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m o a e r a a o r
JOÍO DE SCtMIMBLRGO
Em convênio com a
Ô SECRETARIA DE ESTADO
L IV R A R IA P IO N E IR
S á o Paulo
índice
Agradecimentos ................................................................................................. IX
A presentação.............................................................................................................. XI
Prefácio..................................................................................................................... X II
1? PAR TE
29 PAR TE
3? PA R TE
4? PAR TE
À
memória de A n ton io G ontijo de Carvalho,
amigo perfeito, de cujo convívio, conservo,
com o todos os seus amigos, profunda
saudade.
Ào
Miguel Reale, um dos mais altos representantes
da inteligência brasileira.
A h ! ne me brouillez pas avec la République.
Corneille
Corneille
D. Pedro II
Chesterton
Mao-Tsé-Tung
Um cético realista
apresentação
Não pretendi escrever mais uma obra original, mas trazer à atualidade uma
tese que sempre me pareceu válida para o Brasil, a do Poder Moderador, como
solução para a nossa problemática política. A bibliografia acerca do assunto é
escassíssima. Versaram-no Brás Florentino Henriques de Souza, Zacarias de Góes e
Vasconcellos, São Vicente, Uruguai, Tobias Barreto, A fon so Arinos de M elo Franco,
João Camillo de Oliveira Torres, Paulo Bonavides, e, com o opção republicana,
Borges de Medeiros. Os estudos mais profundos são, porém, os dois primeiros.
Nas páginas do meu trabalho cito os autores que se ocuparam do instituto ju rídico
e do tema. Reconheçamos que é pouco, para uma instituição que fo i adotada pelos
constitucionalistas do Im pério recém-fundado, em 1824, e extinta pelo golpe de
Estado de 15 de novembro de 1889.
O Brasil é pobre em exegetas e pensadores políticos. Nem mesmo as univer
sidades têm suscitado fortes especuladores dessa ciência. À parte um ou outro
exem plo, digno de nota, a maioria é constituída de conformistas da onda marxista
da moda, ou cediços repetidores de autores conhecidos, mas que ninguém mais
segue, na Europa. A té mesmo adeptos de idade caduca do federalismo dos
umericanos da Independência ainda escrevem, não obstante a nula probabilidade
dc serem lidos. 0 marxismo não oferece, a rigor, uma teoria do Estado. A ditadura
do proletariado é, tão-somente, uma ditadura a que se pretende revestir o aparato
científico. A experiência soviética o demonstra suficientemente para quem a queira
lomar com o paradigma. Republicana, aristocrática no sentido técnico da palavra,
subsiste apoiada em polícia política e armas. Não fossem estas, e já teria há muito
desaparecido. A sociedade sem classes e sem Estado é uma utopia, embora teori-
ziulorcs haja que nos pretendam convencer, inutilmente, do contrário.
O PO D E R M O D E R A D O R
O estudo que me propus fazer, e espero ter fe ito , oferece uma promessa de
soluçffo do problema entre todos gravíssimo da organização política brasileira.
Nilo idolatro formas de governo, não me deixo submeter ao fetiche dos regimes.
Sou de opinião que devem ser instituídos consoante a índole dos povos. O Brasil
copiou servilmente o regime americano, sem copiar o seu sistema. Em noventa
mios, o que temos tido, com o procurei demonstrar em outro livro, é uma sucessão
de crises, ao parecer sem paradeiro. Da crise de D eodoro à crise atual, todas as
crises, esmaltadas de características diferenciadas apenas em acidentes, são análogas.
Foram engendradas na mesma incubadeira, a que desprezou as nossas tradições,
c escolheu o m odelo alienígena.
Seria possível, a meu ver, resolver as crises que acompanham a nossa História,
vampirizando-a, não raro até quase à exaustão, com o ocorreu nos surtos revolu
cionários da década de 20, nas revoluções da década de 30, nos períodos ditatoriais
de 37 a 45 e de 64 a 79, p eríodo este ainda em curso, não obstante a abertura
caucionada pelo presidente da República, com evidente sinceridade. Bastaria,
para se alcançar essa instância, a restauração, ou instauração, do Poder Moderador.
Digo-o sem nenhum preconceito, sem “ arrière pensée” , sem preferência outra que
não a do interesse pela minha pátria. Nas páginas do livro que agora ofereço aos
leitores, demonstro que fo i terrivelmente funesta para o Brasil a extinção de
instituições modelares, úteis à nação, como o Poder Moderador, o Conselho de
Estado, o Conselho de Ministros, o Senado vitalício — que poderia deixar de sê-lo,
- e a classe dirigente. Convido os leitores a me seguirem da primeira à última
página. N ão é pedir muito.
Alguns fortes estudiosos com o Rui Barbosa, A lberto Torres, Oliveira Vianna,
João Camillo de Oliveira Torres, Pontes de Miranda, para ficarmos somente no
período republicano, que está completando noventa anos, procuram solução para
a problemática política brasileira. Notadamente A lb erto Torres, Oliveira Vianna e
João Camillo de Oliveira Torres foram mais ao fundo da questão. A lberto Torres
imaginou uma form a engenhosa de compensar a desestabilização do poder repu
blicano. Mas sua teoria não poderia nunca ser aceita. Oliveira Vianna não propôs
uma form a de governo. João Camillo de Oliveira Torres patrocinou a restauração
da monarquia. Deram, todos eles, com o no passado, outros, valiosa contribuição à
questão política brasileira, ainda, insisto, à espera de solução aceitável. Com este
livro, venho, humildemente, acrescentar a minha a essas e outras contribuições,
todas, sem exceção, respeitáveis.
Pouco se tem escrito sobre o Poder Moderador, essa Instituição que deu,
ao Brasil, a estabilidade p olítica dos seus primeiros sessenta e sete anos de inde
pendência. O autor disse e provou, segundo me parece, que à sabedoria intuitiva
dos constitucionalistas de 1824 se deve a adoção da idéia de Clermont-Tonnerre e
Benjamin Constant, que tão pouca aceitação obteve na teoria política universal.
Sabedoria intuitiva através da qual se conciliou a poderosa força inconsciente da
tradição, que dá consistência ao etos de um povo, com anseios de racionalidade
que o cartesianismo imprimiu na consciência da civilização ocidental. Com o bem
viu o autor, a legitimidade dos governos é reconhecida pelos governados quando
suas normas se institucionalizam pela aceitação da maioria, grande parte da qual
as interioriza psicologicamente para vê-las com o artigo de fé, como alguma coisa
incontrastável.
Para o autor, pois, há duas fontes de legitimidade: a que se prende à tradição,
denominada por ele de legitim idade institucional, e a que se prende à livre con
venção racionalmente instituída, que o autor categoriza com o legitimidade
contratual.
Esta última, todavia, sq.se cristaliza e dura quando referida a princípios que
se erigem como totens de um p o vo . O Poder Moderador, como fica fartamente
demonstrado no trabalho de J ogo de Scantimburgo, conseguiu equilibrar os dois
impulsos dominantes no País a partir de 1822. O Imperador, com os poderes
estabelecidos nos artigos 98 e seguintes da Constituição de 1824, ungia o governo
com a legitimidade institucional, enquanto a estrutura geral dessa mesma Consti
tuição a impregnava da legitim idade contratual que os princípios do liberalismo
O PO D E R M O D E R A D O R
1 Aninury de Riencourt. The Corning Caesars. Londres, Jonathan Cape, 1957, p. 328.
lumes Uryce. The American Commonwealth. N ova Y o rk , Macmillan, 1895, passim.
’ A n lon io Vieira. Sermões. V , p. 313.
'• Anmury de Riencourt, p. 340.
Q U E É PO DER M O D E R A D O R 3
' I nillo Giraud. Le pouvoir exécutif dans les démocraties d'Êurope et d ’Amérique. Paris,
ltm iioll Sircy, 1938, p. 35; The Economist. Londres, 3-9 de dezem bro de 1977, pp. 48 e ss.
1 llniiild J. Laski. The American Presidency. Nova Y o rk , The Universal Library, 1940, p. 11.
4 O PO D E R M O D E R A D O R
' lodo do Scantimburgo. O Destino da América Latina. São Paulo, Companhia Editora N acio
nal, I9bb, passim.
■ A lo n io Arinos de M elo Franco. Presidencialismo ou Parlamentarismo. R io, José Olim pio,
IVJH .p. 299.
Q UE É PO D E R M O D E R A D O R 5
te
f) O PO D E R M O D E R A D O R
nidor tão sólido ainda, não obstante soprarem furiosos pelos quadrantes do
mundo os ventos revolucionários — ou, segundo uma revista americana,14 “ um
ponto fix o no mundo em mudança” . Tenha, embora, perdido grande parte de
sou poder, depois da revolução de Cromwell, a coroa inglesa ainda encerra no
sou círculo de ouro, da bela expressão de Churchill, a instituição, graças à qual
sc assegura, com o sempre se assegurou, de resistência para enfrentar as tempes
tades, tantas vezes violentas para o “ barco que Deus na Mancha ancorou” . Por
nflo exercer o poder executivo, o monarca inglês — e, em geral, as monarquias —
nflo se envolve nas lutas de facção, nem se deixa arrastar pelas disputas dos par
tidos e de suas dissensões internas, de seus conflitos de interesses, de suas
convergências de objetivos. É uma posição singular, que aplica o selo de garantia
durável às instituições políticas, habilitando-as a arrostar os problemas, de cuja
Irrupção se preocupam as sociedades. Segundo Ivor Jennings, o “ Parlamento con
siste não da Rainha, da Câmara dos Lords e da Câmara dos Comuns, mas da
Ruinlia no Parlamento, da Rainha com os Lords Espiritual e Tem poral, e com
os Comuns no plenário, embora na prática representantes atuem represen-
timdo-a” .15 Para o mesmo autor o mecanismo do governo britânico, o monarca,
o gabinete e o parlamento, sustenta a democracia de que a Inglaterra é m odelo.16
Atribuím os à realeza britânica o papel de poder moderador, operando pelos
órgãos de que se compõe a sua estrutura. É a ação institucional na sua duração
histórica, nas tradições que a vivificam , no estupendo respeito pelos direitos da
pessoa humana, mais concretos do que os vagos direitos humanos dos quais tanto
se fiila em nossos dias. Fundamenta-se a coroa britânica na essência da instituição.
Diií durar no tempo e no espaço. Sua configuração moderadora encontra-se
Implícita no próprio sentido de instituição com o fundação duradoura. Imerge
na noite dos tempos a sua origem, e sempre, nas quadras fastas e nefastas, conser
vou, inalterável, o princípio institucional que lhe deu origem. Se os Estados Unidos
romperam os laços que os prendiam à m etrópole, optando por uma novidade,
com o já dissemos, o presidente, em lugar do rei, forte mas lim itado,17 não renun
ciaram, contudo, à herança das liberdades inglesas, que já estavam institucional-
meiite incrustadas na sociopsicologia, nos costumes e no comportamento de seu
povo. São inglesas, tipicamente inglesas, as liberdades que fazem o apanágio do
sistema americano, cuja resistência fo i posta à prova no escandaloso episódio
do Watergate. De todas as nações do mundo, a Inglaterra, e, em geral, os povos
do língua inglesa, mas sobretudo, a antiga mãe pátria, conserva o legado das
liberdades medievais, que a meia ciência e os preconceitos modernos sempre
negaram. Basta ir ao monumental estudo dos irmãos Carlyle para se obter a certidão
do origem das liberdades que, ainda, apesar de tantas e sucessivas crises, a Inglaterra,
111 K W. Carlyle e A . J. Carlyle. A History o f Mediaeval Political Theory in the West. Londres,
Wllllun Blackwood & Sons, 111., 1942, p. 3 e passim (seis volumes).
Iu It. L. Bruckberger. A república americana. R io, E ditora Fundo de Cultura, 1959, p. 108,
limluçffo do original francês.
Alrxls de Tocqueville. D e La Démocratie en Amérique. Paris, Librairie de Medieis, 1 9 5 1 ,1,
11 IH5 c passim.
11 lut nues lillul. Histoire des Institutions. Paris, P.U .F., 1969, III, p. 318 e passim.
H O PO D E R M O D E R A D O R
século X IX , com o romantismo sob todas as formas de sua influência nas socie
dades da época. N o século X IX , o filósofo e jurista suíço-francês Benjamin
Constant elaborou a teoria do poder real, adotado pelo constituinte imperial
em 1823, com a denominação de poder moderador, tendo a sua obra uma finali
dade única, a de preservar a chefia monárquica do Estado da desestabilização
intermitente causada pelas lutas de partidos. Benjamin Constant procurou conciliar
o liberalismo da França post-bonapartista, com a instituição monárquica. Como
os partidos são focos de tensões, sob cujo choque as sociedades se estiolam, se
não forem neutralizadas no vértice supremo da chefia neutra do Estado, o poder
real se constitui nesse amortecedor. As ondas, furiosas ou não, das disputas p o lí
ticas, tantas vezes, com o sabemos, envoltas em passionalidade, devem quebrar-se
na sobranceira neutralidade desse poder, cuja posição é de eqüidistância dos jogos
de facções, dos interesses pela conquista do poder, e com o este é rotativo, sujeito
a mudanças, inadjudicado, portanto, a uma longa permanência em cargos de
mandato, sua carga emocional se reduz, em benefício da nação.
É função do poder conservar a sociedade. D aí ser-lhe necessária a institucio-
nalidade. O “ pacto” , com o vem em Jean Jacques Rousseau, é “ a consagração da
instabilidade social, visto que, definindo com o única fonte da soberania, a soberania
dos indivíduos, anula os grupos sociais e econômicos, a cuja coordenação o Estado
preside, para deixar, por um lado, a soberania nas mãos do bando que a conquista
e, ppr outro, a comunidade sem forças nem órgãos que legitimamente a expressem,
entrégue à cupidez dos interesses parasitários que se lhe sobrepõem 'e a acabam
de escravizar” .25 O poder moderador não deriva de um pacto, com o queria
Rousseau, mas do consenso, com o queria Santo Tomas, e, em geral, os escolás
ticos. “ Suponhamos” , diz Rousseau, “ os homens chegando àquele ponto em que
os obstáculos prejudiciais à sua conservação no estado da natureza sobrepujam,
pela sua resistência, as forças de que cada indivíduo dispõe para manter-se nesse
estado. Então, esse estado prim itivo já não pode subsistir, e o gênero humano,
•e não mudasse de vida, pereceria” . ” Ora, com o os homens não podem engendrar
novas forças, mas somente unir e orientar as já existentes, não têm eles outro
meio de conservar-se senão form ando, por agregação, um conjunto de forças,
que possa sobrepujar a resistência, impelindo-as para um só m óvel, levando-as
a operar em concerto” .26 Nasce desse m odelo de racionalismo o “ pacto social” ,
o contrato que iria mudar a terra, na linha impetuosa de todos os erros filosóficos
que dela derivaram. A utopia de Rousseau iria fazer tanto mal à civilização e à
cultura dos povos, que ainda não se lhe recenseou a extensão. Rousseau não teve
u originalidade dos criadores, mas fo i um precursor; condensando no seu pensa
mento os desvios do reto caminho da verdade, a verdade que se fundava no
consenso medieval, impingiu-os aos seus pósteros. Quando a teoria do poder
real — ou moderador — fo i elaborada, a influência de Rousseau já se fizera sentir.
11 An ton io Sardinha. Id., ib., p. C C X X X V ; cf. Charles Mannas. Dictionnaire, várias edições.
14 Jean Jacques Rousseau. D o Contrato Social. Livro I, C apítulo V I.
Il) O PODER M ODERADOR
Como dizia Gaston Morin, “ Rousseau pode, com títu lo justo, dar-se com o teórico
dos despotismos, assim com o da liberdade. A o menos, porém, no seu pensamento,
o despotismo repousa sobre a idéia de liberdade. É a tese do Contrato Social''’ } ' 1
A tormenta da revolução francesa, a ascensão, fastígio e queda de Bonaparte,
o Jucobinismo, o terror, o Im pério, a Restauração, o triunfo irresistível do libera
lismo o da consciência burguesa, essas foram as etapas com as quais se marcou
o pouoso itinerário da França de uma realeza à outra. A França, toda ela, era
"m altrc à penser” , influindo, portanto, decisivamente no caminhar da humanidade,
iilò mesmo em povos aparentemente mais distanciados de seu foco impressionante.
Na América, a revolução americana já produzira efeito, e seu presidencia
lismo fora adotado pelas nações que se tornavam independentes da Espanha, com a
únlcii exceção do Brasil, em cujo destino atuara o imponderável, a fuga da fam ília
mui du sede da monarquia lusitana para a sua colônia da Am érica, e, com essa trasla-
duçllo, acompanhando-a, a instituição monárquica, sob cuja égide se faria a inde
pendência brasileira. Na Am érica de origem espanhola, já o vimos, iria se introduzir
iitiN suas instituições políticas um fator de perturbação, o presidencialismo, com os
lies poderes autônomos e interdependentes. O caudilhismo, de que não se curou
nté liojc o continente, viria a ser a regra, desfilando pela História das nações iberó-
loiiiis os aventureiros, que supriam a lacuna da autoridade não institucionalizada
polo decalque americano, com a autoridade do carisma — ainda que a palavra do
vocabulário de Max Weber mal se lhes adapte — sobre os indo-americanos que se
llios ucorrilhavam. Como vemos a força das idéias é irresistível no conquistar adep-
los, quundo elas encontram campo fértil para se desenvolver. Teria a Am érica de
sor pulco do choque de culturas, com a introdução da filosofia política de Locke,
Kousscau, Montesquieu e Kant, principalmente, e a sobrevivência, nas instituições
hiildoadus pelos colonizadores, da escolástica, do pensamento dos filósofos da
Compunhia de Jesus e da Ordem dos Franciscanos, da teologia católica e do indivi-
d niilismo protestante. Sabemos que é inútil lutar contra essas formas de invasão,
iiiiis subemos, também, que apresentar o itinerário do retorno às fontes — no
cuso a conciliação entre a origem natural da cultura do continente com o pensa
mento que lhe deu form a — é um dever da inteligência. É o que fazemos. Cum-
prlino-lo. Patrocinamos o reconhecimento do poder moderador com o a solução
ilns nossas crises. Diríamos que seria essa a solução para outras crises, mas nada
lemos com o problema de povos, que também se debatem nas suas tenazes. Deve
mos cuidar da nossa. Atribuím os à tradição, ao respeito sacrossanto pela Decla-
iiiçflo da Independência e a Constituição de 1787, à Suprema Corte e ao papel do
Congresso na estrutura do governo dos Estados Unidos, ao seu federalismo vivíssi
mo, upesar de algumas mudanças que se lhe introduziram neste século, numa
piiluvrn, às suas instituições, a função, de fato, de poder moderador, que lhes falta
iln iliroito. Comprova-o o funcionamento de seu presidencialismo, ao contrário de
ou lios que malograram — inclusive o da França, parcialmente adotado pelo
m in Morin. La révolte des faits contre le Code. Paris, Grasset, 1920, passim.
Q U E É PO DER M O D E R A D O R 11
desta obra, uma das quais, o Japão, espanta o mundo neste fim de século, com o
ím peto de seu vigor econôm ico, tão robusto que os Estados Unidos tiveram, em 15
de agosto de 1971, de atenuar o seu liberalismo, introduzindo restrições protecio
nistas no mecanismo de seu com ércio exterior. Está em crise o Sistema Constitu
cional. Sobrevive às mudanças a Constituição americana, a única até hoje não
reformada. As emendas que lhe foram introduzidas não lhe tocaram na substância
de seus princípios inspiradores, embora os presidentes, ao contrário do que desejava
Hamilton,4 não mais são — ou nunca foram — independentes das máquinas ^ r t i-
dárias, dos “ caucus” e dos “ lobbies” . Subsiste, porém, a Constituição com o uma
regra-de-fé, no sentido que se atribua à expressão nos velhos catecismos da Sama
Madre Igreja. É preciso nela crer, respeitá-la, ser-lhe obediente, ainda mesmo nos
mais dramáticos, perigosos e difíceis momentos da União.
Ín So há outra nação que tenha tido apenas uma Constituição, regendo-a poli
ticamente. Seria impossível arrolar aqui as Constituições de todos os povos, com o
peça em cuja força m irífica incrivelmente se crê. A Constituição é, apenas, uma
“ invenção p olítica” ,5 para conter a natural indisciplina do ser humano em socie
dade no quadro de uma lei fundamental, de cujos princípios outras derivam. A tri
buem-lhe, porém, desde o seu advento, poderes que lhe devem ser estranhos, com o
o de assegurar a paz política, o desenvolvimento econôm ico e social, a concórdia
interna da sociedade. Não se atina com a causa da freqüência por que as Consti
tuições são substituídas; os analistas do fenôm eno, quando os há, deixam-se ficar
nas suas aparências, atribuindo as crises políticas a fatores exógenos, quando elas
se engendram no descompasso entre essas leis e os costumes dos povos. É impossí
vel retroceder do constitucionalismo, por ser definitiva a sua introdução na orga
nização política dos povos. Mas as instituições políticas que regem as nações devem
enquadrar-se numa lei que mergulhe até às profundezas da sua história, e de lá
arrecade o princípio da duração nacional. Essa lei, que chamamos- Constituição,
deve consubstanciar em seu texto o conjunto de instituições histórico-políticas
tradicionais, que regularam no passado e devem regular no futuro a vida nacional.
A Constituição nacional deve ser, com o dizia La Tour du Pin,6 um produto histó
rico, onde não encontremos a mão do fabricante, mas uma seqüência ininterrom-
pida de causa e efeito, nascida das circunstâncias e sancionada pelo tempo. A
Constituição nacional deve ser, em síntese, um com plexo de soluções dadas, arma
das de coesão evidente, ao problema eterno para todas as sociedades políticas, a
conciliação de autoridade e liberdade. A sociedade não é um mecanismo; é uma
criação; está sujeita, portanto, às leis naturais de que resultou. A Constituição,
que não respeita as tradições nacionais, a formação de uma cultura nacionai, as
linhas da civilização na qual essa cultura está inserida, ou não será cumprida, com o
iid o 1891, ou será objeto de críticas, com o a de 1967, com a sua Emenda. O traço
(|uo Oliveira Viana7 notou na mentalidade dos republicanos históricos, a crença
no poder das fórmulas escritas, é o mesmo que, transcorrido mais de meio século,
período durante o qual irrecenseáveis foram as mudanças registradas no mundo,
iiiNoiira, com o um denominador comum, a mentalidade da nossa “ classe política” .
I*iiiu aqueles sonhadores, dizia Oliveira Viana, pôr em letra de forma uma idéia era,
ila xl mesmo, realizá-la. Vimos que o belo monumento ju ríd ico elaborado pelo emi
nente Rui Barbosa fo i colocado à margem da nossa vida p olítica; prevaleceu durante
h I República o parafeudalismo das oligarquias estaduais, concertadas, por interde-
i ipiuléiicia, com o poder central. Das demais Constituições falamos em outro capítulo.
O constitucionalismo só se ajustou no Brasil com a Constituiçïo de 1824, isto
6, mais precisamente, com o poder moderador, sábia instituição, bebida pelos
constituintes do Im pério nas lições de Benjamin Constant, o jurista, político,
romancista suíço-francês. N ão tivesse o Império caído ao golpe de 15 de novembro
dn 1889, e, provavelmente, a Constituição de 1824 estaria vigente, atualizada por
emendas. Os sucessores do imperador, com o estamento político que com eles
ninavam, adaptariam a Constituição sem alterar-lhe a substância. Evidentemente
nflo se argumenta em história com os condicionais, embora tenhamos, no passado,
m on dado a essa espécie de jo g o , que, agora, os americanos praticam com o nome de
factual history. Mas, com base nos fatos, podem-se fazer reflexões, e uma dessas
4 que a Constituição seria conservada, sobretudo porque o poder moderador era
ii sua peça de resistência. É da natureza desse poder im pedir a desestabilização dos
trís poderes clássicos da divisão de Montesquieu, embora no " L ’E sprit des L o is ”
sr|a defendido o exercício do poder executivo pelo monarca. Montesquieu não
cnnhecia o fenôm eno da desestabilização do poder, nem poderia o seu fecundo
Hénlo penetrar no futuro, e de seu arcano extrair argumento para a sua tese. V eio
a ser demasiado com plexo o Estado. O executivo no Brasil comanda vastíssimo
exército de burocratas, tem a competência de nomear funcionários, dispõe de
repartições com o o Ministério da Fazenda, o Banco Central e o Banco do Brasil -
competência que o sobranceia em face dos outros poderes — sendo, portanto, um
poder cuja preponderância o confunde com o próprio governo.
A desestabilização só poderá ser corrigida no funcionamento contínuo dos
poderes por um poder neutro. Dela não cogitou Montesquieu em sua tese, mal
(íhscrviida na Inglaterra. Era um teórico o autor de L ’E sprit des L o is ; estudava,
lliuva conclusões, procurava apoiar-se em exemplos, mas não possuía a experiência
vivida do poder. Montesquieu viajou, teve contacto demorado com vários povos e
vrtilus camadas sociais; conheceu príncipes, políticos, financistas, mas lhe faltou a
nxpcrlência, e, sobretudo, o gênio da antecipação. Não se lhe poderia desdobrar
A vlsflo o mundo futuro do século X X , deste final de m ilênio e do que nos é dado
liiover, com base no formidável avanço da ciência e da técnica, do fenôm eno
liinocríitlco e do p rin cíp io das nacionalidades, para o m ilênio próximo. Das cento
e cincoenta e uma nações com as quais conta o mundo,8 apenas uma dúzia não
tem o poder desestabilizado, com hegemonia do executivo. Quase cento e quarenta
hipertrofiaram o executivo, contra todas as reflexões de Montesquieu, o qual, de
resto, não fo i suficientemente lido, analisado e meditado. A té mesmo um terrível
colegiado, o da União Soviética, oligarquia rígida, indestrutível — ao menos a breve
prazo —, constituída por “ m oto-próprio” pelos oligarcas que o com põem , externa
a imagem de executivo subordinado ao Partido Comunista, igualmente uma oligar
quia, uma espécie leiga de clero, acorrilhando às suas ordens clericais, ao seu breviá
rio e à sua Vulgata a população das repúblicas soviéticas. Os soviets aplaudem uni
formemente as decisões do Presidium; o judiciário pratica justiça ideológica, por
tanto, é iníquo. Os colegiados de Atenas e Veneza também foram oligarquias. Só
não o é o colegiado da Suíça, singular exem plo de estupendo sucesso de governo
bem I sucedido, que recentemente os comunistas vêm procurando desmoralizar.
Benjamin Constant previu a desestabilização dos três poderes, e, por isso,
devemos averbar-lhe uma nota de louvor por seu gênio na doutrinação política.
Infelizm ente não o estudam, não o conhecem, não o lêem, e sua notável intuição,
que fo i corporificada na Constituição do Im pério do Brasil, não é trasladada para as
instituições políticas de outros povos, em nosso tempo. Poderia salvá-las o talento
excepcional de Benjamin Constant, mas com o não se vai ao fundo de pensamentos
de tanta densidade com o o seu, uma teoria política de primeira grandeza é, apenas,
matéria de exercícios acadêmicos. Para Benjamin Constant9 “ a fraqueza de qual
quer parte do governo é sempre um mal, fraqueza que não diminui em nada os
inconvenientes que se temem, e destrói as vantagens que se esperam” . “ Ela não
opõe obstáculos à usurpação, mas abala a garantia, porquanto a usurpação é o efeito
dos meios que o governo absorve, enquanto a garantia é a de seus meios legítim os” .
Prossegue Benjamin Constant, que o governo fraco pode ser invadido, e para evitá
-lo procurará reforçar-se, chegando, então, à “ usurpação sem lim ites” . Daí, ser a
Constituição um ato de concórdia, que fixa as relações recíprocas do monarca
com o povo. Para Benjamin Constant a Constituição e o constitucionalismo eram,
portanto, fatos consumados. Cabia ao exegeta fixar em seus dispositivos a esta
bilidade do poder. Se no “ A n tigo Regim e” nunca fora argüida a legitimidade ou
ilegitimidade do poder, as transformações por que havia passado e estava passando
o Ocidente introduziram-lhe uma novidade, a Constituição escrita, e no seu texto
a teoria dos três poderes. Começara a “ idade da revolução” , em cujo sorvedouro o
mundo iria se engolfar, sem paradeiro, até os nossos dias. O “ A n tigo Regim e” ficou
na História conhecido com o francês, mas por analogia pode ele ser estendido a
outros reinos, até mesmo aos reinos bárbaros do leste, da Alemanha à Santa Rússia.
Se as instituições francesas não se encontram na sua plena expressão sob os senhores
teutônicos e os autocratas eslavos, nem o brilho da civilização gaulesa alcançou
m
18 O PO D E R M O D E R A D O R
10 A rn old J. Toynbee. A Study o f History. Londres, O x fo rd University Press, 1954, vol. V II,
p. 403 e ss.
11 Max Weber. Economia y Sociedad. M éxico, F on do de Cultura Economica, vol. I, p. 257
e ss.
12 Daniel Mornet. Les origines intellectuelles de la Révolution Française. Paris, Librairie
Arm and Colin, 1933, passim.
13 A lexis de Tocqueville. L'Ancien Régime et la Révolution. Paris, Gallimard, 1 9 6 7 , pp. 68-9.
14 Jean Tulard. Napoléon ou le mythe du Sauveur. Paris, Fayard, 1977, passim.
15 Léon Daudet. Deux idoles sanguinaires. Paris, A lb in M ichel, 1939, passim.
16 Anatole France. Les dieux ont soif. Varias edições.
A N A T U R E Z A DO PO DER M O D E R A D O R 19
idade, depois de “ ter vivido” , com o, segundo Eça de Queiroz, diziam os antigos.
Para quem fo i liberal e individualista, ao extrem o da intransigência, Benjamin
Constant surpreende com a sua teoria do poder real, denominada poder moderador
pelos constituintes do Im pério do Brasil. É paradoxal que espírito contraditório
com o fo i o amante de Madame de Staèl tenha sido o autor de uma fórmula, que
conciliava — e, para nós, ainda concilia — o liberalismo que sucedeu às guerras
napoleônicas, ao soçobro do Im pério do pequeno grande corso, ao Estado-espe-
táculo, sob tantos aspectos “ kitsch” , criado por Napoleão. Adotando a tese de
Benjamin Constant em 1824, demonstraram os constituintes do primeiro reinado
que estavam perfeitamente atualizados com as idéias da época. Não poderia o jovem
imperador D. Pedro I prolongar o absolutismo. Sobre já ter D. João V I adotado a
Ccnstituição portuguesa, a época se assinalava pelo seu pleno liberalismo, e, com o
sabia, não se deve bracejar contra as correntes, sobretudo quando elas são irre
sistíveis. Oliveira Lim a descreve o comovente episódio da aprovação por D. João V I
da Constituição portuguesa: “ . . . Dom João compareceu e renovou todas as decla
rações, repetiu todas as juras, confirmou todas as promessas, referendou todos os
compromissos e sancionou todos os atos do seu herdeiro, aceitando antecipada
mente qualquer Constituição que viesse de lis b o a e que ali se acabava de aclamar
na ignorância do que pudesse ser, na certeza em todo o caso para os militares euro
peus de que seria a tutela portuguesa reimposta ao Brasil” .17 Fervia a ideologia libe
ral. Acentua Oliveira Lim a que Dom João resistira, mais por experiência de governo
do que por inteligência política, à convocação das Cortes “ na form a antiga” .18
Estava ganha pelas novas idéias a causa do liberalismo, da monarquia constitu
cional. Compreendeu-o seu filho, que prolongou no trópico a sua Casa, a gloriosa
Casa de Bragança à qual tanto deveram da Restauração à deposição de D. Manuel II
em Portugal, e Pedro II no Brasil, as duas nações de origem portuguesa, cristã,
mediterrânea, fecundadas ambas pelo mesmo centro de irradiação cultural, a mesma
religião, o mesmo sentido do humano. Proclamada a Independência um só caminho
se abria ao jovem — 24 anos — príncipe, o de ceder ao liberalismo triunfante.
Possuía D. Pedro intuição bastante para se convencer que essa deveria ser a sua
única escolha. Ligado estreitamente a Napoleão pelos laços de parentesco, através
do casamento com Leopoldina, primeiro, e, embora rompidos na França, com
Am élia de Leuchtcnberg, em seguida à sua viuvez, sabia D. Pedro que deveria dotar
o novo Im pério de uma Constituição liberal, onde, no entanto, uas prerrogativas
reais ficassem preservadas, sem que lhe fosse apenas reservada uma posição decora
tiva. N ão vamos entrar aqui, por estar totalmente ultrapassada, na querela do con
ceito de Estado liberal. Na época eram, porém, vivíssimas as distinções entre con
quista da liberdade, em abstrato, das liberdades concretas, e da instituição do
Estado liberal.19 Não era o caso do Brasil. A qu i não lutaram os brasileiros pela
17 Oliveira Lima. D om João V I no Brasil. R io , Livraria José Olim pio, 1945, p. 112 3ess.
18 Id., ib„ p. 1153.
19 Georges Burdeau. Traité de Science Politique. Paris, Librairie Générale de Droit et de Juris
prudence, 1953, vol. V , p. 70, n? 27 e ss.
