclusivamente, com a monarquia, foi,
na lógica do constitucionalismo republicano, eliminado, herdando ao país, com o
Jii acentuamos, o vazio até hoje por se preencher na estrutura política brasileira.
Não ocorreu aos propagandistas da República que a mudança do regime
nffo resolveria alguns de nossos mais angustiosos problemas, sobretudo os de estrita
ordem pessoal, dos quais se trufou o fim do segundo reinado e da monarquia.
Enfrentaram crises os dois reinados. Sem dúvida. Mas as resolveram, e o segundo
reinado, com as instituições de que era dotado, venceria as últimas, a que a guerra
do Paraguai e a Abolição geraram. Viria o terceiro reinado, posteriormente entrar
no século X X , sem as comoções das quais m ortalmente fo i o país ferido nos primeiros
anos da República. Quem atrasou política, econômica e socialmente o Brasil fo i a
piimeira República, e suas conseqüências se estenderam pelo futuro. O colapso do
I inpério, a revolução total causada no país pela mudança de regime, com seus choques
lumultuosos,22 teriam sido evitados. Mas não se argumenta em história com as condi­
cionais, dizem o-lo ainda uma vez. A História é o que é, o que passou, o que ficou pa­
ru sempre imóvel, não o que poderia ser. Seus exemplos, suas lições, sua memória deve­
riam, no entanto, servir de subsídio, de indicação, de advertência e, até, de arrepen­
dimento, se os preconceitos não fossem mais fortes do que a verdade. Propusemo-nos
demonstrar a necessidade do poder moderador na organização do Estado, e o fa­
zemos, recorrendo aos trabalhos que se ocuparam de sua instituição e seu funciona­
mento no Império. Dispõe o artigo 98 da Constituição de 1824:

“ O poder moderador é a chave de toda a organização política, e é dele­


gado privativamente ao imperador, com o chefe supremo da nação e seu
primeiro representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção
da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos” .

O constituinte imperial, no caso o próprio imperador, previa a desestabi-


lização dos três poderes, e premunia o Estado com uma instituição neutra, onde
não estuariam os conflitos entre executivos e legislativos, nem o judiciário seria
mutilado nas suas funções, com o veio a ocorrer com o o A to Institucional n9 5,

21 Id., ib.,p. 154.


22 Visconde de Ouro Preto. A Década Republicana. R io, Companhia Tipográfica do Brasil.
1899, passim.
A EXEGESE DO PO D E R M O D E R A D O R 35

introduzido nas Disposições Transitórias da Constituição de 1967; e Emenda


Constitucional nP 1, sob o n9 182. Justificado, embora, pela necessidade de estar
o executivo armado de um instrumento de ação excepcional, nem por isso deixou
o judiciário de ser lim itado na sua independência de conceder “ habeas corpus” .
Segundo o tex to constitucional, o poder moderador asseguraria a indepen­
dência dos poderes, e a assegurou. N ão deve o poder moderador ser argüido de
arbítrio institucionalizado, sob a form a de poder pessoal, com o o viemos a registrar
no século X X , nas ditaduras totalitárias ou não, constitucionais ou eletivas. O
poder moderador era pessoal, pois tod o o poder é pessoal, com sentido, porém,
diverso d o que lhe era atribuído pela má fé da propaganda republicana. “ O poder
pessoal não fo i para a oposição liberal, com o não o fora antes para os conserva­
dores, uma convicção: fo i apenas uma decisão. Deliberou-se tomar aquela fórmula
abstrata com o base teórica de reação política e partidária (. . . ) ” , afirma José
Maria dos Santos,23 que ainda, com inteira razão, acusa Oliveira Viana de censurar
esse poder apenas para ser agradável aos senhores do dia, os republicanos de seu
tempo. N o O Ocaso do Im p é rio ,M o festejado autor de outras obras, sem dúvida
notáveis, cai nesse erro, quando deveria saber que o poder pessoal do imperador,
nem mesmo de imperador impulsivo com o D. Pedro I, igualou ao de presidentes
da República, inclusiVe até à data de seu livro, que não fo i revisto, subsistindo,
portanto, o conceito deform ado e a contrafacção da verdade histórica, em pensador
de tanta responsabilidade cultural. É curioso o fenôm eno do poder moderador.
Parece-nos tão claro o seu conceito, e, no entanto, não fo i estudado, com o deveria
sê-lo, pelos mais insignes constitucionalistas, nem mesmo com o jo g o intelectual.
Hoje está superado, menos pelas suas virtudes intrínsecas, do que por ser incom­
patível com o regime republicano. Mas no Brasil, a sua restituição à organização
do Estado seria o m eio de se vencer a crise política endêmica que brotoeja do
regime, de sua fundação aos nossos dias, sem perspectiva de uma solução insti­
tucional, conciliadora.
Segundo o Visconde do Uruguai,25 “ as atribuições do poder moderador
são essenciais em qualquer organização política” , acrescentando o douto exegeta:
“ Não pode, sem graves inconvenientes e sem perder a qualidade de neutro e
moderador, residir o poder que assim se denomina no executivo, ou depender
dos ministros, os quais ordinariamente são chefes ou homens de partidos, ou
dependentes destes” . “ São muito mais suspeitos, m uito mais apaixonados, muito
mais dependentes nos atos necessários para restabelecer um equilíbrio, e uma
harmonia, que muitas vezes eles próprios destruirão,, do que o chefe supremo
do Estado, o qual sempre permanece tal, qualquer que seja o partido dominante,
qualquer que seja o Ministério, e que tem de preservar o trono para a sua descen-

23 José Maria dos Santos. A política geral do Brasil. São Paulo, J. Magalhães, 1930, p. 114.
24 Oliveira Viana. O ocaso do Império. São Paulo Melhoramentos, 1922, passim.
25
Visconde do Uruguai. Ensaio sobre o Direito Administrativo. R io, Tipografia Nacional,
2 volumes, 1862, II. p. 45 e ss. e passim.
I* O PO D E R M O D E R A D O R

ilenclu, e com ele a forma monárquico-representativa” . É a nossa tese: a chefia


do listado deve ser estável; a chefia de governo deve mudar, não aos caprichos
desse monstro,26 a opinião pública, mas ao influxo dos interesses nacionais e
(Iiik circunstâncias históricas. O poder moderador da Constituição do Im pério
proporcionou essa plasticidade aos jogos dos partidos, ao seu revezamento no
poder, enquanto a chefia de Estado, nas mãos do imperador, desempenhava as
nitiis ullíssimas funções arbitrais, sem se envolver nas querelas de luzias e
un/uaremas, senão quando, extremando-se, elas ameaçavam a estabilidade do
poder. O visconde do Uruguai cita, a propósito, discurso de Alves Branco no
Scmido, nessa mesma linha, esposando-lhe a tese. Acentuou Alves Branco que
no dependesse do Ministério a monarquia se converteria em República. A História
de niuis de o ito décadas de República dá-lhe razão póstuma, demonstrando, baseada
cm latos, que a estabilização do poder fo i possível com a “ política dos governa­
dores” , com a ditadura, a sua form a odiosa por excelência; com o estado de sítio,
com os governos emanados da revolução de 31 de março. 0 poder m oderador
continua, portanto, a nos fazer imensa falta, embora não se lhe dêem conta os
responsáveis pelos destinos do Brasil.
Não se nega que, sendo o chefe de Estado, o monarca, um ser humano, está
sujeito a influências, à sedução em que é fértil a imaginação, e, mais do que ela,
d buixeza humana. Tiveram muitos aduladores os reis, até mesmo D. Pedro I, no
Chalaça, figura a um tem po histórica e folclórica, e outros reis, os de todos os
povos. Mas não se nega também que os interesses dinásticos, a educação real,27
ii consciência do papel histórico do rei - m uito distante da “ petite histoire” ,
na qual se comprazem alguns historiadores — concorrem para neutralizar a força
nflo raro enormíssima da bajulação no lisonjear, da perseverança no pedir, do
cinismo no tolerar, para atingir a um fim. Zacarias trata com brilho, excusando-se
embora de “ nada escrever de n ovo” , das relações entre o monarca e o Ministério,28
c o faz com lucidez e lógica. O rei deve reinar mas não administrar. Quem deve
administrar são os ministros, através da máquina burocrática extensíssima, cada
vez mais extensa e mais complicada, de tal maneira que as decisões muitas vezes
se perdem ou não se cumprem inteiramente nos seus congestionados circuitos.
Mas, não obstante, essas transações e transigências subsistem a neutralidade e
a duração do poder, a sonegação às lutas dos partidos pelo acesso à chefia de
Estado, numa palavra a sobrançaria, graças à qual a nação se mantém unida em
torno do eixo de um poder, o suprapartidário. A sabedoria do constituinte de
1823 consistiu em assimilar uma doutrina que se fundiu com as tendências, as
aspirações, a formação cultural do nosso povo. Acentua Zacarias29 que “ no sistema

26
Bernard Faÿ. Naissance d ’un monstre-iopinion publique. Paris, Perrin, 1965, passim.
21
Alberto Rangel. A educação do principe. R io, Agir, 1946, passim.
2fl
Zacarias de Goes e Vasconcelos. Da Natureza e Limites d o Poder Moderador. R io , T ip o ­
grafia Universal, 1862, passim.
20
Zacarias de G oes e Vasconcelos. Op. cit., p. 90.
A EXEGESE D O PO D E R M O D E R A D O R 37

da ( . . . ) Constituição (im perial), e nisto está a excelência do nosso sistema, todas


as questões resolvem-se regular e pacificamente, todas têm solução regular e natural
pelos meios pautados e estabelecidos na Constituição” . O poder moderador
substituía ministros, dissolvia Câmaras, praticava todos os atos de suas atribuições,
segundo a Constituição.30 N ão era onipotente; estava contido pela Constituição,
pela História e pelas leis naturais da dinastia. N ão era absoluto, com o o de tantos
presidentes da República, no Brasil e noutros países. Com rigoroso fundamento
ju rídico e cerrada lógica, o marquês de São Vicente, outro grande tratadista do
Império, definiu e defendeu o poder moderador.31 “ O poder moderador, cuja
natureza a Constituição esclarece bem em seu artigo 98, é a suprema inspeção
da nação, e o alto direito que ela tem, e que não pode exercer por si mesma, de
examinar com o os diversos poderes políticos, que ela criou e confiou a seus
mandatários, são exercidos. É a faculdade que ela possui de fazer com que cada
um deles o conserve em sua órbita, e concorra harmoniosamente com outros para
o fim social, o bem-ser nacional; é quem mantém seu equilíbrio, impede seus abusos,
conserva-os na direção de sua alta missão; é enfim a mais elevada força social,
o órgão p o lítico o mais ativo, o mais influente, de todas as instituições funda­
mentais da nação” . Sãa Vicente é taxativo: esse poder existe e é “ distinto não
só do poder executivo, com o de todos os outros; não pode ser exercido (. . .) pela
nação em massa, precisa ser delegado” .32
Na profunda, sólida, extensa biografia que o historiador Pedro Calmon33
dedicou a Pedro II, fronteamos um monarca sobremaneira austero, rigoroso no
cumprimento de seus deveres, dotado de escrúpulo singular no respeito à pessoa
humana. Minucioso, enriquecendo sua opulenta obra com preciosas notas, o
historiador Pedro Calmon não deixou aspecto da vida e do governo do segundo im­
perador sem a luz de sua análise. N ão lhe encontrou defeitos que maculassem
o seu patriotismo, o amor ao Brasil, o interesse pelo nosso desenvolvimento, cujo
arranco fo i tardo e tardio pela conjunção de uma série enorme de fatores, dentre
os quais se destacaram o climático, o geográfico, o demográfico, e a concorrência
irresistível dos Estados Unidos, mais atraente para os capitais e os imigrantes
europeus. Dir-se-á que o poder m oderador funcionou bem graças a D. Pedro II.
Diremos que esse poder bem funcionou com D. Pedro II, e, por sua natureza,
funcionaria satisfatoriamente com qualquer monarca e, é de se presumir, com
apoio na História, m elhor do que todas as presidências da República. 0 Visconde
de Taunay pergunta: “ Porventura, há algum republicano de hoje, que se suponhasupe-
rior em largueza de vistas e patriotismo aos homens da nossa geração passada?
Houve por acaso misérias de caráter nacional, razões transcendentes que nos levem

30
Visconde do Uruguai, Op. cit., p. 71.
31
Marques de São Vicente. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império.
R io, Tipografia de J. Villeneuve, 1857, p. 204 e ss.
32 Id „ ib„ p. 205.
33 Pedro Calmon. História de Pedro II. Op. cit., passim.
IH O PO D E R M O D E R A D O R

u mudar de rumo? Alguma mancha que para sempre marcou o nosso nome, alguma
transação indigna, vergonhosa, humilhante, que salpicou de lama o trono e a
bandeira do B ra s il” .34 O poder moderador asegurou ao Brasil um longo e satis-
lalòrio estágio democrático às nossas instituições, não obstante a nódoa da
odcruvidão marginalizar uma parcela não negligenciável da pequena população
tio país. Ninguém há que não reconheça esse m érito do governo imperial. Foi,
com o devemos entender o vocábulo, democrático na plenitude relativa dos regimes
lemporais. “ Uma democracia autêntica implica um acordo firme dos espíritos e
das vontades sobre as bases da vida comum; ela é consciente de si mesma e de seus
pilncípios, devendo ser capaz de defender e prom over a sua própria concepção da
vidu social e política; ela deve levar em si um credo humano com um , o credo da
liberdade” .3S Se o regime republicano, que sucedeu ao monárquico, eclipsou a
democracia em vários quatriênios,36 devemos louvar o regime que, apesar de todas
as restrições que se lhe imputem, garantiu à nação uma forma de governo, uma
estrutura jurídica e um ideal moral democráticos. Excedeu-se no respeito aos pos­
tulados liberais? Era a época. D. Pedro II pagou-lhe esse tributo, com o j á lhe havia
pago antes, e veio a pagar depois, quando voltou a Portugal, seu pai, D . Pedro I.
Maritain condenou o erro do liberalismo burguês do século X I X 37 e Maurras tam­
bém lhe aplicou o ferro-em-brasa de sua cáustica e severa crítica.38 Mas o imperador
não poderia renegar a sua formação cultural. Preferiu ser liberal e democrata,
tolerando a propaganda republicana que em dezenove anos lhe m inaria o trono,
e o abateria na manhã de novembro, durante a qual o enfarado conselheiro Ayres
não percebera que uma revolução, no exato sentido da palavra, sepultava u m regime
ao qual devera o Brasil uma era de respeitabilidade, de exemplar fé nos princípios
democráticos.
Definiu João Camfllo de Oliveira Torres o Im pério com o uma democracia
coroada. Sua obra é clássica, pelo fundo e pela forma, em nossa esquálida biblio­
grafia política. É a perfeita definição do Im pério, inclusive do p rim eiro reinado
e pelo avesso da amostra republicana que fo i a Regência, não obstante a grande,
austera figura de Feijó. F o i possível a democracia no Império, com o a devemos
entender, sem laivos polêmicos, graças ao poder moderador. F o i sobre o seu fun­
damento que assentou esse recôndito ideal de vida dos povos, e não hesitam os em
alirmar que a sua instauração nas instituições políticas brasileiras n o s devolveria
o sistema democrático proporcionado à nossa índole. As Forças A rm ad as o têm

34 Visconde de Taunay. Pedro II. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1 9 3 8 , p. 7 c


passim.
15 Jacques Maritain. L 'Homme et l ’Etat. Paris, P. U. F., 1953, p. 101, grifo no o rig in a l.
■w Cf. João de Scantimburgo. Op. cit., passim; José Maria dos Santos. Op. cit., passim; Jose
Maria Belo. História da República. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1 9 6 4 , passim,
c, em geral todas as fontes sobre a nossa História, de R u i Barbosa às atuais. -
37 Id., ib.
m ('hurles Maurras. Ouvres Capitales. Paris, Flammarion, 1954, passim.
A EXEGESE DO PO D E R M O D E R A D O R 39

desempenhado, mas, com o vemos, desatendendo à sua específica natureza, esbar­


ram em obstáculos intransponíveis, um dos quais, e fundamental, cifra-se na conci­
liação de liberdade com autoridade, em todas as suas acepções. Será possível chegar­
-se ao melhor regime político segundo Santo Tomás, se conjugarmos o regime em
arquia no top o do Estado com o regime de cracia na base, da interessante reflexão
de Pontes de Miranda.39 A História é p olítica experimental. Se form os às suas
páginas, ali encontraremos subsídios para a nossa tese. Não estamos com o grande
cardeal Newman, que abominava a democracia,40 nem com outros teóricos, para
os quais a democracia engendra males irreparáveis para a sociedade. Entendemos
que a democracia é o respeito à pessoa humana, porém, com o esta é fórmula
demasiado vaga, acentuamos reclamar a sua instituição uma autoridade legítima,
contra a qual não triunfem as forças do mal, tão vivas nas sociedades, sobretudo
nas sociedades contemporâneas, subvertidas até às profundezas pela revolução
mundializada. Com o poder moderador na chefia do Estado seria viável restaurarem­
-se o sistema parlamentar e o governo de gabinete, mantendo-se, até quando os
partidos continuem a ter um papel legal na organização política do Estado, o bipar-
tidarismo, que consubstancia, do Império aos nossos dias, uma tradição brasileira,
a de duas grandes correntes políticas principais, e afluentes menores, agremiando
a opinião pública. Conservadores e Liberais no Im pério; Partidos Republicanos
estaduais e suas dissidências na primeira República; multipartidarismo sem nenhuma
expressão de 1933 a 1937; P.S.D. e U.D.N., os dois partidos do A cordo Interpar-
tidário do presidente Eurico Gaspar Dutra, e atuantes até ao A to Institucional
n? 2; Arena e M.D.B., mais ou menos amorfos, sem capacidade efetiva de motivação
política da sociedade de massas do sul e das sociedades ainda estagnadas em velhos
costumes coronelescos do Nordeste e Norte.
D aí parecer-nos irrelevante e irrealista a posição assumida pelo antigo prócer
político Raul Pilla, na sua polêmica com A fon so Arinos de M elo Franco,41 contra
o poder moderador, posição que dificilmente se equilibra em seu preconceito.
“ A criação do Poder Moderador, só adotada em duas Constituições — a do Brasil e
a de Portugal, ambas outorgadas pelo mesmo príncipe — fo i uma fantasia de teó­
rico, que m uito longe pretendeu levar a análise das coisas. Benjamin Constant
fo i quem a sugeriu. Em verdade, as atribuições deste quarto poder são as do Chefe
do Estado, que não é por si um poder nas democracias representativas, mas parti­
cipa dos outros poderes e, além disto, personifica a nação” . Com o esperamos ter
demonstrado, o poder moderador fo i natural nas monarquias antigas, até mesmo,
ainda que o paradoxo surpreenda, sob o absolutismo. Mas, depois da vitória sobre
Napoleão, e dos acontecimentos que abalaram a França, impunha-se, já na fase

39 ,
Pontes de Miranda. Democracia, Liberdade, Igualdade. R io, Livraria Jose O lim pio Editora,
1945, p. 163 e ss.
40 W. Ward. The Life o f John Henry Cardinal Newman. Londres, Longmans, 1912, II, p.
118 e passim.
41 Presidencialismo ou Parlamentarismo. Op. cit., p. 172.
40 O PO D E R M O D E R A D O R

hlNlOrlcu do constitucionalismo, adotar uma Constituição ou Carta, com o se dizia


nu Idude Média,42 e os Bourbons o preferiram. Benjamin Constant é chamado
piiru elaborar a Constituição, porém o m odelo inglês, incom patível com a França,
fio linpòs, e o poder real da tese e doutrina do grande jurista suíço-francês não
provnleceu, com o, pelo bom senso, veio a preponderar no Brasil. Complicando-
no ossu crise de in ício do governo dos Bourbons, com o caráter destes e o seu
dci.squite com o tempo, inteiramente outro, diferente da época histórica de seus
antepassados, até mesmo dos mais próximos, acabaria por malograr a Restau-
ruçflo. Os acontecimentos ulteriores, inclusive o com etim ento dado por Napo-
loflo u Benjamin Constant de redigir uma Constituição liberal, o A to adicional
As Constituições do Im pério, vêm comprovar que seria possível a instituição do
poder moderador na França, não tivessem atuado no terrível p eríodo que sucedeu
A queda do Im pério, à volta dos Bourbons, ao retorno do imperador, e à sua defi­
nitiva queda, o temperamento, as idiossincrasias pessoais, a incompreensão das
mudunças, o espírito “ frondeur” do francês e a indocilidade das novas gerações,
nascidas em dias tumultuosos, incertos, iconoclastas da revolução francesa. N o
llrusil e em Portugal esse poder fo i instituído na Constituição, e, ao menos em
nosso país, fixou-se, historicamente, com o um ato eminente de sabedoria política.
N o prefácio à Queda d o Im p é rio 43 diz Rui Barbosa: “ Sinceramente monar­
quista era eu, a esse tempo. N ão p or admitir preexcelências formais desse ao outro
Nlstcma de governo — visível preconceito, apenas digno de fanáticos, ignorantes,
ou tolos (o que tudo, bem a miúde, não vêm a ser senão nomes diversos de um só
estado m ental); mas porque a monarquia parlamentar, lealmente observada, encerra
cm si todas as virtudes preconizadas, sem o grande mal da república, o seu mal
Inevitável” . “ O mal grandíssimo e irremediável das instituições republicanas con­
siste em deixar exposto à ilimitada concorrência das ambições menos dignas o
primeiro lugar do Estado, e, desta sorte, o condenar a ser ocupado, em regra, /
pela mediocridade” . James Biyce, já por nós citado, fez as mais duras críticas
ao paradigma do presidencialismo, o americano, arguindo de medíocres os presi­
dentes eleitos até à edição de seu livro.44 De 1897 a 1977 os seus conceitos subsis­
tem intactos; de Stephen Grover Geveland a James Earl Carter, as suas obser­
vações poderiam ser repetidas, não se fazendo exceção nem mesmo de W oodrow
Wilson, cuja desastrosa participação na Conferência da Paz deixou na Europa
o germe da segunda grande guerra, ou do segundo Roosevelt, reconhecidamente
m edíocre, e, igualmente, desastroso em política exterior, pois com a sua autori­
dade acabou dando, em Ialta, metade da Europa aos mongóis deixando a outra
metade ameaçada por suas forças. Um deles, Richard N ixon, sabemos com o deixou

42 Caries Seignobos. Histoire politique de l ’E urope Contemporaine. Paris, Arm and Collin,
1897, p. 102.
43 Rui Barbosa. Queda do Império. Obras Completas, V o l. X V I, T om o I, R io, Ministério de
Educação e Saúde, 1947, p. X X V I.
44 Jumes Bryce. The American Commonwealth. N ova Y o rk , Macmillan, 1895, passim.
A EXEGESE D O PO DER M O D E R A D O R 41

o poder, na onda de terrível falta de confiança, tamanha a baixeza de seu proce­


dimento, menor por ser ele culpado das origens do escândalo de Watergate, do
que por tentar encobri-lo, jogando nessa atitude a respeitabilidade da qual se
deve revestir a presidência. Não quer dizer, no entanto, que chefes de Estado
medíocres não possam bem governar. Com o os talentos são escassos, e os gênios
minoria solitária, os chefes de Estado não ascenderão nunca acima da craveira
comum, exceto uns poucos, que, apenas, confirmam a regra. O poder moderador
tem sobre o regime presidencial ou sobre as repúblicas parlamentares o mérito
da neutralidade, de sobrelevar-se acima das querelas de partido ou de facção,
de ocupar a chefia de uma organização de Estado apropriada às mudanças de
opinião, às injunções, que sempre as há, dos grupos de pressão e de interesse, às
correntes que vão estuar nas alturas do poder as suas aspirações, sejam elas quais
forem.
Nesta exegese do poder moderador esperamos ter demonstrado a sua neces­
sidade, senão para esta ou aquela nação, ao menos para o Brasil. A sua instau­
ração, com os órgãos que lhe são naturais, com o o Conselho de Estado e o Conselho
de Ministros, apontaria a saída para a crise política brasileira, crise para a qual
não houve nem haverá paradeiro, a não ser em fases intervalares, que, por isso
mesmo, reclamam solução heróica, sem acorrilhamento a preconceitos de idade
caduca. O poder moderador, eis a solução.
4
o Brasil e o poder moderador

Dizia, sobre a tradição, Chesterton, o maior escritor inglês do século X X , e


um dos maiores escritores da riquíssima literatura da Inglaterra: “ Nunca, efetiva­
mente, pude compreender onde foram algumas pessoas buscar a idéia de que
democracia e tradição se opõem. Parece-me claro que a tradição vem a ser demo­
cracia ao longo do tempo. É a confiança tributada ao consenso das vozes humanas
comuns e não a algum registro isolado e arbitrário” . “ A tradição pode também
ser definida com o a extensão dos privilégios, e vem a ser o reconhecimento do
sufrágio dos nossos antepassados. É a democracia dos mortos. Pela tradição eu
recuso submissão à pequena e arrogante oligarquia de alguns indivíduos, pelo
simples fato de estarem ainda de pé” . “ Eu não posso, em vista dessas razões, sepa­
rar as duas idéias, democracia e tradição; parece-me evidente que ambas são a
mesma idéia. Terem os mortos em nossas assembléias. Os gregos antigos votavam
com pedras, aqueles votarão com pedras tumulares” .1 N o dia da proclamação
da República, no Brasil, a tradição recebeu um golpe fatalíssimo, que iria, daí
por diante, repercutir, sem paradeiro, em nossa História. É o que vamos demons- -
trar, com argumentos da própria História e dos fatos que a compõem, através
do tempo.
O decreto nP 1 de 15 de novembro de 1889, assinado pelo marechal Deo-
doro da Fonseca, e por Aristides da Silveira Lob o, Rui Barbosa, Quintino Bocayuva,

1 G. K. Chesterton. Ortodoxy. Londres, The Badley Head, 1949, pp. 69-70.


44 O PO DER M O D E R A D O R

Benjamin Constant e Wandenkolk Correia, proclamou piovisoriamente a República,


e, enquanto, pelos meios regulares, não se procedesse à eleição do Congresso Cons­
tituinte do Brasil, e, bem assim, à eleição das legislaturas de cada um dos Estados,
séria regida a nação brasileira pelo governo provisório da República.2 Com o golpe
de 15 de novembro e esse decreto, cuja vigência não era explícita, ficaram extintos
no sistema político brasileiro: o poder moderador, o Conselho de Estado, o Con­
selho de Ministros, o Senado vitalício e a classe dirigente, formada esta segundo
o processo regular do merecimento, nas várias gradações em que se tom e a palavra.
A geração que assistiu à propaganda republicana, as adesões que a fortaleceram
e os autores do golpe de 15 de novembro não eram nutridos de boa doutrina
política, alguns, mesmo, de nenhuma doutrina. Não poderiam prever que naquela
manhã agitada do mês de novembro iriam menos instaurar um regime, do que uma
cadeia de crises, cujo term o ainda não vislumbramos no horizonte histórico da
nação brasileira. Em Esaú e Jacob, Machado de Assis descreve a manhã do conse­
lheiro Ayres, que saiu m uito cedo de casa, no dia 15 de novembro de 1889, fo i ao
Passeio Público, ouviu alguns boatos de acontecimentos de que estava sendo palco
o Campo de Sant’Ana, mas não concluiu nada. Enfarado, voltou para casa, sem
saber, ao certo, o que se passara com a tropa, o imperador e o regime. “ Quando
Ayres saiu do Passeio Público, suspeitava alguma coisa, e seguiu até o largo da
Carioca. Poucas palavras e sumidas, gente parada, caras espantadas, vultos que
arrepiavam caminho, mas nenhuma notícia clara nem completa” .3 O Conselheiro
Ayres, conspícuo e respeitável habitante do R io de Janeiro, membro ilustre da
burguesia nascente, ignorava que o Brasil estava entrando numa revolução.
Cumpre o Brasil, de tempos a tempos, o fatalismo do jeca-heredo. Descreveu­
-o Monteiro Lobato numa página que Rui Barbosa, com o prestígio de seu nome,
encampou, tornando-a célebre. Os fatos históricos se sucedem, sem que o brasileiro
deles tome consciência, na linha dos interesses nacionais. De cócoras, com o o pintou
M onteiro Lobato, assiste a tudo, “ matutando” , “ cismando” , e fica na sua expecta­
tiva, tão im óvel quanto sua postura. Na manhã de 15 de novembro de 1889, o bra­
sileiro comum, e até mesmo o conselheiro Ayres, não se deram conta que a queda
do trono arrastaria na sua com oção política a extinção de um poder arbitrai,
o Moderador; de órgão vital para a boa condução dos negócios públicos, o Con­
selho de Estado; o regime que mais convinha à administração, o Conselho de
Ministros, ou seja, o regime de gabinete; a vitaliciedade de uma Câmara que, por
sua natureza, deve constituir um princípio de equilíbrio no processo legislativo,
e a classe que, com todos os defeitos que nela se pudesse indigitar, já tinha as carac­
terísticas, a fisionomia de uma camada, com o em tese a estudou Gaetano Mosca.4
O golpe de 15 de novembro coroou o processo que, sem ter penetrado na cons­

2 Aurelino Leal. História Constitucional do Brasil. R io, Imprensa Nacional, 1915, p. 201.
3 Machado de Assis. Esaú e Jacob. R io, Livraria Garnier, s/d (1 9 0 4 ), p. 190 e ss.
4 Gaetano Mosca. “ Elem enti di scienza politica” . Apud. Dizionario di Cultura Política.
Milão, Antas, 1946, verbete “ Classe” .
O B R A S IL E O PO D E R M O D E R A D O R 45

ciência popular em profundidade, aliciara, no entanto, numerosos políticos m ili­


tantes do partido liberal, e fora desfechado por oficial ressentido das Forças
Armadas. O marechal D eodoro da Fonseca não pretendia derrubar o trono e instau­
rar a República em lugar do Império. F o i impelido pelos acontecimentos, pelos
republicanos, que acudiram ao Campo de Sant’Ana, e por esse fator decisivo na
forma política do Brasil, o fato consumado.5
O Im pério caiu sem resistência, menos por não ter condições de resistir, do
que por ter faltado à Corte, aos oficiais — generais das Forças Armadas, à parcela
da “ classe p olítica” , que, em número, era maior do que a republicana, a capacidade
de reagir, necessária em horas decisivas, com o aquela. Numa crônica publicada
em Paris, Eça de Queiroz registra o episódio, dizendo com “ verve” que o amanuense
indiferente ia começar a redigir um decreto em nome de Sua Majestade, o Impera­
dor, e, ao ouvir os gritos da proclamação, gritos que não houve, simplesmente
inicia o seu cursivo em nome do presidente da República. Fatalismo herdado, ao
parecer, da longa permanência dos árabes na península ibérica, impregnou-se
em tal extensão nos costumes brasileiros, que assistimos à revogação de Consti­
tuições, correspondendo a golpes na estrutura política do país e na sua marcha
pela História, sem esboçarmos a menor reação. É com o se já “ estivesse escrito” ,
segundo a crença inculcada nos árabes pelo Corão. Em 15 de novem bro fo i o que
houve: dissidentes da monarquia derrubaram um trono que procedia de uma dinas­
tia de quatro séculos no Brasil, e o conselheiro Ayres, com o outros brasileiros,
deram de ombros, foram para casa, comentar os acontecimentos sem outra preo­
cupação, que a de saberem quem entraria no Ministério a ser formado.
Dois exemplos motivaram os propagandistas da República: o americano e o
argentino. Foi, contudo, o exem plo americano que exerceu maior influência no
adotar-se o regime republicano em toda a Am érica Latina, e mais tarde, em quase
todo o mundo. Ninguém se deu conta, no entanto, que os Estados Unidos eram
uma criação original. Produto da obstinação dos republicanos de Cromwell, que se
transferiram, com o acentua Renan,6 da Inglaterra para a América, onde esperavain
introduzir suas idéias, o sistema político norte-americano fo i instituído por um
pequeno número de homens nutridos dos velhos ideais que não floresceram na
metrópole sob o Lord Protector revolucionário. Não era regime que devesse trans­
ladar-se para outros países. É a tese, mais uma vez insistimos em afirmá-lo, que
Harold J. Laski defendeu, aduzindo que o presidencialismo americano daria maus
resultados em outros países, com o, efetivamente, se tem verificado na turbulenta
história da Am érica Latina. Quanto mais é estudada a sua função, acentuou esse
autor sobre o presidencialismo, mais aparece seu caráter original. Os resultados
de sua transplantação não corresponderam, até hoje, às previsões de seus adeptos.
l)o M éxico à Argentina, todos os países latino-americanos consagram a tese de

' R. Magalhães Júnior. Deodoro - a espada contra o Império. São Paulo, Companhia Editora
Nacional, 1957, II, pp. 56 e ss.
* Ernest Renan. La réforme intellectuelle et moral. Paris, M ichel Lévy Frères, 1875, passim.
46 O PO DER M O D E R A D O R

Laski com o incontestável. Sua carreira, rastreada de crises, tornou-se, portanto,


um libelo contra a sua preferência pelos propagandistas da República. Supuseram os
bem sucedidos agentes do golpe de 15 de novembro que bastaria trazer para o
Brasil o m odelo americano, a fim de registrarmos outras condições de vida em
nosso país.
Lem os quanto pudemos os propagandistas da República, e não encontramos
nos seus escritos senão argumentos de circunstância, alheios à substância do sistema
imperial. A té mesmo a federação, pela qual Rui Barbosa tanto se bateu, admi­
tindo, mesmo, a monarquia com ela, viria a ser adotada pelo Im pério, embora
presentemente a centralização seja m uito maior do que sob a Constituição de
1824. A federação, que R ui Barbosa, nos volumes da Queda do Im p ério não define,
mas, apenas, a patrocina, desapareceu, praticamente, da organização política
brasileira. Os Estados são mera ficção: dependem do poder central — com o prefe­
rimos chamá-lo — seus negócios internos e sua política. O golpe de 15 de novembro
foi, portanto, um enorme equívoco. Vibrado nas instituições políticas brasileiras
atirou a nação à zona turbulenta da instabilidade. A Constituição de 1891, inspi­
rada nas idéias liberais, que teve em Rui Barbosa a sua mais alta expressão no
Brasil, não fo i reformada, por estar vivo até 1923 o seu autor, que, contudo,
admitia-lhe a revisão. Mas, já Campos Salles manifestara seu ju ízo sobre ela: não
correspondia ao que podemos chamar de “ país real” . Nas sessões ordinárias de 1925
e 1926 foram , no entanto, aprovadas emendas, que se incorporaram ao seu texto,
entrando em vigor no dia 7 de setembro desse ano. F o i a primeira mudança. Outra
viria com a revolução de 30, que, simplesmente, a derrogou. D aí por diante, tería­
mos uma sucessão de revogações, que confirmam o desquite entre o formalismo dos
textos legais e a realidade social e política do país. A Constituição de 1934 durou
três anos e quatro meses, mas fo i interrompida pelo estado de guerra; a de 1937
durou quase nove anos, mas vários de seus dispositivos não prevaleceram, por não o
querer o presidente Vargas e se ter declarado a conflagração na Europa, obrigando­
-nos, portanto, ao fortalecim ento do executivo. Deveríamos ser envolvidos pelo
conflito, com o viemos a sê-lo. O pretexto do executivo forte e centralizado pre­
valeceu, de acordo com o desejo de Vargas. A de 1946 durou vinte anos. F oi essa
o ventre de um monstro, onde se geraram as crises nas quais ainda nos debatemos.
A revolução de 1964 revogou-a, pondo em vigor outra, que fo i emendada. É a
quinta Constituição da República em número, mas de fato é a sexta, tão extensa
a Emenda Constitucional n9 1.
Nessa sucessão de Constituições, que delatam a crise global, profunda, cujo
corrosivo destrói as energias da nação, o que mais espanta é não se aperceber a
“ classe política” do descompasso entre o sistema e as tendências da nação. O
Im pério fo i sustentado por instituições políticas tão perfeitas quanto possível,
para a época. Muitos defeitos se podem imputar à organização p olítica imperial,
mas é inegável que era ela m uito superior à republicana. O poder pessoal do impe­
rador, alvo de tantas críticas, era muito inferior ao do presidente da República.
O imperador não teve os poderes de que dispõe o presidente da República, segundo
a Constituição de 1967 e sua Emenda. N ão teve o artigo 182 dessa Constituição,
O B R A S IL E O PO D E R M O D E R A D O R 47

nem a Lei de Segurança Nacional. Foi, no entanto, o poder pessoal que preservou
a unidade nacional, obra e glória da Casa de Bragança. Os “ estados gerais” do
reino, o clero, a nobreza e o povo, em sentido lato, evidentemente, pois aqui não
tivemos o “ A n tigo Regim e” de estilo francês, essas três ordens existiram, graças
à coroa. O poder moderador, inspirado em Benjamin Constant, o suíço-francês,
era, com o dissemos em capítulo anterior, uma herança medieval, que se conservou
e se conserva nas monarquias. Em alguns períodos da vida dos povos seu papel
ficou suspenso, mas o regime de gabinete, colocando-se o monarca acima dos
partidos, prevaleceu sempre, inclusive sob o absolutismo de Luis X V . N o Brasil
o poder moderador era exercido pelo monarca. Determinava o artigo 98 da Cons­
tituição de 1824: “ 0 poder moderador é a chave de toda a organização política,
e é delegado privativamente ao Imperador, com o chefe supremo da nação e seu
primeiro representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da inde­
pendência, equilíbrio, harmonia dos demais poderes políticos” . Tinha, no entanto,
esse caráter o poder moderador, por ser apartidário o monarca, por estar acima das
lutas de facções ou grupos; por ter legitimidade histórica, por não depender do voto,
nem das concessões e injunções partidárias. 0 papel que alguns publicistas reivin­
dicam para as Forças Armadas, na República, só poderia caber ao monarca desem­
penhá-lo, pois ele era, efetivamente, o primeiro magistrado da nação. 0 visconde do
Uruguai7 doutrinava que o poder moderador era um poder político, uma delegação
da nação, a suprema inspeção sobre os poderes legislativo, executivo e judiciário, o >
alto direito que tinha a nação de examinar com o os poderes por ela delegados eram
exercidos e de manter a sua independência, harmonia e equilíbrio, direito que a na­
ção, por não poder exercer por si mesma, delegou ao imperador. Acrescentava Uru­
guai que o poder moderador não era ativo. Tinha por fim conservar, moderar a na­
ção, restabelecer o equilíbrio, manter a harmonia e independência dos demais pode­
res, o que não poderia fazer se estivesse assemelhado, refundido e na dependência de
um deles. Para Braz Florentino Henriques de Souza o poder moderador unificava na
pessoa do rei todas as forças sociais, reconstituindo o equilíbrio dentro do organismo
nacional. Esse poder, por sua natureza, deve ser exercido unicamente por um monarca
hereditário, com o era o seu chefe na organização política imperial. Querer transferi­
-lo para a República poderá melhorar o sistema republicano, mas não se identificará
com sua essência, porquanto subsiste no caso o vício da eleição, que, com o já filo ­
sofava o pachorrento cônego Vargas da Sereníssima República, de Machado de
Assis, é sempre falha.
Por analogia, invocamos a imagem Santíssima Trindade. São quatro os pode­
res, ao contrário da teoria desestabilizadora de Montesquieu, mas todos se harmo­
nizam num único poder, o moderador. Esse, o espírito de sua presença nas institui­
ções políticas brasileiras, que os liberais não compreenderam, contra os interesses
da nação. Argüindo de pessoal o poder do imperador, combateram-no, quando
todos os poderes de chefia são pessoais, inclusive se, em nome de ficções ideo-

7 Visconde do Uruguai. Ensaio sobre o Direito Administrativo. Op. cit, passim.


48 O PO D E R M O D E R A D O R

lógicas, o atacam, com o no caso do “ culto da personalidade” , objeto do extenso


inform e de Krushev ao X X Congresso do Partido Comunista da União Soviética.
Os dias tormentosos da Regência — a chamada “ república provisória” — chegaram
ao fim , por terem “ os homens de cabeça fria” , com o diz Octavio Tarquinio de
Souza,8 concluído, sensatamente, que “ o tron o continuava a ser o grande prin­
cíp io da unidade nacional” . Bernardo Pereira de Vasconcelos,9 o grande estadista
desse período, defendia o trono e a idéia monárquica; era, mesmo, hostil ao presi­
dencialismo americano. “ Vasconcelos era quem mais revelava conhecer o sistema
d o norte e não se cansou de dizer que nós não o podíamos ainda im portar” .10
O Conselho de Estado era outra sábia instituição do sistema imperial. A ela
se opunham os liberais. A rgu id o de oligárquico, mostra, no entanto, a História que
o Conselho de Estado serviu ao Brasil. Compunha-se de 12 membros ordinários ou
efetivos e 12 extraordinários ou suplentes, mais os membros da fam ília imperial,
que seriam supranumerários. O príncipe imperial, ou príncipe do Grão-Pará, her­
deiro do trono, seria, automaticamente, m em bro do Conselho; os demais seriam
nomeados. Foram-no a princesa Isabel e o Conde d’Eu. Incumbia ao Conselho de
Estado consulta em que o imperador houvesse por bem ouvi-lo, sobre negócios
do Estado, e, especialmente, em todas as ocasiões em que o imperador se propusesse
exercer as atribuições do poder moderador indicadas no artigo 101 da Constituição;
sobre declaração de guerra, ajustes de paz e negociações com nações estrangeiras;
sobre questões de presas e indenizações; sobre conflitos de jurisdição entre autori­
dades administrativas, e entre estas e as judiciárias; sobre abusos das autoridades
eclesiásticas — a religião católica era religião de Estado — e sobre decretos, regula­
mentos e instruções para a boa execução das leis, e sobre propostas que o poder
executivo tivesse de apresentar à Assembléia Geral. Para Pimenta Bueno, marquês
de São Vicente,11 o parecer ou consulta do Conselho de Estado não passava de um
m eio de ilustração e acerto, não tendo outra força, senão a de opinião, que podia
ou não ser acatada. Segundo a velha fórmula medieval, o rei ficava nos seus conse­
lhos e o povo nos seus estados, embora os estados, ou ordens do reino, já estivessem
há m uito extintos, sob as idéias liberais. O partido liberal prejudicou, enormemente,
o funcionamento desse órgão do governo imperial, que m uito concorreu, para o
bom exercício do poder, pelo imperador. É essa uma instituição imperial, que por
ser vitalícia, só podem ser nomeadas para a com porem pessoas de confiança do
chefe de Estado que não dependam de eleição, de força ou de partido, para ascen­
derem ao posto. O monarca hereditário escolhia seus conselheirôs, incluía entre

8 Octávio Tarquinio de Souza. História dos Fundadores do Império do Brasil, vol. V ,


Bernardo Pereira de Vasconcelos. R io de Janeiro, Livraria José O lym pio Editora, 1960,
p. 214 e passim.
9 Id., ib.
* ° Au relino Leal. Op. cit., p. 186.
11 Pimenta Bueno (Marquês de São V icen te). Direito Público Brasileiro e Análise da Consti­
tuição do Império. Op. cit., passim.
O B R A S IL E O PO D E R M O D E R A D O R 49

eles, a partir dos 18 anos, o príncipe herdeiro, e deles se socorria — com o o demons­
tram os volumes sobre resoluções desse órgão — sempre que deles necessitasse.
Um Conselho de Estado republicano é, portanto, uma contradição, pois o poder
temporário do chefe de Estado é fator contrário à sua formação, e não teria a
vontade, a experiência e o interesse histórico do monarca hereditário e dinástico,
com o o seu agente formador.
Na República a tentativa de criá-lo coube a A rn o lfo Azevedo. A ro ld o A ze­
ved o12 e A fon so Arinos de M elo Franco,13 entre outros, trataram do assunto.
Malogrou a tentativa e malogrará tantas vezes quantas for retomada, pois essa é
função privativa dos monarcas. Sobre o projeto de A rn o lfo Azevedo, disse A roldo
A zevedo: “ Hermes da Fonseca havia assumido a presidência da República no dia
15 de novembro de 1910. N a governança de São Paulo continuava o Dr. Albu­
querque Lins, o candidato à vice-presidência derrotado, com Rui Barbosa, nas
eleições realizadas a 19 de março daquele ano. Na liderança da política nacional,
mais prestigiado do que nunca, achava-se o general Pinheiro Machado, vice-presi­
dente do Senado Federal” .
“ Com o deputado oposicionista, A rn o lfo A zevedo apresentou à conside­
ração da Câmara Federal, na sessão de 23 de dezembro de 1910, importante projeto
de lei, que recebeu o n9 357 e pelo qual seria criado, na cidade do R io de Janeiro,
o Conselho Federal da República, a fim de deliberar, mediante consulta dos poderejs
públicos, sobre assuntos políticos e administrativos. Em 15 artigos, dispunha sobre
sua organização, atribuições e funcionamento” .
“ Seria constituído por membros natos e membros efetivos. Os membros natos
deveriam ser os seguintes: o presidente da República, os ex-presidentes da República,
os antigos vice-presidentes da República, o Presidente do Supremo Tribunal Federal,
o presidente do Supremo Tribunal Militar, o vice-presidente do Senado Federal, e
0 presidente da Câmara dos Deputados. Em termos práticos, se naquela ocasião o
projeto fosse transformado em lei, teriam assento no Conselho Federal da República
pelo menos as seguintes personalidades: Hermes da Fonseca, Venceslau Brás,
Campos Salles, Rodrigues Alves, N ilo Peçanha, Rosa e Silva, Pindaíba de Matos,
Pinheiro Machado e Sabino Barroso” .
“ Os membros efetivos, com mandato vitalício, seriam em número de cinco
‘cidadãos brasileiros de notável e provada capacidade administrativa’ , escolhidos
pelo próprio Conselho por maioria absoluta de votos e propostos ao presidente
da República, o qual deveria submeter as indicações à apreciação do Senado Fede­
ral, que só poderia aprová-las por dois terços dos senadores presentes.”
“ A presidência das sessões caberia ao presidente da República e a vice-presi­
dência aos ex-presidentes da República, na ordem cronológica em que foram
chefes da Nação” .

11 A rold o de Azevedo. Arnolfo Azevedo, parlamentar da primeira República. São Paulo,


Companhia Editora Nacional, 1968, p. 123 e ss.
1 1 A fon so Arinos de M elo Franco. Um Estadista da República. R io de Janeiro, Livraria José
O lym pio Editora, 1955, V ol. II, pp. 750/51.
50 O PO DER M O D E R A D O R

“ O Conselho seria um órgão meramente consultivo. Suas decisões, tomadas


por maioria absoluta de votos, teriam um duplo caráter:
a) constituiriam assento de boas normas de administração republicana,
quando provocadas por consulta do presidente da República, seus minis­
tros, ou dos presidentes e governadores dos Estados;
b ) constituiriam advertências salutares sobre a pública administração, quando
tomadas por solicitação das Câmaras, Conselhos ou Intendências muni­
cipais” .
“ Em sua essência, esse era o novo organismo político sugerido por A m o lfo
Azevedo, em dezembro de 1910” .
“ Pretendia, com ele, assegurar maior continuidade no governo da República,
cuja ação via-se sensivelmente prejudicada pela curta duração do mandato presi­
dencial. Com o acentuou em discurso pronunciado em 1912, o Conselho viria man­
ter ‘a unidade e a tradição conservadora na vida p olítica e administrativa da União,
pela constante, capaz e experimentada colaboração dos antecessores do presidente
da República em exercício’ , cujos atos poderiam ser ‘esclarecidos pelas luzes da
experiência e do conhecimento dos negócios públicos, adquirida e aperfeiçoada na
passagem pela suprema magistratura da Nação e ministra ias com a isenção, o
patriotism o e a elevação de vistas dos que não devem mais sofrer, no seu critério
e integridade, os embates e influências da ambição e dos interesses secundários’ ” .
A fon so Arinos de M elo Franco, em Um Estadista da República, registra a
iniciativa de A m o lfo Azevedo.
“ N o ano de 1910 o paulista A rn olfo A zeved o apresentava projeto criando na
capital do país um Conselho de Estado, com o nome de Supremo Conselho da
República, incumbido de deliberar, mediante consulta, sobre assuntos p olíticos e
administrativos. I
Essa iniciativa do deputado de Lorena foi, talvez, o primeiro ensaio de alarga­
mento dos quadros estreitos do presidencialismo de 1891, no sentido de fornecer
ao Poder Executivo instrumentos de ação que lhe facilitassem os encargos cada
vez mais absorventes, em virtude das transformações do Estado moderno.
Um Executivo forte, com múltiplas atribuições (seja, aliás, parlamentar ou
presidencial), necessita sempre desses órgãos especializados, distintos d o Congresso
ou do Parlamento, que o auxiliem na sua rude tarefa.
A origem dos Conselhos de Estado prende-se exatamente à necessidade que
sentem os chefes únicos do governo de distribuir com pessoas categorizadas, se não
as responsabilidades do poder, pelo menos o exame das questões técnicas.
Em França o Conselho d o R ei fo i o antepassado direto do organismo a que
Napoleão, sob o nome de Conselho de Estado, atribuiu tão altas funções.
Suprimido pela Restauração, restaurado pela Monarquia de Julho, mantido
pela segunda República e pelo Segundo Império, fo i o organismo francês que mais
de perto influenciou o nosso Conselho Imperial.
Contra ele se erguia o preconceito liberal de que era um instrumento conser­
vador; por isso fo i dissolvido pelo A to Adicional, sendo depois reconstituído pela
lei de 23 de novembro de 1841.
O B R A S IL E O PO D E R M O D E R A D O R 51

A hostilidade latente no Império contra o Conselho de Estado provinha


do critério p o lítico da sua composição e do caráter p olítico das suas atribuições.
Modernamente, por causa das transformações do Estado acima referidas,
essa significação política dos Conselhos vai cedendo lugar à sua importância técnica
e administrativa.
A Constituição republicana de 1934, seguindo a linha do constitucionalismo
moderno, já abre as portas a esse tipo de organismos, e a de 1946 procede da mesma
forma.
Nos outros países providos recentemente de leis constitucionais observa-se
a mesma tendência de criação de órgãos de auxílio aos três poderes clássicos.
Foi com a sua habitual tolerância para com a evolução das instituições p o lí­
ticas que M elo Franco defende, no seu parecer, a constitucionalidade da criação de
um Conselho de Estado no regime de 1891. Versando no direito americano, não lhe
repugnava a aceitação de soluções novas que fizessem progredir o presidencialismo
de acordo com as necessidades históricas.
Depois de assentar a perfeita compatibilidade do Conselho com o regime
republicano, sentindo com o sentia a marcha do constitucionalismo contemporâneo,
expõe com simpatia o papel do Conselho de Estado imperial, mostra com o o insti­
tuto não repugnava à índole da política latino-americana, indicando os vários
países do Continente que o tinham adotado.
Term ina apresentando várias emendas que são incorporadas, pelo autor do
projeto, a um substitutivo que oferece.
O projeto não logrou ser transformado em lei. A ele se opunha a mentalidade
rotineira daquela geração ainda aferrada às fórmulas rígidas da separação dos
poderes” .
Se estivesse funcionando no período da revolução de 31 de março o Conselho
de Estado, teria ele de ser extinto: três ex-presidentes foram cassados, ministros do
Supremo Tribunal Federal foram aposentados compulsoriamente, e numercsos
senadores e deputados foram cassados, sendo os seus direitos políticos suspensos.
Essas punições não ocorreram no Império. O primeiro Conselho de Estado elaborou
a Constituição. Em 7 de abril D. Pedro I abdicou, assumindo o governo a Regência,
que, por A t o Adicional, extinguiu a sábia instituição. F o i lógica a Regência. Repú­
blica “ avant la lettre” , não poderia conservá-lo. Decretada a Maioridade de
D. Pedro II, fo i instituído, de novo, o Conselho de Estado. Pela segunda vez,
a 3 de maio de 1841, abrindo a 4? sessão da 4? Legislatura, dirigiu-se o Imperador
à Assembléia Geral, e chamou a atenção dos legisladores para a necessidade
de um Conselho de Estado que ele pudesse ouvir em todos os negócios graves,
e, principalmente, nos relativos ao exercício do poder moderador. O “ cérebro
da monarquia” , com o o chama João Camillo de Oliveira Torres fo i a instituição
que apoiou o poder moderador em todas as grandes questões do segundo reinado
com o já havia fe ito no prim eiro reinado. O decreto n9 1 de 15 de novembro
de 1889, decreto mais devastador do que um furacão, extinguiu-o. Sua falta,
com o a do poder m oderador, se faz sentir até hoje.
O imperador exercia, segundo a Constituição, o poder executivo. Mas, a partir
52 O PO D E R M O D E R A D O R

de 18 de novembro de 1847, quando Manuel Alves Branco voltou ao 79 Gabinete


do Im pério, criou-se a figura do presidente do Conselho, e este veio a ser o poder
executivo do regime, ou, para sermos mais exatos, o braço executivo do poder
supremo, que era o imperador. O segundo visconde de Caravelas e conselheiro de
Estado inaugurou o governo de gabinete, que subsistiu até Ouro Preto, em 15 de
novembro de 1889. O rei passou a governar através do gabinete. N ão tivemos
parlamentarismo à francesa, mas uma espécie original de governo de gabinete,
em que a ascensão ou queda do Conselho de Ministros não dependia da confiança
da Câmara, mas do interesse da nação, que o imperador interpretava. Houve crises
entre o imperador e os Conselhos de Ministros, por não terem sido estes regular
mentados. Funcionaram institucionalizados, naturalmente, durando d o 79 ao
369 gabinete. Enumera João Camillo de Oliveira T orres14 a preferência presidencial,
que optou pela Fazenda 16 vezes, pela pasta do Im pério 4 vezes; Justiça, Guerra
e Estrangeiros, 2 vezes cada uma, e Marinha e Agricultura uma cada. Um dos
grandes nomes do império, Lafayete Rodrigues Pereira, fo i presidente do Conselho
e Ministro da Fazenda, assim com o Ouro Preto, Saraiva e João Alfredo. As atribuições
do Conselho de Ministros eram múltiplas. Sua form ação obedecia à homogeneidade
partidária e afinidade entre o presidente e seus companheiros, e daquele com o impe­
rador. O gabinete funcionava com o um grupo secundário integrado, segundo a nomen­
clatura sociopsicológica contemporânea.
O Senado Imperial vitalício representava a tradição. O senador pertencia à
Câmara Alta, com o membro da “ classe p olítica” , em que, com o acentua João
Camillo de Oliveira Torres,15 contavam os “ interesses nacionais” . “ Ser senador
do Im pério constituía o supremo anelo dos homens do antigo regime” , diz A fon so
de Taunay.16 Enquanto a Câmara dos Deputados era eleita por quatro anos, durando
cada sessão legislativa quatro meses, o Senado, vitalício, acolhia em suas cadeiras
os nomes mais ilustres do país. Os senadores eram eleitos pelas províncias. A
República preferiu seguir o exem plo americano, também no caso do Senado, imi­
tando o que se faz nos Estados Unidos, com base no federalismo. O Senado era
um dos órgãos do poder legislativo, o qual, de acordo com a Constituição, era,
por seu turno, uma delegação nacional. Para Pimenta Bueno, a condição de vitali­
ciedade do mandato de senador se impunha, a fim de que ele bem satisfizesse a sua
missão. Considerava-o Braz Florentino um intermediário entre a Câmara eleita e o
imperador. A o Senado cabia ser tribunal privativo dos membros da fam ília impe­
rial, dos ministros, conselheiros, senadores e deputados;,cabia, igualmente, convocar
a Assembléia se o Imperador não o fizesse. Para ser independente — era o argu­
m ento de A n ton io Pereira Rebouças — deveria ser vitalício. O capítulo I I I da
Constituição trata do Senado. Lendo-o e meditando sobre ele, concordamos com a

14 João Camillo de Oliveira Torres. Democracia Coroada. R io de Janeiro, Livraria José


O lym pio Editora, 1957, passim.

15 Id., ib.
16 A fon so de E. Taunay. O Senado do Império. São Paulo, Livraria Martins, s/d, p. 19 e passim.
O B R A S IL E O PO D E R M O D E R A D O R 53

tese da vitaliciedade, com o a que mais consültava os interesses nacionais, de que


falaram vários autores. Os liberais sempre combateram a vitaliciedade do Senado.
Mas Saraiva, em carta aos dirigentes do partido liberal, defende-a, e a considera
necessária, por abrigar a oposição independente, excluída da Câmara pelos instru­
mentos do governo. Essa admirável instituição, à qual A fon so de Taunay17 dedicou
um livro m uito bem fundamentado, e mereceu dos juristas do império os maiores
louvores, fo i mudada com o golpe de 15 de novembro de 1889.
Se há um processo de formação eficiente de uma classe política, com o a do
patriciado romano ou da “ gentry” britânica, é o da aristocracia. Se deixarmos de
lado os preconceitos, se excluirmos da formação dessa classe os vícios que nela se
entranharam por numerosas razões, que seria longo historiar, verificamos que a
ascensão social, através do merecimento, institui um grupo social, que, pela sua
posição, está apto a servir à nação. O império não encontrou uma nobreza, com o a
entendiam os europeus. N a Europa, o feudalismo e as guerras foram, principal­
mente, os plasmadores da nobreza, que o rei, em reconhecimento, titulava. Basta
ter-se presente que os títulos são militares. A nobreza era, pois, uma fixação de ca­
ráter, um traço distintivo de uma constância no subir por vários motivos, dos quais
se destacavam os serviços à nação. Reconheçamos que a nobreza de França decaiu
e suscitou a onda demagógica contra ela, culminando na perseguição que lhe m ove­
ram os revolucionários durante a revolução francesa, os quais a perseguiam, can­
tando as canções “ Ça Ira” e “ La Carmagnole” , esta suja e escarnecedora. Em outros
países observou-se igual fenôm eno, em épocas diferentes. Não ignoramos que
houve não poucos abusos. Mas, o princípio subsiste: a nobreza é uma elite que
deve servir ao povo, e, com o as nações não sobrevivem sem uma elite dirigente, a
nobreza se constitui numa classe que, pela duração histórica, adota a tradição com o
forma de comportamento. A noção de elite é uma das mais complexas, porquanto
é muito fácil desfigurá-la. Toynbee ocupou-se extensamente das minorias domi­
nantes. É lê-lo e se convencer com seus argumentos.18 O Império procurou for­
mar a sua elite e chegou a fazê-lo, sem atribuir-lhe o direito à hereditariedade.
Instituiu a classe com os títulos, revestindo-a dos caracteres da dignidade, intrin­
secamente para o que a merecia. Se o monarca premiou homens ricos, com o os
barões, premiou, também, os bravos, com o o Duque de Caxias. Respondia — com o
responde todo o regime que não queira perecer — a um anseio da natureza humana,
o de ascender no plano social e político. O que havia no Brasil era uma espécie
de aristocracia, de exclusiva formação monárquica, de acordo com o § 11 do
artigo 102 da Constituição, que lhe reservava essa atribuição, nestes termos:

“ Conceder títulos, honras, ordens militares e distinções em recompensa


dos serviços feitos aos Estados, dependendo as mercês pecuniárias da

17 Op. cit.
18 Arnold J. Toynbee. A Study o f History. Londres, O x fo rd University Press, vol. V I I e
passim.
54 O PO D E R M O D E R A D O R

aprovação da assembléia, quando não estiverem já designadas e taxadas


por lei” .

Para João Camillo de Oliveira Torres19 os títulos de nobreza exerciam uma


ação sublimadora, com relação a tendências inferiores da atividade política. Temos
visto que, não raro, a política “ é um negócio sujo” . A classe nobre ou aristocrá­
tica — pois ela participava do governo, direta ou indiretamente - procurou eximir­
-se de se mesclar com as sujidades políticas. Daí, a floração admirável de homens
públicos durante o Império. Ademais da aristocracia titulada, o Im pério manteve
outras duas, a dos conselheiros e a dos senadores. Conselheiro com o senador eram
altíssimos títulos. Ainda hoje, vemos a disputa pelos títulos e a proliferação de
alguns, com o o de ministro, que de tão numerosos, obrigaram o prim eiro governo
emanado da revolução de 31 de março a limitá-lo pela Constituição.
Quem estuda o Brasil contemporâneo verifica que voltamos, de fato, ao
poder pessoal, com o não o teve Dom Pedro II, quando os presidentes de província
eram nomeados pelo chefe de Estado, com a variante moderna da chefia política
identificar-se com o presidente da República. Segundo a sabedoria dos provérbios,
se repelimos a natureza, ela volta a galope. É o que estamos observando. O Brasil
fo i modelado, durante três séculos, por idéias, sistema, filosofia política, convic­
ções religiosas. A dotado outro sistemâ, que deu estupendos resultados onde teve
origem, ele aqui não vingou. Pouco a pouco a realidade fo i conduzindo os homens,
e acabamos no presidente-monarca. Vimos, áurante a crise da moléstia do presi­
dente Costa e Silva, que o A lto Comando desempenhou o papel de Conselho de
Estado. As Forças Armadas desempenharam, de fato, o papel de poder moderador.
Durante o governo Castelo Branco, o ministro R ob erto de Oliveira Campos foi,
também, de fato, o primeiro-ministro, e n o governo Médici o ministro Delfim
N eto foi, igualmente, de fato, o primeiro-ministro. Esses sucedâneos comprovam
a nossa tese, que as instituições não devem ser impostas aos povos.
Elas brotam, naturalmente, de seu seio, com o brotaram nos Estados Unidos
e na Suíça. Fora daí, a luta entre disponibilidade e indisporiibilidade do poder
é constante, com o constante é a luta entre legitimidade e sua contestação, no caso
do poder político.
Na linha dessas considerações, procurando extrair lições do passado, do mais
rem oto ao mais recente, devemos perscrutar o futuro do Brasil, e prescrever-lhe
receita, ainda que não venhamos a ser atendidos. Importa-nos o rigoroso cumpri­
mento do dever, e deste nos desincumbimos.

19 O p. cit.
o poder moderador e
o vazio do poder

Nunca o futuro nos preocupou tanto com o hoje. Pode-se dizer que, sócio-
-psicologicamente, já entramos no ano 2000. N ão fom os invadidos por marcianos,
mas fom os, inegavelmente, invadidos por inúmeros profetas. Um sem-número
de indivíduos se erige em áuspice, e desenrola diante de nós, conform e a im agi­
nação de que seja dotado, um elenco maior ou menor do que nos aguarda no
futuro, no mundo e no Brasil. Duas palavras, futurologia e prospectiva, estão
fazendo carreira triunfal. Deixando de lado a primeira, futurologia, a nosso ver
um barbarismo, tomamos a segunda para matéria destas reflexões. Que nos.conste,
fo i Maurice B londel1 o primeiro a usar o vocábulo — prospectiva, no sentido
em que vamos empregá-lo: “ Pensamento ou característica de pensamento, enquanto
orientado no sentido de futuro” . Seu discípulo, Gaston Berger, lançou-o, porém,
em circulação, fora dos limites estreitos dos meios filosóficos, e ele adquiriu logo
maioridade e autonomia. Que é, porém, a prospectiva, se a destacamos da d efi­
nição de Blondel? É a ciência que tem com o objeto preparar o futuro, a fim de
que o hom em não seja deixado no acaso. Sem se desabrigar do providencialismo,
que atua na história, a prospectiva valé-se da liberdade do homem, para que ele
não marche no futuro por tateamentos. É um processo, no sentido em que
devemos tomar a expressão, de fenôm eno multilateralmente visto e vivido.

1 Maurice Blondel. L'Action. Paris, F é lix Alcan, 1893, passim.

I.
56 O PO D E R M O D E R A D O R

A s mudanças sociais, que se operam hoje — fase de transição para todos


os povos — são processos, através dos quais diagnosticamos a agonia da civili­
zação contemporânea, mas podemos, ao mesmo tem po, vislumbrar, amparados
nos elementos da prospectiva, a sua ressurreição. Se evitarmos as armadilhas da
dialética, com a qual se pode confundir o processo, veremos que os grupos sociais
estão, permanentemente, sujeitos a processos, assim com o os indivíduos, embora
tenham eles limites, um dos quais o da estabilidade no seio da espiritualidade
transcendente. O agente ativo no processo social, com o diz Sorokin,2 introduz-
-llie a sua marca, ainda que os controles sociais — modelos culturais, sím bolos
sociais, significações coletivas, valores, ideais e idéias que vencem antinomias,
tensões e conflitos que lhes são próprios — o condicionem a padrões contra os
quais é quase impossível lutar, difícil opor-se. Nesse jogo, a prospectiva nos ajuda
a marchar ao encontro do futuro, com relativa segurança desde que as leis supe­
riores do espírito sejam observadas pelas sociedades, inclusive nos períodos de
mudança, com o este, de após-guerra e de ansiosa expectativa pelo advento
de novos tempos.
Vamos, entre descompassos, tentando repará-los. Cremos que esta pode
ser a nossa ideologia, dentre as ideologias, cuja vitalidade não está diminuída,
não obstante elas se substituam por outras, mais fascinantes. A prospectiva é
uma esperança, se bem usada. Basta a sua conceituação com o ciência, ou seja,
um corpo de regras objetivas que levam a um fim . Pela prospectiva estamos
habilitados a estender longos telescópios no vetor do futuro, fundando-se ela
nos sólidos alicerces do passado. Se, com o quer a prospectiva, o hom em é senhor
de seu destino, na ordem temporal, ele se libera, porém, marchando para o sobre­
natural. Historicamente, são as sociedades, nas quais a concepção materialista
da história ainda não prevaleceu, que estão conquistando a liberação ou a desalie-
nação. É o processo da prospectiva, para a comprovação de que é falsa tese do
materialismo histórico, falso o ateísmo, falsa a obturação da tendência humana
em face da temporalidade a ultrapassar. Não é, portanto, a prospectiva uma ciência
neutra. A importância do futuro e o destino do hom em em seu itinerário arreba­
tam-lhe essa característica, e fazem dela uma das mais importantes ciências
do nosso tem po.
Cremos que o nosso projeto humano para as sociedades humanas se inclina
para um sistema p o lítico onde as impurezas da história e a cupidez do homem
tenham menos peso do que nas sociedades de grandes desníveis, com o a maioria
delas, nesta altura do século. Estamos convencidos de que, nessa linha, a fé , a
educação proporcionada a todos, o uso dos direitos às liberdades da pessoa, a
elevação do padrão de vida dos povos pela ampliação da sociedade de consumo
podem libertar o homem, e, com ele, a Terra. A era tecnológica está pondo ao
alcance das sociedades contemporâneas uma cópia de bens com a qual não
contaram as sociedades dos séculos anteriores e, mesmo, as de uma parte deste.

2 P itiiin A . Sorokin. Society, Culture and Personality. N ova Y o rk , Harper, 1937, p. 342.
O PO D E R M O D E R A D O R E O V A Z IO D O PO D E R 57

N ío negamos que a miséria campeia, ainda, sobre a Terra, e que sua extinção
é tarefa sobre-humana, com os recursos de que dispomos. Mas, pela ciência da
prospectiva ou pela experiência dos fatos, do processo que elas têm diante dos
olhos, dos exemplos e dos oferecim entos da tecnologia, as sociedades contem­
porâneas, em fase de desenvolvimento, já sabem com o organizar o seu futuro
e alcançar os mesmos benefícios da civilização e da cultura, da técnica e do
engenho humano, dos quais outras gozam. Não ignoramos que os oprimidos se
revoltam, que os desesperados, milhões de inocentes que povoam o mundo, clamam
por pão, mas não ignoramos, igualmente, que não será avolumando o caudal da
revolução universal, esse processo de subversão contra o qual bracejamos, que
resolveremos os problemas sociais, os problemas humanos, os problemas do
homem em face de seu destino. Para revidar ao desafio do século, a extinção da
miséria e a elevação do hom em , as sociedades contemporâneas podem cair no
extremo oposto, divinizarem o consumo.
O hom em é o ser que pede mais, que quer mais do que o material. A civili­
zação está posta à prova, em nossos dias. Vem o-la agônica, debatendo-se em
estertores para sobreviver. Circulam em seu corpo toxinas fatais, com o o esqueci­
mento de Deus, o desrespeito à nação, o aviltamento da mulher, e outras. Mas
sempre latejam em seu seio forças que podem salvá-la. Estamos vivendo — acen­
tue-se — uma época de estranhas divinizações. Tombamos num novo paganismo,
o da era tecnológica, sem perceber que caminhamos para o trágico, isto é, para
o vazio dos destinos truncados. Seja qual fo r o regime econôm ico, adotado pelo
poder que governa uma sociedade, o hom em quer segurança, embora, com o acentua
Henri •G uitton3, seja ignorante de si mesmo. Mas, só a segurança não basta. A
segurança, os regimes concentracionários estão em condições de garanti-la, ao
preço da liberdade. É preciso mantê-la viva nas sociedades livres, em que o hom em
possa sentir-se, não um robô, espiritual e material, mecanizado, mas a pessoa,
com direito de participação na sociedade, o direito de crença, o direito de proprie­
dade, o direito de reunião, para a defesa de seus interesses e adoração de seu Deus,
iiobretudo, com o queria Chesterton, o direito de ter os próprios cabelos e de
lochar, quando quiser, a porta inviolável de sua casa. A té onde a prospectiva nos
acode nessa perscruta, diante do futuro? A té onde, perguntamos, se as sociedades
da abundância estão anunciadas e pululam os profetas em quantidade, pàra nos
advertirem de que, secularizada a História, todos os problemas estão resolvidos,
i-inbora saibamos que eles não estão resolvidos?
É pela ciência da prospectiva que devemos procurar reduzir as zonas de
incerteza, em que transcorre a vida das sociedades humanas. É por ela que devemos
tentar a ampliação das faixas de segurança, submeter a coordenadas racionais
iin sociedades, obra que só os governos esclarecidos, estáveis e duradouros, ampa-
indos em sólido sistema educativo e aparelho de difusão posto a seu serviço, podem
1’ llcazmente realizar. A era tecnológica não será anti-humana, nem se desumani-

' Henri Guitton. Maîtriser l’économie. Paris, Fayard, 1967, p. 20.


58 O PO DER M O D E R A D O R

zará, se, pela ciência da prospectiva, ela for conduzida no itinerário da liberdade
até onde a pessoa humana e a sociedade em que ela vive encontrem satisfação
aos seus lícitos e legítim os direitos. Aos fatalismos liberais, às improvisações fisio-
cráticas — ainda sobreviventes de uma era extinta —, à economia de mercado em
estado puro, à anarquia social, às crises políticas, engendradas pelos partidos de luta,
em sociedades que precisam de paz, deve opor-se, prospectivamente, o plano
histórico dos governos estáveis, das previsões econômicas, os equilíbrios sociais,
os patrimônios morais, sem cujo esteio as sociedades não subsistem.
A edificação da ordem pela previsão a curto e a longo term o, por um
com p lexo de decisões que limitam, mais ou menos, o campo das evoluções e que
se articulam, de maneira mais ou menos coerente, sobre projetos de evolução
considerados com o prováveis ou desejáveis, eis o problema, com o diz Paul
R icoeur.4 A ciência e a técnica dão saltos assombrosos, conferindo ao homem
novos poderes, novas forças, com o uso dos quais o seu dom ínio se amplia sobre
o m undo e os espaços siderais. Mas, acentua Bertrand de Jouvenel,5 papa dos
fu tu rib le s , quanto mais a sociedade está em mudança, mais duvidosa se torna
a validade futura de nossos conhecimentos atuais. 0 homem pode, com o uso
da razão, ordenar o futuro da sociedade, embora não penetre nos arcanos da
Providência. Repelimos o Estado totalitário, que se imiscui na vida de cada
indivídu o, mas entendemos que se deve admitir o Estado-Prospectivo, o que
prevê, não apenas na área econômica, mas em todas onde sua função deve fazer-se
presente na sociedade, a fim de preparar melhores condições de vida para seus
súditos.
Ciência e técnica provocam o homem contemporâneo a descobrir — se a
palavra é cabível — formas de governo e estruturas econômicas, com patíveis com
as descobertas e invenções, os engenhos postos à disposição da humanidade, o
amplo horizonte da cultura desvendado. O presente e o futuro próxim os do
mundo aconselham a reform a das concepções políticas, que se distanciam da
situação atual do hom em e das proposições científicas da prospectiva. A revisão
deve ser completa. Não será com o sufrágio universal que se organizarão as nações,
nem se constituirão governos legítim os, assunto este objeto de exame em outro
capítulo. Na época da propaganda organizada, das comunicações de massa, pelo
cinema, a televisão, o rádio, o jornal, as revistas, os posters, o hom em torna-se
um autôm ato dirigido, segundo os mecanismos naturais mentais sugestionados pela
máquina publicitária. As legendas e os mitos, criados pela propaganda, deturparam
o significado do sufrágio universal que, por isso mesmo, não existe em estado
puro. A guerra da informação, com o diz MacLuhan,6 tomou-se guerra total. As
preocupações com o mundo e o futuro são, portanto, admissíveis. Inscrevem-se
na irresistível tendência humana a afuroar o ignoto. A lei humana do menor

4 Paul Ricoeur. “ Prévision et C h oix” , in “ Esprit” , fevereiro de 1966, n? 2, passim.


5 Bertrand de Jouvenel. L ’A rt de la Conjecture. M ônaco, Éditions du Rocher, 1964, passim.
6 M arshall MacLuhan. The medium is the message. N ova Y o rk , Penguin Books, 1967, passim.
O PO D E R M O D E R A D O R E O V A Z IO D O PODER 59

esforço, deve corresponder a prospectiva com a organização política e a organi­


zação social. E dessa maneira que aquela lei será cumprida. Nesse quadro, como
devemos encarar o nosso país?
Segundo Bertrand de Jouvenel,7 a prospectiva econômica se faz hoje em dia
pelos meios clássicos. Assinala-se no mundo um m ovim ento sincrônico de prospec­
ção econômica. A ciência e a arte da economia deixaram de ser obra do acaso,
para se inscreverem no quadro da prospecção, muitas vezes rigorosa. Se dermos
um balanço na p olítica econômica brasileira, veremos que, não obstante a mania
de planificação e dos planos inacabados, ela se vem tornando cada vez mais técnica.
Está longe, ainda, de ter atingido a perfeição, mas, na sua globalidade, obedece
a imperativos tecnológicos e científicos, graças aos quais os grandes problemas
da economia brasileira — dom ínio da inflação, aumento do Produto Interno Bruto,
elevação da renda “ per capita” , justiça fiscal, aceleração do desenvolvimento
por intermédio do uso de vários mecanismos, dos quais o mais eficiente é o dos
incentivos — vão sendo enfrentados e resolvidos, embora parcialmente. Sobretudo
depois da revolução de 31 de março, a política econômica vem ganhando tecni-
cidade, seus responsáveis abandonaram a.improvisação, que caracterizou a adminis­
tração dos negócios econômico-flnanceiros do país, praticamente até à queda
do governo João Goulart, com algumas poucas exceções na história do nosso
passado.
Onde a prospectiva parece estar em recuo - e o mal, com o acentua Bertrand
de Jouvenel é quase de todas as nações — é na política. Se a prospectiva econ ô­
mica fe z grandes progressos, não a vemos em política. A o contrário, todos os
Indícios a respeito são desanimadores. A Constituição em vigor, na sua quase
totalidade reformada, não inovou, senão no fortalecim ento do executivo. Do
ponto de vista da prospectiva, o sistema p o lítico brasileiro continua a bracejar
crises. Basta, para exem plificá-lo, a inserção no texto da Constituição - artigo
182 — da vigência do A to Institucional nó 5 e os demais Atos anterior e posterior­
mente baixados. A política brasileira tem transcorrido sob signo de antiprospec-
tiva. Ninguém, que serenamente refletisse sobre a eleição do presidente Vargas,
em 1950, deixaria de prever que sua volta iria agravar o processo p o lítico brasi­
leiro. A eleição do presidente Kubitschek, igualmente, deveria suscitar a mesma
conjectura. E a superstição — que prefiro, a respeito — à legalidade, em 1961,
quando um m ovim ento nacional defendeu o direito de ascensão do vice-presidente
João Goulart ao poder, fatalmente acabaria num golpe, que o deporia do>governo.
A revolução de 31 de março fo i bem servida pelos técnicos econômicos.
Mas, infelizm ente, não se abasteceu de filósofos, cientistas políticos, historia­
dores sem preconceitos, que a enquadrassem no roteiro da prospectiva. A crise
cxsuda do corpo da nação há várias décadas. A revolução de 31 de março, que
tantas reformas realizou na área econômica, não se voltou — ou não pode
voltar-se — para a política. A prospectiva não chegou até ao poder do Estado

Bertrand de Jouvenel. Op. cit.


