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O conceito

de saúde
mental

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100 REVISTA
REVISTA USP,USP,
São São Paulo,
Paulo, n.43,n.43, p. 100-125,
p. 100-125, setembro/novembro
setembro/novembro 19991999
NAOMAR DE ALMEIDA FILHO
MARIA THEREZA ÁVILA COELHO
MARIA FERNANDA TOURINHO PERES

P INTRODUÇÃO

retendemos neste texto introduzir uma discussão teórica sobre o conceito


de saúde mental. Trata-se de uma questão de inegável oportunidade e
relevância porque, em contraste com o muito que se tem investido no desenvol-
vimento de modelos teóricos da doença mental, pouco se tem avançado no
sentido de construir conceitualmente o objeto “saúde mental”. Este viés ou
lacuna teórica representa talvez uma ironia, considerando as importantes con-
tribuições da filosofia, da psicanálise e das ciências sociais, em que a assumida
centralidade da questão da saúde contrasta com o fato de que, nesses discursos,
privilegia-se a doença em detrimento do trabalho teórico sobre a saúde. Não
obstante, o processo de construção de teorias estritamente psicopatológicas ou
de concepções individuais da saúde sem dúvida poderá ser útil como ponto de
partida para este esforço, dado o caráter dialético e multidimensional da díade
saúde-doença.
Na primeira parte do texto, focalizaremos algumas abordagens
socioculturais da saúde mental, articuladoras de uma escola autodenominada
de “nova psiquiatria transcultural”. Em segundo lugar, apresentaremos a teoria
dos “sistemas de signos, significados e práticas de saúde mental”, abordagem
sintética original formulada por Bibeau e Corin. Em terceiro lugar, discutire-
mos sucintamente alguns aspectos filosóficos que se referem explicitamente ao
tema, buscando justificar a saúde enquanto objeto científico do campo da saúde NAOMAR DE
ALMEIDA FILHO
mental. Finalmente, traremos à discussão uma tentativa de sistematização do é psiquiatra, Ph.D em
Epidemiologia, diretor do
conceito polissêmico de saúde, objeto-modelo multifacetado, reflexivo, Instituto de Saúde
transdisciplinar, com vistas à sua aplicação no campo da saúde mental. Coletiva da UFBA e
pesquisador I-A do
Conselho Nacional do
Desenvolvimento
Científico e Tecnológico –
MODELOS EXPLICATIVOS DA SAÚDE NA ANTROPOLOGIA MÉDICA CNPq.

CONTEMPORÂNEA MARIA THEREZA


ÁVILA COELHO
é psicóloga e doutoranda
do Programa de Pós-
Reafirmando sua raiz durkheimiana, a etnopsiquiatria clássica admite Graduação do Instituto de
que a normalidade pode ser equivalente ao comportamento médio dos indiví- Saúde Coletiva da UFBA.

duos (Devereux, 1971). Embora existam fenômenos ajustados à cultura e por MARIA FERNANDA
TOURINHO PERES
ela considerados normais, tais fenômenos não implicam, necessariamente, é médica e doutoranda
normalidade mental. Enquanto numa sociedade doente o ajustamento ao pa- do Programa de Pós-
Graduação do Instituto de
drão hegemônico corresponde simultaneamente à normalidade cultural e à anor- Saúde Coletiva da UFBA.