U) O PODER M ODERADOR
411 I I '. do Alm eida Prado. D. João V I e o início da classe dirigente no Brasil. São Paulo, Com-
|xin11 1ii Kdltora Nacional, 1968, passim.
11 Iiim’ Honório Rodrigues. Independência: Revolução e Contra-Revolução, I, “ Evolução P olí-
lii u" Klo, Livraria Francisco Alves Editora, 1975/6, p. 4.
11 ( Imidr Miinceron. Les hommes de la liberté. Paris, R obert L a ffo n t, 197 2,7 4, 76, passim.
A N A T U R E Z A D O PO D E R M O D E R A D O R 21
tica do Im pério, saiu pronto da obra do indócil amante de Madame de Staél. Para
João Camillo de Oliveira Torres23 “ Benjamin Constant inspira-se na Idade Média,
ama a liberdade, teme a revolução e admira a Inglaterra” . “ Representou no direito
público o papel que Chateaubriand desempenhou no campo de outras atividades,
sendo, com o este, um meio-termo político entre De Bonald e De Maistre de um
lado, e os autores liberais e republicanos de outro” . “ . . . o Im pério adotou quase
integralmente as idéias do publicista francês” . Adverte, porém, João Camillo de
Oliveira Torres que o Im pério se afastou das idéias de Benjamin Constant, quando
elas se acharam distantes da realidade brasileira, e dá o exem plo da constituição
do Senado, que era vitalício. Sumaria Oliveira Torres “ duas ou três idéias básicas
de Benjamin Constant” . “ A primeira delas é de não possuir o povo, soberano
embora, poderes absolutos. T o d o poder conhece limites em seu emprego, está
sujeito a regras e normas, a começar pelas de m oral” . Tem , em seguida, a divisão
de poderes, que, para Benjamin Constant, eram cinco e não três, e, finalmente, a
função legislativa do Estado. D iz Oliveira Torres que Guizot se espantava com a
influência de Benjamin Constant no Brasil. Também nos espantamos, e só podemos
atribuí-la à identidade que D. Pedro I e seus constituintes encontraram na teoria
do suíço-francês com as necessidades do Im pério tropical, onde um poder execu
tivo hegemônico degeneraria, com o degenerou, com a única exceção dos Estados
Unidos, no caudilhismo, na ditadura, na supressão das liberdades, as quais vieram a
ser, da Independência aos nossos dias, exceções intervalares.
Curiosamente, Benjamin Constant não teve em seu país de adoção influência
tão grande quanto no Brasil, embora Georges Burdeau24 observe que “ toda uma
tradição antiestatista, por se crer antiintrigante, procede de Benjamin Constant,
na França, e não representa, de longe, a expressão mais agradável do liberalismo” .
Quem, nos dias de hoje, combate a estatização crescente da economia, a inter
venção cada vez maior do Estado em todos os dom ínios da cultura, a invasão do
setor privado pelo setor público, em tal proporção que o empresariado brasileiro,25
para ficarmos somente em nosso país, já soou o alarme da reação, o pensamento de
Benjamin Constant, e sua corporificação nas instituições políticas do Império,
deve ser desarquivado e exposto com o uma das alternativas para a solução dos
nossos problemas. A idéia do poder moderador é aqui reiteradamente defendida.
Que seja ela adotada, não, contudo, em sucedâneo, mas na sua autenticidade, com o
a doutrinou Benjamin Constant e a introduziram na Constituição do Im pério os
constituintes de 1823.
Segundo Benjamin Constant são os seguintes os poderes constitucionais:
“ o poder real, o poder executivo, o poder representativo e o poder judiciário” .
“ Surpreenderá que distingo o poder real do poder executivo. Esta distinção, sempre
ignorada, é muito importante. N ão lhe reclamo a honra, ela é encontrada em
23 João Camillo de Oliveira Torres. A Democracia Coroada. R io, Livraria José O lim pio Edi
tora, 1957, p. 55 e ss.
24 Georges Burdeau. Op. cit., p. 180.
25 Cf. revista “ Visão” , São Paulo, número especial, 1977.
O PO D E R M O D E R A D O R
Itonne nos escritos de homem m uito esclarecido (Clerm ont-Tonnerre), que pereceu
mis desordens, com o quase todos os homens esclarecidos” . “ Há, diz ele, no poder
monárquico, dois poderes distintos, o poder executivo, investido de prerrogativas
po.slllvas. e o poder real, que é sustentado pelas lembranças e as tradições religio
»»!»". “ Refletindo sobre esta idéia, convenci-me de sua procedência. Esta matéria
(' nov», merecendo alguns desenvolvimentos” . “ Os três poderes políticos, tal com o
uló il qui os conhecemos, o poder executivo, legislativo e judiciário, são três compe-
ItMicius que devem cooperar, cada qual de sua parte, no m ovim ento geral, mas
quando estas competências, desajustadas, se cruzam, se entrechocam e se embara-
Viim. 6 necessária uma força que as coloque no lugar. Esta força não se pode conter
iiiunu dessas competências, porquanto ela destruiria as outras; é preciso que ela
oslcjii fora, que ela seja neutra, a fim de que sua ação se aplique onde for neces-
sfiiio, e que ela seja preservadora e reparadora sem ser hostil” . Não poderia ser mais
duro o autor no formular uma doutrina para os novos tempos, o advento da monar-
qiilii constitucional, o aferimento das crises republicanas, sobretudo para neutra
lizar os funestos efeitos do maquiavelismo, cujo fim consiste em desestabilizar o
poder, concentrando-o nas mãos do príncipe. Sob esse aspecto, Benjamin Constant
6 o anti-Maquiavel, e o Im pério do Brasil o ilustrou abundantemente, logo que,
onuerruda a fase convulsiva da Regência, deu o segundo reinado altíssimo exem plo
ilc monarquia constitucional, com sua eficácia e estabilidade surpreendentes nos
liftpicos.
Quem observa e estuda os regimes políticos de nosso tempo, da primeira gran
de guerra, quando a Europa estupidamente se suicidou, aos nossos dias, verifica
que o maquiavelismo, com o uma espécie de poeira atômica, envolveu todas as
nações, entranhando-se nos seus costumes, nas suas leis, nas decisões de seus gover
nos, no comportamento de seus legisladores, nos arestos de seus tribunais. R eco
nhecemos não se darem conta numerosos governos que estão sendo maquiavélicos,
praticando no exercício do poder uma espécie, ainda que disfarçada, de maquiave-
I Ismo. São o M. Jourdain do maquiavelismo. Onde Molière diz, do ridículo bourgeois,
o mal e a injustiça alcançam êxito na política, sob a forma, tantas vezes louvada,
do sucesso im ediato.29 N os Discursos, Maquiavel mostra-se indiferente às formas
de governo; sua visão pessimista do homem era convicta, e o alheamento da moral
uma regra de sua visão política. Vem os que a teoria de Benjamin Constant era
antimaquiavélica, e o Im pério do Brasil, sobretudo o segundo reinado, fo i tudo
o que houve de menos próxim o do maquiavelismo.
F o i possível, na fase de grandes mudanças da História, quando a revolução
derrubava princípios, abalava instituições, erigia o desrespeito à autoridade com o
norma, elaborar uma doutrina susceptível de neutralizar os efeitos nocivos da sub
versão. “ A monarquia constitucional tem esta grande vantagem, ela cria o poder
neutro na pessoa do rei, já, por sua vez, cercado de tradições e de lembranças, e
revestido de um poderio de opinião, que serve de base a seu poderia p o lític o ” .
“ O verdadeiro interesse do rei não é que um dos poderes derrube o outro, mas que
todos, concertadamente, se apóiem, se entendam e atuem.” 29 Faz, em seguida, o
autor, exposição de sua teoria, acentuando:30 “ O vício de quase todas as Consti
tuições tem sido o de não criar um poder neutro, mas de colocar a soma de auto
ridade da qual ele deve ser investido num dos poderes ativos” . Prossegue o autor,
advertindo sobre o perigo dessa concentração de poder. “ Quando esta soma de
autoridade se encontra reunida no poderio legislativo, a lei, que deveria se estender
sobre objetos determinados, se estende ao todo, havendo arbítrio e tirania sem
limites. Daí, os excessos das assembléias do povo nas repúblicas da Itália, as do
parlamento, as da convenção, em algumas épocas de sua existência” . É o predo
m ínio cego do número sobre a razão, que teve na revolução francesa o seu maior
e sinistro exemplo. “ Quando a mesma soma de autoridade se encontra reunida no
poder executivo, há despotismo. Daí a usurpação que resultou na ditadura roma
na.”
A hipertrofia do executivo é, praticamente, a regra em todas as repúblicas
presidenciais, com a exceção — que nos dispensamos de, mais uma vez, justificar —
dos Estados Unidos. D o M éxico à Argentina o poder está concentrado no executivo,
e o que temos é o seu predom ínio, dando origem a pressões sobre a sociedade
civil e a reações, que causam a inquietação popular. Benjamin Constant previu essa
desestabilização do poder, que se tornou realidade depois da revolução francesa,
isto é, depois que o furor da subversão extinguiu o “ A n tigo Regim e” , sobrepôs
as assembléias populares às hierarquias do poder, e reverteu a ordem da represen
tação. O jurista suíço-francês, que tanta influência teve no Brasil, soube afuroar o
fenôm eno inteiramente novo, que fo i a ordem inédita dos três poderes disputando
-se o primado político-social e engendrando crises terríveis, com o todas as que se
assinalaram na França da revolução à V República; nos países americanos, da Inde-
prm lénda aos nossos dias — com a exceção dos dois reinados e dos Estados Uni-
(U»h e nos demais países da Europa, da Ásia e da Á frica, onde só se salvaram até
HW»» iiN monarquias e a Suíça, e os de língua inglesa, singular privilégio, que recla-
iiin um livro inteiro para ser explicado, se não bastarem as considerações contidas
iion I ii olua.
Insiste Benjamin Constant na sua tese: “ A monarquia constitucional nos
o ln o c c ( . . . ) este poder neutro, indispensável a toda a liberdade regular” .31 A
llmlórla de D. Pedro I I 32 ministra-nos o mais dignificante exem plo da superiori-
iliiilo do regime do poder neutro sobre os regimes presidenciais, os parlamentares —
liojc monarquias republicanas — atuais ou os de I I I e I V repúblicas francesas, e
inrHino o misto da V República francesa, criado por De Gaulle para si mesmo.
Nno elaborou uma teoria para uma época o jurista do poder real — ou poder mode-
m u Io i mas para todas as épocas; fronteando uma quadra histórica de crises pore-
Ii i i i I o n , deu a receita para o seu tempo. Mas a crise de então se prolonga, multipli-
1 'inlii pelo número de nações que vieram a ocupar a cena política do mundo. O
Ipiiipo é linear e constante. Se não há regimes permanentemente modernos, nem
lo^lmos superados, bastando a sua alternação no poder, através da História, para
i omprovar a tese, há, contudo, mudanças que, uma vez operadas, aceitas ou admi-
lldiiN, nu tornam irreversíveis. O cesarismo sobrevive, mas a monarquia de Luis X I V
1« I ms X V seria hoje de tod o impossível. As democracias, da Grécia ao presente,
vPm pussando por grandes transformações. Se Clístenes não teria lugar em nenhuma
nii(,ílo democrática de nosso tem po, os reis e seus conselhos, os arcontes, os aisime-
iip Iiis, os tiranos também não estariam configurados em instituições modernas,
to m o mi llclade, que excessiva simplificação erige, ainda hoje, em m odelo supremo
ilii pcilcita democracia. Em Rom a, a realeza, a república oligárquica e o império
mio durum nunca lugar ao povo com o o entendemos segundo uma perspectiva e
• oiicollos contemporâneos. Aparenta-se a democracia atual com a democracia
iilonlonse menos por suas virtudes, do que por seus vícios; as ditaduras e as tiranias,
cMftiiN sc assemelham em todas as idades históricas. A realeza passou, também, por
mudanças, sobretudo vindo a ser pela sagração, na palavra de Renan, o oitavo
mu uimcnto. Quando, pois, Benjamin Constant elaborou a sua teoria do poder real,
ou moderador, para nós estava articulando velhas instituições em gênero novo.
I jimcntiivelmente a sua autoridade no mundo do pensamento não igualou a de
I oi/kc. Montesquieu, Rousseau. Sua vida aventurosa, a época em que viveu, de tran-
■ii«, il»», dc grandes reformas, testemunha atento dos excessos da revolução francesa,
du dcNincdida ambição napoleônica, fundando num im pério que não teria conti
nuidade, ainda que L ’A iglon não morresse; a restauração dos Bourbons, as crises a
i|iu: nssistiu e das quais participou abriram-lhe a inteligência, graças à qual lhe deve-
Constunt, difundiu-os, através das páginas de livro que se tornou clássico. Durante
o Império, os membros do Partido lib era l combateram quanto puderam o poder
moderador, argüindo-o de poder pessoal, ameaçador das liberdades, e centralizador.
"A con tece que somente andavam com razão no segundo caso. O Poder Moderador
nflo era um m odo de acentuar o caráter monárquico da Constituição; mas um
m odo de desviar a influência d o Imperador, dando-lhe atribuições definidas, impe
dindo assim as lutas e os atritos entre os dois princípios da legitimidade (o rei
o o ministério responsável), atritos que ocorreram em quase todas as monarquias
constitucionais, conform e analisa tão bem Ferrero em dois casos típicos, o de
lAiis Felipe e o dos Savoias italianos” .7 Braz Florentino fo i claríssimo no expor
suas idéias sobre esse poder inconfundível e, mais do que inconfundível, neces
sário, com o, para quem não se deixa cegar pelos preconceitos, o comprova a nossa
História. Estavam, pois, errados os membros do Partido liberal, e, errados em
persistência, acabaram causando ao Brasil grande mal, pois concorreram para
desacreditar e, portanto, enfraquecer o regime do chefe, do Pai, da autoridade
suprema do poder moderador. Proclamada a República nenhuma das idéias que
os propagandistas defenderam subsistiu, senão, a princípio, a federação na qual
Rui Barbosa punha redobrada, inflexível paixão, sob alguns aspectos irracional
em inteligência tão lúcida quanto a sua, mas, a partir da “ política dos governa
dores” na primeira República e pela centralização progressiva, depois de 1930,
nem essa teve forças para sobreviver. Hoje o Brasil é, de fato, uma república
unitária, com mais de um centro de decisão no poder supremo, embora o presi
dente deva ser, constitucionalmente, o único.
Palpita, é inegável, no fundo das instituições políticas brasileiras mutiladas
a nostalgia do poder moderador. A ênfase posta há um século por Braz Florentino
na sua exegese deveria ser retomada. Somente de longe, assinalando a sua falta,
vendo-a, sentindo-a, pode-se avaliar com o estavam mal informados os propagan
distas da República. Os seus inimigos, na época da monarquia, o defenderiam
hoje, se não cedessem ao preconceito contra o regime. Mas não há quem não
se manifeste, ao menos, pelo seu vazio, e a falta que à nação faz esse poder, sobre
tudo em crise com o a atual, cuja solução está obturada, e, ao parecer, sem plano
para desobstruí-la. As críticas e censura ao poder moderador eram antes produto
de preconceitos, de ressentimentos, de falsa ótica do papel desse poder do que
reflexões maduras sobre a sua essência. Um desses casos de extremado precon
ceito era o de Tobias Barreto, que “ não gostava de Pedro II e não perdia oportu
nidade para manifestar esta antipatia” .8 Evidentemente, a organização política
imperial não fo i perfeita, pela simples, elementar razão que não há regimes
perfeitos, nem na ordem espiritual — quem ignora que a Cúria Romana está cheia
de defeitos? — mas fo i e será o menos im perfeito, observada a relatividade das
perfeições e imperfeições humanas. Tobias Barreto não apreciava o imperador.
Nnu biógrafo, Hermes Lima, não aprofunda as causas da aversão. Nem vamos,
no« outros, aprofundá-la; sobre não ser esse o nosso objetivo, não interessa à nossa
I('nc. lobias Barreto dedicou estudo ao poder m oderador,9 mas não baixou da
Hiipoi ücialidade. Para Tobias o poder m oderador não era instituição originária
iIoh costumes, mas produto abstrato da razão, tese que a História contesta. Esten
do »0 'I obias por sessenta páginas, sem convencer, sobretudo quando argúi a
oiKiinizução política imperial de cópia da inglesa, ou, pejorativamente, mata-
lioi rITo, “ onde se podem ler os caracteres do m odelo, porém todos às avessas” .
I ohlus não teve influência direta na opinião pública, ou o que na época poderia
nim clussificada com o tal, mas avolumou a corrente da campanha contra o Império,
(|iip seria abatido por um golpe armado, do qual participou reduzida minoria
il« políticos, fanáticos, e militares inconformados, por vários motivos, que seria
loii^o urrolar, com o regime, o imperador, sua herdeira e o conde d’Eu.
Assentada a poeira da História, vemos, à distância, que o poder moderador
Irvc uma imponência, uma presença, uma autoridade, que nenhuma presidência
ir lho igualou, nem mesmo a de Rodrigues Alves, de resto antigo conselheiro
Imperial. Conserva-se, portanto, a nossa tese, a de que o poder moderador é neces-
Hflilo, com o o entendiam os tratadistas do Im pério, e os homens públicos que o
|inllocinaram. Para Joaquim N abuco,10 o reinado era do imperador. 0 chefe do
poder moderador usava, na sua plenitude, as prerrogativas reais e constitucionais.
I) Pedro II não governava diretamente e por si mesmo; cingia-se à Constituição
n As formas do sistema parlamentar, era o árbitro de cada partido e de cada
mlndista, fazia e desfazia ministérios; era o poder.11 Consciente, portanto, de
«mi pupel histórico, não queria nem suspeitar de ter validos. F o i por isso que
lU|iildou a facção áulica. “ Depois que termina o seu noviciado, e dispensa os
rofisellios de Aureliano Coutinho, e o reduz a um p o lítico tão dependente, tão
iKMoninte dos altos mistérios, com o os outros, não quer, ao seu lado e nos seus
roii.selhos, individualidades culminantes, governando com o seu prestígio e à sua
mmbra, com o se tivessem poder próprio sobre a nação” .12 Mas no exercício do
poder moderador, interpretando-lhe a letra e o espírito,Acentua Nabuco, o impe-
imlor deixava liberdade aos ministros. “ Se o imperador inspira e dirige, não
Itoverna, entretanto. Se fiscaliza cada nomeação, cada decreto, cada palavra dos
ministros, a responsabilidade é destes. 0 soberano não intervém, quase, na
miU|tiina política e administrativa, que são os partidos com suas aderências e
|oiiiit|uias oficiais, seu pessoal e suas transações. Este não quer mesmo conhecer
iln vida interior dos partidos, não estabelece relações pessoais, diretas com eles, senão
13 Id „ ib„ p. 379.
14 Alberto Torres. A Organização Nacional. R io de Janeiro, Imprensa N acional, 1914, passim.
15 Borges de Medeiros. O poder moderador na República Presidencial, sem indicação de
editora, R ecife, 1933, passim.
16 Cf. João de Scantimburgo. A crise da república presidencial São Paulo, Livraria Pioneira
Editora, 1969, passim.
17 Borges de Medeiros. Op. cit., pp. 67-8.
A EXEGESE DO PO D E R M O D E R A D O R 33
23 José Maria dos Santos. A política geral do Brasil. São Paulo, J. Magalhães, 1930, p. 114.
24 Oliveira Viana. O ocaso do Império. São Paulo Melhoramentos, 1922, passim.
25
Visconde do Uruguai. Ensaio sobre o Direito Administrativo. R io, Tipografia Nacional,
2 volumes, 1862, II. p. 45 e ss. e passim.
I* O PO D E R M O D E R A D O R
26
Bernard Faÿ. Naissance d ’un monstre-iopinion publique. Paris, Perrin, 1965, passim.
21
Alberto Rangel. A educação do principe. R io, Agir, 1946, passim.
2fl
Zacarias de Goes e Vasconcelos. Da Natureza e Limites d o Poder Moderador. R io , T ip o
grafia Universal, 1862, passim.
20
Zacarias de G oes e Vasconcelos. Op. cit., p. 90.
A EXEGESE D O PO D E R M O D E R A D O R 37
30
Visconde do Uruguai, Op. cit., p. 71.
31
Marques de São Vicente. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império.
R io, Tipografia de J. Villeneuve, 1857, p. 204 e ss.
32 Id „ ib„ p. 205.
33 Pedro Calmon. História de Pedro II. Op. cit., passim.
IH O PO D E R M O D E R A D O R
u mudar de rumo? Alguma mancha que para sempre marcou o nosso nome, alguma
transação indigna, vergonhosa, humilhante, que salpicou de lama o trono e a
bandeira do B ra s il” .34 O poder moderador asegurou ao Brasil um longo e satis-
lalòrio estágio democrático às nossas instituições, não obstante a nódoa da
odcruvidão marginalizar uma parcela não negligenciável da pequena população
tio país. Ninguém há que não reconheça esse m érito do governo imperial. Foi,
com o devemos entender o vocábulo, democrático na plenitude relativa dos regimes
lemporais. “ Uma democracia autêntica implica um acordo firme dos espíritos e
das vontades sobre as bases da vida comum; ela é consciente de si mesma e de seus
pilncípios, devendo ser capaz de defender e prom over a sua própria concepção da
vidu social e política; ela deve levar em si um credo humano com um , o credo da
liberdade” .3S Se o regime republicano, que sucedeu ao monárquico, eclipsou a
democracia em vários quatriênios,36 devemos louvar o regime que, apesar de todas
as restrições que se lhe imputem, garantiu à nação uma forma de governo, uma
estrutura jurídica e um ideal moral democráticos. Excedeu-se no respeito aos pos
tulados liberais? Era a época. D. Pedro II pagou-lhe esse tributo, com o j á lhe havia
pago antes, e veio a pagar depois, quando voltou a Portugal, seu pai, D . Pedro I.
Maritain condenou o erro do liberalismo burguês do século X I X 37 e Maurras tam
bém lhe aplicou o ferro-em-brasa de sua cáustica e severa crítica.38 Mas o imperador
não poderia renegar a sua formação cultural. Preferiu ser liberal e democrata,
tolerando a propaganda republicana que em dezenove anos lhe m inaria o trono,
e o abateria na manhã de novembro, durante a qual o enfarado conselheiro Ayres
não percebera que uma revolução, no exato sentido da palavra, sepultava u m regime
ao qual devera o Brasil uma era de respeitabilidade, de exemplar fé nos princípios
democráticos.
Definiu João Camfllo de Oliveira Torres o Im pério com o uma democracia
coroada. Sua obra é clássica, pelo fundo e pela forma, em nossa esquálida biblio
grafia política. É a perfeita definição do Im pério, inclusive do p rim eiro reinado
e pelo avesso da amostra republicana que fo i a Regência, não obstante a grande,
austera figura de Feijó. F o i possível a democracia no Império, com o a devemos
entender, sem laivos polêmicos, graças ao poder moderador. F o i sobre o seu fun
damento que assentou esse recôndito ideal de vida dos povos, e não hesitam os em
alirmar que a sua instauração nas instituições políticas brasileiras n o s devolveria
o sistema democrático proporcionado à nossa índole. As Forças A rm ad as o têm
39 ,
Pontes de Miranda. Democracia, Liberdade, Igualdade. R io, Livraria Jose O lim pio Editora,
1945, p. 163 e ss.
40 W. Ward. The Life o f John Henry Cardinal Newman. Londres, Longmans, 1912, II, p.
118 e passim.
41 Presidencialismo ou Parlamentarismo. Op. cit., p. 172.
40 O PO D E R M O D E R A D O R
42 Caries Seignobos. Histoire politique de l ’E urope Contemporaine. Paris, Arm and Collin,
1897, p. 102.
43 Rui Barbosa. Queda do Império. Obras Completas, V o l. X V I, T om o I, R io, Ministério de
Educação e Saúde, 1947, p. X X V I.
44 Jumes Bryce. The American Commonwealth. N ova Y o rk , Macmillan, 1895, passim.
A EXEGESE D O PO DER M O D E R A D O R 41
2 Aurelino Leal. História Constitucional do Brasil. R io, Imprensa Nacional, 1915, p. 201.
3 Machado de Assis. Esaú e Jacob. R io, Livraria Garnier, s/d (1 9 0 4 ), p. 190 e ss.
4 Gaetano Mosca. “ Elem enti di scienza politica” . Apud. Dizionario di Cultura Política.
Milão, Antas, 1946, verbete “ Classe” .
O B R A S IL E O PO D E R M O D E R A D O R 45
' R. Magalhães Júnior. Deodoro - a espada contra o Império. São Paulo, Companhia Editora
Nacional, 1957, II, pp. 56 e ss.
* Ernest Renan. La réforme intellectuelle et moral. Paris, M ichel Lévy Frères, 1875, passim.
46 O PO DER M O D E R A D O R
nem a Lei de Segurança Nacional. Foi, no entanto, o poder pessoal que preservou
a unidade nacional, obra e glória da Casa de Bragança. Os “ estados gerais” do
reino, o clero, a nobreza e o povo, em sentido lato, evidentemente, pois aqui não
tivemos o “ A n tigo Regim e” de estilo francês, essas três ordens existiram, graças
à coroa. O poder moderador, inspirado em Benjamin Constant, o suíço-francês,
era, com o dissemos em capítulo anterior, uma herança medieval, que se conservou
e se conserva nas monarquias. Em alguns períodos da vida dos povos seu papel
ficou suspenso, mas o regime de gabinete, colocando-se o monarca acima dos
partidos, prevaleceu sempre, inclusive sob o absolutismo de Luis X V . N o Brasil
o poder moderador era exercido pelo monarca. Determinava o artigo 98 da Cons
tituição de 1824: “ 0 poder moderador é a chave de toda a organização política,
e é delegado privativamente ao Imperador, com o chefe supremo da nação e seu
primeiro representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da inde
pendência, equilíbrio, harmonia dos demais poderes políticos” . Tinha, no entanto,
esse caráter o poder moderador, por ser apartidário o monarca, por estar acima das
lutas de facções ou grupos; por ter legitimidade histórica, por não depender do voto,
nem das concessões e injunções partidárias. 0 papel que alguns publicistas reivin
dicam para as Forças Armadas, na República, só poderia caber ao monarca desem
penhá-lo, pois ele era, efetivamente, o primeiro magistrado da nação. 0 visconde do
Uruguai7 doutrinava que o poder moderador era um poder político, uma delegação
da nação, a suprema inspeção sobre os poderes legislativo, executivo e judiciário, o >
alto direito que tinha a nação de examinar com o os poderes por ela delegados eram
exercidos e de manter a sua independência, harmonia e equilíbrio, direito que a na
ção, por não poder exercer por si mesma, delegou ao imperador. Acrescentava Uru
guai que o poder moderador não era ativo. Tinha por fim conservar, moderar a na
ção, restabelecer o equilíbrio, manter a harmonia e independência dos demais pode
res, o que não poderia fazer se estivesse assemelhado, refundido e na dependência de
um deles. Para Braz Florentino Henriques de Souza o poder moderador unificava na
pessoa do rei todas as forças sociais, reconstituindo o equilíbrio dentro do organismo
nacional. Esse poder, por sua natureza, deve ser exercido unicamente por um monarca
hereditário, com o era o seu chefe na organização política imperial. Querer transferi
-lo para a República poderá melhorar o sistema republicano, mas não se identificará
com sua essência, porquanto subsiste no caso o vício da eleição, que, com o já filo
sofava o pachorrento cônego Vargas da Sereníssima República, de Machado de
Assis, é sempre falha.
Por analogia, invocamos a imagem Santíssima Trindade. São quatro os pode
res, ao contrário da teoria desestabilizadora de Montesquieu, mas todos se harmo
nizam num único poder, o moderador. Esse, o espírito de sua presença nas institui
ções políticas brasileiras, que os liberais não compreenderam, contra os interesses
da nação. Argüindo de pessoal o poder do imperador, combateram-no, quando
todos os poderes de chefia são pessoais, inclusive se, em nome de ficções ideo-
eles, a partir dos 18 anos, o príncipe herdeiro, e deles se socorria — com o o demons
tram os volumes sobre resoluções desse órgão — sempre que deles necessitasse.
Um Conselho de Estado republicano é, portanto, uma contradição, pois o poder
temporário do chefe de Estado é fator contrário à sua formação, e não teria a
vontade, a experiência e o interesse histórico do monarca hereditário e dinástico,
com o o seu agente formador.
Na República a tentativa de criá-lo coube a A rn o lfo Azevedo. A ro ld o A ze
ved o12 e A fon so Arinos de M elo Franco,13 entre outros, trataram do assunto.
Malogrou a tentativa e malogrará tantas vezes quantas for retomada, pois essa é
função privativa dos monarcas. Sobre o projeto de A rn o lfo Azevedo, disse A roldo
A zevedo: “ Hermes da Fonseca havia assumido a presidência da República no dia
15 de novembro de 1910. N a governança de São Paulo continuava o Dr. Albu
querque Lins, o candidato à vice-presidência derrotado, com Rui Barbosa, nas
eleições realizadas a 19 de março daquele ano. Na liderança da política nacional,
mais prestigiado do que nunca, achava-se o general Pinheiro Machado, vice-presi
dente do Senado Federal” .
“ Com o deputado oposicionista, A rn o lfo A zevedo apresentou à conside
ração da Câmara Federal, na sessão de 23 de dezembro de 1910, importante projeto
de lei, que recebeu o n9 357 e pelo qual seria criado, na cidade do R io de Janeiro,
o Conselho Federal da República, a fim de deliberar, mediante consulta dos poderejs
públicos, sobre assuntos políticos e administrativos. Em 15 artigos, dispunha sobre
sua organização, atribuições e funcionamento” .
“ Seria constituído por membros natos e membros efetivos. Os membros natos
deveriam ser os seguintes: o presidente da República, os ex-presidentes da República,
os antigos vice-presidentes da República, o Presidente do Supremo Tribunal Federal,
o presidente do Supremo Tribunal Militar, o vice-presidente do Senado Federal, e
0 presidente da Câmara dos Deputados. Em termos práticos, se naquela ocasião o
projeto fosse transformado em lei, teriam assento no Conselho Federal da República
pelo menos as seguintes personalidades: Hermes da Fonseca, Venceslau Brás,
Campos Salles, Rodrigues Alves, N ilo Peçanha, Rosa e Silva, Pindaíba de Matos,
Pinheiro Machado e Sabino Barroso” .
“ Os membros efetivos, com mandato vitalício, seriam em número de cinco
‘cidadãos brasileiros de notável e provada capacidade administrativa’ , escolhidos
pelo próprio Conselho por maioria absoluta de votos e propostos ao presidente
da República, o qual deveria submeter as indicações à apreciação do Senado Fede
ral, que só poderia aprová-las por dois terços dos senadores presentes.”
“ A presidência das sessões caberia ao presidente da República e a vice-presi
dência aos ex-presidentes da República, na ordem cronológica em que foram
chefes da Nação” .
15 Id., ib.
16 A fon so de E. Taunay. O Senado do Império. São Paulo, Livraria Martins, s/d, p. 19 e passim.
O B R A S IL E O PO D E R M O D E R A D O R 53
17 Op. cit.
18 Arnold J. Toynbee. A Study o f History. Londres, O x fo rd University Press, vol. V I I e
passim.
54 O PO D E R M O D E R A D O R
19 O p. cit.
o poder moderador e
o vazio do poder
Nunca o futuro nos preocupou tanto com o hoje. Pode-se dizer que, sócio-
-psicologicamente, já entramos no ano 2000. N ão fom os invadidos por marcianos,
mas fom os, inegavelmente, invadidos por inúmeros profetas. Um sem-número
de indivíduos se erige em áuspice, e desenrola diante de nós, conform e a im agi
nação de que seja dotado, um elenco maior ou menor do que nos aguarda no
futuro, no mundo e no Brasil. Duas palavras, futurologia e prospectiva, estão
fazendo carreira triunfal. Deixando de lado a primeira, futurologia, a nosso ver
um barbarismo, tomamos a segunda para matéria destas reflexões. Que nos.conste,
fo i Maurice B londel1 o primeiro a usar o vocábulo — prospectiva, no sentido
em que vamos empregá-lo: “ Pensamento ou característica de pensamento, enquanto
orientado no sentido de futuro” . Seu discípulo, Gaston Berger, lançou-o, porém,
em circulação, fora dos limites estreitos dos meios filosóficos, e ele adquiriu logo
maioridade e autonomia. Que é, porém, a prospectiva, se a destacamos da d efi
nição de Blondel? É a ciência que tem com o objeto preparar o futuro, a fim de
que o hom em não seja deixado no acaso. Sem se desabrigar do providencialismo,
que atua na história, a prospectiva valé-se da liberdade do homem, para que ele
não marche no futuro por tateamentos. É um processo, no sentido em que
devemos tomar a expressão, de fenôm eno multilateralmente visto e vivido.