60 O PO DER M O D E R A D O R

com o tal, e, se não vier a ser admitida nesse recinto, podemos estar certos, desde
logo, que a crise continuará a porejar do seio da nação, e o hom em brasileiro
não gozará fi paz a que tem direito. Vejam os com o, baseando-nos na ciência da
prospectiva, podemos fazer um retrospecto histórico do Brasil, e, visto o vazio
do poder, projetarmo-nos para o futuro.
Abolidas as instituições imperiais:
- poder moderador,
- Conselho de Estado,
- Conselho de Ministros,
- Senado vitalício,
- a elite dirigente,
abriu-se a disponibilidade do poder. Ocupou-a o marechal D eodoro da Fonseca,
em nome da revolução que acabava de destronar um imperador e instituir outro
regime em lugar do monárquico. Iniciava-se, naquele dia, com o dissemos, úm
rosário de crises. Os propagandistas da República não cogitaram do problema
da organização do Estado, nem do que fariam com a vitória, quando esta lhes
caísse nas mãos. Queriam proclamar a República, depondo o imperador; não
gostavam do conde d ’Eu, não pretendiam ver no trono uma mulher, a beata, como
diziam. Tudo são preconceitos. Mas eles prevaleceram, naquelas circunstâncias,
com o em outras; na História do Brasil, e de todos os povos. Tornaram-se vito ­
riosos, para espanto do p òvo brasileiro, até mesmo para os mais esclarecidos,
com o. o conselheiro Ayres, que fo i ao Passeio Público, muito cedo, sem atinar
com os rumores, os boatos e vagas alusões a “ Campo de Sant’Ana” , “ levante” ,
“ Marechal D eodoro” e outros fatos do dia, um dia de novem bro, que deveria
ser igual a outro qualquer na cálida cidade de São Sebastião do R io de Janeiro.
A disponibilidade do poder é um vácuo terrível para as nações. Os revolu­
cionários de 1789, na França, caminharam, desde a convocação dos Estados Gerais,
para o vácuo do poder, chegando à eliminação física do rei, que alargou as dimen­
sões do hiato, fechado, mais tarde, por Napoleão. A ascensão de Kerensky, na
Rússia, não significou, com o ficou provado pela História, uma solução para o
problema p o lítico russo. A o contrário, com a queda do tzarismo, incom patibi­
lizado pela propaganda comunista, com a minoria dominante, que tinha o controle
das grandes cidades, a disponibilidade do poder tornou-se maior. Kerensky não
conseguiu preenchê-la. Essa disponibilidade, as instituições políticas devem
prever, e, com elas, os líderes políticos. Os Estados Unidos não conheceram, ainda,
nenhuma disponibilidade do poder. Da guerra da Independência até hoje, mesmo
nos momentos cruciais de sua história, o poder nunca ficou disponível. Foi
ocupado, muitas vezes, por homens sem fision om ia , m edíocres figuras de sua vida
pública, essa regra da história política americana, com o acentuou B ryce,8 mas
nunca se declarou a disponibilidade do poder nos Estados Unidos. Esse, entre
outros, um dos motivos por que os Estados Unidos puderam avançai no roteiro

8 James Bryce. The American Commonwealth. Op. cit., passim.

Â
O PO DER M O D E R A D O R E O V A Z IO D O PO D E R 61

do desenvolvimento, sem os empecilhos que atravessaram o itinerário de outras


nações. Em 1958, o poder tornou-se disponível, em extenso, na França. Se já
vinha ele larvadamente disponível, sob a I V República, com a insurreição de Argel,
a disponibilidade tornou-se plena. F oi quando chamaram De Gaulle, o homem
que encerrou a fase de disponibilidade, e, durante 10 anos, reinou com o um
presidente-monarca, restabelecendo o valor da moeda, reerguendo a economia
francesa, realizando, em suma, a obra que os agentes do poder indisponível fazem,
quando mantêm a autoridade.
Com o marechal D eodoro o poder deixou de ser disponível, ao ser procla­
mada a República, mas, de fato, continuou a disponibilidade, sob a form a de
instituições que, desde a fundação do novo regime, divorciaram-se do “ país-real” .
O primeiro a ter decepção fo i o proclamador da República. Considerando-se ofen ­
dido, em novem bro de 1891, poucos meses depois da promulgação da primeira
Constituição republicana, demite-se — em 23 de novem bro — ascendendo ao poder
o vice-presidente, o insidioso, o solerte marechal Floriano Peixoto, antigo coman­
dante das armas do R io de Janeiro. Floriano agiu no sentido de preencher a disponi­
bilidade do poder, e o fe z com mão de ferro. A giu com implacável energia, contra
todos os seus inimigos, contra as forças que o pretendiam derrubar. Mas, ao passar,
em 15 de novem bro de 1894, o governo a seu sucessor, o presidente Prudente
de Moraes, a disponibilidade havia sido, aparentemente, superada. A crise subsistia,
crise de poder, crise de autoridade, crise de legitimidade, ^rise política, em todos
os sentidos. Com Prudente de Moraes a situação continua a mesma, não obstante
a extrema luta do presidente para vencê-la. A Constituição de 1891 era um monu­
mento de liberalismo; introduzira em nação unitária o federalismo, levando-o
a extremos, que não se conheciam no seu m qdelo de origem, os Estados Unidos.
O que existia, na realidade, era um conjunto de Estados teoricamente autônomos,
ligados pelos vínculos da competência constitucional da União ao poder federal.
Mas, em 1900, Am aro Cavalcanti, que fo i uma das grandes figuras da primeira
República, observava que a União se tornara poder ausente para os Estados. Aquela
e estes não colaboravam na prática das instituições federais. Chegamos ao cúmulo
de ter municípios e Estados contraindo empréstimos externos, sem autorização
federal, empréstimos que vieram a ser pagos pela União. Em 1922, por exem plo,
a dívida dos Estados e municípios era de 50% da dívida total da nação brasileira.
Por aí se vê a anarquia introduzida no país pelo regime federalista, de inspiração
alienígena, e pela falta de visão dos responsáveis pelb novo regime, ao terem
de preencher a lacuna da disponibilidade do poder. ,
Com poder disponível no todo, ou em parte, é impossível governar. A dispo­
nibilidade parcial cojitinuou, durante os primeiros quadriénios do regime republi­
cano. F o i Campos Salles quem se deu conta que seria d ifícil governar com a
Constituição federalista, onde a competência da União limitava os poderes presi­
denciais, ao ponto de tom á-lo praticamente disponível. Revisionista, o presidente
Campos Salles verificou, no entanto, que não lhe seria possível obter o que desejava,
e se voltou para outra solução, a “ política dos Estados” , mais conhecida na época
com o a “ p olítica dos governadores” . O presidente instaurou, de fato, um regime
O PO D E R M O D E R A D O R
62

parafeiidal que, com apoio nos governadores do Estado, barões para a circuns-
tânCja, lhe deram o apoio de que ele precisava, para exercer, até onde lhe fosse
possível, o poder presidencial. Graças a essa estratégia política, Campos Salles
teve condições para sustentar a política econômico-fmanceira de Joaquim
j^yjtinho, que restabeleceu o valor da moeda e saneou as finanças da União. Mas
teve torcer a Constituição, e deixá-la praticamente de lado; teve de lançar
m jj0 de uma form a nova, esse parafeudalismo, sobre o qual concentroou a sua
disposição de dirigir os destinos do país, numa fase ainda conturbada da nossa
História- Cada presidente ou governador — conform e o Estado — era o chefe
político estadual. N o estilo parafeudal, insistimos, ainda, Campos Salles contava,
sempre’ com as f ° rÇas fiéis ao governo, dispondo da maioria de que precisava.
para a execução de seu programa de governo. A disponibilidade do poder estava
contida- N ão a disputavam forças desleais, oü adversárias, ou a oposição, que
era facilmente, freada pelos chefes políticos estaduais. Se o “ país legal” não
conStituiu tropeço para Campos Salles, o “ país real” pode marchar desimpedido.
A obra de Murtinho, que fo i enorme, para a época, realizou-se unicamente por
esse motivo, a do bom senso, do pragmatismo, diremos, no bom sentido, do opor­
tunismo de Campos Salles.
O sucessor de Campos Salles, o paulista Rodrigues Alves, o últim o presidente
nascido em São Paulo, encontrou a nação em ordem. Seu governo, um dos melhores
,ja gepública, partiu de boa base, a estabilidade da moeda, a econom ia restau­
r a , as finanças recuperadas, as facções políticas em relativa paz. D aí por diante,
a ^jSponibilidade do poder ficou recessiva; os presidentes governaram, tanto quanto
possível, à maneira de Campos Salles, embora sem a ostensibilidade do conúbio
entre o poder supremo da República e o poder dos presidentes de Estado. Os
casos de contestação do poder não chegavam ao cerne da indisponibilidade, nem
mesfl10 durante a campanha civilista, quando o verbb de fogo de R ui Barbosa
desabou sobre a candidatura Hermes da Fonseca e a participação dos militares
na política ativa.
A década em que a disponibilidade e a indisponibilidade entram em conflito
fo i a de 20, quando Epitácio Pessoa ascende ao poder, em lugar de Rodrigues
A jves, que falecera no R io, em 16 de janeiro de 1919, sem ter tom ado posse da
preSidência. Inflama-se, naquela década, o rastilho do inconformismo, da contes-
taçjo, da luta contra o poder, que revolucionários de vários matizes — naciona­
lista uns, comunistas embrionários outros, simplesmente políticos desgostosos
ou frustrados estes, idealistas, embora poucos, aqueles - levavam por tod o o
pai'S. Estava lançada a sorte do sistema e selado o destino de uma época. Poucos
angs depois, uma década somente, encerrava-se o ciclo da primeira República,
da Constituição de 1891, do maior desquite já assinalado na História do Brasil
entre os textos escritos e a realidade dos fatos. Disponível o poder, com a queda
do presidente Washington Luis, ocupou-o por 9 dias uma Junta Militar, presidida
pejo general Tasso Fragoso. Em 3 de novembro de 1930, Getúlio Vargas iria iniciar
a ]Tlais longa fase de detenção do poder e de ocupação da cena política republi­
c a em nosso país. Com a sua ascensão à presidência da República, marcar-se-ia
O PO D E R M O D E R A D O R E O V A Z IO D O PODER 63

um “ toum ant” em nossa história. P o lítico desde a juventude, adepto, sempre,


de regimes ditatoriais, fora, paradoxalmente, apoiado pelos conservadores do
Partido Dem ocrático, de São Paulo, um partido fundado em 1926 na Chácara
do Carvalho, residência do conselheiro A n ton io Prado, sumo-sacerdote do conserva­
dorismo paulista. N o poder, G etúlio Vargas procurou imprimir a todos os seus
atos a nota pessoal. O p o lítico matreiro manobrava, sempre, para ficar. Não
vamos narrar as fases de seu governo. Mas acentuaremos que o perigo da disponibi­
lidade do poder continuou a rondar o governo Getúlio Vargas, até que em 10
de novembro de 1937 o próprio presidente vibrou o golpe de misericórdia nas
instituições então vigentes, derrubando-as e outorgando uma Constituição, a que
conferia ao presidente todos os poderes para fazer e desfazer o que bem enten­
desse. Favorecido pela guerra, não chamou o povo a um plebiscito, que lhe teria
sido favorável, tamanho era o poder da máquina estatal para conduzir vontades
e calar resistências.
Com a Constituição de 1937, o velho federalismo morreu e fo i, mesmo,
extinto, numa cerimônia em que o presidente queimou, uma por uma, as bandeiras
dos Estados. O Estado Nacional, títu lo do livro do professor Francisco Campos,
era instituído sob a form a unitária. Embora continuássemos a ser Estados Unidos
do Brasil, na realidade éramos uma República do Brasil, na qual prevaleciam os
decretos-leis, porquanto não se com pletou a organização do Estado. O presidente
Vargas deixou-se ficar no discricionarismo ditatorial, sem prosseguir na linha
que o jurista Francisco Campos traçara para o "Estado Nacional. Mas, o poder
não estava disponível. Voltam os à “ política dos governadores” , ou “ dos Estados” ,
por outras formas, através da nomeação de interventores, diretamente subor­
dinados ao presidente da República. Sob vários aspectos, o Estado Nacional
procurava ajustar o “ país real” ao “ país legal” . N ão fosse o presidente Getúlio
Vargas um p o lítico provinciano, nutrido de algumas luzes culturais, de inspi­
ração castilho-positivista, e, provavelmente o regime instituído com fundamento
na Constituição de 1937 pudesse sobreviver, garantindo as liberdades democráticas
e, com elas, o desenvolvimento do país. Mas, a Constituição era, apenas, um
tabique para o presidente Vargas, o tabique entre a despensa de suas idéias e a
fachada legal do país. Com o o chefe do governo não soube institucionalizar o
regime, nem vencer a ameaça de disponibilidade que rastreava seu governo, através
da contestação de sua legitimidade, fo i deposto em 29 de outubro de 1945.
Declarada, mais uma vez, a disponibilidade do poder, esta fo i preenchida pelo
presidente do Supremo Tribunal Federal, e posteriormente pelo presidente eleito
em 4 de dezembro de 1945, marechal Eurico Gaspar Dutra. A Constituição de
1946 ostentou, desde os debates dos quais ela resultou, os erros, as falhas, que
iriam concorrer para sua revogação. O jurista Seabra Fagundes arguiu-a de mal
feita. Criticamo-la numerosas vezes. Elaborada contra a Constituição de 1937,
injustamente confundida com a pessoa do presidente Getúlio Vargas, que não
a cumpriu, mas apenas usou os poderes extraordinários contidos no artigo 180,
um artigo constante do texto para m omentos de exceção, a Constituição de 1946
retomou o federalismo, deixou de atender aos imperativos da disponibilidade
64 O PO D E R M O D E R A D O R

e indisponibilidade do poder, e acabou revogada pelo A to Institucional n<? 1,


baixado pela Revolução de 31 de março, em bora sem sê-lo expressamente. Os
A to s que se lhe seguiram, a Constituição de 24 de janeiro de 1967 e a Emenda
Constitucional nP 1 de 30 de outubro de 1969 — mais uma Constituição nova,
do que uma emenda — confirmaram que os líderes da revolução não tinham
confiança no sistema federal, na multiplicidade de partidos, na harmonia e interde­
pendência de poderes, com o, ainda, apregoam os abencerragens da velha dem o­
cracia. Optaram pela form a da qual resulta a aproximação do “ país real” ao
“ país legal” , que é a do presidente-monarca, com o fo i na França o general De
Gaulle, com o foram , em parte, os presidentes Castelo Branco, Costa e Silva e
Em ílio Médici e os seguiram na mesma linha os seus sucessores militares. O poder
não está disponível; mas voltamos à política na qual o comando é unitário,
emanando do presidente da República. N ão podemos, evidentemente, prever
o futuro; não nos lançamos a perigosos exercícios de futurologia. Ficamos na
sucessão estabelecida pelos militares que assumiram a responsabilidade do poder
a partir de 1964. O futuro confirmará se prevalece ou não a nossa tese.
Todos os fatores que entram na form ação teórica do Estado m oderno estão
sendo observados, no sentido unitarista das diretrizes políticas. Podem nos pedir
solução, já que aplicamos o ferro-em-brasa da crítica às instituições brasileiras.
Somos de opinião que a restauração — ou, se se quiser a instauração — do poder
moderador imprimirá à p olítica brasileira o rumo com o qual se compadecerá
o desenvolvimento, menos inarmônico do país, e se preencherá, institucional-
mente, o vazio de poder no Brasil. Tem os vivido há um século intoxicados por
alguns preconceitos, um dos quais o que se armou em 1870, data do Manifesto
Republicano, contra a organização monárquica do Estado. Opiniões superficia-
líssimas, tão superficiais que nos dispensaríamos de citá-las, não fossem perfilhadas
em esferas responsáveis da inteligência brasileira, arguem de superada a idéia,
quando a História nos prova e comprova que não há regimes definitivos no mundo.
O único argumento que aceitaríamos seria o da incompatibilidade do sistema
monárquico de governo com a desordem que se entranhou na civilização contem ­
porânea, e abala até mesmo as mais sólidas instituições, com o a Igreja, cujo
princípio, o governo monárquico, e cuja autoridade, a do Papa, são diariamente
contestados. Mas devemos procurar soluções, com o o m édico que tenta salvar
o doente enferm o, confiado aos seus cuidados. Está doente o mundo. Dentre
cento e cincoenta e uma nações, se adotarmos a classificação de Seymour
Lipset,9 é democraticamente estável apenas uma dezena: Inglaterra, Canadá,
Austrália, N ova Zelândia, Estados Unidos — países de língua inglesa, matrizados
pela velha A lbion —, Suíça, Bélgica, Holanda, Suécia, Noruega, Dinamarca, Japão.
Quantas mais? A França está dividida pela hostilidade de correntes políticas que
a mantêm no pior dos climas políticos, a da tensão sem paradeiro; a Itália é, pratica­
mente, uma nação sem Estado, tão fraco é na península o poder da condução

9 Seymour Lipset. The political man. N ova Y o rk , D oubleday, 1963, passim.


O PO D E R M O D E R A D O R E O V A Z IO DO PODER 65

dos negócios públicos; a Alemanha Federal ainda não cicatrizou as feridas da


guerra, e nenhum historiador, cientista p o lítico ou simples estudioso de suas
instituições lhe pode predizer o futuro; a Espanha ensaia, ainda insegura nos
difíceis equilíbrios de engatinhamento, o regime democrático eurocidental, apoiada
na autoridade e legitimidade histórica da monarquia instaurada e, com a renúncia
do conde de Barcelona aos seus direitos dinásticos, restaurada; Portugal braceja
o mais incerto dos destinos; as nações cativas do comunismo soviético são mantidas
sob dura tirania, onde não se reconhecem os direitos da pessoa. Essa a Europa.
Na faixa tropical da Terra, não há uma só democracia estável. Israel? Mas
Israel é um Estado de fato teocrático, auto-investido de um destino messiânico,
a reconstrução do antigo reino judeu, sob a form a atual de república parlamentar.
A Costa Rica? Mas a Costa Rica é um pequeno país, de 50.700 km2 e 2.000.000
de habitantes, sempre obediente à liderança de José Figueres. Sem associarmos
o determinismo geográfico à instabilidade dos regimes, voltamos a tese já esposada
em livro,10 a do desajustamento entre democracia e trópico, ao qual se deve
adaptar outro sistema de governo. Se nos voltarmos para a Ásia, do Oriente M édio
ao Extrem o Oriente, não encontramos um só regime democrático-eurocidental.
Exceção única, o Japão, mas nesse caso se trata de monarquia carismática. A
índia saiu da férrea ditadura da Indira Gandhi, mas não passa de uma imensa
nação, onde brotoejam tantos problemas, onde as peculiaridades de sua civili­
zação e cultura a diferenciam tanto das demais nações do mundo, que, a rigor,
não se sabe com o os seus governos vão conduzi-la, com seus milhões de habi­
tantes, sua renda baixíssima, sua crença religiosa, suas castas, ainda subsistentes,
e os fatores originais que a colocam com o nação única entre outras. A África é
um pululante bosque de tribos.
T o yn b ee11 fala das perturbações latentes produzidas nas almas indianas
pela força alienígena ocidental. D iz T oyn b ee12 ainda que o Ocidente tem atacado
o mundo. A revolução com o processo de mudança, de subversão de valores, essa
é ocidental; fo i engendrada pelo nominalismo e suas derivações. Foram Descartes,
Lutero, Rousseau; foram Kant, Hegel, Marx, e os filósofos modernos filiados
ao pensamento que procede dessa fon te os agentes das grandes mudanças, ou da
revolução.13 Nesse quadro, que é o Brasil? Ficaremos no lugar comum respon­
dendo que é uma nação à procura de um m odelo, que não vai ser encontrado,
pelo simples, elementar m otivo que a solução de seus problemas, a segurança
das liberdades fundamentais, a que todos aspiramos, não se encontra no regime,
em cujo passivo devemos lançar o predom ínio oligárquico, de 1889 a 1930, com

10 João de Scantimburgo. O Destino da América Latina. São Paulo, Companhia Editora


Nacional, 1966, passim.
11 A rnold J. T oynb ee. Civilização posta à prova. R io, Civilização Brasileira, 1961, p. 261.
12 Id „ ib.
13 Jacques Maritain. Trois Reformateurs. Paris, Plon, s/d, passim; Leonel Franca S. J. A crise
do mundo modemo. R io, Livraria José O lym pio Editora, 1941, passim.
66 O PO D E R M O D E R A D O R

o estado de sítio suspenso por exceção; a ditadura, com uma franquia dem o­
crática intervalar, de 1930 a 1937; o regime do presidente, com poderes abso­
lutos de 1937 a 1945; a desordem multipartidária, com o governo do acordo
PSD-UDN, de 1946 a 1951; com o suicídio de Vargas, a deposição de Café
Filho e Carlos Luz de 1951 a 1954; com o governo Kubitschek permanentemente
contestado de 1956 a 1961; com a renúncia de Jânio Quadros em 1961, a depo­
sição de João Goulart em 1964, e o governo autoritário, sob controle militar
desde 1964, com prazo indeterminado — por impossibilidade de prefixá-lo —
erigido sobre uma sucessão dinástica no seio do Exército.
Atribua-se ao E xército - ou, mais amplamente, às Forças Armadas — o
papel de poder moderador. Mas, por que o “ ersatz” , o sucedâneo, não o autêntico?
A Constituição em vigor, no seu artigo 47, inciso II, parágrafo IP , censura, taxati­
vamente, a discussão sobre regime, dando, portanto, com o assentado que o atual
é o melhor e o que nos convém. Dispõe esse artigo:

Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir


a Federação ou a República.

É um dogma, ao qual todos os brasileiros se devem curvar, submissos, ainda


que a História, os exemplos, as crises do passado, as dificuldades sem saída do
presente nos aconselhem, em nome dos interesses nacionais, a, ao menos, debater
a idéia do legítim o poder moderador, do Conselho de Estado, e das outras insti­
tuições extintas pelo golpe de 15 de novembro de 1889.
Se, pois, afirmamos que o vazio do poder não fo i preenchido institucional-
mente até hoje, estaremos desvendando, apenas, uma verdade histórica. Só não
a vê quem não a quiser ver, que é o pior cego. A oligarquia da primeira República,
embora retaliada pelas dissidências e pelas crises, que seria longo historiar, ocupou
o vazio do poder. Transcorrida a fase dos presidentes militares — D eodoro e
Floriano —, os presidentes que os sucederam não tiveram competidores, com a
exceção de Hermes da Fonseca, em 1909/1910; Epitácio Pessoa, em 1919, contra
ambos lançado Rui Barbosa, e, finalmente, Júlio Prestes, que teve G etúlio Vargas
com o concorrente, por não se terem entendido o P. R . P. e o P. R. M ., em to m o
do eix o Minas-São Paulo, que Washington Luis, por obstinação, quebrou, para
encerrar uma época, virar uma página da nossa História. Vê-se que a oligarquia
velava pelo Brasil. Governava-o segundo os interesses, os caprichos", as preferências
de seus mais influentes sobas, dentre os quais se destacou no cenário nacional
Pinheiro Machado; em Minas, A ntonio Carlos; em São Paulo, Bernardino de
Campos, para citar apenas alguns nomes. Quando a revolução de 1930 fulm inou,
sob a liderança de um de seus membros hereges, o mandonismo da oligarquia,
o vazio do poder fo i ocupado por Vargas, que governou monocraticamente o
Brasil até 1945 - à parte o breve período da Constituição de 1934, sepultada
antes do golpe de 1937, sob o estado de guerra — e, depois de sua queda, apenas
a presidência Eurico Gaspar Dutra abarcou o vazio do poder, graças à autoridade
moral e profissional de chefe militar que fora nove anos ministro da Guerra. De
O PO D E R M O D E R A D O R E O V A Z IO DO PODER 67

Dutra a Castelo Branco o poder esteve, de fato, vazio, sob as bombardas da contes­
tação, do inconform ism o, da repulsa pessoal, inclusive no p eríodo curtíssimo
de Jânio Quadros, o ungido das urnas em 1960. Os militares assumiram o poder
em 1964, e nele se conservam, para não deixá-lo vazio, embora não proclamem
ter sido esse o seu objetivo, e, provavelmente, nem mesmo o reconheçam. Mas
se deixassem o poder nas mãos dos civis e do multipartidarismo o vazio se acen­
tuaria, mais cedo ou mais tarde, nessas alturas. As agitações que rastrearam a vigência
da Constituição de 1946, durante a qual o Brasil sofreu, agudamente e sob tem pe­
ratura alta,, o “ mal p o lític o ” , voltariam, mais impetuosas, com o uma desforra
da “ classe p o lítica ” ao recesso em que a colocaram os militares. F o i de resto o
que vimos em outubro de 1965, quando o presidente Castelo Branco atalhou-lhes
a reação, baixando o A to n9 2, que extinguiu as doze agremiações políticas, então
ativas, e criou em seu lugar, para salvar a fachada democrático-partidária, a Arena
e o MDB, dois partidos sem nenhum apelo ao interesse do povo. Tinha João Camillo
de Oliveira Torres esperança nos partidos — observando evidentemente a cena
política brasileira, e a comparando com a de outros países - e lhes previu notável
papel institucional. Se “ recordarmos que, mais e mais, os partidos começam a
traçar seus lineamentos segundo as linhas de clivagem da separação de classes,
a conseqüência é termos, realmente, uma sociedade dividida em partidos, em
grandes corpos políticos, semelhantes às antigas ‘ordens do reino’ . Podem os afirmar
que, sc a evolução dos partidos prosseguir na mesma linha em que vai, não tardará
o dia em que os resultados das eleições se manterão estáveis e sólidos” .14 Não
partilhamos, com o já deixamos atrás afirmado, esse otimismo do saudoso pensador
p olítico. N em mesmo nos Estados Unidos e na Inglaterra os partidos se conservam
com o grupos secundários, institucionalizados sem risco de ruptura, embora —
dissemo-lo antes - façam parte da estrutura política dessas duas nações. N o partido
Conservador seus líderes apelam para a economia, a fim de manter-lhe a unidade,15 e
Raym ond A ron de sua parte fa z por prever: “ Outro regime, p o lítico assim com o
econôm ico, sairá, pouco a pouco, nos próximos anos, da crise britânica” .16 Para os
Estados Unidos os prognósticos se situariam em outro plano, mas nos abstemos de
conjecturas futuribles, sobretudo porque o poder na Am érica do N orte não se nos
apresenta institucionalmente vazio. Esta é sua situação, à luz da teoria da instituição,
na quase totalidade dos países do mundo. N ão cremos que houvesse jogador tão
temerário que arriscasse toda a sua fortuna numa aposta original, a de que os
governos dos povos do mundo se manterão até o fim do século, ou até mesmo
por uma década. Estamos sendo pessimistas? Q ui vivra vera.

14 João Camillo de Oliveira Torres. Harmonia Política. Belo Horizonte, Itatiaia, 1961, p. 25.
15 The Economist, 23/29 de julho de 1977 in, N o t quite Disraeli.
a hermenêutica
do poder moderador

Dizia o nosso grande e querido Chesterton que o mundo vai mal, porque
todos querem a mesma coisa por motivos diferentes. Podemos aplicar esse para­
doxo à ambigüidade da expressão poder moderador no Brasil de nossos dias. Depois
que sucessivas crises marcaram a República presidencial, de sua proclamação aos
nossos dias, mas, sobretudo, depois da revolução de 31 de março, o êxito relativo
do chamado “ m odelo econôm ico” — que não era m odelo nenhum, mas simples
aplicação do capitalismo, em duas modalidades, a estatal e a particular — provo­
cou o estudo ou a incursão amadorista na vasta seara da política, de onde, curiosos
uns, e bem intencionados, outros, procuram obter a fórmula de um m odelo p o lítico
adequado ao Brasil.
Não há, com o estão fartos de saber quantos estudam as doutrinas e os
sistemas políticos, novidade em matéria de regimes. D o velho Aristóteles aos
modernos tratadistas — e Georges Burdeau praticamente esgotou a matéria —
ninguém é capaz de inventar o regime ideal. Extinguiram-se as utopias, sem
oferecer aos ansiosos faiscadores de suas virtudes a resposta que, no mundo da
realidade, todos desejamos obter. N ão há regimes perfeitos. Há regimes menos
imperfeitos. A distinção parece sutil; é a que cabe aqui, segundo o bom m étodo
tomista. Se não nos contentarmos, no mundo, com o menos im perfeito, deixando
o perfeito para o reino dos céus, corremos, sempre, o risco dos eternos recomeços,
dos ciclos intermináveis, dos quais sai perdendo, invariavelmente, o povo. Os
ingleses, com o acentuou a sua soberana, na Mensagem de Natal de 1964, encon­
traram o regime, que, modestamente, entendem não ser o melhor, mas o que
melhor puderam criar para o seu povo. N o Brasil, com o nas nações latinas, em
geral, procuramos o melhor, e com o não o encontramos, bracejamos crises perma-
/o O PO D E R M O D E R A D O R

nentes e sem paradeiro. De D eodoro a Geisel, de um chefe militar a outro, osci­


lamos entre várias manifestações de uma só crise, com diversos aspectos e fases,
mas, nem por isso, menos intensas.
Passam as gerações de homens públicos, chefes políticos se sucedem; dos
partidos estaduais unívocos da República velha, passamos a partidos estaduais
das eleições de 1933, às experiências, aos tateamentos, que abicaram no regime
autoritário de Getúlio Vargas, em 1937. A o cabo de o ito anos emergimos para
a orgia partidária. Catorze partidos, inclusive o Partido Comunista; uso impróprio
de denominações, com o Partido Social Dem ocrático, historicamente socialista
na Europa, e no Brasil conservador até ao reacionarismo extrem ado, e outras
aberrações, que o A to Institucional n9 2 fulm inou, enterrando-as todas, embora
tenha, por inexperiência política dos militares, criado dois monstrengos, a Arena
e o M DB, duas legendas sem nenhuma ressonância popular, nem mesmo com
a vitória em alguns Estados estrondosa do segundo, em 1974.
O balanço que hoje estamos em condições de dar não é animador. Ninguém
aprendeu. É curioso. A té os animais aprendem. Seu mecanismo instintivo — é o
caso fam oso e comovente da leoa Elza, e de tantos outros — se constitui numa
pedagogia que os protege. O hom em , esse não aprende, ou, pelo menos, não dá
mostras de ter aprendido, exceto alguns povos, com o os da língua inglesa, os
escandinavos, os suíços, os japoneses. Os “ m odelos” estão ao alcance das mãos,
e não os apanham. Preconceitos, terríveis formas de distorção do pensamento,
obstruem a via reta do destino, e as nações se desencontram esmaniadas, no tem po
e no espaço, quando poderiam colocar tantas energias perdidas a serviço do povo.
Num estudo publicado há alguns anos1 procurei demonstrar a incompatibilidade
da nação com o regime im portado dos Estados Unidos, de onde, com o afirmou
Harold J. Laski, já por m im tantas vezes citado, não deveria ter sido exportado.
Evidentemente, o livro fo i lid o e criticado; suas teses foram ou não aceitas, e
teve ele o fim de todos os livros, a estante. N ão nos nutrimos de ilusões. Sabemos
que a palavra caminha muito lentamente. O cristianismo, que vem de longe, de
um ponto obscuro do Im pério Rom ano, sendo Tibério imperador, ainda não
converteu todos os infiéis, que, lamentavelmente, estão aumentando nestes dias
tecnológicos, sexuais, democráticos e massificados. Seu esplendor fo i grande;
a civilização deve-lhe a seiva, mas surgiram os apóstatas, os hereges, os corruptos;
0 Dem ônio introduziu no seio de sua Casa a cizânia, a hostilidade, a animadversão,
e o que viemòs a ter, com o triunfo impetuoso das potências do mal, fo i o seu
recuo, para outras catacumbas, de onde, um dia, ele sairá, e de novo enviará a
este “ bicho da terra tão pequeno” a história maravilhosa de um reino onde todos
encontraremos paz, se não pecarmos, se fizerm os do próxim o nosso irmão, se a
cobiça não nos corroer com o uma ferrugem.
A palavra caminha lentamente, sem dúvida, mas é pela palavra que nos
comunicamos, ou pelos signos que a representam que nos fazemos entender. Os

1 A crise da república presidencial. São Paulo, Livraria Pioneira Editora, passim.


A H E R M E N Ê U T IC A DO PO D E R M O D E R A D O R 71

sinais que apelamos linguagem, graças ao qual o ser humano comunica o seu
pensamento e torna possível a vida sobre a terra, é o instrumento form ado de
sons articulados, que manifestam na mais flex ível e mais sutil das matérias o que
há de interior em nós e o que, em nós, há de espiritual. Não é, portanto, a semio­
logia uma ciência nova, nem a lingüística uma novidade científica. Ambas, com
outra denominação ou sem denominação alguma, foram tratadas pelo velho
Aristóteles, e desde que a pessoa humana começou a se comunicar, no mundo,
usou sinais que tomaram viável a organização das sociedades e o vagaroso evoluir
dos grupos humanos. A força comunicativa das línguas acompanha a civilização,
seu brilho, seu esplendor, pelas obras que com elas foram produzidas. As línguas
indo-européias foram dotadas de ductilidade glótica, riqueza léxica e sintáxica,
que lhes permitiu o notável avanço na obra civilizadora e cultural, transmitido
através dos instrumentos elaborados, com o as línguas, para a comunicação do
pensamento.
Se não há superioridade de raças, podendo qualquer delas chegar do páramos
da beleza, da criação artística, do desenvolvimento científico, devemos reconhecer
que há uma superioridade de línguas, graças à qual fo i possível aos que a falam
conquistar um posto de relevo na História. Por mais que se tenha da língua alemã
um ju ízo desfavorável, ela se presta admiravelmente à formação do conceito
e ao discurso lógico. Com o fo i possível serem faladas e nelas serem produzidas
obras definitivas de gênio humano, as línguas grega e a latina? Dois instrumentos
perfeitíssimos, tão perfeitos no superlativo que não se elaborou nada igual depois
deles. Quem sabe ler a Ilíada e a Odisséia no original, Horácio, O vídio, Anacreonte,
Cícero, mas, sobretudo, Horácio, na língua em que escreveram, goza prazer inte­
lectual único. São línguas que correspondem na glótica à beleza da estatuária
em artes plásticas. Santo Tomás escreveu em latim as suas apostilas de aula, os
seus Com entários/as suas Sumas. Seu latim estava, no entanto, longe do latim
de Horácio. A confusão das línguas se assinala com o sua decadência. Essa é a
realidade lingüística do mundo. De uma linguagem e de um mesmo m odo de
falar, com o vem no Gênesis,2 às línguas de Babel, o que observamos é serem
poderosos e grandes os povos que usam línguas menos imperfeitas, já que línguas
perfeitas não mais se falam.
Tem a língua conexão com o poder político? M eio de comunicação, a
língua deve ficar, rigorosamente, adstrita à semântica das palavras, à natureza
das coisas e à essência dos conceitos. Humboldt, citado por Ernest Renan,3 dizia
parecer-lhe que havia nas línguas uma época em que elas já não mudam. As
línguas evoluem, porém, lexicamente, poucas mudanças se introduzindo na sua
sintaxe, isto é, na form a que o discurso assume para expor a idéia. Ferdinand
de Saussure4 introduziu na lingüística a palavra valor, por analogia com o seu
significado em economia. Ponhamo-nos de acordo com o grande lingüista: as

2 11, 1-7.
3 Ernest Renan. D e Vorigine du langage. Paris, Calman-Levy, 1889, p. 106.
4 Cours de linguistique générale. Paris, Payot, 1968, passim.
r O PO D E R M O D E R A D O R

piilavrus têm um valor, mas, também, um sentido. Se quisermos nos fazer enten-
illdoK, dialogando, devemos nos lembrar do valor e do sentido das palavras. Comen-
Inndo u teoria de Saussure, Étienne Gilson5 diz: “ Eis aqui uma soma de dinheiro,
ou dc ouro, ou de papel; é um valor de troca porque ela tem propriedades intrín-
a c c iis reais que a tornam desejável por si mesma ou para o poder que ela possui
puni a aquisição de outros bens, os quais são desejáveis. Mesmo uma moeda
Hlmbólica, com o toda a moeda fiduciária, não tem valor de troca senão pelo
ouro que ela representa ou, na falta do ouro, pelos objetos adquiríveis, produtos
tio uin trabalho, intercambiáveis contra aqueles de outro trabalho. Seguramente,
jil que a palavra é livre, nada impede de se ter por bens a palavra inteligível que
conhecemos e o seu sentido. Não-vem os, portanto, nenhum m otivo decisivo para
rocusar o nome de valor já à língua, já à linguagem, mas nos expom os, fazendo-o,
n criar um equ ívoco fundamental sobre a natureza do que designamos por este
nome. Nenhuma troca é possível sem linguagem, a não ser o da atitude e do gesto,
mus na troca real, aquele que oferece em troca perde a propriedade do que ele
dá e adquire a propriedade do que lhe dá seu parceiro” . Prosseguindo, acentua
Gilson que, “ de qualquer maneira que a entendamos, a noção de valor não se
uplica à linguagem. O inteligível tem um valor, é, mesmo, dotado do mais alto
de todos os valores depois do ser. A verdade é um bem em si; é o bem do inte­
lecto” . “ O fundo da questão é m etafísico, porquanto o debate se situa em transcen­
dentais. Trata-se de saber se o sentido da linguagem, que é da ordem do inteligível
e o objeto do intelecto, pode se conceber com o se ele fosse um bem e um objeto
da vontade” . São os direitos da realidade que a filosofia reclama da lingüística.
Hsta ciência não pode coméfter abusos, que, difundidos, acabam perturbando
u sociedade e a comunidade. Gilson reconhece6 que o nominalismo, hoje mais
vivo do que nunca, põe em evidência a ambigüidade da noção de palavras, e os
lingüistas mais autorizados admitem a face dupla das palavras.
Devemos, portanto, nos precaver, se não quisermos tombar nos alçapões
da maior confusão verbal, dialética, sofística, usando as palavras em sentido
outro que não o próprio. Para Gilson,7 devemos nos acostumar com a radical
contingência entre linguagem e pensamento. N o mundo m oderno temos assis­
tido, e dela sido vítimas, a essa contingência, porém, mais ainda, da intencional —
ou não — deformação do sentido das palavras, e do m edo que o poder infunde —
medo ao qual nos referimos em outro capítulo — ao uso certo, preciso, evidente
das palavras e do significado do pensamento que elas representam. N ão estamos,
evidentemente, fazendo uma exposição teórica sobre a lingüística e o abuso ou
o mau uso das palavras. Pretendemos, simplesmente, mostrar que, no emprego
du expressão poder moderador, está havendo deplorável, mesquinha, pusilânime

' Ihiguistique et philosophie. Paris, V rin, 1969, p. 58.


1 <>l> cit., p. 64.
‘ >ii fit., p. 71.
A H E R M E N Ê U T IC A DO PO D E R M O D E R A D O R 73

deformação de conceito histórico, que não admite duas interpretações. Uma só


e a sua hermenêutica, e essa fo i distorcida.
A o se form ar o discurso p olítico, o valor das palavras, e, mais ainda, o valor
das expressões deve sobrepor-se aos conceitos fluidos. Elas reclamam uma exegese,
sem a qual caímos na anarquia. O poder se despe de sua autoridade, e, para read­
quiri-la, deve se im por pela força ou pela demagogia, esses fenômenos do mundo
que perdeu contacto, ao parecer em definitivo, com a ordem tradicional e com
o poder legítim o. Com o diz Emile Benveniste8 não pode existir pensamento sem
linguagem, e o conhecimento do mundo é determinado pela expressão que ele
recebe. O pensamento p o lítico exige uma linguagem adequada, e'qu an do se usa
uma expressão ela deve corresponder à realidade. Saussure, por seu turno, diz que
“ o discurso consiste, ainda que de m odo rudimentar ou por caminhos que igno­
ramos, em afirmar um elo entre dois conceitos que se apresentam revestidos de
forma lingüística, enquanto a língua previamente apenas realiza conceitos isqlados
que esperam ser relacionados entre si para que haja significação de pensamento.” 9
Não se trata, evidentemente, de discurso no sentido vulgar da palavra, mas
no seu sentido lógico. Organizar o discurso p o lítico , isto é, estabelecer os elos
da linguagem da qual se parta de uma premissa e se chegue a uma conclusão, é do
que está carecendo o Brasil, e mais amplamente — com umas poucas exceções —
a maioria dos países do mundo. Formados, na sua quase totalidade, pela fragmen­
tação cuja origem se nutre do p rin cíp io das nacionalidades, estão mergulhados
no babelismo, e não se dão conta as suas classes dirigentes que a origem dessa
crise é filosófica, lógica, discursiva, lingüística. Seria preciso limpar o conceito
e estabelecer a hermenêutica do poder moderador, para clarificá-lo aos olhos
de quantos o vêem com o a solução da crise política brasileira, mas não sabem
quem deve exercê-lo. O Brasil não tem saída para sua crise política. É uma ilusão
supor que, se viermos a ser tão ricos quanto os Estados Unidos, teremos paz p o lí­
tica, as crises que atenazam as nossas instituições serão resolvidas, e não mais
haverá golpes no regime. A política não é um epifenôm eno da economia. São
ricos os Estados Unidos, entre outros vários fatores, por terem criado um regime,
um sistema p olítico, social e econôm ico, exato com o uma “ puzzle” , graças ao
qual seu desenvolvimento o colocou no primeiro lugar entre as nações. Já expuse­
mos a tese sobre a Am érica Latina e não voltamos a ela. Lembramos, apenas,
que a Argentina era, quando Peron tom ou o poder, o segundo — e, sob alguns
aspectos o prim eiro — país da América. Hoje, está eçonomicamente na rabeira,
embora ainda conserve um padrão de vida alto e a sua população se apresente
com o uma das mais bem dotadas do continente.
Política e economia, se interdependem; o progresso econôm ico incita o
progresso p olítico. Mas, sem boa política não há boa economia. Se não tivéssemos,

8 Problèmes de linguistique générale. Paris, Gallimard, 1966, p. 25.


9 Ferdinand de Saussure. Textoé selecionados. A b ril Editora, 1975, Coleção “ Os pensadores”
X L IX , p. 10.
14 O PO D E R M O D E R A D O R

do Uni do século X IX , um ano apenas depois de extinta a escravidão, ou da procla-


iiuiçflo da República aos nossos dias, nos debatido em tantas crises políticas, é
mullo provável que outra fosse a nossa situação nesta altura do século X X . As
1'iiNi'N políticas e as crises econômicas são, a um tem po, causa e efeito, recíprocas.
"On fenômenos econômicos parecem desempenhar na História o papel de exci-
liinlc mais do que o de determinante; são antes causas materiais do que causas
fo rm a is ".10 O desajustamento do regime implantado em 1889, eliminando o poder
moderador do quadro das nossas instituições, não se corrigiu ou não fo i corrigido
nl<‘ liojc, e nem oferece a perspectiva de vir a sê-lo em futuro próxim o. A revo-
luçilo de 31 de março realizou obra apreciável em vários setores, mas no p o lítico
loi nula a sua ação; diremos, até, que armou uma bomba de retardamento, a qual
explodirá daqui um, dois ou três mandatos presidenciais, quando passar o governo
( Io n militares, com espírito militar e, até onde é possível, com a disciplina militar,
e onl rar na zona cinzenta da fadiga, fenôm eno que mais cedo ou mais tarde, no curso
du I listória, salteia todos os regimes. Os indícios desse desajustamento são dema-
»Ido evidentes, para que não os vejam os responsáveis — sobretudo nesta fase
uliimiuda “ revolucionária” - pelo destino do Brasil. De D eodoro a Washington
I .iiIn. só dois presidentes da República não apelaram para o estado-de-sítio,
NiiNpendondo, portanto, as garantias constitucionais. N o p eríodo de Getúlio Vargas,
de I ‘í30 a 1937, durante quatro anos o presidente governou com o chefe discricio­
nário; cm 1935 decreta o estado de guerra e, em 1937, im põe ao país uma ditadura.
I ín I ii findou em 1945; em 1946 fo i promulgada a Constituição de 18 de setembro.
Miuiíetado o presidente pelo Congresso, não fo i decretado estado de sítio, mas
um único presidente governou tranqüilamente, Eurico Gaspar Dutra, por ser um
cliele militar altamente respeitado, a nação estar em núpcias recentes com a demo-
ciiiciu, e os dois maiores partidos, P.S.D. e U.D .N., terem assinado o acordo inter-
pmtldiírio — uma espécie de Conciliação — que garantiu apoio legislativo ao chefe
do listado. Os demais foram submetidos à terrível bombarda das crises: G etúlio
V iiik iis suicidou-se, Café Filho e Carlos Luz foram depostos; Juscelino Kubitschek
le/, Iodas as concessões possíveis para não cair; Jânio Quadros renunciou, e João
(ioiilurl fo i deposto. O m ovim ento de 31 de março colocou no governo os mili-
Iihon, os quais, com os A tos Institucionais — uma contradição nos termos que nos
dispensamos de refutar filosoficam ente — e os Complementares, sobretudo com
o A lo nO 5 e outros instrumentos de exceção, suspenderam as garantias constitu-
■ loiuils, o habeas corpus e o direito de defesa. Que mais se quer para fazer a prova
do descompasso entre o “ país real” e o “ país legal” ?
Registrou-se desenvolvimento no p eríodo ditatorial de Getúlio Vargas, mas
eiii preciso que as liberdades não fossem sacrificadas; durante o períod o de
liw iH Ino Kubitschek também se assinalou desenvolvimento, mas a intranqüilidade
iii.il iron u nação, e o povo, mais amargurado do que revoltado, assistia à corrupção
do Hovcruo com a indiferença de quem espera o pior; durante o período de João

111 i IiiiiIivi Miuirrus. Dictionnaire . . . , verbete “ É conom ie” .


A H E R M E N Ê U T IC A D O PO D E R M O D E R A D O R 75

Goulart o desenvolvimento baixou a 1%, a corrupção e a subversão campearam


largamente, acendendo o estopim da revolução de 31 de março, quando os m ili­
tares assumiram o poder e imprimiram marca inegavelmente castrense na gestão
dos negócios do Estado. A crise política brasileira não fo i, porém, resolvida. Estu­
diosos e observadores do regime têm atribuído às Forças Armadas — voltamos
ao nosso ritornelo — o papel de poder moderador. Adm itim os essa imputação por
comodismo. N ão há nada menos defensável teórica e doutrinariamente do que
classificar a corporação de defesa com o poder de Estado, e poder moderador.
Supomos tê-lo demonstrado. D aí nos ampararmos na hermenêutica e na lingüística
para demonstrar — ou tentarmos fazê-lo — que a expressão poder moderador
encerra um sentido específico, um valor, que não devem ser confundidos, a fim
de que a nação, aturdida, encontre o rumo histórico do qual tanto necessita, para
que o bem comum, a paz, o desenvolvimento não sejam palavras ocas.
Os conceitos devem ser adequados à realidade. Não foram e não são, nem
descerram a perspectiva de virem a sê-lo. Segundo Louis Trolle Hjelmslev,11 para
se conhecer uma língua é preciso conhecer a sua estrutura. Diremos que, para
conhecer expressões com o poder moderador, é preciso entrar fundo na sua
estrutura, se se quiser fazer, mesmo, com ela com o fe z a personagem do vagalume
de Machado de Assis; dissecá-la, decompô-la, e, depois recompô-la na sua inteireza.
Já nos demos a suficiente explanação sobre o poder moderador para voltarmos,
ainda uma vez, à sua exegese. Mas aqui nos preocupamos com a sua hermenêutica,
isto é, com a interpretação do sentido das palavras compostas, que já rotularam
um poder numa Constituição, a primeira do Brasil. As palavras têm um sentido
que lhes é próprio. Também as instituições o têm. Cachorro é cachorro, animal
definido com o tal; mesa é mesa, objeto definido com o tal. Deixando de lado
o nominalismo, do qual devemos, sempre, nos distanciar, podemos entender por
palavra um som ou grupo de sons articulados aos quais os que o falam atribuem
uma significação intelectual.12
Poder moderador tem, portanto, um sentido hermenêutico, lingüístico,
histórico, p olítico, que não pode nem deve se prestar a confusões. Releva do
respeito às regras da gramática política entendê-lo no seu verdadeiro significado.
Formulado por Benjamin Constant, suíço-francês, na quadra histórica do advento
do constitucionalismo e das grandes transformações políticas por que o Ocidente
passava, o poder moderador é atributo exclusivo do monarca hereditário, diarquica-
mente inserido no circuito das sucessões, apartidário e suprapartidário, neutro
em face das opiniões e dos factionism os passionais. Com o dissemos em outro
capítulo, esse poder fo i, sempre, exercido pelos monarcas, que governaram nos
seus conselhos, enquanto o povo se representava nos seus estados. Não há poder
que o substitua. Está aí a História para comprová-lo. D. Pedro II não era liberal
nem conservador, no sentido partidário da palavra. Era o monarca para o qual

11 A estrutura e o uso da língua. A b ril Editora, Coleção citada, passim.


12 Étienne Gilson. Op. cit., p. 63.
O PO D E R M O D E R A D O R

deveria estar no poder o partido que mais conviesse às necessidades e interesses


do povo. Teria exagerado na “ gangorra” ? Provavelmente. Não iremos aqui estudar
oanc aspecto de seu reinado. Mas não teve preferência; teve, isto sim, confiança
mini ou noutro partido, consoante as circunstâncias históricas.
Segundo José Maria dos Santos13 “ em tod o o decorrer do segundo reinado,
niuica ministro algum fo i nom eado sem prévia e, às vezes, bem laboriosa consulta
Ah várias correntes de opinião representadas no Parlamento, e só um único Minis-
iiírio fo i dem itido sem haver pedido a sua demissão. F o i este o de A n tôn io Carlos,
de 24 de julho de 1840, o Ministério da Maioridade, destituído por decreto de
1 1 dc março de 1841. Mas a í o imperador estava ainda nos seus quinze anos de
Idude” . O presidente da República, ao contrário, escolhe praticamente sem con-
«ulta, e quando o fa z é para ter alguns nomes pelos quais optar. Ficou famoso
no folclore político nacional o “ cem itério” de G etúlio Vargas. Quando um ministro
o uborrecia, ou lhe criava problemas, ou, simplesmente, o enfarava, o astuto
Hiiúcho o “ enterrava” , para, muitas vezes, ressuscitá-lo. Oswaldo Aranha, João
Neves da Fontoura, Agamenon Magalhães e outros foram sepultados no “ cemi­
tério” de Vargas, e o bruxo os trouxe, de novo, à cena política. Se esse tem sido
o ' costume republicano, situação intrínseca ao regime, ela ainda mais se singula-
iizuu com os A tos Institucionais, que ampliaram os poderes do presidente. Onde
oN presidentes vão buscar os seus ministros? N o alfobre de indicações de amigos,
coluboradores, camaradas, ou no m ero acaso de um fortu ito imponderável. Em
«cral, porém, os ministros são todos afinados politicam ente, partidariamente
com o chefe de Estado, que é, também, chefe do governo, chefe das Forças
Aunadas, chefe da administração e chefe p olítico.
O presidente Ernesto Geisel pronunciou-se numerosas vezes em favor da
Arena, por ser o seu chefe supremo; todos os seus ministros eram filiados ao
partido governamental. Dir-se-á que em todos os regimes de gabinete os ministros
lambóm se afinam com o seu chefe. De acordo. Mas o poder moderador delega
o poder executivo ao gabinete, para se conservar sobranceiro, às quizilias, às lutas,
hon entre veros políticos, sobretudo às controvérsias, que enfraquecem a autori­
dade. A política acende paixões, suscita o fanatismo, desencadeia reações impre-
vIhIus de ódio, gera preconceitos, não raro monstruosos, naturezas aparentemente
morigeradas tomam partido, perdendo-se nos extremos das facções. Sábia, por
Indo, foi, sempre, a Igreja, sobrepondo o dogma à controvérsia. R om a locuta, causa
finita. Sem um poder arbitrai, mas institucionalmente, não eventualmente arbitrai,
com o é o caso aleatório das Forças Armadas, a nação tom ba no conflito de inte-
teiNON das controvérsias. Se o fenôm eno não se verifica nos Estados Unidos é
pori|uc naquela nacionalidade o sistema de pesos e contrapesos, o federalismo,
■i Indopondéncia política do Congresso e ju rídico da Suprema Corte o impedem.
Mm. i! exem plo único, que, por isso mesmo, não deve constituir a regra.
Supomos já ter deixado explícita a estrutura política americana; não voltamos

1 I imUiit u geral do Brasil. São Paulo, 1930, op., cit., passim.


A H E R M E N Ê U T IC A DO PO D E R M O D E R A D O R 77

a ela pará não incidirmos na redundância. Mas insistimos, ao menos no que


nos diz respeito, ser o poder moderador uma necessidade para o Brasil, entendido
poder moderador na linha desta hermenêutica: deve exercê-lo o monarca. Fora
daí ficará o país entregue às crises cíclicas, pois a revolução de 31 de março nos
seus treze anos e m eio,14 que irão — ou deverão ir — para vinte ou mais, não deu,
nem, ao parecer, dará solução política ao Brasil. Que virá depois do próxim o
presidente? Faz-se História perscrutando o futuro, mas olhando-se, também, para
o passado, e 'este não é muito animador para a prospectiva. Não haverá ninguém
suficientemente inform ado ou responsável que negará bracejarmos uma crise,
apenas contida pela autoridade do poder militar. Não afirmou, em meados de
dezembro, o almirante Júlio de Sá Bierrenbach, ministro do Superior Tribunal
Militar, que nenhum civil está em condições de governar o Brasil? Que encerra
essa afirmação? Que estamos em crise, e não será outro militar a solução para as
suas implicações. A crise é mais profunda, a crise é de regime. Para curá-lo, ou
tentar curá-lo, há uma única solução, a do poder moderador, segundo a herme­
nêutica por nós exposta, não sabemos se convincentemente ou não. O mais está
contido nas páginas deste livro. E aqui nos lembramos de Dante:15

N on sará tutto tem po sanza reda


1’aquila che lasciò le penne al carro,
per che divenne monstro e posda preda;
ch’io veggio certamente, e però il narro,
a dame tem po già stelle propinque, -
secure d ’ogn’intoppo e d’ogni sbarro,
nel quale un cinquecentro diece a cinque
messo di D io, anciderà la fuia
con quel gigante che con lei delinque.

Com estes versos do grande, imenso poeta, ficamos na esperança de que


o Brasil decifre esse enigma, também ele, e triunfe, afinal, sobre as crises.

14 Escrito no segundo semestre de 1977.


15 Purgatório X X X III, 37, 45.
que é poder legítimo

A querela da legitimidade é, historicamente, francesa; fo i aberta na disputa


entre os ramos “ ainé” e “ cadet” dos Bourbons, depois da Restauração. O legiti-
mismo entrou, por essa via, na ciência política, embora pouco tenha preocupado
os povos, aos quais as mudanças revolucionárias habituaram a governos de fato,
que se legalizam e legitimam, pela tácita aceitação do povo, pelas eleições e pelo
consenso. O golpe de 15 de novembro derrubou um trono, que, pela hereditarie­
dade, tinha vários séculos, e um governo de quarenta e nove anos, cuja legitimidade
nunca fo i posta em dúvida. A nação assistiu bestificada, segundo a palavra de um
dos próceres do m o n tó ito ,1 à proclamação da República; o R io de Janeiro, cidade
“ frondeuse” , inconformista e indócil, não percebeu — fo i o depoim ento do conse­
lheiro Ayres — que se operava radical transformação no Brasil; as províncias esta­
vam calmas, e só muitos dias depois tomaram conhecimento do golpe. Quem,
no entanto, saiu à praça pública, quem fo i à coluna dos jornais, para reivindicar,
colérico, o respeito ao princípio da legitimidade, decepado pela espada de Deo-
doro? Ninguém, senão uns poucos monarquistas, entre outros Eduardo Prado,
que morreu alguns anos depois, sem aceitar o novo regime. Para os brasileiros
das gerações que se encontravam em 1889, amolecidos pela intensa, sofística,
vigorosa campanha dos republicanos, e de Rui Barbosa — republicano do dia
seguinte, nas suas próprias palavras —, o fa to consumado selou a legitimidade.
Atuou no episódio e na sua efetivação — com o temos dito e repetido, vezes sem

1 Aristides L o b o . In Diário Popular. São Paulo, 16 de novembro de 1889.


80 O PO D E R M O D E R A D O R

conta - a acomodação apassivada do Jeca-Heredo. O governo do imperador era


legítim o; deposto o monarca, passou a ser legítim o o governo de D eodoro. É o
Hrasil. Foi levantada a questão de legitimidade pela primeira vez, e de maneira
Imprópria, na semana do sesquicentenário dos cursos jurídicos, com a “ Carta
iios Brasileiros” , redigida pelo professor G offred o da Silva Teles Junior e assinada
por alguns juristas, advogados e bacharéis, porém sem maior repercussão do que
ii que lhe garantiu o segmento contestador do regime.
Todos os atos dos governos emanados da revolução de 31 de março são
considerados legítimos, com o os atos dos governos anteriores. Não ocorreria a
nenhum empresário brasileiro, a nenhum ju iz do trabalho, a nenhum jurista espe­
cializado levantar dúvidas sobre a validade jurídica da Consolidação das Leis do
Trabalho, aprovada pelo decreto-lei n9 5432, de 19 de maio de 1943, e posta em
vigor em 10 de novembro do mesmo ano. Quem a tornou vigente, no entanto,
foi o presidente usurpador Getúlio Vargas, que governava por decretos-leis, sem
Câmaras, dispondo de um artigo da Constituição por ele mesmo outorgada em
10 de novembro de 1937, o de n9 182, que lhe conferia todos os poderes. Segundo
o conceito histórico de legitimidade os governos de Vargas, de 3 de novembro
de 1930 a 19 de julho de 1934, e de 10 de novem bro de 1937 a 29 de outubro
de 1945; o de José Linhares de 29 de outubro de 1945 a 31 de janeiro de 1946,
foram ilegítimos. Quem os contestou? Não o fizeram nem na época, nem na His­
tória. A té hoje não fo i argüido de ilegítim o um só decreto de Vargas e de Linhares,
ou, mais remotamente, de D eodoro, de 15 de novembro de 1889 a 24 de fevereiro
ilc 1891. Iríamos longe nesta recensão. O conceito de legitimidade está baralhado
lunto quanto todos os conceitos, depois da revolução francesa. Durante a primeira
Kepública as eleições pelo voto direto e distrital, mas descoberto, eram fraudados.
0 reconhecimento dos mandatos pelas Câmaras invalidava os votos dados aos
candidatos que não satisfaziam os senhores da política. Quem os indigitou de
llogítimos? Quem procurou anulá-los, por serem ilegítim os? Ninguém. Perderam-se
os protestos na submissão dos brasileiros ao fato consumado. Dir-se-á que fraudes
se verificam em todas as eleições e que sobre elas Machado de Assis escreveu um
conto saborosíssimo. De acordo. Mas todas as eleições acabam legitimadas pela
aceitação popular, pelo reconhecimento da população ou — com o é o caso da
11 R.S.S. - pelo aplauso monotonamente unânime dos representantes oficiais do
que naquela federação de repúblicas comunistas se chamam os representantes
dos soviets.
Quando Getúlio Vargas fo i eleito em 1950, e, mais tarde, quando fo i eleito
Jiisccllno Kubitschek, a tese da ilegitimidade fo i levantada, entre outros, pelo
jornalista Carlos Lacerda. Mas a eleição de ambos foralegitim íssim a;os pleitos dos
quais saíram vencedores realizaram-se de acordo com a legislação eleitoral em vigor
nu época. Tomaram posse e governaram, legitimamente, tão legitimamente que,
ptn exem plo, Juscelino Kubitschek iniciou a construção de Brasília,2 sacrificou a

1 liiicolin o Kubitschek de Oliveira. Porque construi Brasília. R io , Bloch Editores, 1977,


panim.
Q U E É PO D E R LE G ÍT IM O 81

nação para executar esse plano mirabolante, e, construir, a capital em quatro anos.
Praticou todos os atos que um presidente pode ou deve praticar — não poucos não
deveria tê-los o presidente praticado - e ninguém os argüiu de ilegítim os, nem
bateu à porta d o Supremo Tribunal Federal para obter-lhes a revogação. Reconhe­
çamos que concorreu para essa admissão de legitimidade um poder neutro — os
poderes neutros são incontestáveis —, o Supremo Tribunal Eleitoral. Proclamado o
candidato, cessam as disputas em to m o das teses de legitimidade ou ilegitimidade,
ao contrário de episódios registrados durante a primeira República, com o fo i o
da eleição de A lfred o Backer para a presidência do Estado do R io de Janeiro,
sucedendo a N ilo Peçanha. “ O governo Hermes da Fonseca encontra o caso flu m i­
nense, com o se dizia na gíria política, em seu exato ponto de maturação: duas
assembléias reconheciam dois candidatos com o eleitos futuros governadores do
Estado. Pelos imprecisos e insidiosos termos da Constituição de 1891, caberia ao
Congresso Nacional resolver o assunto, decretando a intervenção. A Assembléia,
fiel ao governador Backer, prevendo a interferência do Governo da União, havia
conseguido o reconhecimento de sua legitimidade por meio de um habeas corpus
do Supremo Tribunal, remédio judiciário que, na época, facilmente se aplicava às
questões políticas. O ministro da Justiça, entretanto, encontrava pretexto para
garantir com tropas federais as repartições públicas da União, o palácio do governo
e a própria Assembléia local. Empossa-se sem maiores atropelos no governo do
Estado o candidato simpático ao governo Federal” .3
C om o se vê, um caso de legitimidade desvalida-se por um ato de força, reves­
tido de especiosos aspectos de legalidade. Esse é um exemplo do conflito entre
legitimidade e legalidade, e com o os conceitos são fluidos, impalpáveis, no Brasil,
onde não se lhes atribui maior importância, confofmamo-nos depressa com o fato
consumado, extraindo do fundo de nosso psiquismo o espectro do Jeca-Heredo.
Na primeira República a contestação se articulou menos contra a legitimidade dos
governos, do que contra o predom ínio das oligarquias estaduais, o mandonismo dos
chefes políticos, e o prolongamento histórico do coronelismo, sobretudo nas regiões
mais atrasadas do país, embora elas também se manifestassem no Estado de São
Paulo, a essa altura Já colocado na linha da industrialização e do primeiro arranco
do desenvolvimento. O coronelismo constituiu uma espécie de sistema legitimado
de fato, no Brasil, com o veremos adiante. Estudou-o m uito bem, com originalidade
e grande lucidez, V ictor Nunes Leal.4 Seu trabalho, pelas características, extensão
e profundidade, pioneiro na sociologia do mandonismo natural, mostra a autoridade
primitiva, mas carismática, revestindo o poder de quem dava ordens e era obedecido
sem apoio em lei. Embora mudada a configuração do coronelismo, ainda são influen­
tes nos municípios do interior, com exceção das cidades maiores, com o por exem ­
plo Campinas, do Estado de São Paulo, algumas personagens, o comerciante mais

3 José Maria Belo. História da República. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1964,
pp. 266/67.
4 V ic to r Nunes Leal. Coronelismo, enxada e voto. São Paulo, Editora A lfa - Omega, 1975,
passim.
82 O PO D E R M O D E R A D O R

poderoso, em geral de origem síria ou libanesa, o m édico de maior clínica, o grande


fazendeiro. É o líd er na sua expressão sócio-psicológica. Contra o antigo corone-
lismo, contra as atas falsas, as “ salvações” , as “ derrubadas” , organizou-se, histori­
camente, a reação dos oficiais jovens, os tenentes do in ício da década de 30. Sofreu
o primeiro impacto o governo de Epitácio Pessoa. O jagunço da Paraíba não era
homem de se atemorizar. Enfrentou, resolutamente, os revolucionários — os 18
do Forte — e os dominou. Mas a semente, regada com sangue, nas areias de Copa­
cabana, para ficarmos em figura de retórica já explorada, iria se transformar. Expe­
rimentou-o o governo de Artur Bernardes, que lançou mão do recurso extrem o do
estado de sítio para governar. Seu sucessor, Washington Luís, seria o último repre­
sentante de uma época, de uma geração, de uma linhagem política. A té mesmo
a queda de Washington Luís teve os acentos fúnçbres de uma era que se abismava
no ocaso, flanqueada pelas tropas de uma revolução vitoriosa.
O conceito de legitimidade não foi invocado, mas foi, inapelavelmente,
ferido, pelo triunfo impetuoso de Vargas, pela derrogação pura e simples da Cons­
tituição de 1891, e pela ascensão de nova forma de poder, o revolucionário, que
teria réplicas no futuro, e não poucas, sem vislumbre de que acabassem ou venham
a acabar. Numa reflexão amarga, João Camillo de Oliveira Torres5 faz eesta consta­
tação: “ Chegamos, pois, a esta verdade pavorosa: é legítim o todo governo que
existe” . “ Será que vivemos num mundo tal de precariedade em crise, que a simples
presença no poder já é títu lo suficiente? E quando algum desconsolado ?utor fala
em princípios de legitimidade, é recebido com o mesmo ar de enfado com o qual se
receberia um cidadão que se pusesse a pedir certidão de casamento a todos os
casais que encontrasse” . “ A diferença, porém, é que a condição exata dos casa­
mentos d^s pessoas não nos atinge diretamente e a questão da legitimidade dos
governos, todavia, muito interessa — afinal, com que direito um determinado
indivíduo posto nas alturas do poder vem dar-nos ordens?” Essa a questão.
Ge túlio Vargas foi, no exato sentido da palavra, agente de uma revolução, a qual,
sendo, embora, seqüência e conseqüência da grande revolução de 15 de novembro
de 1889, deu conotação nova à estabilidade do poder. Desestabilizou-o, derrogando
uma Constituição de quase quarenta anos, fulminou o constitucionalismo de
princípio, passou a governar por decretos-leis, e quando se levantaram contra o seu
governo e o exercício por ele do poder discricionário, não o fizeram os contesta-
dores em nome da legitimidade do poder, mas de uma Constituição. Esta, com o
vimos, deu fundamento ju rídico ao poder, mas não o legitim ou, embora fosse e
continue sendo irrelevante a legitimidade, na maioria das nações, inclusive no
Brasil. Aduz João Camillo de Oliveira Torres:6 “ E legítim o o poder adquirido
pola maneira usualmente admitida” . Se aceitamos o conceito do historiador mineiro
c admitimos a sua aceitação — o fato consumado estabelece a legitimidade. De
mulo, é o fenômeno brasileiro, historicamente verificado, da proclamação da
Krpúhlica aos nossos dias, com a exceção única, embora muito limitada, da “ Carta

’ loAo Camillo de Oliveira Torres. Harmonia Política. Op. cit., p. 59.


" h l , ll>.
Q U E É PO D E R LE G ÍT IM O 83

aos Brasileiros” , já referida, mas, nesse caso, a legitimidade vem confundida, im ­


propriamente, com uma Constituição, elaborada e aprovada por uma Assembléia
Constituinte, a qual, por si só, não a chancela. A atual Constituição, em vigor
desde 24 de janeiro de 1967, é, segundo os princípios do direito positivo, juridica­
mente legítim a; fo i aprovada pela maioria do Congresso, eleito regularmente em
1966, revestindo-se, portanto, de todas as formalidades do direito. Convocar
uma assembléia constituinte não legitimaria a instituição, nem, a rigor, visaria essa
convocação deslegitimar o órgão supremo do poder, mas retirar-lhe os poderes
de que fo i investido pela Emenda Constitucional n9 1, ou, mais precisamente, o
artigo 182 das Disposições Transitórias. Nada mais. Foi, por isso, superficial e oca,
a bulha, que acompanhou a contestação.
Argúa-se de ilegítim o o poder. Institucionalmente, o é. Consideramo-lo apenas
legitimado. Mas não se pretende com uma Constituição legitimá-lo. Tivem o­
-las até agora seis, das quais uma no Império e cinco na República. N o Império
fo i institucional a legitim idade; na República, ela é consentida, com o, ainda, expo­
remos em outro capítulo. Com o se vê, o conceito de legitimidade se presta a deba­
tes e polêmicas. Para Jean François Revel, “ a única legitimidade de um poder é a
legitimidade democrática” .7 Concordamos. Mas qual democracia? E com o se-lhe
reconhecem os atributos? A questão continua aberta, e não se fechará, sobretudo
nesta época de confusões terríveis. Que é poder legítim o? Para os adeptos do ramo
“ cadet” dos Bourbons, contra os do ramo “ ainé” , a legitimidade adveio da vacân­
cia do trono. Depois das “ três gloriosas” , em que Carlos X fo i batido pela crise
das barricadas, pela multidão demagogicamente enfurecida que tomou Paris, Luis
Felipe, o rei-cidadão, seria o rei legítim o. A legitimidade estadeou-se com o uma
questão puramente nacional, urdida pelas paixões em que é fertilíssima a política
francesa. Por maioria de votos na Câmara, a legítim a abdicação de Carlos X fo i
recusada, e Luis Felipe, capitulando às forças da revolução, ascendeu ao trono.
Foi esse episódio histórico que arruinou o princípio da legitimidade. Teve papel
decisivo em to d o o seu desdobramento a Maçonaria da Grande Loja de França,
à qual havia pertencido Carlos X. “ O dia 29 de julho viu selar-se a sorte da monar­
quia legítim a” .8 N o últim o dia das “ três gloriosas” — les trois glorienses — Dupin
declara então que “ o duque de Orleans fora chamado ao trono, não porque era
Bourbon, mas não obstante Bourbon, assumindo, porém, o compromisso de não
se parecer com seus parentes mais velhos; ao contrário, de essencialmente diferir
deles” .9 Dupin pronuncia-se contra os partidários da legitimidade monárquica,
que reivindicou para o novo rei o nome de Felipe V I I . 10 F oi nesses dias tumul-

7 Jean François Revel. “ Détente: l’Occidente bâillonné?, in L ’Express. Paris, n? 1362,


15-21 de agosto de 1977.
8 Pierre Chevallier. Histoire de la Franc-Maçonnerie Française. Paris, Fayard, 1974, 2 volu­
mes, II, p. 198 e ss.
9 Id. ib., p. 199.
10 Id. ib., p. 199.
H4 O PODER M ODERADOR

luosos — três dias que abalaram a França e o mundo, por sua influência cultural —
que o poder legítim o sofreu o golpe violento, do qual não' mais se recuperou.
O auge da crise se situou na deposição de Carlos X e no advento de Luis Felipe,
quando a tese da legalidade se im põe à da legitimidade, nos termos históricos e
tradicionais em que esta última sempre fora tomada. Os dois conceitos daí por
diante andam relativamente desacompanhados.
Observa muito bem a reversão de conceitos o autor Paulo Bonavides.11
O racionalismo positivista, em pírico e relativista, operou transposição dos termos,
assentando a legitimidade na legalidade, não o contrário, com o até então. Golpeada,
u legitimidade não mais se refaria, e as instituições jus-políticas bracejariam crises
nem term o até aos nossos dias, quando as sofremos, sem se darem conta os diri­
gentes, guias, líderes, chefes dos povos, que fo i essa a baliza primeira da desestabili-
zuçffo do poder na idade moderna. Não os advertem os técnicos, o s teóricos e
doutrin adores políticos. 0 conceito de legitimidade fo i, ao parecer, definitivamente
Ncpultado com o inatual. Os regimes se sucedem legalmente, não, porém, legitim a­
mente, salvo nas monarquias, na república americana, por força da tradição e do
curlsma constitucional, e na Suíça, também uma criação tradicional. “ Não será,
portanto, permitido raciocinar desta maneira: o que é contra a lei é juridicamente
nulo; ora, o regime tal, emanado da violência, é contra o direito, lo g o é juridica­
mente nulo. É que o novo regime não tira seu valor de suas origens nem de seus
precedentes, mas do fato que reveste valor ju rídico desde o m om ento em que o
novo regime assegura o fim social. Um regime ilegítim o em sua fonte torna-se,
portanto, legítim o aos olhos da nação, uma vez que lhe dispense a ordem jurídica
pnru a qual ela tende” .12 É a falsa identificação entre legitimidade e legalidade.
"O governo legítim o tinha com o dever primeiro o de se manter, porquanto essa
é ii prim eira condição de ordem ” . “ Deposto ele perde a sua legitimidade aos olhos
do povo, se a sua restauração deve ser feita à custa da ordem ” . É o pleno dom ínio
do direito positivo,13 causa dos imensos males, de que sofre a civilização contem ­
porânea. Arruinada a legitimidade, arruina-se, por via de conseqüência, a autori­
dade. Não há mais poder reconhecidamente legítim o, e, introduzida a controvérsia
no seio do direito, a autoridade pode ser, com o vem sendo, no mundo inteiro,
contestada, inclusive nos países com o a Espanha,14 onde, graças ao rei, à monar­
quia e ao seu respeito pela liberdade, abriu-se a nação aos jogos da democracia.
Krcusada, porém, a noção de principado,15 dificilm ente será recomposta a autori-
ilndo fragmentada ou admitida com relutância e revolta. É o fenôm eno do mundo
moderno, e o que se nos antecipa em futuro próxim o, quando as novas gerações,
educadas — ou não educadas — no desrespeito à autoridade legítim a e à estabili­

11 1’niilo Bonavides. Ciência Política. R io, F. G. V ., 1974, p. 116.


11 /</. ih„ p. 117.
11 Iran Defroidm ont. La science du droit positif. Paris, Desclée De Brouwer, 1933, p. 25.
M I ni 1977, quando este livro estava sendo escrito.
1' lli'i I ranct de Jouvenel. D u Principat. Paris, Hachette, 1972, passim.
Q U E É PO D E R LE G ÍT IM O 85

dade do poder, assumirem os postos de comando das sociedades nacionais onde


nasceram e crescem.
Seria preciso reconstruir a idéia do poder legítim o, a fim de se passar à sua
realidade. Mas com o fazê-lo, em mundo afundado em confusão, em meias verda­
des, em abstrações desastrosas? Taparelli D ’A z e g lio 16 doutrina sobre a autoridade,
admitindo-a somente quando legítim a. “ Ela (a autoridade) é, portanto, em si
mesma, uma verdade, e, com o tal, pode comandar a vontade; esta verdade do poder
chama-se legitimidade, e é esta legitimidade do poder que é o verdadeiro bem das
inteligências” . A crise do direito, em cujas tenazes se debate o nosso tem po,
assenta nesse fulcro a sua origem. Na longa genealogia das idéias e das correntes
filosóficas, a crise do direito vai se entroncar no antigo nominalismo medieval de
Occkam e vem estuar no racionalismo de que Kant foi a. maior figura, a figura
eminente por excelência.17 Ramificando-se a velha árvore, prolonga a História
os erros que não asseguraram paz ao mundo, nem desvendam a perspectiva de
lhe assegurar no futuro. Nem mesmo o Deus da burguesia é hoje, na era da História
secularizada, aceito pelas novas gerações, cujo comportamento é mais inconsciente
do que consciente, pautado pelos revolucionários marxistas-leninistas. Vivem os sob
o signo do racionalismo. O direito não poderia estar-lhe alheio, distante, sonegado.
Ciência do homem, de suas sociedades, de suas inter-relações, confinou-se ao
estrito positivismo, onde se engendram todas as suas aberrações, nas quais vamos
encontrar a deformação dos conceitos de autoridade e legitimidade, sobretudo o de
poder legítim o, que é fundamental para a sobrevivência das nações. Triunfou o
racionalismo kantiano — daí a reatualidade de Kant em nossos dias — e sua se­
qüência se expressa no arbítrio, não raro larvado, recessivo, mas de qualquer ma­
neira arbítrio. N o seu estudo clássico sobre a filosofia de Kant, diz Émile Bou-
troux: “ Uma única coisa pode fundar a harmonia das vontades: a obediência à
razão. A vontade, de acordo com a razão, poderá ser considerada com o a legisladora
universal; não será mais preciso considerar a lei moral com o se im pondo de fora
da vontade; esta, enquanto universal, tem o direito de se dizer ela mesma a lei;
porque ela é a expressão da própria razão, fonte de toda a lei” .18 Parece absurdo
querer ir tão longe, para extrair as raízes da crise contemporânea do direito, e, por
via de conseqüência, do Estado, da legitimidade, da autoçidade. Mas é lá que deve­
mos ir buscá-la para a compreendermos. “ A cosmovisão ético-otimista conformada
pelo idealismo Kantiano ( . . . ) mostra seu trágico resultado no panorama moral
de nosso tem po. O subjetivismo filosófico de Kant tem seu corolário lógico na
concepção do direito e nos princípios do direito público e cosmopolita, por meio

16 Taparelli D ’ Azeglio. Essai Théorique de Droit Naturel. Paris, Casterman, 1857, 4 volumes,
I, n9 852 (p. 323), tradução francesa.
17
Tristão de Ath ayd e (Alceu Am oroso Lim a). Introdução ao Direito Moderno. R io, Edição
do Centro D. Vital, 1933, passim; e Miguel Reale. Fundamentos do Direito. São Paulo,
Revista dos Tribunais, 1940, passim.
18 Émile Boutroux. La philosophie de Kant. Paris, Vrin, 1968, pp. 301-02.
H6 O PO D E R M O D E R A D O R

ilos quais seu idealismo quis realizar a igualdade e a liberdade real do homem,
enquanto cidadão, e dos indivíduos, enquanto membros componentes de um
mun do unificado juridicamente ” .19
A rigor já não se sabe o que é o poder legítim o. Se, de um lado, legítim o é
o poder naturalmente aceito, por outro lado, todas as tiranias se legitimam. Segun­
do Maurice Duverger, a legitimidade é uma noção relativa e contingente.20 Mas
nflo concordamos com essa tese, pois essa noção veio a ser relativa e contingente
mi “ idade da revolução” . F oi a subversão de todos os valores do espírito, d o direito,
do conhecimento, a partir do século X IX , que a tornaram relativa e contingente,
lislá cheia de lutas pelo poder a História do “ bicho da terra tão pequeno” . Mas
nlé se escancarar para a civilização o fervedouro da “ idade da revolução” , não se
pusera em dúvida a legitimidade do direito de governar. Inúmeros governos
Ibrum derrubados; o golpe de Estado fo i executado vezes sem conta; dinastias
foram substituídas pela morte violenta. Mas nunca se articularam dúvidas à legiti­
midade do poder. Fizeram-no pela vez primeira os franceses no epílogo das “ três
gloriosas” , e, desde então, os governos são argüidos de legítim os e ilegítim os, po­
dendo ser classificados em duas chaves: legitimidade institucional e legitimidade
consentida. Veremos em outro capítulo em que consistem uma e outra. Se anali-
Niirrnos os governos de nosso tem po, seriam poucos os legítim os segundo o conceito
mitigo, mas todos são legitimados. Tanto é legítim o a chefia de Estado de H iroito,
Imperador do Japão, herdeiro milenar de uma Casa reinante, com o a de Idi Am in
Dada.21 Um e outro exercem o poder, o imperador com o um sím bolo, e o presi­
dente com o um ditador. Um é historicamente legítim o; é legítim o de direito
natural; outro é legitim ado; recebeu a sua legitimação d o fato, o golpe de Estado,
e tia aceitação tácita do povo, em suma do direito positivo, essa moderna forma
de dominação dos fortes contra os fracos, dos grupos eficientemente organizados,
como o Partido Comunista da União Soviética sobre uma federação de nações de
origens diversas, unidas sob o mesmo governo pelo m edo, pela opressão, pelo
rigor na exigência à subordinação de seus dogmas. Há, portanto, uma corrente
Irudlcionalista e uma positiva no definirem a legitimidade e o poder legítim o: a
corrente fundada na trasladação dinástica de um direito, expressa nos artigos
11 (i, 117 e 118 da Constituição de 1824:

Art. 116 — O sr. D. Pedro I, por unânime aclamação dos povos, atual
Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo, imperará sempre no
Brasil.
Art. 117 — Sua descendência legítim a sucederá ao trono, segundo a ordem
regular de primogenitura e representação, preferindo sempre a linha

<g
Arturo Enrique Sampay. La crisis del Estado de Derecho Liberal - Burguês. Buenos Aires,
lesada, 1942, p. 152.
Miiurice Duverger. Droit Constitutionel et Institutions Politiques. Paris, PU F, 1956, p. 39.
11 Keforencia no início do segundo semestre de 1977.
Q U E É PO D E R LE G ÍT IM O 87

anterior às posteriores; na mesma linha o grau mais próxim o ao mais


rem oto; no mesmo grau o sexo masculino ao fem inino; no mesmo sexo
a pessoa mais velha à mais moça.
Art. 118 — Extintas as linhas dos descendentes legítim os do senhor
D. Pedro I, ainda em vida do último descendente, e durante o seu Império,
escolherá a assembléia geral nova dinastia.

Estabelecia a Constituição o rigoroso princípio da primogenitura e do paren­


tesco mais próxim o do monarca, e com o não nos formamos sob o feudalismo, não
adotamos a lei sálica, a lei dos francos — Pactus legis salicae — que, emendada,
veio a ser a Carolo M agno emendata — lei que interditava o acesso da mulher ao
trono, mas deixava a Constituição à assembléia geral, isto é, teoricamente ao povo
nela representado, a escolha da nova dinastia, quando viessem a se extinguir as
linhas dos descendentes legítim os do primeiro Bragança do Brasil. Tão fiel foram
os brasileiros do primeiro reinado e da regência ao princípio da legitimidade com o
qual, estavam certos, poriam cobro às agitações republicanas dos governos regen-
ciais, que obtiveram a maioridade de D. Pedro II. Bastou o marquês de Paranaguá
proclamar, no Senado, em 23 de julho de 1840, o imperador maior, e uma criança
de apenas catorze anos e m eio pacificou a nação, dilacerada por lutas que atassa­
lharam Feijó, e fizeram o Brasil viver uma quadra de intranqüilidade terrível.
Nenhuma relação tem o princípio da legitimidade com o direito divino dos reis.
Para a monarquia brasileira, a graça de Deus, à qual, com a unânime aclamação
dos povos, a Constituição reconhecia o direito ao governo, era apenas a submissão
à doutrina católica, segundo cujos princípios todo o poder vem de Deus. “ Não
há direito divino particular para a realeza. Para quem crê em Deus, todos os direitos
são divinos. Os direitos próprios da realeza são os direitos históricos,22 com o acen­
tua Charles Maurras, o grande doutrinador da realeza, não somos teocratas, por­
tanto não poderíamos definir o direito divino. Para nós a hereditariedade do poder
nos aparece com toda a evidência com o a uma instituição política, que pode fazer
face às dificuldades nacionais,23 convicção esta que os presidentes-monarcas, não
obstante o artificialismo da situação que criaram, confirmam plenamente. Aduz,
ainda, o grande clássico da língua francesa que, para ós fervorosos crentes na
soberania popular, o direito do povo é divino.24 Mas essa teoria, freqüentemente
invocada no combate à idéia monárquica da organização do Estado, não é cató­
lica; é protestante, anglicana,25 e nesta quadra histórica da secularização mundia-
lizada é, mesmo, anacrônica. O que interessa, em nossos dias e na preparação do
futuro para as gerações vindouras, é isto: o poder moderador, com o órgão do

22
Charles Maurras. Enquete sur la monarchie. Paris, N ouvelle Librairie Nationale, 1909, passim.
13 Id., ib.
24 Id., ib.
25 r +■
John NeviUe Figgis. El derecho divino de los Reyes. M exico, Fondo de Cultura Economica,
1942, passim, tradução espanhola.
HH O PO D E R M O D E R A D O R

litim comum, supranacional, neutro, apartidário, histórico, deve ser admitido na


mm vulldude ou o consideramos superado? Na Espanha26 o generalíssimo Francisco
l nmco teve o bom senso de proceder à instauração da monarquia, a qual se restau-,
ton plenamente com a abdicação de D. Juan, conde de Barcelona. A irresistível
Imidènciu ao individualismo extremado e extremista da inquieta nação ibérica,
onde us eleições de 1977 foram disputadas por cento e sessenta e quatro partidos,
rricontrou um vértice, o rei; um ponto de confluência e equilíbrio, a monarquia,
o operou a transição de uma ditadura para uma liberal democracia, sem choques
umts violentos do que os já previstos. O rei D. Juan Carlos foi, a princípio, chefe
de nova dinastia, embora tivesse direito hereditário à coroa da Espanha, com o
llllio mais velho do conde de Barcelona. Renunciando este, seu direito historica­
mente se legitima, e a monarquia fo i restaurada, recompondo-se a linha rompida
com u renúncia precipitada de A fon so X III.
Guglielm o Ferrero27 estudou muito bem a questão da legitimidade, fixando-a
nu udmissão e na confiança, isto é, na submissão ao seu princípio e à confiança que
kc lho reveste. Se quisermos apelar para Montesquieu28 veremos que seu ju íz o é
laxativo: o príncipe deve reformar por lei o que é fe ito por lei e mudar pelo
costume o que é estabelecido pelo costume. A legitimidade do poder é dom ínio
do costume, da tradição da lei fundamental da nação; a legalidade, isto é, o
posto, é do dom ínio da lei. Quem a faz pode alterá-la. As legitimidades, portanto,
lumbém se mudam, mas pelo trabalho longo, paciente, demorado do tem po,
oHse que se concentra nas dinastias, com o a do Japão, que tem mais de dois
mil anos. Não é fácil compreender o conceito, embora não seja ele tão impene-
tiiivcl que não se possa arraia-lo de luz. Mas em idade histórica na qual a legi­
timidade fo i confundida com a simples legalidade, e esta se autodefine pela
lorça, pela eleição, por várias formas de submissão da mente, graças aos meios
de comunicação, é preciso ir além, e aclará-lo com velhos depoimentos ou com
peremptórias afirmações. N ão concordamos com autores, com o Duverger29, que se
relbrem à legitimidade teocrática e legitimidade democrática. A verdade é que
sempre, no tumultuoso curso da História, o poder fo i disputado. Não nos esqueça­
mos que o poder embriaga; é uma espécie de vinho, cujos eflúvios, pouco a pouco,
submetem o ser humano à embriaguez, à glória de mandar, à vã cobiça que Camões
ciintou. Mas, não obstante, a coroação dos reis e a sua unção na França, pois a
rouleza era o oitavo sacramento, com o disse Renan, na Inglaterra, e sob o Império,
onde o Napoleão, orgulhoso, não quis que Pio V II lhe consumasse a cerimônia
du sagração, não obstante a majestade, só os reis legítim os são aceitos, pois só
eles têm o poder histórico. Nas democracias, o poder se reveste de um rito sacra­
mental, que ainda estudaremos. Quando, pois, Max Weber estuda a legitimidade,

* liscrito no segundo semestre de 1977.


n
(.uglielm o Ferrero. L e Pouvoir. N ova Y o rk , La Maison Française, 1943, passim, tradução
Iriincosa.
“ Montesquieu. D e l’Esprit des Lois. L X IX , cap. 14, op. cit.
" Op. cit.
Q U E É PO D E R LEGÍTIM O 89

o que deduzimos é ter o autor optado pelo carisma, em lugar da História. A cei­
tando as suas reflexões, toda a autoridade é carismática, seja a da rainha (re i) da
Inglaterra, seja a do presidente dos Estados Unidos. D iz Max W eber:30 “ Se a
legitimidade do senhor não se pode comprovar segundo normas unívocas de um
carisma herdado, necessita legitimar a sua posição mediante outro poder carismá­
tico. E este é somente o poder hierocrático” . Acrescenta o autor que essa legiti­
midade se aplica ao senhor que representa uma encarnação divina, e, portanto,
que possua o mais elevado carisma pessoal. De acordo. A herança, ou seja, a
tradição, com o são os casos da rainha da Inglaterra e do Mikado, e fo i o caso do
Brasil — uma Casa real proclama a nossa independência e, naturalmente, se investe
no poder supremo da nação, com o aplauso de todos os súditos —, identifica e
consagra a legitimidade.
Ninguém discute o direito dos reis. Podem se manifestar contra o sistema os
descontentes, que os há, os republicanos, que existem, mas não se discute o seu
legítim o direito. Juan Carlos I de Bourbon, neto de A fonso X III, fo i elevado ao
trono com a morte de Francisco Franco, caudilho da Espanha. O seu direito ao
trono fo i contestado por seu pai, apenas por estar vivo ele, herdeiro legítim o do
trono. Abdicando, porém, meses mais tarde, o rei de Espanha só tem contestadores
ideológicos nos republicanos espanhóis, que embora em número reduzido são
ativos e ativistas. O carisma prevalece, na linha do pensamento de Weber, em nações
com o a China. O antigo Im pério do M eio necessita de um semideus para não
tombar em anarquia. T o d o o cerimonial, o cunho religioso da chefia, a distância
estabelecida entre o imperador e os súditos constituem o carisma de que carece
a sócio-psicologia chinesa para se sustentar e deter sob uma autoridade as centenas
de milhões de chineses que vêem sempre o imperador — ou o chefe de Estado —
com o o “ filho do Céu” . Mao-Tsé-Tung cercou-se de halo carismático, que ostenta­
ram sempre os imperadores. D a í ter sido um antichinês, um alienado ao estran­
geiro o fundador da República da China, Sun Y a Tsen. Form ado nos Estados
Unidos, sob a influência dos costumes americanos, da filosofia pragmática e do
racionalismo protestante; quando voltou para a China, com o revolucionário, tinha
o físico chinês, mas já era um ocidental, e, mais ainda, um ocidental reformado.
Urdindo a conspiração da qual resultou a proclamação da República, na realidade
atirou a China no fervedouro revolucionário, que seria dominado, quatro décadas
depois, pelo imperador carismático, Mao-Tsé-Tung. Restaurado o carisma dos antigos
imperadores, embora pela via revolucionária, Mao-Tsé-Tung governou com o senhor
absoluto, na Cidade Proibida, exercendo o poder •exatamente com o o fizeram,
embora sem a pompa do passado rem oto, os imperadores celestes. Não fazemos
prognósticos nem julgamento sobre a China. É outro o nosso objetivo; expom os o
que é poder legítim o e com o se legitima. Nas repúblicas racionalistas do Ocidente, o
poder se legitima pelo carisma e pelo juramento. É clássica a imagem do presidente
dos Estados Unidos, assumindo a presidência, com a mão sobre a Bíblia. As
sociedades humanas são diferentes das sociedades instintivas, ainda que maravi-

30 Max Weber. Economia y Sociedad. Op. cit., IV , p. 82.


‘>0 O PO D E R M O D E R A D O R

lliosumente bem organizadas, por exem plo a das formigas e das abelhas. Com o
ttflb dotadas de inteligência, ainda que a usem, não raro, tão mal, precisam assentar
N obre princípios, leis, tradições, memória, respeito ao passado, instituições,
hlorarquias, sem os quais as nações perecem, sem os quais acabam perecendo
liimbém as pessoas, abismadas na abulia, no destino vazio de sentido e até na
iiiiddude das mesmas.
O poder legítim o deve se revestir, portanto, do aparato moral, histórico e do
consentimento. Tem sido extensamente tratado o tema, menos porque os povos os
NUHCitem, do que por estar sendo o mundo, inclusive as nações mais solidamente
liem governadas, varrido por um furioso vento de rebeldia, de amoralidade — de
Indiferença aos cânones morais, muito pior do que a imoralidade que consiste na
Inlrução desses cânones mas reconhecendo-os —, um furioso vento de contestação
Ah instituições estáveis. Formas terríveis e monstruosas dessa anomalia de nosso
tempo, que desencadeou a anomia, a repressão, são o terrorismo, e o golpe
de Kstado, cuja expressão máxima se caracteriza pela guerra revolucionária. Quan­
do, pois, os Estados Unidos comemoram o seu segundo centenário sem registrar
ii sua História um só golpe de Estado, é, entre as cento e cincoenta e uma nações31,
um fenôm eno digno de comemoração e dos maiores louvores. A guerra revolucio­
nária se constituiu em nossos dias na maior ameaça à legitimidade do poder, à
cutubilidade das instituições, à normalidade que lhes esperamos para viver em paz.
Veremos em outro capítulo o papel que a guerra revolucionária está desempe­
nhando na intranqüilidade do mundo. Por mais institucionalizado que esteja o
poder, permanente ameaça o intimida, a guerra revolucionária que o desestabiliza.
Devemos, portanto, nos concentrar no princípio da legitimidade, nos fundamentos
ilo poder legítim o. Segundo Georges Burdeau32 “ não há duas explicações conce­
bíveis da autoridade: ou ela procede de um hom em que im põe sua vontade a uma
multidão passiva, ou ela tem sua fonte no assentimento comum” . “ . . . a nossa
mzão só pode tolerar a segunda hipótese” , embora a primeira ofereça neste século
XX maior número de exemplos do que a segunda. Pululam os ditadores, em nome
du salvação pública, do interesse da nação, dos imperativos da raça, da libertação
do p o v o , e de outras estereotipias em veloz circulação pelo mundo, sobretudo pelo
Terceiro Mundo. O poder é legítim o quando o garante o assentimento da nação,
mas, sobretudo, quando é justo, não obstante seja d ificílim o convencer o povo
(]ue uma força coercitiva é sempre justa. É legítim o o poder que garante a plena
expansão das liberdades humanas e os direitos da pessoa, mas é, também, legítim o
o poder que se arma, transitoriamente, de instrumentos excepcionais para sustentar
ii segurança nacional. O relativismo p olítico, com o se vê, rastreia o conceito de
poder legítim o, sobretudo na era da História secularizada e do ateísmo triunfante
nobre os destroços da fé.
Os antigos revestiam de sacralidade o poder, a fim de que a sua integridade
iirto se esboroasse. O poder, religioso e o poder temporal se congregavam na mesma

" I■-orito no segundo semestre de 1977.