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malidade mental, numa sociedade saudá- social. A categoria enfermidade, por outro
vel normalidade cultural e normalidade lado, incorpora a experiência e a percepção
mental coincidem. Isso significa que a nor- individual relativa aos problemas decorren-
ma não define um padrão cultural geral, tes da patologia, bem como à reação social
podendo também expressar os padrões das à enfermidade. Ela diz respeito ao proces-
subculturas e dos seus indivíduos. Para so de significação da doença. Além dos
Devereux (1971), quiçá o último dos re- significados culturais, há também os signi-
presentantes da escola Cultura & Perso- ficados pessoais, que abrangem tanto os
nalidade, a chave para a saúde mental será significados simbólicos particulares forma-
justamente a capacidade de ajustamento dores da própria enfermidade, quanto os
às transformações. Um xamã adaptado significados criados pelo paciente para
apenas à sua tribo, que não consiga se ajus- poder lidar com a doença e controlá-la. As
tar a outro grupo, necessita de ajuda psi- noções de signo e sintoma estão ligadas
quiátrica tanto quanto um paciente bem respectivamente aos conceitos de patolo-
adaptado ao hospital no qual está interna- gia e enfermidade. Os signos se referem às
do, mas que não consegue se ajustar à vida manifestações objetivas da patologia con-
fora dele. forme observadas pelo médico. Os sinto-
Em 1977, Arthur Kleinman, professor mas dizem respeito à experiência subjetiva
de Psiquiatria e Antropologia Médica da da enfermidade. Este modelo encontra-se
Universidade de Harvard, proclamou a esquematizado na Figura 1.
chegada de uma nova psiquiatria
transcultural, em contraposição à
etnopsiquiatria tradicional (Kleinman,
FIGURA 1
1987; Littlewood, 1990). Ele criticou o
pressuposto de que as categorias Modelo de Kleinman/Good
diagnósticas ocidentais são livres cultural-
mente e sugeriu que elas fossem considera-
das como modelos explanatórios específi- Doença: patologia + enfermidade
cos para o contexto ocidental. Questionou
também as abordagens convencionais que
buscavam em sociedades não-ocidentais patologia
padrões idênticos aos encontrados no Oci-
SAÚDE DOENÇA
dente. Com base nisso, advogou uma mu-
* De fato, Kleinman sistematiza, dança paradigmática para desenvolver uma enfermidade
aprofunda e enriquece a análi-
se dos componentes do concei- abordagem teórico-metodológica capaz de
to de doença, porém, curiosa-
mente, ele e seus discípulos, considerar, antes da comparação
nessa linha de pesquisa, omi- transcultural, os significados locais de qual-
tem os desenvolvimentos
concetuais pré-kleinmanianos, quer padrão e os variados comportamentos
mesmo aqueles ocorridos den-
tro do campo das ciências so-
a ele relacionados. Em um segundo momento, Kleinman
ciais em saúde (Susser, 1972). Kleinman (1977) defendeu uma distin- afirma que ambas, patologia-disease e en-
De todo modo, cabe aqui uma
marcação semântica. A série ção entre as dimensões biológica e cultural fermidade-illness, são construções sociais
significante sickness-disease- da doença-sickness, que foram agrupadas (Kleinman, 1988; 1992). A enfermidade
illness refere-se a um glossário
particular do idioma inglês que, em duas categorias: patologia-disease e refere-se à nossa forma de perceber, pen-
face à sua crescente importân-
cia no discurso científico e téc- enfermidade-illness (*). Patologia refere- sar, expressar e lidar com o processo de
nico contemporâneo, merece se a alterações ou disfunções de processos adoecimento, sendo anterior à doença-
um esforço no sentido de esta-
belecer uma equivalência termi- biológicos e/ou psicológicos, de acordo sickness, a qual é produzida a partir de uma
nológica em português. Assim,
mesmo consciente do grau de
com a concepção biomédica (Massé, 1995). reconstrução técnica do profissional no
arbitrariedade e incompletude Nessa dimensão, o funcionamento patoló- encontro com o paciente, a partir de uma
de proposições dessa nature-
za, gostaríamos de propor a gico dos órgãos ou sistemas fisiológicos comunicação em torno do idioma cultural-
seguinte terminologia: disease ocorre independente do seu reconhecimento mente compartilhado da doença. A esse
= patologia; illness = enfermi-
dade; sickness = doença. ou percepção pelo indivíduo ou ambiente respeito, diz o autor:

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“No paradigma médico ocidental, patolo- No entanto, apesar das suas críticas di-
gia significa mau funcionamento ou má rigidas ao etnocentrismo da antropologia
adaptação de processos biológicos e psico- médica, Kleinman permanece preso aos
lógicos no indivíduo; enquanto enfermida- pressupostos que ele mesmo critica e ques-
de representa reações pessoais, interpes- tiona. Sua visão multidisciplinar da saúde
soais e culturais perante doença e descon- e da enfermidade, mesmo considerando a
forto. A enfermidade é conformada por importância concedida às crenças e aos sig-
fatores culturais que governam a percep- nificados culturais e pessoais dos pacien-
ção, rotulação, explicação e valorização da tes, bem como a proposta de integração dos
experiência do desconforto, processos im- diversos setores do Sistema de Cuidado à
buídos em complexos nexos familiares, so- Saúde e dos respectivos modelos expla-
ciais e culturais. Dado que a experiência da natórios, não foi suficiente para deslocar o
enfermidade é uma íntima parte do sistema foco da abordagem médico-antropológica
social de significações e regras de conduta, da enfermidade para a saúde. A abordagem
ela é fortemente influenciada pela cultura: kleinmaniana permaneceu limitada às prá-
ela é, como veremos, culturalmente cons- ticas curativas e à perspectiva da saúde
truída” (Kleinman, 1992, p. 252). enquanto ausência de enfermidade, focali-
zando o retorno do enfermo ao seu funcio-
De acordo com Kleinman (1980; 1986), namento normal, sem sequer problematizar
a saúde, a enfermidade e o cuidado são o que seria essa normalidade. Em suma, ele
partes de um sistema cultural e, como tal, não seguiu o seu próprio critério de discutir
devem ser entendidos em suas relações as categorias da saúde, enfermidade e cui-
mútuas. Examiná-los isoladamente distorce dado de forma integrada, restringindo-se a
a compreensão da natureza dos mesmos e analisar a enfermidade em suas relações
de como eles funcionam num dado contex- com a cura, sem efetivamente analisar o
to. Por esse mesmo motivo, estudos sobre conceito de saúde.
a mudança das crenças com relação a um Os estudos de Byron Good e Mary-Jo
desses elementos devem examinar as mu- Good (Good e Good, 1980, 1982; Good,
danças ocorridas com relação aos demais. 1994) deram continuidade à idéia de
Em relação ao cuidado, Kleinman (1986) Kleinman sobre a relatividade conceitual
considerou que uma das razões pelas quais intra e intercultural da enfermidade. Eles
diferentes processos de cura persistem postularam que a fronteira entre o normal e
numa mesma sociedade é o fato de eles o patológico é estabelecida pela cultura, de
agirem nas diferentes dimensões da doen- certa forma imbuída em uma perspectiva
ça. Sendo assim, é preciso considerar mo- moral. Para eles, a antropologia médica
delos capazes de conceber a saúde e a en- oferece um método que possibilita investi-
fermidade como resultado da interação gar a experiência da enfermidade em dife-
complexa de múltiplos fatores, nos níveis rentes culturas, examinando a fenome-
biológico, psicológico e sociológico, com nologia dessas experiências, os modos pe-
uma terminologia não limitada à bio- los quais elas são narradas e os rituais
medicina. Ele apontou a necessidade de empregados para reconstruir o mundo que
novos métodos interdisciplinares, traba- o sofrimento destrói. Nessa perspectiva, a
lhando simultaneamente com dados doença (e, por extensão, a saúde) não é nem
etnográficos, clínicos, epidemiológicos, uma coisa em si, nem a reflexão sobre essa
históricos, sociais, políticos, econômicos, coisa, mas um objeto fruto dessa interação,
tecnológicos e psicológicos. Segundo o que sintetiza múltiplos significados.
autor, os métodos preexistentes não eram Partindo do pressuposto de que a cultu-
capazes de descrever sistemas individuais, ra afeta a experiência e a expressão dos
fazer comparações entre sistemas de dife- sintomas, Good e Good (1980) tecem uma
rentes culturas e analisar os impactos da série de críticas à racionalidade médica
cultura na enfermidade e na cura. ocidental e propõem um “modelo herme-