I.
56 O PO D E R M O D E R A D O R
2 P itiiin A . Sorokin. Society, Culture and Personality. N ova Y o rk , Harper, 1937, p. 342.
O PO D E R M O D E R A D O R E O V A Z IO D O PO D E R 57
N ío negamos que a miséria campeia, ainda, sobre a Terra, e que sua extinção
é tarefa sobre-humana, com os recursos de que dispomos. Mas, pela ciência da
prospectiva ou pela experiência dos fatos, do processo que elas têm diante dos
olhos, dos exemplos e dos oferecim entos da tecnologia, as sociedades contem
porâneas, em fase de desenvolvimento, já sabem com o organizar o seu futuro
e alcançar os mesmos benefícios da civilização e da cultura, da técnica e do
engenho humano, dos quais outras gozam. Não ignoramos que os oprimidos se
revoltam, que os desesperados, milhões de inocentes que povoam o mundo, clamam
por pão, mas não ignoramos, igualmente, que não será avolumando o caudal da
revolução universal, esse processo de subversão contra o qual bracejamos, que
resolveremos os problemas sociais, os problemas humanos, os problemas do
homem em face de seu destino. Para revidar ao desafio do século, a extinção da
miséria e a elevação do hom em , as sociedades contemporâneas podem cair no
extremo oposto, divinizarem o consumo.
O hom em é o ser que pede mais, que quer mais do que o material. A civili
zação está posta à prova, em nossos dias. Vem o-la agônica, debatendo-se em
estertores para sobreviver. Circulam em seu corpo toxinas fatais, com o o esqueci
mento de Deus, o desrespeito à nação, o aviltamento da mulher, e outras. Mas
sempre latejam em seu seio forças que podem salvá-la. Estamos vivendo — acen
tue-se — uma época de estranhas divinizações. Tombamos num novo paganismo,
o da era tecnológica, sem perceber que caminhamos para o trágico, isto é, para
o vazio dos destinos truncados. Seja qual fo r o regime econôm ico, adotado pelo
poder que governa uma sociedade, o hom em quer segurança, embora, com o acentua
Henri •G uitton3, seja ignorante de si mesmo. Mas, só a segurança não basta. A
segurança, os regimes concentracionários estão em condições de garanti-la, ao
preço da liberdade. É preciso mantê-la viva nas sociedades livres, em que o hom em
possa sentir-se, não um robô, espiritual e material, mecanizado, mas a pessoa,
com direito de participação na sociedade, o direito de crença, o direito de proprie
dade, o direito de reunião, para a defesa de seus interesses e adoração de seu Deus,
iiobretudo, com o queria Chesterton, o direito de ter os próprios cabelos e de
lochar, quando quiser, a porta inviolável de sua casa. A té onde a prospectiva nos
acode nessa perscruta, diante do futuro? A té onde, perguntamos, se as sociedades
da abundância estão anunciadas e pululam os profetas em quantidade, pàra nos
advertirem de que, secularizada a História, todos os problemas estão resolvidos,
i-inbora saibamos que eles não estão resolvidos?
É pela ciência da prospectiva que devemos procurar reduzir as zonas de
incerteza, em que transcorre a vida das sociedades humanas. É por ela que devemos
tentar a ampliação das faixas de segurança, submeter a coordenadas racionais
iin sociedades, obra que só os governos esclarecidos, estáveis e duradouros, ampa-
indos em sólido sistema educativo e aparelho de difusão posto a seu serviço, podem
1’ llcazmente realizar. A era tecnológica não será anti-humana, nem se desumani-
zará, se, pela ciência da prospectiva, ela for conduzida no itinerário da liberdade
até onde a pessoa humana e a sociedade em que ela vive encontrem satisfação
aos seus lícitos e legítim os direitos. Aos fatalismos liberais, às improvisações fisio-
cráticas — ainda sobreviventes de uma era extinta —, à economia de mercado em
estado puro, à anarquia social, às crises políticas, engendradas pelos partidos de luta,
em sociedades que precisam de paz, deve opor-se, prospectivamente, o plano
histórico dos governos estáveis, das previsões econômicas, os equilíbrios sociais,
os patrimônios morais, sem cujo esteio as sociedades não subsistem.
A edificação da ordem pela previsão a curto e a longo term o, por um
com p lexo de decisões que limitam, mais ou menos, o campo das evoluções e que
se articulam, de maneira mais ou menos coerente, sobre projetos de evolução
considerados com o prováveis ou desejáveis, eis o problema, com o diz Paul
R icoeur.4 A ciência e a técnica dão saltos assombrosos, conferindo ao homem
novos poderes, novas forças, com o uso dos quais o seu dom ínio se amplia sobre
o m undo e os espaços siderais. Mas, acentua Bertrand de Jouvenel,5 papa dos
fu tu rib le s , quanto mais a sociedade está em mudança, mais duvidosa se torna
a validade futura de nossos conhecimentos atuais. 0 homem pode, com o uso
da razão, ordenar o futuro da sociedade, embora não penetre nos arcanos da
Providência. Repelimos o Estado totalitário, que se imiscui na vida de cada
indivídu o, mas entendemos que se deve admitir o Estado-Prospectivo, o que
prevê, não apenas na área econômica, mas em todas onde sua função deve fazer-se
presente na sociedade, a fim de preparar melhores condições de vida para seus
súditos.
Ciência e técnica provocam o homem contemporâneo a descobrir — se a
palavra é cabível — formas de governo e estruturas econômicas, com patíveis com
as descobertas e invenções, os engenhos postos à disposição da humanidade, o
amplo horizonte da cultura desvendado. O presente e o futuro próxim os do
mundo aconselham a reform a das concepções políticas, que se distanciam da
situação atual do hom em e das proposições científicas da prospectiva. A revisão
deve ser completa. Não será com o sufrágio universal que se organizarão as nações,
nem se constituirão governos legítim os, assunto este objeto de exame em outro
capítulo. Na época da propaganda organizada, das comunicações de massa, pelo
cinema, a televisão, o rádio, o jornal, as revistas, os posters, o hom em torna-se
um autôm ato dirigido, segundo os mecanismos naturais mentais sugestionados pela
máquina publicitária. As legendas e os mitos, criados pela propaganda, deturparam
o significado do sufrágio universal que, por isso mesmo, não existe em estado
puro. A guerra da informação, com o diz MacLuhan,6 tomou-se guerra total. As
preocupações com o mundo e o futuro são, portanto, admissíveis. Inscrevem-se
na irresistível tendência humana a afuroar o ignoto. A lei humana do menor
com o tal, e, se não vier a ser admitida nesse recinto, podemos estar certos, desde
logo, que a crise continuará a porejar do seio da nação, e o hom em brasileiro
não gozará fi paz a que tem direito. Vejam os com o, baseando-nos na ciência da
prospectiva, podemos fazer um retrospecto histórico do Brasil, e, visto o vazio
do poder, projetarmo-nos para o futuro.
Abolidas as instituições imperiais:
- poder moderador,
- Conselho de Estado,
- Conselho de Ministros,
- Senado vitalício,
- a elite dirigente,
abriu-se a disponibilidade do poder. Ocupou-a o marechal D eodoro da Fonseca,
em nome da revolução que acabava de destronar um imperador e instituir outro
regime em lugar do monárquico. Iniciava-se, naquele dia, com o dissemos, úm
rosário de crises. Os propagandistas da República não cogitaram do problema
da organização do Estado, nem do que fariam com a vitória, quando esta lhes
caísse nas mãos. Queriam proclamar a República, depondo o imperador; não
gostavam do conde d ’Eu, não pretendiam ver no trono uma mulher, a beata, como
diziam. Tudo são preconceitos. Mas eles prevaleceram, naquelas circunstâncias,
com o em outras; na História do Brasil, e de todos os povos. Tornaram-se vito
riosos, para espanto do p òvo brasileiro, até mesmo para os mais esclarecidos,
com o. o conselheiro Ayres, que fo i ao Passeio Público, muito cedo, sem atinar
com os rumores, os boatos e vagas alusões a “ Campo de Sant’Ana” , “ levante” ,
“ Marechal D eodoro” e outros fatos do dia, um dia de novem bro, que deveria
ser igual a outro qualquer na cálida cidade de São Sebastião do R io de Janeiro.
A disponibilidade do poder é um vácuo terrível para as nações. Os revolu
cionários de 1789, na França, caminharam, desde a convocação dos Estados Gerais,
para o vácuo do poder, chegando à eliminação física do rei, que alargou as dimen
sões do hiato, fechado, mais tarde, por Napoleão. A ascensão de Kerensky, na
Rússia, não significou, com o ficou provado pela História, uma solução para o
problema p o lítico russo. A o contrário, com a queda do tzarismo, incom patibi
lizado pela propaganda comunista, com a minoria dominante, que tinha o controle
das grandes cidades, a disponibilidade do poder tornou-se maior. Kerensky não
conseguiu preenchê-la. Essa disponibilidade, as instituições políticas devem
prever, e, com elas, os líderes políticos. Os Estados Unidos não conheceram, ainda,
nenhuma disponibilidade do poder. Da guerra da Independência até hoje, mesmo
nos momentos cruciais de sua história, o poder nunca ficou disponível. Foi
ocupado, muitas vezes, por homens sem fision om ia , m edíocres figuras de sua vida
pública, essa regra da história política americana, com o acentuou B ryce,8 mas
nunca se declarou a disponibilidade do poder nos Estados Unidos. Esse, entre
outros, um dos motivos por que os Estados Unidos puderam avançai no roteiro
Â
O PO DER M O D E R A D O R E O V A Z IO D O PO D E R 61
parafeiidal que, com apoio nos governadores do Estado, barões para a circuns-
tânCja, lhe deram o apoio de que ele precisava, para exercer, até onde lhe fosse
possível, o poder presidencial. Graças a essa estratégia política, Campos Salles
teve condições para sustentar a política econômico-fmanceira de Joaquim
j^yjtinho, que restabeleceu o valor da moeda e saneou as finanças da União. Mas
teve torcer a Constituição, e deixá-la praticamente de lado; teve de lançar
m jj0 de uma form a nova, esse parafeudalismo, sobre o qual concentroou a sua
disposição de dirigir os destinos do país, numa fase ainda conturbada da nossa
História- Cada presidente ou governador — conform e o Estado — era o chefe
político estadual. N o estilo parafeudal, insistimos, ainda, Campos Salles contava,
sempre’ com as f ° rÇas fiéis ao governo, dispondo da maioria de que precisava.
para a execução de seu programa de governo. A disponibilidade do poder estava
contida- N ão a disputavam forças desleais, oü adversárias, ou a oposição, que
era facilmente, freada pelos chefes políticos estaduais. Se o “ país legal” não
conStituiu tropeço para Campos Salles, o “ país real” pode marchar desimpedido.
A obra de Murtinho, que fo i enorme, para a época, realizou-se unicamente por
esse motivo, a do bom senso, do pragmatismo, diremos, no bom sentido, do opor
tunismo de Campos Salles.
O sucessor de Campos Salles, o paulista Rodrigues Alves, o últim o presidente
nascido em São Paulo, encontrou a nação em ordem. Seu governo, um dos melhores
,ja gepública, partiu de boa base, a estabilidade da moeda, a econom ia restau
r a , as finanças recuperadas, as facções políticas em relativa paz. D aí por diante,
a ^jSponibilidade do poder ficou recessiva; os presidentes governaram, tanto quanto
possível, à maneira de Campos Salles, embora sem a ostensibilidade do conúbio
entre o poder supremo da República e o poder dos presidentes de Estado. Os
casos de contestação do poder não chegavam ao cerne da indisponibilidade, nem
mesfl10 durante a campanha civilista, quando o verbb de fogo de R ui Barbosa
desabou sobre a candidatura Hermes da Fonseca e a participação dos militares
na política ativa.
A década em que a disponibilidade e a indisponibilidade entram em conflito
fo i a de 20, quando Epitácio Pessoa ascende ao poder, em lugar de Rodrigues
A jves, que falecera no R io, em 16 de janeiro de 1919, sem ter tom ado posse da
preSidência. Inflama-se, naquela década, o rastilho do inconformismo, da contes-
taçjo, da luta contra o poder, que revolucionários de vários matizes — naciona
lista uns, comunistas embrionários outros, simplesmente políticos desgostosos
ou frustrados estes, idealistas, embora poucos, aqueles - levavam por tod o o
pai'S. Estava lançada a sorte do sistema e selado o destino de uma época. Poucos
angs depois, uma década somente, encerrava-se o ciclo da primeira República,
da Constituição de 1891, do maior desquite já assinalado na História do Brasil
entre os textos escritos e a realidade dos fatos. Disponível o poder, com a queda
do presidente Washington Luis, ocupou-o por 9 dias uma Junta Militar, presidida
pejo general Tasso Fragoso. Em 3 de novembro de 1930, Getúlio Vargas iria iniciar
a ]Tlais longa fase de detenção do poder e de ocupação da cena política republi
c a em nosso país. Com a sua ascensão à presidência da República, marcar-se-ia
O PO D E R M O D E R A D O R E O V A Z IO D O PODER 63
o estado de sítio suspenso por exceção; a ditadura, com uma franquia dem o
crática intervalar, de 1930 a 1937; o regime do presidente, com poderes abso
lutos de 1937 a 1945; a desordem multipartidária, com o governo do acordo
PSD-UDN, de 1946 a 1951; com o suicídio de Vargas, a deposição de Café
Filho e Carlos Luz de 1951 a 1954; com o governo Kubitschek permanentemente
contestado de 1956 a 1961; com a renúncia de Jânio Quadros em 1961, a depo
sição de João Goulart em 1964, e o governo autoritário, sob controle militar
desde 1964, com prazo indeterminado — por impossibilidade de prefixá-lo —
erigido sobre uma sucessão dinástica no seio do Exército.
Atribua-se ao E xército - ou, mais amplamente, às Forças Armadas — o
papel de poder moderador. Mas, por que o “ ersatz” , o sucedâneo, não o autêntico?
A Constituição em vigor, no seu artigo 47, inciso II, parágrafo IP , censura, taxati
vamente, a discussão sobre regime, dando, portanto, com o assentado que o atual
é o melhor e o que nos convém. Dispõe esse artigo:
Dutra a Castelo Branco o poder esteve, de fato, vazio, sob as bombardas da contes
tação, do inconform ism o, da repulsa pessoal, inclusive no p eríodo curtíssimo
de Jânio Quadros, o ungido das urnas em 1960. Os militares assumiram o poder
em 1964, e nele se conservam, para não deixá-lo vazio, embora não proclamem
ter sido esse o seu objetivo, e, provavelmente, nem mesmo o reconheçam. Mas
se deixassem o poder nas mãos dos civis e do multipartidarismo o vazio se acen
tuaria, mais cedo ou mais tarde, nessas alturas. As agitações que rastrearam a vigência
da Constituição de 1946, durante a qual o Brasil sofreu, agudamente e sob tem pe
ratura alta,, o “ mal p o lític o ” , voltariam, mais impetuosas, com o uma desforra
da “ classe p o lítica ” ao recesso em que a colocaram os militares. F o i de resto o
que vimos em outubro de 1965, quando o presidente Castelo Branco atalhou-lhes
a reação, baixando o A to n9 2, que extinguiu as doze agremiações políticas, então
ativas, e criou em seu lugar, para salvar a fachada democrático-partidária, a Arena
e o MDB, dois partidos sem nenhum apelo ao interesse do povo. Tinha João Camillo
de Oliveira Torres esperança nos partidos — observando evidentemente a cena
política brasileira, e a comparando com a de outros países - e lhes previu notável
papel institucional. Se “ recordarmos que, mais e mais, os partidos começam a
traçar seus lineamentos segundo as linhas de clivagem da separação de classes,
a conseqüência é termos, realmente, uma sociedade dividida em partidos, em
grandes corpos políticos, semelhantes às antigas ‘ordens do reino’ . Podem os afirmar
que, sc a evolução dos partidos prosseguir na mesma linha em que vai, não tardará
o dia em que os resultados das eleições se manterão estáveis e sólidos” .14 Não
partilhamos, com o já deixamos atrás afirmado, esse otimismo do saudoso pensador
p olítico. N em mesmo nos Estados Unidos e na Inglaterra os partidos se conservam
com o grupos secundários, institucionalizados sem risco de ruptura, embora —
dissemo-lo antes - façam parte da estrutura política dessas duas nações. N o partido
Conservador seus líderes apelam para a economia, a fim de manter-lhe a unidade,15 e
Raym ond A ron de sua parte fa z por prever: “ Outro regime, p o lítico assim com o
econôm ico, sairá, pouco a pouco, nos próximos anos, da crise britânica” .16 Para os
Estados Unidos os prognósticos se situariam em outro plano, mas nos abstemos de
conjecturas futuribles, sobretudo porque o poder na Am érica do N orte não se nos
apresenta institucionalmente vazio. Esta é sua situação, à luz da teoria da instituição,
na quase totalidade dos países do mundo. N ão cremos que houvesse jogador tão
temerário que arriscasse toda a sua fortuna numa aposta original, a de que os
governos dos povos do mundo se manterão até o fim do século, ou até mesmo
por uma década. Estamos sendo pessimistas? Q ui vivra vera.
14 João Camillo de Oliveira Torres. Harmonia Política. Belo Horizonte, Itatiaia, 1961, p. 25.
15 The Economist, 23/29 de julho de 1977 in, N o t quite Disraeli.
a hermenêutica
do poder moderador
Dizia o nosso grande e querido Chesterton que o mundo vai mal, porque
todos querem a mesma coisa por motivos diferentes. Podemos aplicar esse para
doxo à ambigüidade da expressão poder moderador no Brasil de nossos dias. Depois
que sucessivas crises marcaram a República presidencial, de sua proclamação aos
nossos dias, mas, sobretudo, depois da revolução de 31 de março, o êxito relativo
do chamado “ m odelo econôm ico” — que não era m odelo nenhum, mas simples
aplicação do capitalismo, em duas modalidades, a estatal e a particular — provo
cou o estudo ou a incursão amadorista na vasta seara da política, de onde, curiosos
uns, e bem intencionados, outros, procuram obter a fórmula de um m odelo p o lítico
adequado ao Brasil.
Não há, com o estão fartos de saber quantos estudam as doutrinas e os
sistemas políticos, novidade em matéria de regimes. D o velho Aristóteles aos
modernos tratadistas — e Georges Burdeau praticamente esgotou a matéria —
ninguém é capaz de inventar o regime ideal. Extinguiram-se as utopias, sem
oferecer aos ansiosos faiscadores de suas virtudes a resposta que, no mundo da
realidade, todos desejamos obter. N ão há regimes perfeitos. Há regimes menos
imperfeitos. A distinção parece sutil; é a que cabe aqui, segundo o bom m étodo
tomista. Se não nos contentarmos, no mundo, com o menos im perfeito, deixando
o perfeito para o reino dos céus, corremos, sempre, o risco dos eternos recomeços,
dos ciclos intermináveis, dos quais sai perdendo, invariavelmente, o povo. Os
ingleses, com o acentuou a sua soberana, na Mensagem de Natal de 1964, encon
traram o regime, que, modestamente, entendem não ser o melhor, mas o que
melhor puderam criar para o seu povo. N o Brasil, com o nas nações latinas, em
geral, procuramos o melhor, e com o não o encontramos, bracejamos crises perma-
/o O PO D E R M O D E R A D O R
sinais que apelamos linguagem, graças ao qual o ser humano comunica o seu
pensamento e torna possível a vida sobre a terra, é o instrumento form ado de
sons articulados, que manifestam na mais flex ível e mais sutil das matérias o que
há de interior em nós e o que, em nós, há de espiritual. Não é, portanto, a semio
logia uma ciência nova, nem a lingüística uma novidade científica. Ambas, com
outra denominação ou sem denominação alguma, foram tratadas pelo velho
Aristóteles, e desde que a pessoa humana começou a se comunicar, no mundo,
usou sinais que tomaram viável a organização das sociedades e o vagaroso evoluir
dos grupos humanos. A força comunicativa das línguas acompanha a civilização,
seu brilho, seu esplendor, pelas obras que com elas foram produzidas. As línguas
indo-européias foram dotadas de ductilidade glótica, riqueza léxica e sintáxica,
que lhes permitiu o notável avanço na obra civilizadora e cultural, transmitido
através dos instrumentos elaborados, com o as línguas, para a comunicação do
pensamento.
Se não há superioridade de raças, podendo qualquer delas chegar do páramos
da beleza, da criação artística, do desenvolvimento científico, devemos reconhecer
que há uma superioridade de línguas, graças à qual fo i possível aos que a falam
conquistar um posto de relevo na História. Por mais que se tenha da língua alemã
um ju ízo desfavorável, ela se presta admiravelmente à formação do conceito
e ao discurso lógico. Com o fo i possível serem faladas e nelas serem produzidas
obras definitivas de gênio humano, as línguas grega e a latina? Dois instrumentos
perfeitíssimos, tão perfeitos no superlativo que não se elaborou nada igual depois
deles. Quem sabe ler a Ilíada e a Odisséia no original, Horácio, O vídio, Anacreonte,
Cícero, mas, sobretudo, Horácio, na língua em que escreveram, goza prazer inte
lectual único. São línguas que correspondem na glótica à beleza da estatuária
em artes plásticas. Santo Tomás escreveu em latim as suas apostilas de aula, os
seus Com entários/as suas Sumas. Seu latim estava, no entanto, longe do latim
de Horácio. A confusão das línguas se assinala com o sua decadência. Essa é a
realidade lingüística do mundo. De uma linguagem e de um mesmo m odo de
falar, com o vem no Gênesis,2 às línguas de Babel, o que observamos é serem
poderosos e grandes os povos que usam línguas menos imperfeitas, já que línguas
perfeitas não mais se falam.
Tem a língua conexão com o poder político? M eio de comunicação, a
língua deve ficar, rigorosamente, adstrita à semântica das palavras, à natureza
das coisas e à essência dos conceitos. Humboldt, citado por Ernest Renan,3 dizia
parecer-lhe que havia nas línguas uma época em que elas já não mudam. As
línguas evoluem, porém, lexicamente, poucas mudanças se introduzindo na sua
sintaxe, isto é, na form a que o discurso assume para expor a idéia. Ferdinand
de Saussure4 introduziu na lingüística a palavra valor, por analogia com o seu
significado em economia. Ponhamo-nos de acordo com o grande lingüista: as
2 11, 1-7.
3 Ernest Renan. D e Vorigine du langage. Paris, Calman-Levy, 1889, p. 106.
4 Cours de linguistique générale. Paris, Payot, 1968, passim.
r O PO D E R M O D E R A D O R
piilavrus têm um valor, mas, também, um sentido. Se quisermos nos fazer enten-
illdoK, dialogando, devemos nos lembrar do valor e do sentido das palavras. Comen-
Inndo u teoria de Saussure, Étienne Gilson5 diz: “ Eis aqui uma soma de dinheiro,
ou dc ouro, ou de papel; é um valor de troca porque ela tem propriedades intrín-
a c c iis reais que a tornam desejável por si mesma ou para o poder que ela possui
puni a aquisição de outros bens, os quais são desejáveis. Mesmo uma moeda
Hlmbólica, com o toda a moeda fiduciária, não tem valor de troca senão pelo
ouro que ela representa ou, na falta do ouro, pelos objetos adquiríveis, produtos
tio uin trabalho, intercambiáveis contra aqueles de outro trabalho. Seguramente,
jil que a palavra é livre, nada impede de se ter por bens a palavra inteligível que
conhecemos e o seu sentido. Não-vem os, portanto, nenhum m otivo decisivo para
rocusar o nome de valor já à língua, já à linguagem, mas nos expom os, fazendo-o,
n criar um equ ívoco fundamental sobre a natureza do que designamos por este
nome. Nenhuma troca é possível sem linguagem, a não ser o da atitude e do gesto,
mus na troca real, aquele que oferece em troca perde a propriedade do que ele
dá e adquire a propriedade do que lhe dá seu parceiro” . Prosseguindo, acentua
Gilson que, “ de qualquer maneira que a entendamos, a noção de valor não se
uplica à linguagem. O inteligível tem um valor, é, mesmo, dotado do mais alto
de todos os valores depois do ser. A verdade é um bem em si; é o bem do inte
lecto” . “ O fundo da questão é m etafísico, porquanto o debate se situa em transcen
dentais. Trata-se de saber se o sentido da linguagem, que é da ordem do inteligível
e o objeto do intelecto, pode se conceber com o se ele fosse um bem e um objeto
da vontade” . São os direitos da realidade que a filosofia reclama da lingüística.
Hsta ciência não pode coméfter abusos, que, difundidos, acabam perturbando
u sociedade e a comunidade. Gilson reconhece6 que o nominalismo, hoje mais
vivo do que nunca, põe em evidência a ambigüidade da noção de palavras, e os
lingüistas mais autorizados admitem a face dupla das palavras.
Devemos, portanto, nos precaver, se não quisermos tombar nos alçapões
da maior confusão verbal, dialética, sofística, usando as palavras em sentido
outro que não o próprio. Para Gilson,7 devemos nos acostumar com a radical
contingência entre linguagem e pensamento. N o mundo m oderno temos assis
tido, e dela sido vítimas, a essa contingência, porém, mais ainda, da intencional —
ou não — deformação do sentido das palavras, e do m edo que o poder infunde —
medo ao qual nos referimos em outro capítulo — ao uso certo, preciso, evidente
das palavras e do significado do pensamento que elas representam. N ão estamos,
evidentemente, fazendo uma exposição teórica sobre a lingüística e o abuso ou
o mau uso das palavras. Pretendemos, simplesmente, mostrar que, no emprego
du expressão poder moderador, está havendo deplorável, mesquinha, pusilânime
nação para executar esse plano mirabolante, e, construir, a capital em quatro anos.
Praticou todos os atos que um presidente pode ou deve praticar — não poucos não
deveria tê-los o presidente praticado - e ninguém os argüiu de ilegítim os, nem
bateu à porta d o Supremo Tribunal Federal para obter-lhes a revogação. Reconhe
çamos que concorreu para essa admissão de legitimidade um poder neutro — os
poderes neutros são incontestáveis —, o Supremo Tribunal Eleitoral. Proclamado o
candidato, cessam as disputas em to m o das teses de legitimidade ou ilegitimidade,
ao contrário de episódios registrados durante a primeira República, com o fo i o
da eleição de A lfred o Backer para a presidência do Estado do R io de Janeiro,
sucedendo a N ilo Peçanha. “ O governo Hermes da Fonseca encontra o caso flu m i
nense, com o se dizia na gíria política, em seu exato ponto de maturação: duas
assembléias reconheciam dois candidatos com o eleitos futuros governadores do
Estado. Pelos imprecisos e insidiosos termos da Constituição de 1891, caberia ao
Congresso Nacional resolver o assunto, decretando a intervenção. A Assembléia,
fiel ao governador Backer, prevendo a interferência do Governo da União, havia
conseguido o reconhecimento de sua legitimidade por meio de um habeas corpus
do Supremo Tribunal, remédio judiciário que, na época, facilmente se aplicava às
questões políticas. O ministro da Justiça, entretanto, encontrava pretexto para
garantir com tropas federais as repartições públicas da União, o palácio do governo
e a própria Assembléia local. Empossa-se sem maiores atropelos no governo do
Estado o candidato simpático ao governo Federal” .3
C om o se vê, um caso de legitimidade desvalida-se por um ato de força, reves
tido de especiosos aspectos de legalidade. Esse é um exemplo do conflito entre
legitimidade e legalidade, e com o os conceitos são fluidos, impalpáveis, no Brasil,
onde não se lhes atribui maior importância, confofmamo-nos depressa com o fato
consumado, extraindo do fundo de nosso psiquismo o espectro do Jeca-Heredo.
Na primeira República a contestação se articulou menos contra a legitimidade dos
governos, do que contra o predom ínio das oligarquias estaduais, o mandonismo dos
chefes políticos, e o prolongamento histórico do coronelismo, sobretudo nas regiões
mais atrasadas do país, embora elas também se manifestassem no Estado de São
Paulo, a essa altura Já colocado na linha da industrialização e do primeiro arranco
do desenvolvimento. O coronelismo constituiu uma espécie de sistema legitimado
de fato, no Brasil, com o veremos adiante. Estudou-o m uito bem, com originalidade
e grande lucidez, V ictor Nunes Leal.4 Seu trabalho, pelas características, extensão
e profundidade, pioneiro na sociologia do mandonismo natural, mostra a autoridade
primitiva, mas carismática, revestindo o poder de quem dava ordens e era obedecido
sem apoio em lei. Embora mudada a configuração do coronelismo, ainda são influen
tes nos municípios do interior, com exceção das cidades maiores, com o por exem
plo Campinas, do Estado de São Paulo, algumas personagens, o comerciante mais
3 José Maria Belo. História da República. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1964,
pp. 266/67.
4 V ic to r Nunes Leal. Coronelismo, enxada e voto. São Paulo, Editora A lfa - Omega, 1975,
passim.
82 O PO D E R M O D E R A D O R
luosos — três dias que abalaram a França e o mundo, por sua influência cultural —
que o poder legítim o sofreu o golpe violento, do qual não' mais se recuperou.
O auge da crise se situou na deposição de Carlos X e no advento de Luis Felipe,
quando a tese da legalidade se im põe à da legitimidade, nos termos históricos e
tradicionais em que esta última sempre fora tomada. Os dois conceitos daí por
diante andam relativamente desacompanhados.
Observa muito bem a reversão de conceitos o autor Paulo Bonavides.11
O racionalismo positivista, em pírico e relativista, operou transposição dos termos,
assentando a legitimidade na legalidade, não o contrário, com o até então. Golpeada,
u legitimidade não mais se refaria, e as instituições jus-políticas bracejariam crises
nem term o até aos nossos dias, quando as sofremos, sem se darem conta os diri
gentes, guias, líderes, chefes dos povos, que fo i essa a baliza primeira da desestabili-
zuçffo do poder na idade moderna. Não os advertem os técnicos, o s teóricos e
doutrin adores políticos. 0 conceito de legitimidade fo i, ao parecer, definitivamente
Ncpultado com o inatual. Os regimes se sucedem legalmente, não, porém, legitim a
mente, salvo nas monarquias, na república americana, por força da tradição e do
curlsma constitucional, e na Suíça, também uma criação tradicional. “ Não será,
portanto, permitido raciocinar desta maneira: o que é contra a lei é juridicamente
nulo; ora, o regime tal, emanado da violência, é contra o direito, lo g o é juridica
mente nulo. É que o novo regime não tira seu valor de suas origens nem de seus
precedentes, mas do fato que reveste valor ju rídico desde o m om ento em que o
novo regime assegura o fim social. Um regime ilegítim o em sua fonte torna-se,
portanto, legítim o aos olhos da nação, uma vez que lhe dispense a ordem jurídica
pnru a qual ela tende” .12 É a falsa identificação entre legitimidade e legalidade.
"O governo legítim o tinha com o dever primeiro o de se manter, porquanto essa
é ii prim eira condição de ordem ” . “ Deposto ele perde a sua legitimidade aos olhos
do povo, se a sua restauração deve ser feita à custa da ordem ” . É o pleno dom ínio
do direito positivo,13 causa dos imensos males, de que sofre a civilização contem
porânea. Arruinada a legitimidade, arruina-se, por via de conseqüência, a autori
dade. Não há mais poder reconhecidamente legítim o, e, introduzida a controvérsia
no seio do direito, a autoridade pode ser, com o vem sendo, no mundo inteiro,
contestada, inclusive nos países com o a Espanha,14 onde, graças ao rei, à monar
quia e ao seu respeito pela liberdade, abriu-se a nação aos jogos da democracia.
Krcusada, porém, a noção de principado,15 dificilm ente será recomposta a autori-
ilndo fragmentada ou admitida com relutância e revolta. É o fenôm eno do mundo
moderno, e o que se nos antecipa em futuro próxim o, quando as novas gerações,
educadas — ou não educadas — no desrespeito à autoridade legítim a e à estabili
16 Taparelli D ’ Azeglio. Essai Théorique de Droit Naturel. Paris, Casterman, 1857, 4 volumes,
I, n9 852 (p. 323), tradução francesa.
17
Tristão de Ath ayd e (Alceu Am oroso Lim a). Introdução ao Direito Moderno. R io, Edição
do Centro D. Vital, 1933, passim; e Miguel Reale. Fundamentos do Direito. São Paulo,
Revista dos Tribunais, 1940, passim.