' 1 ( loorgcs Burdeau. Traité de Science Politique. Op. cit., III, p. 134 e ss.
Q U E É PO D E R LE GÍTIM O 91

pessoa.33 Em A Cidade Antiga, Fustel de Coulange diz: “ É visível que os antigos


reis da Itália e da Grécia eram sacerdotes tanto quanto reis” .34 Foi com esse co­
meço sacral que as nações iniciaram sua história, constituíram as suas instituições,
revestindo-as de duração, e, associadas, formaram a Cristandade, no Ocidente,
estupenda sociedade de nações, sob a qual floresceram as mais belas idéias de
solidariedade humana. Quando, pela Reform a, se engendrou a revolução que, histo­
ricamente, dois séculos mais tarde, viria a abater regimes estáveis e introduzir a
instabilidade no seio das nações — que esta colocação esquemática seja compreen­
dida, porquanto não nos podemos aprofundar nessa imensa transformação, de
suas crises, de seu esplendor e de sua decadência — o poder se distanciou da sacra-
lidade — que não tem relação com o “ direito divino dos reis” —, do respeito graças
ao qual seu valor legítim o não era contestado. Tornou-se, então, sujeito a mudan­
ças, e sob este signo vivemos, sem vislumbrar alteração nesse quadro. De resto já
nos habituamos às mudanças, convivemos com elas, e nem as compreendemos
como anomalias históricas. As constantes referências ao poder legítim o, sobretudo
nos países latinos, carecem, pois, de uma fundamentação. Se a crise contem po­
rânea, essa crise que o assombroso avanço da ciência e da técnica não resolve,
mergulha suas raízes na crise da cultura, não é menos certo que a crise política lhe
está implícita, nas dúvidas sobre o poder legítim o.
Sofrem os povos, em nossos dias, em todas as nações, sobretudo nas comu­
nistas, o peso iníquo das leis ingratas. Se é difícil separar nos corpos de leis as
partes injustas das justas, se fazer oposição às leis injustas é, praticamente, im pos­
sível, deve-se, no entanto, reservar ao povo, através de seus representantes, o direito
de reação. Ninguém ignora que padecemos a opressão, muitas vezes asfixiante, de
leis econômicas injustas, mas não temos com o reagir, sobretudo na atual situação
do Brasil,35 em que nos gabinetes ministeriais se elaboram resoluções, com força
constitucional de lei, de cuja aplicação podem resultar imprevisíveis mudanças na
sociedade. Segundo Jean Dabin,36 a regra jurídica deve-se conformar ao direito, e
à moral; deve ser declarada injusta a regra jurídica que fere a norma da moralidade.
Quem, no entanto, está preocupado com a norma da moralidade? Prevalece nas
resoluções governamentais, mais especificamente, nas ministeriais, a razão de
Estado, segundo a interpretação que lhes atribuem os çventuais e transitórios
ocupantes dos cargos. Se o combate à inflação — para citarmos um exem plo — é
um bem, comprimir os salários, abarcando por esse meio, numa política, os mais
fracos, a vasta massa dos assalariados, é um mal, que atinge, diretamente, a essência
moral do ato. A civilização deste século X X — js na antecâmara do século X X I —
tão rico de conquistas tecnológicas, pois o homem passou em poucas décadas do

33 James George Frazer. The Golden Rough. Londres, Macmillan, 1974, edição abreviada,
p. 13 e ss; e La rama dorada, M éxico, F on do de Cultura Económica, 1944, p. 18 e ss, edição
abreviada.
34 Fustel de Coulange. La Cité Antique. Paris, Hachette, s/d (1 9 4 8 ), p. 203.
35 Escrito no segundo semestre de 1977.
36 Jena Dabin. La philosophie de Vordere furidique positif. Paris, Recueil Sirey, 1929, p. 673.
n O PO D E R M O D E R A D O R

14-BIs ao A p oio, está em crise, cujo enunciado já é um lugar comum, não porém
econômica ou social, mas de pensamento diretivo e de legitimidade de poder.
Se a crise da ideologia é evidente,37 a crise da legitimidade a supera.
Tem os uma crise de poder. Se as nações do norte da Europa, a Escandinávia
o a Inglaterra a evitaram; se os Estados Unidos não conhecem, mesmo, o problema;
se os comunistas a submeteram à ditadura férrea, criando uma espécie sacro-bizan-
tlna de respeito, o medo, as nações latinas debatem-se nas suas tenazes, e nelas
vão se debater, ainda, as nações africanas, tanto as recém-emergidas do colonia­
lismo europeu, com o velhas nações, a exem plo da Etiópia, que tom bou na anarquia,
na repressão violenta das manifestações, sem ter melhorado, mas, ao contrário,
piorado a sorte de seu povo, com a deposição do imperador Hailé Salassié. O
poder ilegítim o — e, em nosso tem po, fácil é indigitar-lhe a ilegitimidade, mas
difícil para ela obter adesão — provoca a reação, que consoante o ensinam velhos
tratadistas católicos, é de direito natural.38 Tem os, portanto, uma crise de poder e
uma crise de legitimidade. Veremos, nos capítulos subseqüentes, em que consiste
essa crise.

37 Joseph A. Camilleri. Civilization in crisis. Cambridge, Inglaterra, Cambridge University


Press, 1976, p. 201.
38 Santo Tomás. D e regimine principum. 1, 6, II, II, Q 42 a 2.
legitimidade institucional

V em no Evangelho segundo São Mateus,1 que Cristo reconhece a legiti­


midade e a autoridade de César. “ Então, retirando-se os fariseus, consultaram
entre si, com o o surpreenderiam no que falasse. E enviam-lhe seus discípulos
juntamente com os herodianos, que lhes disseram: ‘Mestre, nós sabemos que
és verdadeiro, e que ensinas o caminho de Deus pela verdade, e não se te dá de
ninguém, porque não fazes acepção de pessoas. Dize-nos, pois, qual é o teu senti­
m ento; é líc ito dar tributo a César, ou não? Porém Jesus, conhecendo a sua
malícia, disse-lhes: Por que me tentais, hipócritas? Mostrai-me cá a moeda do
censo. E eles apresentaram um dinheiro. E Jesus lhes disse: De quem é esta imagem,
e inscrição? Responderam-lhe eles: de César. Então lhes disse Jesus: Pois dai a
César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” . Tibério era o imperador de
Rom a, e, por esse tem po, já se havia voluntariamente isolado em seu retiro de
Capri, de onde governava o Império. Filho adotivo de Augusto, e seu sucessor,
Tibério exercia o poder legítim o. Cristo, que era Deus, e que para todas as questões
tinha a resposta certa, não hesitou em reconhecer a legítim a autoridade de Tibério
César com o, ainda, lhe exigiu respeito. Para Cristo, César era o poder. Eis tudo;
não vai além o Deus-Homem, nem o evangelista é minucioso no analisar o pensa­
m ento divino. N a concisão da resposta, encontra-se a precisão da tese e da doutrina.

1 Mat. 22-15, 22.


94 O PO D E R M O D E R A D O R

O governo deve ser legítim o e a esse govem o devem ser tributados respeito
o obediência, embora, com o reconhece Santo Tomás, ao tirano se deve recusá-los.
ilri, porém, duas espécies de legitimidade, a institucional e a consentida. De uma
e de outra dependem a paz e a prosperidade dos povos. Com o veremos em capí­
tulo subseqüente, os conceitos de legitimidade estão subvertidos; distorceu-os
a imensa revolução mundializada, que não só deform ou todos os esquemas
políticos mentais, com o os princípios nos quais eles devem assentar. N ão concor­
damos sobre conceitos, que, no entanto, deveriam ser elementares. O conceito
de legitimidade é um deles. Dizia Chesterton que, em casos de enfermidades
físicas, falamos, primeiro, da enfermidade, pois apesar da maneira com o se
produziu o transtorno, não há dúvidas sobre qual deve ser o estado normal, ao
pusso que nas ciências sociais, de m odo algum se contentam os homens com a
ulma humana normal; possuem à venda várias espécies de almas de fantasia.2
Nflo sabemos, portanto, se vamos nos entender sobre os conceitos de legitimidade
Institucional e legitimidade consentida. Se o primeiro fo i aceito durante milênios —
o a palavra de Cristo o comprova vindo a perder credibilidade no fim do século
X V III, o segundo está sujeito a golpes, com o os que lhe são aplicados, sobretudo
neste convulso século X X , pelas insurreições de impulso decisivamente ideológico.
Vem de longe a disputa, sem dúvida, mas por não querer o inquieto ser humano
submeter-se às leis da natureza.
Na A n tíg o n e ,3 Ismene pergunta a Antígone se ela vai violar o édito proibi-
tório de Creon. Este era o govem o legítim o. Suas leis deveriam ser respeitadas.
É, pois, eterna a preocupação dos povos com os governos legítimos. N ão só lhes
repugna obedecer a governos ilegítim os, com o, também, eles têm necessidade
de poder emanado legitimamente de sua fonte autêntica, que, no entanto, é
controvertida. N o Brasil, o govem o de Getúlio Vargas, de 10 de novem bro de
1937 á 29 de outubro de 1945, fo i juridicamente ilegítim o, embora ninguém
argúa de ilegais as leis então baixadas. Todas produziram efeito, uma das quais —
pura citar apenas esta — a de n9 5.423 de 19 de maio de 1943, que determinou
a vigência da Consolidação das Leis do Trabalho, seis meses mais tarde, assegu­
rando a todos os empregados e trabalhadores do Brasil direitos que os equipararam
aos trabalhadores e empregados dos países mais bem dotados de legislação social,
no Ocidente. Mas Vargas outorgou uma Constituição; não convocou a nação para
uprová-la ou reprová-la em plebiscito, consoante dispunha o seu artigo 187;
governou por m eio de decretos-leis, e só veio a encontrar oposição decisiva a seu
govem o no oitavo ano, quando a vitória das armas aliadas na segunda grande
guerra sepultara o fascismo e dera impetuosa vitalidade à concepção democrática
de sufrágio e consulta, não obstante a União Soviética, também vitoriosa, tivesse
em seu governo o tirano Stalin.

1 What's wrong in the world, várias edições.


1 Sófocles. Antígone. São Paulo, Edições A la iico , 1954.
L E G IT IM ID A D E IN S T IT U C IO N A L 95

Devemos contribuir para a interpretação dos fenômenos políticos de nosso


tempo, exumando a idéia de legitimidade institucional de velhos arquivos, e devol­
ver-lhe a atualidade? É gratuito fazerm o-lo, mas devemos proceder ao seu estudo,
e adotar a doutrina que se lhe aplique melhor. Platão e Aristóteles não trataram
diretamente da legitimidade dos governos, com o os autores do século X IX , sobre­
tudo os franceses. N o Oitavo livro da R ep ú b lica ,4 Platão admite que os governos
variam com as disposições dos homens e que os justos devem ser postos ao lado
dos injustos, a fim de serem uns e outros comparados. N o livro III das L e is 5 Platão
afirma que, para ser feliz, o Estado deve distribuir justiça, e, no mesmo livro,
estabelece duas formas de governo, a monarquia e a democracia, não entrando
na questão da legitimidade, propriamente dita. N o livro IV , Platão defende a
tradição e a vida feliz da humanidade, em dias quando as coisas eram espontâneas
e abundantes. Mas, ainda, não se colocara o problema da legitimidade. Era legítim o
quem conquistava o poder. Aristóteles fo i mais longe do que Platão. Na P o lític a 6
está encerrada toda a sua doutrina e a teoria das formas de governo. Aristóteles
nos estabelece as linhas diretrizes para a escolha do melhor regime. Partindo de
uma reunião de famílias, isto é, do fundamento natural das sociedades bem organi­
zadas, chega o F ilósofo — com o o chamava Santo Tomás — à organização do
Estado. Para Aristóteles,7 a realeza é bom governo. Não era o preceptor de
Alexandre que o afirmava, mas o F ilósofo, e só este nos interessa. Aristóteles
condena a oligarquia, admite o governo com o um generalato vitalício, e chega
ao conceito de hereditariedade, com o vieram a entendê-la as monarquias euro­
péias, já na era cristã. Especificamente sobre a legitimidade, Aristóteles não
discorre, não pontifica, não ensina.
Com o dissemos antes, esse conceito fo i introduzido na ciência política
no século X IX , na França, inspirando os miguelistas portugueses, quando D. Pedro I
deixou o poder no Brasil, abdicando em 7 de abril de 1831, e, em Portugal, o
conquistou para a sua filha, D. Maria II, contra as pretensões de seu irmão, D.
Miguel. Tão profundamente enraizada ficou na história das idéias políticas da
França e do Ocidente a luta da legitimidade entre os ramos “ ainé” e “ cadet”
dos Bourbons, que o Papa Paulo V I 8 respondeu ao desafio integrista — ou, mais
tradicionalista apropriadamente — afirmando, por alusão à luta dos legitimistas
franceses: “ o rito antigo veio a ser com o a bandeira branca dos monarquistas
legitimistas” . Os legitimistas franceses, no século X IX , não aceitaram a bandeira
tricolor e, por esse, aparentemente, secundário m otivo, não ascenderam ao trono,
com o conde de Chambord. ,

4 Platão. República, V III.


s Platão. Leis, III.
6 Aristóteles. Política, II.
7 Aristóteles. Política,III, IX .
8 Cf. L ’Express. Paris, n? 1364, 29 de agosto a 4 de setembro de 1977.
96 O PO D E R M O D E R A D O R

Em Portugal, o grupo do Integralismo Lusitano — nome deturpado de seu


iundamento e sua finalidade pelos integralistas brasileiros, signatários do mani­
festo de outubro de 1932 —, no qual se destacava A ntônio Sardinha, invocou,
nu defesa de D. Miguel, esse princípio, argumentando que D. Pedro havia perdido
seu direito ao trono, quando proclamou a independência do Brasil e fo i aclamado
sou primeiro im perador .9 “ Pelas múltiplas e gravíssimas causas já examinadas,
a realeza de D. Maria II não pode ser encarada senão com o um governo de fa to ,
que Portugal acabou por aceitar, porque sem governo não lhe era possível viver.
Morta, porém, prematuramente a rainha, ainda que a verdadeira legitimidade,
tanto a da pessoa com o a da instituição, estivesse exilada em Bronnbach, o que
não admite dúvidas é que os seus sucessores, D. Pedro V e D. Luís, receberam
o poder com o de ‘justo títu lo ’ em harmonia com a ordem sucessorial estabe­
lecida na Carta” . Os direitos legais de D. Maria I I davam lugar assim a uma situação
legítima debaixo do ponto de vista formal. Com D. Pedro V e depois com seu
irmão D. Luís, embora vivo ainda D. Miguel, a justiça de aquisição e a d iuturni­
dade da posse ir-se-iam transformando a pouco e pouco, quanto à pessoa do
monarca, numa espécie de legitimidade — a legitimidade de origem . N ão se tratava
já unicamente de uma ocupação. O poder fora herdado por vias legais — o que
importa dizer, por vias pacíficas. O que lhe faltava, porém, a esta legitimidade
de origem , era a legitimidade de e x e rcício , não porque el-rei D. Miguel vivia ainda,
mas também e sobretudo porque continuavam suspensas as leis fundamentais
do p ovo contra as quais de nada valiam, pois que se confinavam nos limitados
âmbitos duma questão sucessorial, os direitos legais de D. Maria I I .10 Cita A n tôn io
Sardinha o publicista Gama e Castro, que estabelece distinção em legitimidade
e razão legal, mas aduz que a legitimidade de instituição é essencial e deve coin­
cidir com a legitimidade de pessoa.
Não se trata de sofisma. Uma instituição é legítim a ou legitimada. N ão igno­
ramos, e até admitimos com o válida, a teoria de que em nossos dias a legitimidade
de instituição é antes de fa to do que histórica, e que ninguém, mesmo, argúi de
ilegítima uma institucionalização de poder, ainda que eivada de falhas, com o
os mandatos eletivos nas repúblicas americanas. O regime eleitoral estadunidense
é iníquo, trabalhado internamente por inúmeros fatores de corrupção e desfigu­
ração. Os demais, os latino-americanos, com o o mexicano, é escudo de uma
oligarquia, que se eterniza no poder, por meios desquitados do direito dos povos
de elegerem os seus representantes, e terem esse direito respeitado. N o Brasil
o sistema eleitoral vem sendo, desde o Im pério — agravando-se, porém, em 1977 -
distanciado de uma aproximativa noção de legitimidade, ainda mesmo da legiti­
midade consentida, de que falaremos mais adiante. Se os governos emanados
do m ovim ento de 31 de março de 1964 optaram pela eleição indireta não se
apartaram de uma tradição jurídica ocidental, sobretudo porque o sufrágio direto,

9 A n tôn io Sardinha. Processo dum rei. P orto, Livraria Civilização, 1937, passim.
10 ld. ib., p. 43 e ss.
LE G IT IM ID A D E IN S T IT U C IO N A L 97

secreto e universal praticado de 1945 a 1960, levou ao poder, com exceção do


presidente Eurico Gaspar Dutra, demagogos, eleitos que não chegaram ao fim ,
governantes sem um m ínim o de respeitabilidade para o exercício do múnus dos
cargos. Mas criaram artifícios, embora os justificando pelo interesse nacional,
com o é o caso da sucessão militar, desde o presidente Castelo Branco.
De todas as leis eleitorais até hoje postas em vigor no Brasil, só se salvou
u legitimidade institucional do Im pério, que não era eletivo, e, com o golpe de
15 de novem bro de 1889, a legitimidade consentida, mas, não raro, contestada,
da rotatividade presidencial, de Prudente de Moraes aos seus sucessores, embora
essa translação tenha sido interrompida, segundo a linha da transferência normal
do poder, no governo Washington Luís. Aceitamos o fato consumado, sem indagar,
mais profundamente, o sentido das mudanças a nós impostas, e dos governos
que somos obrigados a respeitar e a nos dobrar às suas leis, ainda mesmo as que
ferem os princípios de justiça. Mas esse é outro caso. Interessa-nos aqui a legiti­
midade institucional; é esta que provoca as maiores reações, pois o conceito de
instituição, sem ser controvertido, não é aceito pelos adeptos do direito positivo
e do voluntarismo legal, essa predominante tendência do mundo moderno, sobre­
tudo do mundo de nossos dias, atacado e flanqueado pela guerra revolucionária.
Constituem atributos do Estado poderes que lhe são próprios, mas há outros
que lhe são anteriores, e devem ter exercício institucionalmente assegurado . 11 Se
form os à origem da sociedade, temo-la não atomizada, com o quis e ainda quer
o liberalismo p o lítico , mas constituída de grupos — grupos primários e secun­
dários, naturais e artificiais —, aos quais, institucionalmente, deve ser reconhecido
o direito de se autogovernarem, tendo uma chefia na cúpula, semelhante ou
análoga à constituição das partes. Entrando no dom ínio da sociologia, afirmamos
com Georges Rénard , 12 que o fato social ultrapassa o conflito entre necessidade
e Uberdade, bastando elevar a perspectiva, isto é, desvendar as aparências, para
encontrar o verdadeiro, e perceber sua conjunção. Que é, pois, a instituição, como
fa to social? E, na palavra de seu grande teórico e filósofo, Georges Rénard, a form a
de amparar o crescimento da personalidade, a fim de que, sendo livre, sirva ela
ao comum; sendo ela própria partícipe de outrem. Rénard condena, com esse
fundamento, os absolutismos — em nossos dias os totalitárismos, ainda mesmo
os disfarçados em democracias tecnoburocráticas, tecnoestruturadas, ou que outra
denominação se lhe queiram etiquetar — acentuando serem eles erros radicais,
porquanto não há direito absoluto senão em De^s. Assenta a instituição sobre
o princípio da justiça, e com a instituição a legitimidade. É esse o pensamento
de Santo A gostinho . 13

11 J. D. Delos. “ L a théorie de l ’Institution” , in Archives de Philosophie de Droit, n°.s 1 e 2,


1931.
12 Georges Rénard. La philosophie de l’Institution. Paris, Recueil Sirey, 1939, p. 165.
13 In Cidade de Deus.
4« O PO D E R M O D E R A D O R

Não tem várias acepções o conceito de legitimidade, com o se pretende em


nossos dias. Sua raiz é institucional. Apenas deve o poder legítim o ser justo, não
Mo somente juridicamente justo, mas, também, ou fundamentalmente, teologica­
mente justo. Santo Agostinho ensina que a paz na cidade celeste é a ordem
perfeita e a alegria de Deus, acrescentando, ainda, que a paz de todas as coisas
é a tranqüilidade na ordem. Esta não se deve confundir, no entanto, com a ordem
totalitária ou a ordem dos campos de concentração, mas com a ordem institucional,
e só essa se legitima ou deve ser, filosoficam ente, entendida com o legítim a. Pode-se,
com o se vê, discutir interminavelmente sobre o conceito de legitimidade, mas
deixamos dito que há uma legitimidade institucional, cuja base deve assentar
sobre a ordem natural da constituição das sociedades humanas. Se essa ordem
foi subvertida, a partir do século X V II e da crise da consciência européia, nem
por isso devemos nos agregar a ela, ficar-lhe colados ao flanco, com o se fosse
inapelável a sua disposição.
Afirm a Santo Tom ás , 14 que a lei é objeto da razão. Em nossos dias é objeto
das conveniências dos detentores do poder. O fuerherprinzip, dos juristas alemães,
contraria Santo Tomás, e com o Doutor Angélico a própria ordem da posição
do ser humano no Cosmos . 15 A grande crise de nosso tem po advém dessa fonte
contaminadá de impurezas. A razão comanda as coisas ordenadas para um fim .
A natureza da lei deve estar de acordo com a razão . 16 Quem segue Santo Tomás?
Se o Doutor Angélico não fo i proscrito com o C on fú d o, na China de Mao Tsé Tung,
foi, ao menos, recolhido ao arquivo dos sábios definitivamente superados, embora
o tenhamos vivíssimo no mundo das idéias. Estamos, por isso, determinados a
expor a boa doutrina, e continuamos a associar legitimidade e instituição, estabe­
lecendo uma distinção entre autoridade institucionalmente legítim a e autoridade
consentida, convencidos de que uma preserva a sociedade das perturbações
revolucionárias e outra não tem elementos para fazê-lo.
O princípio institucional do direito não é aceito tranqüilamente pelos juristas,
sobretudo pelos adeptos do positivismo jurídico. Concordamos não ser fácil essa
admissão, numa idade histórica, como esta, em que o principado arma-se de tal
autoridade e da competência juslegal embora não jusnatural de fazer leis, com o
temos visto no Brasil, nos últimos catorze anos , 17 que não lhe convém dobrar-se
a um princípio argüido de obsoleto. Mas insistimos no patrocínio da instituição
com o fundamento do direito, por se constituir o seu princípio no elo unificador
das pessoas dispersas em sociedade, por associá-las em grupos, por estabelecer,
duradouramente, as hierarquias sociais e a própria hierarquia das sociedades
humanas. Aderimos, por isso, a Georges Rénard , 18 quando o filósofo da instituição

14 I, II, q. 90, a 1.
15 T od o o pensamento de Santo Tomas é pela ordem. Proprium rationis cognoscere ordinem.
16 I, II, q. 96, 5.
17
Escrito no segundo semestre de 1977.
IK Georges Rénard. Id. ib., p. 116.
LE G IT IM ID A D E IN S T IT U C IO N A L 99

afirma: “ A instituição é uma chave, mais, no entanto, do que um simples sinal


tipográfico; essa chave faz com que os homens não se dispersem, mas se organizem,
que form em uma ‘unidade de mitos’ , uma universitas, uma instituição, a qual
deve ser outra coisa que a soma de seus bens individuais, e a casa construída dife­
rente de um m onte de pedras, de telhas e de vigas. Eis a realidade institucional” .
Se não nos refugiamos na exclusividade da instituição com o fundamento
da legitimidade do poder, tamanha a subversão dos conceitos em nossos dias,
advogamos, no entanto, para a subordinação ao seu princípio a garantia da paz,
de Uberdade, de livre circulação das idéias, de diálogo, de obediência aos impera­
tivos dos direitos sociais, que o direito positivo, sem a sua aliança, não lhe confe­
rirá. Georges Rénard fo i intransigentemente, e até apaixonadamente, contendor
do direito positivo, enquanto amparado no positivismo ju rídico, que sabemos
degenerar no “ princípio do chefe” . D aí, a sua afirmação categórica. “ Se despre­
zamos as variedades do positivismo ju rídico, que é uma contradirão nos termos,
podemos avançar que há, em nossos dias, duas filosofias jurídicas essenciais : a velha
filosofia jacobina, que é, também, a inconsciente filosofia dos juristas que não
filosofam , e a filosofia institucional, que não é nova, na qual se reconhece um
certo bom senso, que não se vangloria tanto de ciência jurídica quanto de filosofia,
e que todas as demonstrações filosóficas e jurídicas não fazem senão duvidar
de si mesma” . 19 Em nota a essas reflexões, afirma Rénard: “ O positivismo é,
necessariamente, a negação do direito, que é um critério de julgar os fatos. É
preciso, portanto, que ele se coloque acima deles. O fato é tão im potente para
engendrar o direito com o o contrato a justificar a força das obrigações dos
contratos ” .20 Com o vemos, o grande teórico e filósofo da instituição assume
posição mais do que simplesmente doutrinária; ele invectiva, mesmo, o direito
positivo, entendido com o fonte única da lei, e se acolhe ao princípio da insti­
tuição ao qual se manteve fie l até o fim da vida. Se por nosso turno adotamos
a sua filosofia, é por vermos nela uma saída para as crises jurídica, política e
social de nosso tem po, e, mais ainda, uma crise para a legitimidade do poder,
ou para o poder institucionalmente deslegitimado.
Tem o ser humano em si mesmo e no seio dos grupos sociais aos quais
pertence, até ao grupo maior, a sociedade, de viver institucionalmente solidari­
zado, a fim de expandir as virtudes de que a pessoa é'dotada, conter a cupidez
que, infelizm ente, a maculam, e alcançar o fim para o qual ela deve viver. Daí
afirmar François Geny, que a “ instituição preexiste ao Estado, que é uma insti­
tuição entre outras, e que é por ela dominado” . “ A instituição é, por isso” ,
segundo o mesmo autor, “ a ordem em face da anarquia, o organismo em face
da célula, o objetivo em face do subjetivo, o idealismo em face do voluntarismo,
a coletividade em face do indivíduo, a ordem pública em face da vontade autó­
noma, a justiça distributiva ou social em face da justiça comutativa, a personalidade

19 Id. ib„ pp. 189-90.


20 Id. ib.
to o O PODER M ODERADOR

moral em face da personalidade física, o grande em face do pequeno, e, em graus


Inferiores, opõe a fundação ao ato ju rídico subjetivo ou ao contrato, o direito
Institucional ao direito contratual, a responsabilidade institucional à responsabi­
lidade individual, a racionalização à concorrência não organizada ” .21 O único
poder institucional ou institucionalizado é, nesse sentido, o poder legítim o.
1’ode-se argumentar, no entanto, que a instituição se converteria numa espécie
de grande alienação coletiva. Através dos graus de hierarquização social, ela
abarcaria toda a sociedade, contendo a pessoa em seus usos e costumes, suas leis
o códigos, dos quais não se poderia sair, nem se libertar, com o o tigre que não
se liberta de suas estrias, por serem intrínsecas à sua natureza.
A reflexão aparentemente é certa, mas é preciso ir além, à convicção de que
a instituição é libertadora ou desalienadora, por se fundar sobre a justiça. Se
lançarmos a nossa vista sobre o mundo contemporâneo — para não irmos a tempos
remotos e à história passada —, veremos que só se mantém estabilizado, apesar
do terrível vento revolucionário que sopra pela terra, o poder institucional, de
que são exemplos a república imperial americana, a confederação helvética, a
monarquia inglesa, o império japonês. O que importa não é impor uma instituição
a qual, por sua natureza, não se im põe, mas descobri-la, reconhecê-la, identificá-la
com os séculos, e obedecer-lhe aos princípios. A instituição deve se ajustar,
portanto, ao direito natural, cuja indicação aos juristas, aos legisladores, aos
chefes de governo é o de se submeterem aos hábitos, costumes, tradições que
manifestem os povos através das idades, na constância da vida social, na docili­
dade da razão e da vontade humana aos ditames da natureza. É com o a entendia
Santo Agostinho .22 Evidentemente, a era industrial e a pós-industrial em cujo
circuito já se encontram algumas sociedades de nosso tem po, a americana, a euroci-
dental e a japonesa, interpõem nessa conceituação a complexidade do mundo
contemporâneo, mundo que será mais com plexo ainda em futuro não muito rem oto
e no rem oto.
Fronteando essa realidade, não devemos pretender uma volta ao passado,
à pureza dos costumes antigos e à simplicidade dos raciocínios diante de uma
idade agrária. Temos hoje a ciência, a técnica e a tecnologia, as grandes massas
humanas, as megalópoles de milhões de habitantes, as grandes concentrações dem o­
gráficas num espaço restrito, com o São Paulo, que abriga doze milhões de habitantes
em cerca de dois mil quilômetros quadrados; temos as organizações sindicais e
as organizações patronais, o poder do Estado e das instituições que lhe constituem
o aparato. Foram-se para sempre os dias idílicos de outrora, mas, também, em dias
Idos está sepulta a necessidade, pois a indústria supre de bens de consumo os
habitantes desta nossa terra inquieta, em quantidade que proporciona a uma
empregada doméstica das classes médias inferiores de São Paulo — não precisamos

Jl François Geny. “ L a Théorie de l ’ Institution” . In Archives de Philosophie de Droit, vol. I,


1931, p. 39.
12 Gustavo Combès. La doctrine politique de Saint Augustin. Paris, Pion, 1927, p. 135.
LE G IT IM ID A D E IN S T IT U C IO N A L 101

nos referir às classes médias superiores, de alto padrão - mais con forto do que
tinha Felipe II, de Espanha, em cujo im pério o sol não se punha. Se ainda se joeiram
injustiças, e não poucas, no funcionamento das instituições de política social e
na política de Estado, é inegável que podemos chegar se não a uma ordem perfeita,
inacessível no plano da Cidade Terrestre, ao menos a uma ordem relativamente
perfeita, quando se integrarem todas as classes em comunhão de interesses, cujo
vértice supremo seja a crença no Deus Trino e Uno e o alvo intermediário o bem
comum, o qual as sociedades humanas obtêm da cooperação de seus membros,
para a consumação dos fins existenciais .23 Para a consecução desse objetivo, isto
sim, devemos ficar adstritos a princípios, e estes não têm idade.
Santo Agostinho defendia a ordem natural subordinada à ordem eterna ;24
é esta a reivindicação que fazemos, apelando para o reconhecimento da doutrina
da instituição com o suporte da legitimidade do poder, e, por extensão, da legiti­
midade de todas as iniciativas humanas. N o D e legibus ,25 Cícero é taxativo: a lei
não é produto do desejo dos povos nem do engenho humano, mas provém do
eterno, que deve reger o mundo — “ mundum regeret” — ao império da sabedoria.
Bem sabemos que estas considerações se contestam em nossos dias, com o princípio
do chefe, com o arbítrio dos governos distanciados da lei eterna e do direito
natural. N em por isso, no entanto, vamos abandonar a fonte cristalina onde nos
abeberamos, onde deveria o mundo contemporâneo se dessedentar.26 São neces­
sárias as instituições que o ser humano criou para o seu governo e para a ordem
da sociedade, não devendo elas apartarem-se do princípio institucional, esse, que
vimos defendendo com o imprescindível à paz, em todas as suas acepções. “ Somente
a instituição, durável ao infinito, faz permanecer o melhor de nós. Pela instituição
o hom em se eterniza: seu ato bom continua, se consolida em hábitos que se
renovam sem cessar nos novos seres que abrem os olhos para o mundo. Um belo
movimento se repete, se propaga e renasce, assim infinitamente. Se queremos
evitar um individualismo ( . . . ) não queiramos costumes sem instituições ” .27
Por instituições devemos entender, portanto, esses princípios modeladores
de seres humanos, as realidades comuns, estabelecidas pelo tem po e longa duração.
São as famílias, os grupos, os corpos intermediários, as administrações e o Estado,
sujeitos a uma lei não escrita com o princípios, e a leis que desse princípio decorrem,
às quais as nações devem sua presença no tem po e no espaço. Nessa linha, a
instituição é mais do que um contrato, situando-se acima do contrato, pois este
não a pode derrogar no tod o ou nas partes. Veremos em outro capítulo no que
consiste a legitimidade consentida, e mostraremos que, enquanto contratual,

03
J. Messner. Social Ethics. Londres, Herder Books, 1949, p. 118, tradução inglesa.
' Contra Faustum, M. L., X X II, 22.
25 D e Legibus, L. II, C. IV , par-8.
26 Alceu Am oroso Lim a (Tristão de Ath ayd e). Introdução ao Direito Moderno. R io, Centro
D. Vital, 1933, passim.
27 Charles Maurras. L ’avenir de l ’intelligence. Paris, Nouvelle Librairie Nationale, 1909, p. 16.
102 O PODER M ODERADOR

revoga-se, fenôm eno este comum da “ idade da revolução” . Se os regimes se


fundam sobre um contrato, podem , evidentemente, rompê-lo, e o rompem, cada
vez com mais freqüência, em bora todos os m ovim entos articulados nesse sentido
procurem se legitimar. Esse é o pensamento de Georges Rénard, o teórico e o
filósofo da instituição. Podemos afirmar, numa palavra, que a instituição é o senso
comum dos escolásticos, arraiada de luz pelos primeiros princípios, ou seja, a
filosofia, com o acentua Garrigou Lagrange, em obra clássica sobre o tem a .28 Todos,
segundo o douto dominicano, possuímos o senso comum, ao contrário do bom
senso, que é uma qualidade susceptível de variados graus, mais ou menos desen­
volvida em diferentes espíritos. O senso comum é com plexo, mas, em síntese,
admite a subordinação da vontade à inteligência e à liberdade, sem levar em conta
a dificuldade para conciliar esses termos. Duminado pela filosofia perene, como
acentua Garrigou Lagrange, o senso comum nos conduzirá à solução dos problemas
que nos preocupam no tem po e nos desvendará o caminho da eternidade .29 É o
que desejamos, é o de que precisamos, embora seja quase impossível se desfa­
zerem as brumas da confusão que envolvem o mundo numa espessa nuvem de
ignorância sobre os princípios, de impenetrável preconceito contra a Verdade
e as verdades, de aversão pelo conhecimento acerca da legitimidade, com o a
entendemos e procuramos definir.
Se bem indagarmos as causas dessa crise, verificamos que falta prudência
ao nosso mundo, a prudência que Santo Tomás colocou em primeiro lugar entre
as virtudes cardiais, pois lhe cabe dirigir a razão. “ A prudência encontra-se na
razão; é a própria razão se aplicando a dirigir a ação ” ,30 acrescentando Santo
Tomás que a “ certeza nos é dada pela inteligência, mas é necessário empregarmos
a razão, porque nem sempre é possível à inteligência alcançar a certeza ” .31 Se o
governante fo r prudente, ele poupará aos seus governados as preocupações que
no curso da História os assaltam, sobretudo em fases de crise, com o a atual, toda
ela mundializada, inclusive nas sociedades fechadas do leste europeu, a União
Soviética e seus satélites, e, na Ásia, nos países comunistas. A prudência, eviden­
temente, não legitima governos, mas concorre para sustentar-lhes a legitimidade,
em particular quando esta é institucional. N ão é fácil compreender a idéia da
instituição, no sentido em que a expom os, pois o mundo está imerso numa
tremenda confusão, cuja origem se entronca na “ idade da revolução” , no fim
do sécxdo X V III e in ício do século X IX . “ O mundo ocidental fo i agitado na
segunda metade do século X V I I I por movimentos intelectuais e econômicos.
A Reform a havia abalado todas as tradições e todos os conformismos sobre os
quais vivia a intelligentsia 32 européia dessa alta Idade Média. A religião, a política,

28 Garrigou Lagrange. Le sens commun. Paris, Desclée De Brouwer, 1936, passim.


29 Id. ib„ p. 85.
30 II, II, q. 49, a 5,1.
31 II, II, q. 49, a 5,2.
32 G rifo meu.
LE G IT IM ID AD E IN S T IT U C IO N A L 103

a moral mesmo haviam sofrido, no curso do século X V I, os assaltos repetidos que


o tradicionalismo clássico do século X V II havia tentado reter e reintegrar num
conformismo que não deixava de ser grandioso. A renascença do m ovim ento
econôm ico nos primeiros anos do século X V I I I fo i acompanhada de uma crise
de consciência que deveria estuar no m ovim ento das luzes ” .33
Numa obra clássica sobre esse período, Paul Hazard no-lo expõe com as
cores mais sugestivamente brilhantes e exatas: “ Uma filosofia que renuncia à
metafísica e, voluntariamente, se restringe ao que ela pode obter de imediato
na alma humana. A idéia de uma natureza que, ainda, se contesta que ela pode
ser perfeitamente boa, mas que é poderosa, que é organizada, que se põe de acordo
com a razão: daí uma religião natural, um direito natural,34 uma liberdade natural,
uma igualdade natural. Uma moral que se fragmenta em várias morais; o recurso
à utilidade social, a fim de escolher uma, de preferência. O direito à felicidade,
à felicidade sobre a terra; a luta empreendida da frente contra os inimigos que
impedem os homens de ser felizes neste mundo, o absolutismo, a superstição,
a guerra. A ciência que assegurará o progresso indefinido do homem, e, por via
de conseqüência, a sua felicidade. A filosofia, guia da vida. Tais são, parece, as
mudanças que se operam aos nossos olhos; tais são as idéias e as vontades que,
desde antes do fim do século X V II, assumiram a própria consciência, e se uniram
para constituir a doutrina do relativo e do humano ” .35 Dentro de poucos anos —
eram lentas as comunicações na época —, to d o o belo ed ifício do “ A n tigo Regim e” ,
na França, esboroaria, e, com ele, o princípio institucional da legitimidade do
poder. A Humanidade — vaga abstração, sem dúvida, mas uma configuração dos
povos reunidos sob o signo de uma mesma idéia — começava a marchar mais
depressa para a instabilidade, para a fratura da instituição, para o p rin c ip io das
nacionalidades.
Locke atacou a legitimidade dinástica ,36 que era, no entanto, o único
suporte institucional do poder. Quebrado que fosse, e veio a sê-lo, todas as aven­
turas seriam possíveis, todas as cobiças seriam provocadas, todas as ambições
seriam soltas. Devemos averbar a Locke e outros revolucionários da inteligência
o papel que desempenharam no rom pim ento da legitimidade institucional, que,
é, segundo a tradição histórica, dinástica por excelência e contratual ou consentida
por acidente, embora este se perpetue através das crises históricas, pois abalada
está definitivamente a confiança na lei natural. Uma obra famosa na sua época,
e significativa na bibliografia dos estudos políticos, de R obert Film er, Patriarca

33 François Dreyfus. Les temps des révolutions. Paris, Larousse, 1938, p. 15.
34 D ireito natural do naturalismo do qual ainda falaremos.
35 Paul Hazard. La crise de la conscience européenne. Paris, Boivin, s/d (1 9 3 9 ), II,
p. 137.
36 George H. Sabine. Historia de la teoria política. M éxico, F on do de Cultura Política, 1945,
p. 378; John L ock. Segundo tratado sobre o governo. São Paulo, A b ril Editora, 1973,
p. 83 e ss.
104 O PODER M ODERADOR

o el p od er natural de los reyes,31 defendeu a legitimidade dinástica, opondo-se-lhe


vigorosamente Locke e outros .38 A legitimidade pode não ser dinástica, mas contra-
tuul, e ser institucional, com o demonstraremos. É o caso dos Estados Unidos,
com a Declaração da Independência, da qual já falamos e ainda faremos com en­
tário em capítulo seguinte. Mas a regra é que deve ser dinástica, onde a História
a institucionalizou, com o é o caso do Brasil, não obstante reconhecermos que
um retorno ao estágio anterior é possível mas inviável, na fase atual das idéias
políticas e de pouca ou nenhuma relação entre doutrina política e luta pelo poder,
entre poder institucionalmente estável e consentidamente estável. Para Film er
a tese da soberania do povo e de que todo o poder dele procede é absurda. D aí
podermos afirmar que seu livro, argüido de anacrônico ,39 volta a ter atualidade,
na idade das massas humanas dominadas e manipuladas pelos meios de comu­
nicação, pelQS demagogos, pelos atores do Estado-espetáculo ,40 com o foram
Roosevelt, Kennedy, N ixon nos Estados Unidos; Churchill na Inglaterra; De
Gaulle na França; Hitler na Alemanha; Mussolini na Itália; Nasser no E gito; Peron
na Argentina; Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, Adhemar
de Barros, Carlos Lacerda no Brasil.
Quando o vento da Independência soprou pela Am érica Latina, depois
da independência dos Estados Unidos, fonte de inspiração de todos os movimentos
emancipadores do continente, aos quais viriam imprimir vigor as idéias da revo­
lução francesa, sobretudo os “ imortais princípios” ensinados em faculdades de
direito, universidades e até seminários que se pretendiam fechados às infiltrações
das doutrinas revolucionárias do século X V III e in ício do século X IX ; quando
da Convenção de Filadélfia, da Declaração da Independência e da Constituição
de 1787, se expandiu a idéia que iria sepultar o im pério colonial da Espanha,
o princípio dinástico era o que governava a Am érica Latina. Os vice-reinados
da Espanha se fragmentaram, adotaram o m odelo americano, menos por determi­
nação própria do que por influência exógena. “ A independência dos povos ameri­
canos é o resultado da desintegração do Im pério espanhol. Nenhuma das nações
da Am érica havia chegado às condições de madureza que determinam a emanci­
pação com o processo de crescimento natural. F oi forçada por inimigos do exterior
a nossa emancipação. N ão estávamos preparados para ela nem a desejávamos.
N o M éxico as diversas tentativas de rebelião contra a Espanha, instigadas todas
por agentes da Inglaterra e dos Estados Unidos, fracassaram rotundamente ” .41
N o Brasil, atuou o imponderável histórico. A fam ília real portuguesa fugiu
do invasor francês, as tropas de Junot, e transferiu para o Estado do Brasil a capital

37 R ob ert Film er. Patriarca o el poder natural de los reyes. Madrid, Instituto de Estúdios
P olíticos, 1966, tradução espanhola, edição bilíngüe, com o Primeiro Livro sobre o governo
de Locke.
38 George Sabine. Id. ib., p. 490.
39 Id., ib.
40 Robert-Gérard Schwartzenberg. L ’État-spetacle. Paris, Flammarion, 1977, passim.
41 José Vasconcelos. Breve História de México. M éxico, 1957, p. 235.
L E G IT IM ID A D E IN S T IT U C IO N A L 105

do reino. Se historicamente a nossa Independência fo i proclamada em 1822, na


realidade seu processo já se havia iniciado em 1808, quando a fam ília real desem­
barcou na Bahia, e o príncipe regente D. João abriu os portos ao com ércio inter­
nacional do Brasil. N o século X IX , fo i o único caso de rotação natural do poder,
de uma legitimidade dinástica para outra, esta um ramo da Casa de Bragança,
que passou a governar dois reinos. Na França, Napoleão, que fo i tocado do fo g o
do gênio, quis converter o poder institucionalmente consentido, que lhe fo i às
mãos pela revolução francesa, em poder institucionalmente dinástico, fundando
a sua dinastia, mas seu plano malogrou, com os insucessos nos campos de batalha
e a morte de 1’Aiglon. N ão faltou visão ao guerreiro de gênio, mas contra ele atuou
o germe da revolução e, mais do que esse, a Inglaterra, a tenaz, implacável inimiga,
que o venceu, desfazendo o seu sonho de edificar um grande império.
Já deixamos dito, páginas atrás, que a teoria do direito divino dos reis é
protestante. Se defendemos a legitimidade dinástica, o fazemos com base na teoria
e na filosofia da instituição e no seu princípio, a nosso ver o único susceptível
de neutralizar o mal que se contém no mobilismo social, indigitado por Pitirin
A . Sorokin com o uma das causas da crise de nossa época .42 A legitimidade dinás­
tica no Brasil prevaleceu de 1500 a 1889. D o regime das capitanias hereditárias
aos governadores gerais, não se interrompeu com os Felipes de Espanha — as Orde­
nações Filipinas foram adotadas por D. João I V —, prosseguiu depois da Restau­
ração, derivou com o herdeiro direto do trono português, D. Pedro I, para a
instituição do Im pério do Brasil, que continuou historicamente, sob a Regência,
cujo term o fo i posto pela Maioridade, e terminou em 15 de novem bro, com a
proclamação da República, quando passamos à legitimidade consentida.

42 P itiiin A . Sorokin. Social Mobility. N ova Y o rk , Harper, 1927, passim.


a legitimidade contratual

Há diferença de natureza entre direito consentido e direito contratual. O


primeiro vem desde a Idade Média. Quando o Im pério Rom ano entrou em processo
de decadência, e os legistas — os antepassados dos juspositivistas de nossos dias —
não mais atuavam na estrutura de Estado, o consentimento passou a ter força
de lei. A Idade Média fo i legislando progressivamente com base no consentimento
do povo; nada se fazia sem o consentimento. Não há maior prova de ignorância
do que a de etiquetar a Idade Média de obscura e obscurantista. Obscura e obscu­
rantista é a nossa Idade, não obstante as formidáveis conquistas da ciência e os
assombrosos saltos da técnica. Paradoxal, sem dúvida, mas verdadeiro. Esta idade
é supersticiosa, transcorre sob o m edo e a tirania, o pavor e o despotismo; os
povos não mais participam dos destinos das nações, que são decididos nos gabi­
netes e dados à publicidade com o fatos consumados. A época era outra, mais
simples; o acesso aos reis menos complicado^do que a audiência com o prefeito
de uma grande cidade do Brasil — ou de qualquer país — mas assim mesmo, o
consentimento ratificava decisões ou as precedia, com o debate das questões
de interesse da comunidade. Caracterizou, mesmo, a Idade Média o consentimento
com o fórmula do diálogo político entre o poder e os súditos. Não fo i a hereditarie­
dade o princípio adotado para a sucessão dos reis. Prevaleceu durante séculos
a eleição, com mandato vitalício, mas, a pouco e pouco, 0 costume, o imperativo
da estabilidade do poder e o bem comum dos povos, dos quais zelava a Igreja,
108 O PO D E R M O D E R A D O R

acabaram sobressaindo, e a hereditariedade, segundo a linha natural da sucessão,


fo i adotada até ao advento da “ idade da revolução ” . 1
Não importam os séculos, a diferença das eras históricas e o estágio de
progresso. O ser humano é um só, sempre o mesmo. Estude-se a sua história, no
seio das sociedades humanas, que as suas reações são sempre as mesmas aos
mesmos estímulos, as suas paixões, em todos os tempos, semelhantes, e o seu
com portam ento identifica a natureza humana com o permanente. O consentimento
tem sido, por isso, um dado fundamental das sociedades e comunidades humanas.
Se não o institucionalizam os costumes, se as leis não o favorecem, se os códigos
não lhe abrem vias para se manifestar, as sociedades caem, mais cedo ou mais
tarde, em crise, da qual só se salvam com sacrifícios, não raro duríssimos. A
M onum entã Germaniae H istórica, citada na obra dos irmãos Carlyle, registra
a indignação dos prim ores do reino da Itália, porque foram concedidas honras
a algumas pessoas, “ sine illorum consensu” .2 Esse era o autêntico sentido de
consenso, não o que se pretende generalizar nos tempos modernos, quando a
realidade é a da marginalização do povo na esfera do processo político. Nem
mesmo nos Estados Unidos e na Suíça o povo, na sua expressão genuína, parti­
cipa das decisões políticas. Não têm sido poucos os seus representantes, sobretudo
nos Estados Unidos, que lhe traem o mandato. Na Campanha Civilista, Rui Barbosa
já indigitava nas convenções partidárias americanas os vícios que a maculam .3
Houve mudanças nas instituições políticas americanas, nos setenta anos que m e­
deiam entre esse ju íz o e os nossos dias. Ainda mais, pioraram consideravelmente .4
Quem acompanhou, ainda que à distância, as convenções americanas, das
quais saíram candidatos Eisenhower, Kennedy, Johnson, N ixon e Cárter, sabe que
as candidaturas resultaram de circunstâncias fortuitas — a vitória dos aliados na
guerra, no caso de Eisenhower; a simpatia pessoal, a legenda da fam ília e o
“ charme” da mulher, no caso de Kennedy, ou da “ máquina p olítica” , nos
casos de Johnson e N ixon , da fraqueza do candidato republicano, no caso de
Ford. N ão houve, portanto, consentimento no sentido tradicional do vocábulo.
A opinião pública cedeu ao costume, ao princípio da maioria, ainda que mínima,
a qual consagra o fato consumado. Atua mais nos Estados Unidos, nacionali­
dade moderníssima, a tradição com o fator de estabilidade política, e finalmente,
quando os resultados das convenções partidárias são conhecidos, a cooptação
do costume. Já dizia Rui Barbosa 5 que, “ sem o concurso da tradição não há
durabilidade nas reformas, nas reações, nas conquistas populares” . O consentimento
advém da tradição. É essa força de coesão social, tantas vezes por nós louvada,
que sustenta as nações. Observamo-la? Cumprimo-la? Respeitamo-la? N ão. Mil

1 R. W. Carlyle e A . J. Carlyle. Op. cit., I, p. 240.


2 Id„ ib., p. 243.
3 Rui Garbosa. Excursão Eleitoral. São Paulo, Casa Garroux, 1909, passim.
4 Lew is Chester, G odfrey Hodgson, Bruce Page. A n American Melodrama. Londres, André
Deutsch, 1969, passim.
5 Id.,ib.
A LE G IT IM ID A D E C O N T R A T U A L 109

vezes não. O Brasil tem sido a nação onde o consentimento, fundamento da


legitimidade, ausentou-se de ação política, onde a tradição, base da estabilidade,
obscureceu-se na ignorância de seu significado. D a í vivermos de tateamentos,
na perpétua procura de “ m odelos” , essa espécie de magma, com o qual se pretende
amassar a duradoura institucionalização de regime, que carrega em si mesmo os
germes de sua própria destruição. Vivem os de olhos postos no exem plo americano.
Este, embora ostente algumas virtudes intrínsecas, é im perfeito, mesmo conside­
rada a relatividade das coisas.
Rui Barbosa criticava 6 asperamente o “ caucus” , denunciando a sua im orali­
dade. Supunha o grande baiano que já em seu tem po o “ caucus” tivesse sido
extinto. “ É o prim itivo ‘caucus’ , o genuíno ‘caucus’ americano, segundo o seu
bárbaro e misterioso nome, extinto na Am érica do N orte, pelos seus graves
males, pelos seus vícios incuráveis, há oitenta anos” 7. Mas The N ew Columbia
Encyclopedia 8 registra a palavra, não com o um arcaismo, porém com uso atual.
São os conchavos de partido, designados por esse nome, que se substituem ao
consentimento, vindo, dessa maneira, a legitimidade a desfigurar-se, a ser meia-
-legitimidade, ou, apenas, com o veremos, uma legitimidade contratual, não
obstante a força da tradição no funcionamento das instituições americanas. “ Eu
compreendo” , dizia Rui Barbosa, “ aplaudo e desejo que se acompanhe a América
do Norte nos seus princípios, nas suas boas qualidades, nas suas instituições, mas
não que se pretenda revivescer, da patologia das suas moléstias extintas, uma
enfermidade, cuja cura os americanos celebram com desvanecimento, para a virmos
tomar entre nós por m odelo, de adaptação constitucional ” .9 O “ caucus” é uma
das mazelas do regime, as convenções partidárias uma de suas forças, embora
devamos reconhecer na democracia americana virtudes que deram origem, pela
sua constância, ao seu vigoroso desenvolvimento. Não ignoramos que o “ capita­
lismo selvagem” passou nos Estados Unidos sobre cadáveres, que o “ caucus
rule ” 10 enxovalhou a sua política, que fortunas se fizeram em cima do terrível
sofrimento de milhões de pessoas, mas a continuidade de seu regime possibilitou
a continuidade econômica, da qual resultou se tornar a nacionalidade americana
a mais forte do mundo, a que proporciona o melhor padrão de vida a seu povo.
Divide-se o mundo, em nossos dias, ou cronologicamente, da “ idade da
revolução” ao presente, em nações governadas, umas segundo o consentimento
e outras segundo o contrato, predominando este em lugar daquele, ou seja, o fator
revolucionário da instabilidade em lugar do fator tradicional da estabilidade. São
numerosas as passagens da Summa Theologica sobre o “ consensus” , estabelecendo
0 Santo Doutor várias acepções do vocábulo: “ consensus rationis” , “ consensus
/

6 Id., ib.
1 Id., ib.
8 Ed. da Columbia University Press, N ova Y o rk , 1975.
9 Id., ib.
10 Harold J. Laski. Op. cit., p. 655.
110 O PO D E R M O D E R A D O R

voluntatis” , “ consensus coactus” , “ consensus conditionatus” , “ consensus delibe-


ratus” e outros. Fundamentalmente, para o nosso tema, o consentimento une
os apetites intelectual e racional ,11 e, com base nessa união, estabelecemos as duas
vertentes dos regimes políticos: de consentimento e de contrato. Vamos, ainda,
mais longe, subordinando ao primeiro todos os fatores da duração política, como
a tradição, a estabilidade, o bem comum, a representação com eqüidade, a hierar­
quia com a qual o povo reconhece e identifica os seus direitos, e ao segundo a
oscilação entre períodos de ordem e crise, de estabilidade e instabilidade, de rompi­
m ento com a tradição, de anulação do bem comum, e, mesmo, de seu detrimento.
Parecerá exagero. Argumentamos com a História, essa política experimental,
no dizer de Joseph De Maistre .12 A partir da “ idade da revolução” , isto é, da insta­
bilidade sem paradeiro, senão por meio de intervenções drásticas no processo
de anarquia, o que viemos a ter fo i o regime contratual, com poucas exceções,
a Inglaterra, abalada, embora, por terrível crise, o Japão, os Estados Unidos, misto
de consentimento e contratualismo, e a Suíça. Diremos, pois, que a legitimidade
consentida fo i a que preservou os povos de convulsões, poupando-lhes, através
da História, os desgostos, os reveses, que em nossa época lhes são comuns! Só
não conhecem crises, com o as nações ocidentais, os países comunistas, mas nestes
a um preço altíssimo, o da sonegação completa da liberdade de todos os seus
habitantes, inclusive dos dirigentes mais graduados e até do mais graduado, o
chefe supremo que, também ele, não tem liberdade. O “ universo concentracio-
nário” , expressão mudada para “ gulag” , pelo grande lutador Soljenitsin, arrecada
a liberdade dos súditos dos países comunistas, e, em compensação, nada lhes dá,
nem casa decente, nem comida barata, nem os direitos mais elementares, com o
o de visitar um amigo ou de recebê-lo tranqüilamente, à noite, para uma conversa
descontraída e sem preocupações . 13
A sociedade do consenso cedeu lugar à sociedade do contrato. Uma, a
primeira, se identifica com o poder moderador, dinástico, suprapartidário, eqüidis­
tante das facções; outra, a segunda, é a que prevalece no mundo, de fins do século
X V III aos nossos dias, e vai entrar pelo futuro, pois somos céticos quanto à volta
do consenso, com o o entenderam os tratadistas medievais, sobretudo Santo Tomás.
Na primeira, a legitimidade é institucional; na segunda é contratual. Essa a diferença
entre uma e outra legitimidade, entre uma e outra sociedade. Quando os Pais
Fundadores dos Estados Unidos instituíram a Constituição — já o deixamos
. ex p lícito em capítulo anterior — fizeram-no para consagrar, mais do que a Indepen­
dência, o seu princípio. A té então, isto é, até à “ idade da revolução” não se
impusera com o necessário o pacto escrito que reconhecesse a legitimidade do
poder. Não houve reino, im pério, principado, onde não se assinalassem lutas pelo
poder, numerosas, sangrentas, mas sempre se escudaram elas no princípio da legiti­

11 II, II q. 29 art. 2,1


12 Op. cit.
13 Hedrick Smith. The Russians. N ova York , The N ew Y o rk Times Book, 1976, passim.
A L E G IT IM ID A D E C O N T R A T U A L 111

midade dinástica. Quando o cesarismo encerrou a longa história da república


romana, convertendo-a numa ditadura, da qual veio a emergir o Im pério, César
obedeceu a um processo irresistível, o que suscita o ditador nos m omentos de
crise. N o curso dos graves acontecimentos de que Rom a fo i cena, quando Pompeu
e César alimentavam as tensões da república, presa da feroz anarquia, o poder
pessoal se impôs, contra o princípio do consentimento. “ A lição de Pompeu e a
sua própria mostram que o principado ‘consentido’ pertence ao mundo das qui­
meras” . 14 A í está, na palavra de um grande historiador, Léon H om o, e no exem plo
da História, e das mais ricas em grandes, decisivos acontecimentos, as vicissitudes
por que passa um povo, quando ele abandona a linha do consentimento. César
arruinou o principado, excedendo-se no uso dos poderes ditatoriais . 15 Trasladou­
-se do consentimento para o arbítrio. Prostrou-o o punhal de Brutus, Shakespeare
dá, em poucas palavras, a idéia do que era César. 16

A n to n io — não me esquecerei. Quando César diz — “ Faça-se isto” , já


está feito.

* * *

Cássio — Os homens são, algumas vezes, donos de seus destinos. A culpa,


querido Brutus, não é de nossas estrelas, senão de nós mesmos, que consen­
timos em ser inferiores. Agora, em nome de todos os deuses, de que
alimento se nutre este nosso César, que chegou a ser tão grande?

O cesarismo veio a ser, para sempre, a form a que reveste a opressão, sobre­
tudo nos regimes contratuais, com o os que foram surgindo depois da revolução
americana, e, mais velozm ente, depois da revolução francesa, quando, efetivamente,
se inaugurou a era da instabilidade dos governos, calcados na doutrina de Rousseau
e de seu “ feliz achado” , o contrato social. A té à “ idade da revolução” , ainda não
se havia imposto o contratualismo. Abatido o cesarismo, foi em Roma instituída
a monarquia com Augusto, durante a qual o Im pério atingiu o apogeu da glória.
Não se institucionalizando, porém, na linha de uma autêntica dinastia, caiu em
decadência, e acabou submergida pela onda furiosa dos bárbaros que desabaram
do norte. Coube à Idade Média, católica, recolher os fragmentos do Im pério, e
constituir os reinos, segundo a índole, as afinidades, a língua, os usos, os costumes,
as tradições históricas dos povos. Trabalho paciente de conversão e de instituciona­
lização, fundou-se ele, inteiro, no princípio do consentimento .17 A obra monu-

14 Léon Homo. Nouvette Histoire Romaine. Paris, Arthèm e Fayard, 1941, p. 280 e ss.
15 Montesquieu. Grandeza e decadência dos romanos. R io, Livraria Francisco Alves, 1967,
p. 117 e ss, tradução portuguesa.
16 Julio César, A t o I, Cena II e id., ib.
17 George H. Sabine. Op. cit., p. 204 e ss.
112 O PO D E R M O D E R A D O R

mental dos irmãos Carlyle 18 nos fornece abundância de exemplos. Entendiam-se os


reis e o povo através dos corpos intermediários. O poder era consentido, e como,
segundo a Igreja, a base da sociedade era a fam ília, uma delas teve a preponde­
rância reconhecida, e passou a governar, prolongando-se, nos seus descendentes,
institucionalizada a estabilizada. Nada mais lógico, nem mais racional. “ A crença
que o direito pertence ao p ovo e se aplica e m odifica com sua aprovação e con­
sentimento era universalmente aceita ” . 19 Evidentemente fo i lenta a evolução
das instituições medievais e deve parecer absurdo aos nossos contemporâneos
recuarmos tão longe na História, para, do passado rem oto, sacarmos exemplos.
Mas as nações obedecem a leis constantes, que pouco se alteram no curso dos
séculos; constringidas, embora, a se submeterem a novas idéias, acabam sempre
fazendo apelo a costumes e instituições pretéritas. Nada se inventou de novo
em matéria política, de Platão e Aristóteles aos nossos dias, salvo a parcial exceção
do presidencialismo americano, que acabou sendo um viveiro de crises para a
Am érica Latina, toda ela inspirada e decalcada no m odelo estadunidense.
Não questionaram a legitimidade os tratadistas medievais — ainda outra vez
o dizemos - mas combateram o tirano e a tirania. João de Salisbury 20 afirma
peremptoriamente que não somente é justo matar o tirano, com o legítim o. O
tirano perturbava a vida da Cidade; deve, portanto, ser m orto, a fim de que o bem
comum se conserve íntegro. Bracton 21 defendia as prerrogativas reais e a em i­
nência do rei no seio da nação. Para Bracton o poder dos reis estava sujeito ao
juramento de preservar a paz, de esquecer as pilhagens e iniqüidades e governar com
eqüidade. Santo Tomás, vastamente citado nesta obra, estabelece no D e Regim ine
Principum as normas de bem governar. Para o Santo Doutor, com o temos visto,
importam a paz na Cidade, o bem comum e, sobranceira às instituições, a justiça.
Egídio Rom ano 22 entende que a sucessão hereditária era preferível à eleição, para
ser evitada a corrupção. C om o se vê a História não se repete, mas, se o homem é
hoje o que fo i ontem e será amanhã o que é hoje, ele incidirá, sempre, nos mesmos
erros, cometerá os mesmos pecados, e será autor das mesmas faltas. Não há eleições
onde não se introduza a corrupção direta ou indireta. Ptolom eu de Luca 23 glosa
a P o lítica de Aristóteles, à qual procuramos ser fiéis, e defende o exercício do
governo em concordância com o Deuteronôm io, isto é, com o direito natural,
que tod o ele está contido nos Dez Mandamentos. Marsiglio de Pádua24, um dos
maiores tratadistas políticos da Idade Média, e precursor da ciência política, ensi-

18 Op. cit.
19 George H. Sabine. Op. cit., p. 205.
20 “ Policráticas” , in Ewart Lewis. Medieval Political Ideas. N ova York , A lfre d A. K nopf,
1954, passim.
21 “ De Legibus et Consuetudinibus Angliae” . In Ewart Lewis. Op. cit., passim.
22 “ De regimine principum” . / « Ewart Lewis. Op. cit., passim.
23 “ Determinatio Compendiosa de Jurisdictione Im perii” . In Ewart Lewis. Op. cit., passim.
24 “ Defensor Pacis” . In Ewart Lewis. Op. cit., passim.
A LE G IT IM ID A D E C O N T R A T U A L 113

niiva a submissão do governante — o príncipe — à lei. Guilherme de Occam ,25 o


Hriinde herege da filosofia, com o o nominalismo, que iria envenenar pelos séculos dos
séculos a fonte pura da verdade, defendeu entre os poderes espiritual e temporal, a
Niiu independência. Doutrina ousada, a sua, numa idade histórica em que o Papado
dominava. Por via de conseqüência refutou a tese da coroação com o princípio da
legitimidade .26 Mas fo i um antecipador da eleição do imperador por um colégio
eleitoral representante do povo.
Vem os que as idéias medievais continuam em nossos dias a ter atualidade,
iilteradas, por adaptação, a outros tempos e outras circunstâncias. Se na Idade
Média e até à “ idade da revolução” não fo i suscitada a dúvida sobre a legitimidade
do poder, hoje a tese deve ser debatida, se quisermos encontrar o caminho da paz
na Cidade. D aí oporm os o consentimento ao contrato, o direito natural ao posi­
tivo. Se procuramos, embora sem nos aprofundar, mostrar a diferença entre um e
outro, é porque vemos no primeiro o caminho e a segurança da paz, enquanto
o segundo engendra a instabilidade, com o estamos observando do século X IX ao
presente. Na linha destas reflexões, a legitimidade contratual, de direito positivo,
é, portanto, legitimidade sujeita à contestação, embora neste século, herdeiro
direto da carga de falsas idéias e falsas idéias claras do século X IX , não mais seja
possível distinguir uma de outra legitimidade. Chegamos, assim, a essa instância,
não convencemos praticamente ninguém que uma, só uma, a primeira, é de direito
natural, isto é, da esfera da filosofia moral ou da ontologia do direito ,27 enquanto
a segunda é da esfera do naturalismo, que se impôs do século X V em diante, com
a Reform a protestante. Enquanto aquela foi cultuada pelos discípulos de Santo
Tomás, guardando-a a Igreja, esta fo i exposta por Grócio, Hobbes, Pufendorf,
Thomasius e seus discípulos, espalhando-se com o racionalismo que iria triunfar
nos séculos X V I I I e X IX , pèla conquista de governos, de elites de pensamento,
e até mesmo das massas populares.
O direito natural, que assim se laicizou, desvinculando-se da filosofia moral,
viria a anunciar o direito positivo em sua plenitude, e, com ele, o contratualismo
p olítico. Ainda aqui continuamos a desentranhar do passado a sua imensa contri­
buição ao presente. Grócio teve influência atuante nessa época, embora pouca
atenção haja atribuído aos problemas práticos da política e da organização gover­
namental.28 Seu principal m érito, segundo Raym ond G. Gettel, fo i o de ter criado
um sistema de direitos e obrigações jurídicas, aplicáveis às relações dos Estados,
sob a proteção e sanção do direito natural, num tem po em que tinham desapa­
recido a unidade da Europa e a salvaguarda religiosa da moral universal.29 A idéia
de legitimidade já estava sendo solapada. Lentamente, sutilmente, imperceptível-

25
“ Dialogus” . In Ewart Lewis. Op. cit., passim.
26 George H. Sabine. Op. cit., p. 297.
27 M. B. Institutes du Droit Naturel. Paris, A . Durant et Pédope, 1876.
28 R aym ond G. Gettel. História das Idéias Políticas. R io, Alba, 1941, p. 223.
29 Id„ ib., p. 234.
114 O PO D E R M O D E R A D O R

mente o naturalismo, uma das formas do desvio do pensamento de sua fonte


autêntica, iria repudiar o rei, na independência americana, e cortar-lhe a cabeça
em 21 de janeiro de 1793, privando as nações, desde então, de um sólido apoio,
essa necessidade imperiosa, a paz, e esse fator de desenvolvimento e prom oção
humana, a estabilidade do poder. Da legitimidade consentida ou institucional
gravitou o poder para a legitimidade positiva ou contratual. Não poderia ser pior
o destino da humanidade, embora George H. Sabine seja de opinião que “ o pro­
blema de se saber se a obrigação do contrato é, na realidade, a mais óbvia das
verdades morais há muito deixou de ter importância p olítica ” .30 O certo é que
a cisão do direito natural em dois segmentos, o da filosofia moral e o da autonomia
da razão, iria estuar no fu eh rerp rin zip , no predom ínio do chefe, no legismo do
século X X , e, finalmente, com o arremate, na desestabilização constitucional, ou
desestabilização do poder.
- Georges Gurvitch 31 refere-se ao niilismo ju rídico dos nominalistas. F o i esse
niilismo que invadiu todos os domínios do direito, vindo a com prom eter a genuína
acepção de legitimidade, a consentida. Quando o individualismo se impôs no
século X V II, era uma form a de nominalismo que se manifestava, perfilhando-a
uma corrente de pensamento. “ Para a filosofia do século X V I I as relações aparecem
sempre menos importantes que as substâncias: o homem era a substância; a
sociedade era a relação. Esta suposta superioridade do indivíduo vem a revestir a
qualidade mais notória e persistente da teoria do direito natural e o que diferenciava
de m odo mais claro a teoria medieval da moderna. Desenvolvida especialmente por
Hobbes e Locke, passou a ser uma característica universal da teoria social até à
revolução francesa e perdurou em época posterior ” . 32 Começava a amadurecer a
idéia de contrato ou pacto. Os argumentos mais variados foram extraídos dos
Livros Sagrados e das obras dos filósofos antigos. N o Deuteronômio, Moisés fala
em pacto,

O Senhor nosso Deus fe z um concerto conosco em Horeb. N ão fez pacto


com os nossos pais, mas fê-lo conosco que somos, e vivemos h oje 33

mas com sentido diferente do contrato social e, portanto, político.


O Renascimento, a Reform a, as novas correntes filosóficas extraviadas da
escolástica decadente e herdeiras do nominalismo, que, com Occam tanta influên­
cia teve em Lutero, toda a pululante messe de idéias que romperam com a Igreja
e sua doutrina, vieram a constituir o viveiro do contratualismo. “ 'A teoria do contra­
to, mediante a qual se substituem os vínculos civis entre os homens por simples
relações naturais, figura, geralmente, nas concepções filosóficas dos pensadores

30 Op. cit., p. 413.


31 L ’idée de droit social Paris, Recueil Sirey, 1932, p. 175.
32 George H. Sabine. Op. cit., p. 414.
33 Deu. 5, 2-3.
A L E G IT IM ID A D E C O N T R A T U A L 115

mais importantes dos últimos anos do século X V II e da maior parte da centúria


seguinte” .34 Era, com o se vê, um rompimento entre a teoria do consentimento,
cara aos tratadistas medievais, e a teoria do contrato, que estadeia uma resistência
assombosa, pois domina ela o pensamento p o lítico de seu surgimento até ao pre­
sente, e deverá entrar pelo futuro. A democracia moderna entronca-se nessa origem.
Mas já em seu ressurgimento moderno, com outra fisionomia e diversa aparência,
da que até então se conhecera com o o “ regime da multidão” , nos vêm os here­
siarcas, e temos Hobbes com o seu Leviatã. Se a sociedade política é artificial,
tendo sido criada pelo contrato, justifica-se o gigante.3s Foi, porém, Locke o
grande introdutor da teoria do contrato na concepção política do Ocidente, de
onde suas idéias se irradiaram, conquistando o pensamento das Idades Moderna e
Contemporânea. Com Locke temos a legitimidade contratual, a mais frágil de
todas as legitimidades, mas, não obstante a sua fragilidade, duradoura, com o a
vemos, em nossos dias, oscilando entre a tirania e a liberdade, através do consti­
tucionalismo, elevado à condição de “ última ratio” da organização do Estado.
A essa legitimidade, opomos a do consentimento, mas, reconhecemos, em pura
perda. O contratualismo subsiste. Jellinek 36 reconheceu ser destruidora do Estado
a teoria do contrato social, porém seu triunfo é evidente. O raciocínio de L ock e 37
é, aparentemente, lógico; na realidade é paralógico, embora em suas idéias tenham
sido e continuem sendo aceitas. Se a sociedade política ou civil tivesse um começo
à maneira de uma sociedade econômica, a teoria do contrato poderia ser admitida
com o argumento, para discussão que, evidentemente, não teria fim. Mas, vindo
da noite dos séculos, se não assentar ela sobre o consentimento, dissolve-se e se tem
dissolvido. Não fiquemos em raciocínios preguiçosos ,38 muito menos devemos
incidir em petições de princípio, esses terrenos onde o mundo moderno e, mais
ainda, o contemporâneo têm patinhado sem saber com o dele safar-se, para entrar
na realidade. N o capítulo V III do Segundo tratado sobre o governo, Locke diz:
“ E assim todo o homem, concordando com outros em formar um corpo político
sob um governo, assume a obrigação para com todos os membros dessa sociedade
de submeter-se à resolução da maioria conform e a assentar; se assim não fosse,
esse pacto inicial, pelo qual ele juntamente com outros se incorpora a uma socie­
dade, nada significaria, deixando de ser pacto, se aquele indivíduo ficasse livre e
sob nenhum outro vínculo senão aquele em que se achava no estado da natureza.
Porquanto, que aparência haveria de qualquer pacto? Que novo compromisso, se
não estivesse mais vinculado por qualquer decreto da sociedade do que pensasse
apropriado e ao qual desse assentimento? Tal liberdade ainda seria maior do que a
que se encontrava antes do pacto, ou que outro qualquer no estado de natureza

34 R aym ond G. Gettel. Op. cit., p. 251.


35 Hobbes. “ Leviatã” , Encyclopaedia Britannica, N ova Y ork , 1952, passim.
36 Allgemeine Staatslehre. Berlim, Springer, 1929, passim.
37 John Locke. Segundo tratado sobre o governo. São Paulo, Abril, 1973, p. 77 e passim.
38 Leibniz. Theodicea, parágrafo 8.
116 O PO DER M O D E R A D O R

tivesse, que se submetesse a quaisquer atos de um pacto, e lhes desse assentimento,


se assim o julgasse conveniente ” .39
É esse um puro ente-de-razão. Locke não o comprovaria. Não o com provou,
mas se form ou uma ideologia, com aparência de doutrina, e o mundo inteiro
passou a depender do contrato, que é falível, rompendo-se freqüentemente, com
exceção numas poucas nações, onde o poder está institucionalizado. Em dois
autores que tiveram influência decisiva na formação do pensamento p o lítico , Hobbes
e Locke, se encontra a origem do Estado num pacto social elaborado pelo p o v o .40
Acompanhando-se as reflexões de Hobbes, somos seduzidos por sua argumentação,
mas ao cabo de análise mais profunda verificamos que seu empirismo vai se entron­
car na grande árvore cartesiana. “ O pacto (pactum, covenant) é uma ficção, uma
hipóstase, cuja realidade se demonstra pelo fato da existência do Estado e da socie­
dade. Existe a sociedade e o Estado, portanto tem que haver existido necessaria­
mente um pacto ou contrato do qual derivem .41 Hobbes não se dá ao trabalho
de se referir a nenhum Estado primitivo, nem a nenhum pacto histórico, que
haja sido concertado entre os homens. É, com o se vê, um produto da razão, uma
forma de racionalismo, portanto de materialismo. A fonte do poder é a natureza
e o pacto. A natureza se baseia na força; o pacto no contrato social. Leonel Franca
S. J. etiquetou de esdrúxula a sua teoria acerca da origem do Estado e da socie­
dade civil 42 O advento do contratualismo já estava assinalado na história das idéias.
Confusamente, se introduziu o pacto social na galeria do pensamento. Hobbes e
Locke são dois contratualistas, que, no entanto, se opõem um ao outro. Enquanto o
autor do Leviatã é absolutista, um totalitário “ avant la lettre” , Locke é liberal,
é, mesmo, um dos grandes patronos do liberalismo. Filosoficam ente, Locke é
classificado como sensualista, confundindo a inteligência com a sensibilidade.
Leitor desprevenido poderia aparentar a sua teoria do conhecimento à dos esco­
lásticos, mas é só na aparência que se aproximam. Tributário de Bacon e Descartes,
Locke é um dos grandes responsáveis pela confusão em que mergulhou o mundo
moderno, sobretudo na esfera política.
Não vamos fazer exposição sobre a filosofia de Locke; não é objeto desta
obra. Partimos dela, no entanto, para chegar ao contrato, que iria ter, efetiva­
mente, em Rousseau o seu grande prógono. Um dos enciclopedistas, fo i dos mais
ilustres propagadores da Dustração e, portanto, um dos artífices da crise do pensa­
m ento, com o ainda a sofremos em nossos dias, e vamos sofrê-la pelos anos do
futuro, sem que se lhe anteveja o paradeiro. A teoria do contrato social é fanta­
siosa. A História não a comprova. A formação do N ovo Mundo, com a sua reve­
lação ao Ocidente, deu material às reflexões de Rousseau. Mas o N ovo Mundo
desvendou à civilização sociedades pré-políticas situadas em vários estágios, umas

39 Op. cit., Cap. V III, 97.


40 R aym ond G. Gettel. Op. cit., p. 261.
41 G uillerm o Faile, O. P. História de La Filosofia. Madri, B. A . C., 1956, III , p. 740.
42 Noções de História da Filosofia. R io, Agir, 1949, p. 161.
A L E G IT IM ID A D E C O N T R A T U A L 117

com organização adiantada do poder com o a Azteca, a Maia e a Inca, e outras com
o reconhecimento da chefia, natural em qualquer agrupamento humano, sem
diferente subordinação que a instintiva ou a da estrutura primitiva tribal. Dei­
xando-se de lado as fantasias de .Rousseau sobre o “ bom selvagem” , que nos inte­
ressam apenas relativamente, temos o Contrato Social, que iria provocar uma
revolução no mundo, esta, no curso da qual ainda nos encontramos. Chama-o
Maritain o “ pai do mundo m oderno ” ,43 e, de fato, as suas idéias continuam vivas;
a grande imprensa repete quase todos os dias a expressão contrato social, com o se
tivesse ela realidade palpável e fosse possível o distrato social. Compreendendo o
contrato social no sentido da nota de Lourival Gomes Machado ,44 segundo o
qual cada um de nós, para viver em sociedade, dá-se completamente, isto é, submete
aos padrões coletivos todos os impulsos naturais da criatura individual, porém
sendo essa submissão igual para todos a ninguém interessa agravá-la. O corpo
moral e coletivo do contrato social45 dá à sociedade o seu eu comum. “ A con­
cepção de lei, em Rousseau, aproxima-se do moderno conceito das constituições
ou leis fundamentais de um Estado, a cujas normas todos os poderes devem ajustar
atividades ” .46 “ Rousseau projetou em sua teoria a própria personalidade e a sua
origem, a Suíça, Genebra. Condicionado pelo m eio, sofrendo as suas interações,
Rousseau elaborou uma ideologia, e com ela acabou influindo nos destinos do
mundo ” .47
Vivem os, por isso, sob alguns signos. Um deles é o de Rousseau, o outro é o
de Hegel. A teoria da soberania do povo é de Rousseau. Estamos vendo onde ela
abica; já na desordem, já na tirania. A Declaração dos Direitos do Homem, elabo­
rada por uma comissão da Constituinte, durante a revolução francesa, e votada
em 26 de agosto de 1789, portanto nos primeiros dias da grande convulsão, se
inspirou em Rousseau. Sua teoria circulava nos meios intelectuais franceses e
fizera discípulos. D aí podermos considerá-lo o pai da revolução francesa, e, por
extensão, do seu prolongamento, da revolução no mundo. Não vemos, em nossos
dias, no Brasil, sacerdotes e leigos, democratas e comunistas clamarem pelos
direitos humanos, que são obra da revolução, portanto do mal com o princípio?
Esse precursor do romantismo e do materialismo jurídico, do criticismo e, final­
mente, do racionalismo hegeliano, é também o pai da legitimidade contratual.
É uma incoerência defender-se a idéia de legitimidade contratual, mas em mundo
altamente perturbado com o o nosso, fraturado no depósito das suas verdades niais
caras e da própria Verdade, não nos devemos sonegar a essa realidade, a dos gover­
nos legitimados pelo contrato e substituídos pelo distrato. Não se nega que
Rousseau haja se preocupado com o destino do ser humano sobre a terra. Mas o

43 JacquesMaritain. TroisReformateurs. Paris, Plon, 1925, p. 138.


44 D o Contrato Social. A b ril Editora, 1 9 7 3 ,1, V I.
45 Id., ib.
46 Raym ond G. Gettel. Op. cit., p. 300.
47 Cf. George H. Sabine. Op. cit., p. 552.
118 O PO D E R M O D E R A D O R

filó so fo genebrino fora melhor não ter nascido. O mundo seria diferente. Como,
porém , não se argumenta em História com os condicionais — temos dito e repetido
tantas vezes — devemos mostrar a nocividade de sua teoria e de suas idéias, embora
tenhamos de aceitar a legitimidade contratual, que é, praticamente, a regra, no
mundo contemporâneo.
O vento da independência soprou, com o dissemos antes, da revolução ameri­
cana, mas não nos inspiramos nas idéias que lhe deram vida; não fo i o b ill de direi­
tos da velha Inglaterra medieval adaptado às suas novas convicções pelos puritanos
de Cromwell. Concordamos a este respeito com Renan, quando o sábio do College
de France diz: “ Que colônias habituadas a se governar de maneira independente
rompam o laço que as une à mãe pátria, que, rom pido este laço, elas ignorem a
realeza e procurem a sua segurança por um pacto federativo, nada há de mais
natural” .48 Não é o caso das nações que se formaram na América, nações que
adotaram o regime presidencial americano — com exceção do Brasil, que só o
fe z em 15 de novembro de 1889 — sem, contudo, terem o passado das colônias
que vieram a constituir os Estados Unidos. Cometeram todas as nações america­
nas um grandíssimo erro, pelo qual pagam até hoje, e nós, que já éramos gover­
nados por um regime originariamente integrado em nossas tradições ancestrais,
rompemos a legitimidade consentida e perfilhamos a legitimidade contratual.
Basta a análise histórica da Am érica Latina,49 para se chegar à conclusão que não
temos afinidade com os Estados Unidos. O decalque nos fo i taxativamente fatal.
Do M éxico à Argentina bracejamos crises sem term o, mais ou menos esmaniados
à procura de “ m odelo p o lític o ” , simplesmente porque vivemos da ilusão — de
resto alimentada pelos “ scholars” americanos — de um mimetismo sem funda­
mento nem justificativa.
Nenhuma nação americana teve nem terá as instituições políticas ameri­
canas. O gênio de Rui Barbosa, autor da nossa primeira Constituição republicana,
não lhe bastou para fazê-lo ver a diferença de origem entre os dois povos: que os
Estados Unidos continuaram a Inglaterra, adotando a monarquia eletiva, um suce­
dâneo, com o nome de presidente, ao mesmo tem po que substituíram — já o disse­
mos antes — o carisma necessário do rei pelos carismas da Declaração da Indepen­
dência e da Constituição, esta a primeira Constituição escrita no mundo, e ponto de
partida do constitucionalismo moderno. Do M éxico à Argentina as crises p o lí­
ticas são intermitentes, e, ao parecer, não terão fim , pois a legitimidade contratual
oferece às forças da subversão, à guerra revolucionária, ao princípio do mal o
flanco desguarnecido da rescisão do contrato. Falta a essa legitimidade a chancela
da História, da tradição, a institucionalidade, que nos Estados Unidos ilude,
porque lá está ela presente no seu sistema, não obstante os defeitos que a maculam,
os vícios que a enodoam, defeitos e vícios que seria longo arrolar. Reconhecemos

48 Ernest Renan. La reforme intelectuelle et morale. Paris, M ichel Lévy Frères, 1975, p. 260.
49 C f. João de Scantimburgo. O Destino da América Latina, São Paulo, Companhia Editora
Nacional, 1966, passim.
A LE G IT IM ID A D E C O N T R A T U A L 119

que as “ idéias feitas” têm força; que as convicções não se deixam abater com
facilidade; ao contrário, o cimento de sua resistência dificilmente cede. Mas diremos
que com a legitimidade contratual não alcançaremos nunca a instância da paz na
Cidade. O contrato será sempre ameaçado e a sua legitimidade, por via de conse­
qüência, contestada. Para fazer a revisão dos conceitos é tarde? É cedo? Em História
nunca é cedo, nem tarde, pois os regimes não são eternos. Sem adotarmos a teoria
pendular da História — e não a adotamos — diremos que os regimes se sucedem,
mas somente depois de longa, bem longa maturação dos erros e das verdades.
A legitimidade contratual vai ter, ainda, vida longa.
legitimidade e revolução

0 conceito de legitimidade, ou o que devemos entender por legitimidade, só


será compreendido se o associarmos ao de revolução, esse processo de subversão,
que vampiriza a civilização moderna. Baralhada com o todas as definições em nosso
tempo, e confuso com o todos os conceitos das ciências do espírito, em nossos dias,
até mesmo no campo da filosofia, não raro se supõe que é revolução o seu contrá­
rio. “ Uma revolução é mudança abrupta para novas formas de autoridade, numa
sociedade ou num Estado nacional” . “ Uma revolução é, portanto, mais ou menos
uma inesperada mudança social, usualmente acompanhada pela reversão da ordem
política e pelo estabelecimento de novas formas de controle social e legal ” . 1
Concordamos em que chega a parecer insólito paradoxo acoplar legitimidade e
revolução, mas é com o podemos nos fazer claros, sem ofender o raciocínio lógico.
A “ idade da revolução” , títu lo de um dos volumes da H istória, de Winston Chur­
chill, já por nós citado, ainda está em curso, e, não sabemos quando vai ela acabar.
A trama revolucionária fo i urdida no século X V III, embora Jacques Ellul 2 a recue
ao século X V II. Seu maior agente intelectual fo i Rousseau, a inteligência enferma
de Genebra, que, por um desses acasos, desses imponderáveis de que está juncada
a História, conquistou as inteligências, e se proloíigou no futuro, vivo estando
até hoje. A o se pôr a revolução em marcha, nas “ societés de pensée” , nos clubs,

1 Kimbal Young. Social Psychology. Londres, Kegan Paul, 1946, p. 313.


2 Jacques Ellul. Autopsie de la rèvolution. Paris, Calman-Levy, 1969, passim.
122 O PO D E R M O D E R A D O R

nos salões da aristocracia, nos palácios reais, nas casas burguesas e nos castelos
das províncias francesas — pois a revolução fo i européia, suíço-francesa, protes­
tante, inglesa, mas sobretudo francesa, e, finalmente alemã —, o princípio da legiti­
midade do poder começou a ser roído, e desabaria em 1776, com a fundação dos
Estados Unidos, e em 1789, com a revolução francesa. Quando, pois, na noite
de 14 paia 15 de julho de 1789, o duque de La Rochefoucauld-Liancourt acordou
Luis X V I, para lhe anunciar a tomada da Bastilha, e o rei lhe perguntou: “ É, por­
tanto, uma revolta” , respondendo-lhe: “ Sire, é uma revolução ” ,3 estava rigorosa­
mente certo. “ O acontecimento era ainda mais grave. Não somente o poder havia
escapado das mãos do rei, mas ele não caiu nas da Assembléia; estava por terra,
nas mãos do povo desarvorado, da multidão violenta e sobretudo dos agrupa­
mentos que o tomavam com o uma arma abandonada na rua” . Triunfava a idéia
revolucionária. D aí por diante seu volume cresceria, até submergir a civilização
inteira sob a sua espessa densidade, com tamanha dimensão, que acabaria por
habituar todos os povos aos seus princípios, estes, nos quais ainda vivemos, e de
cujo dom ínio não nos vamos libertar em futuro próxim o. Jules Monnerot 4 nos
oferece várias acepções da palavra revolução, mas ficamos com esta, a que a define
com o “ uma mudança violenta, à primeira vista radical e completa, do regimè p o lí­
tico, expressão de mudanças mais profundas” .
O tema é, com o se vê, com plexo. Introduzindo a desordem na inteligência, a
revolução mina os fundamentos da paz, que não a tem o mundo m oderno, e abre
caminho para o exercício totalitário do poder. Charles Maurras5 liga a revolução
ao romantismo, isto é, à explosão individualista do século X IX , ao dom ínio da
inteligência pela imaginação — que tanto iria influenciar Marx, o protótipo do
revolucionário romântico da inteligência - e lhe atribui os males de que sofre a
civilização. Do individualismo unitário passamos ao individualismo da massa, e
temos o comunismo, esse típ ico produto filo só fico — que nos seja permitido
usar o lugar comum — da exaltação individualista, por paradoxal e absurdo que
ainda pareça. Habituamo-nos com a palavra revolução, e com o não indagamos
em profundidade o sentido amplo de seu conceito, admitimo-la. Mas é nas desor­
dens de várias espécies do pensamento revolucionário, há mais de dois séculos,
que vamos encontrar a chave paia a inquietação de nossa época histórica. Os meios
de comunicação e os transportes rápidos ampliaram, pela extensão, a capacidade
humana do diálogo, mas, também, a de fazer o mal. O mundo está inteiro tomado
pela febre revolucionária, e não há quem o possa curar, sobretudo porque as idéias
de alguma eficácia contra essa terrível doença não se aceitam nas universidades, na
imprensa, nos círculos intelectuais, onde se forma, se nutre e se transmite o pensa­
m ento contemporâneo. A revolução é, mesmo, uma form a de transformação social,