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nêutico cultural para a prática clínica”. mana. A enfermidade é uma construção
Segundo os autores, a interpretação dos cultural a partir das teorias e redes de sig-
sintomas enquanto manifestação da “reali- nificados que compõem as diferentes
dade biológica” subjacente é característica subculturas médicas. Segundo esses auto-
da racionalidade clínica, por ser esta fun- res, a enfermidade é fundamentalmente
damentada epistemologicamente em semântica e a transformação da doença em
uma teoria empiricista da linguagem (Good uma experiência humana e em objeto de
e Good, 1980, p. 171). Nessa perspectiva, atenção médica se dá através de um proces-
o sentido emerge da associação entre um so de atribuição de sentido (Good e Good,
elemento lingüístico e um objeto real exis- 1980, p. 167).
tente no mundo, inserindo-se a cultura nes- O significado não é produto de uma
se modelo como um mero elemento de relação fechada entre significante e coisa
distorção sistemática das manifestações (no sentido de uma realidade objetiva no
sintomatológicas. universo físico), mas de uma rede de sím-
Ao fundamentar sua crítica ao modelo bolos que se constrói na ação interpretativa,
biomédico a partir de teorias lingüísticas, por eles denominada de “rede semântica” –
os autores partem do pressuposto de que a ou semantic network (Good e Good, 1982,
atividade clínica é fundamentalmente p. 147). Para esses autores, a enfermidade
interpretativa e hermenêutica. No entanto, é uma experiência dotada de sentido para
segundo o modelo da racionalidade domi- cada sujeito particular. Mesmo assim, é
nante, o trabalho interpretativo da clínica importante considerar a relação existente
baseia-se no conhecimento de cadeias cau- entre os sentidos individuais e a rede de sig-
sais que operam no nível biológico, seguin- nificados inerentes a cada contexto cultural
do um roteiro de decodificação das queixas mais amplo, ao qual pertencem os indiví-
dos pacientes, a fim de identificar o proces- duos. Aí reside a idéia da enfermidade como
so patológico somático ou psicológico sub- uma “rede semântica”, realidade construída
jacente. Dessa forma, pretende-se atingir através do processo de interpretação/signi-
um duplo objetivo: estabelecer o diagnós- ficação, a qual se fundamenta na rede de
tico da doença e propor uma terapêutica significados que estrutura a própria cultura
eficaz e racional (Good e Good, 1982). e suas subculturas. Os sintomas, dotados de
Segundo esses autores, a atribuição do sig- significados individuais, possibilitam o aces-
nificado do sintoma (symptom meaning) a so à rede semântica da biomedicina, ou seja,
um estado fisiológico alterado mostra-se aos significados culturalmente estabeleci-
insuficiente para a prática clínica, uma vez dos, posto que “uma enfermidade ou um
que fatores psicológicos, sociais e cultu- sintoma, concebidos como síndrome de sig-
rais influenciam a experiência da doença, nificados, condensam uma rede de símbo-
sua manifestação e a expressão dos sinto- los e experiências significantes que o clíni-
mas. É necessário conduzir uma reformu- co deve decifrar a fim de compreender o
lação da teoria biomédica e do raciocínio contexto da conduta do paciente” (Good e
clínico na relação entre “a ordem das pala- Good, 1980, pp. 178-9).
vras médicas e a ordem das coisas médi- Na mesma linha de Kleinman, Good e
cas” (Good e Good, 1980, p. 171). Good demonstram uma forte preocupação
Um dos pontos centrais desse processo com a aplicabilidade clínica de seu mode-
de “reformulação” consiste na distinção lo, apontando para a necessidade de uma
entre doença e enfermidade. Em concor- reconceitualização do campo médico. Nes-
dância com Kleinman, reafirmam que a se sentido, o objeto da terapêutica, ou a
doença correlaciona-se ou é causada por realidade clínica, será o produto de uma
alterações biológicas e/ou psicológicas, construção que se dá através de um proces-
enquanto a enfermidade situa-se no domí- so de tradução entre diferentes sistemas de
nio da linguagem e do significado e, por significado que conformam os distintos
isso, constitui-se em uma experiência hu- modelos explanatórios de saúde-doença e