18 Émile Boutroux. La philosophie de Kant. Paris, Vrin, 1968, pp. 301-02.
H6 O PO D E R M O D E R A D O R
ilos quais seu idealismo quis realizar a igualdade e a liberdade real do homem,
enquanto cidadão, e dos indivíduos, enquanto membros componentes de um
mun do unificado juridicamente ” .19
A rigor já não se sabe o que é o poder legítim o. Se, de um lado, legítim o é
o poder naturalmente aceito, por outro lado, todas as tiranias se legitimam. Segun
do Maurice Duverger, a legitimidade é uma noção relativa e contingente.20 Mas
nflo concordamos com essa tese, pois essa noção veio a ser relativa e contingente
mi “ idade da revolução” . F oi a subversão de todos os valores do espírito, d o direito,
do conhecimento, a partir do século X IX , que a tornaram relativa e contingente,
lislá cheia de lutas pelo poder a História do “ bicho da terra tão pequeno” . Mas
nlé se escancarar para a civilização o fervedouro da “ idade da revolução” , não se
pusera em dúvida a legitimidade do direito de governar. Inúmeros governos
Ibrum derrubados; o golpe de Estado fo i executado vezes sem conta; dinastias
foram substituídas pela morte violenta. Mas nunca se articularam dúvidas à legiti
midade do poder. Fizeram-no pela vez primeira os franceses no epílogo das “ três
gloriosas” , e, desde então, os governos são argüidos de legítim os e ilegítim os, po
dendo ser classificados em duas chaves: legitimidade institucional e legitimidade
consentida. Veremos em outro capítulo em que consistem uma e outra. Se anali-
Niirrnos os governos de nosso tem po, seriam poucos os legítim os segundo o conceito
mitigo, mas todos são legitimados. Tanto é legítim o a chefia de Estado de H iroito,
Imperador do Japão, herdeiro milenar de uma Casa reinante, com o a de Idi Am in
Dada.21 Um e outro exercem o poder, o imperador com o um sím bolo, e o presi
dente com o um ditador. Um é historicamente legítim o; é legítim o de direito
natural; outro é legitim ado; recebeu a sua legitimação d o fato, o golpe de Estado,
e tia aceitação tácita do povo, em suma do direito positivo, essa moderna forma
de dominação dos fortes contra os fracos, dos grupos eficientemente organizados,
como o Partido Comunista da União Soviética sobre uma federação de nações de
origens diversas, unidas sob o mesmo governo pelo m edo, pela opressão, pelo
rigor na exigência à subordinação de seus dogmas. Há, portanto, uma corrente
Irudlcionalista e uma positiva no definirem a legitimidade e o poder legítim o: a
corrente fundada na trasladação dinástica de um direito, expressa nos artigos
11 (i, 117 e 118 da Constituição de 1824:
Art. 116 — O sr. D. Pedro I, por unânime aclamação dos povos, atual
Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo, imperará sempre no
Brasil.
Art. 117 — Sua descendência legítim a sucederá ao trono, segundo a ordem
regular de primogenitura e representação, preferindo sempre a linha
<g
Arturo Enrique Sampay. La crisis del Estado de Derecho Liberal - Burguês. Buenos Aires,
lesada, 1942, p. 152.
Miiurice Duverger. Droit Constitutionel et Institutions Politiques. Paris, PU F, 1956, p. 39.
11 Keforencia no início do segundo semestre de 1977.
Q U E É PO D E R LE G ÍT IM O 87
22
Charles Maurras. Enquete sur la monarchie. Paris, N ouvelle Librairie Nationale, 1909, passim.
13 Id., ib.
24 Id., ib.
25 r +■
John NeviUe Figgis. El derecho divino de los Reyes. M exico, Fondo de Cultura Economica,
1942, passim, tradução espanhola.
HH O PO D E R M O D E R A D O R
o que deduzimos é ter o autor optado pelo carisma, em lugar da História. A cei
tando as suas reflexões, toda a autoridade é carismática, seja a da rainha (re i) da
Inglaterra, seja a do presidente dos Estados Unidos. D iz Max W eber:30 “ Se a
legitimidade do senhor não se pode comprovar segundo normas unívocas de um
carisma herdado, necessita legitimar a sua posição mediante outro poder carismá
tico. E este é somente o poder hierocrático” . Acrescenta o autor que essa legiti
midade se aplica ao senhor que representa uma encarnação divina, e, portanto,
que possua o mais elevado carisma pessoal. De acordo. A herança, ou seja, a
tradição, com o são os casos da rainha da Inglaterra e do Mikado, e fo i o caso do
Brasil — uma Casa real proclama a nossa independência e, naturalmente, se investe
no poder supremo da nação, com o aplauso de todos os súditos —, identifica e
consagra a legitimidade.
Ninguém discute o direito dos reis. Podem se manifestar contra o sistema os
descontentes, que os há, os republicanos, que existem, mas não se discute o seu
legítim o direito. Juan Carlos I de Bourbon, neto de A fonso X III, fo i elevado ao
trono com a morte de Francisco Franco, caudilho da Espanha. O seu direito ao
trono fo i contestado por seu pai, apenas por estar vivo ele, herdeiro legítim o do
trono. Abdicando, porém, meses mais tarde, o rei de Espanha só tem contestadores
ideológicos nos republicanos espanhóis, que embora em número reduzido são
ativos e ativistas. O carisma prevalece, na linha do pensamento de Weber, em nações
com o a China. O antigo Im pério do M eio necessita de um semideus para não
tombar em anarquia. T o d o o cerimonial, o cunho religioso da chefia, a distância
estabelecida entre o imperador e os súditos constituem o carisma de que carece
a sócio-psicologia chinesa para se sustentar e deter sob uma autoridade as centenas
de milhões de chineses que vêem sempre o imperador — ou o chefe de Estado —
com o o “ filho do Céu” . Mao-Tsé-Tung cercou-se de halo carismático, que ostenta
ram sempre os imperadores. D a í ter sido um antichinês, um alienado ao estran
geiro o fundador da República da China, Sun Y a Tsen. Form ado nos Estados
Unidos, sob a influência dos costumes americanos, da filosofia pragmática e do
racionalismo protestante; quando voltou para a China, com o revolucionário, tinha
o físico chinês, mas já era um ocidental, e, mais ainda, um ocidental reformado.
Urdindo a conspiração da qual resultou a proclamação da República, na realidade
atirou a China no fervedouro revolucionário, que seria dominado, quatro décadas
depois, pelo imperador carismático, Mao-Tsé-Tung. Restaurado o carisma dos antigos
imperadores, embora pela via revolucionária, Mao-Tsé-Tung governou com o senhor
absoluto, na Cidade Proibida, exercendo o poder •exatamente com o o fizeram,
embora sem a pompa do passado rem oto, os imperadores celestes. Não fazemos
prognósticos nem julgamento sobre a China. É outro o nosso objetivo; expom os o
que é poder legítim o e com o se legitima. Nas repúblicas racionalistas do Ocidente, o
poder se legitima pelo carisma e pelo juramento. É clássica a imagem do presidente
dos Estados Unidos, assumindo a presidência, com a mão sobre a Bíblia. As
sociedades humanas são diferentes das sociedades instintivas, ainda que maravi-
lliosumente bem organizadas, por exem plo a das formigas e das abelhas. Com o
ttflb dotadas de inteligência, ainda que a usem, não raro, tão mal, precisam assentar
N obre princípios, leis, tradições, memória, respeito ao passado, instituições,
hlorarquias, sem os quais as nações perecem, sem os quais acabam perecendo
liimbém as pessoas, abismadas na abulia, no destino vazio de sentido e até na
iiiiddude das mesmas.
O poder legítim o deve se revestir, portanto, do aparato moral, histórico e do
consentimento. Tem sido extensamente tratado o tema, menos porque os povos os
NUHCitem, do que por estar sendo o mundo, inclusive as nações mais solidamente
liem governadas, varrido por um furioso vento de rebeldia, de amoralidade — de
Indiferença aos cânones morais, muito pior do que a imoralidade que consiste na
Inlrução desses cânones mas reconhecendo-os —, um furioso vento de contestação
Ah instituições estáveis. Formas terríveis e monstruosas dessa anomalia de nosso
tempo, que desencadeou a anomia, a repressão, são o terrorismo, e o golpe
de Kstado, cuja expressão máxima se caracteriza pela guerra revolucionária. Quan
do, pois, os Estados Unidos comemoram o seu segundo centenário sem registrar
ii sua História um só golpe de Estado, é, entre as cento e cincoenta e uma nações31,
um fenôm eno digno de comemoração e dos maiores louvores. A guerra revolucio
nária se constituiu em nossos dias na maior ameaça à legitimidade do poder, à
cutubilidade das instituições, à normalidade que lhes esperamos para viver em paz.
Veremos em outro capítulo o papel que a guerra revolucionária está desempe
nhando na intranqüilidade do mundo. Por mais institucionalizado que esteja o
poder, permanente ameaça o intimida, a guerra revolucionária que o desestabiliza.
Devemos, portanto, nos concentrar no princípio da legitimidade, nos fundamentos
ilo poder legítim o. Segundo Georges Burdeau32 “ não há duas explicações conce
bíveis da autoridade: ou ela procede de um hom em que im põe sua vontade a uma
multidão passiva, ou ela tem sua fonte no assentimento comum” . “ . . . a nossa
mzão só pode tolerar a segunda hipótese” , embora a primeira ofereça neste século
XX maior número de exemplos do que a segunda. Pululam os ditadores, em nome
du salvação pública, do interesse da nação, dos imperativos da raça, da libertação
do p o v o , e de outras estereotipias em veloz circulação pelo mundo, sobretudo pelo
Terceiro Mundo. O poder é legítim o quando o garante o assentimento da nação,
mas, sobretudo, quando é justo, não obstante seja d ificílim o convencer o povo
(]ue uma força coercitiva é sempre justa. É legítim o o poder que garante a plena
expansão das liberdades humanas e os direitos da pessoa, mas é, também, legítim o
o poder que se arma, transitoriamente, de instrumentos excepcionais para sustentar
ii segurança nacional. O relativismo p olítico, com o se vê, rastreia o conceito de
poder legítim o, sobretudo na era da História secularizada e do ateísmo triunfante
nobre os destroços da fé.
Os antigos revestiam de sacralidade o poder, a fim de que a sua integridade
iirto se esboroasse. O poder, religioso e o poder temporal se congregavam na mesma
33 James George Frazer. The Golden Rough. Londres, Macmillan, 1974, edição abreviada,
p. 13 e ss; e La rama dorada, M éxico, F on do de Cultura Económica, 1944, p. 18 e ss, edição
abreviada.
34 Fustel de Coulange. La Cité Antique. Paris, Hachette, s/d (1 9 4 8 ), p. 203.
35 Escrito no segundo semestre de 1977.
36 Jena Dabin. La philosophie de Vordere furidique positif. Paris, Recueil Sirey, 1929, p. 673.
n O PO D E R M O D E R A D O R
14-BIs ao A p oio, está em crise, cujo enunciado já é um lugar comum, não porém
econômica ou social, mas de pensamento diretivo e de legitimidade de poder.
Se a crise da ideologia é evidente,37 a crise da legitimidade a supera.
Tem os uma crise de poder. Se as nações do norte da Europa, a Escandinávia
o a Inglaterra a evitaram; se os Estados Unidos não conhecem, mesmo, o problema;
se os comunistas a submeteram à ditadura férrea, criando uma espécie sacro-bizan-
tlna de respeito, o medo, as nações latinas debatem-se nas suas tenazes, e nelas
vão se debater, ainda, as nações africanas, tanto as recém-emergidas do colonia
lismo europeu, com o velhas nações, a exem plo da Etiópia, que tom bou na anarquia,
na repressão violenta das manifestações, sem ter melhorado, mas, ao contrário,
piorado a sorte de seu povo, com a deposição do imperador Hailé Salassié. O
poder ilegítim o — e, em nosso tem po, fácil é indigitar-lhe a ilegitimidade, mas
difícil para ela obter adesão — provoca a reação, que consoante o ensinam velhos
tratadistas católicos, é de direito natural.38 Tem os, portanto, uma crise de poder e
uma crise de legitimidade. Veremos, nos capítulos subseqüentes, em que consiste
essa crise.
O governo deve ser legítim o e a esse govem o devem ser tributados respeito
o obediência, embora, com o reconhece Santo Tomás, ao tirano se deve recusá-los.
ilri, porém, duas espécies de legitimidade, a institucional e a consentida. De uma
e de outra dependem a paz e a prosperidade dos povos. Com o veremos em capí
tulo subseqüente, os conceitos de legitimidade estão subvertidos; distorceu-os
a imensa revolução mundializada, que não só deform ou todos os esquemas
políticos mentais, com o os princípios nos quais eles devem assentar. N ão concor
damos sobre conceitos, que, no entanto, deveriam ser elementares. O conceito
de legitimidade é um deles. Dizia Chesterton que, em casos de enfermidades
físicas, falamos, primeiro, da enfermidade, pois apesar da maneira com o se
produziu o transtorno, não há dúvidas sobre qual deve ser o estado normal, ao
pusso que nas ciências sociais, de m odo algum se contentam os homens com a
ulma humana normal; possuem à venda várias espécies de almas de fantasia.2
Nflo sabemos, portanto, se vamos nos entender sobre os conceitos de legitimidade
Institucional e legitimidade consentida. Se o primeiro fo i aceito durante milênios —
o a palavra de Cristo o comprova vindo a perder credibilidade no fim do século
X V III, o segundo está sujeito a golpes, com o os que lhe são aplicados, sobretudo
neste convulso século X X , pelas insurreições de impulso decisivamente ideológico.
Vem de longe a disputa, sem dúvida, mas por não querer o inquieto ser humano
submeter-se às leis da natureza.
Na A n tíg o n e ,3 Ismene pergunta a Antígone se ela vai violar o édito proibi-
tório de Creon. Este era o govem o legítim o. Suas leis deveriam ser respeitadas.
É, pois, eterna a preocupação dos povos com os governos legítimos. N ão só lhes
repugna obedecer a governos ilegítim os, com o, também, eles têm necessidade
de poder emanado legitimamente de sua fonte autêntica, que, no entanto, é
controvertida. N o Brasil, o govem o de Getúlio Vargas, de 10 de novem bro de
1937 á 29 de outubro de 1945, fo i juridicamente ilegítim o, embora ninguém
argúa de ilegais as leis então baixadas. Todas produziram efeito, uma das quais —
pura citar apenas esta — a de n9 5.423 de 19 de maio de 1943, que determinou
a vigência da Consolidação das Leis do Trabalho, seis meses mais tarde, assegu
rando a todos os empregados e trabalhadores do Brasil direitos que os equipararam
aos trabalhadores e empregados dos países mais bem dotados de legislação social,
no Ocidente. Mas Vargas outorgou uma Constituição; não convocou a nação para
uprová-la ou reprová-la em plebiscito, consoante dispunha o seu artigo 187;
governou por m eio de decretos-leis, e só veio a encontrar oposição decisiva a seu
govem o no oitavo ano, quando a vitória das armas aliadas na segunda grande
guerra sepultara o fascismo e dera impetuosa vitalidade à concepção democrática
de sufrágio e consulta, não obstante a União Soviética, também vitoriosa, tivesse
em seu governo o tirano Stalin.
9 A n tôn io Sardinha. Processo dum rei. P orto, Livraria Civilização, 1937, passim.
10 ld. ib., p. 43 e ss.
LE G IT IM ID A D E IN S T IT U C IO N A L 97
14 I, II, q. 90, a 1.
15 T od o o pensamento de Santo Tomas é pela ordem. Proprium rationis cognoscere ordinem.
16 I, II, q. 96, 5.
17
Escrito no segundo semestre de 1977.
IK Georges Rénard. Id. ib., p. 116.
LE G IT IM ID A D E IN S T IT U C IO N A L 99
nos referir às classes médias superiores, de alto padrão - mais con forto do que
tinha Felipe II, de Espanha, em cujo im pério o sol não se punha. Se ainda se joeiram
injustiças, e não poucas, no funcionamento das instituições de política social e
na política de Estado, é inegável que podemos chegar se não a uma ordem perfeita,
inacessível no plano da Cidade Terrestre, ao menos a uma ordem relativamente
perfeita, quando se integrarem todas as classes em comunhão de interesses, cujo
vértice supremo seja a crença no Deus Trino e Uno e o alvo intermediário o bem
comum, o qual as sociedades humanas obtêm da cooperação de seus membros,
para a consumação dos fins existenciais .23 Para a consecução desse objetivo, isto
sim, devemos ficar adstritos a princípios, e estes não têm idade.
Santo Agostinho defendia a ordem natural subordinada à ordem eterna ;24
é esta a reivindicação que fazemos, apelando para o reconhecimento da doutrina
da instituição com o suporte da legitimidade do poder, e, por extensão, da legiti
midade de todas as iniciativas humanas. N o D e legibus ,25 Cícero é taxativo: a lei
não é produto do desejo dos povos nem do engenho humano, mas provém do
eterno, que deve reger o mundo — “ mundum regeret” — ao império da sabedoria.
Bem sabemos que estas considerações se contestam em nossos dias, com o princípio
do chefe, com o arbítrio dos governos distanciados da lei eterna e do direito
natural. N em por isso, no entanto, vamos abandonar a fonte cristalina onde nos
abeberamos, onde deveria o mundo contemporâneo se dessedentar.26 São neces
sárias as instituições que o ser humano criou para o seu governo e para a ordem
da sociedade, não devendo elas apartarem-se do princípio institucional, esse, que
vimos defendendo com o imprescindível à paz, em todas as suas acepções. “ Somente
a instituição, durável ao infinito, faz permanecer o melhor de nós. Pela instituição
o hom em se eterniza: seu ato bom continua, se consolida em hábitos que se
renovam sem cessar nos novos seres que abrem os olhos para o mundo. Um belo
movimento se repete, se propaga e renasce, assim infinitamente. Se queremos
evitar um individualismo ( . . . ) não queiramos costumes sem instituições ” .27
Por instituições devemos entender, portanto, esses princípios modeladores
de seres humanos, as realidades comuns, estabelecidas pelo tem po e longa duração.
São as famílias, os grupos, os corpos intermediários, as administrações e o Estado,
sujeitos a uma lei não escrita com o princípios, e a leis que desse princípio decorrem,
às quais as nações devem sua presença no tem po e no espaço. Nessa linha, a
instituição é mais do que um contrato, situando-se acima do contrato, pois este
não a pode derrogar no tod o ou nas partes. Veremos em outro capítulo no que
consiste a legitimidade consentida, e mostraremos que, enquanto contratual,
03
J. Messner. Social Ethics. Londres, Herder Books, 1949, p. 118, tradução inglesa.
' Contra Faustum, M. L., X X II, 22.
25 D e Legibus, L. II, C. IV , par-8.
26 Alceu Am oroso Lim a (Tristão de Ath ayd e). Introdução ao Direito Moderno. R io, Centro
D. Vital, 1933, passim.
27 Charles Maurras. L ’avenir de l ’intelligence. Paris, Nouvelle Librairie Nationale, 1909, p. 16.
102 O PODER M ODERADOR
33 François Dreyfus. Les temps des révolutions. Paris, Larousse, 1938, p. 15.
34 D ireito natural do naturalismo do qual ainda falaremos.
35 Paul Hazard. La crise de la conscience européenne. Paris, Boivin, s/d (1 9 3 9 ), II,
p. 137.
36 George H. Sabine. Historia de la teoria política. M éxico, F on do de Cultura Política, 1945,
p. 378; John L ock. Segundo tratado sobre o governo. São Paulo, A b ril Editora, 1973,
p. 83 e ss.
104 O PODER M ODERADOR
37 R ob ert Film er. Patriarca o el poder natural de los reyes. Madrid, Instituto de Estúdios
P olíticos, 1966, tradução espanhola, edição bilíngüe, com o Primeiro Livro sobre o governo
de Locke.
38 George Sabine. Id. ib., p. 490.
39 Id., ib.
40 Robert-Gérard Schwartzenberg. L ’État-spetacle. Paris, Flammarion, 1977, passim.
41 José Vasconcelos. Breve História de México. M éxico, 1957, p. 235.
L E G IT IM ID A D E IN S T IT U C IO N A L 105
6 Id., ib.
1 Id., ib.
8 Ed. da Columbia University Press, N ova Y o rk , 1975.
9 Id., ib.
10 Harold J. Laski. Op. cit., p. 655.
110 O PO D E R M O D E R A D O R
* * *
O cesarismo veio a ser, para sempre, a form a que reveste a opressão, sobre
tudo nos regimes contratuais, com o os que foram surgindo depois da revolução
americana, e, mais velozm ente, depois da revolução francesa, quando, efetivamente,
se inaugurou a era da instabilidade dos governos, calcados na doutrina de Rousseau
e de seu “ feliz achado” , o contrato social. A té à “ idade da revolução” , ainda não
se havia imposto o contratualismo. Abatido o cesarismo, foi em Roma instituída
a monarquia com Augusto, durante a qual o Im pério atingiu o apogeu da glória.
Não se institucionalizando, porém, na linha de uma autêntica dinastia, caiu em
decadência, e acabou submergida pela onda furiosa dos bárbaros que desabaram
do norte. Coube à Idade Média, católica, recolher os fragmentos do Im pério, e
constituir os reinos, segundo a índole, as afinidades, a língua, os usos, os costumes,
as tradições históricas dos povos. Trabalho paciente de conversão e de instituciona
lização, fundou-se ele, inteiro, no princípio do consentimento .17 A obra monu-
14 Léon Homo. Nouvette Histoire Romaine. Paris, Arthèm e Fayard, 1941, p. 280 e ss.
15 Montesquieu. Grandeza e decadência dos romanos. R io, Livraria Francisco Alves, 1967,
p. 117 e ss, tradução portuguesa.
16 Julio César, A t o I, Cena II e id., ib.
17 George H. Sabine. Op. cit., p. 204 e ss.
112 O PO D E R M O D E R A D O R
18 Op. cit.
19 George H. Sabine. Op. cit., p. 205.
20 “ Policráticas” , in Ewart Lewis. Medieval Political Ideas. N ova York , A lfre d A. K nopf,
1954, passim.
21 “ De Legibus et Consuetudinibus Angliae” . In Ewart Lewis. Op. cit., passim.
22 “ De regimine principum” . / « Ewart Lewis. Op. cit., passim.
23 “ Determinatio Compendiosa de Jurisdictione Im perii” . In Ewart Lewis. Op. cit., passim.
24 “ Defensor Pacis” . In Ewart Lewis. Op. cit., passim.
A LE G IT IM ID A D E C O N T R A T U A L 113
25
“ Dialogus” . In Ewart Lewis. Op. cit., passim.
26 George H. Sabine. Op. cit., p. 297.
27 M. B. Institutes du Droit Naturel. Paris, A . Durant et Pédope, 1876.
28 R aym ond G. Gettel. História das Idéias Políticas. R io, Alba, 1941, p. 223.
29 Id„ ib., p. 234.
114 O PO D E R M O D E R A D O R
com organização adiantada do poder com o a Azteca, a Maia e a Inca, e outras com
o reconhecimento da chefia, natural em qualquer agrupamento humano, sem
diferente subordinação que a instintiva ou a da estrutura primitiva tribal. Dei
xando-se de lado as fantasias de .Rousseau sobre o “ bom selvagem” , que nos inte
ressam apenas relativamente, temos o Contrato Social, que iria provocar uma
revolução no mundo, esta, no curso da qual ainda nos encontramos. Chama-o
Maritain o “ pai do mundo m oderno ” ,43 e, de fato, as suas idéias continuam vivas;
a grande imprensa repete quase todos os dias a expressão contrato social, com o se
tivesse ela realidade palpável e fosse possível o distrato social. Compreendendo o
contrato social no sentido da nota de Lourival Gomes Machado ,44 segundo o
qual cada um de nós, para viver em sociedade, dá-se completamente, isto é, submete
aos padrões coletivos todos os impulsos naturais da criatura individual, porém
sendo essa submissão igual para todos a ninguém interessa agravá-la. O corpo
moral e coletivo do contrato social45 dá à sociedade o seu eu comum. “ A con
cepção de lei, em Rousseau, aproxima-se do moderno conceito das constituições
ou leis fundamentais de um Estado, a cujas normas todos os poderes devem ajustar
atividades ” .46 “ Rousseau projetou em sua teoria a própria personalidade e a sua
origem, a Suíça, Genebra. Condicionado pelo m eio, sofrendo as suas interações,
Rousseau elaborou uma ideologia, e com ela acabou influindo nos destinos do
mundo ” .47
Vivem os, por isso, sob alguns signos. Um deles é o de Rousseau, o outro é o
de Hegel. A teoria da soberania do povo é de Rousseau. Estamos vendo onde ela
abica; já na desordem, já na tirania. A Declaração dos Direitos do Homem, elabo
rada por uma comissão da Constituinte, durante a revolução francesa, e votada
em 26 de agosto de 1789, portanto nos primeiros dias da grande convulsão, se
inspirou em Rousseau. Sua teoria circulava nos meios intelectuais franceses e
fizera discípulos. D aí podermos considerá-lo o pai da revolução francesa, e, por
extensão, do seu prolongamento, da revolução no mundo. Não vemos, em nossos
dias, no Brasil, sacerdotes e leigos, democratas e comunistas clamarem pelos
direitos humanos, que são obra da revolução, portanto do mal com o princípio?
Esse precursor do romantismo e do materialismo jurídico, do criticismo e, final
mente, do racionalismo hegeliano, é também o pai da legitimidade contratual.
É uma incoerência defender-se a idéia de legitimidade contratual, mas em mundo
altamente perturbado com o o nosso, fraturado no depósito das suas verdades niais
caras e da própria Verdade, não nos devemos sonegar a essa realidade, a dos gover
nos legitimados pelo contrato e substituídos pelo distrato. Não se nega que
Rousseau haja se preocupado com o destino do ser humano sobre a terra. Mas o
filó so fo genebrino fora melhor não ter nascido. O mundo seria diferente. Como,
porém , não se argumenta em História com os condicionais — temos dito e repetido
tantas vezes — devemos mostrar a nocividade de sua teoria e de suas idéias, embora
tenhamos de aceitar a legitimidade contratual, que é, praticamente, a regra, no
mundo contemporâneo.
O vento da independência soprou, com o dissemos antes, da revolução ameri
cana, mas não nos inspiramos nas idéias que lhe deram vida; não fo i o b ill de direi
tos da velha Inglaterra medieval adaptado às suas novas convicções pelos puritanos
de Cromwell. Concordamos a este respeito com Renan, quando o sábio do College
de France diz: “ Que colônias habituadas a se governar de maneira independente
rompam o laço que as une à mãe pátria, que, rom pido este laço, elas ignorem a
realeza e procurem a sua segurança por um pacto federativo, nada há de mais
natural” .48 Não é o caso das nações que se formaram na América, nações que
adotaram o regime presidencial americano — com exceção do Brasil, que só o
fe z em 15 de novembro de 1889 — sem, contudo, terem o passado das colônias
que vieram a constituir os Estados Unidos. Cometeram todas as nações america
nas um grandíssimo erro, pelo qual pagam até hoje, e nós, que já éramos gover
nados por um regime originariamente integrado em nossas tradições ancestrais,
rompemos a legitimidade consentida e perfilhamos a legitimidade contratual.
Basta a análise histórica da Am érica Latina,49 para se chegar à conclusão que não
temos afinidade com os Estados Unidos. O decalque nos fo i taxativamente fatal.
Do M éxico à Argentina bracejamos crises sem term o, mais ou menos esmaniados
à procura de “ m odelo p o lític o ” , simplesmente porque vivemos da ilusão — de
resto alimentada pelos “ scholars” americanos — de um mimetismo sem funda
mento nem justificativa.
Nenhuma nação americana teve nem terá as instituições políticas ameri
canas. O gênio de Rui Barbosa, autor da nossa primeira Constituição republicana,
não lhe bastou para fazê-lo ver a diferença de origem entre os dois povos: que os
Estados Unidos continuaram a Inglaterra, adotando a monarquia eletiva, um suce
dâneo, com o nome de presidente, ao mesmo tem po que substituíram — já o disse
mos antes — o carisma necessário do rei pelos carismas da Declaração da Indepen
dência e da Constituição, esta a primeira Constituição escrita no mundo, e ponto de
partida do constitucionalismo moderno. Do M éxico à Argentina as crises p o lí
ticas são intermitentes, e, ao parecer, não terão fim , pois a legitimidade contratual
oferece às forças da subversão, à guerra revolucionária, ao princípio do mal o
flanco desguarnecido da rescisão do contrato. Falta a essa legitimidade a chancela
da História, da tradição, a institucionalidade, que nos Estados Unidos ilude,
porque lá está ela presente no seu sistema, não obstante os defeitos que a maculam,
os vícios que a enodoam, defeitos e vícios que seria longo arrolar. Reconhecemos
48 Ernest Renan. La reforme intelectuelle et morale. Paris, M ichel Lévy Frères, 1975, p. 260.
49 C f. João de Scantimburgo. O Destino da América Latina, São Paulo, Companhia Editora
Nacional, 1966, passim.
A LE G IT IM ID A D E C O N T R A T U A L 119
que as “ idéias feitas” têm força; que as convicções não se deixam abater com
facilidade; ao contrário, o cimento de sua resistência dificilmente cede. Mas diremos
que com a legitimidade contratual não alcançaremos nunca a instância da paz na
Cidade. O contrato será sempre ameaçado e a sua legitimidade, por via de conse
qüência, contestada. Para fazer a revisão dos conceitos é tarde? É cedo? Em História
nunca é cedo, nem tarde, pois os regimes não são eternos. Sem adotarmos a teoria
pendular da História — e não a adotamos — diremos que os regimes se sucedem,
mas somente depois de longa, bem longa maturação dos erros e das verdades.
A legitimidade contratual vai ter, ainda, vida longa.
legitimidade e revolução
nos salões da aristocracia, nos palácios reais, nas casas burguesas e nos castelos
das províncias francesas — pois a revolução fo i européia, suíço-francesa, protes
tante, inglesa, mas sobretudo francesa, e, finalmente alemã —, o princípio da legiti
midade do poder começou a ser roído, e desabaria em 1776, com a fundação dos
Estados Unidos, e em 1789, com a revolução francesa. Quando, pois, na noite
de 14 paia 15 de julho de 1789, o duque de La Rochefoucauld-Liancourt acordou
Luis X V I, para lhe anunciar a tomada da Bastilha, e o rei lhe perguntou: “ É, por
tanto, uma revolta” , respondendo-lhe: “ Sire, é uma revolução ” ,3 estava rigorosa
mente certo. “ O acontecimento era ainda mais grave. Não somente o poder havia
escapado das mãos do rei, mas ele não caiu nas da Assembléia; estava por terra,
nas mãos do povo desarvorado, da multidão violenta e sobretudo dos agrupa
mentos que o tomavam com o uma arma abandonada na rua” . Triunfava a idéia
revolucionária. D aí por diante seu volume cresceria, até submergir a civilização
inteira sob a sua espessa densidade, com tamanha dimensão, que acabaria por
habituar todos os povos aos seus princípios, estes, nos quais ainda vivemos, e de
cujo dom ínio não nos vamos libertar em futuro próxim o. Jules Monnerot 4 nos
oferece várias acepções da palavra revolução, mas ficamos com esta, a que a define
com o “ uma mudança violenta, à primeira vista radical e completa, do regimè p o lí
tico, expressão de mudanças mais profundas” .