3 H. Taine. Les origines de la France contemporaine. Paris, Hachette, 1896. II, p. 3.


4 Jules Monnerot. Sociologie de la révolution. Paris, Fayard, 1969, passim.
5 Charles Maurras. “ R évolution e t Rom antisme” , Oeuvres Complétés. Paris, Flammarion,
1954, passim.
L E G IT IM ID A D E E R E V O L U Ç Ã O 11 1

à qual aderem e defendem numerosos pensadores e ativistas. Caio 1’railo limlm *


um dos expoentes do marxismo teórico no Brasil, vê no socialismo o onImtil«>
da revolução brasileira, sem contudo fazer distinção entre o que devomnn r
o que não devemos entender por esse vocábulo mágico, revolução, emboiii iciilm
procurado conceituá-la no primeiro capítulo de sua obra. N o capítulo V, ('»In
Prado Júnior expõe o “ programa da revolução brasileira” , acentuando: “ A revo­
lução brasileira ( . . . ) se constitui no com plexo de transformações em curso 011
potenciais, que dizem respeito à estrutura econômica, social e política do país, e
que contidas e reprimidas pela inércia natural a toda situação estabelecida, se de­
senrolam de maneira excessivamente lenta e não logram chegar a term o” . Acres­
centa o autor a sua prescrição para ser atingido o objetivo revolucionário: “ Cabe
precisamente à ação política revolucionária estimular e ativar aquelas transfor­
mações implícitas no processo histórico em curso e de que tais perturbações consti­
tuem o sintoma aparente e mais diretamente sensível. É a programação das medidas
necessárias ou favoráveis a esse fim que forma a teoria revolucionária ” .7
Vê-se que os marxistas, e quantos lhes aceitam a liderança, ativa, nuns casos,
intelectual, em outros, estão empenhados, decisivamente, em executar o ciclo do
que proclamam ser a “ revolução brasileira” . Apontando as contradições do “ pro­
cesso histórico” — a obra do autor é rigorosamente fiel à terminologia marxista —
diz, ainda, Caio Prado Júnior: “ É nas contradições através de que se desenrola o
processo histórico-social que se determinam tais fatos e situações (examinadas
antes). Contradições essas que se caracterizam pela eclosão, no interior de qualquer
situação e em função dela mesma e com o seu contrário, de uma situação distinta
que tende a eliminá-la. É na superação dessas contradições, isto é, pela eliminação
dos contrários e conflitantes que nelas ocorrem, e sua síntese, que reside o dinamis­
m o dos processos histórico-sociais, e que se situam as forças internas que impelem o
curso dos acontecimentos que fazem a trama da história ” .8 Não será nessa linha que
o Brasil terá solução para os seus problemas políticos, econômicos e sociais. Está
provado e comprovado que a revolução, com o a entendemos, e várias vezes a
definimos nesta obra, conduz à supressão das instituições livres, à degradação da
pessoa humana, ao desrespeito dos direitos sociais do indivíduo, à insinuação da
anarquia latente, que reage à pressão ditatorial, quando esta se afrouxa ou é afrou­
xada. Neste século a revolução se confunde com o o marxismo-leninismo, que a
m onopolizou. D a í ser im próprio o seu uso pelos governos brasileiros posteriores a
31 de março de 1974. Mais acertadamente devemos proclamar que naquela data e,
nos desdobramentos da deposição do presidente João Goulart, o que tivemos fo i
uma contra-revolução. A Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional n9 1
não a institucionalizaram; seria possível fazê-lo pela reintrodução do “ país legal”
nas normas liberal-democratas, mas, a nosso vèr, essa opção nos conduziria, de

6 Caio Prado Júnior. A revolução brasileira. São Paulo, Brasiliense, 1966, p. 10.
7 Id „ ib„ p. 209.
8 Id .,ib., pp. 210-11.
124 O PO D E R M O D E R A D O R

novo, à turbulência dos anos terríveis da Constituição de 1946, durante cujo


p eríodo o Brasil fo i abalado por sucessão intermitente de crises, das quais emergiu
a presidência João Goulart. Estamos, portanto, numa situação dramaticamente sem
saída, em que as forças latentes, embrionárias mas ativas da revolução com o
processo subversivo, estão refreadas pelos instrumentos de exceção que os governos
militares introduziram no aparato constitucional com o remédio contra a agitação e
a ameaça permanente de quebra do cimento da ordem. Essa é, contudo, situação
que não se pode indefinidamente prolongar.
A república vem bracejando crises sucessivas, de sua proclamação aos nossos
dias. Se até à segunda grande guerra as erupções revolucionárias foram antes epi­
dêmicas do que profundas, depois desse marco histórico, elas carregam, na sua
manifestação, terrível carga ideológica, suprida pelos arsenais marxistas-leninistas.
É uma espécie de poeira atômica que intoxica as inteligências, que se çntranha nas
consciências, que se introduz nas vontades, em suma, que conquistou para a sua
“ causa” ' um sem número de adeptos, não poucos dos quais decididos ao sacrifício
da própria vida, pelo fanatismo, à revolução que Caio Prado Júnior define como
mudança de estruturas. Seja, porém , qual fo r a operação, Prometeu não satisfará
nenhum revolucionário. A liberação do fogo dos céus não vai bastar para inundar
de bens a terra. A revolução não será nunca legítim a. Na história das revoluções,
o que vemos é a ilegitimidade disfarçar-se sob os mais espessos e especiosos sofis­
mas, debaixo da couraça da ideologia, e ilaquear as inteligências, explorar ressenti­
mentos, exaltar os fanatismos, que, afinal, conduzem ao “ gulag” , ao homem-
-invertebrado, ao medo, à renúncia das notas distintivas da personalidade. Longo
processo social, filosófico e p o lítico engendraram a revolução englobante e as
revoluções parciais, essas manifestações do mesmo fenôm eno. Quando, pois,
nos referimos à revolução, acode-nos à reflexão essa transformação profunda
que teve na revolução francesa de 1789 o seu exem plo maior e na revolução
bolchevista de 1917 uma de suas expressões históricas de nosso século. O fenô­
meno tem origem no desvio do pensamento de sua fonte autêntica, o realismo,
cuja doutrina bebemos na escolástica, da qual Santo Toma's foi seu mais alto
representante; ao nominalismo, ao idealismo cartesiano, ao racionalismo crítico
de Kant, ao idealismo lógico de Hegel, e a todos os seus sequazes, comparsas da
imensa revolução da inteligência, da qual ainda não se vislumbra o term o nesta
cerração que nos envolve, confusa, densa, onde os conceitos se misturam e não se
lhes distingüe a nitidez. “ Hegel e Feurbach lançam as pontes que separam Kant
de Marx. O segundo legou-lhe o materialismo brutal, o primeiro, a idéia de evo­
lução dialética ” .9
Com o se vê, a genealogia da revolução vai se entroncar muito longe, no antigo
nominalismo medieval, matriz de todos os erros, em cujo furor bracejamos, e
transitamos até ao presente através dessas balizas do pensamento. Marx extraiu

9 Leonel Franca, S. J. A crise do mundo moderno. R io , Livraria José O lym p io Editora.


1941, p. 127.
L E G IT IM ID A D E E R E V O L U Ç Ã O 125

desse viveiro o pensamento com o qual nutriu a sua teoria, e o temos explodindo,
do século X I X aos nossos dias, para, ainda, prosseguir no futuro, pois somos inca­
pazes de dominar o processo. Como na fábula do aprendiz de feiticeiro, ele escapou
do ser humano, e o mundo poderá se desfazer no silêncio dos espaços siderais,
que espantava Pascal, tendo com o causa um rem oto ato de rebeldia. É preciso
ir buscar nesses confins da História, e sacar-lhe de seus refolhos, a causa da revo­
lução e das revoluções. Se estamos imersos em seu curso, se lhe sofremos a pressão
das tenazes, se não temos poder nem capacidade para lhe desviarmos o itinerário,
ao menos façamos-lhe o histórico e a história. “ O ‘fenôm eno’ revolução é sem
precedentes na História moderna. É somente no mundo antigo que aparece simul­
taneamente a necessidade de fazer revoluções e o espírito revolucionário ” .10
Jacques Ellul, a quem acabamos de citar, hesita em definir a revolução com o o
fazem os .11 Ficamos, portanto, com os tradicionalistas para os quais a revolução
é um grande, imenso processo de mudança, que se operou contra o poder leg í­
timo, na esfera política. Somos de opinião que Littré está certo na sua definição,
embora lhe esquematize o conceito. Se o “ Vocabulaire” de Lalande não traz o
verbete “ révolution” , levando-nos essa omissão voluntária do maior autor do
gênero à conclusão de que não atribuía ele valor filosófico à palavra, nem o incluía
em vocabulário, por antes pertencer ao léxico das ciências sociais, do que ao da
filosofia, entendemos que vem se desenrolando no tem po um processo de sub­
versão do pensamento, com rizomas profundos, extensos nos atos de revolta — e
aqui fazemos a revolta associar-se à revolução 12 — contra a ordem suprema do
pensamento, nas doutrinas esposadas e ensinadas da Idade Média ao presente,
contra o Deus Uno e Trino, e todas as hierarquias. Na sua origem a revolução é,
portanto, religiosa; evoluindo, desdobrando-se suas implicações sociais, políticas
e econômicas lhe mudam o rumo, mas não lhe alteram a substância.
Para Georges Burdeau, quando aderimos à revolução, concebemo-la com o a
crença de que a humanidade vive de mudança, as quais correspondem a etapas na
via da perfeição . 13 Essa perfectibilidade não é, entretanto, deste mundo. D aí,
serem utópicas a revolução e as revoluções. Podemos classificar com o revolu­
cionários dos tempos modernos todos os teólogos, filósofos, sociólogos que se
apartaram, renegando-a, da fonte da verdade, d a , tradição, com o elem ento de
coesão social e fixadora da legitimidade, que é um conceito válido em religião,
filosofia, sociologia, política, economia, não obstante se prestarem as ciências
práticas, sobretudo as práticas-práticas, com o a econom ia, às mais variadas op i­
niões e aos sofismas, não raro absurdos, no seu todo. Não há causas isoladas na
face da terra; umas se implicam em outras, e vão repercutir na eternidade, afe­
tando, antes, o destino humano. A revolução na qual estamos imersos, essa espécie

10 Jacques Ellul. L ’autopsie de la révolution. Paris, Calman-Levy, 1969, p. 50.


11 Id., ib., p. 120 e ss.
12 Id., ib., p. 50 e ss; A lb ert Camus. L'hom m e révolté. Paris, Gallimard, s/d, passim.
13 Georges Burdeau. Traité de science Politique, III, p. 524 e ss.
126 O PO DER M O D E R A D O R

de poeira atômica, que nos envolve e nos envenena, perturbando-nos o raciocínio


lógico, o discurso do Tem po para a Eternidade, é total e totalizadora. Se o mundo
executa os seus movimentos, enquanto a História de nossa época vai acumulando
idades, vemos que a revolução é, em seu itinerário, um dado concreto, de que o
hegelo-marxismo tem a carta geográfica. Reencontram-se, portanto, os conceitos
de legitimidade e de revolução. U m é tradicional, obedecendo à lei da permanência
na continuidade; outro é dotado de instabilidade, e obedece aos apriorismos racio-
nalistas que não aceitam a experiência com o uma expressão da realidade, mas
antes criam a experiência a partir dos dados a p rio ri. N o conceito de experiências
devemos assentar, portanto, uma das balizas da crise - no exato sentido da palavra
— ou da agonia — também no exato sentido da palavra — da civilização contem­
porânea. A o contrário do realismo aristotélico-tomista, Kant admite o conheci­
m ento independente da experiência e das impressões dos sentidos. São os conhe­
cimentos a p rio ri que se distinguem dos conhecimentos empíricos, cuja fonte é a
experiência . 14 Na teoria tomista do conhecimento, a realidade do conhecimento
é o fundamento filosófico da verdade.
N ão se nega que há um apriorismo na filosofia tomista, com o bem o demons­
tra Joseph Maréchal S. J . , 15 mas é de natureza diferente do apriorismo kantiano.
Este cria a experiência; aquele a constata e a incorpora à realidade. U m é subjetivo,
outro é objetivo. “ São as condições subjetivas do nosso espírito que se im põem às
causas e explicam a necessidade e universalidade da ciência. Estas condições Kant
denominou-as formas a p rio ri e multiplicou-as por três planos ascendentes no
trabalho unificador do pensamento. Formas de sensibilidade que ordenam os fen ô­
menos no espaço e no tem po, sem que fora de nós exista nem tem po nem espaço” .
“ O saber já não é uma representação, mas uma construção do seu o b jeto ” . 16 É na
linha desse apriorismo que vem transitando no mundo das idéias e das instituições
a revolução, à qual devemos averbar o mal imenso de ter ferido mortalmente o
conceito de legitimidade, cuja clareza fo i eclipsada, do século X V I I I aos nossos
dias. O marxismo-leninismo, teoria da revolução contemporânea, é crítico-aprio-
rista. Transpondo para o dom ínio do econôm ico seu erro filosófico, procedeu à
crítica do processo, com uma obra fundamental para a sua compreensão, O Capital
— ele mesmo, uma criação do racionalismo, e, neste aspecto, a teoria de Max
Weber é certa — e lhe estabelece a dialética, segundo Hegel, até chegar à sociedade
perfeita, a sociedade sem classes. D a í ter razão Jules M onnerot 17 ao afirmar:
“ Encontramos em Marx com o em todos os filósofos políticos a deformação
ideológica dos fatos reais, a conceptualização arbitrária de situações históricas

14 Na Crítica da Razão Pura, várias edições. É preciso conhecer toda a filosofia de Kant,
para compreendê-lo.
Is Joseph Maréchal S. J. L e point de départ de la métaphysique. Paris, Desclée De Brouwer,
1949, V , p. 140 ess.
16 L eon el Franca, S. J. Op. cit., p. 100.
17 Jules M onnerot. Sociologie de la révolution. Op., cit., p. 111.
LE G IT IM ID A D E E R E V O L U Ç Ã O 127

abusivamente imobilizadas. Para ver claro convém mudar a perspectiva: não é a


teoria das classes de Marx que dá conta da História, é a História que dá conta da
teoria de classes de M arx” . Monnerot traça, em seguida, o quadro do que lhe
chama a gigantomaquia entre a burguesia e o proletariado, e conclui: “ Marx encer­
rou arbitrariamente sua burguesia e seu proletariado numa estabilidade relativa,
da qual eles não podem sair senão de uma só maneira: a evolução do capitalismo e
a revolução socialista profetizadas por ele” . São o apriorismo kantiano e o racio-
nalismo hegeliano, na expressão mesma da sua transladação para esse fervente plano
político, no qual nos encontramos.
O marxismo é típ ico produto da revolução, como processo de mudança.
Executando no mundo uma obra perversa, a que consiste em submeter às piores
tiranias os governos dos povos, o marxismo-leninismo acorrilhou ao mesmo recinto
revolucionário os despotismos, todos brutalmente medíocres, e os governos emana­
dos de eleições. Com o vivemos, ainda, e nela nos conservaremos por muito tem po —
até quando, ó Deus! — na “ idade da revolução” , tanto as democracias de sufrágio,
direto ou indireto, quanto as ditaduras, procedem das mesmas origens, embora
as primeiras, desde que liberais, assegurem algumas liberdades, precárias sempre,
mas, de qualquer maneira, liberdades, que nos são caras. Quem estuda a situação
do mundo em nossos dias, reconhece logo o acerto das reflexões de Joseph De
Maistre :18 “ N ão são os homens que conduzem a revolução, é a revolução que
emprega os homens” . Desencadeado o furacão revolucionário, ninguém mais o
conteve, nem provavelmente o conterá. Da revolução francesa, à grande revo­
lução dos tempos modernos, através da condensação, nos princípios que lhe deram
alento, da form a revolucionária que passa despercebida, tanto se entranhou em
nossos costumes, às mudanças que se operam nas instituições nos dias de hoje, o
que temos são etapas do mesmo fenôm eno. A instabilidade é a regra, pois a revo­
lução não reconhece legitimidade. Basta com o exem plo a sucessão de Constituições
que rege a vida de cada povo. As únicas exceções são as dos povos de língua inglesa,
nos quais a revolução atua, sem ter atingido, ainda, as instituições políticas. A
Constituição dos Estados Unidos é a mesma de 1787. As vinte e seis emendas 19
que lhe foram acrescentadas não lhe afetaram a substância; a Constituição inglesa
é consuetudinária; adapta-se, admiravelmente bem, às circunstâncias. O Brasil,
que já teve seis Constituições, e uma parte de sua “ classe política ” 20 diariamente
prega a necessidade de uma assembléia constituinte, para elaborar outra Consti­
tuição, a sétima, que, evidentemente, não será a última. Nesse quadro, revolução
colide violentamente com legitimidade. Os dois conceitos e as duas realidades
se excluem.
D o século X V III ao presente, a revolução está ganhando. Quando os ameri­
canos criaram os Estados Unidos erigindo o pacto, a Declaração da Independência

18 Joseph De Maistre. Oeuvres Complètes. Paris, Librairie Catholique Emmanuel V itte, 1924,
I, P- 7.
19 A té quando fo i escrito este capítulo: segundo semestre de 1977.
20 N o segundo semestre de 1977.
128 O PO D E R M O D E R A D O R

e a Constituição em carisma legítim o, eles deram o primeiro golpe no princípio


da legitimidade. Foram lógicos. Eram protestantes, racionalistas, tinham fé não no
Deus T rin o e Uno, transcendente, mas no Deus pensado, essa herança legada por
Descartes ao pensamento ocidental. Com o diz L . N oèl, “ a existência de Deus é
bem frágil, porquanto logo vemos que a prova cartesiana de Deus não conduz
senão a um Deus pensado ” .21 A revolução que vinha de longe, dos iônicos e dos
eleatas, que o pensamento de Platão e Aristóteles refutou e conteve; que Santo
Agostinho e Santo Tomas - e os Padres e Doutores da Idade Média — inverteram­
-na com o princípio da ordem, da qual o Doutor Angélico fo i o grande expoente,
voltou impetuosa na linha do nominalismo e, mais tarde, de todos os esgalha-
mentos do idealismo e do racionalismo. Estamos colhendo a safra amarga e ácida
dos erros do passado. Joseph de Maistre defende a idéia de uma contra-revolução,
não com o um m ovim ento para matá-la, mas um m ovim ento contrário à revolução . 22
Como, no entanto, fazer essa contra-revolução? O marxismo-leninismo ocupou
todas as posições de controle do pensamento. Concentrando sob o seu dom ínio
os meios de comunicação, leva o mundo para onde quer, inclusive os países mais
refratários aos seus envolvimentos. A té mesmo os Estados Unidos e a Inglaterra,
dois baluartes da legitimidade do poder, estão infiltrados. O chamado escândalo
de Watergate, que derrubou um presidente, o prim eiro que, na história dos Estados
Unidos, renunciou, fo i, apenas, um dos episódios da guerra revolucionária, adap­
tada ao m eio americano, com o a tomada dos sindicatos britânicos pelos comunis­
tas de rígida formação stalinista, é outro episódio, tanto mais significativo se
consideramos que essa corrente político-ideológica não tem força eleitoral para
eleger um só deputado à Câmara dos Comuns.
É essa a guerra revolucionária em plena marcha, arrasando o princípio da
legitimidade, pela desestabilização dos governos. N ão é novo, evidentemente, o
fenôm eno revolucionário. Sempre houve revoluções. H oje, uma ciência das revo­
luções já se vai form ando, a estaseologia, do grego estates, sublevação, insur­
reição .23 O que distingue a revolução de nosso tem po de outras, do passado, é
que ela ganha velocidade, atuando no seio das instituições para as desintegrar.
Colocados face a face dois grupos antagônicos, um deve se substituir ao outro,
ou vencê-lo. Constitui, portanto, ingenuidade pueril supor que os comunistas
venham a tolerar oposição, onde já dominam e onde dominem no futuro. O comu­
nismo jo go u o mundo contemporâneo no estado de guerra total. “ Alterando defini­
tivamente a convencionalização da guerra, o comunismo instaurou no século X X
uma era de guerra crônica, fundo contínuo e permanente sobre o qual se desta­
carão os episódios militares agudos. A té o presente, o comunismo obteve os resul­
tados mais convencedores no manejo das diversas técnicas chamadas de subversão.
O uso hábil dessas técnicas mantém o adversário que não usa as mesmas aquém

21 L. N oël. Le réalisme immédiat. Louvain, Institut Supérieur de Philosophie, 1938, p. 43.


22 Id „ ib„ p. 121.
23 Jean Baechler. Les phénomènes révolucionaires. Paris, P U F , 1970, passim.
LE G IT IM ID A D E E R E V O L U Ç Ã O 129

do nível militar, do nível da guerra aberta onde esse adversário, preso pela con­
venção que separa a guerra da paz, tem os meios de se defender e mesmo de vencer.
O mundo não comunista é minado psicologicamente por uma agressão crônica,
enquanto deixa aos comunistas o m onopólio da guerra subversiva” . “ A diferença
dos dois antagonismos, que parece paralisar a defesa em proveito do ataque, assi­
nala-se nisto, que os não comunistas, que não se preocupam em fazer reinar uma
doutrina sobre o mundo, e não têm máquina psicológica para explorar os ressen­
timentos (mas, ao contrário, os provocam e os deixam crescer), se limitam à defen­
siva sobre um terreno que lhes é intelectualmente estrangeiro, mas de onde sua
vitalidade pode ser solapada ” .24
O sempre atual Clausewitz define a guerra com o um duelo em escala mais
vasta. “ Se nós quiséssemos abarcar em uma só concepção os inumeráveis duelos
particulares dos quais ela se com põe, deveríamos pensar em dois lutadores. Cada
qual ensaia, por m eio de sua força física, submeter o outro à sua vontade; seu
desígnio im ediato é o de abater o adversário, a fim de torná-lo incapaz de toda a
resistência. A guerra é, portanto, um estado de violência, destinado a coagir o
adversário a executar a nossa vontade. A violência, para enfrentar a violência, se
arma das invenções das artes e das ciências” .25 A guerra revolucionária ou guerra
subversiva é, portanto, uma guerra, no sentido exato da palavra, embora colocada
no quadro desconvencionalizado do mundo contemporâneo. A guerra é um instru­
m ento da política, já dizia Clausewitz ,26 portanto a guerra subversiva é também
política. 0 gênero é um só; variam as espécies. Há guerras nacionais, ou estatais,
em que as ações bélicas obedecem a interesses definidos e materiais, na sua maior
parte, e há guerras políticas, ideológicas, revolucionárias, em que as armas servem
a fins aparentemente mais elevados, quais sejam a busca de um ideal, através de
determinada concepção do mundo. A guerra revolucionária, muito mais terrível
do que a guerra convencional, é uma das formas da revolução, com o processo.
Está em curso, em nosso século, essa revolução. Alimentada, diuturnamente, pelos
arsenais comunistas, sobretudo insinuando-se nos meios de comunicação, vai
essa revolução aluindo regimes, desfigurando-lhes a concepção e, por via de conse­
qüência, mergulha o mundo numa confusão tremenda, na qual não se vê uma luz,
para onde possamos caminhar e esquivar-nos de seus envolvimentos malignos.
Para essa revolução, com o para todas as formas que o seu m ovim ento reveste, a
legitimidade se constitui num conceito apriorístico, de fato. A revolução é a legiti­
midade e legitima os governos, instaurados por seus chefes. É a própria distorção
do conceito de legitimidade a que assistimos, uma* das causas sinistras da crise
contemporânea e da que se nos antecipa nos anos futuros, pois nenhuma esperança
temos de ainda vir a operar-se a reversão desse fenóm eno. A o contrário, vemo-lo

24 Jules M onnerot. Op. cit., p. 241.


25 K arl von Clausewitz. D e la guerre. Paris, Éditions de Minuit, 1955, p. 40, tradução
francesa. G rifo d o autor. Cf. Raym ond Aron, seu monumentííi estudo a respeito.
26 Id., ib., p. 452.
130 O PODER M O D E R A D O R

acentuar-se, pela sua aceitação tácita, admitindo-se a palavra com o designação


de mudança, muitas vezes de reação ao processo revolucionário, com o fo i o caso
do golpe de 31 de março, no Brasil, que pôs term o à ação subversiva do poder
constituído.
A revolução é, portanto, o catastrofismo trasladado para o imenso plano
da História, e sua mais completa expressão é a revolução russa, que Trotsky queria
permanente ,27 e que permanente vem sendo, não obstante a eliminação física
de um de seus patronos e agentes. Enquanto prevalecer essa concepção de História,
e fo r o marxismo-leninismo o m otor da revolução, será inútil estabelecer a legiti­
midade dos governos, seja a institucional, seja a consentida, das quais tratamos
no capítulo precedente. Raym ond A ron 28 admite a legitimidade parcial, quando
corporificada em concessões populares. É uma admissão de fato, condicionada
à magnanimidade ou oportunismo do governo, e governo transitório, sustentado
pelas armas e apoiado na polícia política. N ão é a primeira vez na História que
governos com essa origem se conservam no poder, mas é a primeira vez que uma
revolução reclama o m onopólio da legitimidade, por se haver lançado na História
com o o grande movimento de redenção do proletariado, dos oprimidos, dos econo­
micamente fracos. Para os comunistas a revolução legitima; para nós ela, apenas,
alimenta a ilegitimidade. Erigidos pela revolução, os governos são legitimados de
fato. Aceitos pela nação — sem importância para a fração que o faz — afirmam-se
legítim os, escudando-se no apoio ético de se terem constituído para a defesa da
maioria do povo, que, em regra, não é consultado, nem se pode livremente mani­
festar. O tema da revolução e da legitimidade presta-se, como se vê, à controvérsia
e a discussões intermináveis, sobretudo porque a rigor não podemos aceitar uma
revolução legítim a, no sentido em que a entendem os marxistas-leninistas, e, em
geral, os publicistas contemporâneos. A legitimidade prolonga a ordem tradicional e
admite a sua mudança pela evolução, sem quebra do princípio; a revolução rom pe a
ordem tradicional, e se lança na mudança, com o form a de compensar o rom pim ento
do qual fo i agente bem sucedido.
Maquiavel já havia assinalado a dificuldade e o perigo em tomar nas mãos
nova ordem de coisas.29 Não há revolução que não tenha problemas, notadamente
as do mundo moderno. A revolução francesa abalou as estruturas do poder na
França, mas fo i muito mais longe, arruinou, ao parecer sem remédio, os funda­
mentos da legitimidade política, que, em nossos dias, nem mesmo o Corão sustenta,
embora não seja fácil identificar a legitimidade de instituição nos detentores do
trono, em nações nas quais prevalece a linha masculina, nem sempre a primogeni-
tura, e a noção de fam ília é maculada pela poligamia que o Profeta adotou e
prescreveu aos povos islamizados. Essa fo i a obra demoníaca — se nos permitem

27 Leon Trotsky. A História da Revolução Russa. R io, Editora Saga, 1967, passim.
28 R aym ond Aron. Plaidoyer pour une Éurope décadente. Op., cit., p. 238.
29 Maquiavel. O Principe. Cap. V I, varias edições, inclusive em português.
LE G IT IM ID A D E E R E V O L U Ç Ã O 131

citar, nestes dias incrédulos, o “ príncipe das trevas” — da grande revolução.


Enquanto a revolução americana instituiu o poder legitimado pela escolha livre
do povo, adotando complicado sistema eleitoral, que até hoje não foi contestado,
conservando-se, por esse m otivo, imunizada a sua obra, os Estados Unidos, das
violentas com oções que abalaram outros povos, a revolução francesa, e sua conse­
qüência, a revolução bolchevista arrasaram a legitimidade, eliminando a pessoa
na qual o princípio se encarnava, o monarca. São, portanto, incompatíveis legi­
timidade e revolução. É esse o corolário lógico do conflito entre legitimidade
institucional e legitimidade consentida. Não fo i argüida de ilegítim a a Casa de
Bragança, à qual o Brasil deve a sua independência, a sua unidade e um longo
período de governo rigorosamente democrático. D. Pedro I naturalmente pro­
clamou a independência do Brasil, e a nação o aceitou com o soberano. A invocação
constitucional de Deus obedeceu à fé católica do príncipe e a união entre a Igreja
e o Estado, e a unânime aclamação dos povos selou o reconhecimento dos brasi­
leiros ao novo Império, que iniciaria vida independente. Somente em 1870, o
Manifesto Republicano, repetindo idéias correntes na época, e estereotipias
políticas já vulgarizadas na França, refere-se à legitimidade, na sua análise sumária
e apaixonadas da fundação do Império e das origens da Constituição. Aos seus
signatários, na maioria obscuros brasileiros, poderíamos aplicar a exclamação
famosa: “ A h ! que a República é bela sob o Im p ério!” , proferida, ao que conste,
em 1885, pelo historiador da revolução, A . Aulard. O Manifesto só convenceu
alguns brasileiros, mas acabou triunfando, dezenove anos depois de lançado, em
Itu, no dia 3 de dezembro de 1870.
Argumentos de “ lana caprina” — que nos perdoem o lugar comum — foram
articulados, para lançar a idéia da proclamação da República. Um deles, “ Somos
da Am érica e queremos ser americanos” , se filia à influência que tiveram os Estados
Unidos na mudança do regime. Seduzidos pela prosperidade americana, e pelo
aparente, razoável funcionamento de suas instituições políticas, os republicanos
de 1870, tendo à frente Saldanha Marinho, o Ganganelli da Questão Religiosa,
lançaram contra o Im pério e suas instituições um manifesto elementar no fundo,
mas susceptível de impressionar os centros mais populares do país, que de seu
conteúdo viessem a tomar conhecimento. A Maçonaria, que atuara na Indepen­
dência pelo Império, iria atuar na fundação da República contra o Império. A lu ­
dindo à Europa, afirmou o Manifesto que, por sermos, então, uma democracia
monárquica, não lhe inspirava simpatia, nem provocava adesão. O Manifesto gene­
ralizou. Toda a Europa era monárquica com a exceção da Suíça, uma Confederação
original, multilingüe, colegiada, e a França, onde a I I I República havia sido
proclamada três meses antes, depois dá queda de Napoleão III, vítim a de si mesmo
e de seus conselheiros, que o levaram a fazer a desastrada guerra contra a Prússia.
Não poderia a Europa monárquica, sobretudo Portugal, Espanha, Itália, demons­
trar aversão por uma longínqua monarquia americana, onde reinava um Bragança,
com laços de fam ília nas casas reinantes da Europa, e admirado nos centros cultos
do Ocidente. Não vamos, evidentemente, analisar o Manifesto Republicano de
1870, e o que em seu contexto se encontram de <4mpropriedades, de mentiras
132 O PO DER M O D E R A D O R

e, para absolver os seus signatários sinceros, de ilusões. Mas, deixamos registrado


que esse fo i o germe da mudança, ou, no exato sentido da palavra, da revolução
que derrubaria um trono, a rigor, velho de séculos, pelos antepassados do impe­
rador, um regime legítim o, um governo exemplar, para em seu lugar instituir o
regime republicano presidencial decalcado dos Estados Unidos.
Segundo Sérgio Buarque de Holanda 30 o recrudescimento da propaganda
republicana data dos fins do governo Cotegipe, “ mais precisamente de 1887” .
0 Manifesto ficou incubado cerca de dezessete anos. Fazia adeptos, a idéia atraía
interessados nas Lojas Maçónicas, embora nos últim os anos do Im pério o posi­
tivismo fosse mais ativo do que o Grande Oriente. Numerosas causas se implicaram
na proclamação da República, da Questão Militar a o positivismo, porém a causa
eficiente, a nosso ver, fo i primária, elementar, m imética, a “ exceção americana” ,
de que fala o Manifesto. A Questão Militar abriu-se depois da guerra do Paraguai.
Canalizou-a, habilidosamente, para a idéia o Manifesto Republicano, embora sem
nela tocar. A legitimidade do monarca perdeu-se na controvérsia, embora o
respeito pessoal, que lhe tributavam todos os brasileiros, se mantivesse quase
intacto. F oi desse foco, o enfraquecimento do princípio da legitimidade, que se
irradiou o m ovim ento cujo term o seria a proclamação da República. N ão era, já,
a legitimidade de pessoa que se argiiia, mas a legitim idade de instituição. D. Pedo II
deveria ser deposto, e com ele a dinastia, para, em seu lugar, ser instituída a
República. Sérgio Buarque de Holanda não atribui grande importância, ou im por­
tância decisiva, ao positivismo de Comte, na proclamação da República, isto é,
nu revolução vitoriosa em 15 de novem bro31. João Camillo de Oliveira Torres, por
seu turno, afirma que o positivismo, com o filosofia política, fo i a causa da Repú­
blica, mas o Apostolado Positivista pouca atuação teve com o causa eficien te .32
Os dois historiadores coincidem na tese. Um positivista, Benjamin Constant
Botelho de Magalhães, fo i proclamado fundador da República. O Apostolado
fo i cumprimentá-lo. Para seus pontífices, quem triunfara fora o positivismo; para
nós fo i o Exército, por vários motivos, entre os quais o da falta de uma teoria
monárquica — falta lembrada por Oliveira Torres 33 — sobre a qual estivesse
fundado solidamente o princípio da legitimidade. O mesmo historiador dá a sua
versão, que é essa, com a qual concordamos. Sérgio Buarque de Holanda também
localiza nela a causa da queda do Império, senão a única, ao menos a causa
preponderante, a causa que levou D eodoro a sair do quartel para derrubar um
Ministério, e ser o agente principal de uma revolução, a grande revolução que
mudou o itinerário histórico do Brasil, sem que se lhe entreveja o term o. Insiste
o historiador na tese, aduzindo que as Forças Armadas ressentiam-se de frustração,

30 Sérgio Buarque de Holanda. História Geral da Civilização Brasileira. V , O Brasil monárquico,


"D o Im p ério à República". São Paulo, Difusão Européia d o Livro, 1972, passim.
31 Id., ib., p. 294.
32 João Camillo de Oliveira Torres. O positivismo no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1957, p. 67.
33 Id., ib.. p. 66.
LE G IT IM ID A D E E R E V O L U Ç Ã O 133

no Império, e faz afirmação com a qual não concordamos, a de que o processo


de democratização das Forças Armadas fora retardado no Brasil, por circunstâncias
especiais de formação históíica do país, em confronto com os países americanos
de língua espanhola34. Fora retardado menos pelos privilégios de classe, inexis­
tentes no Im pério liberal de D. Pedro II, do que pela composição populacional
do país, não obstante várias carreiras militares se tenham fe ito na caserna e nas
lutas em campos de batalha. Nos países hispano-americanos, o que teve a América
fo i o militar-caudilho ou acorrilhado ao caudilhismo. São tantos os exem plos a
respeito, que nos dispensamos de citá-los.
A causa da revolução republicana, ou causas, foram várias, mas uma só fo i
a causa eficiente, a participação de D eodoro e da força de terra aquartelada no
R io , que era formada, apenas, de três batalhões, os velhos 19, 79 e 109 B.I.; os
229 e 239 B.I. estavam fora do R io, e o 249, embora na Corte, achava-se im obi­
lizado.35 Quem proclamou, efetivamente, a República, atirando o Brasil no
fervedouro de uma revolução — ou na Revolução —, fo i uma cidade “ frondeuse” ,
o Rio de Janeiro, a qual, beneficiando-se, embora, da situação de corte, e sede
da monarquia, cultivava os germes que iriam matar o regime. O exército estava
iludido. “ Que era a República para nós?” , pergunta um oficial superior de suas
fileiras. “ Um regime inspirado no interesse coletivo, em que imperasse a mais
completa liberdade espiritual, a mais'absoluta honestidade e desinteresse no trato
da cousa pública e só os competentes fossem escolhidos para as funções sociais” .36
Bem depressa essas ilusões se desfizeram. O prim eiro a se decepcionar e a bater
simbolicamente o pó das sandálias fo i o marechal Deodoro. Alanceado pelas ingra-
tidões que o ferretearam, renunciou ao governo, exclamando a frase famosa:
“ Assino o decreto da alforria do derradeiro escravo do Brasil” . De então aos nossos
dias não se institucionalizou o regime fundado com um golpe de Estado. Decorridos
oitenta e oito anos,37 ainda estamos à procura de um “ m odelo p o lític o ” , que
corresponda à formação cultural do Brasil, às suas tradições, à herança religiosa,
jurídica e filosófica do Mediterrâneo, à trasladação do regime do Pai da penín­
sula ibérica para os trópicos sul-americanos, para, enfim, a necessidade que temos
de um chefe incontestado, num regime legítim o. Se quisermos ser rigorosamente
exatos, podemos afirmar que ainda nos encontramos em situação revolucionária,
entendida a revolução no sentido de mudança profunda e extensa, não no sentido
em que veio ela a ser empregada a partir de 31 de março de 1964. O século X V I I I
lançou a idéia de revolução: a França decapitou o rei, cortando-lhe, ao mesmo
tem po, a cabeça e o princípio de legitimidade do poder. D aí para diante só se
manteriam estáveis os regimes historicamente legítim os, citando-se com o exemplos

34 Sérgio Buarque de Holanda. Op. cit., p. 310.


35 História do Exército Brasileiro. Brasília e R io de Janeiro, Edição do Estado M aior do
Exército, 1972, 3 volumes, III , p. 685.
36 Id. ib. , p. 681.
37 Escrito no segundo semestre de 1977.
134 O PO D E R M O D E R A D O R

os países de língua inglesa, a Suíça, o Japão e as monarquias do norte da Europa.


A revolução ainda não os alcançou, nem se sabe se virá alcançá-los, embora Lenine
tivesse afirmado acreditar na vitória final do comunismo. Ninguém afuroa o que
nos reserva o futuro. Mas com o vivemos em atmosfera revolucionária, saturada
dos mitos da revolução mundializada, é possível que a subversão ganhe as nações
ainda resistentemente democráticas. Um triunfo é rigorosamente averbável à
revolução: generalizou-se a convicção de que a econom ia é a infra-estrutura das
sociedades, enquanto a superestrutura dela depende. É marxismo. Enfraqueceu-se
a espiritualidade; os valores materiais se sobrepõem aos espirituais. Cabe, portanto,
afirmar que podemos assistir à guerra da civilização, que será, acrescentemos a
Jules Monnerot, a sua sepultura. Para evitá-lo deveríamos opor, tenazmente, legi­
timidade à revolução. Quem, no entanto, possui força para fazê-lo?
o poder moderador
e a legitimidade

N o mundo os povos tendem a obedecer aos governos constituídos pela força


ou pelo vo to popular, pela herança dinástica ou pelo golpe de Estado, uma tenta­
tiva de substituição de governo ou o debate sobre o sucessor do governo no poder.
Estamos vivendo em plena “ febre p olítica” , com o dizia Fustel de Coulanges,
tomado o mundo por sua paixão. Se é esse um bem ou não, pouco importa. É
a realidade histórica de nosso tem po, este que se insere com o um elo na já
longuíssima, dramática e atormentada cadeia da “ idade da revolução“ , cujo termo
ainda não se vislumbra no horizonte desta inquietíssima terra. As poucas exceções
nesse quadro contam-se nos dedos. Depois de longo período colonial, a África
tribal, fragmentada em numerosas etnias, aparece-nos com o uma planície ondu­
lante, na qual nada é estável. Regimes árabes, negros e brancos dão, todos eles,
a impressão de assentar alicerces sobre areia. N o Marrocos, a vida do rei Hassan II
tem tido lances shakespeareanos, na qual a “ baraka” de seu islamismo o vem
protegendo contra inimigos audaciosos, alguns dos quais já pagaram a ousadia
com a vida. A Argélia é uma ditadura precária; a Tunísia depende de um homem,
Burguiba ;1 na Líbia, um muçulmano fanático põe e dispõe sobre a vida de seus
súditos; no Egito, Anuar El Sadat é um presidente vitalício. ■
Na Á frica negra, os países menos instáveis são os de formação britânica,
embora num deles, Uganda, a face sinistra do poder esteja presente, com o desprezo
pela vida humana, esquecido do longo, sacrificado trabalho dos missionários

1 Escrito no segundo semestre de 1977.


136 O PO D E R M O D E R A D O R

católicos e protestantes; na Á frica branca do sul, as minorias de origem européia,


as minorias que carregam o pesado “ fardo do hom em branco” , estão ameaçadas
de ser expulsas, sem bens nem pertences, pela maioria negra, que conta, preciosa
e injustificadamente, com o apoio, a solidariedade, o fom ento dos Estados Unidos
e a Inglaterra, sobretudo os Estados Unidos ,2 cujo embaixador, negro de origem,
estimula a rebelião de seus supostos irmãos de cor. A África é, com o se vê, um
caldeirão de crises, onde um grande poeta, Leop old Sedar Senghor, canta a negri­
tude com o um galardão, procurando mostrar, com a beleza de seus versos e sua
cultura européia, portanto branca, que a cor da pele e as origens negro-africanas
não são vexatórias, mas, ao contrário, devem constituir orgulho para todos os
pretos. Dos 390.000.000 de habitantes 3 da Á frica, a maior parte é negra, mas
com o os seus recenseamentos são inexatos, poderá ela ultrapassar esse número.
Mais de 300.000.000 de negros form am uma população imensa, toda ela estagiada
na fase subdesenvolvida da economia e pré-desenvolvida da educação, embòra
o longo período do colonialismo, e nos encontrarmos no século X X , com todos
os seus recursos para alfabetização.
N ão será fácil, porém , a Á frica sair de sua condição tribal, vencer as dife­
renças entre as tribos, e aculturá-Ias todas. Quando, no primeiro semestre de 1977,
veio ao Brasil o ministro das Relações Exteriores da Nigéria, ele usou, durante
a sua permanência em nosso país, o seu indumento nativo e não se separou do
bastão com as insígnias de sua tribo, uma espécie de brasão da etnia à qual pertence.
Com o se vê, são conservadores tradicionalistas os africanos negros, embora seu
tradicionalismo, o culto de seus totens e tabus os retenha em usos e costumes
ancestrais, que lhes paralisam a integração no desenvolvimento. Dentro, porém,
de seu primitivismo, da organização tribal — organização espontânea e tradi­
cional — em que se distribuem, os africanos da Á frica negra admitem e respeitam
uma espécie de legitimidade, a do chefe mais poderoso, mais antigo e mais vene­
rado. O poder — de que falaremos em capítulo posterior, — ainda não se institu­
cionalizou juridicamente na Á frica negra mas se institucionalizou, naturalmente,
pela admissão à autoridade que dá ordens às suas tribos. Não nos interessa, evidente­
mente, o estudo pormenorizado do funcionamento do poder na Á frica negra .4
Citamo-lo com o exem plo da regra e das exceções, da estabilidade e da instabilidade
do poder, num continente que procura rumos e está preso às malhas da grande crise
do mundo contemporâneo, a crise política por excelência, a crise das instituições.
- N o hemisfério norte, a fusão de poder com legitimidade levaria a debates
intermináveis. Na Am érica Latina a situação é a mesma. Nos Estados Unidos
a Ciência Política, ensinada em suas universidades, não cogita do problema. Cogi­
tamo-lo nós, para estabelecer a conjunção entre poder moderador e legitimidade.
Na Encyclopaedia o f Social Sciences, o verbete “ Legitim acy” nos remete para

2 Escrito no segundo semestre de 1977.


3 Information Please Almanac, dados de 1974.
4 Jean Ziegler. L e Pouvoir Africain. Paris, Seuil, 1971, passim.
O PO D E R M O D E R A D O R E A L E G IT IM ID A D E 137

“ fllegitiiiiacy” , e trata, exclusivamente, da legitimidade e ilegitimidade dos filhos,


portanto de questão pertinente ao Código Civil. Nessa imensa suma das ciências
sociais de nosso tem po, que se vem reeditando regularmente, com acréscimos,
não houve lugar para o conceito de legitimidade do poder. N o D icion á rio d i
Cultura Politica, dirigido por A n tôn io Basso,5 legitimismo e legitimidade são
vocábulos registrados segundo a versão francesa, adotada pelos carlistas espanhóis
e miguelistas portugueses. N o Larousse X X e Siècle ,6 o sentido é o mesmo, e na
Encyclopaedia Britannica o verbete consigna o m ovim ento francês, mas acres­
centa que em língua inglesa a palavra fo i admitida para classificar os adeptos do
legitimismo dinástico. Como entendemos que o poder moderador só pode ser
exercido pelo monarca, deve ele ser legítim o e não usurpado.
O Brasil sofre uma espécie de nostalgia do poder moderador. Tivem o-lo.
Seu funcionamento fo i satisfatório, dentro da relatividade das coisas humanas,
de tem po e desenvolvimento do Brasil. O poder pessoal do imperador, que A fonso
Celso colocou no seu devido lugar , 7 significava o chefe visível, que é uma realidade
histórica brasileira, de Tom é de Souza a Ernesto Geisel .8 N o único p eríodo em
que o poder do chefe fo i diminuído, nos vinte anos da Constituição de 1946 —
os vinte anos que abalaram o Brasil —, porejou a crise do corpo exangue da nação,
e fo i, afinal, preparado o golpe que depôs um governo, cuja preocupação havia
sido a de enxovalhar o país, com atos de temerária subversão. Temos, portanto,
uma longa história de poder pessoal, de chefia, embora a chefia dinasticamente
legítim a se extinguisse em 15 de novem bro de 1889. O período anterior à Inde­
pendência e à Constituição de 1824 tem sido classificado com o absolutista, mas
essa é uma noção a nosso ver indefensável sobre o significado da palavra. Barbosa
Lima Sobrinho fez uma afirmação com a qual não concordamos. “ A criação do
Poder Moderador na Constituição de 1824 fo i o preço que o Brasil teve que pagar
para que o Imperador admitisse a renúncia de parte do absolutismo, que era um
privilégio da monarquia portuguesa” .9 0 mesmo publicista reconhece mais adiante,
contudo, ter a Constituição de 1824 lim itado a autoridade real. “ E se, em relação
ao Estado, vinha consagrada a continuação do absolutismo, através da criação
do Poder Moderador, não era menos certo que a Carta de 1824, em relação aos
direitos individuais, limitava realmente o discricionarismo da autoridade real” . 10
Escrevendo para jornal e com sublinhado objetivo polêm ico, Barbosa Lima
Sobrinho confunde absolutismo com despotismo. “ O Poder Moderador ( . . . )
era uma revivescência do absolutismo ” . 11

5 Editora Autas, Milão, s/d (1946).


6 Edição de 1938.
7 Oito anos de Parlamento - Poder pessoal de D. Pedro II. SãoPaulo,Melhoramentos, s/d.
8 Escrito no segundo semestre de 1977.
9 “ Sobre o Poder M oderador” . In Jornal do Brasil, R io de Janeiro, 18 de setembro de 1977.
10 Id., ib.
11 Id., ib.
138 O PO D E R M O D E R A D O R

Mas os monarcas portugueses que governaram o Brasil através dos gover-


nadores-gerais, e dos vice-reis foram absolutos, não foram déspotas. N em se
registrou o absolutismo em Portugal. “ Para retom ar a classificação de Montes­
quieu” , diz Georges Burdeau , 12 “ é preciso estabelecer que não é somente o regime
constitucional que com porta uma constituição, mas também o absolutismo,
porquanto, se um só governa, ao menos ele governa por m eio de ‘leis fixas e
preestabelecidas.’ ” “ A o contrário, o despotismo onde ‘um só sem lei e sem regra
subordina tudo à sua vontade e aos seus caprichos’ exclui a existência de uma
constituição” . Essa a distinção que importa ser feita. A monarquia lusitana era
temperada pelas ordens. Aplicam -se-lhe as palavras de Charles Maurras sobre o
chefe único . 13 “ O chefe único encontra lim ite moral em si mesmo e em torno
de si mesmo. O que se diz de seu poder absoluto não tem senão um valor relativo
na prática, por isso que, para agir, tem ele necessidade de ser advertido, servido,
sustentado, inform ado, defendido, obedecido por grande número de pessoas que
sua posição o força a respeitar nos seus interesses, suas dignidades, suas honras,
o que o torna muito mais forte em relação do bem do que do m al” . O poder
m oderador concentrava em suas atribuições o poder do chefe, e se se quer falar
de absolutismo, invoque-se, por analogia, antes, o exem plo de alguns presidentes
da República, do que o dos reis e até mesmo dos regentes. Os governadores-gerais
e os vice-reis eram severamente vigiados pelo poder real, tão vigiados que sobre
as suas administrações procediam-se devassas, tão logo chegasse ao Brasil o seu
substituto. Não podiam pendurar na parede retrato próprio, não podiam ficar
na terra, quando o substituto chegasse. O braço do poder monárquico os alcan­
çava sempre, para evitar malversações de dinheiros públicos, inidoneidade no
exercício do cargo.
0 governador-geral e o vice-rei não eram absolutos. Falar-se, pois, de abso­
lutismo, com o faz Barbosa lim a Sobrinho, é exagerado. O absolutismo é típico
produto da Ilustração. “ O absolutismo, que dá a esta época (séculos X V I I e X V I I I )
seu cunho estatal, parece opor-se e contradizer profundamente o m ovim ento
espiritual chamado Ilustração. Pois se a Ilustração aspirava à liberdade espiritual
e p olítica do indivíduo humano, o absolutismo, ao contrário, quer a submissão
de toda a vontade individual sob o governo do soberano e, portanto, é, em
princípio, inimigo de toda a espécie de liberdade espiritual, que poderia ser peri­
gosa para semelhante sistema político. Porém o absolutismo e a Ilustração estavam
estreitamente unidos no tem po e, como filhos do mesmo período histórico, devem
estar mais estreitamente unidos do que à primeira vista poderia parecer. O direito
p o lítico e a historiografia dessa época, ainda que ajudassem a produzir a ilustração,
continuavam defendendo o sistema absolutista antes de impor em seu próprio
centro opiniões contrárias. Mas a Ilustração acabou vencendo o absolutismo,

12 Traité de Science Politique. Op. cit., III, p. 21.


13 Enquête sur la monarchie. Op. cit., X X X III.
O PO D E R M O D E R A D O R E A L E G IT IM ID A D E 139

despertando, primeiro, as forças contrárias que tornaram possível a superação,


e o império coativo conduziria por necessidade ao im pério da liberdade ” . 14
A Ilustração, que teve com o representantes Bacon de Verulano, Hobbes,
Locke, Bayle, Voltaire, d’Alem bert, Montesquieu, D iderot, Holbach, W o lff, Lessing
e, em parte, Kant, não passou os Pirineus. O severo dom ínio dos jesuítas sobre
o sistema escolar português deteve a marcha dessa corrente, e nem mesmo V em ey
a rompeu . 15 O governo de Portugal era absoluto, mas, com o dissemos, tempe­
rado pelas ordens. N a sua monumental História da Administração Pública em
Portugal, Gama Barros 16 estuda o papel das Cortes Gerais em Portugal, e nos
convence, cabalmente, que não houve ali absolutismo, embora o monarca tenha
sido absoluto — com uma exceção, a de Pombal —, mas absoluto no sentido
que, séculos mais tarde, a psicanálise iria atribuir ao Pai. O rei era o pai governando
a nação. Essa organização fo i transferida para o Brasil.
A té hoje, quatro regimes governaram o Brasil: as capitanias hereditárias,
os governadores-gerais e os vice-reis, o rei e os imperadores, e a República presi­
dencial. Os governadores-gerais e os vice-reis respondiam pela direção geral dos
negócios do Estado do Brasil. Mas o Ouvidor geral julgava e o provedor da Fazenda
arrecadava os impostos e cuidava do Tesouro; as forças de terra e mar defendiam
a terra, e as Câmaras acolhiam a representação do povo, ou do que se poderia
chamar povo na extensão imensa do Brasil. As Câmaras amanheceram com o
Brasil. Oliveira Viana comete lamentável anacronismo, indigitando com o “ eli­
tistas” os “ homens bons” , os vereadores das Câmaras Municipais .17 Eram eles
os fazendeiros, os comerciantes, os burocratas, a aristocracia expedida da corte
o que havia no Brasil; os únicos que podiam, com as suas poucas luzes, mas com
seus interesses, desempenhar a representação com o Portugal no-la trasladou.
Tendo-se a cabeça em nossos dias saturada de idéias falsas, entre outras a da sobe­
rania popular, herdada da revolução francesa, é d ifícil compreender-se o sentido
de conservação social, que a representação das Câmaras Municipais revestia. Se
formos, pois, à nossa História, em suas páginas encontraremos a representação
na sua plenitude, contra a qual não prevaleceria o eventual arbítrio do governador-
-geral ou do vice-rei no curso de um p eríodo de trezentos anos. Abusos houve,
sem dúvida, mas foram corrigidos pelo braço real. O monarca não exercia o poder
moderador de direito, até ao advento do constitucionalismo. Era o poder, na sua
integridade, sendo os poderes que vieram, mais tarde, a ser denominados executivo,
legislativo e judiciário braços de um só e mesmo poder, o real.

14 Walter G oetz. “ La época del absolutismo” . In Historia, Universal, Madri, Espasa Calpe, 1872,
p. 3, tradução espanhola.
15 Ubiratan Macedo. “ Empirismo do Pensamento Luso-Brasileiro” . In Revista Brasileira de
Filosofia, São Paulo, V ol. X X III, 4 asc- 92, outubro, novembro e dezembro de 1973.
16 Sá Pereira. Lisboa, s/d I, p. 540.
17 Oliveira Viana. Instituições políticas brasileiras. R io, Livraria José O lym pio Editora, 1949,
I, p. 145 e ss.
140 O PO DER M O D E R A D O R

N o p eríodo chamado colonial, durante o qual a monarquia portuguesa


governou o Estado do Brasil, reinaram, pelos seus delegados; à parte os sessenta
anos dos Áustrias, D. Manuel, até 1521, D. João I I I , de 1521 a 1557, D. Sebastião,
de 1557 a 1578, D. Henrique de 1578 a 1581, os Felipes de Espanha, I, II e III,
de 1581 a 1640, quando, pela restauração, ascendeu ao trono português a dinastia
de Bragança. Ininterruptamente, governaram Portugal e o Brasil os reis Braganças,
D. João IV , de 1640 a 1656, D. A fonso V I, de 1656 a 1667, quando fo i destro­
nado, D. Pedro II, de 1667 a 1706, D. João V , de 1706 a 1750, D. José I, de
1750 a 1777. D. Maria I, que fo i afastada do trono por m otivo da terrível
depressão nervosa, que a assaltou nos dias sinistros da revolução francesa;
D. João V I, regente, e, finalmente, com a morte de sua mãe, rei do R eino Unido
de Portugal, Algarves e Brasil, e D. Pedro, prim eiro regente, e, com a Independência,
fundador do Im pério e prim eiro imperador do Brasil. Ininterruptamente, dezenove
reis governaram o Brasil, transmitindo o poder legitimamente, de um para o outro
sucessor, segundo o direito costumeiro, a trasladação diárquica e dinástica do
poder, e o direito de herança, na fam ília hegemônica do reino, direito que era
o mesmo para todos os seus habitantes. N ão nos interessa na História de Portugal
a sedição absolutista de 1823. Interessa-nos somente o Brasil, para demonstrar
a interdependência entre o poder moderador e a legitimidade. Na linha dinástica,
segundo os princípios do direito de herança, costumeiro e natural, D. Pedro, filho
mais velho de D. João V I, herdeiro do trono de Portugal, e rei, com a morte da
mãe, D. Maria I, proclamou a independência do Brasil, e ascendeu ao trono.
Dir-se-á que D. Pedro I assumiu atitude absolutista em 1823, fechando
a Assembléia Constituinte, depois da “ N oite de Agonia” . Não concordamos.
D. Pedro salvou a integridade do novo Im pério e evitou o pior, uma Constituição
que poderia ser perniciosa ao Brasil. Elaborada a primeira e única Constituição
do Im pério, fo i ela promulgada, ouvidas as Câmaras Municipais, isto é, a repre­
sentação do povo. Herdeiro de uma Casa que sempre respeitou as Cortes, D. Pedro
ouviu as Câmaras Municipais, que no Brasil faziam as suas vezes. Aprovada e
promulgada, entrou em vigor em 1824, dotando o Brasil de uma estrutura política,
na qual o poder moderador concentrou em suas mãos o poder executivo. Passada
a fase da regência, o segundo reinado inaugurou o governo de gabinete. Decreto
de 20 de julho de 1847 criou a presidência dos Conselhos de Ministros, vindo
a ser o primeiro titular do novo cargo o ministro do Im pério Manuel Alves Branco,
depois visconde de Caravelas. A presidência do Conselho de Ministros não fo i
regulamentada, mas, ao contrário do que afirma um historiador , 18 não fo i inope­
rante; deu frutos, institucionalizou-se naturalmente, e ficaram na História do
Brasil grandes nomes de presidentes, com o Olinda, Paraná, Zacarias, Itaboraí,
São Vicente, R io Branco — a mais longa presidência do Conselho —, Caxias, Saraiva,
Lafayette, Ouro Preto.

18 Paulo Pereira de Castro. “ Política e Administração de 1840 a 1848” . In História Geral da


Civilização Brasileira. Op. cit., p. 532.
O PO D E R M O D E R A D O R E A LE G IT IM ID A D E 141

Não faltaram críticas ao exercício do poder moderador pelo monarca. Ferreira


Vianna, em discurso proferido no dia 15 de julho de 1884 na Câmara dos Depu­
tados , 19 falava, amarguradamente, em senhor do Im pério, e vinham as grandes
tiradas oratórias e literárias, evidentemente inspiradas pela Assembléia Nacional
francesa, mais do que pelo Parlamento britânico. Quem, no entanto, com isenção
estudar o Im pério, sobretudo o segundo reinado, durante o qual a instituição
monárquico-constitucional, com o poder moderador, se consolidou, verificará
que de Caravelas — ou Alves Branco, para não sermos anacrônicos quanto ao
títu lo — a Ouro Preto os presidentes do Conselho exerceram o poder executivo
por delegação. O poder moderador sobranceava a cena política, as lutas partidárias,
as oscilações de opinião pública, pelas reações e manifestações do fenôm eno
p olítico. O poder moderador mantinha em equilíbrio a máquina do Estado, e
representava a nação perante o mundo. N ão obstante as divergências, as lacunas,
as falhas, as anomias — e todas as sociedades sempre as tiveram — o rei encarnava
a vontade suprema da sociedade, unificando, hierarquicamente, as forças sociais.
Daí, brasileiros ilustres, dotados de inegável patriotismo e lucidez, terem
feito profissão de fé monárquica, durante e depois do Im pério, com o, para citar
um exem plo dos mais altos, o caso de Joaquim Nabuco, que, em M inha Form ação
e em carta de 3 de janeiro de 1899, a Eduardo Prado, que possuímos, reafirmava
solidariedade com aquele regime. O poder moderador é, portanto, o poder legítim o,
dinasticamente instituído. É um poder arbitrai ao qual nenhum outro se sobrepõe.
Transitoriamente, com o ocorreu no Brasil, depois de 1964, as Forças Armadas,
e, especialmente, o E xército, têm assumido essa função, que no entanto não
lhes é inerente. As Forças Armadas são corporação de defesa para garantir a segu­
rança nacional, devendo estar subordinadas à chefia do Estado. Se se dá o vazio,
elas o preenchem, mas esse vazio só ocorreu na fase republicana de nossa História —
já o dissemos — não, contudo, em caráter definitivo. Os presidentes emanados
do m ovim ento de 1964 vieram a ser — e estão sendo — de fa to presidentes
monarcas. Não é a monarquia republicana de que fala Maurice Duverger ;20 é a
república monárquica, na qual não cabe o poder moderador propriamente dito,
senão por adaptação aleatória. N ão se pode — essa a nossa posição — falar em
poder moderador, supondo-o possível ou viável sem o rei. Ou se fica na república
presidencial, com todos os poderes enfeixados nas mãos do presidente, ou se adota
o m odelo francês, misto de presidencialismo e parlamentarismo ainda não provado,
de De Gaulle, que o criou, a Giscard d ’Estaing, ou se opta pelo parlamentarismo,
segundo o m odelo da República Federal da Alemanha, das Terceira e Quarta
Repúblicas francesas — com as quais não temos ligação tradicional — deixando-se,
portanto, de falar em “ m odelo p o lítico ” , impossível de ser inventado, ainda que
se tenha a imaginação mais ardente, com o a teve V ictor Hugo na literatura.

19 Anais da Câmara dos Deputados do Império do Brasil, discurso publicado em 7 de


setembro de 1884.
20 Op. cit., passim.
142 O PO DER M O D E R A D O R

N ão se discuta, portanto, sobre o m odelo, e se se quiser insistir em fazê-lo,


que se reform e, ainda uma vez, a atual Constituição, a qual, com o já o dissemos,
não permite - artigo 47, inciso II, § 19 - deliberação sobre proposta tendente
a abolir a federação e a república, embora a primeira esteja, de fato, abolida, dispo­
sitivo reproduzido da Constituição de 1891, que Eduardo Prado veementemente
libelou num plan fleto ,21 hoje esquecido. Neste aspecto, a Constituição do Império
era, também, mais liberal do que a republicana, embora fosse esta redigida pelo
liberal Rui Barbosa. Mas se se quiser insistir no poder moderador, o autêntico,
não um sucedâneo, então o rei deve ser chamado. N ão há alternativa. Convençam-se
da premissa quantos pensam, escrevem e falam sobre o problema político e,
mesmo, a problemática política brasileira. A nostalgia do poder moderador —
voltamos ao nosso estribilho - é a nostalgia da legitimidade. Perdemo-la de direito;
temo-la de fato, isto é, temos um poder legitim ado pelo Estado de D ireito, mas
não legítim o pelo direito natural, ou seja, pela natureza das coisas, pela sucessão
dinástica, através da preeminência do primeiro grupo entre os primeiros grupos
de que é composta organicamente a sociedade. Se tivemos no Brasil um modelo
vivo, com resultados estupendos, o lógico seria que os faiscadores de “ modelos”
se voltassem para ele.
Funcionou no Im pério não o parlamentarismo, mas o sistema parlamentar.
“ O imperador ( . . . ) fo i pouco a pouco cedendo prerrogativas que a Constituição
lhe assegurava e caminhando para a prática real do sistema parlamentar” . “ A
prova é que acabou por nomear os ministros, conform e as indicações da Câmara
e só saía dessa regra, de tempos a tempos, para evitar que um partido se perpe­
tuasse no poder. Era, pois, uma exceção benfazeja, que a metade ou a maior
parte da nação aplaudia. A o demais tinha deixado aos presidentes do Conselho,
pode-se dizer de um m odo efetivo, a liberdade de compor os Ministérios com
partidários de sua confiança e por fim , depois da luta com Zacarias, tinha até
cedido na prerrogativa que lhe era exclusiva, de escolher os senadores. Ainda
a í os gabinetes exerciam influência ” .22 O governo representativo, com o o praticam
a Inglaterra e os Estados Unidos — este com enormes defeitos, mas, em todo o
caso, menos enodoado do que qualquer outra república —, não chegou, efetiva­
mente, a ser praticado no Brasil. Em toda a história republicana, o povo nunca
fo i ouvido sobre a escolha do presidente, ou, se quisermos ser fiéis à verdade
histórica, somente duas vezes dois presidentes republicanos teriam antecipa­
damente a chancela popular, se a consulta às bases — segundo o jargão político-
-partidário - se fizesse antes das convenções: a escolha de G etúlio Vargas em
1950 e a de Jânio Quadros em 1960. Fora esses dois, nenhum outro.
Recapitulando a História: D eodoro assumiu o governo na crista de um golpe

21 Eduardo Prado. Anulação das Liberdades Políticas. São Paulo, Livraria Civilização, 1897,
passim.
22 Tobias M onteiro. Pesquisas e Depoimentos para a História. R io, Francisco Alves, 1913, p. 54.
O PO D E R M O D E R A D O R E A L E G IT IM ID A D E 143

militar vitorioso, e governou durante três anos. Quando fo i para casa, alforriando
o último negro do Brasil, segundo as suas próprias, dramáticas palavras, substi­
tuiu-o o vice-presidente Floriano Peixoto, cuja atuação política desencadeou
a maior onda de paixões que o Brasil havia conhecido até então. Ficou, na época,
famoso o jacobinismo florianista, com manifestações da violência, e reações que
chegaram ao extrem o da luta armada. O primeiro presidente civil, escolhido por
um conciliábulo de gabinete, Prudente de Moraes, recebeu o governo de Cassiano
Nascimento. Floriano P eixoto não se dignou transmitir-lhe o cargo. A crise em
que se debatia a nação era generalizada. N ão fo i pacífica a sua sucessão. Campos
Salles enfrentou fortíssima oposição, e acabou vencendo, por então contar com
São Paulo. Em seu livro, Da Propaganda à Presidência , 23 o presidente prestou
contas de sua carreira e de seus serviços à nação, e um chefe de governo de
“ ortodoxa honestidade” , com o a ele se referiu Rui Barbosa, comprou a imprensa,
amilhou-a, nas próprias palavras de seu curioso neologismo. F oi terrível o governo
Campos Salles. As crises o desejaram de todos os flancos. A o deixar o poder,
recebeu a maior vaia de que se tem notícia neste país. A população do R io de
Janeiro — cidade “ frondeuse” , com o se sabe — saiu às ruas para apupar o presi­
dente que voltava para São Paulo, para a sua modesta casa, para a sua rotina
cotidiana. Sucedeu-o o presidente Rodrigues Alves, que realizou o melhor governo
da República, embora tivesse enfrentado, também ele, numerosas crises.24 A té
então, o povo não havia participado da escolha do candidato.
Continuou a rotação do poder. A Rodrigues Alves sucedeu A fon so Pena,
antigo ministro do Im pério, grande figura de p o lítico e parlamentar, mineiro
da melhor gente das Gerais. Morreu logo no in ício do segundo ano de seu governo,
e o sucedeu o vice-presidente N ilo Peçanha, típ ico produto da incubadeira p o lí­
tica da primeira República. Sua sucessão fo i tempestuosa. Basta lembrar a
Campanha Civilista e ler os discursos de Rui Barbosa. Ninguém fo i mais veem ente­
mente atacado neste país do que o candidato Hermes da Fonseca. O verbo de
fogo de Rui Barbosa arrasa-o em conferências magistrais, das quais nos ficaram
algumas das mais belas páginas de antologia da língua portuguesa. O pobre
marechal, apoiado pelo caudilho Pinheiro Machado, que tinha a política
brasileira nas mãos, fo i eleito e se empossou. N o governo “ não fo i m elhor nem
pior do que qualquer ou tro ” .25 N ão teve um dia de descanso. A oposição que
lhe moveram os seus adversários fo i, literalmente, ferocíssima. Wenceslau Braz,
que o sucedeu, assumiu a presidência quando a Europa já estava em guerra fazia
três meses e meio. As atenções da opinião pública voltavam-se, todas elas, para
o teatro das operações e para o sucesso das batalhas. F o i o que o salvou. Wenceslau
foi, apenas, um presidente m edíocre. As oligarquias estaduais escolheram para

23 Campos Salles. Da propaganda à presidência. Sem indicação de editora, São Paulo, 1908.
24 Afonso Arinos de M elo Franco. Rodrigues Alves. R io, Livraria José O lym p io Editora,
1973, passim.
25 José Maria dos Santos. A política geral do Brasil. São Paulo, J. Magalhães, 1930, p. 435.
144 O PO D E R M O D E R A D O R

sucedê-lo Rodrigues Alves. E leito, não tom ou posse por estar enferm o. Assumiu
o govem o o vice-presidente D elfim Moreira.
Em 1919 morre Rodrigues Alves, e, de acordo com a Constituição de 1891,
deveria ser eleito outro presidente. O vice não poderia assumir. Era um contra-senso,
mas era a lei. Os oligarcas da política brasileira foram buscar com o candidato
Epitácio Pessoa para seu sucessor. O nom e de Rui Barbosa fo i lançado com o opo­
sição. Venceu Epitácio. N o governo, o enérgico, valente paraibano enfrentou
o com eço da fermentação revolucionária. Sufocou-a, e passou o governo a seu
sucessor, escolhido segundo o rito sacramental das eleições previamente decididas.
Recebido com hostilidade pelo povo carioca, Artur Bemardes governou em estado
de sítio. F o i um duro implacável. Sua sucessão também não fo i calma. Washington
Luís, que o sucedeu, recebeu o governo em nação traumatizada pela revolução
de 1924. Em 1930, os candidatos do “ bolso do colete” , pitoresca expressão com
a qual se etiquetavam as candidaturas urdidas pelas cúpulas partidárias, as pode­
rosas comissões diretoras dos partidos republicanos, a oligarquia na plenitude
de sua significação sociopolítica, esses candidatos se encontraram na luta pelo
govem o. De um lado Júlio Prestes, e de outro Getúlio Vargas. Sabemos como
terminou. A revolução de 1930, desencadeada n o R io Grande do Sul, derrubou
um presidente, e encerrou uma época. A té então o povo não havia participado
de nenhuma escolha. N ão tivéramos democracia representativa no período
republicano.
Getúlio Vargas ascendeu à presidência, e governou através de crises, a maior
das quais fo i a revolução paulista de 1932. Eleito pelo voto indireto do Congresso,
em 1934, suspendeu os direitos constitucionais em 1935, e em 1937 derrogava
mais uma Constituição, a de 1934, que ele jurara obedecer. Com o artigo 180
dessa Constituição, deixou-se ficar arbitrariamente no exercício do poder discri­
cionário, que a guerra veio, canhestramente, justificar. Deposto em 1945, em meio
a uma crise tremenda, a crise da sua própria sucessão, teve com o sucessor seu
antigo ministro de Guerra, o presidente Eurico Gaspar Dutra. Para a sucessão
deste, candidatou-se, e fo i eleito, com pouco menos do que a maioria absoluta
dos votos. Se o povo não participou ostensivamente do lançamento de sua candi­
datura em 1950, participou ao menos tacitamente. Ninguém havia, na política
brasileira, capaz de enfrentá-lo, e ganhar nas urnas. Deposto em 1954, suicidou-se;
seu sucessor Café Filho fo i, por sua vez, deposto pelo ministro da Guerra, general
Teixeira L o tt, e seu sucessor constitucional, o presidente da Câmara dos Depu­
tados, Carlos Luz, também fo i deposto, ensaiando uma resistência, que, afinal,
deu em nada, e acabou ridícula e melancolicamente num vaso de guerra sem
combustível e sem provisões. Salvou a fachada democrática o presidente do
Senado, Nereu Ramos, que deu posse a Juscelino Kubitschek, presidente eleito
em 1955.
A eleição de Juscelino Kubitschek fo i precedida de fortíssima campanha
contra o candidato. Tudo se argiiiu e invocou para impedir a sua eleição. Elegeu-se
Juscelino Kubitschek por ser obstinado, e dispor de algumas armas exclusivas,
uma das quais a sua extraordinária capacidade de comunicação que o ajudou até
O PO D E R M O D E R A D O R E A LE G IT IM ID AD E 145

ao fim da vida. N ão estamos fazendo História, evidentemente; estamos justifi­


cando a nossa tese, com exemplos sumários. Quem quiser a História, que nos
consulte 26 e consulte José Maria Bello 27 e José Maria dos Santos .28 O sucessor
de Juscelino Kubitschek fo i Jânio Quadros, a mais fulgurante carreira política
do Brasil. Em catorze anos, o jovem advogado do Foro paulista passou de seu
obscuro escritório sem clientes ao Palácio do Planalto, e sete meses depois renun­
ciava, jogando pela janela seis milhões de votos, em números redondos. Ninguém
poderia im pedir a ascensão de Jânio Quadros à presidência. Venceu, exclusiva­
mente, pelo v o to popular, entornando nas massas anônimas que o escutavam
e aplaudiam a mais bem composta demagogia que ouvimos no Brasil. Com a sua
renúncia, assume o vice-presidente João Goulart, por alcunha o Jango, cujo fim
todos conhecemos. Eleito pela demagogia populista, esse pupilo de Vargas, que
poderia, no m áxim o, ser vereador de São Borja, levou o Brasil para o rumo da
corrupção e da subversão. F oi deposto pelas Forças Armadas em 31 de março.
Sucederam-se, desde então, os governos militares.
N ão caberia na situação que se criou no país o livro de Eduardo Prado ,29
nem o de Ouro P reto .30 N ão temos um governo militarista, mas a auto-investi-
dura do estamento — no sentido weberiano da palavra — militar na responsabilidade
do poder. O povo não participa das escolhas sucessórias? 0 povo nunca parti­
cipou. Sempre as decidjram as cúpulas partidárias, teoricamente representantes
do povo. Nenhum dos presidentes da primeira República tinha ressonância
popular. Depois de 1930, somente Getúlio Vargas e Jânio Quadros a haviam con­
quistado antes de disputar eleições. Juscelino Kubitschek conquistou-a depois de
sair do governo. Paradoxalmente, seu prestígio aumentou quando transferiu o
governo a seu sucessor. Aum entou, mesmo, nos últimos anos de sua vida. Cremos
que, se Juscelino Kubitschek viesse a ser candidato à presidência, a sua eleição
seria plebiscitaria,
Fazendo o diagnóstico do regime, quando candidato, em 1919, dizia Rui
Barbosa que “ se inutilizaram os órgãos vitais do governo representativo, as
válvulas de seu aparelho respiratório e o centro de seu sistema vascular” 31. Na
conferência proferida no T ea tio Politeama, de Salvador ,32 fe z Rui Barbosa o
jo go de palavras de república com reprivada, sacando do neologismo duro libelo
contra os nossos costumes políticos. Evoluiu muito o Brasil de então aos nossos dias,
mas a democracia representativa, essa não se firm ou, e o povo não participa da escolha
política, simplesmente por não ter possibilidade de participar, ainda que pretenda­
mos aprimorar as nossas instituições. O sufrágio, que não deve escolher governantes,

26 A crise da republica presidencial. São Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1969, passim.
27 História da República. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1964, passim.
Op. ctt., passim.
29 Fastos da ditadura militar. São Paulo, Livraria Magalhães, 1923, passim.
30 Advento da ditadura militar no Brasil. Paris, Impremirie F. Pichon, 1893, passim.
31 Rui Barbosa. Obras Completas. V o l. X L V I, 1919, T om o I, passim.
32 Id „ tb„ I I , p. 40.
146 O PO DER M O D E R A D O R

mas representantes, fo i praticado de duas formas no Brasil, descoberto e secreto.


Neste caso, elegeu os presidentes de Dutra a Jânio. Já indigitamos a crise política
republicana, afirmando que o último presidente a receber e transmitir o poder,
segundo a rotatividade normal, de um presidente eleito para outro, tam bém eleito,
foi Artur Bernardes, e essa linha, interrompida com a revolução de 1930, só se resta­
belecerá com o sucessor do sucessor do presidente Ernesto Geisel, assim mesmo
considerando-se normal a sucessão dos presidentes militares, os quais são escolhidos
por cooptação do A lto Comando, ou do próprio presidente em exercício, não pelas
convenções, com a participação do povo. Mas com o estão esses presidentes monarcas
procurando governar para o povo, devemos dar-lhes o nosso apoio histórico, para os
que já passaram, e solidário, atuante, para os que virão, a menos que traiam, o
que não cremos, a escolha.
Seria preciso que o poder supremo do Estado não ficasse exposto a concor­
rências que alimentam a crise. Quando pleiteamos para o Brasil o poder moderador,
dinástica e historicamente legítim o, não nos m ove outro propósito senão o do
interesse nacional. Não nos nutrimos do misticismo dos regimes. N ão os conside­
ramos infalíveis, pelo elementar m otivo de não considerarmos infalíveis as obras
humanas, sobretudo as políticas, em cujo seio a paixão se introduz com força
não raro impressionante e indefensável. N ão propugnaríamos a legitimidade do
poder moderador dinástico para os Estados Unidos ou para a Suíça. Na grande
nacionalidade americana, o “ self govem m ent” herdado da Inglaterra funciona
bem, não obstante as nódoas que, de tempos em tempos, se mostram na pureza
doutrinária e histórica de suas instituições. Erramos em copiar os Estados Unidos,
vindo, com o vimos, do governo autoritário, temperado, embora, pelas “ ordens”
e pelas Câmaras, o regime não se institucionalizou no Brasil, pois a form a de partici­
pação do povo fo i, no Brasil, sempre bem diferente da americana. Não somos
deterministas em Filosofia, portanto, em História, mas entendemos que os povos
seguem caminhos diversos, e se traçam os seus próprios rumos. “ A História não
é uma geometria in flexível nem uma simples sucessão de incidentes fortuitos.
Se a História fosse dominada de maneira absoluta pela necessidade, poderíamos
tudo prever; se ela fosse um simples jo g o da paixão e da fortuna, não poderíamos
nada prever. A verdade é que as coisas humanas, ainda que elas frustrem, freqüen­
temente, as conjecturas dos espíritos mais sagazes, se prestam contudo ao cálculo.
Os fatos consumados contêm, se sabemos distinguir o essencial do acessório, as
linhas gerais do futuro” 33. É com esse espírito — dizemos com o Renan — que
nos propusemos defender o princípio do poder moderador com o necessário ao
Brasil. N ão nos preocupamos com as instituições políticas americanas, nem com
o “ self government” , nem com o “ spoil system” , um o seu lado claro, outro o
seu lado escuro; preocupamo-nos com a necessidade inadiável de nosso povo,
a de estar seguro sob instituições políticas menos sujeitas aos sismos que as vêm
abalando desde a proclamação da República.

33 Einest Renan. La réforme intellectuelle et morale. Paris, Michel L é vy Frères, 1 87 5,p. 233.
O PO D E R M O D E R A D O R E A LE G IT IM ID AD E 147

Expusemos em capítulos anteriores a legitimidade institucional e a legiti­


midade contratual. Optamos pela primeira, e, sem querermos voltar ao passado,
o que é impossível, pois o tem po é irreversível;linear, ele prossegue o seu itinerário,
acumulando experiências, queremos que as instituições do passado inspirem os
responsáveis pelo destino do Brasil, e os levem a descobrir o “ m odelo” de que
tanto se fala, o poder moderador, que atua com o um acicate nostálgico na inteli­
gência de tantos publicistas brasileiros. N ão se poderá apagar da tormentosa História
dos povos a série de acontecimentos que a marcaram. Será impossível — com o
fazem os historiadores comunistas - esquecer intencionalmente fatos cuja im por­
tância se afere pelas mudanças que eles introduziram na vida das nações. A
Reform a, a revolução industrial, a revolução americana, a revolução francesa,
a revolução russa mudaram o curso da História, trazendo para o seio de todos
os povos contribuições, positivas e negativas, que não podem, nem devem ser
desprezadas. O advento do Cristo fo i o acontecimento capital na História. Deus
se fe z hom em , nasceu de uma virgem, Maria, da Casa de David, rei de Israel; viveu,
embora de soa vida pouco se conheça, padeceu o m artírio , sendo Pôncio Pilatos
procurador da Judéia, e Tibério César, imperador de Rom a; fo i crucificado, m orto
e sepultado. É o Credo, que os teólogos modernistas e progressistas, com a cabeça
povoada de teses marxistas, querem negar. O mundo fo i e é para sempre diferente,
depois que Cristo nasceu, e morreu na cruz, deixando um Testamento e uma
Igreja, agora varrida pelos vendavais furiosos da mais terrível crise, que a ataca
até hoje.
A filosofia grega, toda ela, embebeu, banhou e transfigurou a civilização.
Somos tributários do pensamento dessa nesga miraculosa de terra, onde nasceram
e ensinaram os pré-socráticos, Sócrates, Platão, Aristóteles, dos quais procede
toda a filosofia, todo o pensamento que conduz as civilizações e as culturas. 0
direito romano sustentou o ed ifício do direito, embora, na sua decadência, tenha
engendrado, também, as forças que iriam destruí-lo, através da destruição das
liberdades humanas. Não queremos voltar ao passado, sobretudo por não termos
poder para tanto. A “ idade da revolução” , de que tanto falamos nos capítulos
desta obra, ainda está em curso; quando ela irrompeu, no século X V III, iria dar
origem a um processo, cujo termo não podemos vislumbrar no horizonte de nossas
indagações. Sobre não termos capacidade para tanto, a única lei da História
continua intacta, não revogada, o imprevisto. Podemos, no entanto, fazer deduções.
Acentuava Renan que o maior dos gênios nada serve para desembrulhar as coisas
do mundo, onde o raciocínio não tem explicação, acrescentando que o passado
nos mostra um objetivo seguido, com o qual tudo se explica, e o futuro julgará
o nosso tem po, com o julgamos o passado, e então “ veremos as conseqüências
rigorosas em que somos, freqüentemente, tentados a não ver senão vontades
individuais e encontros de acaso” .34
Este é um mim do tom ado pela fúria revolucionária, entendida revolução
com o a definimos em capítulo anterior. Nada é estável; por isso mesmo, devemos

34 Ernest Renan. Op. cit., p. 234.


148 O PO DER M O D E R A D O R

nos acolher aos regimes mais institucionalmente estáveis do que outros, ou menos
institucionalmente instáveis do que outros. Mostramos o sentido da legitimidade
institucional e admitimos a legitimidade contratual. Uma é mais sólida do que
outra. A rigidez de seu cimento menos sujeito a abalos. A outra é relativamente
frágil, com o temos visto, com abundância de exemplos, neste nosso século, em que
a regra é o golpe de Estado, é a mudança de governos, é a inquietação sem para­
deiro. Vivem os sob febre. Já não sabemos se os nossos descendentes terão melhores
condições de vida do que estamos nós tendo. Se considerarmos o desenvolvimento
com o a fórmula salvadora do futuro, é provável que o ser humano seja acumulado
de bens com o nem mesmo imaginamos.35 Mas se considerarmos que não basta
ao hom em ganhar o mundo e perder a alma, com o vem no Evangelho segundo
Sãó Mateus, devemos voltar o nosso pensamento para o alto, para a fon te da
Verdade, e interpretar severamente o mundo.
John Kenneth Galbraith fala de uma “ era de incerteza” ,36 e afirma que
não fo i encontrada solução para grandes problemas, com o, entre outros, o problema
do desequilíbrio entre pobreza e riqueza, entre emprego e desemprego, o problema
da inflação, e outros. D iz, mesmo, Galbraith que o pessimismo é justificado, em
face deste mundo. N ão vamos a tanto. O ser humano é bizarro e caprichoso.
Convence-se de uns tantos estereótipos, de idéias feitas, imbuindo-se de precon­
ceitos vários, e dificilmente se convence de que está errado. São necessários anos
seguidos para que esse lento dinossauro, que é a massa humana, se m ova de uma idéia
para outra, de uma para outra convicção. D aí, não termos ilusão sobre a nossa
tese do poder moderador legítim o e da legitimidade institucional. N ã o temos
dúvidas que a legitimidade contratual e os governos de sufrágio são os mais aceitos.
O filósofo alemão Hermann Glaser definiu satisfatoriamente o que é a perso­
nagem que detém a marcha do pensamento e a livre circulação das idéias, o pequeno
burguês: apegado a preconceitos, não os abandona. É o Spiesser. O Spiesser é
uma estranha maneira de ser. Ele se encontra em todas as escalas da sociedade:
na mais baixa como na mais alta esfera. Ele pontifica no estrado p o lític o , se
insinua no ensino, perora no café, floresce nas casernas e nos restaurantes. Ele
pulula nas pequenas cidades, se recruta entre os pequenos burgueses, o pequeno
funcionário, o pequeno professor. Produto da meia-cultura, sabe mal, o que é
pior do que ignorar. É um conformista revestindo a aparência de um reform ador.
Sujeita-se às modas, para não parecer inatual. A alma do Spiesser está conta­
minada, sem que ele se dê conta do fenôm eno, no entanto de suma importância
para ele e para a sociedade na qual atua.37 O Spiesser, com o representante do

35 Ilusões e desilusões do desenvolvimento, com toda a sua bibliografia. Procurei demonstrar


as duas faces do desenvolvimento e a necessidade espiritual de sua delimitação.
36 The A ge o f Uncertainty. Londres, André Deutsch, 1977, passim. Traduzido pela Livraria
Pioneira Editora ( A Era da Incerteza), S. Paulo, 1979.
37 André Bogaert. “ Les Lettres en Allem agne” . In Revue des Deux Mondes, Paris, ju lh o de
1974, p. 236 e ss.
O PO D E R M O D E R A D O R E A L E G IT IM ID A D E 149

homem-coletivo de nosso tem po, está inteiramente tomado pelos preconceitos,


alguns de idade caduca, mas resistentes, que se lhe incrustaram na mente, e não
os alija. O mundo é vítim a do Spiesser, e, no mundo, evidentemente, o Brasil.
Expusemos o que entendemos pelo poder moderador legítim o, e com o
devemos entender legitimidade institucional e legitimidade contratual. O único
poder moderador é o real, diárquico, monárquico, dinástico, introduzido no
direito político, constitucionalmente, desde o advento da “ Idade da Constituição” ,
depois da primeira Constituição do mundo m oderno, a americana, e da Consti­
tuição de 1791, da França revolucionária. N ã há outro poder moderador, senão
com o sucedâneo, aleatório, não institucional. A legitimidade contratual se obtém
pela eleição, segundo os dispositivos de um C ódigo Eleitoral, e a indicação parti­
dária, consoante estabelece a lei. Mas essa legitimidade vem sendo contestada,
e as mudanças se sucedem no processo p o lítico , comprometendo a paz interna,
a concórdia e o desenvolvimento nacional. Escolha-se, portanto, visando ao
bem comum.
II EB
os órgãos da legitimidade

São órgãos da legitim idade: a dinastia, para a institucional; a eleiçílo, puni


a contratual. Deixando-se para trás outras formas de escolha do chefe, ao longo
dos séculos, fiquemos com essas duas, que prevalecem no mundo contemporímoo,
A eleição de Washington e a sua posse em 30 de abril de 1789 inaugurou, eíctl
vãmente, o contratualismo legal na escolha do chefe de Estado, introduzindo w
no mundo, sucessivamente, o sistema eletivo, e dois séculos mais tarde sim gono
ralizaçâo é, praticamente, completa. A grande revolução do mundo moderno
começou, portanto, com essa eleição, cuja influência iria abater um princípio,
o da legitimidade dinástica, e introduzir outro, o da legitimidade conlriiluttl.
desvinculando-se do prim eiro o princípio de direito natural que erige sobre umti
fam ília, em nação constituída de grupos familiais, a chefia de Estado, a soberimlii
e a direção dos negócios políticos. A transformação fo i extensa e profunda
Durante cerca de um século prevaleceu ainda o princípio dinástico, 110 mundo
inteiro, com exceção da Am érica, continente onde caiu, em 1889, o segundo trono
nele constituído. Na Europa, depois da queda de Napoleão III, se o quluonmm,
contra os legitimistas franceses, considerar um dos continuadores do princípio
dinástico, duas repúblicas passaram a existir, a França e a Confederaçílo llolvtMIm
Neste último quartel do século X X , a dois séculos da primeira elolçílo, pouoii»
são as monarquias, reduzido é o número de órgãos da legitimidade dinástica h rd u
mina a legitimidade contratual, elegendo-se os chefes de Estado e do govnin»,
cumulativa ou isoladamente, segundo legislação adequada a esse fim . Os liilincri
da revolução mundial, revolução no sentido em que a definimos, capítulo hIi/In,
152 O PO D E R M O D E R A D O R

são numerosos, mas, principalmente, consistem no rom pim ento da função natural
dos grupos humanos, o de integrarem a pessoa nos grupos dos quais tem ela neces­
sidade, para expandir as suas virtualidades.
Analogicamente, a sociedade deve espelhar a primeira fam ília, a de Cristo,
aspirando à comunidade perfeita com o Pai, o F ilh o e o Espírito Santo.1 “ As
primeiras gerações cristãs possuíam um sentimento muito vivo da solidariedade
de todos os indivíduos e das diversas gerações na marcha para a mesma salvação” .
Mas a História está secularizada, a fé já não tem eficácia, e o sentido analógico
que procuramos no dogma não atrai adeptos. Devemos ficar, portanto, na ordem
natural, e esta ainda é grupai, constituindo-se de grupos naturais primários e
secundários, essenciais e acidentais, mas todos com pondo uma unidade, sem a
qual as nações não duram. Impõe-se, daí, um princípio de solidariedade, assen­
tada sobre outro princípio, o tradicional, para que a duração não se rompa.
Heinrich Pesch2 introduziu na nomenclatura econôm ica o princípio da solidarie­
dade e o sistema solidarista, opondo-o ao individualismo e ao socialismo. Sua
doutrina se funda no pensamento dos Padres e Doutores da Igreja e em toda a
tradição católica. Mas está ela, evidentemente, fraturada pela crise difusa, mundia-
lizada que envolveu o mundo nas suas expansões malignas. O certo é que a pessoa
tem necessidade do grupo familiar e dos grupos sociais. Sem eles não se eleva
em perfeição. “ A pessoa não pode ser só. N ão poderia ser ela mesma senão por
uma espécie de êxod o e de generosidade. E, assim com o o indivíduo, não obstante
o sentido etim ológico da palavra, não existe senão em função do que o limita
e o separa dos outros, a pessoa parece subsistir ultrapassando-se a si mesmo e
tomando esta divisa: vae soli3 .
O individualismo de um lado e o coletivismo de outro — qualquer que
sejam as suas acepções — constituem, portanto, uma coação à pessoa humana,
à sua tendência natural ao agrupamento. Se a sociedade é formada de grupos —
e não vamos entrar, aqui, na exposição da tese —, a fam ília deve constituir a
sua base e ponto de partida da organização política. A dinastia, assentando
sobre a fam ília, é, portanto, natural. Classificando-a na chave de órgão institu­
cional da legitimidade estamos nos apoiando em fundamento sociológico. O
grupo primário por excelência é a família. Em seguida vêm o grupo de jo g o , a
vizinhança, a escola, a igreja, o agrupamento para o trabalho e outros em grau
crescente de derivação.4 A grande crise do mundo contemporâneo radica-se aí,
nesse fulcro. A fam ília perdeu consistência, desintegrou-se, os filhos chegam a
considerar os pais simples máquinas de fabricá-los, e não lhes dedicam afeto.