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as redes semânticas utilizados pelo profis- a substituição do esquema doença-patolo-
sional e pelo paciente. Para esses autores, gia-enfermidade por uma série tripla de
o objeto da terapêutica é a enfermidade, a categorias de mesmo nível hierárquico –
experiência humana do adoecimento, a patologia-enfermidade-doença – conforme
qual, como vimos, expressa-se através de a Figura 2, concedendo maior centralidade
sintomas dotados de sentido, os quais, por ao terceiro termo. Por outro lado, revelou
sua vez, constituem-se a partir da rede se- que ambos os modelos consideram apenas
mântica/cultura. Isso implica uma mudan- o indivíduo como objeto e arena dos even-
ça de atitude clínica no sentido da compre- tos significativos da enfermidade, não re-
ensão (verstehen), através da exploração latando os modos pelos quais as relações
da relação dialética existente entre o sinto- sociais a formam e a distribuem.
ma (texto) e a rede semântica (contexto). Ou
seja, para a atividade clínica é fundamental
a relação entre o indivíduo e o contexto cul- FIGURA 2
tural no qual se constrói a experiência do
adoecimento (Good e Good, 1980, p. 179). Modelo de Young
Em diálogo com essa tradição
interpretativa/hermenêutica, porém muitas
vezes a ela se opondo, surge na década de
Patologia-enfermidade-doença
80 uma linha de estudos na antropologia
médica que busca compreender a relação SAÚDE
entre as condições de saúde, as formas de
organização dos sistemas médicos e as for- Doença Enfermidade
ças econômicas e políticas, locais e glo-
bais. Com esse objetivo, partiam do supos-
to de que as relações e os comportamentos SAÚDE Patologia SAÚDE
sociais eram modulados pela macroes-
trutura social e política, gerando significa-
dos sociais e experiências coletivas, dentre
os quais se incluem as representações so-
bre a doença e o saber médico. Segundo a proposta de Young (1980), o
Um dos principais representantes dessa conceito de doença deve incorporar o pro-
linha é Allan Young, antropólogo norte- cesso de atribuição de significados social-
americano baseado na Universidade mente reconhecidos a signos de comporta-
McGill, que desenvolve uma abordagem mentos desviantes e sinais biológicos, trans-
que privilegia as relações sociais na produ- formando-os em sintomas e eventos
ção e determinação dos modos de distri- (outcomes) socialmente significantes. Em
buição das doenças nas sociedades. A par- suas próprias palavras, “sickness is a
tir dessa perspectiva, Young (1980; 1982) process for socializing disease and illness”
termina por fazer uma análise crítica da (“a doença é um processo de socialização
teoria dos modelos de doença proposta por da patologia e da enfermidade” – Young,
Kleinman e Good, ao sublinhar a diferen- 1982, p. 270). Esse processo de socializa-
ciação entre a dimensão biológica da pato- ção da patologia ou da enfermidade – ou,
logia (disease) e a sua dimensão experien- melhor ainda, de construção da doença –
cial e perceptiva (illness). Por um lado, dá-se, em parte, no interior e através dos
reconhecendo o seu avanço em relação ao sistemas médicos.
modelo biomédico, esse autor considera que Nesse sentido, Young (1982, p. 277)
a distinção entre patologia e enfermidade afirma que os sistemas médicos possuem
mostra-se insuficiente para dar conta da uma dimensão ideológica que, através dos
dimensão social do processo de adoeci- saberes e práticas de saúde, reproduz vi-
mento. Para superar essa limitação, propõe sões específicas da ordem social e atua no