O tema é, com o se vê, com plexo. Introduzindo a desordem na inteligência, a
revolução mina os fundamentos da paz, que não a tem o mundo m oderno, e abre
caminho para o exercício totalitário do poder. Charles Maurras5 liga a revolução
ao romantismo, isto é, à explosão individualista do século X IX , ao dom ínio da
inteligência pela imaginação — que tanto iria influenciar Marx, o protótipo do
revolucionário romântico da inteligência - e lhe atribui os males de que sofre a
civilização. Do individualismo unitário passamos ao individualismo da massa, e
temos o comunismo, esse típ ico produto filo só fico — que nos seja permitido
usar o lugar comum — da exaltação individualista, por paradoxal e absurdo que
ainda pareça. Habituamo-nos com a palavra revolução, e com o não indagamos
em profundidade o sentido amplo de seu conceito, admitimo-la. Mas é nas desor
dens de várias espécies do pensamento revolucionário, há mais de dois séculos,
que vamos encontrar a chave paia a inquietação de nossa época histórica. Os meios
de comunicação e os transportes rápidos ampliaram, pela extensão, a capacidade
humana do diálogo, mas, também, a de fazer o mal. O mundo está inteiro tomado
pela febre revolucionária, e não há quem o possa curar, sobretudo porque as idéias
de alguma eficácia contra essa terrível doença não se aceitam nas universidades, na
imprensa, nos círculos intelectuais, onde se forma, se nutre e se transmite o pensa
m ento contemporâneo. A revolução é, mesmo, uma form a de transformação social,
6 Caio Prado Júnior. A revolução brasileira. São Paulo, Brasiliense, 1966, p. 10.
7 Id „ ib„ p. 209.
8 Id .,ib., pp. 210-11.
124 O PO D E R M O D E R A D O R
desse viveiro o pensamento com o qual nutriu a sua teoria, e o temos explodindo,
do século X I X aos nossos dias, para, ainda, prosseguir no futuro, pois somos inca
pazes de dominar o processo. Como na fábula do aprendiz de feiticeiro, ele escapou
do ser humano, e o mundo poderá se desfazer no silêncio dos espaços siderais,
que espantava Pascal, tendo com o causa um rem oto ato de rebeldia. É preciso
ir buscar nesses confins da História, e sacar-lhe de seus refolhos, a causa da revo
lução e das revoluções. Se estamos imersos em seu curso, se lhe sofremos a pressão
das tenazes, se não temos poder nem capacidade para lhe desviarmos o itinerário,
ao menos façamos-lhe o histórico e a história. “ O ‘fenôm eno’ revolução é sem
precedentes na História moderna. É somente no mundo antigo que aparece simul
taneamente a necessidade de fazer revoluções e o espírito revolucionário ” .10
Jacques Ellul, a quem acabamos de citar, hesita em definir a revolução com o o
fazem os .11 Ficamos, portanto, com os tradicionalistas para os quais a revolução
é um grande, imenso processo de mudança, que se operou contra o poder leg í
timo, na esfera política. Somos de opinião que Littré está certo na sua definição,
embora lhe esquematize o conceito. Se o “ Vocabulaire” de Lalande não traz o
verbete “ révolution” , levando-nos essa omissão voluntária do maior autor do
gênero à conclusão de que não atribuía ele valor filosófico à palavra, nem o incluía
em vocabulário, por antes pertencer ao léxico das ciências sociais, do que ao da
filosofia, entendemos que vem se desenrolando no tem po um processo de sub
versão do pensamento, com rizomas profundos, extensos nos atos de revolta — e
aqui fazemos a revolta associar-se à revolução 12 — contra a ordem suprema do
pensamento, nas doutrinas esposadas e ensinadas da Idade Média ao presente,
contra o Deus Uno e Trino, e todas as hierarquias. Na sua origem a revolução é,
portanto, religiosa; evoluindo, desdobrando-se suas implicações sociais, políticas
e econômicas lhe mudam o rumo, mas não lhe alteram a substância.
Para Georges Burdeau, quando aderimos à revolução, concebemo-la com o a
crença de que a humanidade vive de mudança, as quais correspondem a etapas na
via da perfeição . 13 Essa perfectibilidade não é, entretanto, deste mundo. D aí,
serem utópicas a revolução e as revoluções. Podemos classificar com o revolu
cionários dos tempos modernos todos os teólogos, filósofos, sociólogos que se
apartaram, renegando-a, da fonte da verdade, d a , tradição, com o elem ento de
coesão social e fixadora da legitimidade, que é um conceito válido em religião,
filosofia, sociologia, política, economia, não obstante se prestarem as ciências
práticas, sobretudo as práticas-práticas, com o a econom ia, às mais variadas op i
niões e aos sofismas, não raro absurdos, no seu todo. Não há causas isoladas na
face da terra; umas se implicam em outras, e vão repercutir na eternidade, afe
tando, antes, o destino humano. A revolução na qual estamos imersos, essa espécie
14 Na Crítica da Razão Pura, várias edições. É preciso conhecer toda a filosofia de Kant,
para compreendê-lo.
Is Joseph Maréchal S. J. L e point de départ de la métaphysique. Paris, Desclée De Brouwer,
1949, V , p. 140 ess.
16 L eon el Franca, S. J. Op. cit., p. 100.
17 Jules M onnerot. Sociologie de la révolution. Op., cit., p. 111.
LE G IT IM ID A D E E R E V O L U Ç Ã O 127
18 Joseph De Maistre. Oeuvres Complètes. Paris, Librairie Catholique Emmanuel V itte, 1924,
I, P- 7.
19 A té quando fo i escrito este capítulo: segundo semestre de 1977.
20 N o segundo semestre de 1977.
128 O PO D E R M O D E R A D O R
do nível militar, do nível da guerra aberta onde esse adversário, preso pela con
venção que separa a guerra da paz, tem os meios de se defender e mesmo de vencer.
O mundo não comunista é minado psicologicamente por uma agressão crônica,
enquanto deixa aos comunistas o m onopólio da guerra subversiva” . “ A diferença
dos dois antagonismos, que parece paralisar a defesa em proveito do ataque, assi
nala-se nisto, que os não comunistas, que não se preocupam em fazer reinar uma
doutrina sobre o mundo, e não têm máquina psicológica para explorar os ressen
timentos (mas, ao contrário, os provocam e os deixam crescer), se limitam à defen
siva sobre um terreno que lhes é intelectualmente estrangeiro, mas de onde sua
vitalidade pode ser solapada ” .24
O sempre atual Clausewitz define a guerra com o um duelo em escala mais
vasta. “ Se nós quiséssemos abarcar em uma só concepção os inumeráveis duelos
particulares dos quais ela se com põe, deveríamos pensar em dois lutadores. Cada
qual ensaia, por m eio de sua força física, submeter o outro à sua vontade; seu
desígnio im ediato é o de abater o adversário, a fim de torná-lo incapaz de toda a
resistência. A guerra é, portanto, um estado de violência, destinado a coagir o
adversário a executar a nossa vontade. A violência, para enfrentar a violência, se
arma das invenções das artes e das ciências” .25 A guerra revolucionária ou guerra
subversiva é, portanto, uma guerra, no sentido exato da palavra, embora colocada
no quadro desconvencionalizado do mundo contemporâneo. A guerra é um instru
m ento da política, já dizia Clausewitz ,26 portanto a guerra subversiva é também
política. 0 gênero é um só; variam as espécies. Há guerras nacionais, ou estatais,
em que as ações bélicas obedecem a interesses definidos e materiais, na sua maior
parte, e há guerras políticas, ideológicas, revolucionárias, em que as armas servem
a fins aparentemente mais elevados, quais sejam a busca de um ideal, através de
determinada concepção do mundo. A guerra revolucionária, muito mais terrível
do que a guerra convencional, é uma das formas da revolução, com o processo.
Está em curso, em nosso século, essa revolução. Alimentada, diuturnamente, pelos
arsenais comunistas, sobretudo insinuando-se nos meios de comunicação, vai
essa revolução aluindo regimes, desfigurando-lhes a concepção e, por via de conse
qüência, mergulha o mundo numa confusão tremenda, na qual não se vê uma luz,
para onde possamos caminhar e esquivar-nos de seus envolvimentos malignos.
Para essa revolução, com o para todas as formas que o seu m ovim ento reveste, a
legitimidade se constitui num conceito apriorístico, de fato. A revolução é a legiti
midade e legitima os governos, instaurados por seus chefes. É a própria distorção
do conceito de legitimidade a que assistimos, uma* das causas sinistras da crise
contemporânea e da que se nos antecipa nos anos futuros, pois nenhuma esperança
temos de ainda vir a operar-se a reversão desse fenóm eno. A o contrário, vemo-lo
27 Leon Trotsky. A História da Revolução Russa. R io, Editora Saga, 1967, passim.
28 R aym ond Aron. Plaidoyer pour une Éurope décadente. Op., cit., p. 238.
29 Maquiavel. O Principe. Cap. V I, varias edições, inclusive em português.
LE G IT IM ID A D E E R E V O L U Ç Ã O 131
14 Walter G oetz. “ La época del absolutismo” . In Historia, Universal, Madri, Espasa Calpe, 1872,
p. 3, tradução espanhola.
15 Ubiratan Macedo. “ Empirismo do Pensamento Luso-Brasileiro” . In Revista Brasileira de
Filosofia, São Paulo, V ol. X X III, 4 asc- 92, outubro, novembro e dezembro de 1973.
16 Sá Pereira. Lisboa, s/d I, p. 540.
17 Oliveira Viana. Instituições políticas brasileiras. R io, Livraria José O lym pio Editora, 1949,
I, p. 145 e ss.
140 O PO DER M O D E R A D O R
21 Eduardo Prado. Anulação das Liberdades Políticas. São Paulo, Livraria Civilização, 1897,
passim.
22 Tobias M onteiro. Pesquisas e Depoimentos para a História. R io, Francisco Alves, 1913, p. 54.
O PO D E R M O D E R A D O R E A L E G IT IM ID A D E 143
militar vitorioso, e governou durante três anos. Quando fo i para casa, alforriando
o último negro do Brasil, segundo as suas próprias, dramáticas palavras, substi
tuiu-o o vice-presidente Floriano Peixoto, cuja atuação política desencadeou
a maior onda de paixões que o Brasil havia conhecido até então. Ficou, na época,
famoso o jacobinismo florianista, com manifestações da violência, e reações que
chegaram ao extrem o da luta armada. O primeiro presidente civil, escolhido por
um conciliábulo de gabinete, Prudente de Moraes, recebeu o governo de Cassiano
Nascimento. Floriano P eixoto não se dignou transmitir-lhe o cargo. A crise em
que se debatia a nação era generalizada. N ão fo i pacífica a sua sucessão. Campos
Salles enfrentou fortíssima oposição, e acabou vencendo, por então contar com
São Paulo. Em seu livro, Da Propaganda à Presidência , 23 o presidente prestou
contas de sua carreira e de seus serviços à nação, e um chefe de governo de
“ ortodoxa honestidade” , com o a ele se referiu Rui Barbosa, comprou a imprensa,
amilhou-a, nas próprias palavras de seu curioso neologismo. F oi terrível o governo
Campos Salles. As crises o desejaram de todos os flancos. A o deixar o poder,
recebeu a maior vaia de que se tem notícia neste país. A população do R io de
Janeiro — cidade “ frondeuse” , com o se sabe — saiu às ruas para apupar o presi
dente que voltava para São Paulo, para a sua modesta casa, para a sua rotina
cotidiana. Sucedeu-o o presidente Rodrigues Alves, que realizou o melhor governo
da República, embora tivesse enfrentado, também ele, numerosas crises.24 A té
então, o povo não havia participado da escolha do candidato.
Continuou a rotação do poder. A Rodrigues Alves sucedeu A fon so Pena,
antigo ministro do Im pério, grande figura de p o lítico e parlamentar, mineiro
da melhor gente das Gerais. Morreu logo no in ício do segundo ano de seu governo,
e o sucedeu o vice-presidente N ilo Peçanha, típ ico produto da incubadeira p o lí
tica da primeira República. Sua sucessão fo i tempestuosa. Basta lembrar a
Campanha Civilista e ler os discursos de Rui Barbosa. Ninguém fo i mais veem ente
mente atacado neste país do que o candidato Hermes da Fonseca. O verbo de
fogo de Rui Barbosa arrasa-o em conferências magistrais, das quais nos ficaram
algumas das mais belas páginas de antologia da língua portuguesa. O pobre
marechal, apoiado pelo caudilho Pinheiro Machado, que tinha a política
brasileira nas mãos, fo i eleito e se empossou. N o governo “ não fo i m elhor nem
pior do que qualquer ou tro ” .25 N ão teve um dia de descanso. A oposição que
lhe moveram os seus adversários fo i, literalmente, ferocíssima. Wenceslau Braz,
que o sucedeu, assumiu a presidência quando a Europa já estava em guerra fazia
três meses e meio. As atenções da opinião pública voltavam-se, todas elas, para
o teatro das operações e para o sucesso das batalhas. F o i o que o salvou. Wenceslau
foi, apenas, um presidente m edíocre. As oligarquias estaduais escolheram para
23 Campos Salles. Da propaganda à presidência. Sem indicação de editora, São Paulo, 1908.
24 Afonso Arinos de M elo Franco. Rodrigues Alves. R io, Livraria José O lym p io Editora,
1973, passim.
25 José Maria dos Santos. A política geral do Brasil. São Paulo, J. Magalhães, 1930, p. 435.
144 O PO D E R M O D E R A D O R
sucedê-lo Rodrigues Alves. E leito, não tom ou posse por estar enferm o. Assumiu
o govem o o vice-presidente D elfim Moreira.
Em 1919 morre Rodrigues Alves, e, de acordo com a Constituição de 1891,
deveria ser eleito outro presidente. O vice não poderia assumir. Era um contra-senso,
mas era a lei. Os oligarcas da política brasileira foram buscar com o candidato
Epitácio Pessoa para seu sucessor. O nom e de Rui Barbosa fo i lançado com o opo
sição. Venceu Epitácio. N o governo, o enérgico, valente paraibano enfrentou
o com eço da fermentação revolucionária. Sufocou-a, e passou o governo a seu
sucessor, escolhido segundo o rito sacramental das eleições previamente decididas.
Recebido com hostilidade pelo povo carioca, Artur Bemardes governou em estado
de sítio. F o i um duro implacável. Sua sucessão também não fo i calma. Washington
Luís, que o sucedeu, recebeu o governo em nação traumatizada pela revolução
de 1924. Em 1930, os candidatos do “ bolso do colete” , pitoresca expressão com
a qual se etiquetavam as candidaturas urdidas pelas cúpulas partidárias, as pode
rosas comissões diretoras dos partidos republicanos, a oligarquia na plenitude
de sua significação sociopolítica, esses candidatos se encontraram na luta pelo
govem o. De um lado Júlio Prestes, e de outro Getúlio Vargas. Sabemos como
terminou. A revolução de 1930, desencadeada n o R io Grande do Sul, derrubou
um presidente, e encerrou uma época. A té então o povo não havia participado
de nenhuma escolha. N ão tivéramos democracia representativa no período
republicano.
Getúlio Vargas ascendeu à presidência, e governou através de crises, a maior
das quais fo i a revolução paulista de 1932. Eleito pelo voto indireto do Congresso,
em 1934, suspendeu os direitos constitucionais em 1935, e em 1937 derrogava
mais uma Constituição, a de 1934, que ele jurara obedecer. Com o artigo 180
dessa Constituição, deixou-se ficar arbitrariamente no exercício do poder discri
cionário, que a guerra veio, canhestramente, justificar. Deposto em 1945, em meio
a uma crise tremenda, a crise da sua própria sucessão, teve com o sucessor seu
antigo ministro de Guerra, o presidente Eurico Gaspar Dutra. Para a sucessão
deste, candidatou-se, e fo i eleito, com pouco menos do que a maioria absoluta
dos votos. Se o povo não participou ostensivamente do lançamento de sua candi
datura em 1950, participou ao menos tacitamente. Ninguém havia, na política
brasileira, capaz de enfrentá-lo, e ganhar nas urnas. Deposto em 1954, suicidou-se;
seu sucessor Café Filho fo i, por sua vez, deposto pelo ministro da Guerra, general
Teixeira L o tt, e seu sucessor constitucional, o presidente da Câmara dos Depu
tados, Carlos Luz, também fo i deposto, ensaiando uma resistência, que, afinal,
deu em nada, e acabou ridícula e melancolicamente num vaso de guerra sem
combustível e sem provisões. Salvou a fachada democrática o presidente do
Senado, Nereu Ramos, que deu posse a Juscelino Kubitschek, presidente eleito
em 1955.
A eleição de Juscelino Kubitschek fo i precedida de fortíssima campanha
contra o candidato. Tudo se argiiiu e invocou para impedir a sua eleição. Elegeu-se
Juscelino Kubitschek por ser obstinado, e dispor de algumas armas exclusivas,
uma das quais a sua extraordinária capacidade de comunicação que o ajudou até
O PO D E R M O D E R A D O R E A LE G IT IM ID AD E 145
26 A crise da republica presidencial. São Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1969, passim.
27 História da República. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1964, passim.
Op. ctt., passim.
29 Fastos da ditadura militar. São Paulo, Livraria Magalhães, 1923, passim.
30 Advento da ditadura militar no Brasil. Paris, Impremirie F. Pichon, 1893, passim.
31 Rui Barbosa. Obras Completas. V o l. X L V I, 1919, T om o I, passim.
32 Id „ tb„ I I , p. 40.
146 O PO DER M O D E R A D O R
33 Einest Renan. La réforme intellectuelle et morale. Paris, Michel L é vy Frères, 1 87 5,p. 233.
O PO D E R M O D E R A D O R E A LE G IT IM ID AD E 147
nos acolher aos regimes mais institucionalmente estáveis do que outros, ou menos
institucionalmente instáveis do que outros. Mostramos o sentido da legitimidade
institucional e admitimos a legitimidade contratual. Uma é mais sólida do que
outra. A rigidez de seu cimento menos sujeito a abalos. A outra é relativamente
frágil, com o temos visto, com abundância de exemplos, neste nosso século, em que
a regra é o golpe de Estado, é a mudança de governos, é a inquietação sem para
deiro. Vivem os sob febre. Já não sabemos se os nossos descendentes terão melhores
condições de vida do que estamos nós tendo. Se considerarmos o desenvolvimento
com o a fórmula salvadora do futuro, é provável que o ser humano seja acumulado
de bens com o nem mesmo imaginamos.35 Mas se considerarmos que não basta
ao hom em ganhar o mundo e perder a alma, com o vem no Evangelho segundo
Sãó Mateus, devemos voltar o nosso pensamento para o alto, para a fon te da
Verdade, e interpretar severamente o mundo.
John Kenneth Galbraith fala de uma “ era de incerteza” ,36 e afirma que
não fo i encontrada solução para grandes problemas, com o, entre outros, o problema
do desequilíbrio entre pobreza e riqueza, entre emprego e desemprego, o problema
da inflação, e outros. D iz, mesmo, Galbraith que o pessimismo é justificado, em
face deste mundo. N ão vamos a tanto. O ser humano é bizarro e caprichoso.
Convence-se de uns tantos estereótipos, de idéias feitas, imbuindo-se de precon
ceitos vários, e dificilmente se convence de que está errado. São necessários anos
seguidos para que esse lento dinossauro, que é a massa humana, se m ova de uma idéia
para outra, de uma para outra convicção. D aí, não termos ilusão sobre a nossa
tese do poder moderador legítim o e da legitimidade institucional. N ã o temos
dúvidas que a legitimidade contratual e os governos de sufrágio são os mais aceitos.
O filósofo alemão Hermann Glaser definiu satisfatoriamente o que é a perso
nagem que detém a marcha do pensamento e a livre circulação das idéias, o pequeno
burguês: apegado a preconceitos, não os abandona. É o Spiesser. O Spiesser é
uma estranha maneira de ser. Ele se encontra em todas as escalas da sociedade:
na mais baixa como na mais alta esfera. Ele pontifica no estrado p o lític o , se
insinua no ensino, perora no café, floresce nas casernas e nos restaurantes. Ele
pulula nas pequenas cidades, se recruta entre os pequenos burgueses, o pequeno
funcionário, o pequeno professor. Produto da meia-cultura, sabe mal, o que é
pior do que ignorar. É um conformista revestindo a aparência de um reform ador.
Sujeita-se às modas, para não parecer inatual. A alma do Spiesser está conta
minada, sem que ele se dê conta do fenôm eno, no entanto de suma importância
para ele e para a sociedade na qual atua.37 O Spiesser, com o representante do
são numerosos, mas, principalmente, consistem no rom pim ento da função natural
dos grupos humanos, o de integrarem a pessoa nos grupos dos quais tem ela neces
sidade, para expandir as suas virtualidades.
Analogicamente, a sociedade deve espelhar a primeira fam ília, a de Cristo,
aspirando à comunidade perfeita com o Pai, o F ilh o e o Espírito Santo.1 “ As
primeiras gerações cristãs possuíam um sentimento muito vivo da solidariedade
de todos os indivíduos e das diversas gerações na marcha para a mesma salvação” .
Mas a História está secularizada, a fé já não tem eficácia, e o sentido analógico
que procuramos no dogma não atrai adeptos. Devemos ficar, portanto, na ordem
natural, e esta ainda é grupai, constituindo-se de grupos naturais primários e
secundários, essenciais e acidentais, mas todos com pondo uma unidade, sem a
qual as nações não duram. Impõe-se, daí, um princípio de solidariedade, assen
tada sobre outro princípio, o tradicional, para que a duração não se rompa.
Heinrich Pesch2 introduziu na nomenclatura econôm ica o princípio da solidarie
dade e o sistema solidarista, opondo-o ao individualismo e ao socialismo. Sua
doutrina se funda no pensamento dos Padres e Doutores da Igreja e em toda a
tradição católica. Mas está ela, evidentemente, fraturada pela crise difusa, mundia-
lizada que envolveu o mundo nas suas expansões malignas. O certo é que a pessoa
tem necessidade do grupo familiar e dos grupos sociais. Sem eles não se eleva
em perfeição. “ A pessoa não pode ser só. N ão poderia ser ela mesma senão por
uma espécie de êxod o e de generosidade. E, assim com o o indivíduo, não obstante
o sentido etim ológico da palavra, não existe senão em função do que o limita
e o separa dos outros, a pessoa parece subsistir ultrapassando-se a si mesmo e
tomando esta divisa: vae soli3 .
O individualismo de um lado e o coletivismo de outro — qualquer que
sejam as suas acepções — constituem, portanto, uma coação à pessoa humana,
à sua tendência natural ao agrupamento. Se a sociedade é formada de grupos —
e não vamos entrar, aqui, na exposição da tese —, a fam ília deve constituir a
sua base e ponto de partida da organização política. A dinastia, assentando
sobre a fam ília, é, portanto, natural. Classificando-a na chave de órgão institu
cional da legitimidade estamos nos apoiando em fundamento sociológico. O
grupo primário por excelência é a família. Em seguida vêm o grupo de jo g o , a
vizinhança, a escola, a igreja, o agrupamento para o trabalho e outros em grau
crescente de derivação.4 A grande crise do mundo contemporâneo radica-se aí,
nesse fulcro. A fam ília perdeu consistência, desintegrou-se, os filhos chegam a
considerar os pais simples máquinas de fabricá-los, e não lhes dedicam afeto.
que, afinal, não vingou. A Inglaterra, W aterloo, a morte do rei de Rom a selaram
para sempre a sua sorte, que fo i acabar na melancolia dos rochedos de Santa Helena.
D. Pedro sabia de tudo o que se passava na Europa, e tinha notícia que
livros, panfletos, papéis entravam no Brasil, pregando mudanças, novos rumos
políticos e o ódio aos monarcas, urfta das notas da revolução francesa, até mesmo —
como dissemos páginas atrás — nas canções de rua. Consistiu o seu gênio em
ter enfeixado nas mãos a essência do poder moderador, im pondo ao Brasil a sua
legitimidade, o sistema político que lhe convinha e convinha ao país, e de conduzir
o seu processo, até capitular em 7 de abril de 1831, embora, com a tutoria de
José Bonifácio a seu filho menor, tivesse assegurado o respeito à sucessão do trono
em seu herdeiro. Essa foi, historicamente, a legitimidade institucional, posta em
jo g o no Brasil, da Conjuração Mineira à Confederação do Equador, num fermentar
constante que triunfaria, afinal, em 1889. A dinastia fora, porém, aceita no Brasil
pelos companheiros de D. Pedro, enquanto a independência sepultara, definiti
vamente, a monarquia absoluta. O órgão da legitimidade veio a ser, portanto, o
imperador, que se esgalhou da árvore dos Braganças de Portugal, para fundar a
dinastia dos Braganças do Brasil. Quem salvou a dinastia bragantina e o princípio
da legitimidade institucional foi, nos dias terrivelmente dramáticos de 1821 e
1822, o jovem príncipe de menos de 24 anos, D. Pedro, investido do singular
destino de homem providencial, para duas nações, duas pátrias, ambas suas e
ambas por ele amadas, tanto e tão intensamente que por ambas se sacrificou,
vindo a morrer com 36 anos, tuberculoso, com o então, em pleno romantismo,
convinha a um jovem de grandes lances e passado tão rico de aventuras.
Não vamos fazer aqui a conexão entre D. Pedro e a independência do Brasil,
nem biografar, ainda que sucintamente, a sua vida. Remetemos o leitor para a
vasta bibliografia, especialmente a obra magistral de Octávio Tarquinio de Souza,
sobre o jovem imperador. Interessa-nos expor o que entendemos por legitimidade
institucional e seu órgão. Pascal já nos deixou, num de seus Pensamentos, a direção
segura nesse caso. “ Não se escolhe, para governar um barco, aquele, dentre os
viajantes, que é mais nobre: seria uma lei ridícula e injusta. Mas, porque são e
serão sempre escolhidos assim, ela se torna razoável; pois quem se escolherá? O
mais virtuoso e o mais hábil? Eis-nos incontinente embaraçados: cada um pretende
ser o mais virtuoso e o mais hábil. Liguemos, pois, essa qualidade a algo incon
testável. É o filho mais velho do rei. Isso é claro, a razão não pode fazer melhor,
pois a guerra civil é o maior dos males” .12
Tem os experiência para amparar a reflexão de Pascal. Do marechal D eodoro
ao sucessor do presidente Ernesto Geisel,13 o drama brasileiro se repete; as escolhas
são difíceis; precedidas de combinações, barganhas, conchavos, não raro de
complexas ligações e velhos compromissos, nem sempre agradam. Dunshee de
12 Blaise Pascal. Pensamentos. 320, A b ril Editora, 1973, tradução portuguesa de Sérgio M illiet.
13 Escrito no segundo semestre de 1977.
136 O PO D E R M O D E R A D O R
Abranches14 nos dá algumas amostras das escolhas de seu tempo. Durante a enfer
midade de Prudente de Moraes, diz esse autor, “ Manoel V itorino seria obrigado
a mandar proceder imediatamente à eleição para a vaga de presidente” , e, “ fatal
mente, as ambições já em jo g o se assanhariam, arrastando de novo a República
para dias agitados e funestos” . Quando Campos Salles se empossou já tinha em
mente o seu sucessor, Quintino Bocayuva. M uito mais fácil seria optar-se pela
legitimidade institucional, isto é, pela dinastia, com os governos de gabinete, ainda
que o seu. reconhecimento suscitasse problemas, com o nos casos, discutidos em
Portugal pelos miguelistas, e na Espanha pelos carlistas, da predominância da
legitimidade de instituição e da legitimidade de pessoa.
Não entraremos em casos pessoais e exem plos históricos. Ficaremos na
tese: devem conjugar-se a legitimidade de instituição e a de pessoa. Os legitimistas
portugueses, adeptos de D. Miguel, não aceitaram a tomada do trono por D. Pedro I
do Brasil e I V de Portugal. Consideravam D. Pedro destituído de seus direitos,
com a independência do Brasil e sua aclamação com o primeiro imperador da
nação 'ie se emancipara. Para eles, o herdeiro do trono português seriam D. Miguel
e seus ..escendentes. A n ton io Sardinha, um dos grandes doutrinadores da res
tauração monárquica portuguesa, escreveu um livro para defender o direito de
D. Miguel.15 Acentua A ntonio Sardinha que a legitimidade da instituição é
essencial, enquanto é acidental a legitimidade da pessoa. Na tormentosa história
dos povos, houve sangrentas lutas sucessórias. N ão as inventariámos, por não
serem compatíveis com o plano desta obra. Mas afirmamos o fato histórico. O que
importa é ir além, à associação da legitimidade institucional com a legitimidade
pessoal. Para A ntonio Sardinha, o soberano que se afasta da legitimidade da
instituição perde a legitimidade da pessoa. O axioma é admissível. Em Portugal
deu-se a luta entre as duas legitimidades, porquanto D. Pedro, renunciando ao
trono do Brasil, voltou a Portugal, e conquistou o trono para D. Maria II, sua
filha, im pedindo, portanto, que D. Miguel o assumisse. Entendeu D. Pedro que
esse direito lhe assistia, e o impôs, numa jornada memorável, da qual ficaram na
memória histórica o gesto romântico e o desprendimento de um jovem príncipe.
F o i esse princípio que salvou a França, quando Napoleão caiu, e fo i ocupada
pelos aliados, entre os quais se destacava Alexandre I, Czar de todas as Rússias.
Nas suas Mem órias narra Talleyrand, o maior diplomata que já houve no mundo,
o seu encontro com o poderoso monarca. N o hotel da rua Saint Florentin, o
grande, embora cínico, diplomata recebeu Alexandre I, e disse-lhe que só a volta
do rei daria paz à França. Luís X V I I I deveria ser chamado ao trono. Era o rei
legítim o. A revolução francesa fizera devastações nos princípios; Napoleão a condu
zira por toda a Europa, causando no continente mudanças tão grandes, que o
novo rei deveria adotá-las todas. Conformou-se o rei, sujeitando-se a uma Cons
tituição elaborada segundo os m odelos já introduzidos no direito político
14 Como se faziam presidentes. R io, Livraria José O lym pio, 1973, passim.
15 Processo dum rei. Porto, Livraria Civilização, 1937, passim.
OS Ó R G Ã O S D A L E G IT IM ID A D E 157
20 Machado de Assis. Papéis Avulsos. R io, Livraria Garnier, s/d (1882), p. 207.
OS Ó R G Ã O S D A LE G IT IM ID A D E 159
com o deve ela ser entendida. Reconhecemos que não há alternativa em nossos
dias para essa espécie de legitimidade. Ou a aceitamos, ou caímos na ditadura
plena, onde só prevalece uma das partes contratantes, a do Estado, cujo domínio
está nas mãos de uma cliqu e da qual o partido é instrumento — caso da U.R.S.S.
e de suas colônias européias; da China, da antiga Indochina e de Cuba.
V êm do século X IX essas idéias. A democracia constitucional procede das
revoluções americanas e francesa — com o dissemos páginas atrás — mas ganhou
força depois da queda de Napoleão. “ Os problemas relativos à nacionalidade e à
democracia constitucional representam os fatores mais importantes da política
européia do século X I X ” .35 Hegel compreendeu o contratualismo e lhe opós o
Estado. “ Em oposição à doutrina revolucionária, que vê no contrato a formação
primeira e artificial do Estado, Hegel considera-o um organismo natural, com o
uma simples face do processo histórico do mundo” .36 Hegel defendeu a monarquia
constitucional, mas ultrapassou os limites que os tratadistas católicos assinalaram
ao Estado, com base no direito natural. Hegel acabou deificando o Estado.37
Em princípio Hegel estava certo, e poderia ser atualizado, se o despojássemos
do extrem o no qual o fizeram cair seus intérpretes e discípulos heterodoxos.
A legitimidade contratual depende, portanto, exclusivamente, da tolerância, da
admissão de suas regras, mas está sujeita em nossos dias a poderosas influências
que a desnaturam, falseando o seu próprio fundamento, a vontade geral, esse
m ito inventado por Rousseau. Uma das influências mais poderosas na democracia
é a d o uso dos meios de comunicação de massa, que fazem a opinião e nomes,
com o se deu com Nixon, que ganhou eleições por ‘ landslide” , quase repetindo
a eleição de Washington, e o aniquilam — o exem plo é o do ex-presidente ame
ricano — derrubado por um golpe branco, o da renúncia coagida, punição aplicada
em conseqüência do escândalo inteiramente fabricado, peça por peça, de Watergate.
Por mais que se recuse aceitação a algumas teses de Marshall Mcluhan, está certo
o autor quando atribui ao m eio a transmissão da mensagem e sua ascendência.
“ Numa cultura com o a nossa, há muito acostumada a dividir e a estilhaçar todas
as coisas com o m eio de controlá-las, não deixa, às vezes, de ser um tanto chocante
lembrar que, para efeitos práticos e operacionais, o m eio é a mensagem” .38
O “ spoil system” ou “ patronage system” , digamos o sistema do compadrio,
que só não causa males maiores à democracia americana por serem imensamente
ricos os Estados Unidos e poderem se dar ao luxo — “ a fford ” — de perdulários
desperdícios. Quando a expressão fo i cunhada, em 1832, pelo senador Marcy,
os meios de comunicação eram fracos. Hoje em dia, com a televisão, o rádio,
o cinema, as revistas e jornais de grande tiragem, o “ spoil system” é arrasador,
corroendo a democracia americana com o uma ferrugem maléfica. Os “ mass-media”
estadunidenses atuam com tal força na democracia americana, que rom pem o espírito
de seu contrato, causando-lhe dores terríveis, bem na linha da observação de
Mcluhan. “ O sofrimento causado pelos novos meios (m édia) e as novas técnicas
aparenta-se à ‘dor transmitida’ , com o as enfermidades da pele causadas pelo
apêndice e o coração” .39 Podemos prever que esses meios (mass m edia) terão
cada vez ascendência maior sobre a opinião pública, modelando-a, segundo a
ideologia de seus dirigentes, ideologia que vem mudando acentuadamente nos
últimos anos, deixando-se envolver por uma espécie sutil de esquerdismo à ameri
cana. O contratualismo estadunidense corre, por isso, enorme risco. Se os Estados
Unidos têm a sua projeção jurídica, a Constituição e a Declaração da Indepen
dência, elevadas a totens carismáticos, podem engendrar a sua própria mudança
política, pois o primeiro documento é caracteristicamente contratual. “ Quando
a form a de governo se torna destrutiva desses fins (especificados na Declaração),
tem o povo o direito de alterá-los ou aboli-los, organizando novo governo” .