1 Henri de Lubac. Catholicisme. Paris, Editions du Cerf, 1947, p. 85 e ss.


2 Tratado de Economia Nacional. Madri, Casa Editorial Saturnino Calleja Fernandez, s/d,
passim. Tradução castelhana d o original alemão.
3 Maurice Blondel. L ’Être et les êtres. Paris, F é lix Alcan, 1935, p. 101.
4 L. L. Bernard. Psicologia Social. M exico, F on do de Cultura Económ ica, 1946, p. 366,
tradução castelhana.
OS Ó R G Ã O S D A LE G IT IM ID A D E 153

Os costumes estão aceleradamente mudando, as emancipações so fazem


com menos idade, a independência econômica dos filhos em relação aos pais
liberou-os da autoridade paterna, e o que vemos é a instituição sem a qual as socie­
dades não subsistem arruinar-se, ao parecer irremediavelmente, pelo afrouxamento
das forças morais que a devem sustentar. Segundo L. L. Bernard,5 qualquer que
tenha sempre sido a form a do grupo primário, a sua função é a de moldar a persona­
lidade e controlar o comportamento dos adultos. Se esse grupo se fragmentou,
aos impactos da crise moral engendrada pela revolução universal das consciências,
a personalidade se perde no ente coletivo. Essa é a origem da sociedade de massas,
na qual todos os valores vão soçobrando, e uma autêntica axiologia da vida já não
tem sentido.
Se o grupo primário encerra em si mesmo uma função conservadora e
transmissora,6 a sua cisão destrói os princípios da conservação e da transmissão
da herança, do respeito moral pelas hierarquias, dos deveres para com o bem
comum, de que é ou deve ser guarda vigilante o Estado, com todas as instituições
que integram a nação. É esse órgão de legitimidade que resistiu aos milênios da
tendência humana ao pecado, garantindo a duração das nações. Insistimos, por­
tanto, em localizar nesse órgão o princípio da legitimidade institucional, e procu­
ramos combater o vigor nocivo da revolução das consciências, demonstrando
em que ele consiste. Já expusemos, páginas atrás, com o se form ou a querela da
legitimidade. Não voltaremos ao assunto. Mas devemos explanar com o funcionam
um e outro órgão, o institucional e o contratual. Vamos à História. “ Em 1789,
a França, privada do princípio da legitimidade monárquica, perdeu o seu equi­
líb rio p olítico, qüe ela não o reencontrou jamais inteiramente. Ela oscila, depois,
entre regime de Assembléia e poder pessoal de um salvador. Napoleão fo i o
primeiro desses salvadores” .7 Os revolucionários, nutridos do enciclopedismo,
da Filosofia das Luzes, do idealismo, do racionalismo, do criticismo, do utilitarismo,
do sensualismo, ou seja, das correntes de idéias que intoxicaram irremediavel­
mente a inteligência européia, desencadearam o monstro revolucionário. Sua
primeira vítim a fo i o sím bolo da legitimidade, o rei de França. Nos Estados
Unidos, constituídos pouco antes da revolução francesa, não rolou a cabeça do
rei, mas os revolucionários da Independência recusaram-lhe a legitimidade. Muito
mais coerentes foram os brasileiros da Independência, primeiro no episódio do
“ F ico” , e, em seguida, com o ostensivo e decisivo apoio ao regente D. Pedro,
para que ele rompesse os vínculos que o ligavam a Portugal, sem quebra, porém,
da continuidade histórica.
A idéia republicana palpitava no Brasil. São conhecidos os encontros de
Jefferson com José Joaquim da Maia, estudante brasileiro, que conspirava pela
independência do Brasil e até mesmo a estapafúrdia idéia de ser implantada em

5 Op. cit., p. 367.


6 L. L. Bernard. Op. cit., p. 368.
7 Emmanuel Tod d . “ T h e little big man” , in L e Monde, Paris, 8 de julho de 1977.
154 O PO D E R M O D E R A D O R

Pernambuco uma república, sob o patrocínio de N apoleão.8 Seria impossível


não reboar no Brasil o toque do sino da independência americana. Era fascinante
a insurreição das antigas colônias do leste americano contra a mãe-pátria Inglaterra,
ou mais precisamente contra Jorge III, que, efetivam ente, fo i quem perdeu os
futuros Estados Unidos. Não se cogitava da legitim idade, evidentemente, mas da
independência, e com o a idéia republicana circulava pela Am érica simbolizando-a,
os conspiradores não se preocuparam com o seu conteúdo; satisfizeram-se com
adotá-la, para chegar ao objetivo que os animava. A revolução de 1817 explodiu
com laivos antimonárquicos, e fora tramada fora do Brasil;9 a Independência
só fo i possível sob a chefia de D. Pedro, graças à sua astúcia e sinceridade patrió­
tica de seus companheiros. Os Estados Unidos, que sempre se imiscuíram nos
negócios de outros povos, inclinavam-se pela república, regime afim ao seu e
mais acessível ao seus interesses mercantis.10 Passou-lhes à frente o bravo príncipe,
e os brasileiros dominaram a situação, criada com a presença das tropas portu­
guesas no Brasil, podendo, afinal, consolidar a independência.
Obra exclusiva de D. Pedro? Não. Mas obra preponderantemente sua, de
sua intuição, esse dom misterioso de que fo i dotado o jovem príncipe, a quem
o drama de sua fam ília não permitiu que lhe fosse proporcionada educação, nem
um m ínim o de cultura, com o a que teve seu filh o. Na realidade, o “ príncipe
D. Pedro descobriria sozinho o que o destinho lhe reservara. Seria um espírito
fecundado pelo tem po em que viveu, apto por íntima disposição a recolher e
a dar a vida às aspirações de seus contemporâneos. Quem, no círculo das relações
humanas em que se movia, antes que os acontecimentos o pusessem à frente do
m ovim ento da independência brasileira, possuiria visão bastante larga para adivinhar
a posição que nele assumiria?” “ N o R io de Janeiro, onde se fe z hom em , D. Pedro
não enchia o tempo a cometer desmandos, a cobiçar mulheres ou, depois de casado,
a entreter-se com D. Leopoldina e cuidar carinhosamente dos filhos: interessava-se
pelos sucessos que agitavam o mundo e buscava explicá-los não apenas de acordo
com os pontos de vista de áulicos e cortesãos, mas segundo as idéias que vinham
transformando a sociedade, a começar sobretudo da última metade do século
X V H I” .11 Nos dias pressagos da independência do Brasil, Napoleão já havia caído;
os Bourbons já estavam, de novo, no trono de França, mas o antigo princípio de
legitimidade, naturalmente aceito, sempre, pelos povos, havia sido rom pido, embora
o guerreiro genial tivesse tid o a intuição de sua necessidade, mais do que intuição,
a certeza, de que sem ele sua obra o seguiria no túmulo. Erigiu a sua dinastia,

8 Donatello Griecco. Napoleão e o Brasil. Civilização Brasileira, 1939, p. 11.


9 R eynaldo Carneiro Pessoa. A idéia republicam no Brasil, através dos documentos. São Paulo,
Editora Alfa-Om ega, 1973, passim; Sebastião Pagano. O conde dos Arcos e a Revolução
de 1917. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1938, passim.
10 M oniz Bandeira. Presença dos Estados Unidos no Brasil. R io , Civilização Brasileira, 1973,
passim.
11 Octávio Tarquinio de Souza. A Vida de D. Pedro I. Op. cit., II, pp. 130-31.
OS Ô R G A O S D A L E G IT IM ID A D E 155

que, afinal, não vingou. A Inglaterra, W aterloo, a morte do rei de Rom a selaram
para sempre a sua sorte, que fo i acabar na melancolia dos rochedos de Santa Helena.
D. Pedro sabia de tudo o que se passava na Europa, e tinha notícia que
livros, panfletos, papéis entravam no Brasil, pregando mudanças, novos rumos
políticos e o ódio aos monarcas, urfta das notas da revolução francesa, até mesmo —
como dissemos páginas atrás — nas canções de rua. Consistiu o seu gênio em
ter enfeixado nas mãos a essência do poder moderador, im pondo ao Brasil a sua
legitimidade, o sistema político que lhe convinha e convinha ao país, e de conduzir
o seu processo, até capitular em 7 de abril de 1831, embora, com a tutoria de
José Bonifácio a seu filho menor, tivesse assegurado o respeito à sucessão do trono
em seu herdeiro. Essa foi, historicamente, a legitimidade institucional, posta em
jo g o no Brasil, da Conjuração Mineira à Confederação do Equador, num fermentar
constante que triunfaria, afinal, em 1889. A dinastia fora, porém, aceita no Brasil
pelos companheiros de D. Pedro, enquanto a independência sepultara, definiti­
vamente, a monarquia absoluta. O órgão da legitimidade veio a ser, portanto, o
imperador, que se esgalhou da árvore dos Braganças de Portugal, para fundar a
dinastia dos Braganças do Brasil. Quem salvou a dinastia bragantina e o princípio
da legitimidade institucional foi, nos dias terrivelmente dramáticos de 1821 e
1822, o jovem príncipe de menos de 24 anos, D. Pedro, investido do singular
destino de homem providencial, para duas nações, duas pátrias, ambas suas e
ambas por ele amadas, tanto e tão intensamente que por ambas se sacrificou,
vindo a morrer com 36 anos, tuberculoso, com o então, em pleno romantismo,
convinha a um jovem de grandes lances e passado tão rico de aventuras.
Não vamos fazer aqui a conexão entre D. Pedro e a independência do Brasil,
nem biografar, ainda que sucintamente, a sua vida. Remetemos o leitor para a
vasta bibliografia, especialmente a obra magistral de Octávio Tarquinio de Souza,
sobre o jovem imperador. Interessa-nos expor o que entendemos por legitimidade
institucional e seu órgão. Pascal já nos deixou, num de seus Pensamentos, a direção
segura nesse caso. “ Não se escolhe, para governar um barco, aquele, dentre os
viajantes, que é mais nobre: seria uma lei ridícula e injusta. Mas, porque são e
serão sempre escolhidos assim, ela se torna razoável; pois quem se escolherá? O
mais virtuoso e o mais hábil? Eis-nos incontinente embaraçados: cada um pretende
ser o mais virtuoso e o mais hábil. Liguemos, pois, essa qualidade a algo incon­
testável. É o filho mais velho do rei. Isso é claro, a razão não pode fazer melhor,
pois a guerra civil é o maior dos males” .12
Tem os experiência para amparar a reflexão de Pascal. Do marechal D eodoro
ao sucessor do presidente Ernesto Geisel,13 o drama brasileiro se repete; as escolhas
são difíceis; precedidas de combinações, barganhas, conchavos, não raro de
complexas ligações e velhos compromissos, nem sempre agradam. Dunshee de

12 Blaise Pascal. Pensamentos. 320, A b ril Editora, 1973, tradução portuguesa de Sérgio M illiet.
13 Escrito no segundo semestre de 1977.
136 O PO D E R M O D E R A D O R

Abranches14 nos dá algumas amostras das escolhas de seu tempo. Durante a enfer­
midade de Prudente de Moraes, diz esse autor, “ Manoel V itorino seria obrigado
a mandar proceder imediatamente à eleição para a vaga de presidente” , e, “ fatal­
mente, as ambições já em jo g o se assanhariam, arrastando de novo a República
para dias agitados e funestos” . Quando Campos Salles se empossou já tinha em
mente o seu sucessor, Quintino Bocayuva. M uito mais fácil seria optar-se pela
legitimidade institucional, isto é, pela dinastia, com os governos de gabinete, ainda
que o seu. reconhecimento suscitasse problemas, com o nos casos, discutidos em
Portugal pelos miguelistas, e na Espanha pelos carlistas, da predominância da
legitimidade de instituição e da legitimidade de pessoa.
Não entraremos em casos pessoais e exem plos históricos. Ficaremos na
tese: devem conjugar-se a legitimidade de instituição e a de pessoa. Os legitimistas
portugueses, adeptos de D. Miguel, não aceitaram a tomada do trono por D. Pedro I
do Brasil e I V de Portugal. Consideravam D. Pedro destituído de seus direitos,
com a independência do Brasil e sua aclamação com o primeiro imperador da
nação 'ie se emancipara. Para eles, o herdeiro do trono português seriam D. Miguel
e seus ..escendentes. A n ton io Sardinha, um dos grandes doutrinadores da res­
tauração monárquica portuguesa, escreveu um livro para defender o direito de
D. Miguel.15 Acentua A ntonio Sardinha que a legitimidade da instituição é
essencial, enquanto é acidental a legitimidade da pessoa. Na tormentosa história
dos povos, houve sangrentas lutas sucessórias. N ão as inventariámos, por não
serem compatíveis com o plano desta obra. Mas afirmamos o fato histórico. O que
importa é ir além, à associação da legitimidade institucional com a legitimidade
pessoal. Para A ntonio Sardinha, o soberano que se afasta da legitimidade da
instituição perde a legitimidade da pessoa. O axioma é admissível. Em Portugal
deu-se a luta entre as duas legitimidades, porquanto D. Pedro, renunciando ao
trono do Brasil, voltou a Portugal, e conquistou o trono para D. Maria II, sua
filha, im pedindo, portanto, que D. Miguel o assumisse. Entendeu D. Pedro que
esse direito lhe assistia, e o impôs, numa jornada memorável, da qual ficaram na
memória histórica o gesto romântico e o desprendimento de um jovem príncipe.
F o i esse princípio que salvou a França, quando Napoleão caiu, e fo i ocupada
pelos aliados, entre os quais se destacava Alexandre I, Czar de todas as Rússias.
Nas suas Mem órias narra Talleyrand, o maior diplomata que já houve no mundo,
o seu encontro com o poderoso monarca. N o hotel da rua Saint Florentin, o
grande, embora cínico, diplomata recebeu Alexandre I, e disse-lhe que só a volta
do rei daria paz à França. Luís X V I I I deveria ser chamado ao trono. Era o rei
legítim o. A revolução francesa fizera devastações nos princípios; Napoleão a condu­
zira por toda a Europa, causando no continente mudanças tão grandes, que o
novo rei deveria adotá-las todas. Conformou-se o rei, sujeitando-se a uma Cons­
tituição elaborada segundo os m odelos já introduzidos no direito político

14 Como se faziam presidentes. R io, Livraria José O lym pio, 1973, passim.
15 Processo dum rei. Porto, Livraria Civilização, 1937, passim.
OS Ó R G Ã O S D A L E G IT IM ID A D E 157

dos povos. 0 mundo entrara na fase do constitucionalismo escrito e da divisão


de poderes. O “ Grand Siècle” havia ficado para trás. Luís X I V era, apenas, uma
sombra imensa projetada sobre a História da França. A Ilustração realizara a sua
obra. A revolução a prosseguira. Napoleão a levara ao apogeu. Luís X V III, rei
legítim o, enfrentaria situação nova para as monarquias européias e para os prin­
cípios dinásticos. O direito à legitimidade institucional deveria ser, portanto,
admitido, senão expressa, ao menos tacitamente. Os sucessos posteriores vieram
demonstrar a fragilidade dos princípios em mundo arruinado pela revolução,
com o processo de mudança e de instabilidade. De Luís X V III a L u iz Felipe, e,
em seguida, a Napoleão III, que se acolheu à sombra de seu grande tio , para se
proclamar imperador, consoante o princípio dinástico, tom ou o títu lo de terceiro
imperador, por ter m orrido muito jovem , sem reinar, o segundo, o rei de Roma,
e o que vimos fo i a perda de substância da legitimidade. Napoleão quisera instituir
o princípio da legitimidade, e malograra; seu sobrinho também procurou fazê-lo,
e acabou perdendo a aposta com o destino. Com a sua derrota na guerra franco-
-prussiana, Napoleão I I I abriu as portas da França à legitimidade contratual, que
prevalece até aos nossos dias.
Morta a teoria que expomos? Provavelmente. Mas o nosso compromisso não
é com a moda, os costumes e o tem po; é com a verdade. O dom ínio da política
é a ordem prática, mas acima dela estadeia-se a metafísica. “ A metafísica é a
perfeição do intelecto especulativo, enquanto a política é obra do intelecto
prático” .16 Sendo, com o diz Santo Tomás, cognitiva, ativa e operativa,17 deve,
sempre, assegurar o bem comum, isto é, prom over o hom em a melhores condições
de vida, manter a paz na Cidade terrestre e abrir oportunidade de acesso a todos
os seres humanos aos bens da natureza e do engenho intelectual. “ A metafísica
nos revela que a pessoa é de complexidade tão sábia e tão espiritual, que ela se
ergue acima do universo sensível, persona significai id qu od est pcrfectissim um
in tota natura; a experiência nos ensina que ela nasce num estado de insuficiência
verdadeiramente lamentável e que, engajada somente no plano das realizações
práticas, não chegará a salvar a sua vida. O papel da política consiste, portanto,
em estudar os meios, não de lhe conservar a vida, mas de assegurá-la plena e
fecunda” .18 Para que a ciência política e a política de Estado, ou seja, a aplicação
dos princípios, tenham a possibilidade aqui lhes atribuída e largamente constante
da obra de Santo Tomás de serem fecundas, devem levar em conta a legitimidade
da instituição mais do que a contratual.
Se o hom em é ordenado à comunidade,19 esta deve ser dirigida pelo Estado,
a autoridade que lhe governa os destinos deve, por seu turno, ser legítim a não

16 Louis Lachance, O. P. L ’Humanisme politique de Saint Thomas. Paris, R ecueil Sirey,


1939, p. 92.
17 Comm. Pol. L I, lec. I.
18 Louis Lachance, O. P., loc. cit., p. 93.
19 II, II, Q. 65, a 1.
158 O PO DER M O D E R A D O R

legitimada, institucionalmente legítim a, não contratualmente legítim a. Essa a


nossa posição. Não ignoramos que no mundo subvertido pela revolução mundia-
lizada de nosso tem po — revolução levada à instância de fim em si, de causa final,
para algumas teorias, e de causa eficiente para outras —, o Estado já não cumpre
a sua missão, de procurar o melhor viver para os seus súditos, mas os condiciona
a ideologias, na sua quase totalidade incompatíveis com a natureza humana. Se,
pois, a legitimidade contratual tom ou o lugar da legitimidade institucional,
devemos, pela conveniência da pessoa humana, ceder à realidade, procurando
obter a maior vantagem dos regimes contratuais. Esbarramos, porém , nas imper­
feições humanas, na cupidez instintiva do homem, nos vícios, nas ambições, nas
anomalias, que, infelizm ente, carregamos na vida. O relaxamento de costumes,
os freios morais que se afrouxaram, a secularização da História e suas conseqüências
no seio das comunidades e no comportamento das pessoas, a tibieza da fé, a crise
das instituições religiosas, a permissividade crescente no mundo materializado
de nossos dias ampliaram o raio de imperfectibilidade da natureza humana, e
vieram a tornar extraordinariamente complexa, difícil, a tarefa de governar, a
conservação da estrutura do Estado, a solidez do bem comum.
Dependendo, exclusivamente, de eleição, a legitimidade contratual é imper­
feita, porquanto não há eleição perfeita. Lembremo-nos do saboroso conto de
Machado de Assis, A sereníssima república. Ê sempre agradável reler Machado
de Assis; é ele um dos poucos escritores, sobretudo em língua portuguesa, que
resistem à releitura. O pachorrento cônego Vargas quis dar um governo às aranhas,
e se inspirou na república de Veneza. Foram realizadas as eleições. “ A eleição
fez-se a princípio com muita regularidade; mas, logo depois, um dos legisladores
declarou que ela fora viciada, por terem entrado no saco duas bolas com o nome
do mesmo candidato. A Assembléia verificou a exatidão da denúncia, e decretou
que o saco, até ali de três polegadas de largura, tivesse agora duas; limitando-se
a capacidade do saco, restringia-se o espaço à fraude, era o mesmo que suprimi-la” .
Outras providências foram tomadas, e sempre se constatava a fraude. Finalmente,
afirma o cônego Vargas: “ A lei emendou-se, senhores, ficando abolida a facul­
dade da prova testemunhal e interpretativa dos textos, e introduzindo-se uma
inovação, o corte simultâneo de meia polegada na altura e outra meia na largura
do saco. Esta emenda não evitou um pequeno abuso na eleição dos alcaides, e
o saco fo i restituído às dimensões primitivas, dando-se-lhe, todavia, a forma
triangular” . Também a í fo i preciso mudar, e Machado conclui, pela boca do cônego
Vargas: “ Encarregado de notificar a última resolução legislativa às dez damas,
incumbidas de urdir o saco eleitoral, Erasmus contou-lhes a fábula de Penélope,
que fazia e desfazia a famosa teia, à espera do esposo Ulisses. — Vós sois a Penélope
da nossa república, disse ele ao terminar; tendes a castidade, paciência e talentos.
R efazei o saco, amigas, refazei o saco, até que Ulisses, cansado de dar às pernas,
venha tomar entre nós o lugar que lhe cabe. Ulisses é a Sapiência” .20

20 Machado de Assis. Papéis Avulsos. R io, Livraria Garnier, s/d (1882), p. 207.
OS Ó R G Ã O S D A LE G IT IM ID A D E 159

É memoranda a lição de Machado de Assis. Assistimos, no jornalismo


ativo, às campanhas presidenciais de Eurico Gaspar Dutra, Getúlio Vargas, Jusce-
lino Kubitschek e Jânio Quadros. Não nos lembramos de uma só frase aproveitável
de tudo quanto disseram, nem das promessas com as quais conquistaram o eleito­
rado, ou o corpo político. De Kubitschek nos ficou, por ter sido insistentemente
repetida, a frase dos “ cincoenta anos em cinco” ; de Jânio Quadros, que ele iria
varrer o lixo da corrupção. Kubitschek não fez cincoenta anos em cinco. Reduziu
o atraso do Brasil, mas ainda ficou m uito trabalho a realizar, para vencermos
as barreiras do subdesenvolvimento. O povo sofredor das cidades, das favelas,
dos bairros pobres, do Nordeste, do N orte; a massa humilde de salários baixos,
que sabia, por ouvir dizer, da malversação dos dinheiros públicos, da ceva do
patrimônio da nação, pelos ocupantes ocasionais dos cargos de mandato, essa
massa votou em Jânio Quadros. A creditou na sua promessa. Sete meses depois
de empossado, sem ter praticado um só ato dos que se comprometera a fazê-lo,
Jânio Quadros manda uma carta de renúncia ao presidente do Congresso, tom a
um avião e voa para São Paulo. Não deu satisfação de seu ato, nem se preocupou
com as desilusões do povo. Onde a relação entre o poder e o povo, senão na
dependência? Onde a justificativa da democracia com o form a de governo, da
legitimidade contratual? Essa é utópica, aqui, nos Estados Unidos, na França,
onde quer que pretendam esteja ela funcionando. Não é pior, evidentemente,
do que as ditaduras. A o menos os regimes democráticos permitem a crítica,
enquanto as ditaduras não se acomodam com essa espécie de inconformismo.
De 1964 em diante, os presidentes vêm sendo escolhidos por aclamação
do A lto Comando, ou indicação do presidente em exercício. Investindo-se da
auto-responsabilidade de governar a nação, o Exército coopta o futuro presidente,
dispensando-se de plataformas e programas. Logo após empossado, o presidente
torna público um plano de desenvolvimento, o qual, com o todos os planos, só
parcialmente será executado. O sistema é democrático. O candidato é indicado
pelo presidente da República, chefe p o lítico nacional, à Convenção partidária,
que lhe ratifica o nome. N o dia da eleição, o colégio eleitoral, fiel à disciplina
partidária, vota unanimemente no candidato, enquanto a oposição vota, ritualmente,
no seu candidato, ou se abstém. E essa a legitimidade contratual? É esse o sistema
democrático? Onde nele se coloca o povo? Discorrendo sobre os sistemas eleitorais,
diz Cari J. Friedrich: “ Para nós (dem ocracia) significa que todo o corpo de cidadãos
eleja representantes, depois de haver lid o seus programas nos periódicos e escutado
os candidatos nos com ícios ou no rádio” .21 Os eleitores de N ixon e Kennedy e de
N ixon e McGovern não leram os seus programas, e, pelo rádio e a televisão, apenas
se deixaram impressionar pelo “ star system” . Os bastidores das eleições americanas
são tenebrosos. Não só se gastam milhões de dólares, com o se usam os recursos mais
baixos para conseguir a vitória do candidàto. Watergate fo i, apenas, um episódio na

21 Teoria y realidad de la organización constitucional democratica. M éxico, F on do de Cultura


Económica, 1946, p. 264.
160 O PO D E R M O D E R A D O R

cadeia longuíssima de golpes ignóbeis praticados pelas comissões de uns candidatos


contra outros. N ão é, então, possível a democracia ou a legitimidade contratual?
É possível, por ser ela predominante no mundo de nossos dias. Mas não terão
fim as discussões sobre o tema da democracia. Devemos, por isso, nos contentar -
se quisermos ter paz na Cidade — com aproximações, e, através do espírito de
tolerância, sempre renovado, admitir fraude, inadimplemento, desrespeito, quando
tratamos d o problema dem ocrático, e com o se apresenta ele aòs nossos contem­
porâneos.
R u d o lf Laun22 classifica a democracia com o fato sociológico, tratando,
então, da estrutura social da democracia; e com o filosofia política, isto é, a demo­
cracia na problemática da filosofia política. Sua obra é densa de pensamento
e vai até ao máximo das reflexões, para justificar a democracia. A o focalizar a
vontade comum e a vontade geral, o autor admite um conteúdo idêntico ou
similar de processos psíquicos que se desdobram em numerosos indivíduos, e
independentes uns dos outros; depois, em segundo lugar, focaliza uma relação
de causalidade, a que pode ser reduzida à analogia ou à similitude do conteúdo
da alma de muitos indivíduos. N o primeiro caso, o grande número não se torna
uma unidade senão no pensamento do observador; no segundo caso existe,
mesmo, fora da consciência do observador, portanto para ele “ transcendente” ,
uma realidade que se vem juntar às almas individuais isoladas.23 A democra­
cia, para Laun, assenta, portanto, sobre a “ consciência coletiva” , mas essa
consciência, na sua tese, se reduz, em grande parte, à sugestão, em grande parte
à aceitação arrazoada dos fins.24 Com o se vê, a tese de R u d o lf Laun exige conhe­
cimento prévio das filosofias dos séculos X V I I e X V I1 Í, e a aceitação de princípios
a p rio ri, que não se enquadram na realidade. O fenôm eno democrático é, portanto,
com plexo, e, a rigor, para o admitirmos devemos ceder, não raro, à lógica do
discurso. A . D. Lindsay25 é menos irrealista: com o a maioria não pode governar,
a minoria deve ter meios de fazê-lo. Aparentemente simples, mas é a própria
quadratura do círculo que nos propõe o autor. Não deixa de estar certo Karl
Ropper, afirmando que, em conseqüência da perda de caráter orgânico, uma
sociedade democrática pode tornar-se abstrata.26
A discussão, com o se vê, não tem fim . Não é que a democracia tenha inimigos
ostensivos. Estes se disfarçam, proclamando-se todos democráticos, inclusive
os comunistas, criadores e sustentadores da mais fechada de todas as sociedades.
Queremos a sociedade aberta, democrática, mas não nos lembramos que todos

22 R u d o lf Laun. A democracia. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1936, passim,


tradução portuguesa.
23 Op. cit., p. 65.
24 Op. cit., p. 67 e ss.
25 A . D. Lindsay. The modern democratic State. O x fo rd University Press, 1943, to d o o cap. 11.
26 Karl R opper. A sociedade democrática e seus inimigos. Belo Horizonte, Itatiaia, 1959,
p. 191, tradução portuguesa.
OS Ó R G Ã O S D A LE G IT IM ID A D E 161

os doutrinadores da democracia viveram e escreveram em sociedades legitima­


mente institucionalizadas. A té mesmo o C ontrato Social — a filosofia do contra-
tualismo, por excelência - relaciona a vontade geral ao soberano, e cita exemplos
para confirmar essa posição. A confusão de conceitos adveio, ampliou-se, invadiu
todas as mentes, do apogeu da “ idade da revolução” em diante. O triunfo progres­
sivo do contratualismo colocou os intérpretes do conceito de democracia em
face de embaraços intransponíveis, ou, ao menos, difíceis de ser transpostos.27
Daí, Newman não hesita em manifestar a sua aversão à democracia,28 embora
fosse uma alma puríssima.29 Confundindo-se com a democracia liberal ou social,
a legitimidade contratual sofre, portanto, de uma doença, cujo tratamento e cura
são, na ordem prática, difíceis. Os governos se desvitalizam, e, à medida que a
enfermidade aumenta, os executivos se tornam altamente susceptíveis de ser
usurpados por assembléias eleitas; são atingidos pela pressão dos partidos, ^ue
os molestam, e pelos agentes de interesses articulados por adeptos de ideologias
sectárias.30
Não estamos sofismando. Como se vê, e cada um de nós tem experiência
viva do caso, a democracia, form a de governo, ainda que se envolva da capa de
um belo ideal, no sentido ético da palavra, não se realiza. O sufrágio direto,
secreto e universal; as eleições indiretas, para governantes; as várias fórmulas ado­
tadas até hoje pelas democracias não cimentaram a frágil legitimidade contratual,
que, por isso mesmo, perde a sua resistência. Essa a realidade. Aceitam-se as
regras do jo g o , mas com ressentimentos, fenôm eno evidente mesmo nas demo­
cracias menos imperfeitas, com o a estadunidense. N o Brasil temos recalcitrado
em procurar aceitá-la. As eleições, do marechal D eodoro a Washington Luís na
primeira República, foram precedidas de intensas controvérsias, e os resultados
eleitorais causaram descontentamentos. Depois de 1930 — esse divisor histórico
do Brasil — G etúlio Vargas fo i eleito pelo vo to indireto em 1934; em 1945, Eurico
Gaspar Dutra fo i eleito — a primeira eleição pelo sufrágio direto, secreto e uni­
versal —, contra o azedume dos correligionários e eleitores do brigadeiro Eduardo
Gomes; em 1950, Getúlio Vargas fo i eleito, desencadeando a sua vitória campanha
terrível para impedir-lhe a posse. Seu sucessor, Juscelino Kubitschek, quase não
fo i empossado; Jânio Quadros não teve adversários, mas a vitória eleitoral do
vice-presidente João Goulart fo i recebida com o vivíssimo mal estar, que já
prenunciava crises futuras. Com a deposição de João Goulart e ascensão dos m ili­
tares ao poder, o presidente oficial superior do Exército, passou a conduzir o
processo político.

27 G. L o w e ll Field. Governments in modem society. N ova Y o rk , McGraw-Hill, 1951, p. 74 e ss.


28 W. Ward. The life o f John Henry Cardinal Newman. Londres, Longmans, 1912, passim.
29 Henri Brémond. Newman, Buenos Aires, Desclée De Brouwer, 1947, passim, tradução
castelhana.
30
Walter Lippmann. The Public Philosophy. Boston, Atlan tic M onthly Press Book, 1955,
p. 27.
162 O PO D E R M O D E R A D O R

A sucessão virá a ser, de novo, problema, em 197831 ainda que os candidatos


a candidato aceitem o resultado final da escolha do futuro presidente. A legitim i­
dade contratual é reconhecida no Brasil; não e, mesmo, contestada, mas não se
aceitam as suas cláusulas por unanimidade. Os descontentamentos afloram, circu­
lam pelos meios de comunicação, e deixam sulcos nos espíritos inconformados.
Está o Brasil político numa d ifícil entaladela. C om o ficará a legitimidade contratual
daqui a seis, a doze, a dezoito anos, se se mantiver esse período de governo para
o presidente da República? Ninguém está capacitado a responder. Se há um futuro
incerto é o do Brasil político, sobretudo porque as Forças Armadas entendem que
sua participação no governo não deve ser permanente. A legitimidade contratual
é de nosso tem po, mas não a reconhece intangível o estamento p o lítico , tanto os
seus antigos membros quanto os novos, os que vêm chegando. Sujeita à opin ião,'
portanto mutável, essa legitimidade se acompanha de um fadário, a contestação.
Tivem os no Brasil, em particular no período multipartidário da Constituição de
1946, o dom ínio dessas feudalidades, erigidas sobre o dinheiro e conluiadas
estreitamente com os meios de comunicação. O poder, naquela fase, esteve sujeito
a essas forças, e vimos o que foram as crises por elas engendradas, e com o a dema­
gogia circulou impetuosamente por todo o Brasil.
As clientelas eleitorais se alimentam de dinheiro. F o i com o as arrebanharam
os políticos daquela época tormentosa da nossa História recente. N ão temos
estatísticas sobre o custo das eleições no Brasil, mas com o são análogas as situações
fornecemos as americanas, onde o poder econôm ico é arrasadoramente triunfante
e invencível. A campanha de Ford custou 12 milhões de dólares e a de Carter
2 milhões.32 O Congressional Quarterly, de 12 de setembro de 1968, inform ou
que uma campanha presidencial em 1952 custou 200 milhões de dólares; em
1964, 200 milhões, e em 1968, 300 milhões. As revistas americanas e os seus
jornais têm livre acesso às fontes do financiamento eleitoral, divulgando as cifras
sempre com relativa exatidão. D a í podermos afirmar que os Estados Unidos não
são uma democracia ungida da pureza de costumes, mas uma plutodemocracia
das mais corrompidas, tão corrompida que o “ lo b b y ” e o “ lobbyism ” são insti­
tuições, funcionando nas ante-salas e nos gabinetes do Congresso.33 A legitimidade
contratual, ou a democracia com o forma de governo, é, portanto, utópica, e nem
se enquadra numa definição. Reuniram-se em Atenas, no início de 1977,34 vários
estudiosos, políticos, ou simples xeretas da ciência política e da História. Discu­
tiram sobre o tema e nenhum deles ofereceu definição aceitável dessa palavra
ambígua. D o balanço do seminário, realizado na pátria de Sólon, conclui-se que
democracia é uma espécie de excipiente: veicula qualquer princípio ativo da
farmacopéia política, se nos permitem a imagem, aqui usada para dar a idéia de

31 Escrito no segundo semestre de 1977.


32 Time, 1-11-1976, Newsweek, 8-11-1976.
33 Jàmes Reston. “ Carter and the lobbies” , in N ew York Times, 9-10-1977.
34 N ew York Times, 9-10-1977.
OS Ó R G ÃO S D A LE G IT IM ID A D E 163

com o deve ela ser entendida. Reconhecemos que não há alternativa em nossos
dias para essa espécie de legitimidade. Ou a aceitamos, ou caímos na ditadura
plena, onde só prevalece uma das partes contratantes, a do Estado, cujo domínio
está nas mãos de uma cliqu e da qual o partido é instrumento — caso da U.R.S.S.
e de suas colônias européias; da China, da antiga Indochina e de Cuba.
V êm do século X IX essas idéias. A democracia constitucional procede das
revoluções americanas e francesa — com o dissemos páginas atrás — mas ganhou
força depois da queda de Napoleão. “ Os problemas relativos à nacionalidade e à
democracia constitucional representam os fatores mais importantes da política
européia do século X I X ” .35 Hegel compreendeu o contratualismo e lhe opós o
Estado. “ Em oposição à doutrina revolucionária, que vê no contrato a formação
primeira e artificial do Estado, Hegel considera-o um organismo natural, com o
uma simples face do processo histórico do mundo” .36 Hegel defendeu a monarquia
constitucional, mas ultrapassou os limites que os tratadistas católicos assinalaram
ao Estado, com base no direito natural. Hegel acabou deificando o Estado.37
Em princípio Hegel estava certo, e poderia ser atualizado, se o despojássemos
do extrem o no qual o fizeram cair seus intérpretes e discípulos heterodoxos.
A legitimidade contratual depende, portanto, exclusivamente, da tolerância, da
admissão de suas regras, mas está sujeita em nossos dias a poderosas influências
que a desnaturam, falseando o seu próprio fundamento, a vontade geral, esse
m ito inventado por Rousseau. Uma das influências mais poderosas na democracia
é a d o uso dos meios de comunicação de massa, que fazem a opinião e nomes,
com o se deu com Nixon, que ganhou eleições por ‘ landslide” , quase repetindo
a eleição de Washington, e o aniquilam — o exem plo é o do ex-presidente ame­
ricano — derrubado por um golpe branco, o da renúncia coagida, punição aplicada
em conseqüência do escândalo inteiramente fabricado, peça por peça, de Watergate.
Por mais que se recuse aceitação a algumas teses de Marshall Mcluhan, está certo
o autor quando atribui ao m eio a transmissão da mensagem e sua ascendência.
“ Numa cultura com o a nossa, há muito acostumada a dividir e a estilhaçar todas
as coisas com o m eio de controlá-las, não deixa, às vezes, de ser um tanto chocante
lembrar que, para efeitos práticos e operacionais, o m eio é a mensagem” .38
O “ spoil system” ou “ patronage system” , digamos o sistema do compadrio,
que só não causa males maiores à democracia americana por serem imensamente
ricos os Estados Unidos e poderem se dar ao luxo — “ a fford ” — de perdulários
desperdícios. Quando a expressão fo i cunhada, em 1832, pelo senador Marcy,
os meios de comunicação eram fracos. Hoje em dia, com a televisão, o rádio,
o cinema, as revistas e jornais de grande tiragem, o “ spoil system” é arrasador,
corroendo a democracia americana com o uma ferrugem maléfica. Os “ mass-media”

35 R aym ond G. Gettel. Op. cit., p. 411.


36 Raym ond G. G ettel. Op. cit., p. 367.
37 R aym ond G. Gettel. Op. cit., p. 368.
38 Os meios de comunicação. São Paulo, Cultrix, 1959, p. 52.
164 O PO DER M O D E R A D O R

estadunidenses atuam com tal força na democracia americana, que rom pem o espírito
de seu contrato, causando-lhe dores terríveis, bem na linha da observação de
Mcluhan. “ O sofrimento causado pelos novos meios (m édia) e as novas técnicas
aparenta-se à ‘dor transmitida’ , com o as enfermidades da pele causadas pelo
apêndice e o coração” .39 Podemos prever que esses meios (mass m edia) terão
cada vez ascendência maior sobre a opinião pública, modelando-a, segundo a
ideologia de seus dirigentes, ideologia que vem mudando acentuadamente nos
últimos anos, deixando-se envolver por uma espécie sutil de esquerdismo à ameri­
cana. O contratualismo estadunidense corre, por isso, enorme risco. Se os Estados
Unidos têm a sua projeção jurídica, a Constituição e a Declaração da Indepen­
dência, elevadas a totens carismáticos, podem engendrar a sua própria mudança
política, pois o primeiro documento é caracteristicamente contratual. “ Quando
a form a de governo se torna destrutiva desses fins (especificados na Declaração),
tem o povo o direito de alterá-los ou aboli-los, organizando novo governo” .
Classificando, analogicamente, a Declaração da Independência e a Constituição
americana com o totens, fazem o-lo segundo Freud para quem “ o totem é, em
primeiro lugar, o antepassado do clã, e em segundo, seu espírito protetor e seu
benfeitor, que envia oráculos a seus filhos, conhece-os e os protege nos casos
perigosos” .40
A democracia é, portanto, um regime em perigo constante. Fundada sobre
a razão, mais precisamente, sobre o racionalismo, a democracia, com o forma
de governo, malogrou. “ A razão pura se mostrou mais im potente do que a fé
para assegurar a unidade espiritual da humanidade, e o sonho de um credo
‘cien tífico’ que unisse os homens na paz e nas convições comuns sobre os obje­
tivos e os princípios fundamentais da vida e da sociedade humana desvaneceu-se
nas catástrofes contemporâneas” .41 Essa a democracia contratual, mas esse,
também, o regime de nosso tempo. O povo, atomizado no individualismo do
contrato social, desservido de representantes no Estado, distante dos deputados
que manda, pelo voto, às Câmaras, acaba transferindo a sua decantada soberania
para o Estado. A alternativa é, então, irresistível: ou o laissez faire, com o predo­
m ínio dos grupos econômicos e dos meios de comunicação de massa sobre o
Estado ou o Estado intervencionista e dirigista, concorrendo com a iniciativa
particular no campo econôm ico, sobretudo intervencionista com o legislador e
fonte de direito. N o Natal de 1964, a rainha Elisabeth II, soberana da Inglaterra42,
dirigiu mensagem a seus povos, e afirmou: “ Não impomos a nenhum povo do
mundo uma determinada form a de governo. Sabemos que nosso sistema de governo
não é perfeito, porém é o melhor que pudemos criar, depois de séculos de tenta­
tivas e erros” . Essa frase tem sido citada muitas vezes. Ninguém percebe que falou

39 Marshall Mcluhan e Quentin Fiore. Guerre et Paix. Paris, Laffon t, 1970, p. 16.
40 T otem y Tabu. In Obras Completas, Madri, Biblioteca Nueva, 1948, V . II, p. 419.
41 Jacques Maritain. L ’H om m e et l ’État. Paris, P U F , 1953, p. 101.
42 O Estado de São Paulo, p. 2, 25-12-1964.
OS Õ R G A O S D A LE G IT IM ID A D E 165

a chefe de Estado de uma nação governada segundo os princípios da legitimidade


institucional. É a grande diferença entre aquela e a legitimidade contratual. Nesta,
as imperfeições são corrigidas pela violência, pelo golpe, não pelo aprimoramento.
Essa a diferença, a distinção entre os dois regimes. Se tivermos de optar, prefe­
rimos a legitimidade institucional; mas com o não podemos fazê-lo, ficamos com
a legitimidade contratual, procurando colocar todos os nossos esforços no seu
aperfeiçoamento. Reconhecemos, no entanto, que essa é tarefa difícil, sumamente
difícil. Os “ gênios invisíveis” da Cidade, de que fala Ferrero,43 conduzem o nosso
raciocínio; eles, mais do que nunca, estão presentes nas instituições de nossos
dias.

43 GugHelmo Ferrero. Op. cit.


a filosofia do poder

É irrelevante a preocupação com a origem do poder, nesta altura do século


X X , quando cento e cincoenta e uma nações,1 ou simulacro de nações, recortam
a geografia da terra, e fazem do palácio de vidro de East River, de- Nova Y ork ,
sede da O.N.U., uma Babel moderna, com representantes delegados falando em
nome de povos que, não raro, ignoram o que seja a lei escrita, ou o que seja a
liberdade, com o é o caso das tribos no interior da Á frica e as populações primi­
tivas da América Latina; os milhões de chineses e indochineses subjugados pelo
comunismo, e as massas amorfas que seguem, ritualmente, o compasso do “ terrível
quotidiano” , ao qual estão jungidas pela necessidade. Mas não será demais esta­
belecer, ainda que sucintamente, a filosofia do poder, sem a qual a sociedade civil
se desintegra, com o tem ocorrido, através da História, repetindo-se neste século,
com freqüência, embora se tenham assinalado progressos consideráveis nas relações
intranacionais e internacionais. A premissa se im põe: o poder é necessário à socie­
dade civil. “ Se a sociedade é” , dizia Maurice Blondel, “ não um agregado de átomos
humanos ou um consórcio de interesses agrupados uns contra os outros; se ela
é uma ‘amizade’ , é, por isso mesmo, um pensamento que, vivendo do espírito,
precisa de ciência e consciência” .2 Blondel acrescenta que o equilíbrio desejável

1 Escrito no segundo semestre de 1977.


2 Maurice Blondel. La Pensée. Paris, Librairie Félix Alcan, 1934, II, p. 164.
168 O PO D E R M O D E R A D O R

na sociedade não é uma neutralização estática de potências rivais, mas o “ élan”


comum para um term o superior.3 Esse term o superior é o poder.
Historicamente, o poder que exerceu legítim o direito sobre a terra desco­
berta, em 1500, fo i o dos reis de Portugal, reconhecido pela sociedade de nações
na época, a Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana. Tinham os reis de
Portugal direitos históricos sobre a sua nação; o Papa outorgou-lhes, através do
consenso da Cristandade católica, submissa à Igreja e aos decretos do P on tífice
romano, direitos também sobre as terras descobertas pelos seus navegadores, no
fim do Quinhentos e início do Seiscentos. A bula In te r Caetera, de Alexandre V I,
dividiu o N ovo Mundo em duas partes, uma, a maior, para os espanhóis, e outra,
a menor, para os portugueses. Segundo Ludwig von Pastor4 “ junto a todos os
príncipes e povos cristãos, a Santa Sé valia, ainda, com o uma espécie de tribunal
internacional para a paz, com o o foro supremo, ao qual se submetiam importantes
controvérsias políticas e de direito internacional” . O Papado era mais forte do
que a O.N.U., em nossos dias, ou que a Sociedade das Nações entre as duas
grandes guerras deste século. O poder dos reis de Portugal se transferia, assim,
às terras que lhes caberiam pelos descobrimentos, que, de resto, já lhes cabiam
desde suas viagens à Á frica, de acordo com sentença de Calixto I I I .s A divisão
do Brasil em capitanias hereditárias e, em 1547, a instituição do governo geral,
constituíram, portanto, atos legítim os, emanados do monarca. Quando, pois, o
rei de Portugal começa o Regim ento passado para conceder poderes a Tom é de
Souza, com estas palavras: “ Eu, el Rei, faço saber a vós, Tom é de Souza, fidalgo
de minha casa ( . . . ) hei por bem de vos enviar Governador às ditas terras do
Brasil” , está praticando ato de poder soberano.6
O poder dos reis de Portugal era legitimamente institucional, transmitido
por hereditariedade dinástica e incontestado na sua fonte. A obra que iriam os
portugueses realizar no Brasil, sob o poder monárquico dos reis de Portugal, até
à Independência, se fazia, portanto, sob a égide da legitimidade institucional,
e nesse princípio assentava o seu fundamento filosófico. Suarez tratou longamente
da questão.7 '‘Referimo-nos à natureza do hom em e a seu poder legislativo
considerados em si mesmos, prescindindo, agora, se a lei divina lhes há acrescen­
tado ou retirado alguma coisa ( . . . ) . Assim o problema é se os homens, falando
somente com a natureza, podem mandar nos outros homens, obrigando-os com
verdadeiras leis” . “ O segundo princípio é que numa comunidade perfeita é
necessário um poder a cujo cargo esteja o seu governo” . Suarez explana, em
seguida, a natureza das sociedades naturais, e afirma: “ E o mesmo se encontra
em toda a comunidade de uma só casa, embora não esteja fundada com o vínculo

3 Id.,ib.
4 Storia dei Papi. Desclée & Co., 1912, V o l. III, p. 492.
5 Pastor. Id., ib.
6 Marcos Carneiro de Mendonça. Raízes da formação administrativa do Brasil. R io , Conselho
Federal de Cultura, 1972, passim.
7 D e Legibus, III, cap. I-IV .
A F IL O S O F IA D O PO DER 169

do matrimônio, senão em outra classe de sociedade humana; logo, de maneira


semelhante numa comunidade perfeita é necessário um poder de governo à sua
medida” . Suarez considera o poder exclusivamente nas sociedades políticas.
Form ado que seja esse corpo, o poder deve ser instituído, e embora venha de
Deus, é o corpo p o lítico que o reconhece.
Os reis foram , primeiro, aclamados. A dinastia por hereditariedade, insti­
tuída em quase todas as monarquias, na Idade Média, veio, depois, pela força da
tradição e pela imposição do bem comum. Na formação das nacionalidades do
mundo m oderno — as nacionalidades do N ovo Mundo — somente os Estados
Unidos tiveram in ício rigorosamente contratual, e se proclamaram independentes,
em número de treze a que se uniram os demais, pela assinatura da Constituição.
As outras nacionalidades, do M éxico à Argentina, obedeceram a diretrizes das
metrópoles, foram incorporadas à civilização e à cultura ocidentais pelo poder
espanhol e português, dos quais receberam as instituições, que durante trezentos
anos as governaram. Oliveira Vianna louva o espírito dos administradores coloniais,
exaltando-lhes a objetividade com que dotaram o Brasil de governos adequados
ao m eio e à finalidade de obterem maior rendimento de seus atos, e eficiência
na defesa da terra.8 Referindo-se à formação de uma nacionalidade sem história,
diz Regis Jolivet9 que fo i ela mais simples quando a história política do um
país começou pela consulta direta e explícita da coletividade nacional. Não sub­
siste, então, aduz o autor, nenhuma dúvida sobre a legitimidade do regime p o lítico
e da autoridade pública. É — dizemos nós - dos Estados Unidos, o caso singular,
único, na formação das nacionalidades modernas. Nem mesmo a descolonização
da África obedeceu a essa consulta. Processou-se o fenôm eno, caindo as novas
nações, as tribos reunidas em Estado, sob o poder dos sobas locais, apadrinhados
pelas antigas metrópoles ou mesmo contra elas. D a í a história recente da África
se pontilhar de golpes e contragolpes, com execuções de presidentes, ministros,
chefes militares, políticos até à véspera poderosos. Trata, ainda, Regis Jolivet10
das nacionalidades formadas sem essa consulta. “ Outro caso é o da coletividade
nacional que não f o i chamada a escolher de maneira direta e explicita a form a
política do Estado, nem dos detentores do poder. Nada permite colocar em
questão a legitimidade do regime p o lítico e da autoridade M e exen id a, sem
consulta prévia da nação, nas condições aptas a procurarem o bem comum tem ­
poral da sociedade. Dessa maneira, convém admitir que a posse prolongada e
pacífica da autoridade pública implica adesão tácita do corpo social inteiro e
constitui aprovação equivalente à que pode ser obtida, em outras circunstâncias,
pela consulta nacional” .
Quem estuda a História da formação das nacionalidades do mundo moderno
— excluindo os Estados Unidos — e até mesmo das nações que passaram da legi­

8 Oliveira Vianna. Evolução do povo brasileiro. São Paulo, Companhia Editora Nacional,
1938, p. 231.
9 Traité de Philosophie. Paris, Emmanuel V itte. 1945, n? 458 e ss.
10 Loc. cit.
170 O PO D E R M O D E R A D O R

timidade institucional para a contratual, verifica que não houve essa adesão tácita,
inclusive em nações provadas por tantas lutas, e retaliadas por tantos debates
de idéias, com o a França. Se na América Latina não se discute o princípio da
legitimidade, mais por ignorância do que por outra razão, não se chega, também,
a um acordo, digamos a um consenso, sobre a autoridade e o uso do poder. Já
estudamos o assunto, pormenorizadamente, em O destino da Am érica L a tim ,
livro para o qual remetemos o leitor, se quiser ele se aprofundar nas origens do
poder neste continente. A qu i nos limitamos a afirmar, com exemplos históricos
à mão, que o poder é entrevisto nas névoas de uma densa nebulosa, sem que se
apercebam no continente latino americano os seus contornos decisivos.
Que é o poder? Por que o aceitamos? Por que nos rebelamos contra ele?
Quando Roland Barthes, festejado “ maitre penseur” do College de France, pro­
feriu sua aula inaugural no fam oso instituto,11 desfechou veemente ataque contra
o poder, em todas as suas formas. “ E, pois, se o poder fosse plural, com o os
demônios? M eu nom e é legião, poderia ele afirmar: de toda a parte, de todos os
lados, chefes, aparelhos, grandes e pequenos, grupos de opressão e de pressão:
de toda a parte vozes ‘autorizadas’ , as quais se perm item fazer ouvir o discurso
de tod o o poder: o discurso da arrogância” . “ Advenhamos, então, que o poder
está presente nos mais finos mecanismos do câmbio social. Não somente no
Estado, nas classes, nos grupos, mas ainda nos modos, nas opiniões correntes,
nos espetáculos, nos jogos, nos esportes, nas informações, nas relações familiais
e particulares, e até nas arrancadas libertadoras, que ensaiam contestá-lo” . Roland
Barthes insurge-se contra o poder, argüindo-o de fascista. Quereria, provavelmente,
o “ maitre penseur” do College de France uma sociedade sem a disciplina do poder.
Afirm ando que faz guerra contra todos os poderes, Barthes defende e reivindica
uma liberdade utópica. Ferrero associa o poder ao medo. “ O poder é a manifes­
tação suprema do medo que o hom em provoca contra si mesmo, por seus esforços
para se libertar. A í se encontra, provavelmente, o mais profundo e obscuro segredo
da História” .12
Não somos dos que vêem no poder o grande mal de que sofre a Humani­
dade. Dizemos mais, não queremos o destino dos pássaros, dos tigres e dos leões,
com o também não queremos o das formigas e das abelhas, sobretudo este que é
para onde nos levarão os totalitarismos se não reagirmos, se não nos apegarmos
a uma axiologia política, onde caiba o diálogo permanente. A China, com seus
milhões de habitantes “ sem face” , usando todos o mesmo indumento, respon­
dendo uniformemente às mesmas ações, aceitando, com medo, a disciplina de
ferro do Partido Comunista, que chegou ao extrem o de aniquilar a vaidade fem i­
nina, eliminando os cosméticos e a moda, isto é, o luxo e o suntuário, o antigo
Im pério do M eio antecipa essa visão do mundo pesadelesco. O poder é necessário,
com o o Estado, que é a sua organização jurídica. Mas deve ele ser legítim o, e

11 “ Le M onde” , 10 de janeiro de 1977.


12 Guglielmo Ferrero. Op. cit., p. 45.
A F IL O S O F IA D O PO DER 171

afirmamos, convictamente, amparados nessa mestra insubstituível, a História,


que a sua legitimidade deve ser a institucional, não a contratual. Todas as acusações
articuladas contra a legitimidade institucional do poder germinaram, nasceram
e se expandiram, depois da revolução francesa. F o i esse terrem oto que abalou
velhas idéias, e deu origem a entes-de-razão desconhecidos até o século X V III.
Seria longo arrolá-los, mas eles vieram para sempre, ou por um dilatado período
da História, turvar o raciocício e perturbar o critério na indagação realista do
comportamento humano, da vida social e da organização política dos povos.
O poder também iria sofrer abalo em seu conceito, suscitando um sem
número de ju ízos e opiniões. Fala-se hoje, com espantosa ligeireza, da monarquia
absoluta e do absolutismo, que teriam sido duas monstruosas formas de opressão,
mas ninguém se lembra de comparar os governos dos reis absolutos, que gover­
naram no período histórico do absolutismo, com o poder muito maior dos dita­
dores do século X X , dos presidentes de todas as repúblicas presidenciais e dos
chefes de governo das nações mais democráticas de nossos dias. Sairiam e sairão
perdendo aqueles. “ Em matéria de poder” , diz Bertrand Russel, “ as diversas
sociedades diferem uma das outras de muitas maneiras. Antes de mais nada,
diferem quanto ao grau de poder possuído pelo indivíduo ou pela comunidade;
é evidente que o Estado, devido à sua importância crescente, tem hoje mais poder
do que antigamente. Outra diferença é quanto à espécie de organização mais
influente; uma ditadura militar, uma teocracia, uma plutocracia, são formas de
poder muito diversas umas das outras. Em terceiro lugar, as sociedades divergem
quanto aos meios de conquistar o poder: a monarquia hereditária produz uma
espécie de homens eminentes; as qualidades exigidas para os altos cargos eclesiás­
ticos produzem outra espécie; a democracia produz ainda uma terceira, e a guerra
uma quarta” .13 Diferem também as épocas, e, n o quadro delas, há regimes que
se conservam graças ao poder institucionalizado, e outros cujas resistências se
desagregam, abaladas pelo princípio corrosivo que se contém na organização
contratual do poder.
Com o disse Jellinek,14 a teoria do contrato social é destruidora do Estado.
O mundo contemporâneo, os cientistas políticos — se é que podemos chamar de
cientista quem estuda a política, ciência prática — que procuram interpretá-lo
não dedicaram suficiente atenção ao problema entre todos com plexo da filosofia
do poder, que só se define em função do ser humano, à medida em que ele se
vai investindo do imperioso dever de mandar, quando assúme as suas responsa­
bilidades. A du z Jellinek15 que a teoria contratual malogrou, mas que suas reper­
cussões foram imensas na História de nosso tempo. Tom ar decisão no quadro
do Estado contratual reveste sempre um risco — calculado e necessário, sem
dúvida, mas sempre um risco — para o chefe. “ Tom ar firmemente uma decisão —

13 Bertrand Russel. Power, a new social analysis. Londres, Unwin Books, 1975, p. 25 e ss.
14 Georg Jellinek. Op. cit., p. 217.
15 Loc. cit.
172 O PO D E R M O D E R A D O R

isto é, fechar o sistema de formulação de decisões a quaisquer outras mensagens


adicionais capazes de m odificar tal decisão — carece de significação prática no
caso de não existirem os meios de levá-la a cabo contra uma possível resistência
externa; ou, pelo menos, para realizá-la de tal maneira que possa produzir uma
diferença significativa no conjunto de resultados ambientais que ocorreriam de
qualquer m od o” .16 Em to d o o sistema contratual ergue-se a oposição às decisões
do poder, a menos que entre aquela e este se interponha, com seu efeito parali-
sante, o m edo, de que falou Guglielmo Ferrero. Acentua Karl W. Deutsch que
“ a vontade é ineficaz sem o poder” , mas que “ se falta vontade ao poder, só por
casualidade ele alcançará eficácia” .17 Não ficando adstrito à natureza das coisas,
o contratualismo se insere na filosofia racionalista. Voltam os, pois, ao nosso
ritornelo: a crise política imerge os seus rizomas em erros antigos e profundos.
Neles a civilização e a cultura procederam à colheita de todos os males que iriam
abicar nas tensões de nossos dias. A decadência da escolástica, a ascensão do
nominalismo, a irrupção do idealismo cartesiano, sua herança no kantismo, e
os desdobramentos deste no hegelianismo e todos os seus descendentes se mani­
festariam no materialismo ju ríd ico e no poder totalitário; de Locke e de seu
sensualismo brotaria o liberalismo do século X IX , e chegaríamos a Stuart Mill,
a Spencer e às contradições da democracia com o form a de governo.
É essa uma questão d ifícil de incutir nas inteligências de nossos dias, mas
lím pido para quem conhece a filosofia escolástica, o realismo tomista ou o realismo
integral dos grandes filósofos católicos, das linhas de Santo Tomas ou de Santo
Agostinho. Deu-se no itinerário do pensamento um impulso que o transferiu da
transcendência com o destino para a imanência com o fim , e o poder, expressão
da vontade, acabou também se fechando no imanentismo, do qual não poderá
se libertar sem violência, a violência que os povos vão ter, ainda, de autopraticar,
para o retorno à natureza das coisas, de que falamos atrás. Se, com o diz Georges
Burdeau,18 o poder é uma força a serviço de uma idéia, força nascida da vontade
social, destinando-se a conduzir o grupo na procura do bem comum, e capaz, se
necessário, de im por aos seus membros a atitude que ela comanda, o fundamental
é, portanto, a filosofia, isto é, o pensamento que o suporta. Prevalece em nosso
tempo o contratualismo com os sejjs valores imanentes, cuja insinuação alcançou
até mesmo os regimes legitimamente institucionalizados nos quais se introduziram
os germes, ao parecer inextirpáveis, desse mal grandíssimo.
Seria impossível procedermos aqui ao recenseamento do circuito descrito
pelos erros do pensamento em sete séculos, acelerado no século X V II, mais rápido
no século X V III, veloz no século X IX e ativíssimo no século X X , quando triunfa
a concepção materialista do poder. É praticamente impossível impor-se hoje em
dia a concepção, cuja finalidade seria a de libertar o ser humano, preso de vários

16 K arl W. Deutsch. Os nervos do governo. R io, Edições Bloch, 1971, p. 153.


17 Id., ib.
18 Traité de Science Politique. Op. cit. I, p. 216.
A F IL O S O F IA D O PO D E R 173

demônios, entre os quais a moral leiga, uma vaga ética sem eficácia, o delírio
dos totalitarismos, a democracia liberal com seus flancos vulneráveis, o seu ocaso,
a permissividade do choque dos contrários em seu seio, com a evidente supremacia
do mal, com o estamos fartos de observar sobre a face da terra, nesta época de
tanto esplendor nas ciências da natureza e tanta miséria nas ciências do espírito.
Segundo Bertrand de Jouvenel,19 existe sobre o conjunto humano um governo.
Seja qual fo r o seu m odo, seja ele diferente de uma sociedade para outra, estes
são, em linguagem filosófica, acidentes da mesma substância, o poder. Pode-se
então indagar, continua o mesmo autor, não qual deve ser a form a do poder —
o que constitui, propriamente, moral política — mas qual a essência do poder,
o que constitui questão de metafísica política. O poder é necessário à ordem
da sociedade humana, a qual só alcança o seu fim , se, na hierarquia de sua orga­
nização, situar-se uma força, amparada no direito, com a denominação de Estado
no mundo m oderno, cujas decisões sejam legítimas e a elas legalmente se submetam
os súditos. Esse é o problema dos fins e dos meios, de que fala Jacques Maritain.20
“ É um dos problemas fundamentais o dos fins e dos meios, poderíamos dizer
que é o problema fundamental. Não obstante as dificuldades que ele suscita, é
clara e inevitável a sua solução no dom ínio filosófico, mas, para ser aplicada no
dom ínio prático, esta solução, exigida pela verdade, im põe ao hom em , como
retom o, uma espécie de heroísmo,.e o atira à angústia e à provação” .
No plano m etafísico, ou, mais amplamente, filosófico, o fim do poder é
o bem comum. Não importa o regime, se é legítim o e legal; se é resultado do
consentimento do povo, que lhe deve obediência e dele espera a execução da
p olítica de Estado com patível, na maior dimensão possível, com as aspirações
humanas, em sociedade. Quando passamos — e Maritain bem o ensina — desse
plano para o prático, as dificuldades surgem, e o problema do melhor regime
se nos apresenta, a fim de que façamos as distinções necessárias, e cheguemos
a resultados, tanto quanto possível satisfatórios, sobre o governo a se adotar.
Se, em tese, não importa o regime, a História nos vem pontificando memorandas
lições sobre os regimes políticos e sua adequação aos povos. Tomando-se o Brasil
com o exem plo, vemos, da fundação do Império ao seu fim , um regime estável,
e a República presidencial bracejando crises intermitentes de sua proclamação
ao presente. Para salvar a democracia com o form a de governo, para restaurar o
Estado de D ireito, para, em suma, compadecer a nação e o Estado, ainda h o je 21
se pede uma Constituinte,22 com o se fosse essa a solução para os nossos males
e os nossos problemas. E outros querem reescrever a nossa História, provavel­
mente para demonstrar que se fôssemos descobertos ou colonizados pelos ingleses
ou os holandeses estaríamos registrando um P.N.B. com o o americano. Já nos

19 DuPouvoir. Genebra, Constant Bourquin Éditeur, 1947, p. 29 e passim.


20 U H om m e et VÉtat. Op. cit., p. 48.
Escrito no segundo semestre de 1977.
22 “ O Estado de São Paulo” , declarações de políticos, agosto, setembro e outubro de 1977.
174 O PO D E R M O D E R A D O R

cansamos de afirmar e reafirmar que a História é o tem po para sempre imóvei.


N ão vamos, ainda uma vez, defender a colonização portuguesa, sua obra gigan­
tesca, e o legado de seu patrimônio civilizacional e cultural, sem paralelo, do
período dos descobrimentos aos nossos dias.23 Interessa-nos o futuro, para cujo
desvendamento nos acolhemos ao passado, à índole de nosso povo, à sua formação,
aos ingredientes de sua psicologia, de sua herança religiosa e política, sobretudo
da influência dos jesuítas na introdução da pedagogia escolástica, com predo­
minância dos ensinamentos de Suarez, nas escolas, através das quais dominaram
o aparelho educativo em Portugal.
Está o mundo excessivamente intoxicado de falsas idéias claras, às quais
já nos referimos, e não se vislumbra na cerração dos erros dentro de cuja nebulosa
transcorre o curso da História, qual a definição de Estado, portanto de poder,
que corresponda à natureza humana. Apegam-se os doutrinadores aos aspectos
adjetivos do poder, deixando os substantivos de lado, e é destes que deveriam
cogitar, fazendo-o coincidir sempre com a idéia de melhor regime. Não temos
ilusões, evidentemente, sobre a capacidade humana para distinguir, ao menos
durante longo período de tem po, entre regimes, a organização do Estado e a
essência do poder, isto é, sobre o problema dos fins e dos meios, em particular,
porque a política é um viveiro de paixões, causadas e nutridas pelo materialismo,
a secularização da História, o anti-realismo das situações em que se encontra o
ser humano. Se não nos embalamos em nenhuma esperança sobre o futuro do
poder, é porque o vemos cada vez mais ameaçado de ser totalitário, pelo envol­
vimento da pessoa em coerções que não lhe foram impostas, quando ela era livre,
historicamente, antes da lenta mas progressiva marcha do naturalismo jurídico.
Segundo Carré de Malberg, o Estado é uma potéstade pública que se exerce auto­
ritariamente sobre todos os indivíduos do corpo nacional.24 Essa potestade
pública deve exercer a sua autoridade, segundo o conceito de pessoa para o regime.
O poder tornou-se em nosso tem po complexíssimo. A intervenção do Estado
no setor econôm ico, pela constituição de empresas, pela implantação do planeja­
m ento, pela burocratização crescente de todas as atividades, inclusive as menos
pertinentes aos seus controles, fortaleceu em tal dimensão o poder, que a idéia
do Leviatã empalidece ao lado das organizações estatais de nossos dias, embora
Ataliba Nogueira considere os grupos que em seu seio coexistem com o uma
form a de seu perecim ento.25 Nunca tanto a pessoa necessitou de corpos inter­
mediários para se precatar contra a ampliação da potestade estatal. Se a liberdade
é um bem precioso, não com o afirmou D. Helder Camara, que declarou não
dever obediência nem a Deus, por ser livre,26 mas entendendo-a segundo Jacques

23 C f. Tratado Geral do Brasil. São Paulo, Livraria Pioneira Editora, 2? ed., 1978, passim.
24 Carré de Malberg. Teoria General dei Estado. M éxico, F on do de Cultura Económica,
1948, p. 25, tradução castelhana.
25 Ataliba Nogueira. O perecimento do Estado. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1971, passim.
26 In L e Nouvel Observateur, n9 675, 17-23 de outubro de 1977, p. 53.
A F IL O S O F IA DO PO D E R 175

Maritain27 com o liberdade de autonomia, ela deve ser defendida pelos corpos
intermediários. “ Sendo Deus” , diz o grande filósofo paleotomista, “ a suma da
personalidade e sendo o homem, ainda que de maneira precária, uma pessoa, é
na relação entre estas duas pessoas que consiste o mistério da conquista da liber­
dade” . Esta é, portanto, uma prenda, que somente as filosofias da transcendência
estão capacitadas a definir, ao contrário das filosofias da imanência, que não lhe
atinam com o sentido.
Estão a í as duas grandes correntes do poder em nosso tempo. Deverão elas
entrar pelo futuro, com o predom ínio da primeira e predom ínio até mesmo hege­
m ônico, ao menos até onde a nossa desesperança nos permite vislumbrar os dias
que aguardam a Humanidade até o m ilênio próxim o. O poder está intimamente
ligado à pessoa, com o estamos vendo através destas reflexões. Queremo-lo assegu­
rando um salvo-conduto permanente à pessoa, a fim de que a sua expansão para
a transcendência não seja limitada pela coação, ou, em palavras mais simples,
no direito natural de querer o primado da lei sobre o arbítrio, de escolher livre­
mente os seus representantes e de estar representado no Estado. Se dissermos
que no Brasil de nosso tem po a pessoa está diminuída em suas virtualidades,
baseando-nos na anulação dos corpos intermediários que, de fato, deixaram de
existir no quadro das nossas instituições políticas, estaremos fazendo o diagnós­
tico da crise contra a qual bracejamos. O poder ultrapassou os seus limites; sua
função consiste em assegurar as liberdades concretas de que necessita a pessoa
na vida terrestre, mas seus órgãos não raro coagem essas liberdades. Ficou dim i­
nuído, portanto, na pessoa o legítim o direito de ela se expandir na confiança
de si mesma, tendo a certeza do acatamento de seus direitos, e a faculdade que
lhe cabe de sufragar os seus representantes, em várias escalas políticas, sociais e
econômicas.
Não há ações nem causas isoladas nas sociedades humanas, sejam elas quais
forem. As causas segundas dependem de uma Causa primeira, à qual são subor­
dinadas. Quando proclamam a sua soberania, com o se deu com o materialismo
jurídico, que hoje alcança a plenitude de sua influência sobre a elaboração das
leis, a teoria do Estado e a natureza do poder, seguem-se-lhes a crise com o um
todo, e as crises parciais, que tanto atormentam os povos, sem que eles saibam
com o lhes serão dadas soluções adequadas. A pessoa é o centro do universo
p olítico, é a sua medida temporal. O Estado, ou o poder organizado, deve defen-
dê-la contra os envolvimentos maléficos que a ameaçam constantemente nesta
quadra histórica, sem, contudo, confiná-la ao medo, de que fala Guglielmo
Ferrero, ou a direitos reduzidos em tal monta, que suas virtualidades não se
possam expandir. A pessoa tende ao fim últim o por um imperativo da realidade.
O poder é iníquo se obstar essa parábola. N ão se fechando a pessoa no círculo
obturado da imanência, mas, ao contrário, tendendo para a transcendência, com
a qual alcança o seu destino, o poder tem que ser organizado para abrir-lhe cami­
nho à consecução desse fim .

27 Du régime temperei et de la liberié. Paris, Desclée De Brouwer, 1933, passim.


176 O PODER M O D ER AD O R

D aí náo bastar o desenvolvimento econôm ico para a pessoa. Possuir uma


sólida base econômica é muito, porém não é tudo. A té mesmo Bertrand Russel,
filósofo lógico-matemático e confessadamente ateu, afirm a que a economia por
si só não satisfaz. “ Os economistas clássicos, assim com o Marx, que neste ponto
concorda com eles, erram ao pensar que o interesse econôm ico seja o elemento
fundamental das ciências sociais. O desejo de comodidades, quando isolado dos
de poder e de glória, é lim itado, e pode ser integralmente satisfeito por uma sub­
sistência relativamente moderada” . “ Tanto os indivíduos com o as comunidades,
desde que tenham um certo grau de con forto assegurado, passam a perseguir o
poder mais do que a riqueza, e a procurar com o um meio de obter aquele, ou
ainda tratam de aumentar a riqueza para aumentar o poder, mas, tanto num caso
com o no outro, o seu m otivo fundamental não é econôm ico” .28 O desenvolvi­
mento, no sentido em que o definem os modernos tratadistas, tem por finalidade
sobranceira saciar as aspirações humanas, os seus legítim os desejos, até onde seja
possível fazê-lo. A vidá moral e material, a vida espiritual e política estão implícitas
na ética do desenvolvimento, isto é, devem ordená-la, a fim de que os valores
sobre os quais se ergue a vida humana não descambem o seu prumo para as crises
múltiplas, que rastreiam o curso das civilizações.
O poder não atende a todos esses requisitos da pessoa humana, senão parcial­
mente, até mesmo nas sociedades mais avançadas de nosso tempo. Exceptuam-se
umas poucas, as democracias relacionadas por Seymour Martin Lipset.29 Mas
nessas, mesmo, encontram-se lacunas. Não queremos a perfeição, que não é
deste mundo. Mas queremos a perfeição relativa, e esta é possível, e mais do que
possível, é viável, se o poder se subordinar aos princípios da legitimidade institu­
cional, e não opuser obstáculos à expansão da pessoa humana. Sabemos que,
nas etapas intermediárias para a conquista do fim últim o pelo ser humano, muitas
peripécias devem ser vencidas, muitas dificuldades devem ser transpostas, muitos
óbices devem ser aluídos. Por mais primitiva que seja, a pessoa obedece a um
impulso irresistível, e se projeta em direção ao Ser, o qual muitas vezes se trans­
form a em falso Ser, isto é, no Ser que não é o verdadeiro, mas uma superstição.
Continua ela, portanto, presa ao círpulo da imanência. Vem os, por isso, que há
uma hierarquia no universo, segundo a qual uma trama comum liga os seres, um
m ovim ento comum os implica, um mesmo fim os imanta a todos. D aí, os indi­
víduos estarem para a sociedade, a sociedade para a pessoa, para o seu aperfeiçoa­
m ento — função esta do poder, ou de sua organização, o Estado - , e a pessoa
para Deus. A aspiração infinita do hom em é sua participação no Ser. Por toda
a parte vemos a gênese, o contrário de uma ordem fixa, de um ciclo fechado, mas
uma criação, prosseguida sempre, numa história sempre aberta, a promoção dos
seres à instância do Ser.
Quando, no curso da História humana, com o se verifica nesta fase, o ser

28 Power. Op. cit.


29 Political man. N ova Y o rk , Doubleday, A nchor Books, 1963, passim.
A F IL O S O F IA D O PO D E R 177

vai-se fechando progressivamente numa imanência da qual não quer ou nâo pode
sair, o que registramos, mais do que uma crise espiritual, é a própria crise da civi­
lização, que se nos apresenta em suas várias espécies. O marxismo, uma das
filosofias mais em voga em nossa época, é filosofia da imanência, devendo, por­
tanto, gerar crises enquanto tiver eficiência na m obilização ideológica de vastas
áreas das sociedades humanas contemporâneas. Esse é o dado fundamental do
marxismo, e o poder, exercido em seu nome, reveste as características de um
terrestrismo total. Com o assinala Mareei de Corte, “ os caracteres fundamentais
do sistema marxista estão contidos no seu imanentismo e na fé que tem o homem
em si mesmo” . “ Pode-se mostrar e demonstrar que o marxismo, enquanto sistema,
não se conserva um só instante de pé, que ele é contraditório e contradiz a expe­
riência mais rudimentar que o homem pode ter da vida e do mundo; inútil e
inoperante, porque não é senão um sistema visto do exterior que se abre a um
mundo, visando a seu mais íntim o desejo de ser seu mundo. Por isso Marx não
hesitou em afirmar que o mundo capitalista, aparentemente oposto ao marxismo,
já é um mundo comunista. O mais veemente desejo da fé imanentista é que o
universo seja sua obra e a técnica capitalista, que submete todas as forças da
natureza, trabalha num sentido que é o seu. É preciso, no entanto, para o mar­
xism o, combater e aniquilar o capitalismo, embora ele opere pela imanência,
por não ser senão a imanência de alguns, enquanto que a imanência deve, para
sê-lo, realmente, significar a imanência de todos, e se realizar com o tal. Requer-se,
da mesma form a, que a imanência encontre obstáculos e se detenha, em seu
desenvolvimento dialético total, em ‘antíteses’ : ( . . . ) ela é uma fé voltada para
as ‘coisas que não se vêem ’ , para o futuro indivisível, para os ‘amanhãs que can­
tam ’ , que não se escutam, mas já a constituem” . E prossegue Mareei de Corte:
“ Desde que se compreenda ser o sistema marxista o único que se adapta á ima­
nência pura, não unicamente pensado, à maneira do filósofo ou do teórico, mas
vivido, impregnando o hom em total, tudo se esclarece. N ão se trata mais, segundo
a fórmula famosa, de compreender o mundo, mas de mudá-lo, a fim de que ele
seja meu m und o” . Mareei de Corte conclui suas reflexões afirmando que o mar­
xism o é estritamente ateu e estritamente materialista.30
Contra esse materialismo nos opomos, querendo o poder não subordinado
à sua filosofia, que é totalitária e opressora, mas à filosofia que encontrou em
Santo Tomás a sua mais alta expressão, e, definida com o perene por Leão X III,
tem aplicação perpétua. Marx e Engels queriam o direito com o instrumentos do
poder, mas não de um poder qualquer; queriam-no com o instrumento do poder
pelo proletariado, que eliminaria o poder burguês, do qual o século X IX era
expressão política. Sabemos que o materialismo ju rídico de Marx e Engels apenas
concentrou o poder nas mãos de uma aristocracia burocrática, tirânica, que fez
da antiga Santa Rússia a pátria por excelência do m edo, da subordinação da vida
da pessoa à máquina do Estado, ao qual até mesmo a linguagem, deformada

30 Marcel de Corte. In Cahiers Charles Maurras, março 1977.


178 O PO D E R M O D E R A D O R

circunstancialmente para servir ao partido e ao poder, é um dos elementos de


açâo. Para o marxismo, a filosofia, no sentido tradicional, não é senão uma enfer­
midade do saber, porquanto ela não aceita colocar-se no estudo da realidade.31
É na onda dessa pregação imanentista que o mundo contemporâneo vai navegando;
braceja tempestades que não se acalmarão, pois o marxismo é, em sua estrutura,
anti-humano, é um imanentismo que se fecha num círculo obturado, quando
o ser humano aspira, naturalmente, escapar para a transcendência, onde seu
apetite de absoluto se satisfaz. Temos, pois, de nos colocar na posição de quem
defende os princípios da filosofia perene, o realismo tomista, a tradição dos
Padres e Doutores da Igreja da grande idade, quando se form ou a doutrina cató­
lica, desfigurada em nossos dias pela controvérsia, pela ignorância e pela heresia.
Se o poder cria o direito, e essa é sua função,32 tem ele de se subordinar
ao direito natural, segundo cujos princípios o direito positivo não deve engendrar-se
pronto na cabeça do chefe. Se é necessário o chefe, ou o príncipe, este tem de
se subordinar à instituição, a fim de que a paz não seja perturbada e não se
percam as liberdades. Segundo Burdeau,33 mesmo institucionalizado, o poder não
dispensa a vontade de um hom em que pensa e quer. Concordamos, mas, por isso
mesmo, propugnamos o chefe institucionalizado Historicamente. O chefe con­
tratual situa-se na linha do imanentismo; pode romper os laços que o ligam com
o destino da pessoa, e oprimi-la. Essa lição a História nos tem pontificado vezes
sem conta, sobretudo no mundo contemporâneo, com as ditaduras sucessivas
de que são vítimas os povos. D iz Heller34 que as normas jurídicas positivas não
se estabelecem por si mesmas; são desejadas, estabelecidas e asseguradas mediante
disposições reais. Aduz o mesmo autor que sem a unidade fáctica da vontade
do Estado, não existe unidade da ordem jurídica positiva, mas que sem essa não
há justiça nem segurança jurídica. Daí, deverem justapor-se as legitimidades de
instituição e de pessoa, a fim de que o Estado seja personalizado, e a instituição
se garanta pela duração. É a própria essência, essa, da filosofia qUe se opõe ao
imanentismo ju rídico das correntes que o esposam desde o século X V H I, seja
optando pelo materialismo dialético de Marx-Engels, seja pelo liberalismo relati-
vista, ambos produto dos mesmos erros filosóficos, que exaustivamente procu­
ramos expor como tendo sido a matriz por excelência da desnaturação do poder.
Não há dúvida que o liberalismo encerra um ideal, o de liberdade, mas por admitir
todos os contrários, engendrados pela opinião pública, que, neste século, pode­
rosos meios de comunicação fabricam, não coincide com a vontade do povo do
romantismo revolucionário do século X IX , e acaba provocando a reação totali­
tária, com o se tem visto — e já é mesmo um lugar comum — na História contem ­
porânea.

31 Jean Yves Calvez. La Pensée de Karl Marx. Paris, Seuil, 1956, p. 368.
32 Hermann Heller. Teoria dei Estado. M éxico, F on do de Cultura Económica, 1942, p. 219.
33 Traité de Science Politique. Op. cit., p. 241.
34 Loc. cit.
A F IL O S O F IA D O PO D E R 179

Emest Cassirer35 é cético a respeito da liberdade, quando afirma não ser


ela herança natural do hom em , mas sua criação, se quiser possuí-la. A liberdade
é, sem dúvida, uma conquista permanente, que, por paradoxo misterioso, nesta
época histórica de tantas descobertas da ciência e avanços da técnica, acabou
sendo confinada à despensa das concessões do Estado, inclusive em nações
aparentemente democráticas. Com o diz Cassirer,36 os chefes totalitários assumiram
as funções que nas sociedades primitivas correspondiam ao mago. Essas funções,
com o já dissemos páginas atrás, foram assumidas, também, pelos chefes de
Estados democráticos.37 O poder se revestiu, portanto, de uma aura mágica, e,
em lugar de ser uma revelação da natureza à razão, é um produto do direito
positivo e do princípio do chefe. D aí a sua crise intrínseca. Não se lhe reconhe­
cendo filiação ao direito natural, sua derivação para o arbítrio é lógica. Quando,
pois, opom os a legitimidade institucional à contratual estamos reivindicando
para o direito, e o poder que nele assenta, os seus fundamentos, a subordinação
dós meios aos fins, das causas segundas à Causa primeira. Pretendemos, em suma,
defender a paz na Cidade contra a sua precariedade e ameaça pelo positivismo
ju rídico, com o o vemos se manifestar nos processos legislativos modernos, depen­
dentes do chefe ou do estamento burocrático que lhe presta assessoria e lhe dá
colaboração.
Não estamos fazendo, evidentemente, a história da transição do jusnatu-
ralismo, com o o entenderam os tratadistas católicos medievais e seus discípulos,
ao positivismo ju ríd ico moderno, com o é ele entendido nas esferas governamen­
tais e nas faculdades de direito, nutridas do relativismo, do materialismo, do
princípio do chefe e de outras aberrações jurídicas, que não aceitam o primado
do direito natural na formação do direito positivo. A tese que nos propusemos
defender, especialmente neste capítulo, é a da filiação do poder ao direito natural
e deste à filosofia católica, segundo os ensinamentos dos Padres e Doutores, mas,
sobretudo, de Santo Tomas. “ A noção de lei natural superior à lei positiva se
encontra ao longo da História ocidental” . “ Estes princípios de direito natural,
todos os consideram com o princípios morais, que governam a conduta humana” .
“ O direito se funda sobre a moral, sancionando a moral e permitindo os homens
de pô-la em prática” .38 A filosofia do poder deve radicar-se nesse núcleo do pensa­
mento, a fim de que o Estado não tom be no arbítrio. Desvinculando-se da moral,
dos imperativos éticos, do reconhecimento que o bem comum, e todas as suas
solicitações, lhe são a causa final, o poder derivará, fatalmente, para o arbítrio
e o despotismo. É o bem comum que conta. Para assegurá-lo ao povo, a autori­
dade tem de se revestir de seu dever, agindo com justiça. Com o diz Yves Simon,39

35 The myth o f the State. Yale, Estados Unidos, Yale University Press. 1946, passim.
36 Op. cit., passim.
37 ,
R ob ert Gerard Schwartzenberg. L ’Etat-spetacle. Op. cit., passim.
38
Jacques Leclerc. D u droit natural a la sociologie. Paris, Spes, s/d, I, p. 19.
39 Filosofia do govêrno democrático. R io, Agir, 1955, p. 37, tradução portuguesa.
180 O PODER M ODERADOR

“ o bem comum exige que um problema de ação uniform e que não possa ser
resolvido por unanimidade o seja por autoridade” . Imbuindo-se de princípios
éticos, a autoridade resolve, decide, distinguindo entre o bem e o mal. Quando,
pois, dizemos que há uma filosofia do poder, entendemos que uma sabedoria
superior, uma Causa primeira deve ordenar o poder, causa segunda, arraiando
de luz o seu itinerário prático. Nenhuma ciência particular define adequadamente
seu próprio dom ínio, porque essa definição exige o conhecimento dos princípios
e o sentido da ordem total, os quais são do dom ínio da filosofia, com o, ciência
universal. Conhecendo o real, tendo, por essa via, o conhecimento sensível, a
filosofia estabelece a ordem do universo, que se mantêm e se manterá enquanto
o ser humano e as sociedades às quais ele pertence obedecerem aos seus princípios.
Se, pois, dissermos que a ciência política, através do Estado e do uso d o poder,
situa-se na chave da filosofia prática, procurando o bem do ser humano, a esta­
remos subordinando à moral. É nessa luz que a devemos, sempre, tom ar, se
quisermos evitar, do ponto de vista epistemológicp, o erro que nos conduziria
à negativa do caráter ético da política.
Insistimos na tese, porque, cada vez mais, neste século de triunfos inegáveis
da ciência e da tecnologia, a política vai se distanciando da moral. Se não é essa
uma novidade, pois Maquiavel já havia se erigido em seu patrono, na aurora do
mundo m oderno, é, ao menos, um dado contemporâneo da crise na qual brace­
jamos, ao parecer sem nenhuma saída. “ A política” , diz Jacques Maritain, “ é um
ramo da ética, mas um ramo especificamente distinto dos outros ramos da mesma
árvore, porque a vida humana tem dois fins últimos, um subordinado ao outro:
o fim últim o numa ordem dada, que é o bem comum terrestre, bonum vitae civilis;
e um fim últim o absoluto, que é o bem comum eterno e transcendente. A ética
individual se ocupa do fim últim o subordinado, mas visa diretam ente ao fim últim o
absoluto, enquanto que a ética política se ocupa do fim último absoluto, mas
seu f im d ire to é o fim últim o subordinado, o bem da natureza racional em suas
realizações temporais” .40 Não se pode considerar, portanto, o Estado, ou o poder,
desquitado da ética. Será fazer concessão ao maquiavelismo. Ciência prática,
portanto, com o vem na classificação das ciências de Aristóteles, se se quiser uma
classificação esquemática, que, embora desdenhada em nossos dias, conserva,
ainda, a sua validade, a política é, também, uma ciência do espírito, segundo a
classificação de D ilthey.41 Aproveitando as reflexões de D ilthey, diremos que
a “ conexão de fim ” , segundo a qual se estabelecem dependências entre elementos
psíquicos e psicofísicos, subordina a política à moral, e obriga em consciência
os governantes a procurarem assegurar a todas as pessoas, aos súditos do Estado,
o pleno desenvolvimento da vida humana — esse ritom elo no qual insistimos —
amparados no apoio do povo inteiro, e do corpo p olítico em particular.

40 Jacques Maritain. L ’Hom m e et l’État. Op. cit., p. 56, os grifos são do autor.
41 Wilhelm D ilthey. Introduction a las ciências dei espiritu. M éxico, F o n d o de Cultura
Económica, 1944, passim, tradução castelhana.
A F IL O S O F IA D O PO D E R 181

Chegando, pois, ao terceiro grau da abstração, diremos que, em essência,


o poder deve se fixar no destino do ser humano, o seu destino transcendente.
Seja ou não paradoxal a nossa proposição, diremos que o ser humano deve olhar
para trás, se quiser prosseguir em frente. O poder só é justo quando obedece a
um intinerário, o do bem comum; o Estado só corresponde à sua própria essência
quando assegura a paz civil; a política, com o ciência prática, só é autêntica,
quando subordinada à moral, não, porém, a uma qualquer moral, mas à moral
cristã. Há uma lógica no Universo. Essa lógica fo i quebrada. Devemos restaurá-la.
A razão encontrará a via da transcendência. Restaurada a primazia da inteligência,
da política com o ação moral, o ser humano aguardará, finalmente, o últim o ato
do imenso drama que viveram, individual e coletivamente, bilhões de pessoas,
marcadas todas pelo insondável sinete de Deus, com um destino; animadas por
uma aspiração quase incompreensivelmente absurda de liberdade, da qual todas
as definições são precárias, se não se basearem nos mandamentos do amor que,
na História, recebeu o nome de Cristo. D iz Charles Journet42 que, se o uso do
poder é justo, vem de Deus; se é iníquo procede da Besta da qual fala o Apocalipse.
Não se anuncia o Apocalipse? As visões do evangelista de Patmos não estarão
próximas? Estaremos ou não na iminência do fim dos tempos? Se assim for, um
vento de tristeza soprará pela face da terra, onde os restos de civilizações extintas
marcarão a passagem dos seres com as suas obras, o gênio de suas criações artís­
ticas, a beleza de seus poemas, os choques de suas ambições, a fúria de sua cobiça,
o amor dos santos que se deram à conquista da suprema bem-aventurança, e,
sobranceiro a tudo, o doce olhar do Cristo verá as ruínas de alguns milênios que
desapareceram fugazes no tem po extinto, n o espaço consumido. O poder reveste
um sentido transcendente, o de impedir, pelo uso da justiça e da eqüidade, que
a civilização e a cultura cristãs soçobrem no grande Nada. Estas reflexões são
aplicáveis ao Brasil e ao mundo, sobretudo nesta época histórica de crise.

42 Exigences chrétiennes en politique. Paris, E glo ff, 1945, p. 31.


nu
a duração do poder

0 poder e todo o seu com plexo aparato devem durar, a fim de que o bem
comum não seja precário. Já ensaiamos escrever — e, provavelmente, um dia ainda
o façamos — uma teoria da precariedade, sobretudo no mundo contemporâneo,
abalado até às suas profundezas pela revolução mundializada, pelas mutações
que se operam no seio de todas as sociedades, das altamente industrializadas,
portanto desenvolvidas, às mais primitivas, com o as africanas, recém-emergidas
do colonialismo europeu. N o centro da precariedade colocaríamos o bem comum,
não obstante as aparências em contrário, nesta época saturada pelos bens duráveis
inventados pela ciência, criados pela técnica, e produzidos pela indústria. Santo
Tomás esgotou a idéia de bem comum. Não vamos reproduzir as suas teses por
serem demasiado conhecidas. Mas o que não ocorre, ao parecer, à maioria dos
teóricos da ciência política, aos estadistas e aos doutrinadores, em geral, é depender
o bem comum da duração do poder. F oi possível à civilização conservar e trans­
mitir o legado da filosofia grega, do direito romano, do m onoteísm o judaico e
da Revelação cristã, graças à longa duração do poder, da queda do Im pério Romano
à Reforma. Se um só pastor e um só rebanho — a Igreja — sustentaram a herança
mediterrânea, não obstante as dificuldades que se lhes antepunham no curso
histórico dos povos, fo i porque o poder teve duração. Quando a instabilidade
política, uma das espécies da precariedade, irrompeu no Ocidente, inaugurando
u “ idade da revolução” à qual já nos referimos, a duração entrou a cambalear,
e, com o via de conseqüência, veio a cambalear, também, a paz e tudo quanto
184 O PO D E R M O D E R A D O R

nela se contém para o bem comum. D aí devermos subordinar o poder à duração.


Comecemos, portanto, definindo a duração.1
N o pensamento clássico o conceito de duração indica, em sentido genérico,
a maneira de perseverar um ser na sua existência. A duração é classificada em três
espécies diferentes: se se trata de um ser que está subordinado a um devenir
sucessivo e contínuo, a duração fo i chamada tem po; se se trata de um ser subor­
dinado a uma forma de devenir sucessivo mas não contínuo, a duração foi chamada
e v o ; se se trata de um ser não subordinado a form a alguma de devenir, mas exis­
tente para sempre, a duração fo i chamada eternidade. Nesse pensamento a duração
fo i concebida mais com o a medida do durar, do que com o o próprio durar. 0
pensamento m oderno, ao contrário, passou da concepção de duração, com o
medida do durar, ou com o o próprio durar, e de um durar com o o ser que dura,
ao sentimento da continuidade do processo da vida interior, reservando o term o
tempo à medida extrínseca da duração e do durar.
Para compreender a duração, uma das mais complexas questões do pensa­
mento filosófico, devemos fazer algumas considerações gerais, que, depois de
determinarem o conceito do vocábulo na sua acepção fundamental, valem com o
enunciado dos diversos problemas a ele intrinsecamente conexos, e servem,
portanto, de premissa para a exposição histórica, que nos colocará no âmago
da questão. A pouco e pouco, o hom em , partindo de uma experiência do devenir,
genérica e indefinida, sentiu a necessidade de medir o m ovim ento, e chegou à
persuasão que o sentido mais profundo da duração deve achar-se no processo
contínuo e irreversível da vida interior, enquanto, saindo da íntima mutabilidade,
pode-se fixar, na especialidade material, um critério abstrato de medida. A expe­
riência, que está na base do conceito de duração, é a do devenir em geral, do
m ovim ento entendido com o deslocamento dos corpos no espaço, com a transfor­
mação — acréscimo, diminuição, geração, corrupção. Quando, porém, se fala
de mutabilidade e sucessão, pensa-se na série de m omentos e estados que podem
estabelecer distinção entre uns e outros, para a sua recíproca exterioridade.
Agora, isto significaria descontinuidade: mas a descontinuidade em geral
é conciliável com o conceito de duração? Na história do pensamento, duração
e tem po não foram considerados a mesma coisa, ainda que ambos os conceitos
pretendam significar a mutabilidade contra a imobilidade. Diante da duração
deve o tem po ser concebido com o o abstrato diante do concreto, com o uma gené­
rica, ideal entidade sobre a qual se recorta e mede a duração concreta, expressão
de um suceder de estados de alma e de eventos cósmicos? Outra questão, que
se coloca a quem reflete sobre o conceito de duração, é o da sua própria medida,
a qual se consegue, relacionando-a com o critério do tem po. Com o o tem po apre­
senta analogia com o espaço - assim com o a duração pode ser pensada em cor­

1 Cf. O verbete na Enciclopédia Filosófica. Rom a, Institute per la collaborazione culturale,


1957. A palavra devenir é citada várias vezes por Latino Coelho, na Oração da coroa.
Por isso a usamos.
A D U R A Ç Ã O D O PO D E R 185

relação com o extenso — a ponte de passagem entre uma e outra noção parece
ser o m ovim ento, a medida do tem po, e, portanto, da duração concreta? Deve
ser o tem po, em outros termos, concebido com o o m eio em que se desenvolvem
os acontecimentos, assim com o o espaço é concebido com o o lugar dos corpos
extensos? Os vários pontos, que o m ovim ento uniforme ganha no espaço, corres­
pondem aos momentos do tem po e da duração cujo processo, portanto, acaba
com o ser espacialmente representado e descrito.
Concebe-se a duração relacionando-a com a imobilidade e a eternidade.
Estabelecida a relação, podemos perguntar: qual é, exatamente, a conexão entre
o conceito de eterno e de duração? Tomando-se o eterno com o o durar infinito,
cujo conceito é por nós alcançado quando estendermos ao infinito a nossa expe­
riência do fin ito — o processo da nossa experiência, sempre lim itado no tem po
— ou, ao contrário, o todo é concebido sem partes, e, portanto, o eterno, com o
um to d o individido e indivisível, é colocado além de cada duração e mutabili­
dade, expressão d o ser absolutamente real, transcendental e separado, a respeito
do que se desenvolve no tem po? Os empiristas, em geral, optam pela primeira
solução; os metafísicos pela segunda. Para os metafísicos o Ser absoluto está
antes dos seres e eterno é o atributo da plena realidade que compete ao ser abso­
lutamente atual e perfeito. Para eles, ou, pelo menos, para uma corrente, a noção
do Ser é independente da noção dos seres. É este, de resto, o princípio da onto­
logia platônica, transformado pelos Padres da Igreja no da iluminação interior.
Assim, na ordem da realidade, do A to , eternamente real, destaca-se o tem po e
se inicia a existência do mundo.
Separado o tem po da eternidade é esse um dos mais graves problemas da
metafísica, já no exemplarismo platônico com a atividade dinâmica do Demiurgo;
já no emanatismo plotiniano; já, agostinianamente, no ato criativo do Deus
onipotente. O problema do tem po e da duração pode ser, em todo o caso, deter­
minado por um duplo ponto de vista: ontológico e psicológico, a respeito do ser,
e a respeito do surgirem, em nós, as noções correspondentes. Os dois pontos de
vista — incluindo no primeiro também o aspecto natural ístico e epistem ológico,
no sentido objetivo e realístico da questão — se entrelaçam continuamente na
história do pensamento; contudo na idade moderna, acentuando-se o interesse
especulativo para com o hom em e com a posição do hom em interior, isto é, do
sujeito espiritual, com o fundamento do filosofar, prevalece o aspecto psicológico
do problema da duração.
De fato, procura-se a origem do conceito de duração e se verifica que ele
nasce da consciência da própria identidade diante da mudança dos termos da
experiência. É esta consciência que revela, no seu imediatismo, a ação do ser
com o uma dimensão contínua e simples, mas potencialmente solucionável em
elementos homogêneos, ou seja, em momentos múltiplos que são distinguíveis
dentro da unidade daquela dimensão. De tal conceito de duração, universalmente
entendido, passa-se à abstração objetiva do tempo. Entendendo o tem po com o
o meio indefinido em que se desenvolveria o processo do devenir, parecem estar
de acordo todos aqueles que se destacam do sentido interior e imediato da duração,
IH6 O PO D E R M O D E R A D O R

mus se estabelece a divergência t i o logo se procure indagar o conceito, porque


alguns entendem que o tem po é dado todo inteiro e individido ao pensamento,
<|uasc uma realidade existente em si mesma; outros, ao contrário, afirmam a sua
pura idealidade, com o o fizeram Leibniz e Kant. Mas um ponto fix o e comum
ii todos os pensadores parece ser a analogia entre o tem po — hipóstase, e o
espaço, analogia que nasce do esforço de im obilizar a duração para podê-la
descrever e medir com referência a uma entidade de medida não mais ela mesma
mutável e relativa. Eis, porém, que o esforço intelectualizador da duração se
detém em face da constatação da impossibilidade de se conceber uma referência
única para todós os fenômenos do universo. A partir daqui, alguns cientistas
e epistemólogos chegaram a afirmar a relatividade do tem po, isto é, a consciência
da necessidade de se usarem esquemas de medidas diferentes para diferentes fen ô­
menos.
Como não é o conceito de tem po que aqui exatamente nos interessa, mas
o de duração, em sentido geral, temos de examinar os postulados que se intro­
duzem no campo da especulação. Observa-se que tal exame não pode ter a form a
de uma dedução racional, rigorosamente demonstrativa, porém se refere mais
ao conteúdo imediato, intuitivo, de duração, o qual encerra um sentido noético,
ou seja, universalizante. Estabelecido este pensamento, fica determinado que a
noção genérica de duração tem a sua primeira origem na reflexão que a mente
cumpre sobre o processo da própria experiência. Agora se pede, em primeiro
lugar, que o processo seja contínuo, porquanto, se fosse descontínuo, a desconti-
nuidade significaria interrupção e cessação do devenir, e, portanto, não mais o
durar de um processo, mas o espalhar-se de fragmentos desligados no abstrato
contínuo espaço-temporal. A continuidade do durar significa, também, que o
processo é uno, entendendo-se o uno no seu diferenciar-se contínuo. A unidade
no processo significa, de fato, continuidade, e a continuidade une o idêntico e o
diferente: o permanecer uno do que se m ove e se diferencia de o diferenciar-se
do que é e permanece essencialmente uno. Veremos que o conceito deve aplicar-se
à organização política das nações.
Mas qual é a primeira raiz desta unidade-continuidade, identidade-diversi-
dade? Diz-se que é a memória a entreter o tem po da dispersão e a salvá-lo do
aniquilamento ao qual a irreversibilidade do seu processo o condenaria. N o livro
X I das suas Confissões Santo Agostinho mediu o tem po, melhor se diria neste
caso a duração da mente, achando nesta, no vivente fluir da alma, três termos
exatamente correspondentes aos três momentos da duração. Como a duração
se desenvolve no decorrer incessante do futuro no passado através do presente,
assim a mente tem a expectação com que se representa o futuro, tem a intuição
com que percebe o presente, tem a memória com que colhe e guarda o passado.
D ifícil é porém definir o que é, em si mesmo, o tem po, no seu concreto durar.
“ Se não me perguntam, eu sei” , diz Santo Agostinho; “ mas se depois tiver que
dizê-lo, não sei mais nada” . Está aqui uma antecipação do turbamento do qual
será preso Pascal, e uma clara consciência das dificuldades inerentes à noção do
tempo. “ De fa to ” , continua Santo Agostinho, “ se nada passasse, nada do que
A D U R A Ç Ã O D O PO D E R 187

é para vir se realizaria nunca no tem po; e se, por estranha hipótese, tudo ficasse
imutável, teríamos o resumo do curso do tem po n o presente, o qual seria não
mais um m om ento do tem po, porém, simplesmente, a eternidade. Mas, pela
necessidade do devenir, que é inerente ao tem po, o futuro não é ainda, o passado
não é mais, o presente existe, mesmo porque, continuamente, absorvendo-se
no passado, se aniquila. Onde, portanto, se colhe e conserva o tem po, este simu­
lacro do ser verdadeiro, que consiste no seu mesmo contínuo transcorrer e
extinguir-se? É na mente; é, exatamente, na memória, que se encontra a possibi­
lidade de conservar e medir o tem po, ou seja, não as mesmas coisas que passam,
mas as impressões que elas imprimem, se fixam na mente. 0 objeto da expectação
passa através da atenção para converter-se na memória” . A té aqui Santo A gos­
tinho. Mas a tentativa de definir o tem po e a duração em função da memória
inverte a ordem real das noções. É, de fato, a memória que se distingue com o
form a específica de conhecimento enquanto se põe com o a consciência que na
identidade de seu ato compara o que é com o que não é mais, e com estes dois
termos põe em relação a própria unidade permanente. É verdade que a memória
desvenda uma espécie de co n tin u o sucessivo, a duração, mas é esta que constitui
o pressuposto ontológico da memória, e a define assim com o a diferença do objeto
define a diferença da atividade que lhe é relativa. A memória, mesma, é possível
enquanto a unidade do eu — a kantiana unidade transcendental da autocons­
ciência — conform e esta doutrina recolhe e detém as diferentes representações,
cujo' suceder-se é contínuo, porque o uno, mesmo na contínua mutação da
experiência, é o tecido no qual, com o tramas essenciais, elas se inserem. Pressen­
tiu-o Santo Agostinho, quando, dirigindo-se à sua própria alma, exclamava: “ É
em ti, ó minha alma, que eu vou medir o tem po” ; mas isso não seria claramente
exposto, porque o santo não via a unidade funcional do eu logicamente pressu­
posta à experiência e, mesmo, presente e ativa nela; punha a alma com o funda­
mento meta-empírico da experiência e dirigia-se à memória para reforçar a vida
interior.
Pode, enfim , a duração, na sua consistência puramente psicológica, aparecer
susceptível de um medir objetivo? Maine de Biran, pondo o eu com o uma força
hiperorgânica, ativa, no ato do querer produtivo do m ovim ento, acreditava poder
achar nele o princípio do medir da duração, internamente e com referência às
coisas externas.
Passemos agora a uma breve exposição histórica da tese. Na especulação
greco-cristã o conceito de duração é absorvido, quase completamente, pelo
conceito de tem po. Enquanto a duração é concebida com o distinta do tem po,
podem ser feitos três destaques, um em Aristóteles, um em Plotino e um em
Santo Agostinho. Uma afirmação aristotélica de grande importância é a que leva,
em última análise, o tem po à alma. O tem po é essencial à medida, e a alma a
única realidade susceptível de m edir; sem a alma, estaria aniquilado o tem po no
seu significado espiritual, ficaria dele somente o substrato, isto é, o m ovim ento.
Em Plotino, a alma, que é uma hipóstase divina colocada no centro do universo,
mantém a unidade na multiplicidade, e produz, portanto, com o tem po, uma
IKK O PODER M ODERADOR

imagem do Uno, o Uno na continuidade:2 eis a idéia da continuidade, que é


mais exatamente da duração em lugar do tem po abstratamente entendido. Santo
Agostinho saca de Aristóteles a intuição da medida psicológica do tem po, mas
a desenvolve com agudeza e com uma sensibilidade m uito perto das mais modernas
exigências do pensamento filosófico. É preciso chegar a Descartes para achar
de maneira explícita a diferença entre duração e tem po quando distinguimos
este daquela, considerada em geral, e lhe atribuímos a medida do m ovim ento.
A medida seria só uma maneira de pensar, pois, n o m ovim ento com o na quietude,
a duração é sempre para nós a mesma. Para medir a duração de todas as coisas,
devemos compará-la com a duração dos movimentos máximos e regulares, que
produzem os anos e os dias. A essa duração chamamos tem po. Mas o tem po nada
acrescenta à duração, geralmente entendida, senão uma maneira de pensar.3 A
duração é, portanto, para Descartes, o aspecto concreto do devenir; o tem po,
a objetivação e a espacialização necessárias a medi-lo.4
R efazendo o caminho percorrido por Descartes, mas esclarecendo e desen­
volvendo de maneira original as suas intuições, Spinoza define a diferença entre
tempo e duração. Como no ser a essência inclui a existência —que existe por
necessidade e é, por isso, eterna — assim existe o ser, cuja essência inclui uma
existência finita e que por isso não é eterna mas se tom a eterna. O conceito de
duração se contrapõe ao de eternidade. A duração se distingue da existência de
uma coisa pela razão. Para medi-la nós a relacionamos com duração de outras
coisas, que têm um m ovim ento certo e determinado. Mas a respeito da duração
é preciso notar que pode ser ela concebida maior ou menor, e quase composta
de partes, e é atributo da existência e não de essência.5 N outro lugar, em sua
carta X II a M eyer, no dia 11 de janeiro de 1663,6 Spinoza, depois de distinguir
a substância do m odo de ser, fa z da eternidade o atributo da existência da subs­
tância, e da duração o atributo da existência das maneiras, insistindo no fa to que,
enquanto a eternidade é una e indivisível com o a substância, a duração, com o
a quantidade, em geral, pode ser definida conform e o tem po: o tem po serve
para determinar a duração, com o a medida, para determinar a quantidade. D o
fato que a duração e a quantidade se com põem em partes, assim com o os modos
se distinguem em classes, nasce o número, com o qual as determinamos. Medida,
tempo, número são entes não reais mas do pensamento ou mais da imaginação.
É preciso manter válida, segundo Spinoza, a distinção entre entes reais e entes
da razão e, portanto, entre outros, a duração e o tem po, porque enquanto estes
são divisíveis em partes e mensuráveis, aqueles não o são. Dividindo a duração
em partes, confundindo-a com o tem po, há o risco de não se poder mais entender

2 Enneades, III, 7 ,1 1 .
3 Oeuvres. Edição Adam-Tannery, V III.
4 Oeuvres, V II.
5 Spinoza. Pensées metaphysiques. Paris, Oeuvres Complètes, Pleiade, 1954, passim.
6 Id., ib., passim.
A D U R A Ç Ã O DO PO D E R 189

com o, por exem plo, passa uma hora. Núm ero, medida e tem po, com o entes da
imaginação, não podem ser infinitos e não são confundíveis com as coisas reais:
quem faz esta confusão acaba negando o infinito atual. Resumindo, na concepção
spinoziana, agregar a duração ao tem po é com o transformar o concreto em
abstrato, o existente num puro fingim ento racional.
Em Locke o problema da duração se desliga do significado cosm ológico
e realístico que ele tinha em Spinoza, para assumir outro, psicológico e relativo
à experiência do fin ito: trata-se não tanto de determinar a duração em si, quanto
de dizer com o nasce dentro de nós a idéia de duração. E era bem natural que
esse fosse o pensamento de Locke, porque o seu empirismo crítico é dirigido
exatamente no sentido da desintegração do dogmatismo racionalista, a fim de
limitar a pesquisa filosófica à origem, à maneira e à extensão do conhecimento
humano. A idéia de duração vem, para Locke, dos elementos da sucessão, que
passam continuamente. Por sua vez, a idéia de sucessão nasce em nós quando
refletimos sobre a seqüência das idéias que se sucedem constantemente umas
às outras na nossa inteligência, enquanto estamos acordados. Na distância entre
dois elementos desta sucessão, ou seja, entre o manifestar-se de duas diferentes
idéias da nossa mente, chamamos duração a existência ou a continuação da nossa
existência e de qualquer outra coisa comensurada à sucessão das nossas idéias.
Maneiras simples da duração são as horas, os dias, os anos, o tem po, a eternidade,
ou seja todos os comprimentos de que temos idéias distintas. Em particular, o
tempo é a duração enquanto é dividido em determinados períodos e demarcado
por medidas e épocas.7
A especulação de Leibniz, muito importante, começa por observar, que não
o m ovim ento, porém uma continuidade constante de idéias nos coloca em face
da duração. Eis, portanto, a duração trazida novamente ao interior do ser para
chegar à sua concretização. Mas, no que diz respeito à continuidade, no que ela
pareceria consistir, logo somos convencidos do contrário pelo filó so fo , o qual
nos adverte que “ uma continuidade de percepção nos sugere a idéia de duração,
porém não a constitui” . As nossas percepções nunca possuem “ uma continuidade
constante e regular para equivaler à do tem po, que é um contínuo simples e uni­
forme com o a reta” . A mudança das percepções nos dá o ensejo de pensar o
tempo, que se mede por meio de mutações uniformes. Trazendo o m ovim ento
não uniforme ao uniforme, pode-se, enfim , estabelecer que “ o tem po é a medida
do m ovim ento” . A duração, portanto, é uma idéia que nasce ocasionada pela
continuidade mas não representa, ela mesma, a continuidade.8 A origem da
mesma idéia, derivando da sucessão que atua no interior da mente, faz com que
não encontremos em Leibniz, a separação de duração, tem po e eterno, com o
vem nos pensadores que entendem a duração e o tem po no plano cosm ológico
e m etafísico, ainda que a idéia resulte de um indefinido adicionamento de extensão

7 A n essay concerning human understanding. Londres, Encyclopaedia Britannica, 1952.


8 Novos ensaios sobre o entendimento humano. São Paulo, A b ril, 1974, passim.
190 O PO D E R M O D E R A D O R

de tempo, de um ao outro. Desse ponto de vista Leibniz se encontra no mesmo


plano do empirismo lockiano, para o qual também a idéia de eternidade era o
resultado do adidonam ento in fin ito da extensão de uma certa duração.9
Para o sensista, a idéia de duração nasce em nós, ou m elhor, ela expõe a
vida psíquica no seu progressivo enriquecer-se de sensações elementares à cons­
ciência e daí às mais complexas formas de experiência e de ideação. O aconte­
cimento que, com o seu regular ou supostamente regular aparecer e reaparecer,
ocasiona a idéia de duração é o nascer e o pôr do sol. Daqui surge uma sucessão
de idéias, que suscitam, confusamente, a própria idéia de duração. Quando relacio­
nada às revoluções solares, essa idéia se esclarece, se objetiva, se mede. A origem
psicológica da idéia de duração nunca é, para Condillac, aniquilada, mesmo sendo
posta de lado e esquecida. Conform e o estado de alma da pessoa, que pode ser
alegre ou tristre, por ser ela ociosa ou ocupada, a duração, ou melhor o sentido
interior da duração, adquire valores diferentes, ainda que contida dentro dos
limites de um mesmo intervalo astronômico. Assim, por exem plo, no ócio o dia
passa devagar, mas o ano fe ito de dias iguais se uniformiza e se tom a breve.
Resumindo, para o sensismo, mesmo subsistindo a objetividade da duração, o
que para outros é chamado tem po, o significado concreto desta se alcança no
processo da vida interior, na consciência, diríamos melhor, no sentido íntim o
da duração.10
Pelo que vimos, parece claramente que o problema da duração oscila entre
um significado psicológico e um m etafísico, e que então o conceito adquire um
sentido epistem ológico quando se objetiva no tem po. Colocado assim o problema,
a especulação kantiana, o seu criticismo, olhando para a sucessão de um ponto
de vista que não é nem psicológico, nem m etafísico, conform e a acepção clássica
do term o m etafísico, mas gnoseológico, esclarece a respeito do conceito não de
duração mas de tem po.11
C om Bergson se volta à intuição psicológica da duração. Contrapõem-se
duração e tempo. Partindo de Santo Agostinho e Pascal, Bergson acha que a
inteligência, presente no hom em para a exigência prática da ação, dirigida ao que
se repete e que é definível por m eio de conceitos abstratos, não colhe a duração
ou tem po real, isto é, o incessante, intrínseco, irrepetível transformar-se de todas
as coisas. À inteligência, diz Bergson, repugna o que flui, e procura solidificar
o que toca. Por isso, acentua Bergson, não pensamos o tem po real, mas o vivemos,
porque a vida ultrapassa a inteligência.12 Concebemos a vida interior com o uma
sucessão de estados, cada um dos quais se colocaria depois do outro, e concebe-
mo-lo com o a união de tais estados. Esta visão não corresponde, contudo, à efetiva
realidade da vida espiritual, que é, em si mesma, uma mudança contínua, cujos

9 Id .,ib.
10 Traité des sensations - III, Oeuvres philosophiques, I, Paris, 1967.
11 Crítica da razão pura. Estética Transcendental. Séc. II, §§ 4 e 5.
Evolution creatrice. Paris, P U F , 1969, pp. 46-50.
A D U R A Ç Ã O DO PO DER 191

momentos singulares são, eles mesmos, sujeitos a uma intrínseca variação, que
consiste n o seu incessante transformar-se e devenir. A passagem de um estado
ao outro, de um m om ento ao outro do devenir, é com o o prolongar-se, e o
transformar-se, de um único estado, assim com o o permanecer o mesmo é já um
variar. Eis, porém, que quando a variação se tom a notável, ela se im põe à nossa
atenção, e esta, obedecendo às necessidades práticas da vida, quebra o contínuo
no descontínuo e faz da duração real uma justaposição de instantes. Entretanto,
a vida psicológica se subtrai aos sím bolos e se desenvolve, sob abstrata espacia-
lização e temporalização, com o duração ou progresso contínuo do passado, que
corrói o acontecer e que se acrescenta avançando, e conservando-se indefinida­
mente. N ão é a memória, com o faculdade abstrata, que desperta representações
entre elas separadas, e conserva o passado: esta se conserva por si, automaticamente,
e nos acompanha inteira em cada instante. Assim a nossa personalidade cresce
e amadurece sem interrupção.13
N o Essai sur les données immédiats de la conscience,14 Bergson diz que a
duração pura é a form a que assume a sucessão dos nossos estados de consciência,
quando o nosso eu “ deixa-se viver” e se abstém de estabelecer uma separação
entre o estado presente e os anteriores: os momentos da duração não se justa­
põem, mas são fundidos e compenetrados com o as notas de uma melodia. A pura
duração é a sucessão de mudanças qualitativas que se compenetram; sem contornos
precisos, sem se exteriorizarem uns aos outros, sem parentesco algum com o
número: é, em poucas palavras, a heterogeneidade pura. O tempo, ao contrário,
é, para Bergson, o sím bolo abstrato da duração, representado, por sua vez, simboli­
camente, no espaço, para a exigência prática do medir. Com o tem po, pensamos,
na maioria das vezes, num m eio hom ogêneo, onde os fatos da consciência se
alinham, se justapõem, com o no espaço, e form am uma multiplicidade distinta.
Partindo de Bergson, Hamelin distingue um tem po hom ogêneo quantitativo
de um tem po heterogêneo qualitativo ou pura duração. Para esse autor o aspecto
da quantidade é referido ao tem po pela via da especialidade e da extensão.15
Depois de Bergson não há especulação digna de nota sobre o conceito de duração.
Husserl, com a análise fenom enológica da intuição do tem po, leva-o a uma neces­
sidade a p rio ri, não porém subjetiva mas objetiva e intelectual; Poincaré denunciou
o valor convencional da igualdade de dois intervalos e da simultaneidade de aconte­
cimentos distantes. Trata-se, porém , de pesquisas que dizem respeito estritamente
ao conceito de tem po e têm significado exclusivamente no campo da epistemologia.
Podemos transpor a duração do plano m etafísico, epistem ológico, ao
político? Somos de opinião afirmativa, para defender uma tese, a da necessidade
imperiosa de regimes estáveis — duradouramente estáveis — a fim de que o bem
comum seja, não uma hipótese remota, porém uma realidade palpável. Vim os

13 ld., ib„ p. 1-8.


14 Essai sur les donness immédiats de la conscience. Paris, P U F , 1946, passim.
15 Essais sur les éléments principaux de la répresentation. Paris, 1925, p. 63 e ss.
192 O PO D E R M O D E R A D O R

ser com plexíssim o o conceito de duração. Procurando bracejar nas densas névoas
de um velho e interminável debate e de várias posições diferentes, tomamos um
rumo. Optamos pela reflexão bergsoniana, entendendo que somente os regimes
políticos estáveis, dotados de sólida estrutura histórica, permanentes no tem po,
são destinados a durar, isto é, a ter duração. N ão adotamos toda a filosofia de
Bergson; ao contrário, indigitamos no seu soberbo e form oso conjunto pontos
fracos, falhas que lhe diminuem o valor filosófico e a sua contribuição ao pensa­
mento. Aparentando-se a sua filosofia com a de Heráclito, dela, no entanto,
separa-se: Bergson conserva a substância. Interessa-nos, por isso, na filosofia de
Bergson, a duração. “ A continuidade é duração, por ser a form a que toma a
sucessão de nossos estados de consciência quando o Eu se deixa viver; quando
se abstém de estabelecer, inconscientemente, uma separação entre o presente
e o passado” .16 Bergson esposou a tese da duração, e mesmo, da duração política.
Críticos viram em sua obra, expressa, a democracia da duração. Diremos que a
duração só é possível com os regimes semanticamente duráveis, diárquicos, isto
é, fundados sobre a tradição, e acentuamos, ainda, que a democracia da duração
é viável desde que instituída sobre o poder moderador, com o o expusemos nas
páginas deste livro. Para nós, na estrutura política do Estado, embora com rima,
e dela nos escusamos, duração só é possível com tradição, ou, melhor, uma
equivale à outra.
A tradição é uma força de coesão social. Repousando na memória, só a sua
substância, quando vigorosa, sustenta a duração nacional. É impossível, histori­
camente impossível, manter íntegra uma nação, conservar sua “ alma” , isto é,
o impalpável espírito nacional, que se transmite de geração em geração, se o
princípio tradicional é quebrado ou não é rotativamente mantido vivo. A assom­
brosa resistência da Inglaterra assenta no respeito às suas tradições, algumas delas
tão velhas que até se nos apresentam com o folclóricas. O Japão conserva os seus
costumes ancestrais; no fundo de cada japonês dorm ita um samurai, pronto a
desembainhar a espada e só guardá-la com honra. Grandes foram as mudanças que a
guerra, a derrota, a perda de territórios, a industrialização e, decisivamente, a
amcricanização introduziram nos usos e costumes japoneses, mas quem os observa
nota que, arranhando-se a crosta atual, encontra-se um nipônico de outras idades,
sonhando, sempre, com imaginários heroísmos. Mao-Tsé-Tung bolchevizou a China,
us suas tradições foram reprimidas, mas não temos dúvida que elas voltarão. Quem
perdeu a Alemanha em 1918, e a abismou em trevas na década de 30, até ao
Apocalipse de ‘1945, acompanhado em cenário de tragédia, pelos “ órgãos de
Stalin” , enquanto no bunker, H itler se imolava a si mesmo, no últim o ato da
catástrofe terrível; quem fe z a Alemanha soçobrar, fo i a descompassada canalização
de suas energias tradicionais para o sacrifício, ao qual a atraiu o seu dem ônio antigo,
o furioso deus da guerra. Faltou à Alemanha a solda eficiente de uma tradição

1,1 Evolution Creatrice, p. 76; Luís Quintanilha. Bergsonismo y política, M éxico, F on do de


Cullura Económ ica, 1953, p. 35.
A D U R A Ç A O DO PO DER 193

nacional. Bismarck fo i um gênio, mas não soube prever essa fissura no formidável
ed ifício que sua determinação construiu. A Santa Rússia não morreu sob o rótulo da
União Soviética. A velha tirania mongólica, o misticismo eslavo, a civilização e a
cultura que não conheceram a Reform a e a revolução francesa, acabaram caindo —
esse é um imponderável da História — aos golpes vibrados pelos herdeiros de dois
movimentos que abalaram o Ocidente e mudaram o itinerário da História. Mas a tra­
dição russa é uma camada debaixo do poder soviético. Seria longo expor a tese.
Apenas a afloramos para justificar a duração. A té mesmo os Estados Unidos são
tradicionalistas, e cultuam as suas tradições, uma das quais — com o já o dissemos — é
sagrada, o respeito à Declaração da Independência, ao seu conteúdo espiritual, mais
do que p olítico. 0 chefe é substituído por uma idéia, tese que Freud viria a expor
mais tarde.17
A tradição, ao contrário do que supõem seus inimigos, não é estática; é
dinamicamente a mudança na conservação. Com o dizia Charles Maurras,18 a
tradição deve enriquecer-se, exprim indo, no entanto, a predominância dos
tesouros do passado. A tradição é o que dura; o que se mantém secularmente.
D aí a necessidade de regimes políticos que defendam, nutrindo-a, sempre, do
patrimônio do passado, a fim de que sua permanência no futuro se assegure. Poucos
escritores tão bem escreveram sobre a tradição quanto Chesterton. Para o grande
escritor democracia e tradição não se opunham. “ Nunca pude compreender
onde foram buscar a idéia que a democracia se opõe à tradição” . “ N ão pretendo,
sob hipótese nenhuma, separar tradição e democracia” . “ Tradição significa o
reconhecimento do sufrágio à mais obscura de todas as classes, a de nossos antepas­
sados” . “ É a democracia dos m ortos” .19 Essa democracia dos mortos reúne o
passado na imensa assembléia dos costumes, das tendências culturais, dos hábitos
do povo, do depósito das coisas e realizações pretéritas, e oferece aos vivos as
suas lições. Esse, o princípio da duração; no seu cimento nos amparamos para
construir a ponte entre o passado e o futuro nacional. Se o poder não durar, a
nação, também ela, não durará, e algumas das suas forças, as mais tradicionais,
devem, periodicamente, acudir em seu socorro, para que ela não se engolfe em
crises que lhe poderão ser fatais.
Está a í o Brasil com o exem plo. Da proclamação da República até hoje,20
as Forças Armadas, que são, por sua natureza, tradicionais, têm intervido no
processo p o lítico para salvar a duração nacional. Mas com o não devem elas fazê-lo
indefinidamente, é preciso — ou seria preciso — que defendessem o princípio

17
Paul Roazen. La pensée politique et sociale de Freud. Paris, Editions Com plexe,
1976, p. 138.
18
Verbete “ Tradition ” , no Dictionnaire Politique et Critique. Paris, A La C ité des Livres,
1933.
19 Ortodoxy. Op. cit., p. 70.
20
Escrito no segundo semestre de 1977.
194 O PO D E R M O D E R A D O R

num regime naturalmente tradicional, isto é, o regime em que os m ortos também


participem dos destinos da grande nação, e o passado tenha força tanto quanto
o presente, sobretudo porque sem memória as nações se dissolvem. Permitimo-nos,
mesmo, fazer uma afirmação óbvia, mas que por ser cristalina, transparente, não
é, paradoxalmente apreendida: se não houver passado, com entranhado culto,
não haverá futuro. Se o poder não tiver duração, não haverá poder racionalmente
instituído, ou instituído segundo o direito natural; haverá, sempre, o Leviatã
pronto a começar tudo de novo, com o fazem os comunistas, em nações que
ocupam. A duração do poder está, portanto, condicionada - na Unha das nossas
reflexões — à tradição, e esta, em país com o o Brasil, ao poder m oderador, que
sustenta uma no seu princípio e encarna outra na sucessão diárquica. Fora dessa
tese, são exemplos os Estados Unidos, cujo poder recebe o flu xo da duração do
culto à Declaração da Independência e à Constituição; e a Confederação Helvética,
cujo poder se consolidou no consenso histórico, ao qual nenhuma outra nação,
em situação análoga, se habilitou. Sirvam-nos de exem plo a Alemanha, a Itália,
Portugal, e outras nações que seria longo arrolar. Deve ter duração o poder. Sem
duração tradicionalmente institucionalizada, o poder não subsiste historicamente.
Os exemplos são abundantes. Dispensamo-nos de citá-los; os citados bastam.
os órgãos do poder

Em capítulo anterior fizem os referência às instituições, ou órgãos de governo,


extintos pelo golpe de Estado de 15 de novembro de 1889. O decreto p9 1, daquela
data, eliminou da estrutura do poder no Brasil: o poder moderador, o Conselho
de Estado, o Conselho de Ministros, o Senado vitalício e a classe dirigente.
Tornou-se mais simples o governo brasileiro? Não, tornou-se um fo c o de crises
por se ter desestabilizado o centro das instituições políticas nacionais, o poder
moderador. O poder deve se constituir dos órgãos que lhe sejam necessários para
assegurar o bem comum. Nada mais. E d ifícil fazerem-se comparações entre o
governo imperial e o governo republicano. Duas épocas, duas mentalidades, dois
períodos históricos, duas concepções de política, dois pólos de vinculação, que
se assemelham em acidentes, mas se desassemelham em essência. Cremos ter provado,
exaustivamente, que convém ao Brasil ter o poder moderador, estabilizante, do
que o poder presidencial, desestabilizado. Por mais que o hajam abalado as crises,
e foram várias, o poder moderador sustentou a estabilidade do poder, e as insti­
tuições imperiais funcionaram satisfatoriamente. A d otad o o m odelo de Benjamin
Constant, o primeiro que se apresentou ao jovem imperador, numa terrível fase
histórica de transição, quando o passado estava sepultado sob o vendaval da revo­
lução francesa, as guerras napoleônicas, o Congresso de Viena, e um novo mundo
surgia desses escombros, ele correspondeu à índole e à formação histórica do
Brasil. A monarquia absoluta, com seus vice-reis e o rei D. João V I, ficara atrás,
numa época pretérita, para sempre finita.
196 O PO D E R M O D E R A D O R

O liberalismo jacobino, a heresia praticada pelos revolucionários contra


a instituição real, decepando a cabeça do rei, isto é, decepando o princípio da
legitimidade na sua plenitude, se introduziram, com o seu peso ideológico, na
fundação do Im pério do Brasil. Com o força m otora dessa revolução, que culmi­
nara, politicamente, na Independência, tínhamos o romantismo, com a sua
tremenda carga de em otividade, o seu individualismo delirante, e a sua furiosa
rebeldia contra o passado. Quando D. Pedro escolheu o m odelo de Benjamin
Constant, deixou-se envolver, também, pelo autor de A dolph e, um dos marcos
do romantismo francês. 0 romantismo não surgiu, vitoriosamente, de repente,
em 1830, através de obras primas, com o o Hernani. N ão há jamais geração espon­
tânea em literatura. Tudo nela é produto de longas e confusas preparações.1 Antes
de irromper na França, o romantismo já havia sido preparado na Alemanha pelo
Sturm und Drang e, mais tarde, pelos irmãos Wilhelm e Friedrich Schlegel. F oi
da velha Germânia que o romantismo passou para a França, e na pátria das Gálias
urdiu a revolução que iria transmudar o mundo. Form ado — e mal form ado, ainda
mais — num ambiente acanhado onde vinham repercutir as idéias românticas
da França, e o furor revolucionário já havia conquistado adeptos, salvou D. Pedro I
a monarquia. Graças a ela, fundou-se o Im pério do Brasil, e viemos a ser dotados
de instituições exemplares, de órgãos de governo que construíram uma nação,
sem outro paralelo na Am érica, nem mesmo com os Estados Unidos, sua complexa
e, sem dúvida, modelar organização política, cuja resistência enfrenta ainda
intacta dois séculos da “ idade da revolução” .
É preciso estudar o hom em em seu m eio, recebendo os influxos das idéias
atuantes em seu tempo, sujeito a injunções de várias forças, para se ter a medida
de sua obra. Quando o imperador D. Pedro I cogitou de dotar o Brasil de sua
primeira Constituição, não tínhamos nós, nem o mundo a tinha, experiência
constitucional. A Constituição de 1822, inspirada na espanhola de 1812, que se
inspirara na francesa de 1791, encadeava um processo que tivera origem na
Constituição americana, a primeira dos tempos modernos. A ascensão do constitu­
cionalismo pode ser datada de 1776 e fo i uma invenção política im portante.2
Foi, portanto, a Constituição americana a matriz das que se lhe seguiram. Sua
elaboração obedeceu a critério pessimista da natureza humana, embora esse fundo
psicomoral não se encontre em nenhum de seus documentos, pois sua finalidade
fo i a de conter em limites escritos a ação dos mandatários eleitorais, a fim de
que eles não exorbitassem no uso do poder. V eio logo depois da Constituição
americana a francesa de 3 de setembro de 1791, votada pela Assembléia Consti­
tuinte, com texto precedido pela Declaração dos Direitos do Homem. N ão tinham
relação uma e outra, com a Constituição de Atenas, de Aristóteles, cuja filosofia,
pelo seu realismo, se oporia ao positivismo que caracteriza o moderno constitu­
cionalismo. “ A filosofia de Aristóteles, sem dúvida, exerceu sobre o espírito

1 f.m ile Henriot. Les romantiques. Paris, A lbin Michel, 1953, p. 459.
2 Encyclopaedia o f Social Sciences. V erbete “ Constitutionalism” .
OS Ó R G Ã O S D O PO D E R 197

ocidental influência mais profunda do que qualquer outra, excetuados os ensina­


mentos do cristianismo. Em dom ínio algum, essa influência penetrou mais do que
na política. Monarquistas e republicanos, aristocratas e democratas, idealistas
e realistas, todos foram beber no filó so fo a fon te de sua inspiração e autoridade.
Entretanto, as realidades da evolução do mundo ocidental tornaram a análise
de Aristóteles cada vez mais inadequada, embora em nossos dias um pesquisador
fantástico, que pretendesse imaginar a política contemporânea em termos de
teoria aristótélica, poderia afirmar que a República de Andorra seria o lugar de
seu maior interesse” .3
N ão se acomodaria o pensamento do estagirita com as divagações do constitu­
cionalismo individualista, cuja origem rem ota se entronca no nominalismo de
Occam, e seus afluentes, em Descartes, Kant e Rousseau. Enquanto o pensamento
medieval assentava sobre o direito natural,4 incom patível, portanto, com o form a­
lismo dos textos escritos, rígidos nas suas declarações de direitos e deveres, o
constitucionalismo emanado da Constituição americana e perfilhado na França
da revolução francesa é, no seu traço distintivo, individualista.5 Portugal de 1820,
1821 e 1822 viu-se envolvido pelo rastilho da revolução francesa, que se entranhara
rapidamente em seus costumes, quando as tropas napoleônicas invadiram a penín­
sula ibérica. O constitucionalismo triunfou, e de seus inflamados centros de
irradiação, Am érica e França, transferiu-se para a Am érica Latina. O fenôm eno
atuou por osmose, abarcando as colônias luso-ibéricas. Foi diante desse fa to que
se encontrou o jovem imperador, sofrendo pressões para, sem demora, dotar o
novo Im pério de uma Constituição. O m ito constitucional vampirizava a elite
dirigente da nacionalidade emergente. Já havia o Brasil-reino jurado obediência
à Constituição portuguesa e, posteriormente, à espanhola, acuados pela tropa
o soberano D. João V I e seu filh o, o príncipe regente D. Pedro. O m edo obri­
gara-os a essa vexatória submissão, mas não tinham outra alternativa. Se não
cedessem, poderiam perder o trono, e, com ele, o poder em Portugal e no Brasil.
“ É extraordinário o papel que o m edo representou na obra da formação consti­
tucional do Brasil, quer sob D. João V I, quer sob D. Pedro I. O primeiro jurou
a Constituição portuguesa em elaboração e aprovou-a por um decreto escrito
á frente de uma sedição militar. Depois mandou vigorar a Constituição espanhola,
por inspiração do povo revoltado durante a reunião que se fazia para a eleição
dos deputados às Cortes de Lisboa, revogando o prim eiro decreto. Depois, ainda,
vencida a assembléia popular de eleitores pelo ataque das tropas portuguesas,
revogou o decreto que aprovava a Constituição espanhola e revigorou o que apro­
vava a Constituição ‘que se estava fazendo’ . O segundo, D . Pedro, estando jurada
esta última Constituição, fo i forçado a fazer jurar as Bases decretadas pelas Cortes.

3 Carl J. Friedrich. La démocratie constitutionelle. Paris, P. U. F., 1958, p. 1 e ss.,


tiadução francesa.
4 A . J. Cariyle. La libertad política. M éxico, F on do de Cultura Económica, 1942, passim.
5 Carl J. Friedrich. Op. cit., p. 4.
198 O PO D E R M O D E R A D O R

Depois, fo i forçado a convocar uma constituinte para o reino do Brasil, opondo-se,


em documento público, à Independência. Depois, fe z a Independência porque
não podia fazer outra coisa. Depois convocou novamente a constituinte, e teve
de dissolvê-la, apesar de seus bons intuitos. Depois, finalmente, decretou a Cons­
tituição do Im pério, dando prazo para ser estudada e emendada nas províncias,
mas viu-se forçada a jurá-la antes de chegarem as emendas ou sem fazer caso
delas.” 6
Quem estuda a época tumultuosa dos últimos anos do Brasil-reino e os dois
primeiros da fundação do novo Im pério, vê-se diante de um príncipe que usa
de toda a sua astúcia para, empiricamente, adaptar-se às circunstâncias, vencer
resistências, desviar ambições, consolidar a sua obra, e impor-se com o o chefe
de um poder neutro, obra, com o dissemos, preponderantemente sua, no m odelo
de Constituição que fez aprovar, depois de dissolver a constituinte, da qual sairia
uma Constituição que, na sua intuição, julgava contrária aos interesses do Brasil
p olítico em formação. N ão interessava ao Brasil a Constituição americana, por
incompatível com a nossa índole; nem a francesa de 1791, nem, mesmo, a francesa
de 1814, que Luís X V III fo i obrigado a fazer votar, obedecendo à decisão dos
aliados cujos exércitos haviam derrotado Napoleão e encerrado o ciclo histórico
do primeiro Império. Metternich compeliu o rei a governar dentro de disposi­
tivos constitucionais.7 Luís X V III cedeu, porém optou por uma Carta constitu­
cional, não por uma Constituição. A Carta constitucional simbolizava uma
retomada, à distância, da velha França, cujos reis foram citados no seu preâmbulo.
D. Pedro I, ao contrário de Luís X V III, tinha uma inauguração a fazer. Encon­
trava-se na mesma situação dos Pais Fundadores dos Estados Unidos, com a
diferença de conservar a monarquia, e de pretender para o rei-imperador uma
posição neutra na organização dos poderes. Não se inspirou, contudo, na Consti­
tuição estadunidense; ficou no m odelo francês, adaptando-o aos seus próprios
interesses e aos interesses de nacionalidade emergente de um reino fugaz e de
longo período colonial.
D. Pedro, com o personagem central da mudança política originada pela
Independência, soube conduzir o processo constitucional, e nele sobressair
vencedor.8 É portanto surpreendente, ainda hoje, para quem estuda a formação
constitucional do Brasil, as instituições de direito político introduzidas nesse
documento básico da nacionalidade, e a sabedoria que as revestia. “ Criando o
poder moderador, e confiando-o exclusivamente ao monarca, quis a Constituição
fazê-lo elemento de equilíbrio e harmonia entre os demais poderes” . “ F o i essa
a mais importante novidade trazida pelo Conselho de Estado às novas instituições

6 Agenor de Roure. Formação constitucional do Brasil. R io, Jornal do Com m ércio, 1914,
p. 20.
7 Charles Seignobos. Histoire Politique de VÊurope Contemporaine. Op. cit., p. 96.
8 A fon so Arinos de M elo Franco. Estudos de direito constitucional. R io, Forense, 1957,
p. 221 e ss.
OS Ó R G ÃO S D O PO D E R 199

do Brasil. Era a primeira vez que se realizavam as idéias pregadas em França por
Clermont Tonerre, onde Benjamin Constant, com o ele próprio confessa, colheu
a idéia do poder real ou neutro, independente da assistência ministerial” .9 É
impressionante com o os autores da Constituição de 1824, entre os quais se incluiu
o próprio imperador, que não eram dotados de sólidos estudos jurídicos, che­
garam a essa admirável criação do bom senso, que um decreto de poucas linhas,
em 15 de novem bro de 1889, iria revogar, sepultando-a entre os documentos
históricos do Brasil político. N ão possuíam a vasta bibliografia dos constituintes
de nosso tem po. O constitucionalismo se mantinha mal nos difíceis equilíbrios
do engatinhamento. Mas, adotando, embora, uma Constituição, pois impossível
lhes seria fugirá moda constitucionalizante, D. Pedro e seus “ homens de confiança” ,
elaboraram-na rigorosamente na linha das nossas tradições civilizacionais e culturais,
a nossa form ação histórica e a nossa sociopsicologia política, a nossa herança
autoritária e a representação popular nas Câmaras, o equilíbrio entre um poder
supremo e os mandatos, convictos de sua independência, na base.
Quase duzentos anos depois da primeira Constituição - a americana é de
17 de setembro de 1787 - e das que se lhe inspiraram, com o as francesas, e as
demais da Europa, inclusive as da Am érica Latina, a Constituição do Im pério
se nos apresenta, ainda hoje, com o um monumento, sem paralelo em nenhuma
outra Constituição, de sua ou de outras épocas. Essa é uma primazia que devemos
reivindicar para o Brasil, e devemos, sobretudo, oferecer, com o exem plo, aos
sôfregos p olíticos brasileiros,10 aplicados no afã de reclamar uma assembléia
constituinte para votar uma outra Constituição que substitua a de 1967. De 1891
a 1967, esta emendada substancialmente pela Emenda Constitucional n9 1, as
Constituições brasileiras não corresponderam à realidade nacional. Os órgãos
do poder, que na Constituição de 1824 se equilibraram, graças ao ponto neutro
de apoio do poder moderador, descambaram o seu prumo para a “ política dos
governadores” , até 1930; a hipertrofia do executivo em 1934 — com o estado
de guerra e as manobras de Getúlio Vargas para derrogá-la —; o presidencialismo
dominante em 1937; o conflito entre legislativo e executivo em 1946, conflito
que geraria as maiores crises da República, tantas vezes citadas neste livro; a volta
do presidencialismo dominante em 1967, reforçado, ainda mais, pelos poderes
outorgados ao presidente da República pela Emenda Constitucional n9 1, e,
efetivamente, o regime do presidente, cujo term o não se vislumbra em horizonte
próximo, nem é mesmo provável que seja atenuado, ao menòs em dois ou três
mandatos futuros elevados a seis anos.
Encarnando a idéia de direito, o poder deve realizar as suas exigências,11 mas
vemos e sentimos, não raro na própria carne, no patrimônio de cada um de nós
e nos direitos inalienáveis de que somos portadores, que o poder não corresponde

9 Tobias M onteiro. História do Império. R io, F. Briguiet, I, 1939, pp. 37 e 39.


10 Escrito no segundo semestre de 1977.
11 Georges Burdeau. Op. cit., V I, p. 384.
200 O PO D E R M O D E R A D O R

a quanto dele esperamos e, legitimamente, dele devemos exigir. Os órgãos do


poder devem funcionar de tal maneira equilibradamente que as aspirações humanas
sejam atendidas, com eqüidade. O engenho humano se tem desdobrado e mesmo
tresdobrado para atingir essa instância, baldadamente, no entanto, o fazendo, sobre­
tudo neste século de tanto desenvolvimento, de esplendor tecnológico, de idolatria
científica. A Constituição do Im pério e o funcionamento das instituições imperiais
em sessenta e cinco anos procuraram dotar o Brasil de uma estrutura política
estável, de cuja evolução se pudesse obter, no futuro, o desenvolvimento tanto
quanto possível harmônico de todas as províncias do país. A instituição do regime
republicano, sem outra razão que não a da sedutora influência que o desenvol­
vimento americano e a ilusória prosperidade argentina exerciam sobre as menta-
lidades politicamente alienadas, signatárias do Manifesto de 1870 ou aderentes
às suas proposições, acabaria por se verificar incom patível com os interesses do
Brasil. Em nove décadas ainda estamos procurando o “ m odelo p o lític o ” , quando
D. Pedro I e seus “ homens de confiança” , dentre os quais se destacou José
Bonifácio, o encontraram facilm ente, graças à transferência da monarquia portu­
guesa e da elevação do Brasil a reino-unido, isto é, ao estágio antecipatório do
novo regime para o qual iríamos naturalmente gravitar.12
Pelos órgãos do poder instituídos em 1824, comparando-os com os insti­
tuídos em 1891, e vigentes até hoje, chegamos à conclusão de que a lacuna
observada em cinco Constituições republicanas não fo i nem será suprimida,
segundo nos é dado pressupor, em face dos preconceitos subsistentes no país
sobre regimes políticos e o esgotamento de todas as tentativas de se encontrar
um m odelo político que chegue à quadratura do círculo, isto é, faça os poderes
do Estado funcionarem harmônica, autônoma e interdependentemente, O Estado
se tom ou onipotente, e, na sua estrutura, o poder executivo. Confinando-nos
ao exclusivo caso brasileiro, tem o-lo com o um exem plo de nossa tese. De D eodoro
a Ernesto Geisel, com o procuramos demonstrar e comprovar num estudo que
abarcou até o governo Castelo Branco,13 a crise do regime se agravou, vedando-lhe
todas as saídas para uma solução com patível com os interesses nacionais. Na
primeira República ainda funcionaram os corpos intermediários, o Senado e a
Câmara federais, as Assembléias Legislativas e os Senados estaduais, e, na base,
as Câmaras Municipais, embora a representação fosse viciada pelo vo to fraudado,
as atas falsas dos Partidos Republicanos, o mandonismo local e o predom ínio
do “ coronel” . Sob a Constituição de 1934, os corpos intermediários, representados
pelos partidos que concorreram às eleições de 1933, e os sindicatos, representação
com a qual os constituintes pagaram tributo à moda fascistizante da época, degene­
raram em tal extensão, que Getúlio Vargas se aproveitou de sua desmoralização
para vibrar-lhe o golpe de 1937, com o qual dissolveu todas as Câmaras do país

12 A fon so Arinos de M elo Franco. Loc. cit.


13 A crise da república presidencial. São Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1969, passim.
OS Ó R G Ã O S D O PO DER 201

e substituiu os governadores - com a única exceção de Minas Gerais — por


interventores. A Constituição de 1937 iria implantar outra representação, aparti-
dária, mas Getúlio Vargas preferiu deixar-se ficar, com a sua pachorra solerte,
na competência que lhe conferia o artigo 180, e governou discricionariamente
a nação, montado numa frase de efeito com o propaganda, mas condenável pelo
seu significado ditatorial: “ Não há mais intermediários entre o governo e o povo” .
O governo de Getúlio Vargas simplesmente desprezou os intermediários, e coagiu
o povo a obedecer à sua ditadura, que, com o em todas as ditaduras, multiplicou
os ditadores, da mais alta hierarquia aos últimos municípios do país.
Aplica-se ao Estado Nacional de Francisco Campos e Getúlio Vargas a
reflexão de Bertrand de Jouvenel sobre a concentração de poderes no Estado.
“ Temos visto, ao longo da História, criar-se uma concentração de poderes em
benefício de uma personagem, o Estado, o qual dispõe de meios cada vez mais
amplos, que reivindica sobre a comunidade direitos sempre mais extensos, que
tolera cada vez menos os poderes a ele alheios. Este é mandamento e quer ser
o princípio organizador da sociedade, m onopolizando, sempre, este papel” .14 Os
órgãos do poder reduziram-se a um só, o executivo, o regime do presidente. Para
João Camillo de Oliveira Torres15 o “ presidencialismo puro” de 1937 explicava
a idéia então vigente, a política então dominante. “ Que era o Estado N o vo id eolo­
gicamente falando? N ão era um regime fundado na classe, nem na raça, nem um
programa social definido, nem na idéia gentiliana de Estado de Mussolini, nem
numa política financeira, nem num nacionalismo espanhol. O Estado N o vo era o
regime do ‘presidente’ - um pouco do homem, outro pouco da instituição tomada
em si mesma. A única espécie de ideologia presente era a da supremacia universal
do presidente da República” . Com a deposição de Vargas, em 1945, a convocação
de uma Constituinte, que elaborou a Constituição de 1946, o presidencialismo
puro, hegemônico e dominador retrocedeu pela amplitude de maiores atribuições
ao Congresso, no processo legislativo. O artigo 36, § 29 da Constituição prom ul­
gada em 18 de setembro daquele ano vedava a delegação de poderes. Pontes de
Miranda discorre longamente sobre esse artigo nos seus Comentários à Constituição
de 1946,16 comparando-o com outras Constituições, e observa: “A primeira
crítica que se faz à elaboração das leis só pelo poder chamado legislativo é a de
que, nos fatos, se mostrou insuficiente. (A s delegações legislativas vieram prová-lo.
Mais: recorre ele, a cada m om ento, a comissões estranhas ao seu seio. Ainda mais:
não é corpo técnico, nem atento às necessidades da administração. Tudo isso
é perfeitamente justo). Outra censura consiste em apontar casos de divergência

14 Le pouvoir. Op. cit., p. 289.


15 O presidencialismo no Brasil Op. cit., p. 271.
16 Pontes de Miranda. Comentários à Constituição de 1946. São Paulo, M ax Lim onad, 1953,
II, p. 186 e ss.
202 O PO D E R M O D E R A D O R

entre a lei votada e a opinião pública. Ora, esse e os demais ataques podem ser
traduzidos em poucas palavras: a crise da democracia representativa
Os órgãos do poder entraram em choque. Somente o presidente Eurico
Gaspar Dutra conseguiu atravessar o seu qüinqüênio em tranqüilo clima político,
por ter obtido das lideranças pessedista e udenista um A cordo Interpartidário,
graças ao qual constituiu um Ministério de Conciliação, uma espécie de Ministério
de Paraná, na República, e com o forte apoio da maioria do Congresso neutra­
lizou o artigo 36, § 2, isto é, obteve a delegação indireta de poderes. N ão fosse
a sua habilidade em se mostrar suprapartidário, com esse A cordo, e não teria
fechado o Partido Comunista, colocando-o fora da lei; não teria rom pido com
a União Soviética, e não teria extinto o cancro do jo g o . Durante esse período
doze legendas partidárias supostamente representavam o povo no Congresso,
com o corpos intermediários, mas, na realidade, não passavam de ajuntamentos
circunstanciais, sem raízes nas opções da opinião pública. O eleitor votava apenas
para a sua comodidade do dia, para cumprir uma obrigação legal e até mesmo
para se distrair. Não eram, portanto, corpos intermediários, com o os devemos
entender e com o os trataremos em capítulo subseqüente. Com a volta de Getúlio
Vargas, em 1951, os órgãos do poder se desavieram de novo, e nesta nação de tantas
necessidades a crise voltou a porejar de seu corpo exangue. As duas principais
correntes de opinião pública, que vinham desde o im pério, os conservadores e
os liberais — ou o P.S.D. e a U .D .N. — continuavam a disputar os eleitores. Um
partido trabalhista — o P.T.B. — fundado por G etúlio Vargas para captar em
suas fileiras o operariado que era grato ao seu paternalismo social se apresentava
com o a terceira corrente, as três, porém, e as demais nove, registravam, apenas,
alguns milhares de eleitores. O fim de Getúlio Vargas fo i causado pelo desajusta­
m ento dos órgãos do poder, pela supremacia do legislativo sobre o executivo,
pela fraqueza deste e pelas contradições do regime, ao qual faltava, e ainda falta,
uma estrutura institucional.
De crise em crise, o regime chegou até 31 de março de 1964, quando fo i
deposto o presidente João Goulart. Não resultou, evidentemente, de um golpe
decidido nos últimos dias de março a sua expulsão do governo, que de resto
ele enxovalhara. Longa maturação o precedeu. Os militares se prepararam durante
quase vinte anos, nutrindo-se de uma doutrina, a que fo i ensinada na Escola
Superior de Guerra, desde a sua fundação em 1948, e voltaram ao poder, que
haviam deixado quando Floriano passou o governo a Prudente de Moraes; deram-se
uma configuração, assinalando-lhe um rumo e estabelecendo-lhe uma ideologia,
fundada sobre a disciplina autoritária da sociopsicologia castrense e de sua con­
cepção de segurança nacional, não uma simples organização de defesa, mas toda uma
filosofia. “ Segurança é um estado de afirmação e de poder, de invulnerabilidade aos
antagonismos de todos os tipos, atuais ou futuros, militares ou não militares, pois é
certo, é indiscutível que o destino e a sobrevivência dos povos e das pátrias podem
ser ameaçados e podem ser, até mesmo, aniquilados, por forças outras, sem canhões
e sem soldados, que atuem sobre o organismo nacional para miná-lo e destruí-lo nos
outros sistemas fundamentais que o sustentam, com o é o caso do colapso econôm ico,
OS Ó R G Ã O S D O PO DER 203

da subversão social ou da destruição do poder p olítico, sob cuja égide ele deve se
constituir e se orientar” .17 Vê-se que à segurança nacional fo i atribuída uma dimen­
são maior do que geralmente lhe era facultada. Passou a ser a filosofia do poder,
filosofia na qual os militares estavam enfronhados, através dos estudos sistemáticos
que lhes eram ministrados na Escola Superior de Guerra. A nação deve sobreviver,
una, íntegra, solidamente firmada em seus princípios político-sociais. “ A sobrevi­
vência consiste na continuidade existencial da nação, no tem po e no espaço. A
segurança é a faculdade de prevenir e defender o conjunto nacional. E o bem-estar
geral reside no padrão de vida possível ao indivíduo e ao grupo nas condições
do grau de desenvolvimento nacional” .18
Duas citações muito anteriores a 1964. São ambas significativas, com o outras
que poderiam ser para aqui trazidas. N a sua síntese, dão o m ote de tod o um ritm o
p olítico, que se manifestaria em 1964 e prosseguiria sem termo próxim o,19 prova­
velmente até ao fim do século. Com a passagem do poder aos militares, Castelo
Branco ainda tentou restabelecer o pacto do poder com o liberalismo p olítico.
Não conseguiu, porém , dominar os acontecimentos; fo i por eles dominado, e
baixou o A to Institucional n9 2, com o qual extinguiu todos os doze partidos -
ou, simplesmente, sindicatos eleitorais, grupos de ocasião, sem eleitorado, portanto,
sem base, exceção feita, parcialmente, ao P.S.D., o partido das classes médias
superiores, e à U.D.N. o partido, em regra, das classes médias inferiores — e os
substituiu por duas legendas, fazendo-o, no entanto, sem nenhuma convicção, apenas
para salvar a nossa fachada democrático-partidária, ou ficticiamente partidocrática.
O poder continuava concentrado nas mãos do chefe militar escolhido pelos seus
camaradas de armas — aos quais o jargão político-jom alístico etiquetou a denom i­
nação ambígua de Sistema — numa espécie de monarquia republicana, tributo
que, inconscientemente, os detentores do processo político pagaram e continuarão
pagando à natureza das coisas, em país de crise presidencial pandémica. Os corpos
intermediários foram mantidos, não se alterando a sua configuração artificial.
Não representam o povo. A representação proporcional iníqua, as candidaturas
escolhidas ao acaso, nas quais o eleitor vota sem nelas ver nenhum vínculo com
sua escolha, subtraíram da representação a sua própria essência. As Câmaras
funcionam fantasmagoricamente, embora obedeçam à liturgia do regime.
Os órgãos do poder se concentram, desde 1964, nas mãos do presidente
da República. F oi restaurado o regime do presidente, que, se já era forte, ainda
mais se revigorou com o A to Institucional n9 5, a Emenda Constitucional n9 1,
o artigo 182 da Constituição de 1967. O poder está solitário, e, distanciando-se
dos corpos- intermediários, neutralizados na sua impotência para a ação política,

17 Au rélio de Lyra Tavares. Compreensão de segurança nacional. São Paulo, Edição FIE S P,
1962, p. 16.
18 Humberto Alencar Castelo Branco. O poder nacional e a segurança nacional. São Paulo,
Edição FIE S P, 1962, p. 61.
19 Escrito no segundo semestre de 1977.
204 O PO D E R M O D E R A D O R

acabou por se acercar da tecnoestrutura burocrática, um estamento todo poderoso,


que não representa o povo, as classes, as categorias sociais; não é responsável,
e dirige, efetivamente, a nação através de suas ramificações e especialização setorial.
John Kenneth Galbraith cunhou a expressão tecnoestrutura para classificar o
estamento que conduz as corporações, form ando uma verdadeira casta. Segundo
as suas reflexões,20 “ o sistema industrial está inextrincavelmente associado com
o Estado” e “ o Estado, em matérias importantes, é um instrumento do sistema
industrial” . A tecnoestrutura lhe está ligada por um vínculo. É nesta democracia
que vivemos. O Estado tecnocrático, estudado por José Pedro Galvão de Sousa,21
ampliou as suas dimensões, vindo a se tornar, no Brasil, um gigantesco empresário,
onde estão empregados milhares de tecnocratas, que o servem obedientes a uma
ideologia, a da tecnoestrutura. Esta, por isso, erigiu-se em órgão do poder, e, prova­
velmente, não será transferida de suas posições, pois a tendência do Estado é
ampliar, ainda mais, o seu poderio, embora a liberdade de iniciativa se explicite
em dispositivo constitucional, e milhares de empresas participem do processo
econôm ico. O poder controla a moeda e o crédito e exerce, por isso, o efetivo
dom ínio do leme da economia. Os órgãos do poder se encontram — essa a reali­
dade — sob a direção do presidente e da tecnoestrutura, que substituiu os políticos
malogrados, a “ classe p olítica” falida.22
Se era preciso tecnicizar o Estado, imprimir maior eficiência à máquina
administrativa, o apelo aos técnicos em economia e finanças e administração pública
e particular decorreu com o um lógico corolário da tese. O fenôm eno natural dos
regimes modernos — nas democracias estáveis, com o nas instáveis — é o da buro­
cracia, ou da tecnoburocracia, poder anônimo que paralisa a ação dos governos.
Espécie de determinismo político-tecno-adm inistrativo, a burocracia, dotada
de uma filosofia rmnagerial, comumente denominada tecnocrática, eleva esse
estamento à altura de um superpoder, nas relações entre o Estado e o cidadão,
o Estado e os grupos econôm icos, o Estado e os demais grupos que com põem
a sociedade. Galbraith se refere ao temor de que a corporação dominaria o
Estado e da reversão desse m edo o Estado dominaria a corporação.23 N os países
cultural e economicamente desenvolvidos, a tecnoburocracia se ergueu acima
do n ível m édio das sociedades, governando através dos órgãos do governo. Esten-
deu-se a burocracia, em nosso tem po, a toda a vida, abarcando-a na sua com ple­
xidade. O fenôm eno burocrático é, portanto, de fundamental importância para
a organização política dos Estados, para a ciência política, a sociologia e a psico­
logia social. O Estado tem necessidade de controlar a vida do cidadão, o funciona­
m ento das empresas, o mercado financeiro, o aparelho arrecadador de impostos,
os serviços, toda a complicadíssima organização da qual carece o Leviatã mo-

20 The N ew Industrial State. Londres, Hamish Hamilton, 1967, p. 71 e p. 296 e ss.


21 O Estado Tecnocrático. São Paulo, Saraiva, 1973, passim.
22 José Pedro Galvão de Sousa. L o c. cit., p. 93.
23 Id., ib., p. 300.
OS Ó R G Ã O S D O PO D E R 205

dem o — seja ele tolerante ou intolerante — para se nutrir. “ A burocracia e os


grupos de ‘experts’ associados ambos suplantaram o tradicional sistema parti­
dário” .24 A burocracia — ou tecnoestrutura, ou tecnoburocracia — estende os
rizomas de sua estrutura a toda a vida social. “ O desenvolvimento das grandes
organizações constitui um dos caracteres essenciais da sociedade industrial
moderna” ,25 e se nos alongarmos pelo futuro ficaremos convencidos muito
provavelmente de que o ser humano não será mais individualista; trabalhará em
colméias; uns trabalharão para outros numa imensa disposição burocrática.26
É essa uma característica da sociedade industrial e dos governos desta época.27
Jeffrey Straussman refere-se, ainda, ao mandarinato dos “ experts” , aspecto da
nova sociedade industrial e das mudanças por que passa o Brasil — é o que nos
interessa, embora recebamos influxos de fora - que veio a ser decisivamente evi­
dente depois de 1964, da ascensão dos tecnocratas aos cargos de comando político
e do entibiamento dos corpos intermediários, sobre ineficazes, amedrontados.
O especialista, o perito, o “ expert” são necessários. Não é mais possível
entregar, por exem plo, o Ministério da Fazenda28 a um político jejuno em questões
de economia e finanças, mas não se deve ir, por outro lado, ao extrem o de subor­
dinar todas as decisões da política de Estado à exclusiva mentalidade do econo­
mista, ou do tecnocrata, ou, mais amplamente, da tecnoestrutura. Esta deve se
constituir num conselho para o chefe de governo, não na matriz de suas decisões.
A fórmula da antiga monarquia medieval é ainda — e será sempre — válida: o rei
deve se conservar em seus conselhos e o povo nos seus estados. O próprio Maquiavel
antecipou o seu apoio aos tecnocratas. “ N ão é de pequena importância para um
príncipe a escolha dos seus ministros, os quais são bons ou não segundo a prudência
daquele. E a primeira conjectura que se faz, a respeito das qualidades de inteli­
gência de um príncipe, repousa na observação dos homens que ele tem ao seu
redor. Quando estes são competentes e fiéis, pode-se reputá-lo sábio, porque soube
reconhecer a qualidade daqueles e mantê-los fiéis” .29
Tomou-se complexíssima a função de governar; os governos, em si, vieram
a ser mais com plexos do que no passado recente, e muitíssimo mais complexos
do que no passado rem oto. Não se compara a complexidade de um governo de
nossos dias, no Brasil, com o governo imperial. Uma trama de interesses, uma
provocativa necessidade de decisões, rastreia o quotidiano do chefe de governo.30

i4 Samuel P. Huntington. Is dem ocracy dying. In “ U. S. News and W orld R ep o rt” .


Washington, D. C., 8 de março de 1976.
25 Michel Crozier. L e phénom éne burocratique. Paris, Seuil, 1963, p. 19.
26 William H. White. The organization man. Nova Y o rk , Simon and Schuster, 1956, passim.
11 Jeffrey Straussman. “ Technocratic counsel and societal guidance” . In P o litics and the
fu tu re o f industrial society. N ova Y o rk , David Makay Company, 1976, p. 126.
1 Escrito no segundo semestre de 1977.
w Maquiavel. O príncipe. São Paulo, Editora A bril, 1973, cap. X X III, tradução portuguesa.
Charles W. Andersen. “ Public p olicy and the com plex organization” . In P o litics and the
fu tu re o f industrial society. Op. cit., p. 191.
206 O PO D E R M O D E R A D O R

Por isso mesmo, a sábia, e tão perfeita quanto possível, organização governa­
mental e administrativa do Im pério atenderia mais adequadamente às necessi­
dades do moderno Estado industrial, em cuja área nos encontramos, tendo São
Paulo com o centro m otor. O Estado, a empresa pública, as autarquias econômico-
-administrativas, a empresa particular, as instituições científico-culturais e educa­
tivas, os sindicatos patronais e obreiros, os partidos políticos, os clubs e grupos
secundários de vária orientação e objeto vário devem articular-se num conjunto
ao qual o poder cabe traçar a política ampla e setorial, a fim de que o seu objetivo
supremo, o bem comum, se alcance, se mantenha e se assegure duradouramente.
Os órgãos do poder devem ser, todos eles, articulados para a consecução desse
objetivo. O futuro se prepara, mas com base em todos os ingredientes que consti­
tuem um povo, a sua form ação, a sua sociopsicologia, a sua história, as suas
vicissitudes e o seu êxito. Introduzido o plano na política de Estado e nas socie­
dades modernas, embora os Estados Unidos relutem em adotá-lo,31 os órgãos
de governo devem caber dentro de suas linhas, de sua concepção e de suas finali­
dades. Observando-se o governo americano, o mais bem sucedido no mundo
m oderno, vemos que sua organização é m uito mais simples do que a brasileira,
mas os Estados Unidos resistem ao estatismo. Serão os americanos os últimos
a tombar sob o socialismo. Seu secretário do Tesouro não tem afinidade de atri­
buições com o ministro da Fazenda do Brasil. Quem traça a política econômico-
-financeira dos Estados Unidos é o mercado, é a livre iniciativa, é a empresa. Nem
mesmo Banco Central tem os Estados Unidos, mas um organismo, o Sistema
Federal de Reserva, que não intervém no processo da moeda e do crédito. São,
porém, a exceção, os Estados Unidos, e, por esse fundamental m otivo, ponhamo-los
de lado. Devemos nos ocupar e preocupar com o Brasil.
A concentração de poderes no executivo, que se hipertrofiou,32 levou, natu­
ralmente, irresistivelmente, deterministamente a um para ou pré-socialismo, que
se tornará socialismo pleno, não se lhe opondo um paradeiro, pela reforma
política. Está certo R oberto de Oliveira Campos,33 afirmando que “ o Brasil é um
país cripto-sociaiista com retórica capitalista” . À medida que aumenta a eficiência
das empresas estatais, e elas oferecem mais vantagens aos tecnocratas, o perigo
do estatismo aumenta, e, por via de conseqüência, a concentração de poderes
no top o do Estado, fenôm eno este que se vem acentuando progressivamente,
de década em década, até se extremar depois de 1964. Basta os números citados
por “ V isão” : eram 322 as empresas públicas em 1964; em 1976 eram 521; hoje
não sabemos quantas são. O Estado não se lim itou a abrir setores prioritários,
a desbravar zonas economicamente fechadas, ainda, à exploração. É até mesmo

31 Otis L. Graham Jr. Toward a planned society. N ova Y o rk , O x fo rd University Press, 1976,
passim.
32 José Luís de Anhaia M ello. A hipertrofia do Executivo. Digesto Econôm ico, novembro-de-
zem bro d e 1977, passim.
33 In Visão, 3 de outubro de 1977.
OS Ó R G Ã O S D O PO D E R 207

comerciante, com a Interbrás; é banqueiro, é industrial em vários setores, é


detentor de 60% da economia nacional. A pirâmide administrativa se afunila,
estando no vértice o presidente, com os tecnocratas, enquanto os corpos interme­
diários faltam a uma estrutura democrática, a uma participação do povo nos
destinos da nação, isto é, nos seus próprios destinos. As maiores reformas intro­
duzidas na estrutura da administração no Brasil, depois de 1964, não tiveram
a audiência dos corpos intermediários, pois estão eles de tal maneira enfraquecidos,
que não se podem fazer ouvir, nem estão capacitados a atender aos dispositivos
constitucionais que estabelecem prazo fatal para a aprovação de projetos de lei
de procedência do executivo. Citemos a criação do Banco Central, a lei que
reformou o mercado de capitais, o sistema tributário e outras.
Se a história republicana oferece o exem plo do alheamento brasileiro do
“ self government” , apanágio dos povos de língua inglesa, com o advento da
tecnocracia e sua associação com o Estado, h oje34 em mãos de tecnocratas
militares, ainda mais longe ficamos dessa form a de participação. Reconhecemos
ter sido o Im pério governado por minorias, as elites dirigentes que se revesaram
no poder durante sessenta e sete anos, mas a capilaridade social abria o acesso
dos bens dotados à representação, as instituições democráticas permitiam o debate
das idéias, e a organização política, mais complexa, paradoxalmente, para mundo
menos com plexo, dava oportunidade ao Estado de atender a todas as necessidades
sociais. A sociedade não era rígida. Uma classe dirigente se form ou durante os
sessenta e sete anos do Im pério, ao qual é um erro palmar chamar-se de escra­
vocrata. A escravidão subsistiu até aos seus últimos meses, não, porém, com o um
regime, mas com o uma form a de exploração econômica, embora a custo eleva­
díssimo. O maior cronista do segundo reinado, Machado de Assis, dá-nos, com
raríssima acuidade, o panorama de sua época.3s Era aberta a sociedade imperial;
era permeável; era amplamente disponível à ascensão social. “ O único lugar
intangível é o do imperador; só o delírio permitia ocupá-lo sob o incitamento
da febre, no extrem o do ridícu lo” .36 Os órgãos do Estado funcionavam para
garantir ao povo a sua participação maior nos destinos do país. Se o poder supremo
do Estado não era acessível a ninguém, por barrá-lo a intangibilidade, os corpos
intermediários podiam lutar pela conquista de posições, e sempre acabavam
servindo à nação, com o a serviram durante a vigência da democracia coroada. Com
pequena população — 14.333.915 habitantes em 1890 —, uma econom ia agrária
e o desenvolvimento econôm ico retardado por uma série de fatores, que seria
longo estudar, e sairia, ademais, do plano deste livro, as classes sociais se inter­
penetraram, contra o esquema ignorado.no Brasil da época, concebido por Karl
Marx, o Im pério assentou sobre um sistema, com posto de órgãos de governo, que

14 Escrito no segundo semestre de 1977.


35
Raymundo Faoro. Machado de Assis - A pirâmide e o trapézio. São Paulo, Companhia
Editora Nacional, 1974, passim. Machado de Assis. Obras Completas, várias edições, passim.
16 Raymundo Faoro. Id., ib., p. 9.
208 O PO D E R M O D E R A D O R

teriam — reconhecemos ser esta uma espécie de jo g o futurológico de “ compte


à rebours” - capacidade suficiente para se adaptar à evolução do Brasil, acelerá-la
e, provavelmente, tamanha a sua plasticidade, antecipar o desenvolvimento que
está chegando com o sacrifício dos corpos intermediários, com o triunfo inegável
da tecnocracia e a solidão cada vez maior do poder, cujas decisões são tomadas
para o bem comum mas nem sempre com ele coincidem.
Estudando-se as Constituições de 1824 e a de 1891, verifica-se diferença
entre uma e outra, a com plexidade da primeira em face da segunda: a primeira
era mais completa do que a segunda. Façamos o confronto gráfico entre as duas
organizações e seus órgãos;

CONSTITUIÇÃO DO IMPÊRIO/1824 CONSTITUIÇÃO DA REPÜBLICA/1891

Foder moderador dinástico Presidente da República eleito


Conselho de Estado
Conselho de Ministros
Senado vitalício Senado tem porário
Câmara dos Deputados Câmara dos Deputados
Partidos políticos nacionais Partidos p olítico s estaduais
Supremo Tribunal de Justiça Supremo Tribunal Federal
Classe dirigente

As Constituições de 1934 e 1946 não alteraram a organização republicana.