Classificando, analogicamente, a Declaração da Independência e a Constituição
americana com o totens, fazem o-lo segundo Freud para quem “ o totem é, em
primeiro lugar, o antepassado do clã, e em segundo, seu espírito protetor e seu
benfeitor, que envia oráculos a seus filhos, conhece-os e os protege nos casos
perigosos” .40
A democracia é, portanto, um regime em perigo constante. Fundada sobre
a razão, mais precisamente, sobre o racionalismo, a democracia, com o forma
de governo, malogrou. “ A razão pura se mostrou mais im potente do que a fé
para assegurar a unidade espiritual da humanidade, e o sonho de um credo
‘cien tífico’ que unisse os homens na paz e nas convições comuns sobre os obje
tivos e os princípios fundamentais da vida e da sociedade humana desvaneceu-se
nas catástrofes contemporâneas” .41 Essa a democracia contratual, mas esse,
também, o regime de nosso tempo. O povo, atomizado no individualismo do
contrato social, desservido de representantes no Estado, distante dos deputados
que manda, pelo voto, às Câmaras, acaba transferindo a sua decantada soberania
para o Estado. A alternativa é, então, irresistível: ou o laissez faire, com o predo
m ínio dos grupos econômicos e dos meios de comunicação de massa sobre o
Estado ou o Estado intervencionista e dirigista, concorrendo com a iniciativa
particular no campo econôm ico, sobretudo intervencionista com o legislador e
fonte de direito. N o Natal de 1964, a rainha Elisabeth II, soberana da Inglaterra42,
dirigiu mensagem a seus povos, e afirmou: “ Não impomos a nenhum povo do
mundo uma determinada form a de governo. Sabemos que nosso sistema de governo
não é perfeito, porém é o melhor que pudemos criar, depois de séculos de tenta
tivas e erros” . Essa frase tem sido citada muitas vezes. Ninguém percebe que falou
39 Marshall Mcluhan e Quentin Fiore. Guerre et Paix. Paris, Laffon t, 1970, p. 16.
40 T otem y Tabu. In Obras Completas, Madri, Biblioteca Nueva, 1948, V . II, p. 419.
41 Jacques Maritain. L ’H om m e et l ’État. Paris, P U F , 1953, p. 101.
42 O Estado de São Paulo, p. 2, 25-12-1964.
OS Õ R G A O S D A LE G IT IM ID A D E 165
3 Id.,ib.
4 Storia dei Papi. Desclée & Co., 1912, V o l. III, p. 492.
5 Pastor. Id., ib.
6 Marcos Carneiro de Mendonça. Raízes da formação administrativa do Brasil. R io , Conselho
Federal de Cultura, 1972, passim.
7 D e Legibus, III, cap. I-IV .
A F IL O S O F IA D O PO DER 169
8 Oliveira Vianna. Evolução do povo brasileiro. São Paulo, Companhia Editora Nacional,
1938, p. 231.
9 Traité de Philosophie. Paris, Emmanuel V itte. 1945, n? 458 e ss.
10 Loc. cit.
170 O PO D E R M O D E R A D O R
timidade institucional para a contratual, verifica que não houve essa adesão tácita,
inclusive em nações provadas por tantas lutas, e retaliadas por tantos debates
de idéias, com o a França. Se na América Latina não se discute o princípio da
legitimidade, mais por ignorância do que por outra razão, não se chega, também,
a um acordo, digamos a um consenso, sobre a autoridade e o uso do poder. Já
estudamos o assunto, pormenorizadamente, em O destino da Am érica L a tim ,
livro para o qual remetemos o leitor, se quiser ele se aprofundar nas origens do
poder neste continente. A qu i nos limitamos a afirmar, com exemplos históricos
à mão, que o poder é entrevisto nas névoas de uma densa nebulosa, sem que se
apercebam no continente latino americano os seus contornos decisivos.
Que é o poder? Por que o aceitamos? Por que nos rebelamos contra ele?
Quando Roland Barthes, festejado “ maitre penseur” do College de France, pro
feriu sua aula inaugural no fam oso instituto,11 desfechou veemente ataque contra
o poder, em todas as suas formas. “ E, pois, se o poder fosse plural, com o os
demônios? M eu nom e é legião, poderia ele afirmar: de toda a parte, de todos os
lados, chefes, aparelhos, grandes e pequenos, grupos de opressão e de pressão:
de toda a parte vozes ‘autorizadas’ , as quais se perm item fazer ouvir o discurso
de tod o o poder: o discurso da arrogância” . “ Advenhamos, então, que o poder
está presente nos mais finos mecanismos do câmbio social. Não somente no
Estado, nas classes, nos grupos, mas ainda nos modos, nas opiniões correntes,
nos espetáculos, nos jogos, nos esportes, nas informações, nas relações familiais
e particulares, e até nas arrancadas libertadoras, que ensaiam contestá-lo” . Roland
Barthes insurge-se contra o poder, argüindo-o de fascista. Quereria, provavelmente,
o “ maitre penseur” do College de France uma sociedade sem a disciplina do poder.
Afirm ando que faz guerra contra todos os poderes, Barthes defende e reivindica
uma liberdade utópica. Ferrero associa o poder ao medo. “ O poder é a manifes
tação suprema do medo que o hom em provoca contra si mesmo, por seus esforços
para se libertar. A í se encontra, provavelmente, o mais profundo e obscuro segredo
da História” .12
Não somos dos que vêem no poder o grande mal de que sofre a Humani
dade. Dizemos mais, não queremos o destino dos pássaros, dos tigres e dos leões,
com o também não queremos o das formigas e das abelhas, sobretudo este que é
para onde nos levarão os totalitarismos se não reagirmos, se não nos apegarmos
a uma axiologia política, onde caiba o diálogo permanente. A China, com seus
milhões de habitantes “ sem face” , usando todos o mesmo indumento, respon
dendo uniformemente às mesmas ações, aceitando, com medo, a disciplina de
ferro do Partido Comunista, que chegou ao extrem o de aniquilar a vaidade fem i
nina, eliminando os cosméticos e a moda, isto é, o luxo e o suntuário, o antigo
Im pério do M eio antecipa essa visão do mundo pesadelesco. O poder é necessário,
com o o Estado, que é a sua organização jurídica. Mas deve ele ser legítim o, e
13 Bertrand Russel. Power, a new social analysis. Londres, Unwin Books, 1975, p. 25 e ss.
14 Georg Jellinek. Op. cit., p. 217.
15 Loc. cit.
172 O PO D E R M O D E R A D O R
demônios, entre os quais a moral leiga, uma vaga ética sem eficácia, o delírio
dos totalitarismos, a democracia liberal com seus flancos vulneráveis, o seu ocaso,
a permissividade do choque dos contrários em seu seio, com a evidente supremacia
do mal, com o estamos fartos de observar sobre a face da terra, nesta época de
tanto esplendor nas ciências da natureza e tanta miséria nas ciências do espírito.
Segundo Bertrand de Jouvenel,19 existe sobre o conjunto humano um governo.
Seja qual fo r o seu m odo, seja ele diferente de uma sociedade para outra, estes
são, em linguagem filosófica, acidentes da mesma substância, o poder. Pode-se
então indagar, continua o mesmo autor, não qual deve ser a form a do poder —
o que constitui, propriamente, moral política — mas qual a essência do poder,
o que constitui questão de metafísica política. O poder é necessário à ordem
da sociedade humana, a qual só alcança o seu fim , se, na hierarquia de sua orga
nização, situar-se uma força, amparada no direito, com a denominação de Estado
no mundo m oderno, cujas decisões sejam legítimas e a elas legalmente se submetam
os súditos. Esse é o problema dos fins e dos meios, de que fala Jacques Maritain.20
“ É um dos problemas fundamentais o dos fins e dos meios, poderíamos dizer
que é o problema fundamental. Não obstante as dificuldades que ele suscita, é
clara e inevitável a sua solução no dom ínio filosófico, mas, para ser aplicada no
dom ínio prático, esta solução, exigida pela verdade, im põe ao hom em , como
retom o, uma espécie de heroísmo,.e o atira à angústia e à provação” .
No plano m etafísico, ou, mais amplamente, filosófico, o fim do poder é
o bem comum. Não importa o regime, se é legítim o e legal; se é resultado do
consentimento do povo, que lhe deve obediência e dele espera a execução da
p olítica de Estado com patível, na maior dimensão possível, com as aspirações
humanas, em sociedade. Quando passamos — e Maritain bem o ensina — desse
plano para o prático, as dificuldades surgem, e o problema do melhor regime
se nos apresenta, a fim de que façamos as distinções necessárias, e cheguemos
a resultados, tanto quanto possível satisfatórios, sobre o governo a se adotar.
Se, em tese, não importa o regime, a História nos vem pontificando memorandas
lições sobre os regimes políticos e sua adequação aos povos. Tomando-se o Brasil
com o exem plo, vemos, da fundação do Império ao seu fim , um regime estável,
e a República presidencial bracejando crises intermitentes de sua proclamação
ao presente. Para salvar a democracia com o form a de governo, para restaurar o
Estado de D ireito, para, em suma, compadecer a nação e o Estado, ainda h o je 21
se pede uma Constituinte,22 com o se fosse essa a solução para os nossos males
e os nossos problemas. E outros querem reescrever a nossa História, provavel
mente para demonstrar que se fôssemos descobertos ou colonizados pelos ingleses
ou os holandeses estaríamos registrando um P.N.B. com o o americano. Já nos
23 C f. Tratado Geral do Brasil. São Paulo, Livraria Pioneira Editora, 2? ed., 1978, passim.
24 Carré de Malberg. Teoria General dei Estado. M éxico, F on do de Cultura Económica,
1948, p. 25, tradução castelhana.
25 Ataliba Nogueira. O perecimento do Estado. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1971, passim.
26 In L e Nouvel Observateur, n9 675, 17-23 de outubro de 1977, p. 53.
A F IL O S O F IA DO PO D E R 175
Maritain27 com o liberdade de autonomia, ela deve ser defendida pelos corpos
intermediários. “ Sendo Deus” , diz o grande filósofo paleotomista, “ a suma da
personalidade e sendo o homem, ainda que de maneira precária, uma pessoa, é
na relação entre estas duas pessoas que consiste o mistério da conquista da liber
dade” . Esta é, portanto, uma prenda, que somente as filosofias da transcendência
estão capacitadas a definir, ao contrário das filosofias da imanência, que não lhe
atinam com o sentido.
Estão a í as duas grandes correntes do poder em nosso tempo. Deverão elas
entrar pelo futuro, com o predom ínio da primeira e predom ínio até mesmo hege
m ônico, ao menos até onde a nossa desesperança nos permite vislumbrar os dias
que aguardam a Humanidade até o m ilênio próxim o. O poder está intimamente
ligado à pessoa, com o estamos vendo através destas reflexões. Queremo-lo assegu
rando um salvo-conduto permanente à pessoa, a fim de que a sua expansão para
a transcendência não seja limitada pela coação, ou, em palavras mais simples,
no direito natural de querer o primado da lei sobre o arbítrio, de escolher livre
mente os seus representantes e de estar representado no Estado. Se dissermos
que no Brasil de nosso tem po a pessoa está diminuída em suas virtualidades,
baseando-nos na anulação dos corpos intermediários que, de fato, deixaram de
existir no quadro das nossas instituições políticas, estaremos fazendo o diagnós
tico da crise contra a qual bracejamos. O poder ultrapassou os seus limites; sua
função consiste em assegurar as liberdades concretas de que necessita a pessoa
na vida terrestre, mas seus órgãos não raro coagem essas liberdades. Ficou dim i
nuído, portanto, na pessoa o legítim o direito de ela se expandir na confiança
de si mesma, tendo a certeza do acatamento de seus direitos, e a faculdade que
lhe cabe de sufragar os seus representantes, em várias escalas políticas, sociais e
econômicas.
Não há ações nem causas isoladas nas sociedades humanas, sejam elas quais
forem. As causas segundas dependem de uma Causa primeira, à qual são subor
dinadas. Quando proclamam a sua soberania, com o se deu com o materialismo
jurídico, que hoje alcança a plenitude de sua influência sobre a elaboração das
leis, a teoria do Estado e a natureza do poder, seguem-se-lhes a crise com o um
todo, e as crises parciais, que tanto atormentam os povos, sem que eles saibam
com o lhes serão dadas soluções adequadas. A pessoa é o centro do universo
p olítico, é a sua medida temporal. O Estado, ou o poder organizado, deve defen-
dê-la contra os envolvimentos maléficos que a ameaçam constantemente nesta
quadra histórica, sem, contudo, confiná-la ao medo, de que fala Guglielmo
Ferrero, ou a direitos reduzidos em tal monta, que suas virtualidades não se
possam expandir. A pessoa tende ao fim últim o por um imperativo da realidade.
O poder é iníquo se obstar essa parábola. N ão se fechando a pessoa no círculo
obturado da imanência, mas, ao contrário, tendendo para a transcendência, com
a qual alcança o seu destino, o poder tem que ser organizado para abrir-lhe cami
nho à consecução desse fim .
vai-se fechando progressivamente numa imanência da qual não quer ou nâo pode
sair, o que registramos, mais do que uma crise espiritual, é a própria crise da civi
lização, que se nos apresenta em suas várias espécies. O marxismo, uma das
filosofias mais em voga em nossa época, é filosofia da imanência, devendo, por
tanto, gerar crises enquanto tiver eficiência na m obilização ideológica de vastas
áreas das sociedades humanas contemporâneas. Esse é o dado fundamental do
marxismo, e o poder, exercido em seu nome, reveste as características de um
terrestrismo total. Com o assinala Mareei de Corte, “ os caracteres fundamentais
do sistema marxista estão contidos no seu imanentismo e na fé que tem o homem
em si mesmo” . “ Pode-se mostrar e demonstrar que o marxismo, enquanto sistema,
não se conserva um só instante de pé, que ele é contraditório e contradiz a expe
riência mais rudimentar que o homem pode ter da vida e do mundo; inútil e
inoperante, porque não é senão um sistema visto do exterior que se abre a um
mundo, visando a seu mais íntim o desejo de ser seu mundo. Por isso Marx não
hesitou em afirmar que o mundo capitalista, aparentemente oposto ao marxismo,
já é um mundo comunista. O mais veemente desejo da fé imanentista é que o
universo seja sua obra e a técnica capitalista, que submete todas as forças da
natureza, trabalha num sentido que é o seu. É preciso, no entanto, para o mar
xism o, combater e aniquilar o capitalismo, embora ele opere pela imanência,
por não ser senão a imanência de alguns, enquanto que a imanência deve, para
sê-lo, realmente, significar a imanência de todos, e se realizar com o tal. Requer-se,
da mesma form a, que a imanência encontre obstáculos e se detenha, em seu
desenvolvimento dialético total, em ‘antíteses’ : ( . . . ) ela é uma fé voltada para
as ‘coisas que não se vêem ’ , para o futuro indivisível, para os ‘amanhãs que can
tam ’ , que não se escutam, mas já a constituem” . E prossegue Mareei de Corte:
“ Desde que se compreenda ser o sistema marxista o único que se adapta á ima
nência pura, não unicamente pensado, à maneira do filósofo ou do teórico, mas
vivido, impregnando o hom em total, tudo se esclarece. N ão se trata mais, segundo
a fórmula famosa, de compreender o mundo, mas de mudá-lo, a fim de que ele
seja meu m und o” . Mareei de Corte conclui suas reflexões afirmando que o mar
xism o é estritamente ateu e estritamente materialista.30
Contra esse materialismo nos opomos, querendo o poder não subordinado
à sua filosofia, que é totalitária e opressora, mas à filosofia que encontrou em
Santo Tomás a sua mais alta expressão, e, definida com o perene por Leão X III,
tem aplicação perpétua. Marx e Engels queriam o direito com o instrumentos do
poder, mas não de um poder qualquer; queriam-no com o instrumento do poder
pelo proletariado, que eliminaria o poder burguês, do qual o século X IX era
expressão política. Sabemos que o materialismo ju rídico de Marx e Engels apenas
concentrou o poder nas mãos de uma aristocracia burocrática, tirânica, que fez
da antiga Santa Rússia a pátria por excelência do m edo, da subordinação da vida
da pessoa à máquina do Estado, ao qual até mesmo a linguagem, deformada
31 Jean Yves Calvez. La Pensée de Karl Marx. Paris, Seuil, 1956, p. 368.
32 Hermann Heller. Teoria dei Estado. M éxico, F on do de Cultura Económica, 1942, p. 219.
33 Traité de Science Politique. Op. cit., p. 241.
34 Loc. cit.
A F IL O S O F IA D O PO D E R 179
35 The myth o f the State. Yale, Estados Unidos, Yale University Press. 1946, passim.
36 Op. cit., passim.
37 ,
R ob ert Gerard Schwartzenberg. L ’Etat-spetacle. Op. cit., passim.
38
Jacques Leclerc. D u droit natural a la sociologie. Paris, Spes, s/d, I, p. 19.
39 Filosofia do govêrno democrático. R io, Agir, 1955, p. 37, tradução portuguesa.
180 O PODER M ODERADOR
“ o bem comum exige que um problema de ação uniform e que não possa ser
resolvido por unanimidade o seja por autoridade” . Imbuindo-se de princípios
éticos, a autoridade resolve, decide, distinguindo entre o bem e o mal. Quando,
pois, dizemos que há uma filosofia do poder, entendemos que uma sabedoria
superior, uma Causa primeira deve ordenar o poder, causa segunda, arraiando
de luz o seu itinerário prático. Nenhuma ciência particular define adequadamente
seu próprio dom ínio, porque essa definição exige o conhecimento dos princípios
e o sentido da ordem total, os quais são do dom ínio da filosofia, com o, ciência
universal. Conhecendo o real, tendo, por essa via, o conhecimento sensível, a
filosofia estabelece a ordem do universo, que se mantêm e se manterá enquanto
o ser humano e as sociedades às quais ele pertence obedecerem aos seus princípios.
Se, pois, dissermos que a ciência política, através do Estado e do uso d o poder,
situa-se na chave da filosofia prática, procurando o bem do ser humano, a esta
remos subordinando à moral. É nessa luz que a devemos, sempre, tom ar, se
quisermos evitar, do ponto de vista epistemológicp, o erro que nos conduziria
à negativa do caráter ético da política.
Insistimos na tese, porque, cada vez mais, neste século de triunfos inegáveis
da ciência e da tecnologia, a política vai se distanciando da moral. Se não é essa
uma novidade, pois Maquiavel já havia se erigido em seu patrono, na aurora do
mundo m oderno, é, ao menos, um dado contemporâneo da crise na qual brace
jamos, ao parecer sem nenhuma saída. “ A política” , diz Jacques Maritain, “ é um
ramo da ética, mas um ramo especificamente distinto dos outros ramos da mesma
árvore, porque a vida humana tem dois fins últimos, um subordinado ao outro:
o fim últim o numa ordem dada, que é o bem comum terrestre, bonum vitae civilis;
e um fim últim o absoluto, que é o bem comum eterno e transcendente. A ética
individual se ocupa do fim últim o subordinado, mas visa diretam ente ao fim últim o
absoluto, enquanto que a ética política se ocupa do fim último absoluto, mas
seu f im d ire to é o fim últim o subordinado, o bem da natureza racional em suas
realizações temporais” .40 Não se pode considerar, portanto, o Estado, ou o poder,
desquitado da ética. Será fazer concessão ao maquiavelismo. Ciência prática,
portanto, com o vem na classificação das ciências de Aristóteles, se se quiser uma
classificação esquemática, que, embora desdenhada em nossos dias, conserva,
ainda, a sua validade, a política é, também, uma ciência do espírito, segundo a
classificação de D ilthey.41 Aproveitando as reflexões de D ilthey, diremos que
a “ conexão de fim ” , segundo a qual se estabelecem dependências entre elementos
psíquicos e psicofísicos, subordina a política à moral, e obriga em consciência
os governantes a procurarem assegurar a todas as pessoas, aos súditos do Estado,
o pleno desenvolvimento da vida humana — esse ritom elo no qual insistimos —
amparados no apoio do povo inteiro, e do corpo p olítico em particular.
40 Jacques Maritain. L ’Hom m e et l’État. Op. cit., p. 56, os grifos são do autor.
41 Wilhelm D ilthey. Introduction a las ciências dei espiritu. M éxico, F o n d o de Cultura
Económica, 1944, passim, tradução castelhana.
A F IL O S O F IA D O PO D E R 181
0 poder e todo o seu com plexo aparato devem durar, a fim de que o bem
comum não seja precário. Já ensaiamos escrever — e, provavelmente, um dia ainda
o façamos — uma teoria da precariedade, sobretudo no mundo contemporâneo,
abalado até às suas profundezas pela revolução mundializada, pelas mutações
que se operam no seio de todas as sociedades, das altamente industrializadas,
portanto desenvolvidas, às mais primitivas, com o as africanas, recém-emergidas
do colonialismo europeu. N o centro da precariedade colocaríamos o bem comum,
não obstante as aparências em contrário, nesta época saturada pelos bens duráveis
inventados pela ciência, criados pela técnica, e produzidos pela indústria. Santo
Tomás esgotou a idéia de bem comum. Não vamos reproduzir as suas teses por
serem demasiado conhecidas. Mas o que não ocorre, ao parecer, à maioria dos
teóricos da ciência política, aos estadistas e aos doutrinadores, em geral, é depender
o bem comum da duração do poder. F oi possível à civilização conservar e trans
mitir o legado da filosofia grega, do direito romano, do m onoteísm o judaico e
da Revelação cristã, graças à longa duração do poder, da queda do Im pério Romano
à Reforma. Se um só pastor e um só rebanho — a Igreja — sustentaram a herança
mediterrânea, não obstante as dificuldades que se lhes antepunham no curso
histórico dos povos, fo i porque o poder teve duração. Quando a instabilidade
política, uma das espécies da precariedade, irrompeu no Ocidente, inaugurando
u “ idade da revolução” à qual já nos referimos, a duração entrou a cambalear,
e, com o via de conseqüência, veio a cambalear, também, a paz e tudo quanto
184 O PO D E R M O D E R A D O R
relação com o extenso — a ponte de passagem entre uma e outra noção parece
ser o m ovim ento, a medida do tem po, e, portanto, da duração concreta? Deve
ser o tem po, em outros termos, concebido com o o m eio em que se desenvolvem
os acontecimentos, assim com o o espaço é concebido com o o lugar dos corpos
extensos? Os vários pontos, que o m ovim ento uniforme ganha no espaço, corres
pondem aos momentos do tem po e da duração cujo processo, portanto, acaba
com o ser espacialmente representado e descrito.
Concebe-se a duração relacionando-a com a imobilidade e a eternidade.
Estabelecida a relação, podemos perguntar: qual é, exatamente, a conexão entre
o conceito de eterno e de duração? Tomando-se o eterno com o o durar infinito,
cujo conceito é por nós alcançado quando estendermos ao infinito a nossa expe
riência do fin ito — o processo da nossa experiência, sempre lim itado no tem po
— ou, ao contrário, o todo é concebido sem partes, e, portanto, o eterno, com o
um to d o individido e indivisível, é colocado além de cada duração e mutabili
dade, expressão d o ser absolutamente real, transcendental e separado, a respeito
do que se desenvolve no tem po? Os empiristas, em geral, optam pela primeira
solução; os metafísicos pela segunda. Para os metafísicos o Ser absoluto está
antes dos seres e eterno é o atributo da plena realidade que compete ao ser abso
lutamente atual e perfeito. Para eles, ou, pelo menos, para uma corrente, a noção
do Ser é independente da noção dos seres. É este, de resto, o princípio da onto
logia platônica, transformado pelos Padres da Igreja no da iluminação interior.
Assim, na ordem da realidade, do A to , eternamente real, destaca-se o tem po e
se inicia a existência do mundo.
Separado o tem po da eternidade é esse um dos mais graves problemas da
metafísica, já no exemplarismo platônico com a atividade dinâmica do Demiurgo;
já no emanatismo plotiniano; já, agostinianamente, no ato criativo do Deus
onipotente. O problema do tem po e da duração pode ser, em todo o caso, deter
minado por um duplo ponto de vista: ontológico e psicológico, a respeito do ser,
e a respeito do surgirem, em nós, as noções correspondentes. Os dois pontos de
vista — incluindo no primeiro também o aspecto natural ístico e epistem ológico,
no sentido objetivo e realístico da questão — se entrelaçam continuamente na
história do pensamento; contudo na idade moderna, acentuando-se o interesse
especulativo para com o hom em e com a posição do hom em interior, isto é, do
sujeito espiritual, com o fundamento do filosofar, prevalece o aspecto psicológico
do problema da duração.
De fato, procura-se a origem do conceito de duração e se verifica que ele
nasce da consciência da própria identidade diante da mudança dos termos da
experiência. É esta consciência que revela, no seu imediatismo, a ação do ser
com o uma dimensão contínua e simples, mas potencialmente solucionável em
elementos homogêneos, ou seja, em momentos múltiplos que são distinguíveis
dentro da unidade daquela dimensão. De tal conceito de duração, universalmente
entendido, passa-se à abstração objetiva do tempo. Entendendo o tem po com o
o meio indefinido em que se desenvolveria o processo do devenir, parecem estar
de acordo todos aqueles que se destacam do sentido interior e imediato da duração,
IH6 O PO D E R M O D E R A D O R
é para vir se realizaria nunca no tem po; e se, por estranha hipótese, tudo ficasse
imutável, teríamos o resumo do curso do tem po n o presente, o qual seria não
mais um m om ento do tem po, porém, simplesmente, a eternidade. Mas, pela
necessidade do devenir, que é inerente ao tem po, o futuro não é ainda, o passado
não é mais, o presente existe, mesmo porque, continuamente, absorvendo-se
no passado, se aniquila. Onde, portanto, se colhe e conserva o tem po, este simu
lacro do ser verdadeiro, que consiste no seu mesmo contínuo transcorrer e
extinguir-se? É na mente; é, exatamente, na memória, que se encontra a possibi
lidade de conservar e medir o tem po, ou seja, não as mesmas coisas que passam,
mas as impressões que elas imprimem, se fixam na mente. 0 objeto da expectação
passa através da atenção para converter-se na memória” . A té aqui Santo A gos
tinho. Mas a tentativa de definir o tem po e a duração em função da memória
inverte a ordem real das noções. É, de fato, a memória que se distingue com o
form a específica de conhecimento enquanto se põe com o a consciência que na
identidade de seu ato compara o que é com o que não é mais, e com estes dois
termos põe em relação a própria unidade permanente. É verdade que a memória
desvenda uma espécie de co n tin u o sucessivo, a duração, mas é esta que constitui
o pressuposto ontológico da memória, e a define assim com o a diferença do objeto
define a diferença da atividade que lhe é relativa. A memória, mesma, é possível
enquanto a unidade do eu — a kantiana unidade transcendental da autocons
ciência — conform e esta doutrina recolhe e detém as diferentes representações,
cujo' suceder-se é contínuo, porque o uno, mesmo na contínua mutação da
experiência, é o tecido no qual, com o tramas essenciais, elas se inserem. Pressen
tiu-o Santo Agostinho, quando, dirigindo-se à sua própria alma, exclamava: “ É
em ti, ó minha alma, que eu vou medir o tem po” ; mas isso não seria claramente
exposto, porque o santo não via a unidade funcional do eu logicamente pressu
posta à experiência e, mesmo, presente e ativa nela; punha a alma com o funda
mento meta-empírico da experiência e dirigia-se à memória para reforçar a vida
interior.
Pode, enfim , a duração, na sua consistência puramente psicológica, aparecer
susceptível de um medir objetivo? Maine de Biran, pondo o eu com o uma força
hiperorgânica, ativa, no ato do querer produtivo do m ovim ento, acreditava poder
achar nele o princípio do medir da duração, internamente e com referência às
coisas externas.
Passemos agora a uma breve exposição histórica da tese. Na especulação
greco-cristã o conceito de duração é absorvido, quase completamente, pelo
conceito de tem po. Enquanto a duração é concebida com o distinta do tem po,
podem ser feitos três destaques, um em Aristóteles, um em Plotino e um em
Santo Agostinho. Uma afirmação aristotélica de grande importância é a que leva,
em última análise, o tem po à alma. O tem po é essencial à medida, e a alma a
única realidade susceptível de m edir; sem a alma, estaria aniquilado o tem po no
seu significado espiritual, ficaria dele somente o substrato, isto é, o m ovim ento.
Em Plotino, a alma, que é uma hipóstase divina colocada no centro do universo,
mantém a unidade na multiplicidade, e produz, portanto, com o tem po, uma
IKK O PODER M ODERADOR
2 Enneades, III, 7 ,1 1 .
3 Oeuvres. Edição Adam-Tannery, V III.
4 Oeuvres, V II.
5 Spinoza. Pensées metaphysiques. Paris, Oeuvres Complètes, Pleiade, 1954, passim.
6 Id., ib., passim.
A D U R A Ç Ã O DO PO D E R 189
com o, por exem plo, passa uma hora. Núm ero, medida e tem po, com o entes da
imaginação, não podem ser infinitos e não são confundíveis com as coisas reais:
quem faz esta confusão acaba negando o infinito atual. Resumindo, na concepção
spinoziana, agregar a duração ao tem po é com o transformar o concreto em
abstrato, o existente num puro fingim ento racional.
Em Locke o problema da duração se desliga do significado cosm ológico
e realístico que ele tinha em Spinoza, para assumir outro, psicológico e relativo
à experiência do fin ito: trata-se não tanto de determinar a duração em si, quanto
de dizer com o nasce dentro de nós a idéia de duração. E era bem natural que
esse fosse o pensamento de Locke, porque o seu empirismo crítico é dirigido
exatamente no sentido da desintegração do dogmatismo racionalista, a fim de
limitar a pesquisa filosófica à origem, à maneira e à extensão do conhecimento
humano. A idéia de duração vem, para Locke, dos elementos da sucessão, que
passam continuamente. Por sua vez, a idéia de sucessão nasce em nós quando
refletimos sobre a seqüência das idéias que se sucedem constantemente umas
às outras na nossa inteligência, enquanto estamos acordados. Na distância entre
dois elementos desta sucessão, ou seja, entre o manifestar-se de duas diferentes
idéias da nossa mente, chamamos duração a existência ou a continuação da nossa
existência e de qualquer outra coisa comensurada à sucessão das nossas idéias.
Maneiras simples da duração são as horas, os dias, os anos, o tem po, a eternidade,
ou seja todos os comprimentos de que temos idéias distintas. Em particular, o
tempo é a duração enquanto é dividido em determinados períodos e demarcado
por medidas e épocas.7
A especulação de Leibniz, muito importante, começa por observar, que não
o m ovim ento, porém uma continuidade constante de idéias nos coloca em face
da duração. Eis, portanto, a duração trazida novamente ao interior do ser para
chegar à sua concretização. Mas, no que diz respeito à continuidade, no que ela
pareceria consistir, logo somos convencidos do contrário pelo filó so fo , o qual
nos adverte que “ uma continuidade de percepção nos sugere a idéia de duração,
porém não a constitui” . As nossas percepções nunca possuem “ uma continuidade
constante e regular para equivaler à do tem po, que é um contínuo simples e uni
forme com o a reta” . A mudança das percepções nos dá o ensejo de pensar o
tempo, que se mede por meio de mutações uniformes. Trazendo o m ovim ento
não uniforme ao uniforme, pode-se, enfim , estabelecer que “ o tem po é a medida
do m ovim ento” . A duração, portanto, é uma idéia que nasce ocasionada pela
continuidade mas não representa, ela mesma, a continuidade.8 A origem da
mesma idéia, derivando da sucessão que atua no interior da mente, faz com que
não encontremos em Leibniz, a separação de duração, tem po e eterno, com o
vem nos pensadores que entendem a duração e o tem po no plano cosm ológico
e m etafísico, ainda que a idéia resulte de um indefinido adicionamento de extensão
9 Id .,ib.
10 Traité des sensations - III, Oeuvres philosophiques, I, Paris, 1967.
11 Crítica da razão pura. Estética Transcendental. Séc. II, §§ 4 e 5.
Evolution creatrice. Paris, P U F , 1969, pp. 46-50.
A D U R A Ç Ã O DO PO DER 191
momentos singulares são, eles mesmos, sujeitos a uma intrínseca variação, que
consiste n o seu incessante transformar-se e devenir. A passagem de um estado
ao outro, de um m om ento ao outro do devenir, é com o o prolongar-se, e o
transformar-se, de um único estado, assim com o o permanecer o mesmo é já um
variar. Eis, porém, que quando a variação se tom a notável, ela se im põe à nossa
atenção, e esta, obedecendo às necessidades práticas da vida, quebra o contínuo
no descontínuo e faz da duração real uma justaposição de instantes. Entretanto,
a vida psicológica se subtrai aos sím bolos e se desenvolve, sob abstrata espacia-
lização e temporalização, com o duração ou progresso contínuo do passado, que
corrói o acontecer e que se acrescenta avançando, e conservando-se indefinida
mente. N ão é a memória, com o faculdade abstrata, que desperta representações
entre elas separadas, e conserva o passado: esta se conserva por si, automaticamente,
e nos acompanha inteira em cada instante. Assim a nossa personalidade cresce
e amadurece sem interrupção.13
N o Essai sur les données immédiats de la conscience,14 Bergson diz que a
duração pura é a form a que assume a sucessão dos nossos estados de consciência,
quando o nosso eu “ deixa-se viver” e se abstém de estabelecer uma separação
entre o estado presente e os anteriores: os momentos da duração não se justa
põem, mas são fundidos e compenetrados com o as notas de uma melodia. A pura
duração é a sucessão de mudanças qualitativas que se compenetram; sem contornos
precisos, sem se exteriorizarem uns aos outros, sem parentesco algum com o
número: é, em poucas palavras, a heterogeneidade pura. O tempo, ao contrário,
é, para Bergson, o sím bolo abstrato da duração, representado, por sua vez, simboli
camente, no espaço, para a exigência prática do medir. Com o tem po, pensamos,
na maioria das vezes, num m eio hom ogêneo, onde os fatos da consciência se
alinham, se justapõem, com o no espaço, e form am uma multiplicidade distinta.
Partindo de Bergson, Hamelin distingue um tem po hom ogêneo quantitativo
de um tem po heterogêneo qualitativo ou pura duração. Para esse autor o aspecto
da quantidade é referido ao tem po pela via da especialidade e da extensão.15
Depois de Bergson não há especulação digna de nota sobre o conceito de duração.
Husserl, com a análise fenom enológica da intuição do tem po, leva-o a uma neces
sidade a p rio ri, não porém subjetiva mas objetiva e intelectual; Poincaré denunciou
o valor convencional da igualdade de dois intervalos e da simultaneidade de aconte
cimentos distantes. Trata-se, porém , de pesquisas que dizem respeito estritamente
ao conceito de tem po e têm significado exclusivamente no campo da epistemologia.
Podemos transpor a duração do plano m etafísico, epistem ológico, ao
político? Somos de opinião afirmativa, para defender uma tese, a da necessidade
imperiosa de regimes estáveis — duradouramente estáveis — a fim de que o bem
comum seja, não uma hipótese remota, porém uma realidade palpável. Vim os
ser com plexíssim o o conceito de duração. Procurando bracejar nas densas névoas
de um velho e interminável debate e de várias posições diferentes, tomamos um
rumo. Optamos pela reflexão bergsoniana, entendendo que somente os regimes
políticos estáveis, dotados de sólida estrutura histórica, permanentes no tem po,
são destinados a durar, isto é, a ter duração. N ão adotamos toda a filosofia de
Bergson; ao contrário, indigitamos no seu soberbo e form oso conjunto pontos
fracos, falhas que lhe diminuem o valor filosófico e a sua contribuição ao pensa
mento. Aparentando-se a sua filosofia com a de Heráclito, dela, no entanto,
separa-se: Bergson conserva a substância. Interessa-nos, por isso, na filosofia de
Bergson, a duração. “ A continuidade é duração, por ser a form a que toma a
sucessão de nossos estados de consciência quando o Eu se deixa viver; quando
se abstém de estabelecer, inconscientemente, uma separação entre o presente
e o passado” .16 Bergson esposou a tese da duração, e mesmo, da duração política.
Críticos viram em sua obra, expressa, a democracia da duração. Diremos que a
duração só é possível com os regimes semanticamente duráveis, diárquicos, isto
é, fundados sobre a tradição, e acentuamos, ainda, que a democracia da duração
é viável desde que instituída sobre o poder moderador, com o o expusemos nas
páginas deste livro. Para nós, na estrutura política do Estado, embora com rima,
e dela nos escusamos, duração só é possível com tradição, ou, melhor, uma
equivale à outra.
A tradição é uma força de coesão social. Repousando na memória, só a sua
substância, quando vigorosa, sustenta a duração nacional. É impossível, histori
camente impossível, manter íntegra uma nação, conservar sua “ alma” , isto é,
o impalpável espírito nacional, que se transmite de geração em geração, se o
princípio tradicional é quebrado ou não é rotativamente mantido vivo. A assom
brosa resistência da Inglaterra assenta no respeito às suas tradições, algumas delas
tão velhas que até se nos apresentam com o folclóricas. O Japão conserva os seus
costumes ancestrais; no fundo de cada japonês dorm ita um samurai, pronto a
desembainhar a espada e só guardá-la com honra. Grandes foram as mudanças que a
guerra, a derrota, a perda de territórios, a industrialização e, decisivamente, a
amcricanização introduziram nos usos e costumes japoneses, mas quem os observa
nota que, arranhando-se a crosta atual, encontra-se um nipônico de outras idades,
sonhando, sempre, com imaginários heroísmos. Mao-Tsé-Tung bolchevizou a China,
us suas tradições foram reprimidas, mas não temos dúvida que elas voltarão. Quem
perdeu a Alemanha em 1918, e a abismou em trevas na década de 30, até ao
Apocalipse de ‘1945, acompanhado em cenário de tragédia, pelos “ órgãos de
Stalin” , enquanto no bunker, H itler se imolava a si mesmo, no últim o ato da
catástrofe terrível; quem fe z a Alemanha soçobrar, fo i a descompassada canalização
de suas energias tradicionais para o sacrifício, ao qual a atraiu o seu dem ônio antigo,
o furioso deus da guerra. Faltou à Alemanha a solda eficiente de uma tradição
nacional. Bismarck fo i um gênio, mas não soube prever essa fissura no formidável
ed ifício que sua determinação construiu. A Santa Rússia não morreu sob o rótulo da
União Soviética. A velha tirania mongólica, o misticismo eslavo, a civilização e a
cultura que não conheceram a Reform a e a revolução francesa, acabaram caindo —
esse é um imponderável da História — aos golpes vibrados pelos herdeiros de dois
movimentos que abalaram o Ocidente e mudaram o itinerário da História. Mas a tra
dição russa é uma camada debaixo do poder soviético. Seria longo expor a tese.
Apenas a afloramos para justificar a duração. A té mesmo os Estados Unidos são
tradicionalistas, e cultuam as suas tradições, uma das quais — com o já o dissemos — é
sagrada, o respeito à Declaração da Independência, ao seu conteúdo espiritual, mais
do que p olítico. 0 chefe é substituído por uma idéia, tese que Freud viria a expor
mais tarde.17
A tradição, ao contrário do que supõem seus inimigos, não é estática; é
dinamicamente a mudança na conservação. Com o dizia Charles Maurras,18 a
tradição deve enriquecer-se, exprim indo, no entanto, a predominância dos
tesouros do passado. A tradição é o que dura; o que se mantém secularmente.
D aí a necessidade de regimes políticos que defendam, nutrindo-a, sempre, do
patrimônio do passado, a fim de que sua permanência no futuro se assegure. Poucos
escritores tão bem escreveram sobre a tradição quanto Chesterton. Para o grande
escritor democracia e tradição não se opunham. “ Nunca pude compreender
onde foram buscar a idéia que a democracia se opõe à tradição” . “ N ão pretendo,
sob hipótese nenhuma, separar tradição e democracia” . “ Tradição significa o
reconhecimento do sufrágio à mais obscura de todas as classes, a de nossos antepas
sados” . “ É a democracia dos m ortos” .19 Essa democracia dos mortos reúne o
passado na imensa assembléia dos costumes, das tendências culturais, dos hábitos
do povo, do depósito das coisas e realizações pretéritas, e oferece aos vivos as
suas lições. Esse, o princípio da duração; no seu cimento nos amparamos para
construir a ponte entre o passado e o futuro nacional. Se o poder não durar, a
nação, também ela, não durará, e algumas das suas forças, as mais tradicionais,
devem, periodicamente, acudir em seu socorro, para que ela não se engolfe em
crises que lhe poderão ser fatais.
Está a í o Brasil com o exem plo. Da proclamação da República até hoje,20
as Forças Armadas, que são, por sua natureza, tradicionais, têm intervido no
processo p o lítico para salvar a duração nacional. Mas com o não devem elas fazê-lo
indefinidamente, é preciso — ou seria preciso — que defendessem o princípio
17
Paul Roazen. La pensée politique et sociale de Freud. Paris, Editions Com plexe,
1976, p. 138.
18
Verbete “ Tradition ” , no Dictionnaire Politique et Critique. Paris, A La C ité des Livres,
1933.
19 Ortodoxy. Op. cit., p. 70.
20
Escrito no segundo semestre de 1977.
194 O PO D E R M O D E R A D O R
1 f.m ile Henriot. Les romantiques. Paris, A lbin Michel, 1953, p. 459.
2 Encyclopaedia o f Social Sciences. V erbete “ Constitutionalism” .
OS Ó R G Ã O S D O PO D E R 197
6 Agenor de Roure. Formação constitucional do Brasil. R io, Jornal do Com m ércio, 1914,
p. 20.
7 Charles Seignobos. Histoire Politique de VÊurope Contemporaine. Op. cit., p. 96.
8 A fon so Arinos de M elo Franco. Estudos de direito constitucional. R io, Forense, 1957,
p. 221 e ss.
OS Ó R G ÃO S D O PO D E R 199
do Brasil. Era a primeira vez que se realizavam as idéias pregadas em França por
Clermont Tonerre, onde Benjamin Constant, com o ele próprio confessa, colheu
a idéia do poder real ou neutro, independente da assistência ministerial” .9 É
impressionante com o os autores da Constituição de 1824, entre os quais se incluiu
o próprio imperador, que não eram dotados de sólidos estudos jurídicos, che
garam a essa admirável criação do bom senso, que um decreto de poucas linhas,
em 15 de novem bro de 1889, iria revogar, sepultando-a entre os documentos
históricos do Brasil político. N ão possuíam a vasta bibliografia dos constituintes
de nosso tem po. O constitucionalismo se mantinha mal nos difíceis equilíbrios
do engatinhamento. Mas, adotando, embora, uma Constituição, pois impossível
lhes seria fugirá moda constitucionalizante, D. Pedro e seus “ homens de confiança” ,
elaboraram-na rigorosamente na linha das nossas tradições civilizacionais e culturais,
a nossa form ação histórica e a nossa sociopsicologia política, a nossa herança
autoritária e a representação popular nas Câmaras, o equilíbrio entre um poder
supremo e os mandatos, convictos de sua independência, na base.
Quase duzentos anos depois da primeira Constituição - a americana é de
17 de setembro de 1787 - e das que se lhe inspiraram, com o as francesas, e as
demais da Europa, inclusive as da Am érica Latina, a Constituição do Im pério
se nos apresenta, ainda hoje, com o um monumento, sem paralelo em nenhuma
outra Constituição, de sua ou de outras épocas. Essa é uma primazia que devemos
reivindicar para o Brasil, e devemos, sobretudo, oferecer, com o exem plo, aos
sôfregos p olíticos brasileiros,10 aplicados no afã de reclamar uma assembléia
constituinte para votar uma outra Constituição que substitua a de 1967. De 1891
a 1967, esta emendada substancialmente pela Emenda Constitucional n9 1, as
Constituições brasileiras não corresponderam à realidade nacional. Os órgãos
do poder, que na Constituição de 1824 se equilibraram, graças ao ponto neutro
de apoio do poder moderador, descambaram o seu prumo para a “ política dos
governadores” , até 1930; a hipertrofia do executivo em 1934 — com o estado
de guerra e as manobras de Getúlio Vargas para derrogá-la —; o presidencialismo
dominante em 1937; o conflito entre legislativo e executivo em 1946, conflito
que geraria as maiores crises da República, tantas vezes citadas neste livro; a volta
do presidencialismo dominante em 1967, reforçado, ainda mais, pelos poderes
outorgados ao presidente da República pela Emenda Constitucional n9 1, e,
efetivamente, o regime do presidente, cujo term o não se vislumbra em horizonte
próximo, nem é mesmo provável que seja atenuado, ao menòs em dois ou três
mandatos futuros elevados a seis anos.
Encarnando a idéia de direito, o poder deve realizar as suas exigências,11 mas
vemos e sentimos, não raro na própria carne, no patrimônio de cada um de nós
e nos direitos inalienáveis de que somos portadores, que o poder não corresponde
entre a lei votada e a opinião pública. Ora, esse e os demais ataques podem ser
traduzidos em poucas palavras: a crise da democracia representativa
Os órgãos do poder entraram em choque. Somente o presidente Eurico
Gaspar Dutra conseguiu atravessar o seu qüinqüênio em tranqüilo clima político,
por ter obtido das lideranças pessedista e udenista um A cordo Interpartidário,
graças ao qual constituiu um Ministério de Conciliação, uma espécie de Ministério
de Paraná, na República, e com o forte apoio da maioria do Congresso neutra
lizou o artigo 36, § 2, isto é, obteve a delegação indireta de poderes. N ão fosse
a sua habilidade em se mostrar suprapartidário, com esse A cordo, e não teria
fechado o Partido Comunista, colocando-o fora da lei; não teria rom pido com
a União Soviética, e não teria extinto o cancro do jo g o . Durante esse período
doze legendas partidárias supostamente representavam o povo no Congresso,
com o corpos intermediários, mas, na realidade, não passavam de ajuntamentos
circunstanciais, sem raízes nas opções da opinião pública. O eleitor votava apenas
para a sua comodidade do dia, para cumprir uma obrigação legal e até mesmo
para se distrair. Não eram, portanto, corpos intermediários, com o os devemos
entender e com o os trataremos em capítulo subseqüente. Com a volta de Getúlio
Vargas, em 1951, os órgãos do poder se desavieram de novo, e nesta nação de tantas
necessidades a crise voltou a porejar de seu corpo exangue. As duas principais
correntes de opinião pública, que vinham desde o im pério, os conservadores e
os liberais — ou o P.S.D. e a U .D .N. — continuavam a disputar os eleitores. Um
partido trabalhista — o P.T.B. — fundado por G etúlio Vargas para captar em
suas fileiras o operariado que era grato ao seu paternalismo social se apresentava
com o a terceira corrente, as três, porém, e as demais nove, registravam, apenas,
alguns milhares de eleitores. O fim de Getúlio Vargas fo i causado pelo desajusta
m ento dos órgãos do poder, pela supremacia do legislativo sobre o executivo,
pela fraqueza deste e pelas contradições do regime, ao qual faltava, e ainda falta,
uma estrutura institucional.
De crise em crise, o regime chegou até 31 de março de 1964, quando fo i
deposto o presidente João Goulart. Não resultou, evidentemente, de um golpe
decidido nos últimos dias de março a sua expulsão do governo, que de resto
ele enxovalhara. Longa maturação o precedeu. Os militares se prepararam durante
quase vinte anos, nutrindo-se de uma doutrina, a que fo i ensinada na Escola
Superior de Guerra, desde a sua fundação em 1948, e voltaram ao poder, que
haviam deixado quando Floriano passou o governo a Prudente de Moraes; deram-se
uma configuração, assinalando-lhe um rumo e estabelecendo-lhe uma ideologia,
fundada sobre a disciplina autoritária da sociopsicologia castrense e de sua con
cepção de segurança nacional, não uma simples organização de defesa, mas toda uma
filosofia. “ Segurança é um estado de afirmação e de poder, de invulnerabilidade aos
antagonismos de todos os tipos, atuais ou futuros, militares ou não militares, pois é
certo, é indiscutível que o destino e a sobrevivência dos povos e das pátrias podem
ser ameaçados e podem ser, até mesmo, aniquilados, por forças outras, sem canhões
e sem soldados, que atuem sobre o organismo nacional para miná-lo e destruí-lo nos
outros sistemas fundamentais que o sustentam, com o é o caso do colapso econôm ico,
OS Ó R G Ã O S D O PO DER 203
da subversão social ou da destruição do poder p olítico, sob cuja égide ele deve se
constituir e se orientar” .17 Vê-se que à segurança nacional fo i atribuída uma dimen
são maior do que geralmente lhe era facultada. Passou a ser a filosofia do poder,
filosofia na qual os militares estavam enfronhados, através dos estudos sistemáticos
que lhes eram ministrados na Escola Superior de Guerra. A nação deve sobreviver,
una, íntegra, solidamente firmada em seus princípios político-sociais. “ A sobrevi
vência consiste na continuidade existencial da nação, no tem po e no espaço. A
segurança é a faculdade de prevenir e defender o conjunto nacional. E o bem-estar
geral reside no padrão de vida possível ao indivíduo e ao grupo nas condições
do grau de desenvolvimento nacional” .18
Duas citações muito anteriores a 1964. São ambas significativas, com o outras
que poderiam ser para aqui trazidas. N a sua síntese, dão o m ote de tod o um ritm o
p olítico, que se manifestaria em 1964 e prosseguiria sem termo próxim o,19 prova
velmente até ao fim do século. Com a passagem do poder aos militares, Castelo
Branco ainda tentou restabelecer o pacto do poder com o liberalismo p olítico.
Não conseguiu, porém , dominar os acontecimentos; fo i por eles dominado, e
baixou o A to Institucional n9 2, com o qual extinguiu todos os doze partidos -
ou, simplesmente, sindicatos eleitorais, grupos de ocasião, sem eleitorado, portanto,
sem base, exceção feita, parcialmente, ao P.S.D., o partido das classes médias
superiores, e à U.D.N. o partido, em regra, das classes médias inferiores — e os
substituiu por duas legendas, fazendo-o, no entanto, sem nenhuma convicção, apenas
para salvar a nossa fachada democrático-partidária, ou ficticiamente partidocrática.
O poder continuava concentrado nas mãos do chefe militar escolhido pelos seus
camaradas de armas — aos quais o jargão político-jom alístico etiquetou a denom i
nação ambígua de Sistema — numa espécie de monarquia republicana, tributo
que, inconscientemente, os detentores do processo político pagaram e continuarão
pagando à natureza das coisas, em país de crise presidencial pandémica. Os corpos
intermediários foram mantidos, não se alterando a sua configuração artificial.
Não representam o povo. A representação proporcional iníqua, as candidaturas
escolhidas ao acaso, nas quais o eleitor vota sem nelas ver nenhum vínculo com
sua escolha, subtraíram da representação a sua própria essência. As Câmaras
funcionam fantasmagoricamente, embora obedeçam à liturgia do regime.
Os órgãos do poder se concentram, desde 1964, nas mãos do presidente
da República. F oi restaurado o regime do presidente, que, se já era forte, ainda
mais se revigorou com o A to Institucional n9 5, a Emenda Constitucional n9 1,
o artigo 182 da Constituição de 1967. O poder está solitário, e, distanciando-se
dos corpos- intermediários, neutralizados na sua impotência para a ação política,
17 Au rélio de Lyra Tavares. Compreensão de segurança nacional. São Paulo, Edição FIE S P,
1962, p. 16.
18 Humberto Alencar Castelo Branco. O poder nacional e a segurança nacional. São Paulo,
Edição FIE S P, 1962, p. 61.
19 Escrito no segundo semestre de 1977.
204 O PO D E R M O D E R A D O R
Por isso mesmo, a sábia, e tão perfeita quanto possível, organização governa
mental e administrativa do Im pério atenderia mais adequadamente às necessi
dades do moderno Estado industrial, em cuja área nos encontramos, tendo São
Paulo com o centro m otor. O Estado, a empresa pública, as autarquias econômico-
-administrativas, a empresa particular, as instituições científico-culturais e educa
tivas, os sindicatos patronais e obreiros, os partidos políticos, os clubs e grupos
secundários de vária orientação e objeto vário devem articular-se num conjunto
ao qual o poder cabe traçar a política ampla e setorial, a fim de que o seu objetivo
supremo, o bem comum, se alcance, se mantenha e se assegure duradouramente.
Os órgãos do poder devem ser, todos eles, articulados para a consecução desse
objetivo. O futuro se prepara, mas com base em todos os ingredientes que consti
tuem um povo, a sua form ação, a sua sociopsicologia, a sua história, as suas
vicissitudes e o seu êxito. Introduzido o plano na política de Estado e nas socie
dades modernas, embora os Estados Unidos relutem em adotá-lo,31 os órgãos
de governo devem caber dentro de suas linhas, de sua concepção e de suas finali
dades. Observando-se o governo americano, o mais bem sucedido no mundo
m oderno, vemos que sua organização é m uito mais simples do que a brasileira,
mas os Estados Unidos resistem ao estatismo. Serão os americanos os últimos
a tombar sob o socialismo. Seu secretário do Tesouro não tem afinidade de atri
buições com o ministro da Fazenda do Brasil. Quem traça a política econômico-
-financeira dos Estados Unidos é o mercado, é a livre iniciativa, é a empresa. Nem
mesmo Banco Central tem os Estados Unidos, mas um organismo, o Sistema
Federal de Reserva, que não intervém no processo da moeda e do crédito. São,
porém, a exceção, os Estados Unidos, e, por esse fundamental m otivo, ponhamo-los
de lado. Devemos nos ocupar e preocupar com o Brasil.
A concentração de poderes no executivo, que se hipertrofiou,32 levou, natu
ralmente, irresistivelmente, deterministamente a um para ou pré-socialismo, que
se tornará socialismo pleno, não se lhe opondo um paradeiro, pela reforma
política. Está certo R oberto de Oliveira Campos,33 afirmando que “ o Brasil é um
país cripto-sociaiista com retórica capitalista” . À medida que aumenta a eficiência
das empresas estatais, e elas oferecem mais vantagens aos tecnocratas, o perigo
do estatismo aumenta, e, por via de conseqüência, a concentração de poderes
no top o do Estado, fenôm eno este que se vem acentuando progressivamente,
de década em década, até se extremar depois de 1964. Basta os números citados
por “ V isão” : eram 322 as empresas públicas em 1964; em 1976 eram 521; hoje
não sabemos quantas são. O Estado não se lim itou a abrir setores prioritários,
a desbravar zonas economicamente fechadas, ainda, à exploração. É até mesmo
31 Otis L. Graham Jr. Toward a planned society. N ova Y o rk , O x fo rd University Press, 1976,
passim.
32 José Luís de Anhaia M ello. A hipertrofia do Executivo. Digesto Econôm ico, novembro-de-
zem bro d e 1977, passim.
33 In Visão, 3 de outubro de 1977.
OS Ó R G Ã O S D O PO D E R 207
entre gentios e judeus, pois todos eram igualmente filhos de Deus, cuja mensagem
veio introduzir mudanças profundas e extensas nas sociedades ainda subsistentes
quando se deu a Revelação. “ A vitória do cristianismo marca o fim da Cidade
Antiga. Com a nova religião completa-se a transformação social que vimos começar
seis ou sete séculos antes dela. Para sabermos com o os princípios e as regras
essenciais da política foram então modificadas, basta lembrar-nos que a antiga
sociedade fora constituída por uma velha religião, cujo dogma principal estabelecia
que cada deus protegia exclusivamente uma família ou uma cidade e só ela existia.
Era o tem po dos deuses domésticos e das divindades poliadas. Esta religião criara
o direito: as relações entre os homens, a propriedade, a sucessão, o processo, tudo
se encontrava regulado, não por princípios de eqüidade natural, mas pelos dogmas
dessa religião e atendendo às necessidades de seu culto. Fora também ela que
estabelecera um governo entre os homens: o do pai, na fam ília, o do rei, ou do
magistrado na cidade. Tudo procedia da religião, isto é, da opinião que o homem
formara da divindade. Religião, direito, governo, confundiam-se e eram a mesma
coisa sob três aspectos diversos” . “ . . . o Estado era uma comunidade religiosa,
o rei um p on tífice, o magistrado um padre, a lei uma fórmula santa; em que o
patriotismo era piedade, o e x ílio uma excomunhão; em que a liberdade individual
se desconhecia; em que o hom em estava subordinado ao Estado pela alma, pelo
corpo e pelos seus haveres; em que o ódio contra o estrangeiro era obrigatório;
om que a noção do direito e do dever, da justiça e do afeto se detinham nos
limites da cidade; em que a associação humana estava necessariamente encerrada
numa determinada circunferência, em volta dum printanado, e em que se não via a
possibilidade de fundar maiores sociedades” . “ Com o cristianismo, não só o senti
mento religioso se reavivou, com o também tom ou uma expressão mais elevada
o menos material” . O cristianismo “ não era a religião doméstica de qualquer
liiinília, a religião nacional de qualquer cidade, nem de qualquer raça. Não pertencia
n uma casta, nem a uma corporação” . Para o cristianismo todos os povos eram
Iguais.10
Graças a essa imensa revolução, “ a política se libertou definitivamente das
ONlritas regras que a religião antiga lhe traçara” . “ Os homens puderam govemar-se
Nem se curvar aos usos sagrados, sem tomar conselhos dos auspícios, ou dos
oráculos, sem conformar todos os seus atos às crenças e necessidades do
culto” .11 O povo emergiu, portanto, com o cristianismo, e, desde a Revelação,
ovoluiu para uma participação m aior nos negócios públicos. Toynbee acentua
que nas cidades antigas a democracia era direta. Os cidadãos participavam da
vida pública, mas eram minúsculos os centros urbanos. O eleitor poderia ir de
mim cidade para outra, a pé, num dia de jornada.12 Na Idade Média, reconhe
ceram-se aos povos direitos que, mais tarde, não obstante promessas e códigos,
governo do povo, pelo povo, para o povo não perecerá na terra” , expressão
ambígua com a qual não concordamos. Subsiste, portanto, a dúvida sobre o senti
do da palavra povo, o conceito ao qual devemos ficar adstritos. Quem o distorceu,
mais do que nenhum outro publicista, fo i Sieyès, o grande demagogo da revolução
francesa. Pertencer ao Terceiro Estado na França do A n tigo Regime não cons
tituía uma nódoa, e se deixamos de lado o seu exem plo, baldeando-nos para
ii Inglaterra e para os reinos da Europa, verificamos que não prevaleciam neles
iis idéias difundidas pelo “ partido intelectual” francês, no longo processo de
mnolecimento das instituições monárquicas, que viriam, afinal, a cair em 1789,
o a serem definitivamente extintas com a irrupção e ascensão do bonapartismo,
o as mudanças revolucionárias introduzidas pelo seu regime na estrutura do poder
o da sociedade.19 O panfletário Sieyès pergunta: “ Que é o Terceiro Estado? Tudo,
porém um tudo travado e oprimido. Que seria a ordem privilegiada? Tudo, porém
um tudo livre e florescente. Nada pode marchar sem ele, e tudo iria infinitamente
melhor sem os outros. Não basta mostrar que os privilegiados, longe de serem úteis
A nação, não podem senão debilitá-la e danificá-la; é preciso provar agora que a
ordem da nobreza não entra na organização social; que poderá ser uma carga
para a nação, sem form ar parte dela.” 20
Não era essa a realidade. Todas as ordens do reino de França se entendiam
bem, enquanto não as intoxicou, até à revolta, o “ partido intelectual” . “ Existiam
estados na maioria das províncias da França, isto é, cada uma delas era adminis
trada sob o governo do rei pelas gentes dos três estados, com o então se dizia, o
que se deve entender de uma assembléia composta de representantes do clero,
da nobreza e da burguesia” .21 Sieyès era um simples escriba a serviço da burguesia,
lissa a verdade. Mas não vamos fazer todo um longo percurso, já fartamente percor-
ildo, por um sem número de estudiosos, alguns com raro brilho; o que nos interessa
6 o conceito de povo, o qual, com o lembra Jacques Maritain, “ procede de uma
Nlngular diversidade de sentidos que se m istu raram ” .22 A Declaração da Indepen
dência teve influência decisiva na difusão de um determinado conceito de povo,
0 que iria acender o rastilho da revolução francesa, e, já no século X IX , o rastilho
de todas as revoluções emancipadoras do N ovo Mundo. N o preâmbulo da Decla-
1ação, seus signatários proclamam o direito de consentimento do povo aos governos,
o acrescentam, que “ quando qualquer form a de governo se torna destrutiva destes
fins (já explicitados antes), o povo tem o direito de alterá-lo ou aboli-lo, insti-
luindo novo governo” . Haviam, com o se vê, evoluído o conceito e o sentido de
povo. A burguesia se emancipara e urdira a queda do regime sob o qual, apesar
de seus ataques, lhes proporcionara boa posição, enriquecimento, e participação
I * Daniel Mornet. Les origines intelectuelles de la révo lu tion française. Paris, Arm and Colin,
1933, passim.
Sieycs. Que és el Tercer Estado? Buenos Aires, Editorial Americales, 1943, p. 30.
II Alexis de Tocqueviile. L ’A n cie n régime et la révolution. Paris, Gallimard, 1967, p. 325.
'' L 'H o m m e et l ’É tat. Op. cit., p. 24.
216 O PODER MODERADOR
social no mesmo n ível dos outros dois estados, no quadro das instituições repre
sentativas da França, já que o fenôm eno revolucionário, na sua origem, era,
principalmente, francês, ou quase exclusivamente francês, pois na Am érica a
form ação dos Estados Unidos fo i obra de negociantes, entre os quais se contava
Washington.23
C om a ascensão de George III ao trono, P itt assumiu o cargo de primeiro
ministro, mas, por m otivo de saúde, passou o cargo a Charles Townshend, com
o qual se iniciou a reação dos comerciantes das colônias americanas contra o
governo britânico. O Stamp A c t pôs em m ovim ento a revolução, que iria, final
mente, culminar na batalha de Y orktow n. Da proclamação de 1763 ao Stamp
A c t de 1765 medearam dois anos, em que os colonos e os súditos britânicos da
Am érica se uniram contra o governo de George III. N ão se deve argumentar —
tantas vezes o dissemos - com as condicionais em História, mas se nos dermos
à teoria dos jogos, podemos fazer uma viagem retrospectiva aos antecedentes
da revolução americana, e não será exagerado chegar-se à conclusão que, prova
velm ente, sem a Proclamação de 1763, contra a qual os colonos protestaram,
argüindo-a de violação das Charters, sem os Enforcem ent o f Navigation Acts,
Sugar A c t e Currency A c t, de 1764, os colonos não teriam protestado contra
o uso dos éditos de assistência, e, finalmente, sem os Quartering A c t e o Stamp
A c t, o Declaratory A ct, o Townshend A ct e a suspensão da Assembléia de Nova
Y o rk , que provocaram as manifestações públicas contra o governo de George III,
m uito provavelmente os Estados Unidos teriam evoluído para uma situação
análoga à do Canadá, e poderíam os supor que manteriam os laços de chefia de
Estado com a monarquia britânica, tornando-se uma nacionalidade da Common-
wealth. Mas estes são, reconhecemos, jogos gratuitos. O que interessa é a evolução
do povo, e com o adquire ele consciência de sua personalidade.
A revolução francesa é, portanto, mais do que a americana, um exem plo
de insurreição do povo. De 14 de julho a 18 brumário, passando pelo Terror,
o povo se entregou à embriaguez da massa, destruindo as raízes da antiga França.
Nesse período, se form ou a ideologia revolucionária, da qual Antoine Destutt
de Tracy fo i, não propriamente o criador, mas o codificador,24 ideologia que,
não obstante Daniel Bell ter passado, em tese, atestado de óbito a muitas delas,
ainda se manifesta resistente, sobretudo no Terceiro Mundo, ou com o diz o
autor, “ enquanto as velhas ideologias do século dezenove e os antigos debates
intelectuais se esgotaram, os Estados nascentes da Á frica e da Ásia estão foijan do,
para seus próprios povos, ideologias de atração diversa. São as ideologias da
industrialização, da modernização, do panarabismo, da cor e do nacionalismo” .25
Dos últimos anos do século X V III aos primeiros do século X IX , forjou-se
pole, e estimular assim cada vez mais a sórdida cobiça e prepotência de seus tiranos.
Se finalmente o Brasileiro, a quem a próvida Natureza deu talentos não vulgares,
anelava instruir-se nas Ciências e nas Artes para melhor conhecer os seus direitos,
ou saber aproveitar as preciosidades naturais com que a Providência dotara o
seu país, mister lhe era las mendigar a Portugal, que pouco as possuía, e de onde
muitas vezes lhe não era perm itido regressar” .