A Constituição de 1937 a alteraria, mas com o não fo i cumprida, tendo Getúlio
Vargas preferido não organizar a administração de seu governo, por lhe ser mais
côm odo governar corn base no artigo 180, apenas foram criados os Departamentos
Administrativos, que participavam dos governos dos interventores nomeados
diretamente pelo presidente. A Constituição de 1934 instituiu dupla represen­
tação: classista e partidária, permitindo, ainda, candidatos avulsos; a Constituição
de 1946 consagrou o sistema partidário nacional. A Constituição de 1967 não
alterou essa organização política. As lacunas continuam a ser manifestas e sentidas,
lá nos referimos ao Conselho de Estado. O Conselho de ministros, com seu
presidente exercendo o poder executivo — Maurice Duverger denomina, por isso,
monarquia republicana o sistema — é outra falta. O Senado poderia ser vitalício
ou temporário. A vitaliciedade é garantia maior de independência dos corpos
intermediários.
Os partidos políticos do Império funcionaram; no período republicano
existiu uma mentalidade partidária, ao menos no P.R.P. Uma cúpula oligárquica
dirigiu o país durante trinta e seis anos. Quando ela se desentendeu, em 1929,
no episódio da escolha do sucessor de Washington Luís, cavou a sua própria
sepultura. Acabaria, certamente, não, porém, aos golpes de uma revolução fulm i­
nante. O perrepismo em São Paulo e os partidos estaduais com análoga deno­
minação impuseram o candidato único durante esse longo período, quebrado
apenas — repitamos, ainda, uma vez, - na Campanha Civilista, na sucessão de
OS Ó R G Ã O S D O PO D E R 209

Rodrigues Alves em 1919 — pois a Reação Republicana não saiu do embrião — e


em 1930. Mais do que o candidato único, criaram uma mentalidade, a do correli­
gionário fiel ao partido. Sua divisa, para assegurar a fidelidade, era cínica, mas
válida: “ Para os amigos tudo, para os indiferentes a justiça, para os inimigos nada” .
Com a queda do perrepismo e dos partidos republicanos, ou, mais precisa­
mente, com a vitória da revolução de 30 e a ascensão de Getúlio Vargas ao poder,
arruinou-se a classe dirigente que se formara durante a primeira República. Apesar
das atas falsas, das eleições fraudadas, do voto burlado, a política era uma carreira,
e se fazia da vereança à Câmara dos Deputados e ao Senado federal ou Senados
estaduais. Quando o p o lítico se destacava demasiado, pelo talento, saltava etapas,
passando da vereança à Câmara dos Deputados federais. Depois de 30 não mais
se form ou a classe dirigente. Eleitos ao acaso da compra do voto, do trabalho
pertinaz, de “ porta em porta” , com o aconselhava Jânio Quadros aos jovens
postulantes a cargos de mandatos; da demagogia, os deputados não se constituíram
até 1964 em corpos intermediários. Votaram milhares de leis as Câmaras eleitas
depois de 1930, mas deixaram de votar leis necessárias ao bem comum. O Brasil
dispõe de um rol de leis que são indispensáveis ao seu povo. Estes não têm , entre­
tanto, noção acerca do que sejam, nos corpos intermediários, os seus representantes.
Já fizem os, muitas vezes, com os dez mil alunos que tivemos nestes últimos anos,
pesquisa sobre o candidato ou candidatos nos quais votaram para as Câmaras.
Menos de 0,01% se lembrava dos nomes. Indagados se se consideravam represen­
tados sempre responderam com a negativa. Vê-se que a organização p olítica do
Brasil carece de complexidade adequada à complexidade do Estado contem po­
râneo, ao direito de serem os povos legitimamente representados e às flutuações
de opinião, quando os governos devem ser mudados para atenderem às suas
circunstâncias, enquanto a chefia de Estado deve se conservar inalterável. Se não
se criarem os órgãos de governo, mais complexos e completos, afirmamos —
julguem-nos, embora, pretenciosos — que seremos governados pela tecnocracia,
a qual se representa a si mesma, no máxim o à sua própria casta. Temos necessidade
de poder moderador, de Conselho de Estado, de Conselho de ministros, de Senado,
de Câmara dos Deputados — a propósito oferecemos alternativas em capítulo
subseqüente — e classe dirigente, com o a teve o Império, e, sob alguns aspectos,
a primeira República, com sua oligarquia, seu estamento político-burocrático e
o eleitorado fidelíssim o do Partido Republicano Paulista e de seus irmãos dos
Estados.
ni
o povo, a representação
nacional e o poder legítimo

Com o tudo o que é simples demais, o conceito do povo é quase indefinível.


Se o procurarmos no pensamento antigo e no contemporâneo, no medieval e no
moderno, vamos encontrar as maiores disparidades, e conflitos que não se resolvem,
para se chegar a um acordo. Segundo Maurice Blondel,1 povo designa, sem dis­
tinção de classes, funções, raças, todos os seres humanos que com põem uma
nação, e, ainda mais, todos quantos povoam e povoarão a terra, e que podem,
com eféito, formar uma sociedade imortal, uma cidade de seres racionais. É neste
sentido que temos a riqueza patriótica e os laços espirituais que devemos trans­
mitir às gerações futuras, com o uma tradição sempre acrescida e sempre m elho­
rada. Para Herman Heller, o povo é, também, uma realidade operante e operada,
c pertencer a um povo constitui o fato de que um ser mantém a conexão espiritual,
tradicional, de m odo vivo dentro de si mesmo.2 O povo é, portanto, uma neces­
sidade para o ser. Mas devemos ir mais longe na História. É preciso ultrapassar
a linha dos conceitos.
O poder, com todos os seus órgãos, os regimes, com todas as suas estruturas,
deve existir para o povo, respeitando-lhes os seus direitos. Por isso mesmo, cabe

1 Maurice Blondel. L u tte p ou r la civilisation et ph ilosophie de la paix. Paris, Flammarion,


1939, passim.
Herman Heller. Teoria d e lEstado. Op. cit., passim.
212 O PO D E R M O D E R A D O R

a questão: que é o povo? C om o o definimos? Nas Escrituras, povo tem o sentido


de nação, e, na maior parte das vezes, de nação eleita, ou o povo de Israel. “ O
A n tigo Testamento emprega diversos termos para designar o povo de Israel
com o realidade religiosa, sem que, no entanto, sejam sinônimos” . “ O povo,
com o unidade de homens que estão ligados entre si por mútua solidariedade de
sangue, língua, costumes, direito e história comum, se chama am (plural: am m im ).
Originariamente designa-se, por este termo, a associação do clã, o parentesco
tribal. Mas o term o também pode significar povo, em sentido mais amplo, pessoas
e também povos estranhos” . “ Portanto, no A n tigo Testamento o povo não é
uma realidade coletiva em que os indivíduos desaparecem inteiramente; mas o
particular não é um ‘individuum’ que só está interessado na própria salvação.
Assim não se pode aplicar a concepção vetero-testamentária da relação entre
povo e particular, nem o term o “ coletivismo” nem o de “ individualismo” , mas,
no m áxim o, o de “ solidarismo” .3 Já no N ovo Testamento, “judeus e gentios,
que aceitaram a fé no Cristo crucificado, estão reunidos com o o verdadeiro povo
de Deus.4 Na tradução dos Setenta, mais de duas mil vezes a palavra povo é empre­
gada, ora para indicar o p ovo de Israel, ora a nação. “ Eu vos tom arei por meu
povo, e serei o vosso Deus” ,s vem na tradução de Antonio Pereira de Figueiredo;
“ Et assumam vos mihi in populum, et ero vester Deus” , na B íb lia Sacra Juxta
Vulgatam Q em entinam .6 “ E vós sereis o meu reino sacerdotal, e uma nação
santa” . “ Et vos eritis mihi in regnum sacerdotale, et gens sancta” . “ E vos espa-
lhareijspor todos os povos” .7 É, com o se vê, a concepção santa de povo, oposta
a povos, ou nações, ou gentes, “ omnes gentes” . N a Epístola de São Paulo aos
Romanos, o povo são todos: “ E acontecerá isto: no lugar em que lhes fo i dito:
Vós não sois povo meu; ali serão chamados filhos de Deus vivo” .8
Na “ Cidade Antiga” o povo não teve lugar, com o lhe foi atribuído no
direito das gentes e, em geral, no direito das nações que se formaram das ruínas
do antigo Império Romano. As instituições públicas da Grécia e de Rom a, as
únicas que nos interessam, nesta brevíssima incursão pela origem do povo e de
seu significado histórico, sociológico e p olítico, consideravam as gentes menores,
os aristocratas, e faziam distinção de classes, não, evidentemente, no sentido que
Marx deu à palavra do século X IX , mas no estrito significado de uma sociedade
hierarquizada, para ter bom governo.9 Foi o cristianismo, que eliminou a diferença

3 J. Scharbért. “ Povo de Deus” . In Johannes B. Bauer .Dicionário de Teologia Bíblica. São


Paulo, Edições Loyola, 1973.
4 W. Warnach. Id., ib., verbete: “ Igreja” .
5 E xo. 6-7.
6 Desclée et Socii., Edit. Pont.
7 Deu. 4-27.
8 9-26.
9 A . Boxler. Précis des Institutions Publiques de Ia Grèce et de Rom e. Paris, V ic to r
Leco ffre, 1925, passim.
O PO VO , A R E P R E S E N T A Ç A O N A C IO N A L E O PO D E R LE GÍTIM O 213

entre gentios e judeus, pois todos eram igualmente filhos de Deus, cuja mensagem
veio introduzir mudanças profundas e extensas nas sociedades ainda subsistentes
quando se deu a Revelação. “ A vitória do cristianismo marca o fim da Cidade
Antiga. Com a nova religião completa-se a transformação social que vimos começar
seis ou sete séculos antes dela. Para sabermos com o os princípios e as regras
essenciais da política foram então modificadas, basta lembrar-nos que a antiga
sociedade fora constituída por uma velha religião, cujo dogma principal estabelecia
que cada deus protegia exclusivamente uma família ou uma cidade e só ela existia.
Era o tem po dos deuses domésticos e das divindades poliadas. Esta religião criara
o direito: as relações entre os homens, a propriedade, a sucessão, o processo, tudo
se encontrava regulado, não por princípios de eqüidade natural, mas pelos dogmas
dessa religião e atendendo às necessidades de seu culto. Fora também ela que
estabelecera um governo entre os homens: o do pai, na fam ília, o do rei, ou do
magistrado na cidade. Tudo procedia da religião, isto é, da opinião que o homem
formara da divindade. Religião, direito, governo, confundiam-se e eram a mesma
coisa sob três aspectos diversos” . “ . . . o Estado era uma comunidade religiosa,
o rei um p on tífice, o magistrado um padre, a lei uma fórmula santa; em que o
patriotismo era piedade, o e x ílio uma excomunhão; em que a liberdade individual
se desconhecia; em que o hom em estava subordinado ao Estado pela alma, pelo
corpo e pelos seus haveres; em que o ódio contra o estrangeiro era obrigatório;
om que a noção do direito e do dever, da justiça e do afeto se detinham nos
limites da cidade; em que a associação humana estava necessariamente encerrada
numa determinada circunferência, em volta dum printanado, e em que se não via a
possibilidade de fundar maiores sociedades” . “ Com o cristianismo, não só o senti­
mento religioso se reavivou, com o também tom ou uma expressão mais elevada
o menos material” . O cristianismo “ não era a religião doméstica de qualquer
liiinília, a religião nacional de qualquer cidade, nem de qualquer raça. Não pertencia
n uma casta, nem a uma corporação” . Para o cristianismo todos os povos eram
Iguais.10
Graças a essa imensa revolução, “ a política se libertou definitivamente das
ONlritas regras que a religião antiga lhe traçara” . “ Os homens puderam govemar-se
Nem se curvar aos usos sagrados, sem tomar conselhos dos auspícios, ou dos
oráculos, sem conformar todos os seus atos às crenças e necessidades do
culto” .11 O povo emergiu, portanto, com o cristianismo, e, desde a Revelação,
ovoluiu para uma participação m aior nos negócios públicos. Toynbee acentua
que nas cidades antigas a democracia era direta. Os cidadãos participavam da
vida pública, mas eram minúsculos os centros urbanos. O eleitor poderia ir de
mim cidade para outra, a pé, num dia de jornada.12 Na Idade Média, reconhe­
ceram-se aos povos direitos que, mais tarde, não obstante promessas e códigos,

1,1 1'listel de Coulanges. La O t^ Antique. Paris, Hachette, 1948, p. 456 e ss.


" Id., ib.
13 Arnold J. T oynbee. A Study o f History. Londres, O x fo rd University, 1954, IX , p. 538.
214 O PO DER M O D E R A D O R

lhes foram e continuam sendo negados. O povo gozava, então, de liberdade


política, que, em várias nações, veio a ser ficção, nos dias de hoje, sob o aparato do
Estado. “ A primeira e mais importante form a de concepção de liberdade política na
Idade Média era, pois, a supremacia do direito, não enquanto criado pelo príncipe ou
qualquer outro legislador, mas com o expressão dos hábitos e costumes da vida em
comunidade; é isto que torna um absurdo pensar que na Idade Média o direito fo i
criado pela vontade do monarca, absurdo sustentado apenas por alguns romanistas,
absortos no estudo do Corpus Juris Civilis, esquecendo-se do mundo em que
viviam .13
N o monumental levantamento a que procederam os irmãos Carlyle sobre
a história da teoria política medieval no Ocidente, o povo aparece com o fonte
de lei, devendo o chefe do governo exercer os seus poderes consoante os interesses
populares. “ Era do povo que o príncipe derivava sua autoridade” .14 Nos séculos
seguintes, mantém-se a doutrina, o costume é observado e as normas do direito
consuetudinário asseguram a solidariedade entre o príncipe e o povo. As Cortes
de Castela, os Estados Gerais em França, o Parlamento na Inglaterra estabelecem
a tradição das instituições representativas. Aduzem os irmãos Carlyle que até
o século X I V não havia discrepâncias na doutrina, segundo a qual a autoridade
procedia de Deus através da comunidade,15 e quando concluem o excepcional
trabalho, cuja redação lhes tom ou quarenta anos, sublinham que o pensamento
p o lítico da Idade Média — a Idade da form ação das nações sob os governos
monárquicos, cristãos, impregnados de fé - fo i dominado, fundamentalmente,
por um princípio, o de que a justiça deve sustentar a sociedade p olítica.16 Pode-se
argumentar, anacronicamente, que na Idade Média, segundo a visão e o inventário
de seu pensamento pelos irmãos Carlyle, não havia povo, no sentido em que o
entendemos neste século. Apresentamos argumento em contrário: aquele era
o autêntico povo, pela comunidade solidária com o monarca, os corpos interme­
diários e o direito de resistência reconhecido pela religião católica.
Nesta quadra histórica de tantas invenções, de tantos estudos, de tantas
pesquisas, de tantas teses, o conceito de povo acabou se obscurecendo, como
diz Pitirin A . Sorokin,17, e, na realidade, com pouquíssimas exceções, entre as
quais, infelizm ente, não incluímos o Brasil do presente, ou deste século, os seus
supostos representantes não o representam, pelo simples m otivo de que o sistema
representativo é falho, defeituoso, anômalo e iníquo. Voltam os, portanto, ao
nosso ritom elo: que é novo? Jacques Maritain coloca a mesma questão.18 Mas
endossa a famosa expressão de Lincoln no discurso de Gettysburg: “ . . . que o

13 A. J. Carlyle. La libertad política. M éxico, F on do de Cultura Económica, 1942, p. 27.


14 Op. cit., V I, p. 13.
15 Op. cit., V I, p. 128.
16 Op. cit., p. 505.
17 Society, C ulture and Personality. Nova Y o rk , Harper, 1947, p. 244.
18 L 'H om m e et l ’État. Op. cit., p. 23.
O PO VO , A R E P R E S E N T A Ç Ã O N A C IO N A L E O PODER LE G ÍTIM O 215

governo do povo, pelo povo, para o povo não perecerá na terra” , expressão
ambígua com a qual não concordamos. Subsiste, portanto, a dúvida sobre o senti­
do da palavra povo, o conceito ao qual devemos ficar adstritos. Quem o distorceu,
mais do que nenhum outro publicista, fo i Sieyès, o grande demagogo da revolução
francesa. Pertencer ao Terceiro Estado na França do A n tigo Regime não cons­
tituía uma nódoa, e se deixamos de lado o seu exem plo, baldeando-nos para
ii Inglaterra e para os reinos da Europa, verificamos que não prevaleciam neles
iis idéias difundidas pelo “ partido intelectual” francês, no longo processo de
mnolecimento das instituições monárquicas, que viriam, afinal, a cair em 1789,
o a serem definitivamente extintas com a irrupção e ascensão do bonapartismo,
o as mudanças revolucionárias introduzidas pelo seu regime na estrutura do poder
o da sociedade.19 O panfletário Sieyès pergunta: “ Que é o Terceiro Estado? Tudo,
porém um tudo travado e oprimido. Que seria a ordem privilegiada? Tudo, porém
um tudo livre e florescente. Nada pode marchar sem ele, e tudo iria infinitamente
melhor sem os outros. Não basta mostrar que os privilegiados, longe de serem úteis
A nação, não podem senão debilitá-la e danificá-la; é preciso provar agora que a
ordem da nobreza não entra na organização social; que poderá ser uma carga
para a nação, sem form ar parte dela.” 20
Não era essa a realidade. Todas as ordens do reino de França se entendiam
bem, enquanto não as intoxicou, até à revolta, o “ partido intelectual” . “ Existiam
estados na maioria das províncias da França, isto é, cada uma delas era adminis­
trada sob o governo do rei pelas gentes dos três estados, com o então se dizia, o
que se deve entender de uma assembléia composta de representantes do clero,
da nobreza e da burguesia” .21 Sieyès era um simples escriba a serviço da burguesia,
lissa a verdade. Mas não vamos fazer todo um longo percurso, já fartamente percor-
ildo, por um sem número de estudiosos, alguns com raro brilho; o que nos interessa
6 o conceito de povo, o qual, com o lembra Jacques Maritain, “ procede de uma
Nlngular diversidade de sentidos que se m istu raram ” .22 A Declaração da Indepen­
dência teve influência decisiva na difusão de um determinado conceito de povo,
0 que iria acender o rastilho da revolução francesa, e, já no século X IX , o rastilho
de todas as revoluções emancipadoras do N ovo Mundo. N o preâmbulo da Decla-
1ação, seus signatários proclamam o direito de consentimento do povo aos governos,
o acrescentam, que “ quando qualquer form a de governo se torna destrutiva destes
fins (já explicitados antes), o povo tem o direito de alterá-lo ou aboli-lo, insti-
luindo novo governo” . Haviam, com o se vê, evoluído o conceito e o sentido de
povo. A burguesia se emancipara e urdira a queda do regime sob o qual, apesar
de seus ataques, lhes proporcionara boa posição, enriquecimento, e participação

I * Daniel Mornet. Les origines intelectuelles de la révo lu tion française. Paris, Arm and Colin,
1933, passim.
Sieycs. Que és el Tercer Estado? Buenos Aires, Editorial Americales, 1943, p. 30.
II Alexis de Tocqueviile. L ’A n cie n régime et la révolution. Paris, Gallimard, 1967, p. 325.
'' L 'H o m m e et l ’É tat. Op. cit., p. 24.
216 O PODER MODERADOR

social no mesmo n ível dos outros dois estados, no quadro das instituições repre­
sentativas da França, já que o fenôm eno revolucionário, na sua origem, era,
principalmente, francês, ou quase exclusivamente francês, pois na Am érica a
form ação dos Estados Unidos fo i obra de negociantes, entre os quais se contava
Washington.23
C om a ascensão de George III ao trono, P itt assumiu o cargo de primeiro
ministro, mas, por m otivo de saúde, passou o cargo a Charles Townshend, com
o qual se iniciou a reação dos comerciantes das colônias americanas contra o
governo britânico. O Stamp A c t pôs em m ovim ento a revolução, que iria, final­
mente, culminar na batalha de Y orktow n. Da proclamação de 1763 ao Stamp
A c t de 1765 medearam dois anos, em que os colonos e os súditos britânicos da
Am érica se uniram contra o governo de George III. N ão se deve argumentar —
tantas vezes o dissemos - com as condicionais em História, mas se nos dermos
à teoria dos jogos, podemos fazer uma viagem retrospectiva aos antecedentes
da revolução americana, e não será exagerado chegar-se à conclusão que, prova­
velm ente, sem a Proclamação de 1763, contra a qual os colonos protestaram,
argüindo-a de violação das Charters, sem os Enforcem ent o f Navigation Acts,
Sugar A c t e Currency A c t, de 1764, os colonos não teriam protestado contra
o uso dos éditos de assistência, e, finalmente, sem os Quartering A c t e o Stamp
A c t, o Declaratory A ct, o Townshend A ct e a suspensão da Assembléia de Nova
Y o rk , que provocaram as manifestações públicas contra o governo de George III,
m uito provavelmente os Estados Unidos teriam evoluído para uma situação
análoga à do Canadá, e poderíam os supor que manteriam os laços de chefia de
Estado com a monarquia britânica, tornando-se uma nacionalidade da Common-
wealth. Mas estes são, reconhecemos, jogos gratuitos. O que interessa é a evolução
do povo, e com o adquire ele consciência de sua personalidade.
A revolução francesa é, portanto, mais do que a americana, um exem plo
de insurreição do povo. De 14 de julho a 18 brumário, passando pelo Terror,
o povo se entregou à embriaguez da massa, destruindo as raízes da antiga França.
Nesse período, se form ou a ideologia revolucionária, da qual Antoine Destutt
de Tracy fo i, não propriamente o criador, mas o codificador,24 ideologia que,
não obstante Daniel Bell ter passado, em tese, atestado de óbito a muitas delas,
ainda se manifesta resistente, sobretudo no Terceiro Mundo, ou com o diz o
autor, “ enquanto as velhas ideologias do século dezenove e os antigos debates
intelectuais se esgotaram, os Estados nascentes da Á frica e da Ásia estão foijan do,
para seus próprios povos, ideologias de atração diversa. São as ideologias da
industrialização, da modernização, do panarabismo, da cor e do nacionalismo” .25
Dos últimos anos do século X V III aos primeiros do século X IX , forjou-se

23 Irwuin Edman. Fountainheads o f Freedom . R eynal & Hitchock, 1941, passim.


24 Hans Barth. Verdad y ideologia. M éxico, F on do de Cultura Económ ica, 1951, passim,
tradução castelhana.
25 Daniel Bell. The E n d o f Ideology . N ova York , Free Press, 1960, p. 500 e ss.
O POVO, A REPRESENTAÇAO NACIONAL E O PODER LEGÍTIMO 217

no Brasil a idéia de povo, com o patrimônio histórico a que se refere Jacques


Maritain26 para chegar até a independência. N o caso específico do Brasil, não era
a consciência burguesa que se formava, com o a estudou Bemhard Groethuysen,27
mas a consciência da nacionalidade. O germe do futuro Brasil já começava a
trabalhar as consciências, e esse mistério sociológico, psicológico, p o lític o , moral,
que é o povo, com eçou a se corporificar, adquirindo, cada vez mais, noção de sua
unidade. Na inconfidência Mineira não houve, propriamente, associação de povo
com os conspiradores. Vamhagen reduz à sua justa dimensão a tentativa abortada
de emancipar o Brasil, sob a chefia de Tiradentes. Para o visconde de Porto
Seguro,28 não houve conjurados ou conspiradores ajuramentados, não fo i a
resolução precedida de conciliábulos tenebrosos, conluiados em form a, pois as
reuniões se faziam a portas e janelas abertas. Os inconfidentes tomavam algum
cuidado quando aparecia um estranho. N o mais falavam escancaradamente dos
planos que estavam engendrando, sem se darem conta — é de se presumir — que
poderiam ir parar no patíbulo ou no degredo. Alguns deixaram Tiradentes, outros
se recolheram à discrição. Só Tiradentes continuou, segundo Varnhagen, com
sua ingenuidade, na arregimentação de aderentes à sua idéia. O povo estava longe
dos mineiros da Inconfidência, embora possamos, com Georges Burdeau, considerar
elástica a noção que lhe tenhamos.29
F oi um imponderável único a transferência da fam ília real para o Brasil,
e o vento da Am érica, com o qual se fundiu o vento da França, que suscitou a
idéia de povo, mas um povo não com o o devemos entender hoje, já na rasoura
dc massa, segundo a distinção de Pio X II, na Mensagem de Natal de 1944. Nesse
documento de rara importância para a conceituação de povo, em nossos dias,
n o X II definiu-o em relação à massa. “ Povo ou multidão amorfa, ou, com o se
costuma dizer, ‘massa’ , são dois conceitos diversos. O povo se move e vive por
vida própria; a massa é por si mesma inerte, e não pode ser movida, senão de fora.
0 povo vive da plenitude da vida dos homens que o com põem , cada um dos quais —
em seu lugar e a seu m odo - é uma pessoa convencida da própria responsabilidade
e da própria convicção. A massa, ao contrário, espera o impulso de fora, fácil
instrumento de quem desfruta o instinto ou a impressão, pronta a seguir, sempre
c sempre, hoje esta, amanhã aquela bandeira” . “ Em povo digno de tal nom e, o
cidadão sente em si mesmo a consciência de sua personalidade, de seus deveres
o de seus direitos, da própria liberdade, conjuntamente com a liberdade e a digni­
dade de outrem” .30

1,1 Raison et Raisons. Paris, E glo ff, p. 241.


17 La form a cion de la conciencia burguesa. M éxico, F on do de Cultura Económ ica, 1943,
passim.
3K História Geral d o Brasil. São Paulo Melhoramentos, s/d, 3? edição, p. 399 e ss.
29 Georges Burdeau. Traité de Science P olitiq u e. Op. cit., IV , p. 101 e ss.
Pio X II. D iscorsi e mdiomessaggi. Tipografia Poligiotta Vaticana, V I, Mensagem de Natal
dc 1944.
218 O PO DER M O D E R A D O R

Era insignificante a população do Brasil nos primeiros vinte anos do século


X IX . Não chegava a cinco milhões de habitantes. Mas os seus principais centros
de decisão manifestavam, ativamente, a idéia de povo. Eram as “ cidades gregas”
do Brasil, com suas elites intelectuais, as suas leituras, as suas reações à insolência
das Cortes de Lisboa, o seu apego à idéia nova de Constituição, lei escrita e constitu­
cionalismo. Os centros de decisão foram , sempre, os que mudaram o curso da
História, Paris, na França, Filadélfia da Independência nos Estados Unidos, Londres
na Inglaterra, Buenos Aires na Argentina, Berlim na Alemanha bismarkiana, Roma
na Itália, Lisboa e Porto em Portugal, Madri na Espanha. N o Brasil, os principais
centros de decisão eram R io de Janeiro, São Paulo, Salvador, Porto Alegre, Ouro
Preto e R ecife. Sobressaía, porém, o R io de Janeiro, embora R ecife tivesse sido
o fo c o da revolução de 1817, e Salvador fervesse de entusiasmo pela idéia da
Independência. O povo não era, portanto, no caso, um ente completamente
abstrato, com o quer Georges Burdeau. Existia, ativamente, sobretudo depois
que o rei fo i com pelido a regressar a Lisboa e a reassumir o trono, já com o um
chefe de Estado sem autoridade, que, poucos anos depois, seria assassinado. O
vivo, atuante centro de decisão fluminense, apoiado por outro, o paulista, e pelos
demais, configuraram sociologicamente o povo, e lhe infundiram a idéia de uma
concepção jurídica de Estado independente, de cujo sistema ele seria a peça funda­
mental do aparelho p olítico.
D. Pedro I compreendeu, mais por intuição do que por intelecção, que a
oportunidade não poderia e não deveria perder-se. Seu grande, seu incomensurável
m érito fo i o de ter agarrado a oportunidade pelos cabelos, dominando-a. Condu­
ziu o processo da Independência, sob sua inteira liderança, poupou o Brasil da
fragmentação — hipótese anacrônica em nossos dias mas viável na época —, deu-lhe
um governo de continuidade, não com o nas colônias espanholas da Am érica,
de rompimento com os laços da m etrópole pela inauguração de nova chefia, e
instaurou o regime que iria assegurar ao Brasil um exem plo único na Am érica,
de pleno funcionamento de instituições adotadas sem experiência precedente,
mas assimiladas, perfeitamente, pela elite dirigente que somente o Im pério poderia
criar. Os antecedentes da Independência se apoiaram, todos, no povo brasileiro,
a cuja consciência D. Pedro apelou em seus manifestos e suas proclamações. Em
12 de janeiro de 1822, o príncipe regente se dirige ao povo do R io de Janeiro,
recomendando-lhe união e tranqüilidade. Sua proclamação inicia-se com estas
palavras: “ Quando a ,causa pública e a segurança nacional exigem que se tom em
medidas tão imperiosas com o as há pouco tomadas por mim, é obrigação do povo
confiar no governo. Habitantes desta província, a representação por vós respeitosa­
mente levada à minha real presença, e por m im aceita de tão bom grado, está
tão longe de ser um princípio de separação, que ela vai unir com laços indissolúveis
o Brasil a Portugal” .31 Estava iludido o príncipe regente. As Cortes de Lisboa tinham,

31 Paulo Bonavides e R. A . Am ai ai Vieira. Textos Políticos da História do Brasil. Imprensa


Universitária do Ceará, cf. para os manifestos e proclamações.
O PO VO , A R E P R E S E N T A Ç Ã O N A C IO N A L E O PODER LE G IT IM O 219

coletivamente, com o um corpo só, outra intenção, relativamente ao Brasil. Em


22 de setembro do mesmo ano, consumou-se o rom pim ento, por carta dirigida
a D. João V I. Com data de 22 de outubro de 1822, os deputados Cipriano Barata
de Alm eida, Francisco Agostinho Gomes, José Lins Coutinho, A n tôn io Manuel
da Silva Bueno e D iogo A n tôn io F eijó mandaram, de Falmouth, um manifesto
sobre os m otivos que os levaram a sair de Portugal e se declararam contra as Cortes,
por estarem fiéis à sua pátria, o Brasil. N o manifesto, por m eio do qual, em 6
de agosto de 1822, se dirigiu aos governos das nações amigas, disse D. Pedro:
“ Desejando Eu, e os Povos, que Me reconhecem com o Seu Príncipe Regente,
Conservar as relações políticas, e comerciais com os Governos, e Nações Amigas
deste Reino, e continuar a merecer-lhes a aprovação e estimação, de que se fez
credor o caráter Brasileiro; Cumpre-Me expor-lhe sucinta, mas verdadeiramente
a série de fatos e m otivos, que Me tem obrigado a anuir à vontade geral do Brasil,
que proclama à face do Universo a sua Independência política; e quer como
Reino Irmão, e com o Nação grande e poderosa, conservar ilesos e firmes seus
imprescritíveis direitos, contra os quais Portugal sempre atentou, e agora mais
do que nunca, depois da decantada Regeneração política da Monarquia pelas
Cortes de Lisboa” .
“ Quando por um acaso se apresentara pela vez primeira esta rica e vasta
região Brasílica aos olhos do venturoso Cabral, logo a avareza e o proselitismo
religioso, móveis dos descobrimentos e Colônias modernas, se apoderaram dela
por meio de conquista; e leis de sangue, ditadas por paixões, e sórdidos interesses,
firmaram a tirania Portuguesa. O indígena bravio, e o C olono Europeu foram
obrigados a trilhar a mesma estrada da miséria e escravidão. Se cavavam o seio
de seus montes para deles extraírem o ouro, leis absurdas, e o Quinto vieram
logo esmorecê-los em seus trabalhos apenas encetados: ao mesmo tem po que o
Estado Português com sôfrega ambição devorava os tesouros, que a benigna Natu­
reza lhes ofertava, fazia também vergar as desgraçadas Minas sob o peso do mais
odioso dos tributos, da Capitação. Queriam que os Brasileiros pagassem até o
ar que respiravam, e a terra que pisavam. Se a indústria de alguns homens mais
ativos tentava dar nova form a aos produtos do seu solo, para com eles cobrir
a nudez de seus filhos, leis tirânicas o empediam, e castigavam estas nobres
tentativas. Sempre quiseram os Europeus conservar este rico País na mais dura
e triste dependência da M etrópole; porque julgavam ser-lhes necessário estancar,
ou pelo menos empobrecer a fonte perene de suas riquezas. Se a atividade de
algum C olono oferecia a seus Concidadãos, de quando em quando, algum novo
ramo de riqueza rural, naturalizando vegetais exóticos, úteis, e preciosos, impostos
onerosos vinham logo dar cabo de tão felizes começos. Se homens empreendedores
ousavam mudar o curso de caudalosos ribeirões, para arrancarem de seus álveos
os diamantes, eram logo impedidos pelos agentes cruéis do m onopólio, e punidos
por leis inexoráveis. Se o supérfluo de suas produções convidava e reclamava a
troca de outras produções, estranhas, privando o Brasil do mercado geral das Nações,
e por conseguinte da sua concorrência, que encareceria as compras, e barataria
as vendas, nenhum outro recurso lhe restava senão mandá-las aos portos da Metró-
220 O PO DER M O D E R A D O R

pole, e estimular assim cada vez mais a sórdida cobiça e prepotência de seus tiranos.
Se finalmente o Brasileiro, a quem a próvida Natureza deu talentos não vulgares,
anelava instruir-se nas Ciências e nas Artes para melhor conhecer os seus direitos,
ou saber aproveitar as preciosidades naturais com que a Providência dotara o
seu país, mister lhe era las mendigar a Portugal, que pouco as possuía, e de onde
muitas vezes lhe não era perm itido regressar” .
“ Tal fo i a sorte do Brasil por quase três séculos; tal a mesquinha política,
que Portugal, sempre acanhado em suas vistas, sempre fam into e tirânico, ima­
ginou para cimentar o seu dom ínio, e manter o seu factício esplendor. Colonos
e indígenas, conquistados e conquistadores, seus filhos e os filhos de seus filhos,
tudo fo i confundido, tudo ficou sujeito a um anátema geral. E porquanto a
ambição do poder, e a sede de ouro são sempre insaciáveis e sem freio, não se
esqueceu Portugal de mandar continuamente Bachás desapiedados, magistrados
corruptos, e enxames de agentes fiscais de toda a espécie, que no d elírio de suas
paixões e avareza despedaçavam os laços da m oral assim pública, com o domés­
tica, devoravam os mesquinhos restos dos suores e fadigas dos habitantes, e dilace­
ravam as entranhas do Brasil, que os sustentava e enriquecia, para que reduzidos
à última desesperação seus povos, quais submissos Muçulmanos, fossem em romaria
à nova Meca comprar com ricos dons e oferendas uma vida, bem que obscura
e lânguida, ao menos mais suportável e folgada. Se o Brasil resistiu a esta torrente
de males, se medrou no m eio de tão vil opressão, deveu-o a seus filhos fortes e
animosos, que a Natureza tinha talhado para gigantes, deveu-o aos benefícios
dessa boa mãe que lhes dava forças sempre renascentes para zombarem dos
obstáculos físicos e morais, que seus ingratos pais e irmãos opunham acinte-
mente ao seu crescimento e prosperidade” .
“ Porém o Brasil, ainda que ulcerado com a lembrança de seus passados
infortúnios, sendo naturalmente bom e honrado, não deixou de receber com
inexplicável jú bilo a Augusta Pessoa do Senhor D. João V I, e a toda a Real
Fam ília. F ez ainda mais: acolheu com braços hospedeiros a Nobreza e Povo que
emigraram acossados pela invasão do Déspota da Europa — Tom ou contente sobre
seus ombros o peso do Trono de Meu Augusto Pai — Conservou com esplendor
o Diadema que Lhe cingia a Fronte. - Supriu com generosidade e profusão as
despesas de uma nova Corte desregrada — e, o que mais é, em grandíssima distância,
sem interesse algum seu particular, mas só pelos simples laços de fraternidade,
contribuiu também para as despesas da guerra, que Portugal tão gloriosamente
tentara contra os seus invasores. E que ganhou o Brasil em paga de tantos sacri­
fícios? A continuação dos velhos abusos, e o acréscimo de novos, introduzidos,
parte pela imperícia, e parte pela imoralidade e pelo crime. Tais desgraças clamavam
altamente por uma pronta reform a de Governo, para o qual o habilitavam o
acréscimo de luzes, e os seus inauferíveis direitos, com o homens que formavam
a porção maior e mais rica da Nação Portuguesa, favorecidos pela Natureza na
sua posição geográfica e central no m eio do G lobo — nos seus vastos portos e
enseadas — e nas riquezas naturais do seu solo; porém sentimentos de lealdade
excessiva, e um extremado amor para com seus irmãos de Portugal embargaram
O PO VO , A R E P R E S E N T A Ç Ã O N A C IO N A L E O PODER LE G ITIM O 221

seus queixumes, sopearam sua vontade, e fizeram ceder esta palma gloriosa a
seus pais e irmãos da Europa” .
“ Quando em Portugal se levantou o grito da Regeneração P olítica da
Monarquia, confiados os Povos do Brasil na inviolabilidade dos seus direitos, e
incapazes de julgar aqueles seus irmãos diferentes em sentimentos e generosidade,
abandonaram a estes ingratos a defesa de seus mais sagrados interesses, e o cuidado
da sua completa reconstituição; e na melhor fé do mundo adormeceram tranqüilos
à borda do mais terrível precipício. Confiando tudo da sabedoria a justiça do
Congresso Lisbonense, esperava o Brasil receber tudo o que lhe pertencia por
direito. Quão longe estava então de presumir" que este mesmo Congresso fosse
capaz de tão vilmente atraiçoar suas esperanças e interesses; interesses que estão
estreitamente enlaçados com os gerais da N ação!”
“ Agora já conhece o Brasil o erro em que caíra; e se os Brasileiros não
fossem dotados daquele generoso entusiasmo, que tantas vezes confunde fósforos
passageiros com a verdadeira luz da razão, veriam desde o primeiro Manifesto
que Portugal dirigira aos Povos da Europa, que um dos fins ocultos da sua apre­
goada Regeneração consistia em restabelecer astutamente o velho sistema Colonial,
sem o qual creu sempre Portugal, e ainda hoje o crê, que não pode existir rico e
poderoso. N ão previu o Brasil que seus Deputados, tendo de passar a um País
estranho e arredado — tendo de lutar contra preocupações e caprichos inveterados
da M etrópole — faltos de todo apoio pronto de amigos e parentes, decerto haviam
de cair na nulidade em que ora o vemos; mas foi-lhe necessário passar pelas duras
lições da experiência para reconhecer a ilusão das suas erradas esperanças” .
“ Mas merecem desculpa os Brasileiros, porque, almas cândidas e generosas
muita dificuldade teriam de capacitar-se que a gabada Regeneração da Monarquia
houvesse de começar pelo restabelecimento do odioso sistema Colonial. Era mui
difícil, e quase incrível, conciliar este plano absurdo e tirânico com as luzes e
liberalismo que altamente apregoava o Congresso Português! E ainda mais incrível
era, que houvesse homens tão atrevidos, e insensatos que ousassem, com o depois
Direi, atribuir à vontade e Ordens de Meu Augusto Pai El-Rei o Senhor D. João V I,
a quem o Brasil deveu a sua Categoria de Reino, querer derribar de um golpe
o mais belo Padrão que o há de eternizar na História do Universo. E incrível por
certo tão grande alucinação; porém falam os fatos, e contra a verdade manifesta
não pode haver sofismas” .
“ Enquanto Meu Augusto Pai não abandonou, arrastado por ocultas e
pérfidas manobras, as praias do R io de Janeiro para ir desgraçadamente habitar
de novo as do velho Tejo, afetava o Congresso de Lisboa sentimento de fraternal
igualdade para com o Brasil, e princípios luminosos de recíproca justiça; decla­
rando form alm ente no art. 21 das Bases da Constituição que a Lei fundamental,
que se ia organizar e promulgar, só teria aplicação a este Reino se os Deputados
dele, depois de reunidos, declarassem ser esta a vontade dos Povos que represen­
tavam: Mas qual fo i o espanto desses mesmos Povos, quando viram, em contradição
àquele artigo, e com desprezo de seus inalienáveis direitos, uma fração do Congresso
geral decidir dos seus mais caros interesses! quando viram legislar o partido dom i­
222 O PO D E R M O D E R A D O R

nante daquele Congresso incom pleto e im perfeito sobre objetos de transcendente


importância, e privativa competência do Brasil, sem a audiência sequer de dois
terços dos seus Representantes!”
“ Esse partido dominador, que ainda hoje insulta sem pejo as luzes, e probi­
dade dos homens sensatos e probos que nas Cortes existem, tenta todos os meios
infernais e tenebrosos da Política para continuar a enganar o crédulo Brasil com
aparente fraternidade, que nunca morara em seus corações; e aproveita astuta­
mente os desvarios da Junta Governativa da Bahia (que ocultamente promovera)
para despedaçar o sagrado nó que ligava todas as Províncias do Brasil à Minha
Legítim a e Paternal Regência? Como ousou reconhecer o Congresso naquela junta
facciosa legítim a autoridade para cortar os vínculos políticos da sua Província,
e apartar-se do centro do sistema a que estava ligada, e isto ainda depois do jura­
m ento de Meu Augusto Pai à Constituição prometida a toda Monarquia? Com
que direito pois sancionou esse Congresso, cuja representação Nacional então
só se limitava à de Portugal, atos tão ilegais, criminosos, e das mais funestas conse­
qüências para todo o Reino Unido? E quais foram as utilidades que daí vieram
à Bahia? O vão e ridículo nome de Província de Portugal; e o pior é, os males
da guerra civil e da anarquia em que hoje se acha submergida por culpa do seu
primeiro Governo, vendido aos Demagogos Iisbonenses, e de alguns homens
deslumbrados com idéias anárquicas e republicanas. Por ventura ser a Bahia
Província do pobre e acanhado Reino de Portugal, quando assim pudesse conser­
var-se, era mais do que ser uma das primeiras do vasto e grandioso Im pério do
Brasil? Mas eram outras as vistas do Congresso. O Brasil não devia mais ser Reino;
devia descer do trono da sua categoria; despojar-se do manto Real da Sua Majes­
tade, depor a Coroa e o Cetro, e retroceder na Ordem política do Universo, para
receber novos ferros, e humilhar-se com o escravo perante Portugal” . Prossegue
D. Pedro o seu libelo contra as Cortes de Lisboa, e o que se pode, ainda hoje,
sem anacronismo, qualificar com o ignóbil conduta, em relação ao Brasil, e conclui:
“ Em tamanha e tão sistemática série de desatinos e atrocidades, qual deveria ser
o comportamento do Brasil? Deveria supor acaso as Cortes de Lisboa ignorantes
de nossos direitos e conveniências? Não, por certo: porque ah há homens, ainda
mesmo dentre os facciosos, bem que malvados, não de todo ignorantes. Deveria
o Brasil sofrer, e contentar-se somente com pedir humildemente o remédio de
seus males a corações desapiedados e egoístas? N ão vê ele que mudados os
Déspotas continua o Despotismo? Tal comportamento, além de inepto e deson­
roso, precipitaria o Brasil em um pélago insondável de desgraças; e perdido o
Brasil está perdida a Monarquia” .
“ Colocado pela Providência no m eio deste vastíssimo e abençoado País,
com o Herdeiro, e Legítim o Delegado d ’El-Rei Meu Augusto Pai, é a primeira
das minhas obrigações não só zelar o bem dos Povos Brasileiros; mas igualmente
os de toda a Nação, que um dia devo Governar. Para cumprir estes Deveres Sagra­
dos, Anui aos votos das Províncias que Me pediram não as abandonasse: e
Desejando acertar em todas as Minhas Resoluções, Consultei a opinião pública
dos Meus Súditos, e F iz Nom ear e Convocar Procuradores Gerais de todas as
O PO VO , A R E P R E S E N T A Ç Ã O N A C IO N A L E O PO D E R LE G ÍTIM O 223

Províncias para Me aconselharem nos negócios de Estado e da sua comum utili­


dade. Depois para lhes dar uma nova prova da Minha sinceridade e A m or, A ceitei
o títu lo e encargos de Defensor Perpétuo deste Reino, que os Povos Me confe­
riram: E finalmente vendo a urgência dos acontecimentos, e ouvindo os votos
gerais do Brasil que queria ser salvo, Mandei Convocar uma Assembléia Constituinte
e Legislativa que trabalhasse a bem da sua sólida felicidade. Assim requeriam
os Povos, que consideram a Meu Augusto Pai e R ei privado da Sua lib erd ad e,
e sujeito aos caprichos desse bando de facciosos que domina nas Cortes de Lisboa,
das quais seria absurdo esperar medidas justas e úteis aos destinos do Brasil, e ao
verdadeiro bem de toda a Nação Portuguesa” .
“ Eu seria ingrato aos Brasileiros — seria perjuro às Minhas Promessas —
e indigno do Nom e de — Príncipe Real do Reino Unido de Portugal, Brasil, e
Algarves — se obrasse de outro m odo. Mas Protesto ao mesmo tem po perante
Deus e à face de todas as Nações Amigas e Aliadas que não Desejo cortar os laços
de união e fraternidade, que devem fazer de toda Nação Portuguesa um só T od o
P olítico bem organizado. Protesto igualmente que salva a dívida e justa reunião
de todas as partes da Monarquia debaixo de um só Rei, com o Chefe Supremo
do Poder Executivo de toda a Nação. Hei de defender os legítim os direitos e a
Constituição futura do Brasil, que Espero seja boa e prudente, com todas as
Minhas Forças, e à custa do Meu próprio sangue, se assim fo r necessário” .
“ Tenho exposto com sinceridade e concisão aos Governos e Nações, a quem
Me dirijo neste Manifesto, as causas da final resolução dos Povos deste Reino.
Se El-Rei o Senhor D. João V I, Meu Augusto Pai, estivesse ainda no seio do
Brasil, gozando de Sua Liberdade e Legítim a Autoridade, decerto Se Comprazeria
com os votos deste P ovo leal e generoso; e o Im ortal Fundador deste Reino, Que
já em fevereiro de 1821 chamara ao R io de Janeiro Cortes Brasileiras, não Poderia
deixar neste m om ento de Convocá-las do mesmo m odo que Eu agora Fiz. Mas
achando-se o nosso R ei Prisioneiro e Cativo, a Mim Me com pete salvá-lo do afron­
toso estado a que O reduziram os facciosos de Lisboa. A Mim pertence, com o
Seu Delegado e Herdeiro, salvar não só ao Brasil, mas com ele toda a Nação
Portuguesa” .
“ A minha firm e Resolução, e a dos Povos que Governo, estão legitimamente
promulgadas. Espero pois que os homens sábios e imparciais de tod o o mundo,
e que os Governos e Nações Amigas do Brasil hajam de fazer justiça a tão justos
e nobres sentimentos. Eu os Convido a continuarem com o Reino do Brasil as
mesmas relações de mútuo interesse e amizade. Estarei pronto a receber os seus
Ministros, e Agentes Diplomáticos, e a enviar-lhes os Meus, enquanto durar o
cativeiro d’El-Rei Meu Augusto Pai. Os portos do Brasil continuarão a estar abertos
a to d as as Nações pacíficas e amigas para o comércio líc ito que as Leis não
proíbem : os Colonos Europeus que para aqui emigrarem poderão contar com
a mais justa proteção neste País rico e hospitaleiro. Os Sábios, os Artistas, os
Capitalistas, e os Empreendedores encontrarão também a amizade e acolhimento:
E com o o Brasil sabe respeitar os direitos dos outros Povos e Governos Legítim os,
espera igualmente por justa retribuição, que seus inalienáveis direitos sejam também
224 O PO D E R M O D E R A D O R

por eles respeitados e reconhecidos, para se não ver, em caso contrário, na dura
necessidade de obrar contra os desejos do seu generoso coração. Palácio do R io
de Janeiro, 6 de agosto de 1822. Príncipe Regente” .
Proclamado imperador do Brasil, D. Pedro convocou a Constituinte. Era
a primeira, embora as instituições representativas tivessem sido fundadas no Brasil
por Martim A fon so de Souza, em 1532. Sabemos com o evoluíram os aconteci­
mentos: a Constituinte fo i suspensa, a Assembléia fechada, a Constituição foi,
afinal, elaborada por um Conselho, e promulgada, voltando a Assembléia Geral
a funcionar até 15 de novem bro de 1889, quando a espada de D eodoro encerrou
o ciclo do Império. O povo continuou a participar, daí por diante, da sorte do
Brasil. A representação do povo tem se abismado na noite da ditadura, do recesso,
entre outras razões históricas, por se terem desajustado as instituições políticas
brasileiras e a nossa tradição, a sociopsicologia do nosso povo e seu substrato
espiritual. O legado que, insistentemente, procuramos demonstrar, somente se
expressou de forma adequada durante o p eríodo imperial com o poder moderador,
o Conselho de Estado, o Conselho de ministros e uma classe dirigente limada pelo
tem po. Por numerosas crises tem passado a nossa História, porém a maior, a crise
entre todas a que mais se destaca, é a institucional, a crise do regime, que não
teve, nem terá — e aqui avançamos pelo futuro o que, com o ensina um provérbio
chinês, é perigoso - solução, enquanto não voltar à sua origem autêntica, ao
poder moderador genuíno, identificado com o povo.
I l f f l H H H H E5
o sistema
representativo de partidos

A representação do povo nas Câmaras Municipais amanheceu com o Brasil.


Portugal não trasladou todas as instituições representativas do reino. N ão tivemos
as Cortes Gerais, mas tivemos as Câmaras, nas quais era representado o povo,
ou o que se poderia chamar povo na terra deserta. “ A 31 de março de 1560 aportou
em São Vicente o terceiro Governador Geral do Brasil, o benemérito Mem de Sá,
um dos mais relevantes servidores da obra do erguimento do Brasil que amanhecia.
Subiu ao planalto a examinar as condições em que viviam as aldeias de Santo
André da Borda do Campo, a que regia João Ramalho, São Paulo, governada
pelos Jesuítas. Ordenou a fusão das duas pequeninas povoações, providência a
mas sensata, essencialmente tomada em junho de 1560” . “ Instaurou-se em 1560
a vida municipal paulistana, mas, infelizm ente, perderam-se os seus documentos
primevos, sendo os mais antigos hoje conhecidos os de 1562. Pobríssimo com o
era o nascente arraial, realizaram-se, nos primeiros anos, as sessões de sua munici­
palidade em casa dos edis, de Suas Mercês, os Oficiais da ‘Camera’ , com o no
tempo se dizia, juizes ordinários, vereadores e procurador do Conselho” .1 Páginas
atrás já demos a nossa posição em face da que assumiu Oliveira Vianna sobre
as Câmaras Municipais, onde se reuniam apenas os “ homens bons” , sendo, por­
tanto, segundo esse autor, elitista, ou representação exclusivamente da minoria
blazonada e branca da capitania. N ão voltamos ao assunto; o que nos interessa

1 A fon so de E. Taunay. Velho São Paulo. São Paulo, Edições Melhoramentos, 1952, II, p. 63.
226 O PO DER M O D E R A D O R

é esposar a tese da representação, desde a aurora do Brasil. Transferida pela


monarquia portuguesa ao Brasil, a representação apenas não se com pletou nas
Cortes Gerais, que floresceram na antiga m etrópole, desde a época inaugural de
sua form ação com o reino. O povo esteve representado, sempre, ju nto ao rei e,
não raro, fe z valer a sua vontade, com o vem nas crônicas da época.
Quem estudou admiravelmente às Cortes portuguesas fo i Gama Barros.2
Através da leitura de seu trabalho monumental, ficamos sabendo que as Cortes
gozavam o direito de representar e suplicar; consultavam o rei e o aconselhavam
sobre matérias graves; recordavam ao monarca as suas obrigações; expunham-se
os agravos que sofria cada um dos braços do reino. Eram, em suma, as Cortes,
consultivas e deliberativas, e acentua Gama Barros que a linguagem dos povos
era, muitas vezes, severa, rude até, mas exprimia sempre um pedido ou conselho.
N ão se devem entender as Cortes Gerais com o os modernos parlamentos ou
câmaras, comenta Antônio Sardinha.3 Destinavam-se as Cortes Gerais a colaborar
na administração geral do país, com o órgãos de informação e representação e
até mesmo os reis faziam reconhecer em Cortes os seus herdeiros — embora a
coroa se transmitisse hereditariamente — e tornaram, mesmo, delas dependentes
a sua aclamação.4 Em Portugal como no Brasil, não obstante as Cortes não tivessem
sido estendidas à colônia, a representação iniciou-se historicamente com a nacio­
nalidade, acompanhou-a na sua evolução histórica. Em Portugal, cada associação,
cada classe, cada m unicípio, cada confraria rural, cada behetria — cidade, vila
ou povoação que tinha direito de tomar por seus regedores e senhores quem
melhor as defendesse - possuía na Idade Média o seu estatuto próprio, a sua carta
de foral. N o Brasil tivemos as Câmaras municipais, com os vereadores. Tivemos,
portanto, representação já nos primeiros anos do Brasil.
As instituições representativas funcionaram na emergente nacionalidade
desde a fase inicial de sua formação, mantendo os dispositivos que lhe permitiam
a participação do povo nos negócios do governo geral. Durante séculos, a represen­
tação do povo, por m eio de seus estados, manteve-se presente nos negócios da
maioria dos reinos da Europa. Com os descobrimentos e a colonização do N o vo
Mundo, a sua instituição acompanhou os colonizadores à Am érica luso-espanhola
e, mais tarde, à Am érica anglo-saxônia. Basta percorrer — no caso que estrita­
mente nos interessa, porquanto não estamos fazendo a história da representação —
as Atas da Câmara de São Paulo, para se verificar que os vereadores, os membros
do Senado da Câmara representavam o povo. A Câmara se organizou de acordo
com a lei portuguesa, mas não havia na sua aplicação um formalismo incôm odo,
que trouxesse embaraço ao governo local.5 O costume também se adaptava ao

2 Gama Barros. História da Administração Pública em Portugal. Op. cit., I, p. 510.


3 A n tôn io Sardinha. Prefácio à Teoria das Cortes Gerais. Op. cit., p. X V .
4 Id., ib., p. C III.
5 Brasil Banchecchi. O município no Brasil e sua função política. São Paulo, Revista de
História, 1977, p. 25.
O SISTEM A R E P R E S E N T A T IV O D E PAR TID O S 227

Brasil. Quem pesquisa a formação do Brasil, verifica que Portugal se preocupou


com a perpétua conservação da nova terra, e deu-lhe, por isso, admirável organi­
zação administrativa;6 estabeleceu no Brasil uma hierarquia convergente para o
trono, avocando poder sem o qual, segundo Varnhagen, “ talvez não fosse possível
a Portugal ter levado e mantido tão longe suas conquistas, em uma época de
revolução social, com o a que se operou pelo trato da Am érica, e pela facilidade
e freqüência da Ásia” .
Durante o p eríodo colonial inteiro fo i nas Câmaras municipais que se acolheu
a representação do povo, entendendo-se por este vocábulo, com o já expusemos,
os habitantes do Brasil, em número reduzidíssimo para a sua extensão territorial.
Seja com o for, no entanto, as leis eram severas, e rigorosamente cumpridas, embora,
com o todas as leis, delas houvesse infratores. Se a representação era falha, se não
correspondia perfeitamente ao interesse do povo, não é o caso de se examinar
aqui, pois apenas nos interessa a associação da delegação representativa com o
poder, e, mais especificamente, com o poder moderador, que só viemos a ter
no Império. Se dois autores7 afirmam que o problema da representação política
geral ainda está para ser resolvido, não haveria de ser em recuadas épocas que a
teríamos perfeita, mas durante to d o o p eríodo colonial os vereadores, os juizes
ordinários, os membros do Senado da Câmara, os oficiais desempenharam seus
cargos e seus mandatos, com espírito público e respeito às leis.
A representação é um problema permanente na história dos povos, e perma­
nente fo i até hoje, desde a mais recuada antigüidade até aos nossos dias. O governo
representativo, que não é uma invenção da revolução francesa, mas uma form a
antiga de ser deputado a um representante falar em nome da maioria, encontra-se
em todos os povos, ou, ao menos, nos povos que têm história. Durante o período
colonial não fo i ela posta em questão; eram representantes do povo os vereadores
com assento nas Câmaras municipais, embora, mais uma vez o dizemos, Oliveira
Vianna os tenha argüido de elitistas. Admitindo-se, para argumentar, a tese do
autor de Instituições p olítica s brasileiras, diremos que, por seu turno, as teses
de Hegel, Burke e Disraeli8 dariam razão aos legisladores do reino de Portutal.
Mas passemos desses anacronismos, e ainda uma vez refutemos Oliveira Vianna.
Os “ homens bons” eram, apenas, os que podiam, na época, representar o ralíssimo
povo da colônia. Eric V oeglin9 é de opinião que o representante de uma socie­
dade articulada (articulated society) não representa o todo sem manter uma espécie
de relação com os outros membros da sociedade, e aduz que a terminologia com-
plicou-se demasiado no mundo moderno, sobre povo e representação. Em todos
os grupos, sejam eles quais forem , a representação é uma necessidade. Na Igreja,

6 Varnhagen. História Geral do Brasil. Op. cit., passim.


7 Francisc W . K oer e Carlton C. Roder. V erbete “ Representation” . In Encyclopaedia o f
Social Sciences. N ova Y o rk , Macmillan, 1942.
8 Cf. verbete “ Representation” , loc. cit.
9 The N e w Science o f Politics. Chicago, The University o f Chicago Presses, 1954, p. 27 e ss.
228 O PO D E R M O D E R A D O R

sociedade ainda rigidamente hierárquica, somente o colégio de cardeais elege


o Papa; as dinastias foram , inicialmente, aclamadas, e o títu lo que o imperador
do Brasil se adjudicou de “ imperador por aclamação dos povos” correspondia
à idéia de representação, com o veio sendo ela tratada pelos séculos dos séculos,
desde os velhos tempos da monarquia lusitana e outras monarquias. Que nos
conste, somente na Suíça prevalece, ainda, em alguns Cantões, a democracia direta.
Mas essa é uma tradição local, germânica, e tipicamente suíça, que não se genera­
lizou na Confederação, e é, se se quiser, privilégio de um país e característica
de pequena localidade. A regra é, pois, a representação, através de complicado
corpo de leis, e, mais especificamente, a regra é a da representação anômala, isto
é, a representação que não constitui, efetivamente, representação.
A literatura sobre a representação é reduzida, e, mesmo, os filósofos antigos,
com o os historiadores, da Grécia aos de nossos dias, relativamente pouca im por­
tância atribuem à deputação popular. Mas está assentado, sobretudo nas dem o­
cracias — liberais e populares — de nosso tem po, que o povo deve ser representado,
deve escolher os seus representantes, e, na maioria das repúblicas, deve escolher,
também, os seus governantes, atribuição que lhe tem custado não poucas crises.
Registram-se casos de apelo direto ao corpo p o lítico , com o o fe z De Gaulle, um
César plebiscitário, que, em 1969, depois dos graves acontecimentos de maio
de 1968, convocou o eleitorado francês — uma representação de prim eiro grau,
pois grande parte da população francesa não vota — para apoiar ou não a sua
política. Derrotado, foi-se para o seu ostracismo voluntário, do qual não mais
saiu. De Gaulle era, porém , um monumento, um exem plo isolado de hom em
público, suficientemente orgulhoso para disputar com o povo o seu direito de
representá-lo, ainda que sabendo arrostar as paixões do m om ento, num país
“ frondeur” com o é a França. A té à segunda grande guerra, durante a ascensão
e o predom ínio dos regimes totalitários, os partidos não eram os únicos órgãos
da representação. Depois da segunda grande guerra, esses grupos sociais políticos
se constituíram nos exclusivos instrumentos de governo e centros de deputação.
É através deles que se alcança o poder, nos países do Sistema Ocidental, ou com
registro neles, embora cada candidato deva obter o apoio eleitoral na praça pública,
na disputa com seus concorrentes. Não discutem os eleitores se devem ou não
escolher representantes. Escolhem-nos, muitas vezes ignorando quem sejam os
seus candidatos. Têm-se passado a respeito, em nosso país, casos que delatam
a falsidade do sistema representativo, com o o entendemos em nossos dias.
Numerosos candidatos a deputado e a vereador foram eleitos, um por estar na
cabeça da lista, outro por ser conhecido dos campos de futebol, este por ter
sido confundido com um popularíssimo locutor de televisão, aquele por ser
cantor de músicas populares.
O sistema representativo é, portanto, anômalo. É, apenas, ficticiamente
representativo. Estão associadas à representação e à democracia, não só a liberal
democracia, com o a democracia popular dos comunistas. Tem os a democracia
representativa, eis tudo. Nas eleições de 1974, no Brasil, os votos se distribuíram
de tal maneira, que fo i impossível uma análise objetiva do fenôm eno eleitoral.
O SISTEM A R E P R E S E N T A T IV O DE PARTIDOS 229

Os eleitores dos Estados mais desenvolvidos, com o São Paulo e R io Grande


do Sul, votaram contra o governo. Nos Estados menos desenvolvidos, o governo
venceu. Para uma opinião pública instável, mal constituída, desinformada,
com estágios em várias fases econômicas e culturais, corresponderam os resul­
tados dos pleitos, e será impossível fazer-se uma idéia, mesmo aproximada, sobre
as relações entre o povo e o governo, entre a opinião pública ou corpo político
e o poder. Nas democracias ocidentais, o fenôm eno é análogo, com variações
menos profundas. Nas eleições de 1974, o candidato Giscard d’Estaing ganhou
do candidato François Miterrand, na França, por reduzida margem de votos,
cerca de 300.000. As pesquisas de opinião oscilavam de um para outro candi­
dato, em vinte e quatro horas; bastava uma palavra duvidosa, uma idéia mal
formulada para aumentar a porcentagem do primeiro ou do segundo candidato.
Como se vê, é d ifícil levantar-se uma instituição estável sobre bases tão m ove­
diças.
Nas democracias populares, seus teóricos e dirigentes inventaram o sofisma
do partido com o representante de tod o o povo. Ganha, portanto, o partido comu­
nista, que, supostamente, representa o povo, e, por esse m otivo, deve estar no
governo. O sistema representativo contemporâneo é pois uma ficção, na qual,
por inércia, crêem os povos. O cidadão de Rousseau, com seu direito de voto,
é, apenas, um ente-de-razão . 10
Nas sociedades de massa de nossos dias, com milhões de eleitores, e a
influência decisiva dos meios de comunicação — os meios que são a mensagem,
do estudo sob alguns aspectos aceitável, outros não, de McLuhan —, o sistema
representativo está sujeito a mudanças inesperadas, que não beneficiam o povo.
Mas, a representação é a própria base da legitimidade política e, mais ainda, a
representação popular. Se defendermos a idéia da representação pelos interesses
seremos acoimados de fascista, embora, com o adiante mostraremos, o totalita­
rismo italiano e a ditadura portuguesa de Salazar estragaram uma bela idéia,
mudando a corporação, de associativa em corporação com o instrumento do poder,
ou seja, corporação estatal, subordinada ao Estado. Stuart M ill 11 defendeu a
participação de todo o povo nos destinos da nação, conservando-se, porém, no
regime monárquico, cujo m odelo o autor teve presente, quando escreveu sua obra
para sempre clássica. O problema da representação se constitui, vê-se, num desafio
à moderna teoria política. Georges Burdeau aponta mudanças no objeto da repre­
sentação, por se ter substituído a vontade que dirige à opinião que controla. Com
isso, acentua o autor, .tomou-se ele diferente, se é considerado sob a ótica da
democracia liberal, ou da democracia governamental contemporânea .12 Para usar­
mos expressão popular, diremos que a representação é um beco sem saída. Não
luí representação perfeita, sobretudo nesta quadra histórica, a menos que a transfi­
ramos da esfera da opinião, mutável, e sujeita a inúmeras pressões, dentre as quais

10 Cf. Contrato Social. Livro II, Cap. III.


11 Representative government. Londres, Encyclopaedia Britannica, 1952, cap. 6.
1; Traité de Science Politique. V o l. V I, p. 235, op. cit.
230 O PO D E R M O D E R A D O R

as mais influentes são as dos meios de comunicação, para a esfera dos interesses,
com o tentaremos expor em outro capítulo. Tem os procurado demonstrar, quanto
podemos, que os governos de opinião derivam sempre para a crise. Se se pode
diagnosticar a crise contemporânea com exatidão, quando não se é possuído de
preconceitos, é por se ver na opinião pública e nos governos de opinião — com o
já deixamos dito — o seu fator principal. Segundo Hermann Heller, “ a doutrina
de opinião pública com o força governante constitui uma form a singular de relati-
vização do Estado ao p ovo e da identificação do poder do Estado com a vontade
do p o v o ” . 13
Mas esse não é um fenôm eno de fácil ccompreensão. A opinião pública
é um monstro. Forma-se e se desfaz com os meios de comunicação, com artifícios,
e, na área política, com o eficiente uso da demagogia, com o têm fe ito os presi­
dentes americanos, especialmente Roosevelt, com o uso do rádio, Kennedy e
N ixon , com a televisão, e, no Brasil, Getúlio Vargas e Jânio Quadros 14 com êxito,
usando todos os veículos de informação e difusão. Acrescenta H eller 15 que a
característica da opinião pública é a sua falta de organização, m otivo por que o
seu suporte é o público, isto é, todos os homens que participam de correspondente
conteúdo mental e são capazes de se manifestar sobre ele. Se foram possíveis
os governos de opinião do século X IX — inclusive no Brasil — e ainda nos mantemos
nessa fase histórico-política, agora eles estão sujeitos às bombardas dos eficien-
tíssimos meios de comunicação, e, por isso mesmo, são instáveis, sobretudo em
nações de fragílimos suportes tradicionais, com o é o Brasil. Os mass-media, de que
falam os americanos, convidam hoje em dia a rever todo o problema político, e,
mesmo, a sua problemática, porquanto nenhum povo deve viver em permanente
instabilidade, considerando precária a sua situação .16 Convencionou-se que o
regime de partidos assegura o sistema representativo. Alguns exemplos são eluci­
dativos. Quando Getúlio Vargas fo i deposto em 29 de outubro de 1945, já estava
em vigor uma lei eleitoral e constituídos nove partidos políticos. O m ovim ento
que, impetuosamente, levou as Forças Armadas a apresentarem, por intermédio
do general Cordeiro de Farias, o “ ultimatum” ao presidente, paia que ele deixasse
o poder, não cogitou de experimentar a Constituição que nunca tivera vigência.
A “ classe p olítica” , então surgindo, optou pelos partidos e, desde logo, se form a­
ram nove, vindo a ser catorze, e, finalmente, reduzindo-se a doze, que foram
extintos pelo A to Institucional n9 2, do presidente Castelo Branco.
O multipartidarismo, com o regime de opinião, atirou o Brasil à zona da
turbulência - os vinte anos da Constituição de 1946 — da qual só saímos com os
governos emanados do m ovim ento de 1964. Por que a “ classe p olítica” , mais

13 Teoria dei Estado. Op. cit., p. 196.


14 Cf. L ’État spectacle. Op. cit., passim.
15 Id „ ib., p. 200.
16 Cf. sobre a televisão. Jean Cazeneuve. Les pouvoirs de la télévision. Paris, Gallimard, 1970,
passim.
O SISTEM A R E P R E S E N T A T IV O DE PAR TID O S 231

ou menos acorrilhada a idéias afins e opiniões concordantes, preferiu os partidos,


em lugar da organização estabelecida pela Constituição de 1937? Simplesmente
porque o regime de partidos é uma idéia-força de nosso tem po, ainda que tenha
ele sido, até hoje, mais nocivo do que vantajoso para os povos. A função represen­
tativa se projeta sobre o sistema de partidos políticos e de legislação eleitoral.17
Em capítulo subseqüente estudamos o fenôm eno partidário; aqui apenas nos
deixamos ficar no problema do Im pério, com seus dois partidos, e as referências
aos partidos da República, ao unipartidarismo de fato e aos partidos estaduais
de direito da primeira, com a exceção do Partido Dem ocrático, fundado em 1926,
portanto nos últimos anos do regime de então; os partidos estaduais, ainda, do
período de 1933 a 1937; a Constituição apartidária de 1937; o multipartidarismo
de 1946, o bipartidarismo de 1967.
O partido p o lítico institucionalizado é recente na História. O prim eiro par­
tido, com o tal, fo i o Partido Democrata, dos Estados Unidos.18 F oi esse o fo co
inspirador de todos os partidos da Am érica, com o a Inglaterra dos whigs e dos
tories inspirou, mais amplamente, a partidocracia contemporânea. Mas os outros
partidos só se institucionalizaram nos países de língua inglesa. Essa a incontes­
tável realidade do sistema de partidos no mundo. N ão há, fora dos Estados Unidos
e da Inglaterra, um só partido institucionalizado no mundo. N ão o é, nem mesmo
o Partido Comunista da União Soviética, que governa a antiga Santa Rússia, desde
1917. Se se abrir a União Soviética ao debate das idéias, à livre circulação do
pensamento, previstos em Helsinki em 1975, o Partido Comunista se abismará
no abandono com pleto. Na França, país de facções, fundam-se e se extinguem
partidos, ao sabor de interesses e circunstâncias de m omento. O chefe prestigioso
e forte está habilitado a fundar um partido, que some com o seu desaparecimento,
como fo i o caso da U .D.R. o qual entrou em fase de agonia, ao falecer o general
De Gaulle. O partido dos Republicanos Independentes ainda está vivo e atuante,
por se encontrar na presidência da República o seu fundador, Giscard d’Estaing.
Na Espanha do rei Juan Carlos, disputaram as eleições de 1977 cento e sessenta
e quatro partidos, evidentemente simples facções, sem maior consistência. N o
Brasil, os partidos têm sido fundados e extintos sem deixar rastros. Os partidos
republicanos da primeira República viveram do poder, acolchetados aos governos.
Foi só. Os demais não sobreviveram. Nada há, em política, tão artificial quanto
a Arena e o M.D.B., aquele partido uma dependência do governo, este um ajunta­
m ento que aderiria ao governo se lhe fosse possível fazê-lo.
Proclamada a Independência, e convocada a Constituinte, formaram-se
não partidos, mas facções. Segundo A fon so Arinos de M elo Franco19 “ A forma-

17 Carlos Ollero. “ E l sistema representativo” . In Revista de Estúdios Políticos. Madri, 1961,


n ° 199.
18 James Bryce. A comunidade americana. R io,C ru zeiro, 1959,1, p. 169. Tradução brasileira de
The American Commonwealth. Londres e N ova Y o rk , MacMillan, 1895, passim.
19 História e Teoria dos Partidos Políticos no Brasil. São Paulo, Alfa-Om ega, 1974, p. 32.
232 O PO D E R M O D E R A D O R

ção do Partido Liberal coincide com a elaboração do A to Adicional e a do


Conservador com a feitura da lei de interpretação” . São, portanto, relativamente
tardios os partidos do Im pério, e, a rigor, com o se disse, também, dos partidos
da República. O sistema representativo, com o o entendem os publicistas que
dele se ocupam, dependeu do monarca, no Im pério, embora os partidos tivessem
mais consistência e notas mais próximas da institucionalização do que na República,
na qual, em oitenta e oitos anos ,20 o Partido Republicano, com suas denominações
estaduais, nutriu-se da oligarquia que o sustentou até 1930, e os partidos fundados
depois de 1930 não imergiram raízes no solo p o lítico da nação, sobranceando
a sua cena o presidente. A té mesmo durante os vinte anos da Constituição de
1946, e dos doze partidos que nesse período mandaram deputados e senadores,
deputados estaduais e vereadores às Câmaras, não tivemos partidos no sentido
anglo-saxão do vocábulo, mas simples agrupamentos precários e aleatórios, cuja
passagem pelo poder não deixou sulco. Os remanescentes do P.S.D., da U.D.N.,
do P.T.B., do P.S.P., do P.D.C., do P.S., do P.R.P. distribuíram-se pelas duas
legendas criadas pelo presidente Castelo Branco, e conservam, apenas, uma vaga
nostalgia daqueles vinte anos, durante os quais apenas algumas carreiras políticas
se firmaram, através do uso oportunista da demagogia, do sistema proporcional
e dos cabos eleitorais. Os novos escolheram uma das duas legendas, e nelas
militam, cumprindo o rito da representação partidária, na sua maioria sem darem
atenção ao programa partidário, que, de resto, não tem nenhuma importância,
em país onde o executivo é todo poderoso, e legisla abundantemente, concedendo
às Câmaras apenas atenção relativa.
F oi, portanto, durante o Im pério que a representação político-partidária
por mais defeituosa que se apresentasse e se apresente aos olhos do historiador
ostentou uma espécie de institucionalização, graças à qual os partidos podem
ser com o tal considerados. Por mais que o “ humour” popular não visse diferença
entre um “ luzia” ou liberal e um “ saquarema” ou conservador, quando no poder,
suas posições eram, em face de alguns problemas, divergentes. Segundo Oliveira
Lim a , 21 os liberais queriam um rei decorativo, ou, segundo a fórm ula de Thiers,
um rei que reinasse sem governar, enquanto os conservadores queriam um rei
atuante. Mas ambos os partidos tiveram origem liberal, embora viessem a se
distanciar. O certo é que os partidos desempenharam importante papel no Im pério,
não obstante se compusessem de um número reduzido de eleitores, e a legislação
eleitoral, até à Lei Saraiva, estabelecesse censos hierárquicos, que vinham a
constituir, de fato, censos altos. O corpo político não tinha o número e a densi­
dade estadeada em nossos dias; os representantes de um e outro partido se
consideravam, porém, escolhidos pelo povo, e intérpretes de seus interesses, ainda
que se extremando em algumas questões. Mas, na realidade, sua consistência
advinha do alto espírito cívico do imperador. “ O jo g o dos partidos na Monarquia -

20 Escrito no segundo semestre de 1977.


21 O Império Brasileiro. São Paulo, Melhoramentos, 1928, p. 43.
O SISTEM A R E P R E S E N T A T IV O DE PAR TIDOS 233

a gangorra p o lític a , com o causticava, espirituosamente, Silveira Martins — só


fo i possível porque o presidia e regulava o imperador. Sua habilidade estava em
fazer com que as duas agremiações políticas se revezassem no poder sem contudo
se destruírem uma à outra, com o era em geral a tendência de ambas” .22
Essa gangorra era, afinal, necessária à paz política e aos interesses de um
país com problemas cruciais de desenvolvimento, de nível de vida, de desequi­
líbrio regional. “ Presidindo a rotação dos partidos, D om Pedro II desempenhava,
portanto, entre nós, um papel essencialmente civilizador. Era graças a esse freio
que a paixão partidária não chegava nunca, ou chegava raramente a com eter os
excessos que num m eio de escassa cultura com o era o nosso teriam necessaria­
mente que explodir. Por outro lado, ele continha também os partidos nos seus
limites objetivos, quer dizer, naqueles que honestamente lhes era líc ito aspirar,
dentro de um exato regime representativo ” .23 País sem tradição partidária
institucional, historicamente, no Im pério, o imperador fo i o centro da rotação
política; na primeira República foram as comissões diretoras que decidiam de
cima para baixo os rumos políticos a serem obedecidos pelo corpo p o lítico , e,
depois de 1930, alguns chefes, para, finalmente, com os governos emanados
da revolução de 1964, e a ascensão dos militares ao poder, termos duas agre­
miações, dependentes do chefe político supremo, que é o presidente da República.
Nesse quadro, os partidos políticos do Império foram , portanto, os menos artifi­
ciais, avizinhando-se dos partidos anglo-saxões, à característica de grupo primário,
já por nós exposta. Adotando denominações diferentes, a rigor o Im pério teve
dois partidos, o Conservador e o Liberal. O sistema representativo confluiu para
essas duas agremiações, durante o longo período em que funcionaram ambas,
acolhendo as tendências políticas que se manifestaram no Império.
Embora não tivessem sido expressamente fundados os partidos do Im pério,
admite-se que o tenham sido em 1837.24 Da fusão de facções diversas, acabaram
saindo o Partido Conservador e o Partido Liberal. “ Naturalmente não se pode
marcar data certa para um fato histórico dessa natureza, que é menos um fato
do que um processo histórico. Um partido não se constituía naquele tem po, com o
hoje se faz, com datas precisas, com documentos públicos sujeitos a verificação
e registro. Assim, não é líc ito contestar-se formalmente qualquer uma das suges­
tões, mas, apenas, discordar delas, indicando interpretações mais consentâneas
com as ocorrências ” .25 As sugestões referidas atribuem datas diversas ao apareci­
mento dos partidos. Pouco importa. O que interessa é termos uma data, 1837,
como a do nascimento das duas agremiações, que iriam dominar toda a cena

** Heitor Lyra. História de D o m Pedro II. São Paulo, Companhia E ditora Nacional, 1939,
II, p. 503.
1' Heitor Lyra. Id., ib., p. 507.
M José A n tôn io Soares de Souza. A vida do Visconde do Uruguai. São Paulo, Companhia
liditora Nacional, p. 144.
■** Afonso Arinos de M elo Franco. Op. cit., p. 32.
234 O PO DER M O D E R A D O R

' p olítica do Império, para, afinal, soçobrarem, com o todas as instituições imperiais,
no dia 15 de novem bro de 1889, pelo decreto n<? 1, que fundou os Estados Unidos
do Brasil. N ão se pode falar em representação de classes no Im pério, sobretudo
com os partidos revezando-se no poder numa rotatividade impressionantemente
mínima, mas, com o diz A fon so Arinos de M elo Franco ,26 “ O Partido Liberal
representava e representou sempre os interesses da burguesia urbana, do capita­
lismo comercial, e as convicções intelectuais progressistas, escritores, jornalistas,
professores magistrados” , ao passo que o Partido Conservador acolhia em seu
seio os grandes fazendeiros, a classe cafeeira, os proprietários territoriais, sem
rejeitar, no entanto, o progresso, pois o fundou e fo i seu líder incontestável o
grande Bernardo Pereira de Vasconcellos, o maior estadista do Império. “ Vascon-
cellos, mais plástico, mais inteligente, era hom em de combinar a ‘conservação
com o progresso’ ; e, sem exageros, entendendo que o Brasil precisava de uma
autoridade prestigiada, queria ensaiar a monarquia constitucional. Para isso,
estaria na estacada até que o governo ‘se organizasse parlamentarmente’ , ‘fazendo
oposição tão enérgica com o comedida e decente’ . O governo devia ser uma
expressão da maioria parlamentar — era a regra do jo g o ; e o regente não poderia
mover-se fora da esfera de ação que lhe era marcada na lei fundamental do
Estado ” .27
O Partido Conservador não era, portanto, o atraso e a estagnação, embora
o Partido Liberal fosse a agitação sem rumo, a efervescência política sem diretriz
firmada e certa, um princípio revolucionário' crepitando no seio da instituição
imperial. F o i preciso a Conciliação para acalmar os indóceis políticos imperiais,
embora o poder moderador, arbitrai, venerável e sobranceiro, procurasse, com rara
acuidade psicológica, contê-los nos limites de seus deveres, sobretudo os de
patriotismo e de apego à coisa pública. João Camillo de Oliveira Torres 28 enumera
os gabinetes liberais e conservadores, a partir de 1847, quando fo i criada a presi­
dência do Conselho. “ Os gabinetes imperiais somente passaram a ter consistência
política definida a partir de 1847 com a criação da presidência do conselho,
exercida, pela primeira vez, por Manuel Alves Branco, Visconde de Caravelas,
que chefiou o ministério de 22 de maio de 1847. As situações políticas assim
se alternavam: liberais — de 24 de julho de 1840 a 23 de março de 1841; de 2 de
fevereiro de 1844 a 22 de setembro de 1848; de 24 a 30 de maio de 1862; de
15 de janeiro de 1864 a 12 de maio de 1865; de 3 de agosto de 1866 a 16 de julho
de 1868; de 5 de janeiro de 1878 a 20 de agosto de 1885; de 7 de junho de 1889
a 15 de novembro do mesmo ano; conciliação — de 5 de setembro de 1853 a
4 de maio de 1857; conservadores: de 23 de março de 1841 a 2 de fevereiro de
1844; de 22 de setembro de 1848 a 6 de setembro de 1853; de 4 de maio de 1857

26 Op. cit., p. 34.


27 Octávio Tarquínio de Souza. História dos Fundadores do Império do Brasil. Op. cit.,
V , p. 177.
28
A Democracia Coroado. Op. cit., p. 332.
O SISTEMA REPRESENTATIVO DE PARTIDOS 235

a 24 de maio de 1862; de 30 de maio de 1862 a 15 de janeiro de 1864; de 12


de maio de 1865 a 3 de agosto de 1866; de 16 de julho de 1868 a 5 de janeiro
de 1878; de 20 de agosto de 1885 a 7 de junho de 1889” . Observa Oliveira Torres
que o predom ínio dos conservadores se explicava por se interessarem eles pelas
reformas das instituições, pois, mais práticos, preferiam retirar delas as vantagens
aconselhadas pelas necessidades do país. A tendência humana é conservadora.
O revolucionário ou o reform ador são exceções. Necessários umas vezes, outras
são nocivos. O próprio Partido Liberai averba em sua história mais atos censuráveis
do que plausíveis. Ainda o autor de A Democracia Coroada nos lembra, resumi­
damente, a obra de um e outro partido: “ Um rápido balanço na obra dos partidos
imperiais nos trará os seguintes resultados. A crédito dos liberais, temos, na fase
‘proto-histórica’ da vida partidária, a Regência: o Código de Processo, o A to
Adicional, a lei orgânica dos presidentes de província e, no segundo reinado,
além da Maioridade, a primeira lei eleitoral do Brasil (184 6 ); o esforço de guerra
contra o Paraguai; a eleição direta, a propaganda abolicionista e, por fim , a preser­
vação dos ideais democráticos, pela fidelidade na vigilância contra abusos do poder.
Coube aos conservadores: o restabelecimento do Conselho de Estado; a reforma
do Código de Processo, a abolição da escravatura (todas as grandes leis abolicio­
nistas, da repressão do tráfico à lei Áurea foram feitas por ministros conservadores);
a adoção do sistema m étrico decimal; o primeiro recenseamento geral do Im pério;
o impulso principal à política de vias modernas de comunicações. Se desejarmos
sintetizar em duas fórmulas a ação dos partidos, diremos que aos conservadores
se deve a preservação da unidade nacional e aos liberais a permanência de nossa
continuidade democrática” .
Os dois partidos cumpriram a missão que o regime, o sistema represen­
tativo e a época lhes assinalaram. Foram os únicos partidos menos inautênticos
do Brasil constitucional. Inaugurando, por assim dizer, a “ era do constituciona­
lismo” , formaram-se semelhantes em muitos aspectos, em outros dessemelhantes.
Não tinham uma doutrina, mas o liberalismo em si não fo i doutrinário, sobretudo
no Brasil, onde mesmo a monarquia não se edificou sobre uma doutrina sólida,
que a habilitasse a enfrentar a campanha republicana, a qual se apoiou em
sofismas, no engodo, em falácias e na moda, a que fora lançada nos Estados Unidos
cm fins do século X V III. 0 Partido Liberal refletiu no Brasil imperial os vícios,
os defeitos, as anomalias que lhe macularam a história no seu surto europeu,
ombora seu princípio norteador fosse uma prenda suprema do ser humano, a
liberdade. 0 liberalismo europeu, do qual o nosso fo i tributário, engendrou o
liincsto princípio das nacionalidades, o princípio segundo o qual a uma nação
deve corresponder um Estado. Firm ado depois do Congresso de Viena, quando,
iifinal, a Europa descansou das guerras napoleônicas, manifestou-se, sucessiva­
mente, vindo a se impor com o uma força incoercível, cuja vitalidade está longe
de externar sinais de fraqueza, embora distorcido pelas ditaduras e os totalita-
limnos. Não vamos expor aqui a filosofia do princípio das nacionalidades. Apenas
monlliaremos que a sua gênese filosófica se coloca no conjunto de fenômenos
que marcaram a queda das autoridades tradicionais e o advento da soberania da
236 O PO DER M O D E R A D O R

razão ,29 tendo com o axioma a liberdade individual, tese esposada sucessivamente
por Grotius, Althusius, Hobbes, Spinoza, Pufendorf, Locke e Rousseau, triun­
fando na revolução francesa e toda a sua seqüela. N ão atribuímos, evidentemente,
tanta responsabilidade ao Partido Liberal, que não escudara em sólida armadura
filosófica, mas foram os liberais que, embora defendendo a constância democrática,
prepararam o advento da República.
Quem examina os programas dos partidos imperiais, neles encontra as notas
da ordem conservadora e da liberal, com o as entenderam os franceses, e com o
as distinguimos da Filosofia das Luzes às crises do século X IX , e, afinal, à
multiplicação de nações, neste século X X , que já conta cento e cincoenta e uma,
com cento e quarenta e cinco representadas na Organização das Nações Unidas
e outros organismos internacionais. O panfleto de Am érico Brasiliense30 é
m alévolo e inconsistente com o todos os panfletos, mas contém uma parte in for­
mativa aproveitável, principalmente por ser o único trabalho sobre a questão
partidária do Império. Examinando-se os programas partidários verifica-se que
estavam imbuídos das idéias do tem po os seus autores. Datando a criação do Partido
Liberal de 1831, que A fonso Arinos de M elo Franco, apoiado em José A ntônio
Soares de Souza ,31 contesta, optando pelo ano de 1837, para a fundação dos
partidos, inform a que essa agremiação pregoava:

Monarquia federativa
Extinção do Poder Moderador
Eleição bienal da Câmara dos Deputados
Senado eletivo e temporário
Supressão do Conselho de Estado
Assembléias legislativas provinciais com duas Câmaras
Intendentes nos municípios, sendo nestes o mesmo que os presidentes
nas Províncias.

C om o se vê, os liberais queriam a República “ avant la lettre” , uma República


coroada, ou um presidente vitalício. Estava em germe a futura mudança de regime,
pois as instituições imperiais, que deram mais lustre ao regime monárquico e o
sustentaram com excepcional prudência foram o Conselho de Estado e o Conselho
de Ministros, este não incluído no rol das proposições acima, por não ter sido,
ainda, criado.
Foi Bernardo Pereira de Vasconcellos, com a sua form idável intuição
política, que neutralizou a incontinência antiimperial — embora aparentemente
solidário o partido com a monarquia constitucional — dos liberais, e fundou o
Partido Conservador. O “ regresso” selou esse lance estupendo de sua vida de
hom em público, o maior do Im pério. Estudando o p eríodo que se seguiu ao fim

29 R ob e rt Redslob. L e príncipe des nacionalités. Paris, R ecueil Sirey, s/d, passim.


30 Os programas dos partidos e o Segundo Império. São Paulo, 1879, passim.
31 Op. cit., passim.
O SISTEM A R E P R E S E N T A T IV O DE PAR TID O S 237

da Regência e ao primeiro ano da Maioridade, Octávio Tarquínio de Souza 32


afirma: “ Vasconcellos coloca-se a serviço da grande lavoura que ia afinal prepon­
derar na direção p olítica do Brasil, dado o poder econôm ico de que dispunha,
e, concorrendo para a criação do partido conservador com o seu ‘regresso’ ,
defenderia as causas que se ajustavam aos interesses dos donos de escravos” . Não
era um oportunista, no entanto, o grande e bravio lutador. “ Fixava-se numa posi­
ção de frio realismo e de conveniência imediata, sem que o demovessem argumentos
a seu parecer sentimentais. Não queria fazer concessões ao que julgava quimé­
rico ou inexeqüível. Bastar-lhe-ia porventura a monarquia parlamentar à inglesa
num país em que o trabalho continuava dependente do braço escravo ” .33 O
programa do Partido Conservador refletia a personalidade de seu fundador, um
dos enérgicos defensores da unidade nacional:

— Interpretação do A to Adicional, restringindo as atribuições das Assem­


bléias Provinciais.
— Rigorosa observância dos preceitos da Constituição
— Resistência às inovações políticas, que não fossem maduramente
estudadas
— Estabelecimento do Conselho de Estado
— Centralização política, toda a força à autoridade e leis da compressão
contra as aspirações anarquizadoras, para que se restituísse e restau­
rasse a paz, a ordem, o progresso pautado e refletido, e a unidade
do Im pério sob o regime representativo e monárquico, que exclusi­
vamente conseguiria fazer a nação prosperar e engrandecer-se
— Os atos do Poder Moderador são exeqüíveis sem a referenda e sem a
responsabilidade, quer legal, quer moral dos ministros
— O imperador impera, governa e administra.

Era, pois, um germe de doutrina monárquico-conservadora a obra de


Mernardo Pereira de Vasconcellos, esboçada no programa de seu partido. Esse
programa fo i cumprido, em suas grandes linhas, até ao fim. Bernardo Pereira dc
Vasconcellos morreu em 19 de maio de 1950, vítim a da epidemia de febre amarela
t|ue assolava o R io de Janeiro. Faria em agosto 55 anos. Havia sido um dos mais
(ovens homens públicos do Im pério, e, sem dúvida nenhuma, um dos maiores
dis todos os tempos. O Partido Conservador prosseguiu, mas, evidentemente, sem
o chefe extraordinário e fulgurante que o fundara e conduzira em anos difíceis,
in<> difíceis que em discurso proferido em 16 de maio de 1846 - o imperador
linha, então, dezoito anos — aparentou descrer das instituições que sustentava
o exclamou, desalentado, “ Deus tenha compaixão de nós ” .34 O sistema reprcsen-

11 Op. cit., V , Bernardo Pereira de Vasconcellos, p. 183.


" Id., lb.
( Jotávio Tarquínio de Souza. Id., ib., p. 254.
238 O PO D E R M O D E R A D O R

tativo funcionou no Im pério, com plena autonomia de seus deputados e senadores,


embora com vícios e falhas enormes. Em 1862 tentou-se formar o Partido Progres­
sista, pela união dos liberais e conservadores moderados. De seu programa constava:

— A regeneração do sistema representativo e parlamentar pela sincera


execução e amplo desenvolvimento do dogma constitucional da divisão
dos poderes p olíticos para que não sejam uns absorvidos ou anulados
por outros
— A responsabilidade dos ministros de Estado pelos atos do Poder
Moderador
— A verdade do orçamento.

O programa se estende, ainda, a outras proposições, não distantes do


programa do Partido Conservador. A o Partido Progressista fe z cerrada oposição
o Partido Liberal Radical, que teria sido fundado em 1868. F o i o partido, ou
a facção dos liberais históricos. Seu principal o b jetivo : obter a extinção do Poder
M oderador. Mas outros objetivos os animavam, entre eles, a criação de uma polícia
eletiva, com pleto absurdo, para um país sujeito às influências eleitorais e à sua
corrupção. N ovo Partido Liberal fo i criado em 1869, cuja origem se deu no Club
da R eform a, no melhor estilo dos remanescentes da revolução francesa. O novo
Partido Liberal teria papel destacado nas últimas lutas políticas e sociais do
Im pério, entre elas a que levou à emancipação dos escravos e abolição da escra­
vatura.
O sistema representativo procurara aprimorar-se, insistindo o Partido Liberal
com o os membros do Partido Conservador na verdade dos pleitos. A Lei do Terço,
de 20 de outubro de 1875, e a Lei Saraiva, de 9 de janeiro de 1881, constituem
duas etapas no processo de aperfeiçoamento da legislação eleitoral do Império,
e do sistema representativo, que teve, então, defeitos, com o os teve depois e ainda
os apresenta o atual, com o já assinalamos, defeitos que distorcem o sentido do
voto e a vontade posta na escolha do representante e, mesmo, do governante.
O imperador não escondeu nunca a sua preocupação com o sistema representativo.
“ O desejo de D. Pedro II, de que, por m eio de pleitos limpos, as oscilações da
opinião pública fossem refletidas na composição das câmaras, e, indiretamente,
dos governos, prescindindo, assim, na medida do possível, da intervenção constante
do Poder Moderador em assunto tão delicado e capaz de criar problemas cada
vez maiores para o T rono, não constituía novidade .” 35 O maior interessado na
consecução de vontade tanto quanto possível cristalina do corpo p olítico, que,
embora pequeno, era expressivo, vimos ser o imperador. Pela sua formação moral,
pela consciência do munus dos direitos e deveres dinásticos, o imperador só quere­
ria eleições bem conduzidas e apuradas, com a progressiva participação de todo

35 Sérgio Buarque de Holanda. “ O Brasil Monárquico” . In História Geral da Civilização


Brasileira. V. 59, Difusão Européia d o Livro, 1972, p. 176.
O SISTEM A R E P R E S E N T A T IV O DE PARTIDOS 239

o povo em seu processo. 0 imperador queria, em suma, o sistema representativo


funcionando na sua plenitude, para a escolha dos representantes da sociedade
brasileira ou corpo p olítico. O sistema representativo fundava-se na opinião. Sabia
o imperador, por experiência própria e longa vivência do problema, que a opinião
é ondulante, mutável, não raro insegura. Deixando-se influenciar pelos jornais,
pelos com ícios e pelos boatos — os meios de comunicação da época — deveria
ser bem canalizada para os interesses de toda a nação pelos partidos políticos.
Infelizm ente, até ao fim de seu reinado, não obstante a última reform a, a Lei
Saraiva, não viu realizado esse belo sonho. O Partido Republicano, a agremiação
que iria arregimentar os descontentes, aumentando-lhes a insatisfação, concorreria
decisivamente para apressar o fim de seu longo reinado. As “ questões” que brotoe-
jaram nos últimos anos do segundo reinado foram artificialmente nutridas de
azedume e até de ódio pelo Partido Republicano, com o a “ questão m ilitar” , a
“ questão religiosa” , a “ questão servil” , a “ questão federativa” , a “ questão enfer­
midade” , a “ questão sucessão dinástica” , a “ questão eleitoral” e outras, que seria
longo enumerar. O imperador fo i deposto menos por não ser monárquico o Brasil,
do que por se terem aproveitado as forças contrárias ao regime de seu liberalismo,
de seu respeito aos princípios democráticos, de sua consciência de monarca do
século X IX , de sua preocupação com o sistema representativo. F o i uma fração
mínima da opinião pública que o derrubou, numa cidade “ frondeuse” , com o o
R io de Janeiro, mas, de qualquer maneira, fo i essa fração engendrada nas entranhas
do monstro, a opinião pública, sobre a qual se erguia mais do que sobre a vontade
popular o instituto ju rídico do sistema representativo então vigente.
a representação dos interesses

O estudo das instituições representativas do Brasil, durante o período


imperial, nos coloca diante deste fato histórico: as Câmaras Municipais susten­
taram a representação, com o nos viera ela desde os primeiros anos do governo
português; acolhiam a representação do povo, através dos vereadores, isto é, da
escol de cada município. Era autêntica? Era inautêntica? Era emanação direta
da vontade das pequenas repúblicas municipais? Era elitista, com o as argüiu Oliveira
Vianna? N ão importa. As Atas comprovam, abundantemente, que nas Câmaras
se concentravam os representantes do povo, e que os interesses da comunidade,
ainda que miúdos, mereciam dos vereadores a atenção diuturna, permanente, vigi­
lante. Com o vimos dizendo, e já o dissemos em outra obra , 1 fo i nas Câmaras
Municipais que a representação do povo se fe z presente e manifesta. A lei dc 19
de outubro de 1828 criou em cada cidade e vila do Im pério as Câmaras Muni­
cipais, confirmando as que funcionavam e dispôs sobre as suas atribuições. O
artigo 49 estipulava:

“ Os vereadores tratarão na vereação dos bens e obras do Conselho, do


governo econôm ico e policial da terra; e do que neste ramo fo r à prova
de seus habitantes” .

' História da Municipalidade de São Paulo. São Paulo, Edição da Câmara Municipal do Sffo
Paulo, 1977, prefácio.
242 O PO D E R M O D E R A D O R

As Câmaras eram — artigo 24 - corporações administrativas, não exercendo


jurisdição contenciosa. A lei determinava em detalhes tudo quanto competia ao
vereador fazer e deixar de fazer. Por lei de 12 de agosto de 1834 foram criadas
as Assembléias Legislativas Provinciais, as quais, com as Câmaras Municipais, exer­
ceriam o direito reconhecido e garantido pelo artigo 71 da Constituição.

“ A Constituição reconhece e garante o direito de intervir tod o o cidadão


nos negócios de sua província, e que são imediatamente relativos a seus
interesses peculiares” .

Com esse decreto, as Câmaras passaram a uma situação hierarquicamente


inferior na representação do povo, mas conservaram a autonomia que lhes fo i
instituída e outorgada desde a fundação da primeira, a de São Vicente. Pela
Constituição de 1824 o poder Legislativo era delegado à assembléia geral, com a
sanção do Imperador, compondo-se de duas Câmaras, a Câmara dos Deputados
e o Senado. Regulamentado o funcionamento das Câmaras municipais completou-se
a organização política do Império.
Quem estuda as instituições representativas desse p eríodo cuja extensão
abarca sessenta e cinco anos verifica que, embora reduzida em número, para a
população, ela fo i delegada dos interesses das várias categorias sociais e econô­
micas, de que se compunha a nação. Não se tratava, portanto, de uma representação
de opiniões, mas de interesses. Como dissemos em capítulo anterior, apoiados
em A fon so Arinos de M elo Franco, os dois principais partidos do Im pério repre­
sentavam cada qual interesse de classe, de categoria e de estamento. A inauguração
do Im pério, já na fase histórica do liberalismo, dos partidos, da Constituição e
das Assembléias populares não se compadeceria, evidentemente, com a instituição
das Cortes Gerais, de cuja idéia, conceito e até conhecimento menos superficial
estavam distantes os políticos da época. Na Europa pré-revolucionária nunca se
tom ou o governo representativo pelo governo parlamentar. Representação e
governo não se confundiam. Cada qual tinha a sua própria esfera de ação. N o
velho Portugal, as Cortes Gerais não constituíam um poder, mas um elemento
subsidiário do poder.2 Proclamada a nossa Independência já na quadra histórica
do triunfo irresistível do unitarismo napoleônico, cedemos à moda. N em poderia
ser diferente. Organizamo-nos em poderes, delegados pela nação, com o vem no
artigo 12 da Constituição de 1824.
N ão estabeleceu a representação partidária a primeira Constituição do Brasil.
É omissa a esse respeito. Com o já vimos, o sistema de partidos seria criado somente
nos últimos anos da Regência, e prevaleceria até ao final do Im pério. A represen­
tação na Câmara e no Senado organizou-se ao sabor das conveniências e dos inte­
resses circunstanciais, enquanto não cogitaram os políticos da época de fundar
partidos. Predominou, então, uma espécie de Corte Geral, cada grupo com seu

2 A n tôn io Sardinha. Op. cit., p. XCI.


A R E P R E S E N T A Ç Ã O DOS INTERESSES 243

líder e seus interesses, concentrados em torno do interesse maior do Estado, que


apenas iniciava a sua vida histórica. Deixamos expresso que somos francamente
pela reform a da representação. Seria impossível, com as idéias do tem po, querer
Câmaras diferentes das que tivemos, e, ainda hoje, qualquer proposição para
mudar-lhe a estrutura e o objeto malograria. Mas não custa defender uma tese
e um princípio. N ão deve a nação ficar sujeita aos ventos instáveis da opinião.
Soprando de vários quadrantes, não reveste quase sempre o símbolo do que pensa
a nação, do que lhe interessa da parte do poder, mas a impressão do mom ento,
não raro urdida pelos meios de comunicação, pelo poder econôm ico e pelo
maquiavelismo partidário ou, mesmo, pessoal, com o tantas vezes temos obser­
vado no Brasil e no mundo.
Infelizm ente o fascismo italiano e o corporativismo português estragaram
uma belíssima idéia. Um e outro criaram o Estado corporativo, quando Estado
é instituição de direito p o lítico e corporação deve ser direito de se reunirem os
cidadãos sob os mesmos interesses, para os defenderem, sem detrimento dos
interesses da comunidade. O Estado é a nação politicamente organizada; a corpo­
ração é o sistema de corte ou estados gerais, onde se reúnem - ou se reuniriam —
as ordens ou categorias da nação, representadas por deputados que lhes conheçam
profundamente os interesses. Para sermos mais precisos, dever-se-ia mudar corpo­
ração, que caracteriza toda uma estrutura econômica, pelo vocábulo corpora­
tivismo, que, por sua vez, caracteriza estruturas sociais e políticas. O fascismo
italiano e o corporativismo português optaram pela corporação, e, em lugar de
fazerem do Estado um árbitro bem inform ado, que essa é a sua função, para obter
o melhor equilíbrio, em vista do bem comum, impuseram-no com o dirigente
econômico. N ão deveria caber ao Estado o dom ínio da corporação. Esta teria
de ser livre, espontânea e associativa. O Estado legislaria, para a sua organização,
mas a representação social não seria do povo — como estudamos em outro
capítulo — mas das ordens, dos ofícios e dos interesses da nação. A experiência
portuguesa poderia ter sido verdadeiramente louvável se Oliveira Salazar a tivesse
completado, assegurando-lhe liberdade, plena autonomia e se não a perturbasse
a repartição do governo que a dirigia, nem a União Nacional, esdrúxula concessão
ao partidarismo eleitoral, sem m otivo que a justificasse. Somente em princípio
u economia era autodirigida em Portugal. Na dinâmica de sua realidade, o Estado
a dirigia, embora Salazar tivesse proclamado, inúmeras vezes, que seu governo
procurava salvar a liberdade de iniciativa, deixando aos particulares o direito,
o dever e o risco da empresa econômica. Mas tendo a União Nacional representação
do povo na Assembléia Nacional, o sistema corporativo fo i em Portugal exclusi­
vamente econôm ico, embora com repercussões na esfera social e política.
A década de 30 assistiu e registrou a experiência corporativa. A Itália do
fascismo organizou o sistema corporativo em Câmara, subordinando ao poder central
totalitário toda a economia. O que entendemos deve ser uma autêntica, rigorosamente
íiutêntica representação das ordens, das categorias, dos estamentos, essa não se insti-
donalizou na Itália no p eríodo de Benito Mussolini. A Alemanha nazista organizou-
«e, igualmente, em corporações, mas o regime econôm ico era totalitário: dependia
244 O PO D E R M O D E R A D O R

do ministro da Economia, o qual possuía plenos poderes sobre tod o o grupo econô­
m ico, disfarçando esse abarcamento sob a capa da salvaguarda dos interesses
econômicos dos chefes de empresa. Não vamos dar aqui a organização detalhada
das corporações portuguesa, italiana e alemã. Sobre terem passado, não atendem
ao plano deste livro. Queremos a corporação e o corporativismo, mas com outro
objetivo, o de aproximarmos o povo, com o o entendemos, segundo fico u exposto
em capítulo precedente, de seus representantes, que estes sejam deputados de
interesses não do anonimato, com o vem ocorrendo nas democracias parlamentares
e presidenciais de nossos dias. Roosevelt pretendeu organizar corporativamente
a economia americana, mas com insucesso, já por não o possibilitar o sistema
p o lítico americano, já por detê-lo, no inverno de 1935/36, o Congresso, que,
evidentemente, não queria perder as suas prerrogativas. Vários atos foram
praticados pelo presidente Roosevelt no sentido de criar um corporativism o ou
um corporativismo à americana. Atalhou-o a Suprema Corte; o presidente voltou
ao sistema tradicional dos Estados Unidos, veio a guerra e o mundo tom ou outro
rumo.
N a realidade, de todas as tentativas, até agora ensaiadas, de reform ar a repre­
sentação, forças políticas, preconceitos, hábitos enraigados, privilégios e outros
fatores convergiram para esse vértice, e os malogros se sucederam. Queria João
Camillo de Oliveira Torres que considerássemos os partidos corporações políticas,
criadas para tomarem o lugar das corporações das ordens. Parcialmente de acordo,
entendemos que a era industrial, onde nos encontramos, reclama m uito mais
do que os partidos, esses agrupamentos secundários que só se institucionalizaram
nos países de língua inglesa. A corporação viria dar autenticidade à representação.
Os totalitarismos, repetimos, arruinaram uma bela idéia.
Se se levar em consideração que o m ovim ento obreiro, entendido nele todos
quantos com põem a parte do trabalho, é dotado de uma espontaneidade, in feliz­
mente reprimida por um grande número de governos, e explorado ignobilmente
por essa peste, o comunismo, podemos chegar à corporação. O povo, com o reunião
de categorias, é portador de valores que devem ser levados em consideração. O
primado da comunidade sobre a corporação deve ser reconhecido, e o da vida sobre
o trabalho deve ser proclamado. Toda uma hierarquia humana, social e política
deve ser, por seu turno, respeitada. A propriedade, a associação na empresa, o
equilíbrio entre a agricultura e a indústria são outros problemas, com o problema
gravíssimo é o da concentração urbana gerando esses monstros, as megalópolis.
A tecnologia tem aportado melhores condições de vida ao ser humano, mas ainda
não eliminou o proletariado, nem, possivelmente, o eliminará; criará o proleta­
riado tecnológico, fazendo-o' enfrentar “ gadgets” e inflação, na precariedade da
insegurança.
Insistimos que é preciso mudar a representação. Em que, com o, por que
são representantes do povo os senadores, deputados federais e estaduais? São,
simplesmente, candidatos eleitos que dispõem, temporariamente — numerosos
duradouramente — de um cargo eminente, bem remunerado, uma sinecura, obtida
pela via eleitoral. Se optamos pela corporação é por vermos nela, na possibilidade
A R E P R E S E N T A Ç Ã O DO S INTERESSES 245

de sua adaptação à era industrial e através de seus órgãos, se representarem no


Estado as ordens ou corpos intermediários que constituem as sociedades humanas
politicamente organizadas. Não queremos a volta ao passado. É impossível; mas
é perfeitamente possível ir buscar no passado o exem plo da organização social
e econômica, antes que a revolução francesa tivesse posto em circulação um
conceito fic tíc io de povo, conceito que predomina até aos nossos dias. A organi­
zação corporativa em corpos, ordens ou estados teve longa vigência antes da
revolução francesa . 3 F o i a Lei Chapelier que a fulminou, a fim de que o individua­
lismo burguês se expandisse. Quando a palavra da Igreja era ouvida, ou sabia se
fazer ouvir, a idéia de corporação fo i pregada .4 Pio X I 5 exaltou as corporações
medievais, e lem brou que elas eram admiradas. Leão X I I I 6 as defendeu e acen­
tuou: “ É preciso que os operários se adaptem às condições atuais da vida, pois
estamos em época mais culta, com novos costumes e maiores exigências da vida
quotidiana ” . 7 Na Quadragésimo A n n o , Pio X I 8 condenou a estatização corpora­
tiva italiana — na linha atrás exposta - que lesava o princípio da livre associação,
à qual é da própria essência corporativa. N a Im m orta le D e i9 Leão X III já defendia
a Uberdade associativa, mas, também, a corporação, enquanto Pio X I 10 pregava
a superação da luta de classes opostas, fomentando-se a colaboração profissional.
Ainda na mesma encíclica, Pio X I lembra que a primeira missão desses colégios —
no exato sentido da palavra — é a de velar pelos interesses comuns de todo o
ramo. Para o p on tífice romano, que dirigiu “ urbi et orbi” essa encíclica do alto
da Cadeira de Pedro - quando não a haviam, ainda, rebaixado, com o o fe z Satã,
dentro dos muros da Cidade de Deus - , a corporação deveria preparar o caminho
para uma nova ordem econômico-social.
A corporação, no pensamento de Pio X I, revestia sentido inovador e refor­
mador. D a í o p on tífice insistir nas instituições profissionais e interprofíssionais,
para que unidas entre si constituam, sob formas adaptadas às condições de
tempo e de lugar, as corporações de antigamente .11 A bela organização profissional
e representação de um dos Estados, na estrutura política do A n tigo Regim e
francês, de Portugal, da Espanha, da Inglaterra, exprimiu, o mais fielm ente
possível, a qualidade comunitária da profissão. A corporação soçobrou, abalada

' Fr. Olivier-Martin. L ’organisation corporative de la France d ’A ncien Régime. Paris,


Recueil Sirey, 1938, passim.
4 C f. documentos p on tifícios aqui citados e José Luis Gutierrez Garcia. Conceptos
fundamentales de la Doctrina Social de la Iglesia. Madri, Centro de Estudios Sociales del
Valle de los Caidos, 1977.
’ DiviniRedemptoris, 37, A A S 29, 1937.
® Rerum Novarum, 1, A L 11,97.
' Rerum Novarum, 34, A L 11, 133-134.
" 95, A A S 93, 1931,209.
‘ A L 5, 118-50, 1 de novembro de 1885. ■
10 Quadragésimo Anno, 81, A A S 23, 204, 1931.
11 Id., ib., 55, A A S 29, 1937, 93.
246 O PO D E R M O D E R A D O R

pelo individualismo. Esvaziada de seu conteúdo, seu desaparecimento entra na


ordem lógica das coisas.12 Triunfou o individualismo, pouco a pouco, a roda
da História girou, e viemos a ter o coletivism o, que triunfa, cada vez mais, inclusive
nas sociedades aparentemente mais protegidas de sua insinuação, de seu envol­
vim ento, com o a americana e as do Ocidente europeu.
N o Brasil só tivemos a representação liberal e partidária, com exceção da
Constituição de 1934. A té 1837, formaram-se as facções; a partir daquele ano,
constituíram-se os partidos. N o período republicano, tivemos os partidos estaduais
desse nom e, oligarquias dominadoras, que dividiram o Estado com o uma presa,
e o distribuíram entre os amigos, os apaniguados, os compadres. Durante a dita­
dura de Vargas, amparada no artito 180 da Constituição de 1937, o ditador preten­
deu não haver intermediários entre o povo e o poder. Apeado do governo, os
partidos — ajuntamentos eleitorais — voltaram impetuosamente, para acabarmos,
afinal, no poder solitário apoiado na chamada tecnoburocracia, e em dois partidos,
duas facções que não se institucionalizaram, nem se vão institucionalizar.
F o i lenta a introdução do sistema representativo no Brasil. Inspirando-se
na França e na Inglaterra , 13 os políticos do Im pério optaram, decisivamente, pelo
liberalismo p olítico, pelo regime de partidos — que, com o vimos foram criados
quinze anos depois da Independência - os quais acolhiam — com o já o dissemos —
as classes que compunham a sociedade nacional da época. Instaurada a República,
as oligarquias logo se formaram, com base econôm ica, no poderio dos grandes
proprietários rurais. Não surgiu na primeira República um demagogo popular
com o Jânio Quadros. Uma expressão altíssima da- época fo i Rui Barbosa, que
simbolizava as aspirações das classes médias em form ação, o remanescente do
liberalismo europeu trasladado para o trópico, e o forte vinco ju rídico marcado
na consciência política brasileira pelas faculdades de direito de São Paulo e do
R ecife, esses dois alfobres da “ intelligentzia” do país. As instituições viviam da
oligarquia e com a oligarquia. N ão se formaram partidos, mas dissidências, uma
das quais iria se consolidar em partido depois da revolução de 24, quando os
fatos prenunciavam o fim da quadra política em nossa História denominada
República velha. Depois de 1930 formaram-se outras oligarquias, que seria
longo estudar. Sobre ultrapassar os propósitos desta obra, iria nos alongar muito.
Hoje temos a oligarquia militar e burocrática, pedantemente denominada tecnobu-
rocrática, uma e outra decidindo nos gabinetes o destino da nação, sem que esta
se manifeste, através de um eficiente, racional, lógico sistema representativo.
Fizem os uma única experiência corporativa no sistema representativo,
m as logo malograda. Pagamos tributo à época. A década de 30 deu grande im por­
tância à representação profissional. Cederam à m oda a Áustria, a Romênia, a
Polônia, a Grécia e, evidentemente, os dois grandes totalitarismos, Itália e

12 M ax Principale. Corporation et Communauté. Paris, Donnat-Montchrestien, 1943, p. 274.


13 José H onório Rodrigues. O Parlamento e a evolução nacional. Brasília, Edição d o Senado
Federal, 1972, passim.
A R E P R E S E N T A Ç Ã O DOS INTERESSES 247

Alemanha, e Portugal, que teve prioridade nessa escolha de representação. Georges


Burdeau se manifesta contrário à representação profissional. “ A idéia de fundar
a representação sobre as qualidades concretas dos representados, substituindo
a representação de uma entidade abstrata, o povo ou a nação, pela representação
das forças reais do país, é uma falsa idéia clara, e, também, um pensamento sone­
gado, que lhe dá um sentido efetivo” . “ É uma falsa idéia clara porque a sedução
que ela exerce é fictícia e cessa logo que deixamos o terreno especulativo para
sonhar com suas realizações” . “ O erro de todos os pleitos favoráveis à represen­
tação das profissões ou dos interesses é o de crer que basta eliminar os políticos
para suprimir, com o mesmo golpe, os problemas p olíticos ” .14 Concordamos,
fazendo, porém , uma distinção: a representação dos interesses que defendemos
vai além dos limites estritamente econômicos, argüidos de falsa idéia clara por
Georges Burdeau. É a representação de todos os interesses, os políticos, os sociais,
os econômicos, os morais; são, em suma, os interesses da vida, na sua plenitude.
Se os partidos malograram com o corpos intermediários, é preciso, urgente­
mente, substituí-los, porquanto a comunidade não deve ficar sem representação
no Estado. Isolando-se desses corpos, o Estado deriva, naturalmente, para o poder
absoluto, sobretudo em nossos dias, na maioria das nações em que os seus órgãos
foram ocupados por uma força anônima, a burocracia, ou tecnoburocracia, contra
a qual, com o estamos vendo no Brasil, não tem ascendência o poder supremo
do Estado. Os impropriamente chamados tecnocratas, recrutados por via de
osmose estamental — um, o principal, atrai outro, que atrai outro, e assim por
diante - não são deputados de mandato. São desconhecidos, e no entanto
governam, seja porque os corpos intermediários praticamente desapareceram,
pois as Câmaras funcionam sem expressão, sem nenhuma força para atuar no
mecanismo d o regime; seja porque os governos se submetem a essa espécie de
vulgata, que é o tecnocratismo, supersticiosamente submissos aos seus ritos, à sua
terminologia, à sua intersolidariedade eclesial, aos seus dogmas e até à sua inqui­
sição. Uma sociedade governada sob essa form a de regime distorcido de sua
vinculação com o real e a realidade acaba se envolvendo em crises — de que a
nossa é exem plo — sem que delas se possa evadir, senão pelo retorno à represen­
tação mais próxim a da autenticidade. Dentre as muitas crises nas quais se debate
o mundo contemporâneo, essa é uma delas, é, mesmo, a mais aguda. D aí, defen­
dermos a tese da representação com o primordial, e nesta, a representação dos
interesses em lugar da representação das opiniões.
Com o não há idéias e sistemas velhos ou novos, mas falsos ou legítim os,
optamos pela corporação associativa, livre, não sujeita ao Estado, espancando-se,
desde logo, a imagem deformada que o fascismo e o salazarismo delas nos deixa­
ram. Antes da era industrial as corporações e os corpos intermediários, em geral,
funcionavam muito bem, cumprindo a finalidade que lhes era própria. N o Brasil
não chegaram a ter existência, pois até ao fim do Im pério éramos uma nação

14 Op. cit., IV , p. 273.


248 O PO D E R M O D E R A D O R

de econom ia agrária, na qual predominava o trabalho escravo, portanto não


representado. Em Portugal, na Espanha, na França, nos Países Baixos, na Alemanha,
na Inglaterra, tiveram viva situação na estrutura do Estado. A revolução francesa
vibrou golpe de morte nas corporações. A dissolução de todas as associações
profissionais, pela tristemente famosa Lei Le Chapelier, de 1791, correspondeu
à concepção do contrato social, que rejeitava todo o corpo intermediário entre
o indivíduo e o Estado. Ficaram proibidas todas as ações coletivas. Durante
um século, todo o século X IX , enquanto o maquinismo movia usinas e tornava
penosas, até mesmo inumanas, as condições de trabalho, provocando o pleno
advento do capitalismo individualista e selvagem, os princípios emanados da
revolução francesa se opunham a toda a tentativa de organização obreira. Foi
somente em 1884 que voltaram os sindicatos, mas, então, o M anifesto Comunista
e o O Capital já haviam conquistado adeptos; poucos anos mais tarde, a Igreja
tomava posição, através da R eru m N ovarum , e a questão operária se impunha.
Quando, pois, defendemos a idéia de uma representação corporativa,
associativa, livre, não submetida ao Estado, com o no fascismo e no salazarismo,
insistismos para que não se confunda a nossa posição com a totalitária. Queremos
os corpos intermediários representados no Estado. Se o partido não tem eficácia,
que seja ele substituído. N ão se fique preso a um tabu, que, apenas — e a nossa
História está a í para comprová-lo —, engendrou crises, e nos conduziu ao poder
autoritário na cúpula. Abandonemos a idéia do cidadão e adotemos a do ser
humano que pertence a uma fam ília, a uma profissão — ou a várias, pois que tem
mudado, sobretudo no Brasil, nessa fase de transição, política, econômica e
social — e a sua classe. Com o dizia Charles Maurras, 15 não se neguem as classes;
que sejam elas subordinadas aos corpos profissionais, reunindo-se dessa maneira
os membros da nação, em lugar de dividi-los. 0 marxismo assenta sobre a luta
de classes a sua teoria; nós assentamos a nossa sobre a concórdia das classes, as
quais, devendo conviver nas sociedades, têm de colaborar umas com as outras,
pela paz social, política e econômica. As classes se interpenetram, e numa socie­
dade erigida sobre as liberdades, elas ascendem de baixo para cima. Na França,
o membro do Terceiro Estado não era um proletário fix o , com o no sistema comu­
nista experimentado na União Soviética e nos países do leste europeu; ascendia
na escala social e passava à nobreza. Com o se form ou esta senão por essa escalada?
E o Terceiro Estado não era aprobrioso. Nele tinha assento a burguesia, que fo i,
de resto, quem fe z a revolução francesa, que a sustentou, e que dela se aproveitou.
Com o se form ou a classe dirigente no Brasil, a aristocracia do primeiro e segundo
reinados? Pela ascensão social. N ão lhes atribuindo direitos hereditários, os dois
imperadores criaram uma classe dirigente, que iria dar, com o deu, na política,
na sociedade, nos empreendimentos econômicos, estupendo brilho ao Império.
As classes são oligárquicas em regime dominado pela burguesia argentária,
ou pela burocracia ideológica e partidária do comunismo. Nada há mais aberto

15 “ A ctio n Française” , 6 de setembro de 1908.


A R E P R E S E N T A Ç Ã O DOS INTERESSES 249

à ascensão do que a Inglaterra. Os reis premiam os serviços à pátria. Basta percorrer


a nobiliarquia de qualquer reino, inclusive o do Brasil, para se chegar à mesma
conclusão que nós .16 Voltem os, pois, ao natural, aos corpos intermediários, sem
os quais as sociedades derivam para a opressão, com base nos interesses. É difícil
compreender e aceitar essa proposição em mundo anarquizado com o o nosso.
Reconhecemo-lo. Mas, se nos abeberarmos da teoria dos sistemas e da cibernética,
veremos que uma sociedade só poderá, organizadamente, funcionar, se obedecer
aos princípios naturais que a devem sustentar. F o i essa a intuição de La Tour
du Pin . 17 “ O que há de mais característico no regime corporativo, depois da
garantia do direito individual, é a do próprio direito de associação. Esta não é
( . . . ) uma sociedade puramente particular, sem ligação com a coisa pública. É
uma instituição social com um lugar determinado na organização da comuna,
e mais ou menos diretamente na do Estado ” . 18 N ão estamos oferecendo aqui
a organização jurídica da corporação. Fugiria, se o fizéssemos, ao plano e ao fim
desta obra. Preocupamo-nos com os corpos intermediários, com a autêntica —
ou tão autêntica quanto possível — representação do povo, entendida esta na
acepção já estudada em outro capítulo. N ão queremos nada com Saint Simon,
Proudhon e M arx; queremo-lo com Augusto Comte, em parte, e com os católicos
sociais; tomamos-lhe a doutrina e a adaptamos à era tecnológica, a qual, mais do
que as outras, se ajusta à organização corporativa, não partidária.
Se as grandes empresas, se seus dirigentes fossem mais instruídos, se estu­
dassem os fenômenos políticos, sociais e econômicos, não pela rama ao acaso
de leituras superficiais da imprensa, optariam pelos corpos intermediários, com
fundamento nos interesses, pois esse é o único m eio de que dispõem para se liber­
tarem da tutela do Estado e da oligarquia tecnoburocrática. Quem observa a
estrutura da econom ia contemporânea verifica, num país com o o Brasil, a concen­
tração de poderes econôm icos cada vez maiores sob o poder do Estado. Em
outros países o fenôm eno é análogo, inclusive nos Estados Unidos, embora
prevaleça ainda a econom ia de mercado no seu processo de consecução da riqueza.
Mas o Estado é em tal dimensão poderoso, com suas leis, sua intervenção, a com pe­
tência de seus órgãos que, paradoxalmente, assistimos a um fenôm eno curioso:
os trabalhadores, em suas organizações, com o A F L -C IO , são mais livres do que
os empresários. N o Brasil o ministro da Fazenda mudará, se quiser, a própria
organização do Estado, com uma resolução. N ão precisamos dar exemplos.
Lembramos, apenas, que, com o Banco Central, o Banco Nacional de Desenvol­
vimento Econôm ico e o Banco do Brasil, ele tem a econom ia brasileira sob controle.
Se quisermos enquadrar o Brasil numa ideologia política, diremos que ele é socia­
lista — classificá-lo-íamos numa das chaves variadas de socialismo — tamanho
o poder de intervenção do Estado na empresa, e no assenhoreamento total da

Cf. João Camillo de O liveira Torres. A democracia coroada, p. 438 e ss.


1' Vers un ordre social chrétien. Paris, Beauchesne, 1919, passim.
l$ Id „ ib„ p. 23.

_
250 O PO D E R M O D E R A D O R

moeda e do crédito. Nesse quadro, onde estão os corpos intermediários? N o


Congresso? Mas ninguém ignora que o Congresso nacional é, nesta fase de nossa
História, apenas decorativo. Sua função delimitada, para salvar a fachada demo­
crática que os detentores do poder lhe assinalam, o sonegou da vida política
brasileira . 19
Uma autêntica reform a política, a reform a que os governos autoritários
emanados do m ovim ento de 31 de março de 1964 não realizaram, nem, ao parecer,
têm capacidade para realizar, deveria ter em conta os fatores todos por nós indi­
cados. Optando-se pelo regim e de partidos, considerados, segundo João Camillo
de' Oliveira Torres, “ corporações partidárias” , ou pelo regime dos corpos de inte­
resses, só há para o Brasil — a nosso ver - uma solução, o poder m oderador, em
atualizada organização do Estado (v. figura na página seguinte).
A s Câmaras, na primeira alternativa, continuariam a ser legislativas. Regime
bicameral, com Senado e Câmara dos Deputados, ambos partidários. Se refor­
mada a legislação eleitoral, adotando-se o voto distrital majoritário, o bipartida-
rismo poderia subsistir. Na segunda alternativa, a Câmara, ou Cortes Gerais,
representariam ao Estado, que legislaria segundo os interesses e as necessidades
nacionais. A iniciativa das leis caberia ao Conselho de Ministros, escolhido dentre
os< membros do partido majoritário, não se pondo a questão de confiança. O
Conselho de Ministros seria delegado do chefe de Estado. Caberia, igualmente,
ao Conselho de Ministros, se escolhido este dentre membros das Cortes Gerais.
Numa e noutra alternativa, o Conselho de Ministros seria assistido sempre de uma
assessoria legislativa, que redigiria tecnicamente cada lei. Sem querermos fazer
ensaio futurológico, diremos que o sistema partidário atenderá menos aos inte­
resses e necessidades nacionais, porquanto não garantirá o desenvolvimento tanto
quanto possível harmônico da economia, da sociedade com o um tod o, nem a
prom oção humana a mais elevadas condições de vida. O sistema da representação
pelas Cortes Gerais — corporativismo de associação protegido por legislação ade­
quada — garantiria progressos técnicos contínuos e m etódicos; o entendimento
entre as classes; a arbitragem corporativa; qualidade industrial; participação e
co-gestão; integração nos destinos nacionais. U tópico? Quem sabe? A era industrial,
tecnológica, cibernética, a era das grandes massas distribuídas pelos três setores
econômicos da classificação de Colin Clark, agricultura, indústria, serviços, a que
se acrescenta um quarto, o pós-industrial, inform ático, não fez, ainda, essa expe­
riência, mas com o o p o lítico , o social e o econôm ico devem fundir-se para atender
aos interesses e necessidades nacionais, uma estrutura lógica do Estado é a que
se previna contra a precariedade, assentando sobre o poder estável, que é o poder
m oderador; que não se sujeite às oscilações da opinião e dos partidos, cujos
membros e representantes se recrutem ao acaso das campanhas eleitorais, em
regra iníquas e irracionais; que tenha na base as repúblicas municipais e no topo
a representação corporativa associacionista. Esta é, a nosso ver, a organização

19 Escrito no segundo semestre de 1977.


A R E P R E S E N T A Ç Ã O DOS INTERESSES

lógica do Estado, embora a primeira alternativa possa ser adotada. Entendeimm


que, restaurado no Brasil o poder m oderador, a crise política seria resolvida, e n
democracia reencontraria o rumo perdido. É o que desejamos.

OU
o partido político,
grupo de pressão

A expressão, cunhada em Washington, em 1925, ao que consta por autor


que não chegou a ser conhecido, ganhou extraordinária notoriedade, e hoje é
correntemente usada: grupo de pressão, “ pressure group” , “ interest group” , em
todas as línguas com as mesmas conotações, não raro revestida de laivos pejora­
tivos. Devemos, porém, admiti-la na sua presença incoercível, com o um dos
motores das relações e inter-relações sociais, da ação política e da iniciativa econô­
mica, da projeção moral e da hegemonia espiritual. O grupo de pressão, institucio­
nalizado ou não, existe, e deve ser encarado na sua real configuração, a de força
multifacial, seja qual fo r a sua denominação: partido, associação de classe, escola,
empresa, organizações de qualquer tipo, nas quais se reúnam pessoas com interesses
afins e definidos, em face do objetivo a alcançar.
O estudo científico do grupo de pressão deve partir da natureza do grupo,
ou seja, um conjunto form ado por pessoas, que, ligadas pela comunhão de ati­
tudes e interesses — seja qual fo r a sua natureza —, reivindicam, opinam, atuam,
externam pretensões, visando a um fim a alcançar. São primários, secundários,
terciários os grupos, e, na mesma linha, os grupos de pressão. O grupo primário
por excelência é a fam ília, sobre a qual se levanta o ed ifício social. Abalada,
embora, pela crise moral que mina os fundamentos de todas as sociedades, inclu­
sive as mais resistentes, a fam ília, grupo primário, é, ainda, a matriz na qual se
elaboram os demais grupos. A decadência moral da mulher americana que manteve
relações sexuais com vários membros da comunidade onde vive, a fim de que
não se soubesse a identidade do pai de seu filh o — que seria ou será o filh o de
254 O PO D E R M O D E R A D O R

comunidade — não invalida a tese. Essa é uma exceção monstruosa, que não se
deve generalizar. A m aior parte da humanidade é ainda, e deverá sê-lo no futuro,
fiel ao princípio da origem familial da sociedade e de seu ponto de partida, como
grupo primário.
O grupo nacional, outro grupo primário, apresenta, tanto quanto o familial,
características excepcionais de resistência, por mais que se avolume a frente dos
intemacionalistas, sobretudo dos europeístas. Se o nacionalismo tem sido, sobre­
tudo depois das guerras napoleônicas, uma das manifestações mais vivas dos povos,
nunca, com o neste século, tanto esse sentimento se fez mais evidente, mais forte
do que neste últim o terço do século X X . Cento e cincoenta e um Estados preten­
dem corresponder a cento e cincoenta e uma nações, que poderiam estar reduzidas
a um número menor, com o é o caso — sem individualizarmos os exemplos -
da Am érica Latina e da Á frica. Os intemacionalistas esposam a tese da federação
dos Estados. É o caso de alguns europeus, que lutam pela constituição dos Estados
Unidos da Europa, com base no Mercado Comum Europeu. Mas, ou muito nos
enganamos, ou essa Federação é tão utópica quanto a ilha de Tomás Morus. Se fo i
possível à Europa registrar em sua história algumas federações, com o o Império
do Ocidente, o Im pério do Oriente, o Sacro-Império Rom ano, o Im pério Otomano,
o Im pério Austro-Húngaro, essa idade precedeu ao nocivo p rin c ip io das nacio­
nalidades que se gerou no ventre da revolução francesa, e de suas entranhas se
entornou sobre o mundo. Hoje, não vislumbramos a possibilidade de uma fede­
ração européia, semelhante à federação americana, nem mesmo aceitamos a
hipótese da solidez da federação comunista do leste europeu, mantida, exclusi­
vamente, pelas armas, pelo imenso poderio bélico do exército soviético. Os
Estados — ou simulacros do Estado, com o a Alemanha Oriental - que a com põem
se libertariam de seu ju go , se pudessem enfrentar as bem armadas forças da
União Soviética, que detêm o m onopólio do comando e dos arsenais do Pacto
de Varsóvia.
A nação é, portanto, um grupo primário, solidamente ancorado na socio­
logia política dp mundo. O m unicípio é outro grupo primário, na estrutura política
das nações, mas esse, mesmo, vem sendo abalado, cada vez mais, pelas migrações
internas, pela expansão megalopolitana de centros que atuam com o bombas de
sucção, as capitais e as subcapitais dos grandes conglomerados humanos. O que
nos interessa, portanto, focalizar são outros grupos: o secundário e o terciário.
Sociopsicologicamente, a empresa é grupo secundário, dotada de todos os carac­
teres de continuidade, hierarquia interna, convergência para um mesmo fim , o
seu desenvolvimento, e base de segurança da pessoa pelos vínculos empregatícios,
num caso, e pelos interesses do investimento no outro.
A empresa é o que, na nomenclatura anglo-saxônia da psicologia social,
se denomina “ in-group” ao qual se opõe o “ out-group” isto é, grupo de com pe­
tição ou de cooperação. Nas sociedades arcaicas ou nas sociedades desenvolvidas,
nas sociedades primitivas ou nas sociedades de massa, com o a maioria das contem ­
porâneas, esses dois tipos de grupo se encontram, se confrontam e se defrontam,
mas não se destróem. Grupo primário, secundário ou terciário eXtemam indícios
O P A R T ID O PO LÍTICO , G R U P O DE PRESSÃO 255

de vitalidade excepcionais, embora uns sejam susceptíveis de perecer, com o os


últimos, outros de se transformar, com o os segundo e primeiro, ao influ xo e sob
o peso de influências exteriores, que neles se introduzem, provocando mudanças,
não raro em dimensões que dificilm ente se abarcam no período de uma geração.
Na interação pessoa-pessoa; pessoa-grupo; grupo-grupo, joeiramos, se nos
dispusermos a observações profundas, os mesmos estímulos e as mesmas respostas;
os mesmos fenômenos provocando as mesmas reações, se a mentalidade que
informar as partes em confronto se conservar inalterável durante largo período
de tempo. Seja no contacto face-a-face; seja na submissão institucionalizada ao
grupo — aos códigos, aos ritos, à hierarquia, à autoridade, que com põem o grupo
secundário —, os grupos constituem as sociedades, e nem mesmo a onda anti-
natural do liberalismo individualista do século passado os submergiu. A o contrário,
os grupos secundários exercem , no processo social, função dominante, influindo
na fam ília, no equilíbrio p o lítico , na orientação da p olítica de Estado dos governos
e na estrutura das ideologias, através da circulação das interações, do formidável
avanço científico-tecnológico em todos os ramos do saber, da urbanização violenta
a que estão submetidos todos os povos, inclusive os povos do deserto, cujas
condições de vida foram alteradas pelo transístor, pelas estradas asfaltadas, pelos
veículos que trafegam na areia e pelas técnicas de irrigação. Com pletado esse
quadro pela divisão do trabalho e pelos caracteres da sociedade de massas, fen ô ­
meno estudado, entre outros, por Mannheim ,1 sociedade altamente racionalizada,
onde as relações são impessoais, a especialização de funções um fato concreto,
temos nos grupos secundários fatores decisivos na composição da fisionom ia de
nosso tempo. São os gânglios, os nervos, o sistema de circulação do corpo social,
e, mesmo as federações preconizadas pelos intemacionalistas, ou qualquer teoria
que se elaborou sobre a política dos povos — área sobre a qual tudo já fo i dito —
não os destruirão; ao contrário deverão contar com eles, se não quiserem preci­
pitar o mundo na calamidade estudada por Sorokin ,2 portanto no caos. O grupo
de pressão pode ser colocado nessa chave. É um grupo secundário, de vida dura­
doura ou efêmera, que, no entanto, desempenha papel importantíssimo no seio
das instituições políticas, sociais, econômicas e religiosas das nações. Esse grupo
sempre existiu, em todas as sociedades, embora a sua denominação seja relati­
vamente recente.
Quando um número de pessoas se une para defesa, manutenção ou destruição
de uma posição à qual ligam seus interesses, a expressão já consagrada se im põe,
e não há com o substituí-la. N a história de todos os povos, em todas as épocas,
os grupos de pressão atuaram. Grupos secundários, com o os classificamos, m odi­
ficam-se, desfazendo-se, refazem-se, compõem-se e se decompõem, mas com o

1 K arl Mannheim. Liberdad y Planificacion. M éxico, F o n d o de Cultura Económ ica, 1942,


passim.
2 Pitirin A . Sorokin. Man and Society in Calamity. N ova Y o rk , E. P. Dutton and Com pany,
1942, passim.
256 O PO D E R M O D E R A D O R

um todo sociopsicológico atuam dentro das nações e entre elas sobre o poder,
e na empresa; na fam ília e até nas sociedades aplicadas à gratuidade e à disponi­
bilidade dos objetivos a alcançar. N o Estado, na Igreja, na empresa, nas academias,
nas escolas, na fam ília, onde quer que a pessoa atue e mantenha, com o é de sua
natureza, inter-relação e interação social, a pressão se manifesta e se form am os
grupos de pressão ou interesse, que se aplicam à consecução de um objetivo
próxim o ou rem oto. Através da História os grupos de pressão apresentaram
configuração diferente. Deu-lhes form a a concepção de sociedade da época. A
oligarquia em Esparta, a oposição sob os Césares em R om a ;3 a hegemonia da
Cúria Romana sobre o poder temporal durante a Idade Média; a burguesia, as
“ sociétés de pensée” e os clubs da revolução francesa; a maçonaria, os grupos
econômicos e financeiros dos séculos X IX e X X ; os partidos, os sindicatos, as asso­
ciações de classe; os grêmios estudantis; os grupos que se form am dentro da igreja
já são exemplares do que se denomina, na linguagem técnica, grupos de pressão.
Pode ele não ficar adstrito, exclusivamente, ao interesse — e outra denominação
que se lhe etiqueta é de grupo de interesse — no sentido egoísta do vocábulo,
mas sua form a de atuar é a pressão.
A teoria marxista da luta de classes se constitui numa form a revolucionária
de pressão. Entendendo-se a classe com o um grupo, largo, amplo, abarcando toda
uma vasta categoria social, vemos no marxismo a teorização da luta de um grupo
de pressão para eliminar outros, através de m ovim entos dialéticos, do qual sairá
vencedor, segundo a concepção marxista, o proletariado. N o M anifesto C om unista 4
Marx afirma que a história da sociedade se confunde com a história da luta de
classes, afirmação que reveste apenas cunho parcial de verdade, não com o uma
realidade histórica determinista, mas com o uma form a de conflito de interesses,
que se manifestaram até agora no curso da História. Não se encontra na História
a prova de que, dividida em classes, a humanidade assista, permanentemente, à
sua luta, até à destruição final de umas e o triunfo último de outra, o proleta­
riado, o qual, com o classe única, teria a posse da Terra, no messianismo utópico
de Marx. Sua teoria é racionalista, no melhor estilo hegeliano — “ tudo o que é
racional é real” — ou seja, engendrado na razão, que adapta a História ao seu
esquema. “ Hom em livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre e
companheiro, numa palavra, opressores e oprim idos, estiveram em oposição
constante uns contra os outros, fazendo guerra sem trégua, já dissimulada, já
aberta, a qual, cada vez, acaba por uma transformação revolucionária de toda a
sociedade ou pela destruição comum das classes em luta” .s Para chegar a essa
abstrusa conclusão, os autores do M anifesto criaram a teoria da alienação, sobre

3 Gaston Boissier. L ’opposition sous les Césars. Paris, Hachette, 1875, passim.
4 Karl Marx e Friedrich Engels. Manifesto do Partido Comunista. Londres, Encyclopaedia
Britannica, 1952, passim

5 Id., ib., Cap. I.


O P A R T ID O PO LÍTICO , G R U P O DE PRESSÃO 257

a qual alcançaria vitória final o proletariado, através da luta de classes,6 forma


essa de choque de grupos de pressão, que se iriam eliminando dialeticamente pela
violência, pela substituição, pela ditadura, áté ficar uma só classe, ou um só grupo,
então desvestido da necessidade de pressão. O órgão dessa luta seria o partido,
o qual, representando o povo, segundo o monismo hegeliano, tomado com o um
todo, venceria as contradições da sociedade, aniquilaria as alienações, e ficaria
só com o proletariado usufrutuário da idade de ouro da nossa passagem pela
Terra. Com o se vê, estamos longe da realidade do mundo e do realismo, que teve
em Santo Tomás o seu campeão. Decorridas seis décadas da revolução de outubro,
as alienações persistem na pátria da experiência comunista; o proletariado se
transformou, ao influxo das mudanças políticas, econômicas e sociais operadas
no mundo pela ciência e a técnica, mas a U.R.S.S. não o reconhece, presa à vulgata
marxista, de que fala Raym ond A ro n .7 A férrea ditadura que domina a União
Soviética é sempre uma espécie tirânica de submissão total da pessoa humana
ao aparato do Estado e do partido, em tão vasta extensão, que as vontades indivi­
duais são desfibradas, e a função de pensar constitui, apenas, um ato temerário
de alguns inconformados, de alguns desprendidos heróis da reação. O choque
desse grupo de pressão com a realidade vem alimentando crises infindáveis no
mundo contemporâneo, pois, ao contrário dos choques dos grupos de pressão
político-partidários nas democracias liberais ou social-liberais do Ocidente e do
Sistema Ocidental, a sua finalidade é a conquista violenta do poder, seguindo-se-lhe
a exclusão definitiva de outros grupos, como os que militam nas sociedades politi­
camente plurais. Grupo de pressão mundializado, usa armas das quais se abstém
outros grupos de pressão, com o a guerrilha, o terrorismo, e por extensão a
guerra revolucionária.
Segundo Jean Meynaud ,8 encontra-se no grupo de pressão o sistema de
relações mútuas necessário à afirmação de uma conduta coletiva. Sua eficácia
depende de seus membros, de com o se mantêm eles unidos e solidários em torno
de liderança comum entendido o líd er com o o veículo das aspirações da comuni-
dude ou. da coletividade. Quem observa e estuda um grupo de pressão, qualquer
<|uc ele seja, vê-se diante do fenôm eno aqui descrito, no qual entram, com dosagens
diferentes, o grau de interesse da pessoa pelo grupo, sua integração nele, a adesão
OHpontânea ou calculadamente atraída, a disposição de se manter solidário com
o grupo e obedecer à liderança, a admissão, se se impuser, de colaboração com
niilros grupos. Com esse comportamento a pessoa que adere ao grupo e nele se

* A bibliografia é tão extensa e, supostamente, conhecida, que nos dispensamos de citá-la;


no entanto, a Ideologia A lem ã e o Manuscrito de 1844, e, evidentemente, o Capital são
indicados. Cf. Bartell OUman. Aliénation. Cambridge, Estados Unidos, Cambridge Uni-
vniulty Press, 1973, passim; Jean Yves Caívez. La Pensée de Karl Marx. Paris, Seuil, 1956,
imslm.
' Kuvmond Aron. Playdoyer pour une Europe décadente. Paris, Galliaard, 1978. Passim.

' lonn Meynaud. Les groupes de préssion en France. Paris, Armand Colin, s/d, passim.
258 O PO DER M O D E R A D O R

mantém submete-se ao “ esprit de corps” , adaptando suas categorias mentais às


que se formaram na sua nova condição. O grupo vive e sobrevive na dependência,
portanto, do interesse de seus membros, do denominador comum estabelecido
para a sua ação e do nível m édio da consciência grupai formada pelas interações
sociais. Na maior parte dos casos, os grupos de pressão atuam com o instrumentos
da vida política, mas nas demais esferas de atividade humana, eles também se
fazem presentes, não raro com decisiva influência sobre acontecimentos e fatos.
Essa, em teoria e sucintamente, o que se deve entender por grupo de pressão, ou
“ pressure groups” ou “ interests groups” . São poderosos os grupos, acentua
Meynaud ,9 segundo sua estrutura interna, sua técnica de ação e seu estatuto social.
São portanto, múltiplos; seus modelos são vários, embora teoricamente, com o
já definimos, se constituam da reunião, duradoura ou efêmera, de pessoas unidas
pelos mesmos interesses. É, na definição de Meynaud, a determinação de seu
objeto, ou, mais exatamente, de sua comunidade de atitudes, que é motivada
sua criação, particularizando-se sua estrutura com o elemento de relações sociais.
A ideologia da qual o grupo se alimenta, os fins a alcançar e a form a com o fazê-lo
são outros tantos elementos que, explicitamente ou não, se encontram na sua
constituição. Usando, em regra, a propaganda com o instrumento de sua ação,
o grupo do qual vimos tratando se fa z conhecido, a menos que o poder coerci­
tivo do Estado o impeça. Não há, pois, dificuldade na escolha dos m odelos, para
ilustrar a teoria que expusemos.
Em 22 de abril de 1966, o jornal “ O Estado de S. Paulo” publicou a seguinte
notícia: “ O Ministro Aliom ar Baleeiro, presidente do Supremo Tribunal Federal,
defendeu, anteontem, em Brasília, a instituição de ‘lo b b y ’ no Congresso Nacional,
declarando que a existência de grupos de pressão é o fato mais natural no processo
legislativo e que no Congresso dos Estados Unidos há 39 ‘lobbystas’ para cada
grupo de 1 0 deputados” . O “ lobbyism ” é, efetivam ente, uma instituição da
política norte-americana, mas se lhe devem imputar males era tão grande número,
que antes devemos considerá-lo um vício do que uma qualidade dos costumes
políticos dos Estados Unidos. Um dos agentes da corrupção política americana,
o “ lobbyism ” é mais um exem plo negativo do que positivo do grupo de pressão.
B ryce , 10 há quase um século, já lhe assacava acusações, e Harold J. Laski ,11 no seu
profundo estudo sobre a democracia americana, também acentua o papel dos
grupos de pressão sobre os representantes do Congresso, definindo-os com o um
Congresso atrás do Congresso, armado de uma espécie de autoridade, que não
deve ser subestimada. Se estamos de acordo que o “ lobbyism ” seja aceito com o
um “ fato consumado” da política americana, não devemos, no entanto, aceitá-lo
com o uma instituição susceptível de ser imitada. As nódoas que maculam a organi­

9 Id., ib.
10 James Bryce. The American Commonwealth. Op. cit., passim.
11 Harold J. Laski. The American Democracy. Op. cit., passim; “ The E conom ist” , 26 de
novem bro, 2 de dezem bro de 1977.
O P A R T ID O POLÍTICO, G R U P O DE PRESSÃO 259

zação p olítica americana se lhe devem averbar, e em não pouco volume. É, contudo,
o “ lobbyism ” o grupo de pressão na sua atividade bem caracterizada; faz parte
dos costumes da política americana, a tal ponto que passa despercebida sua imorali­
dade sob a aceitação de sua existência, dinâmica, incoercível, até mesmo dom i­
nadora. O Congresso paralelo, de que fala Harold Laski, não eleito pelo sufrágio
democrático, porém mantido pelo dinheiro dos grupos interessados na obtenção
de leis, contraria os princípios da democracia, mas está ele em Washington, insta­
lado, firm e, com seus para-deputados e para-senadores. É esse o espécime de grupo
de pressão dos mais destacados e influentes, de quantos analisamos.
Outro grupo de pressão, no mundo moderno, é o partido político. Sua
história, com o grupo secundário organizado, é recente, pois data da Independência
americana, mas sua carreira tem sido vitoriosa .12 Seria longo entrarmos na exegese
do partido p o lítico , instrumento de governo, com o grupo de pressão. Sua axiologia
é com plexa, e o estudo de seus aspectos positivos e negativos ultrapassaria o tema
que nos propusemos sobre os grupos de pressão. Nietzsche dizia que o advento
da independência do hom em se dará com a eliminação dos ricos, dos pobres e
dos partidos políticos. Não chegamos a tanto, mas não vemos no partido um
bem acima de qualquer discussão, um grupo institucionalizado necessário à demo­
cracia, com o afirm ou Hans Kelsen ;13 nem mesmo uma instituição sem a qual
não funcionam as instituições políticas. Bluntschli14 classificou-os com o correntes
do espírito público, que m ovem a vida nacional dentro do círculo das leis. Socio-
psicologicamente, são grupos de pressão juridicamente organizados e institucio­
nalizados, por m eio dos quais o povo, com o o entenderam, sempre, os adeptos
da democracia de sufrágio, se representa. Nos sistemas políticos totalitários c,
portanto, monopartidários, assim com o nos demócrático-liberais, portanto,
pluripartidários, o partido p o lítico atua com o grupo de pressão. Os exemplos
são conhecidos: o Partido Fascista, que nasceu dos “ fasci di com batim ento” ;
o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães; os partidos clássicos
da Inglaterra, os “ whigs” , os “ tories” e o Labour Party; o Partido Republicano
e o Partido Dem ocrático, dos Estados Unidos; os partidos “ champignons” , quo
caracterizam a história política da segunda metade do século X IX até aos nossos
dias; o Partido Comunista da União Soviética, e outros.
N o Brasil, os partidos políticos tiveram grande influência no Império, menos
pelo número de seus membros, que era reduzido, do que por agremiarem as clussos
que Gaetano Mosca 15 chama de políticas, isto é, as que conduzem o processo
político e lhe comunicam a vitalidade. Proclamada a República, e adotado o sistema

12 W ielfred E. Binkley. Partidos políticos americanos. R io , Fundo de Cultura, 1961. /xisslni


Hans Kelsen. A p u d Segundo V . Linares Quintana. Los partidos políticos. Duenon Aliou.
Alfa, 1945, passim
14 Bluntschli. La politique. Paris, Librairie Guillaumin, 1883, 2? cdiçito, traduçAo I .j
A primeira edição saiu em 1869.
15 Gactano Mosca. Loc. cit.
260 O PO D E R M O D E R A D O R

presidencial, o partidocrata decaiu, mas o partido, com o grupo de pressão organi­


zado, subsistiu, dominando a cena política, com seus segmentos oligárquicos.
A história do Partido Republicano, no qual se adjudicava a etiqueta estadual,
porquanto na época os partidos eram estaduais, dispôs do Estado, da represen­
tação e de todos os cargos da burocracia, até a vitória da revolução de 1930. F oi
o grupo de pressão mais poderoso, mais duradouro que atuou no Brasil. Seu destino
confundiu-se com o destino do Brasil, durante cerca de 40 anos. N o p eríodo que
precedeu a Constituição de 1934, os partidos tiveram reduzida expressão. Vargas
dominou, com seus “ homens de confiança” , na expressão de Oliveira Vianna, a
cena política, neutralizando os partidos. O hábil p o lítico sul-riograndense era
avesso aos partidos. Depois da queda de Vargas, em 1945, e com a elaboração da
Constituição de 1946, entramos na quadra histórica do multipartidarismo, levado
ao extrem o de serem registradas catorze agremiações. Nessa época destacaram-se
com o grupos de pressão o P .S .D ., o P .T .B . e, na oposição, a U .D .N .
Nas duas décadas da Constituição de 1946 vigorou no Brasil a democracia
partidocrática. Com o A to Institucional n? 2, de 27 de outubro de 1965, os
partidos foram extintos, tomando-lhes o lugar apenas dois, criados pelo presidente
Castelo Branco, a Aliança Renovadora Nacional e o Movimento Dem ocrático
Brasileiro. São dois grupos de pressão política . 16 N a realidade, um e outro partido
não têm o peso dos grupos de pressão, susceptíveis de mudar ou de influir na
orientação do governo. N em a Arena exerce plenamente sua função situacionista,
nem o M .D .B . sua função oposicionista. Am bos se apagaram diante do poder
executivo. Essa é uma lacuna na vida pública brasileira.
Se os excessos das duas décadas da Constituição de 1946 - os anos terríveis
do Brasil — devem ser condenados; as omissões, ou fraquezas atuais, são, por
outro lado, desfavoráveis ao funcionamento de uma democracia, na qual os
direitos da pessoa não venham a ser sufocados pela hipertrofia do poder. Enquanto
a democracia partidocrática fo r o sistema adotado no país, o partido tem que
representar o povo e exercer seu papel de grupo de pressão, a fim de que o executivo
não perca a noção do espaço entre o seu munus e os direitos da nação, ainda que
se lim ite no tempo.
Se devemos lutar contra o retorno à situação antiga, devemos, também
querer dos partidos, grupos de pressão, que venham eles a desempenhar seu papel
na estrutura política, social e econômica do país, não se om itindo, sob pena de
contribuírem para o isolamento, para a solidão do poder, isolamento e solidão que
deformam, com o todas as distâncias, a configuração e a dimensão dos problemas
nacionais.
Os grupos de pressão eliminam as distâncias entre o poder e a nação, entre
o Estado e o povo. E para istó que devem existir. Nos Estados totalitários, a form a
política mecanicamente admitida, por imposição e despotismo, m onstrifica o
Estado, reduzindo a pessoa a um invertebrado. Os Estados comunistas dão-nos
o exem plo. Nos Estados democráticos, com o entendemos democracia no Ocidente,

Escrito no segundo semestre de 1977.


O P A R T ID O P O LÍT ICO , G R U P O DE PRESSÃO 261

a liberdade da pessoa só é assegurada se os grupos de pressão, no seu legítim o


papel, atuarem com independência, colaborando com os governos, para que estes
se conduzam na linha dos interesses nacionais. Em todos os setores da atividade
humana, o grupo de pressão deve estar presente, pois do livre jo g o de contrários
é que se salvam as instituições políticas e a liberdade.
Devemos, portanto, colocar a questão: “ Que fazer?” A Constituição Federal
dispõe, em seu artigo 152 e incisos:
A organização, o funcionamento e a extinção dos partidos p olíticos serão
regulados em lei federal, observados os seguintes princípios:

I — Regim e representativo e democrático, baseado na pluralidade de


partidos e na garantia dos direitos fundamentais do homen;
II — Personalidade jurídica, mediante registro de estatutos.
III — Atuação permanente, dentro de programa aprovado pelo Tribunal
Superior Eleitoral e sem vinculação, de qualquer natureza, com a ação dos governos,
entidades ou partidos estrangeiros;
I V — A fiscalização financeira;
V — Disciplina partidária;
V I — Â m b ito nacional sem prejuízo das funções deliberativas dos dire­
tórios locais;
V I I — Exigência de cinco por cento do eleitorado que haja votado na
última eleição geral para a Câmara dos Deputados, distribuídos pelo menos cm
sete Estados, com um m ínim o de sete por cento em cada um deles; e
V III - Proibição de coligações partidárias.

A lei Orgânica dos Partidos Políticos, sancionada, sob nO 5.682, em 21


de julho de 1971, dá cumprimento ao dispositivo constitucional. O artigo 29
da lei define o partido p olítico:

“ Os partidos políticos, pessoas jurídicas de direito público interno, desll


nam-se a assegurar, no interesse do regime democrático, a autenticidade do
sistema representativo” .

N o artigo 59 a lei estabelece restrição, de um lado, e garante a pluralidade


de partidos, de outro:

“ E vedado o funcionamento de qualquer partido cujo programa ou cuja


ação contrarie o regime dem ocrático, baseado na pluralidade dos partidos e nu
garantia dos direitos fundamentais do hom em ” .

Não colidirá esse dispositivo com artigo 70? Dispõe este:

“ Os filiados ao partido, que faltarem a seus deveres de disciplina, no rcspollo


nos princípios programáticos, à probidade no exercício de mandatoN on funçrtiv;
262 O PO D E R M O D E R A D O R

partidárias, ficarão sujeitos às seguintes medidas disciplinares (seguem-se as


medidas)” .

N o artigo 72, estabelece a lei:

“ O senador, deputado federal, deputado estadual ou vereador que, por


atitude ou pelo voto, se opuser às diretrizes legitimamente estabelecidas pelos
órgãos de direção partidária oú deixar o partido sob cuja legenda fo i eleito perderá
o mandato” .

N o artigo 73, define a lei o que devemos entender por “ diretrizes partidárias” :

“ Consideram-se diretrizes legitimamente estabelecidas as que forem fixadas


pelas convenções ou Diretórios Nacionais, convocados na form a do Estatuto e
com observância do quorum da maioria absoluta” . 17
Deve prevalecer, na sua plenitude, assim o entendemos, a filosofia contida
no artigo 29. A lei não im põe um dogmatismo arbitrário, mas reconheçamos que
aos órgãos diretores do partido incumbe uma pesada responsabilidade, a de evitarem
o conflito entre os interesses do partido e os direitos fundamentais do homem,
os que constam na Carta da O.N.U ., da qual o Brasil fo i signatário, e informa
toda a evolução do povo brasileiro, da aurora da nacionalidade aos nossos dias.
Para Jacques Maritain, é d ifícil, mas não impossível, estabelecer uma formulação
comum dos diversos direitos com que conta o hom em em sua existência pessoal
e social.
O partido que concilie os contrários, que harmonize as divergências, sobre­
tudo as de opinião, naturais em qualquer sociedade, abrindo para o hom em a
participação no corpo político. Se o fizer, aproveitamos os corpos intermediários,
com o, por exem plo, o fazem os partidos ingleses, que reúnem sob a bandeira
partidária os múltiplos grupos de que se formam as sociedades — no caso, a socie­
dade inglesa — e, com eles, disputam eleições, escolhem mandatários e procuram
assegurar ao povo o bem comum, esse partido realizará a sua missão. Se usar os
recursos com os quais pode contar o hom em contemporâneo, o partido terá
possibilidade de cumprir o seu destino. As comunicações de massa, a doutri­
nação regular, a liderança firm e, o respeito às tradições nacionais, a fidelidade
à causa da pessoa humana, à tolerância, à nação, que deve ser colocada numa
suprema hierarquia de bem a defender.
Dando como assentado que o Estado moderno, com o diz Harold J. Laski, 18
se levanta sobre a coluna dos partidos, cabe-nos, portanto, optar por alternativas,
se não forem as mais perfeitas, que sejam as menos imperfeitas, para a posição
da pessoa no corpo político e sua participação nos negócios do Estado, através

17 Em 1979 a reform a partidária introduziu alterações no sistema partidário, extinguindo a


Arena e o M .D .B . Não mudamos o capítulo por o considerarmos atual, em linhas gerais.

18 Harold J. Laski. The American Democracy. Op. cit. passim.


O P A R T ID O POLÍTICO, G R U P O DE PRESSÃO 263

de representantes eleitos pelo voto. “ É necessário” , aduz Laski, “ que no labirinto


e confusão do Estado moderno exista alguma solução em virtude da qual se
acuse a urgência de alguns assuntos, em face da possível demora de outros. É
necessário destacar a urgência daqueles, e as soluções que os resolvam, a fim de que
sejam aceitos pelo corpo eleitoral. O partido assume esse trabalho de seleção.
Atua, segundo a frase de L ow ell, como foija d or de idéias. Dentre a massa de
opiniões, crenças, sentimentos que movem o eleitorado, o partido assinala e acolhe
os que possivelmente prometem uma aceitação geral” .19
Se n o pluripartidarismo brasileiro a Arena e o M .D .B .20 e outros que surgirem
devem concorrer para o aperfeiçoamento dos nossos costumes políticos; se devem
ocupar o vazio dos corpos intermediários, atuando com o grupos de pressão ao
legítim o sentido da palavra; se devem constituir-se no veículo da participação
do povo nos negócios do Estado; se, com o partidos políticos, lhes cabe dar
vitalidade ao processo democrático, algumas diretrizes, em nossa opinião, devem
ser seguidas:

1 — atrair os corpos intermediários para os seus quadros;


2 — fazer da proximidade geossocial fator de prom oção política estudando
a possibilidade da divisão do território estadual em distritos eleitorais, a fim de
que os candidatos sejam mais acessíveis ao corpo p o lítico ;
3 — reclamar dos governos a obediência às regras do jo g o democrático,
o qual consiste em governar partidariamente, isto é, aproveitando na adminis­
tração e nos cargos os membros do partido ou que para ele sejam convidados;
4 — reconhecer na oposição o direito de crítica;
5- manter-se alerta contra suas imperfeições, que devem, sempre, ser
atacadas, com o um mal cuja extinção é impossível, mas cuja redução a proporções
menores,é viável;
6 — admitir a liderança, com o natural nos grupos humanos, mas recusar
a excessiva personalização do poder, que pode levar à hipertrofia da direção
partidária;
7 — conciliar disciplina e ética, pois esta é fundamental para a sobrevivência
das sociedades abertas;
8 — evitar a solidão do executivo, colaborando com ele em todos os setores,
com o instrumento do governo;
9 — convencer-se que as políticas públicas e os programas legislativos
são meios partidários de governar;
1 0 — não se esquecer que o regime de partidos, assim entendido, não
ameaça a democracia; o que ameaça esta é a deformação da natureza do grupo
partidário;
11 - conservar o partido a serviço da nação, através de permanente atua­
lização, e do culto dos sentimentos nacionais.

19 Id „ ib.

20 Escrito no segundo semestre de 1977, prevalece a nota anterior.


264 O PO D E R M O D E R A D O R

Várias são as formas de representação do povo. Estudamo-las em numerosos


trabalhos e em capítulos atrás. Deixamos, porém, de lado todas as que classifi­
camos para ficar, exclusivamente, na partidária. Com o não se cogita de mudar
o que existe, mas de melhorar o que temos, é prudente assim proceder, em defesa
do Brasil e de seu povo.
Distingue Jacques Maritain 21 o Estado do corpo político. “ O corpo p olítico
ou a sociedade p olítica” , acentua o filósofo tomista, “ é o todo. O Estado é uma
parte, a mais saliente — desse to d o ” . O partido inter-relaciona o Estado com o
corpo político. Atua reafirmando, com o um corpo intermediário, se não decai
de suas funções, se as cumpre, se nelas persevera. O povo concentra-se, portanto,
no corpo político ou sociedade política, fazendo-se representar no Estado, através
de partido, embora essa não seja a única form a de representação, nem tenha sido,
sempre, uma fornia de representação viva. A o contrário, com o já dissemos, os
partidos políticos, com o os entendemos no mundo contemporâneo, são de idade
recente. Institucionalizaram-se, fundados nos Estados Unidos, logo depois da
Independência, passando a acolher em seu seio a representação popular, embora
o conteúdo da representação tenha falhado, em numerosos países, e, à parte as
nações de língua inglesa, onde se originaram e de onde se irradiaram pelo mundo,
não vieram a durar tradicionalmente.
Para evitar a entropia social, isto é, a desordem, os partidos devem, portanto,
agremiar o povo, nas várias manifestações de opinião. Se, com o observa o sociólogo
Pitirin A . Sorokin22, é vago o sentido da palavra povo, compreendemo-lo com o a
nação, enquanto tal, no território onde se exerce a sua soberania, inserida em
instituição, submetida a uma estrutura juspolítica, com o todo o seu aparato.
N o objetivo caso brasileiro, o povo é a nação que vive em regime democrático,
gozando a liberdade de dispor de seu destino, podendo reunir-se, sob garantias
constitucionais, para explorar riquezas, constituir fam ília, exercer a participação
política, em partidos legalmente fundados; disputar cargos de mandato e gozar,
em suma, os benefícios da civilização e da cultura.
O partido p o lítico vem a ser, portanto, a form a de conduzir o povo à partici­
pação, a fim de que ele não disperse suas energias nem desperdice a amizade,
essa expressão vital da sociedade política, segundo Maritain ,23 que o deve ligar
a seus compatriotas. E nesse exato sentido que fo i elaborada e está em vigor a
Lei Orgânica dos Partidos P o líticos .24 Quem observar o funcionamento dos partidos,
no mundo inteiro, exceção feita à União Soviética e seus satélites, onde o partido
é totalitário, verificará, no entanto, que esses grupos sociais, essas agremiações
ou esses organismos estão em crise,

21 Jacques Maritain. L ’Hom m e et l ’État. Op. cit., passim.


22 Pitirin A . Sorokin. Social, Culture and Personality. N ova Y o rk , Harper, 1947, passim.
23
Jacques Maritain. Id., ib.
24 Lem bram os que esta obra fo i escrita antes da reform a partidária de 1979; se não a atuali­
zamos é p or considerarmos dispensável fazê-lo.
O P A R T ID O PO LÍTICO , G R U P O DE PRESSÃO

a) com o grupos sociais;


b ) com o instrumentos de governo.

Com o grupos sociais sua efetiva organicidade se assinala nos países de línguu
inglesa, graças à tradição que os sustenta. Mas na Inglaterra, mesmo, os “ wliips",
ou liberais, são hoje modestíssima sombra do que foram no tem po de Melbourne,
Palmerston, Gladstone, Asquith, e os “ tories” , ou conservadores não mais possuem
as grandes figuras do passado, Wellington, Peei, Disraeli, Salisbury, Balfour,
Baldwin, Rawsay MacDonal, Churchill. Nesses países os partidos são instituições,
no sentido em que Georges Rénard define a instituição ,25 o tod o, produto de uma
inform ação, ou seja, a form a se realiza imergindo nas partes e solidarizaiulo-as.
Mais explicitamente os partidos são corporações políticas. Nos Estados Unidos,
onde os partidos são poderosos, observa-se a mesma característica, mas cssns
agremiações estão sujeitas a elevado grau de controle legislativo, que os integram
formalmente n o processo p olítico. Os partidos políticos americanos não estilo
mencionados nas Constituições federal e estaduais, no entanto a prática política
e os tribunais estabeleceram seu direito a existirem e atuarem, com base cm
garantias legais, ou seja, o direito de reunião, petição e v o to .26 Essa condiçflo
não garante, no entanto, a consolidação dos partidos americanos. Segundo Harold
J. Laski27 são muito mais blocos de interesses do que sistemas de princípios,
Seria longo historiar a evolução dos partidos políticos americanos. Temos visto
que, ao contrário dos ingleses, não raro um presidente republicano tem que se
haver com um Congresso Democrata — fato que demonstra ser mais pessoal do
que partidário o vo to do eleitor — com o ocorreu com Richard Nixon, e nem
sempre um presidente democrata se entende com um Congresso de maioria de
seu partido .28 Na Inglaterra um conservador, liberal ou trabalhista não mudam
de partido. É a opinião pública, segundo as suas conveniências, que opta por este
ou, aquele partido, nas eleições. Já nos países totalitários ou com os partidos
totalitários admitidos em nações democráticas, o Partido Comunista impõe severa,
estrita, rigorosa obediência. À parte esses exemplos, o partido está em crise, o
não só não é de fa to instrumento de governo, com o não reúne adesões para
garantir-lhe duração, na linha de nossas reflexões em capítulo anterior. Quem
observa a cena p olítica mundial deve ter chegado à conclusão que as crises p o lí­
ticas de cuja incidência sofre a quase totalidade das nações entroncam-se no sistema
de partidos, no Estado partidocrático, na partidocracia, onde os governos sno
formados pela divisão e pela com petição, isto é, por essas espécies larvadas de gUerm
civil organizada, legal, sob garantia da lei. D aí caber a pergunta: com o sobrevive ui

25 Georges Rénard. Op. cit., passim.


26 K arl Loewenstein. Political power and the government process. Chicago, U S A,, Tlie
University o f Chicago Press, 1957, pp. 369-70.
27 Harold J. Laski. Op. cit., p. 79.
28 The New York Times. Suplemento, 24-7-1977.
266 O PODER M ODERADOR

uma nação internamente trabalhada por eficientes fatores de dissenção? O partido


provoca a cisão, no seio da sociedade, por isso as nações não devem ser o partido;
são um todo. O partido as divide. O chefe de Estado e seu aparato não deveriam
pertencer a um partido, mas à nação. Que nos conste — e a História tem abun­
dantes exem plos para nos comprovar a respeito - , as facções, antecessoras dos
partidos, sempre constituíram obstáculos à paz. Consulte-se a respeito a oposição
sob os Césares, de Gaston Boissier. A facção é, porém , inevitável; não é tão
nociva, quando não a temos organizada, quando os homens se separam facciosa­
mente per accidens. Organizando-se, porém, a facção, e passando a' instituto de
direito público, com lei e estatuto, então a sua nocividade se externa. N a história
dos partidos brasileiros esse mal está patente. Do Partido Liberal do Im pério ao
Movimento Dem ocrático Brasileiro da atualidade; do Partido Republicano, com
suas denominações estaduais, até 1930, aos múltiplos partidos do p eríodo da
Constituição de 1946, isto é, até ao A to Institucional n9 2, que os extinguiu, o
que tivemos no Brasil foram, no mais das vezes, sindicatos eleitorais, ajuntamentos
sem afinidade com as aspirações nacionais, grupos de interesse, que arregimentaram
eleitores, com o uso de métodos demagógicos, nas fases pré-eleitorais e eleitorais,
e no todo — com raras exceções pessoais — a rasa chatice da mediocridade pulu­
lando em to m o do poder. Se nos submetemos à vida partidária, se votamos num
partido, se temos candidatos vinculados à um partido, se nos filiamos ao partido
situacionista ou da oposição, apenas cedemos à obediência à lei. Mas procla­
mamos, reiteradamente, que o partido é a form a contemporânea de representação
e participação política, que não se institucionaliza. D a í discordarmos de Blunts­
chli,29 quando esse autor diz: “ Os partidos políticos se mostram em toda a parte
onde a vida política se move livremente. Eles só desaparecem nos povos preguiço­
samente indiferentes aos negócios públicos ou oprimidos por um poder violen to” .
Mas registramos que, no mesmo capítulo, o citadíssimo autor sobrepõe o
príncipe — portanto o princípio da chefia do Estado -r- ao partido: “ Sem dúvida,
um príncipe será, não raro, forçado a apoiar seu governo sobre um pa rtid o30
momentaneamente poderoso e capaz, e de combater as tendências políticas que
seriam um perigo para a ordem pública” . “ Mas não se trata aqui de simpatias
ou antipatias pessoais, porém o interesse do Estado que ele deve escutar, sob
pena de deixar de ser o chefe impessoal e admirado por todos, para se tom ar
o chefe de um partido” . E ju íz o ao qual cedemos, com o vimos afirmando. Im plici­
tamente Bluntschli reconhece o poder moderador. A du z ainda31 o autor que
“ a monarquia constitucional moderna procura unir as vantagens das duas formas
(às quais havia feito referência antes), abandonando aos partidos as funções p o lí­
ticas, e subtraindo de sua influência a maioria das funções técnicas” . A obra de
Bluntschli tem mais de um século. Mudou enormemente o mundo de então
para os nossos dias. Hoje — e daqui para o futuro será ainda mais — as funções

29 Bluntschli. Op. cit., passim.


30 G rifo no original.
31 Id „ ib., p. 321.
O P A R T ID O PO LÍTICO , G R U P O DE PRESSÃO 267

técnicas sobrelevam às políticas, e o surgimento da tecnoestrutura,32 que se impôs


nas sociedades industrializadas contemporâneas, reservam lugares secundários
aos partidos, confinados que estes foram , em grande número de países, a funções
meramente decorativas. Se, ainda, no período da vigência da Constituição de
1946, os partidos, isto é, os grupos políticos que formavam o Congresso, tiveram
predominância sobre o executivo, no p eríodo seguinte, o da Constituição de
1967 — com sua Emenda Constitucional n ? 1 — a tecnoestrutura abarcou todas
as funções do Estado e se os seus membros mais preeminentes aderiram ao partido
situacionista, fizeram-no para salvar a fachada democrático-partidária do regime,
não por alguma convicção. Obedeceram, simplesmente, a um rito, mas a realidade
brasileira é a de governo que tem um partido, do que o contrário. Essa é, de resto,
mais ou menos, a situação dos partidos democratas ou social-democratas, e até
mesmo nos Estados Unidos e na Inglaterra, onde as agremiações políticas imer­
giram em seus costumes p olíticos fundas raízes, a tecnoestrutura, o aumento da
burocracia, as imposições técnicas tomam o lugar dos partidos, cujos represen­
tantes são recrutados pela eventual preferência dos caprichos eleitorais, e não
estão, por isso, capacitados a enfrentar o duro repto dos problemas que desafiam
as sociedades contemporâneas. N ão prevemos mudanças na form a de represen­
tação. Os partidos subsistirão, ao menos durante, imprevisivelmente, prolongado
p eríodo de tem po. Mas dependerão da tecnoestrutura, ou que outro nome se queira
atribuir ao estamento, segundo a nomenclatura de M ax Weber,33 essa categoria
de funcionários, que veio a ocupar os postos de direção do Estado, os cargos
executivos das empresas públicas criadas pelos governos, os autores de planos,
executados — no tod o ou em parte, não importa a dimensão — pela burocracia,
que manipula todas as suas verbas. D aí francamente defendermos uma form a de
representação outra que não a partidária, — veja-se capítulo anterior — a fim de
tornar mais participante o povo. O regime da tecnoestrutura estamental é
na sua quase totalidade, anônimo, portanto, irresponsável. N ão queremos fazer
predições, nem previsões.34 Cairíamos na zona cinzenta da incerteza, da futuro-
logia, isto é, do incógnito. Ficamos, pois, nestas conjecturas. O partido é a
moderna form a de representação política. É instrumento de governo. Mas sua
eficácia já pode ser negada, sobretudo por ser complexíssima a moderna admi­
nistração pública e complexos os problemas de governo, exigindo para o seu
estudo e solução, pessoal qualificado em várias especializações. O partido não
demonstrou até hoje, não só no Brasil, com o em países altamente desenvolvidos,
ter condições para levar às Câmaras os melhores elementos em cada setor de ativi­
dade. A França, com a carreira política, o vo to distrital, a intensa politização

32
John Kenneth Galbraith. The new industrial State. Londres, Hamisch Ham ilton, 1967,
passim, tradução portuguesa pela Livraria Pioneira Editora, 2? ed. 1978.
33 Max Weber. Economia y Sociedad. M éxico, F on do de Cultura Económica, 1 9 4 4 ,1, p. 321,
tradução espanhola de José Medina Echavarria.
34 Otis Dudley Duncan. Social Forecasting. “ The State o f the A r t ” . In Public Interest, n? 17,
outubro de 1969.
268 O PO D E R M O D E R A D O R

do povo, as escolas superiores e o recrutamento por especialização, conta na


Assembléia Nacional com valores expressivos. Na Inglaterra, na Alemanha Federal
e nos Estados Unidos assinala-se, igualmente, o fenôm eno. Mas no Brasil a represen­
tação partidária tem sido tudo o que há de mais m edíocre. Se ainda prevalecesse
o critério da escolha partidária dos ministros, seria um desastre a administração
pública. Com o já tratamos do tema em outro capítulo, encerramos este, reafir­
mando que o partido político desempenha a função de grupo de pressão e interesse,
nas sociedades modernas.
Os exemplos: os partidos ingleses, os americanos, os franceses, os italianos,
os alemães e os japoneses. Seu papel mudará, ainda, e m uito, e não será temerário
prognosticar o seu desaparecimento, vindo a substituí-lo outra forma de represen­
tação, a dos corpos intermediários, técnicos, bem instrumentados para o exercício
de seu munus político. F o i o que dissemos antes e aqui repetimos.

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