“ Tal fo i a sorte do Brasil por quase três séculos; tal a mesquinha política,
que Portugal, sempre acanhado em suas vistas, sempre fam into e tirânico, ima
ginou para cimentar o seu dom ínio, e manter o seu factício esplendor. Colonos
e indígenas, conquistados e conquistadores, seus filhos e os filhos de seus filhos,
tudo fo i confundido, tudo ficou sujeito a um anátema geral. E porquanto a
ambição do poder, e a sede de ouro são sempre insaciáveis e sem freio, não se
esqueceu Portugal de mandar continuamente Bachás desapiedados, magistrados
corruptos, e enxames de agentes fiscais de toda a espécie, que no d elírio de suas
paixões e avareza despedaçavam os laços da m oral assim pública, com o domés
tica, devoravam os mesquinhos restos dos suores e fadigas dos habitantes, e dilace
ravam as entranhas do Brasil, que os sustentava e enriquecia, para que reduzidos
à última desesperação seus povos, quais submissos Muçulmanos, fossem em romaria
à nova Meca comprar com ricos dons e oferendas uma vida, bem que obscura
e lânguida, ao menos mais suportável e folgada. Se o Brasil resistiu a esta torrente
de males, se medrou no m eio de tão vil opressão, deveu-o a seus filhos fortes e
animosos, que a Natureza tinha talhado para gigantes, deveu-o aos benefícios
dessa boa mãe que lhes dava forças sempre renascentes para zombarem dos
obstáculos físicos e morais, que seus ingratos pais e irmãos opunham acinte-
mente ao seu crescimento e prosperidade” .
“ Porém o Brasil, ainda que ulcerado com a lembrança de seus passados
infortúnios, sendo naturalmente bom e honrado, não deixou de receber com
inexplicável jú bilo a Augusta Pessoa do Senhor D. João V I, e a toda a Real
Fam ília. F ez ainda mais: acolheu com braços hospedeiros a Nobreza e Povo que
emigraram acossados pela invasão do Déspota da Europa — Tom ou contente sobre
seus ombros o peso do Trono de Meu Augusto Pai — Conservou com esplendor
o Diadema que Lhe cingia a Fronte. - Supriu com generosidade e profusão as
despesas de uma nova Corte desregrada — e, o que mais é, em grandíssima distância,
sem interesse algum seu particular, mas só pelos simples laços de fraternidade,
contribuiu também para as despesas da guerra, que Portugal tão gloriosamente
tentara contra os seus invasores. E que ganhou o Brasil em paga de tantos sacri
fícios? A continuação dos velhos abusos, e o acréscimo de novos, introduzidos,
parte pela imperícia, e parte pela imoralidade e pelo crime. Tais desgraças clamavam
altamente por uma pronta reform a de Governo, para o qual o habilitavam o
acréscimo de luzes, e os seus inauferíveis direitos, com o homens que formavam
a porção maior e mais rica da Nação Portuguesa, favorecidos pela Natureza na
sua posição geográfica e central no m eio do G lobo — nos seus vastos portos e
enseadas — e nas riquezas naturais do seu solo; porém sentimentos de lealdade
excessiva, e um extremado amor para com seus irmãos de Portugal embargaram
O PO VO , A R E P R E S E N T A Ç Ã O N A C IO N A L E O PODER LE G ITIM O 221
seus queixumes, sopearam sua vontade, e fizeram ceder esta palma gloriosa a
seus pais e irmãos da Europa” .
“ Quando em Portugal se levantou o grito da Regeneração P olítica da
Monarquia, confiados os Povos do Brasil na inviolabilidade dos seus direitos, e
incapazes de julgar aqueles seus irmãos diferentes em sentimentos e generosidade,
abandonaram a estes ingratos a defesa de seus mais sagrados interesses, e o cuidado
da sua completa reconstituição; e na melhor fé do mundo adormeceram tranqüilos
à borda do mais terrível precipício. Confiando tudo da sabedoria a justiça do
Congresso Lisbonense, esperava o Brasil receber tudo o que lhe pertencia por
direito. Quão longe estava então de presumir" que este mesmo Congresso fosse
capaz de tão vilmente atraiçoar suas esperanças e interesses; interesses que estão
estreitamente enlaçados com os gerais da N ação!”
“ Agora já conhece o Brasil o erro em que caíra; e se os Brasileiros não
fossem dotados daquele generoso entusiasmo, que tantas vezes confunde fósforos
passageiros com a verdadeira luz da razão, veriam desde o primeiro Manifesto
que Portugal dirigira aos Povos da Europa, que um dos fins ocultos da sua apre
goada Regeneração consistia em restabelecer astutamente o velho sistema Colonial,
sem o qual creu sempre Portugal, e ainda hoje o crê, que não pode existir rico e
poderoso. N ão previu o Brasil que seus Deputados, tendo de passar a um País
estranho e arredado — tendo de lutar contra preocupações e caprichos inveterados
da M etrópole — faltos de todo apoio pronto de amigos e parentes, decerto haviam
de cair na nulidade em que ora o vemos; mas foi-lhe necessário passar pelas duras
lições da experiência para reconhecer a ilusão das suas erradas esperanças” .
“ Mas merecem desculpa os Brasileiros, porque, almas cândidas e generosas
muita dificuldade teriam de capacitar-se que a gabada Regeneração da Monarquia
houvesse de começar pelo restabelecimento do odioso sistema Colonial. Era mui
difícil, e quase incrível, conciliar este plano absurdo e tirânico com as luzes e
liberalismo que altamente apregoava o Congresso Português! E ainda mais incrível
era, que houvesse homens tão atrevidos, e insensatos que ousassem, com o depois
Direi, atribuir à vontade e Ordens de Meu Augusto Pai El-Rei o Senhor D. João V I,
a quem o Brasil deveu a sua Categoria de Reino, querer derribar de um golpe
o mais belo Padrão que o há de eternizar na História do Universo. E incrível por
certo tão grande alucinação; porém falam os fatos, e contra a verdade manifesta
não pode haver sofismas” .
“ Enquanto Meu Augusto Pai não abandonou, arrastado por ocultas e
pérfidas manobras, as praias do R io de Janeiro para ir desgraçadamente habitar
de novo as do velho Tejo, afetava o Congresso de Lisboa sentimento de fraternal
igualdade para com o Brasil, e princípios luminosos de recíproca justiça; decla
rando form alm ente no art. 21 das Bases da Constituição que a Lei fundamental,
que se ia organizar e promulgar, só teria aplicação a este Reino se os Deputados
dele, depois de reunidos, declarassem ser esta a vontade dos Povos que represen
tavam: Mas qual fo i o espanto desses mesmos Povos, quando viram, em contradição
àquele artigo, e com desprezo de seus inalienáveis direitos, uma fração do Congresso
geral decidir dos seus mais caros interesses! quando viram legislar o partido dom i
222 O PO D E R M O D E R A D O R
por eles respeitados e reconhecidos, para se não ver, em caso contrário, na dura
necessidade de obrar contra os desejos do seu generoso coração. Palácio do R io
de Janeiro, 6 de agosto de 1822. Príncipe Regente” .
Proclamado imperador do Brasil, D. Pedro convocou a Constituinte. Era
a primeira, embora as instituições representativas tivessem sido fundadas no Brasil
por Martim A fon so de Souza, em 1532. Sabemos com o evoluíram os aconteci
mentos: a Constituinte fo i suspensa, a Assembléia fechada, a Constituição foi,
afinal, elaborada por um Conselho, e promulgada, voltando a Assembléia Geral
a funcionar até 15 de novem bro de 1889, quando a espada de D eodoro encerrou
o ciclo do Império. O povo continuou a participar, daí por diante, da sorte do
Brasil. A representação do povo tem se abismado na noite da ditadura, do recesso,
entre outras razões históricas, por se terem desajustado as instituições políticas
brasileiras e a nossa tradição, a sociopsicologia do nosso povo e seu substrato
espiritual. O legado que, insistentemente, procuramos demonstrar, somente se
expressou de forma adequada durante o p eríodo imperial com o poder moderador,
o Conselho de Estado, o Conselho de ministros e uma classe dirigente limada pelo
tem po. Por numerosas crises tem passado a nossa História, porém a maior, a crise
entre todas a que mais se destaca, é a institucional, a crise do regime, que não
teve, nem terá — e aqui avançamos pelo futuro o que, com o ensina um provérbio
chinês, é perigoso - solução, enquanto não voltar à sua origem autêntica, ao
poder moderador genuíno, identificado com o povo.
I l f f l H H H H E5
o sistema
representativo de partidos
1 A fon so de E. Taunay. Velho São Paulo. São Paulo, Edições Melhoramentos, 1952, II, p. 63.
226 O PO DER M O D E R A D O R
as mais influentes são as dos meios de comunicação, para a esfera dos interesses,
com o tentaremos expor em outro capítulo. Tem os procurado demonstrar, quanto
podemos, que os governos de opinião derivam sempre para a crise. Se se pode
diagnosticar a crise contemporânea com exatidão, quando não se é possuído de
preconceitos, é por se ver na opinião pública e nos governos de opinião — com o
já deixamos dito — o seu fator principal. Segundo Hermann Heller, “ a doutrina
de opinião pública com o força governante constitui uma form a singular de relati-
vização do Estado ao p ovo e da identificação do poder do Estado com a vontade
do p o v o ” . 13
Mas esse não é um fenôm eno de fácil ccompreensão. A opinião pública
é um monstro. Forma-se e se desfaz com os meios de comunicação, com artifícios,
e, na área política, com o eficiente uso da demagogia, com o têm fe ito os presi
dentes americanos, especialmente Roosevelt, com o uso do rádio, Kennedy e
N ixon , com a televisão, e, no Brasil, Getúlio Vargas e Jânio Quadros 14 com êxito,
usando todos os veículos de informação e difusão. Acrescenta H eller 15 que a
característica da opinião pública é a sua falta de organização, m otivo por que o
seu suporte é o público, isto é, todos os homens que participam de correspondente
conteúdo mental e são capazes de se manifestar sobre ele. Se foram possíveis
os governos de opinião do século X IX — inclusive no Brasil — e ainda nos mantemos
nessa fase histórico-política, agora eles estão sujeitos às bombardas dos eficien-
tíssimos meios de comunicação, e, por isso mesmo, são instáveis, sobretudo em
nações de fragílimos suportes tradicionais, com o é o Brasil. Os mass-media, de que
falam os americanos, convidam hoje em dia a rever todo o problema político, e,
mesmo, a sua problemática, porquanto nenhum povo deve viver em permanente
instabilidade, considerando precária a sua situação .16 Convencionou-se que o
regime de partidos assegura o sistema representativo. Alguns exemplos são eluci
dativos. Quando Getúlio Vargas fo i deposto em 29 de outubro de 1945, já estava
em vigor uma lei eleitoral e constituídos nove partidos políticos. O m ovim ento
que, impetuosamente, levou as Forças Armadas a apresentarem, por intermédio
do general Cordeiro de Farias, o “ ultimatum” ao presidente, paia que ele deixasse
o poder, não cogitou de experimentar a Constituição que nunca tivera vigência.
A “ classe p olítica” , então surgindo, optou pelos partidos e, desde logo, se form a
ram nove, vindo a ser catorze, e, finalmente, reduzindo-se a doze, que foram
extintos pelo A to Institucional n9 2, do presidente Castelo Branco.
O multipartidarismo, com o regime de opinião, atirou o Brasil à zona da
turbulência - os vinte anos da Constituição de 1946 — da qual só saímos com os
governos emanados do m ovim ento de 1964. Por que a “ classe p olítica” , mais
** Heitor Lyra. História de D o m Pedro II. São Paulo, Companhia E ditora Nacional, 1939,
II, p. 503.
1' Heitor Lyra. Id., ib., p. 507.
M José A n tôn io Soares de Souza. A vida do Visconde do Uruguai. São Paulo, Companhia
liditora Nacional, p. 144.
■** Afonso Arinos de M elo Franco. Op. cit., p. 32.
234 O PO DER M O D E R A D O R
' p olítica do Império, para, afinal, soçobrarem, com o todas as instituições imperiais,
no dia 15 de novem bro de 1889, pelo decreto n<? 1, que fundou os Estados Unidos
do Brasil. N ão se pode falar em representação de classes no Im pério, sobretudo
com os partidos revezando-se no poder numa rotatividade impressionantemente
mínima, mas, com o diz A fon so Arinos de M elo Franco ,26 “ O Partido Liberal
representava e representou sempre os interesses da burguesia urbana, do capita
lismo comercial, e as convicções intelectuais progressistas, escritores, jornalistas,
professores magistrados” , ao passo que o Partido Conservador acolhia em seu
seio os grandes fazendeiros, a classe cafeeira, os proprietários territoriais, sem
rejeitar, no entanto, o progresso, pois o fundou e fo i seu líder incontestável o
grande Bernardo Pereira de Vasconcellos, o maior estadista do Império. “ Vascon-
cellos, mais plástico, mais inteligente, era hom em de combinar a ‘conservação
com o progresso’ ; e, sem exageros, entendendo que o Brasil precisava de uma
autoridade prestigiada, queria ensaiar a monarquia constitucional. Para isso,
estaria na estacada até que o governo ‘se organizasse parlamentarmente’ , ‘fazendo
oposição tão enérgica com o comedida e decente’ . O governo devia ser uma
expressão da maioria parlamentar — era a regra do jo g o ; e o regente não poderia
mover-se fora da esfera de ação que lhe era marcada na lei fundamental do
Estado ” .27
O Partido Conservador não era, portanto, o atraso e a estagnação, embora
o Partido Liberal fosse a agitação sem rumo, a efervescência política sem diretriz
firmada e certa, um princípio revolucionário' crepitando no seio da instituição
imperial. F o i preciso a Conciliação para acalmar os indóceis políticos imperiais,
embora o poder moderador, arbitrai, venerável e sobranceiro, procurasse, com rara
acuidade psicológica, contê-los nos limites de seus deveres, sobretudo os de
patriotismo e de apego à coisa pública. João Camillo de Oliveira Torres 28 enumera
os gabinetes liberais e conservadores, a partir de 1847, quando fo i criada a presi
dência do Conselho. “ Os gabinetes imperiais somente passaram a ter consistência
política definida a partir de 1847 com a criação da presidência do conselho,
exercida, pela primeira vez, por Manuel Alves Branco, Visconde de Caravelas,
que chefiou o ministério de 22 de maio de 1847. As situações políticas assim
se alternavam: liberais — de 24 de julho de 1840 a 23 de março de 1841; de 2 de
fevereiro de 1844 a 22 de setembro de 1848; de 24 a 30 de maio de 1862; de
15 de janeiro de 1864 a 12 de maio de 1865; de 3 de agosto de 1866 a 16 de julho
de 1868; de 5 de janeiro de 1878 a 20 de agosto de 1885; de 7 de junho de 1889
a 15 de novembro do mesmo ano; conciliação — de 5 de setembro de 1853 a
4 de maio de 1857; conservadores: de 23 de março de 1841 a 2 de fevereiro de
1844; de 22 de setembro de 1848 a 6 de setembro de 1853; de 4 de maio de 1857
razão ,29 tendo com o axioma a liberdade individual, tese esposada sucessivamente
por Grotius, Althusius, Hobbes, Spinoza, Pufendorf, Locke e Rousseau, triun
fando na revolução francesa e toda a sua seqüela. N ão atribuímos, evidentemente,
tanta responsabilidade ao Partido Liberal, que não escudara em sólida armadura
filosófica, mas foram os liberais que, embora defendendo a constância democrática,
prepararam o advento da República.
Quem examina os programas dos partidos imperiais, neles encontra as notas
da ordem conservadora e da liberal, com o as entenderam os franceses, e com o
as distinguimos da Filosofia das Luzes às crises do século X IX , e, afinal, à
multiplicação de nações, neste século X X , que já conta cento e cincoenta e uma,
com cento e quarenta e cinco representadas na Organização das Nações Unidas
e outros organismos internacionais. O panfleto de Am érico Brasiliense30 é
m alévolo e inconsistente com o todos os panfletos, mas contém uma parte in for
mativa aproveitável, principalmente por ser o único trabalho sobre a questão
partidária do Império. Examinando-se os programas partidários verifica-se que
estavam imbuídos das idéias do tem po os seus autores. Datando a criação do Partido
Liberal de 1831, que A fonso Arinos de M elo Franco, apoiado em José A ntônio
Soares de Souza ,31 contesta, optando pelo ano de 1837, para a fundação dos
partidos, inform a que essa agremiação pregoava:
Monarquia federativa
Extinção do Poder Moderador
Eleição bienal da Câmara dos Deputados
Senado eletivo e temporário
Supressão do Conselho de Estado
Assembléias legislativas provinciais com duas Câmaras
Intendentes nos municípios, sendo nestes o mesmo que os presidentes
nas Províncias.
' História da Municipalidade de São Paulo. São Paulo, Edição da Câmara Municipal do Sffo
Paulo, 1977, prefácio.
242 O PO D E R M O D E R A D O R
do ministro da Economia, o qual possuía plenos poderes sobre tod o o grupo econô
m ico, disfarçando esse abarcamento sob a capa da salvaguarda dos interesses
econômicos dos chefes de empresa. Não vamos dar aqui a organização detalhada
das corporações portuguesa, italiana e alemã. Sobre terem passado, não atendem
ao plano deste livro. Queremos a corporação e o corporativismo, mas com outro
objetivo, o de aproximarmos o povo, com o o entendemos, segundo fico u exposto
em capítulo precedente, de seus representantes, que estes sejam deputados de
interesses não do anonimato, com o vem ocorrendo nas democracias parlamentares
e presidenciais de nossos dias. Roosevelt pretendeu organizar corporativamente
a economia americana, mas com insucesso, já por não o possibilitar o sistema
p o lítico americano, já por detê-lo, no inverno de 1935/36, o Congresso, que,
evidentemente, não queria perder as suas prerrogativas. Vários atos foram
praticados pelo presidente Roosevelt no sentido de criar um corporativism o ou
um corporativismo à americana. Atalhou-o a Suprema Corte; o presidente voltou
ao sistema tradicional dos Estados Unidos, veio a guerra e o mundo tom ou outro
rumo.
N a realidade, de todas as tentativas, até agora ensaiadas, de reform ar a repre
sentação, forças políticas, preconceitos, hábitos enraigados, privilégios e outros
fatores convergiram para esse vértice, e os malogros se sucederam. Queria João
Camillo de Oliveira Torres que considerássemos os partidos corporações políticas,
criadas para tomarem o lugar das corporações das ordens. Parcialmente de acordo,
entendemos que a era industrial, onde nos encontramos, reclama m uito mais
do que os partidos, esses agrupamentos secundários que só se institucionalizaram
nos países de língua inglesa. A corporação viria dar autenticidade à representação.
Os totalitarismos, repetimos, arruinaram uma bela idéia.
Se se levar em consideração que o m ovim ento obreiro, entendido nele todos
quantos com põem a parte do trabalho, é dotado de uma espontaneidade, in feliz
mente reprimida por um grande número de governos, e explorado ignobilmente
por essa peste, o comunismo, podemos chegar à corporação. O povo, com o reunião
de categorias, é portador de valores que devem ser levados em consideração. O
primado da comunidade sobre a corporação deve ser reconhecido, e o da vida sobre
o trabalho deve ser proclamado. Toda uma hierarquia humana, social e política
deve ser, por seu turno, respeitada. A propriedade, a associação na empresa, o
equilíbrio entre a agricultura e a indústria são outros problemas, com o problema
gravíssimo é o da concentração urbana gerando esses monstros, as megalópolis.
A tecnologia tem aportado melhores condições de vida ao ser humano, mas ainda
não eliminou o proletariado, nem, possivelmente, o eliminará; criará o proleta
riado tecnológico, fazendo-o' enfrentar “ gadgets” e inflação, na precariedade da
insegurança.
Insistimos que é preciso mudar a representação. Em que, com o, por que
são representantes do povo os senadores, deputados federais e estaduais? São,
simplesmente, candidatos eleitos que dispõem, temporariamente — numerosos
duradouramente — de um cargo eminente, bem remunerado, uma sinecura, obtida
pela via eleitoral. Se optamos pela corporação é por vermos nela, na possibilidade
A R E P R E S E N T A Ç Ã O DO S INTERESSES 245
_
250 O PO D E R M O D E R A D O R
OU
o partido político,
grupo de pressão
comunidade — não invalida a tese. Essa é uma exceção monstruosa, que não se
deve generalizar. A m aior parte da humanidade é ainda, e deverá sê-lo no futuro,
fiel ao princípio da origem familial da sociedade e de seu ponto de partida, como
grupo primário.
O grupo nacional, outro grupo primário, apresenta, tanto quanto o familial,
características excepcionais de resistência, por mais que se avolume a frente dos
intemacionalistas, sobretudo dos europeístas. Se o nacionalismo tem sido, sobre
tudo depois das guerras napoleônicas, uma das manifestações mais vivas dos povos,
nunca, com o neste século, tanto esse sentimento se fez mais evidente, mais forte
do que neste últim o terço do século X X . Cento e cincoenta e um Estados preten
dem corresponder a cento e cincoenta e uma nações, que poderiam estar reduzidas
a um número menor, com o é o caso — sem individualizarmos os exemplos -
da Am érica Latina e da Á frica. Os intemacionalistas esposam a tese da federação
dos Estados. É o caso de alguns europeus, que lutam pela constituição dos Estados
Unidos da Europa, com base no Mercado Comum Europeu. Mas, ou muito nos
enganamos, ou essa Federação é tão utópica quanto a ilha de Tomás Morus. Se fo i
possível à Europa registrar em sua história algumas federações, com o o Império
do Ocidente, o Im pério do Oriente, o Sacro-Império Rom ano, o Im pério Otomano,
o Im pério Austro-Húngaro, essa idade precedeu ao nocivo p rin c ip io das nacio
nalidades que se gerou no ventre da revolução francesa, e de suas entranhas se
entornou sobre o mundo. Hoje, não vislumbramos a possibilidade de uma fede
ração européia, semelhante à federação americana, nem mesmo aceitamos a
hipótese da solidez da federação comunista do leste europeu, mantida, exclusi
vamente, pelas armas, pelo imenso poderio bélico do exército soviético. Os
Estados — ou simulacros do Estado, com o a Alemanha Oriental - que a com põem
se libertariam de seu ju go , se pudessem enfrentar as bem armadas forças da
União Soviética, que detêm o m onopólio do comando e dos arsenais do Pacto
de Varsóvia.
A nação é, portanto, um grupo primário, solidamente ancorado na socio
logia política dp mundo. O m unicípio é outro grupo primário, na estrutura política
das nações, mas esse, mesmo, vem sendo abalado, cada vez mais, pelas migrações
internas, pela expansão megalopolitana de centros que atuam com o bombas de
sucção, as capitais e as subcapitais dos grandes conglomerados humanos. O que
nos interessa, portanto, focalizar são outros grupos: o secundário e o terciário.
Sociopsicologicamente, a empresa é grupo secundário, dotada de todos os carac
teres de continuidade, hierarquia interna, convergência para um mesmo fim , o
seu desenvolvimento, e base de segurança da pessoa pelos vínculos empregatícios,
num caso, e pelos interesses do investimento no outro.
A empresa é o que, na nomenclatura anglo-saxônia da psicologia social,
se denomina “ in-group” ao qual se opõe o “ out-group” isto é, grupo de com pe
tição ou de cooperação. Nas sociedades arcaicas ou nas sociedades desenvolvidas,
nas sociedades primitivas ou nas sociedades de massa, com o a maioria das contem
porâneas, esses dois tipos de grupo se encontram, se confrontam e se defrontam,
mas não se destróem. Grupo primário, secundário ou terciário eXtemam indícios
O P A R T ID O PO LÍTICO , G R U P O DE PRESSÃO 255
um todo sociopsicológico atuam dentro das nações e entre elas sobre o poder,
e na empresa; na fam ília e até nas sociedades aplicadas à gratuidade e à disponi
bilidade dos objetivos a alcançar. N o Estado, na Igreja, na empresa, nas academias,
nas escolas, na fam ília, onde quer que a pessoa atue e mantenha, com o é de sua
natureza, inter-relação e interação social, a pressão se manifesta e se form am os
grupos de pressão ou interesse, que se aplicam à consecução de um objetivo
próxim o ou rem oto. Através da História os grupos de pressão apresentaram
configuração diferente. Deu-lhes form a a concepção de sociedade da época. A
oligarquia em Esparta, a oposição sob os Césares em R om a ;3 a hegemonia da
Cúria Romana sobre o poder temporal durante a Idade Média; a burguesia, as
“ sociétés de pensée” e os clubs da revolução francesa; a maçonaria, os grupos
econômicos e financeiros dos séculos X IX e X X ; os partidos, os sindicatos, as asso
ciações de classe; os grêmios estudantis; os grupos que se form am dentro da igreja
já são exemplares do que se denomina, na linguagem técnica, grupos de pressão.
Pode ele não ficar adstrito, exclusivamente, ao interesse — e outra denominação
que se lhe etiqueta é de grupo de interesse — no sentido egoísta do vocábulo,
mas sua form a de atuar é a pressão.
A teoria marxista da luta de classes se constitui numa form a revolucionária
de pressão. Entendendo-se a classe com o um grupo, largo, amplo, abarcando toda
uma vasta categoria social, vemos no marxismo a teorização da luta de um grupo
de pressão para eliminar outros, através de m ovim entos dialéticos, do qual sairá
vencedor, segundo a concepção marxista, o proletariado. N o M anifesto C om unista 4
Marx afirma que a história da sociedade se confunde com a história da luta de
classes, afirmação que reveste apenas cunho parcial de verdade, não com o uma
realidade histórica determinista, mas com o uma form a de conflito de interesses,
que se manifestaram até agora no curso da História. Não se encontra na História
a prova de que, dividida em classes, a humanidade assista, permanentemente, à
sua luta, até à destruição final de umas e o triunfo último de outra, o proleta
riado, o qual, com o classe única, teria a posse da Terra, no messianismo utópico
de Marx. Sua teoria é racionalista, no melhor estilo hegeliano — “ tudo o que é
racional é real” — ou seja, engendrado na razão, que adapta a História ao seu
esquema. “ Hom em livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre e
companheiro, numa palavra, opressores e oprim idos, estiveram em oposição
constante uns contra os outros, fazendo guerra sem trégua, já dissimulada, já
aberta, a qual, cada vez, acaba por uma transformação revolucionária de toda a
sociedade ou pela destruição comum das classes em luta” .s Para chegar a essa
abstrusa conclusão, os autores do M anifesto criaram a teoria da alienação, sobre
3 Gaston Boissier. L ’opposition sous les Césars. Paris, Hachette, 1875, passim.
4 Karl Marx e Friedrich Engels. Manifesto do Partido Comunista. Londres, Encyclopaedia
Britannica, 1952, passim
' lonn Meynaud. Les groupes de préssion en France. Paris, Armand Colin, s/d, passim.
258 O PO DER M O D E R A D O R
9 Id., ib.
10 James Bryce. The American Commonwealth. Op. cit., passim.
11 Harold J. Laski. The American Democracy. Op. cit., passim; “ The E conom ist” , 26 de
novem bro, 2 de dezem bro de 1977.
O P A R T ID O POLÍTICO, G R U P O DE PRESSÃO 259
zação p olítica americana se lhe devem averbar, e em não pouco volume. É, contudo,
o “ lobbyism ” o grupo de pressão na sua atividade bem caracterizada; faz parte
dos costumes da política americana, a tal ponto que passa despercebida sua imorali
dade sob a aceitação de sua existência, dinâmica, incoercível, até mesmo dom i
nadora. O Congresso paralelo, de que fala Harold Laski, não eleito pelo sufrágio
democrático, porém mantido pelo dinheiro dos grupos interessados na obtenção
de leis, contraria os princípios da democracia, mas está ele em Washington, insta
lado, firm e, com seus para-deputados e para-senadores. É esse o espécime de grupo
de pressão dos mais destacados e influentes, de quantos analisamos.
Outro grupo de pressão, no mundo moderno, é o partido político. Sua
história, com o grupo secundário organizado, é recente, pois data da Independência
americana, mas sua carreira tem sido vitoriosa .12 Seria longo entrarmos na exegese
do partido p o lítico , instrumento de governo, com o grupo de pressão. Sua axiologia
é com plexa, e o estudo de seus aspectos positivos e negativos ultrapassaria o tema
que nos propusemos sobre os grupos de pressão. Nietzsche dizia que o advento
da independência do hom em se dará com a eliminação dos ricos, dos pobres e
dos partidos políticos. Não chegamos a tanto, mas não vemos no partido um
bem acima de qualquer discussão, um grupo institucionalizado necessário à demo
cracia, com o afirm ou Hans Kelsen ;13 nem mesmo uma instituição sem a qual
não funcionam as instituições políticas. Bluntschli14 classificou-os com o correntes
do espírito público, que m ovem a vida nacional dentro do círculo das leis. Socio-
psicologicamente, são grupos de pressão juridicamente organizados e institucio
nalizados, por m eio dos quais o povo, com o o entenderam, sempre, os adeptos
da democracia de sufrágio, se representa. Nos sistemas políticos totalitários c,
portanto, monopartidários, assim com o nos demócrático-liberais, portanto,
pluripartidários, o partido p o lítico atua com o grupo de pressão. Os exemplos
são conhecidos: o Partido Fascista, que nasceu dos “ fasci di com batim ento” ;
o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães; os partidos clássicos
da Inglaterra, os “ whigs” , os “ tories” e o Labour Party; o Partido Republicano
e o Partido Dem ocrático, dos Estados Unidos; os partidos “ champignons” , quo
caracterizam a história política da segunda metade do século X IX até aos nossos
dias; o Partido Comunista da União Soviética, e outros.
N o Brasil, os partidos políticos tiveram grande influência no Império, menos
pelo número de seus membros, que era reduzido, do que por agremiarem as clussos
que Gaetano Mosca 15 chama de políticas, isto é, as que conduzem o processo
político e lhe comunicam a vitalidade. Proclamada a República, e adotado o sistema
N o artigo 73, define a lei o que devemos entender por “ diretrizes partidárias” :
19 Id „ ib.
Com o grupos sociais sua efetiva organicidade se assinala nos países de línguu
inglesa, graças à tradição que os sustenta. Mas na Inglaterra, mesmo, os “ wliips",
ou liberais, são hoje modestíssima sombra do que foram no tem po de Melbourne,
Palmerston, Gladstone, Asquith, e os “ tories” , ou conservadores não mais possuem
as grandes figuras do passado, Wellington, Peei, Disraeli, Salisbury, Balfour,
Baldwin, Rawsay MacDonal, Churchill. Nesses países os partidos são instituições,
no sentido em que Georges Rénard define a instituição ,25 o tod o, produto de uma
inform ação, ou seja, a form a se realiza imergindo nas partes e solidarizaiulo-as.
Mais explicitamente os partidos são corporações políticas. Nos Estados Unidos,
onde os partidos são poderosos, observa-se a mesma característica, mas cssns
agremiações estão sujeitas a elevado grau de controle legislativo, que os integram
formalmente n o processo p olítico. Os partidos políticos americanos não estilo
mencionados nas Constituições federal e estaduais, no entanto a prática política
e os tribunais estabeleceram seu direito a existirem e atuarem, com base cm
garantias legais, ou seja, o direito de reunião, petição e v o to .26 Essa condiçflo
não garante, no entanto, a consolidação dos partidos americanos. Segundo Harold
J. Laski27 são muito mais blocos de interesses do que sistemas de princípios,
Seria longo historiar a evolução dos partidos políticos americanos. Temos visto
que, ao contrário dos ingleses, não raro um presidente republicano tem que se
haver com um Congresso Democrata — fato que demonstra ser mais pessoal do
que partidário o vo to do eleitor — com o ocorreu com Richard Nixon, e nem
sempre um presidente democrata se entende com um Congresso de maioria de
seu partido .28 Na Inglaterra um conservador, liberal ou trabalhista não mudam
de partido. É a opinião pública, segundo as suas conveniências, que opta por este
ou, aquele partido, nas eleições. Já nos países totalitários ou com os partidos
totalitários admitidos em nações democráticas, o Partido Comunista impõe severa,
estrita, rigorosa obediência. À parte esses exemplos, o partido está em crise, o
não só não é de fa to instrumento de governo, com o não reúne adesões para
garantir-lhe duração, na linha de nossas reflexões em capítulo anterior. Quem
observa a cena p olítica mundial deve ter chegado à conclusão que as crises p o lí
ticas de cuja incidência sofre a quase totalidade das nações entroncam-se no sistema
de partidos, no Estado partidocrático, na partidocracia, onde os governos sno
formados pela divisão e pela com petição, isto é, por essas espécies larvadas de gUerm
civil organizada, legal, sob garantia da lei. D aí caber a pergunta: com o sobrevive ui
32
John Kenneth Galbraith. The new industrial State. Londres, Hamisch Ham ilton, 1967,
passim, tradução portuguesa pela Livraria Pioneira Editora, 2? ed. 1978.
33 Max Weber. Economia y Sociedad. M éxico, F on do de Cultura Económica, 1 9 4 4 ,1, p. 321,
tradução espanhola de José Medina Echavarria.
34 Otis Dudley Duncan. Social Forecasting. “ The State o f the A r t ” . In Public Interest, n? 17,
outubro de 1969.
268 O PO D E R M O D E R A D O R