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sentido da sua manutenção. As representa- Good tenha ressaltado as relações de poder
ções sobre a doença constituem, em última nos discursos e práticas médicas, ambos
instância, elementos de mistificação de sua não empreenderam, efetivamente, uma
origem social e das condições sociais de análise desses aspectos em seus trabalhos.
produção do conhecimento. Para Young As práticas médicas são práticas ideológi-
(1980, p. 133), a tradução de formas de cas e de poder, que justificam as distribui-
sofrimento derivadas das relações de clas- ções sociais da enfermidade e do tratamen-
se em termos médicos constitui um proces- to, bem como as suas conseqüências. Em
so de neutralização que segue os interesses síntese, a abordagem do modelo explana-
das classes hegemônicas. Ou seja, através tório não considera as relações de poder
do processo de medicalização, a condição presentes entre os diversos grupos e clas-
de doença é reduzida ao nível biológico ses sociais.
individual, desconsiderando-se a sua di- Mais recentemente, Good (1994) reto-
mensão social, política e histórica. ma uma perspectiva interacionista de cons-
Em contraposição a Kleinman, Young trução da doença, reavaliando a concepção
(1982) considera que doença não é um ter- de rede semântica, nela apontando duas
mo neutro, mas sim que compreende um limitações:
processo através do qual signos biológicos 1) A primeira diz respeito à parcialidade
e comportamentais são significados soci- da teoria segundo a qual um símbolo con-
almente como sintomas. Esses sintomas, densa múltiplos significados. Para ele, é
por sua vez, são ligados a sintomatologias preciso também reconhecer a heteroglossia
que se associam a certas etiologias e inter- ou multiplicidade de vozes presentes na
venções, cujos resultados legitimam tais constituição da enfermidade, a individua-
traduções. O autor comentou ainda que, em lidade dessas vozes, o diálogo delas entre
sistemas médicos plurais, um conjunto de si e com o leitor, a diversidade de línguas
signos pode designar diferentes enfermi- nacionais, religiosas e escolares. A enfer-
dades e práticas terapêuticas que não se midade não é só constituída pelo ponto de
superpõem. As forças sociais é que deter- vista individual, mas por múltiplos cami-
minam quais pessoas sofrem certas enfer- nhos freqüentemente conflitantes; ela é,
midades, exibem certas doenças e têm aces- nesse sentido, dialógica. Ao mesmo tem-
so a determinados tratamentos. A depen- po em que a enfermidade é sintetizada nas
der da posição socioeconômica do enfer- narrativas familiares, carregadas de polí-
mo, a mesma patologia implica diferentes ticas de gênero e de parentesco, ela é tam-
enfermidades, doença e processos de cura. bém objetivada como uma forma especí-
Como proposta geral, Young (1982) advo- fica de desordem fisiológica nas apresen-
ga uma antropologia da doença tações de caso e conversas entre os médi-
(anthropology of sickness) fundada nos cos. Mas essas objetivações podem ser
conceitos-chave de cura, enfermidade, efi- subvertidas ou resistidas pelos pacientes,
cácia, modelo explanatório e rede semânti- pelos advogados e pelas companhias de
ca. Considera, no entanto, que tais concei- seguro que autorizam ou recusam paga-
tos não podem ser entendidos uns em rela- mentos de tratamentos específicos. A do-
ção aos outros já que, por si mesmos ou ença encontra-se imersa numa teia social
encadeados, não constituem um sistema. A em que todos negociam uns com os outros
enfermidade e a cura são práticas ideológi- a constituição do objeto médico e a dire-
cas que reproduzem as relações sociais e os ção do corpo material.
modelos explanatórios, enquanto as redes 2) A segunda limitação da análise das redes
semânticas constituem construtos, estes, semânticas refere-se à reduzida possibili-
sim, culturalmente determinados. dade de representar a diversidade das for-
Young (1982) afirmou que, embora mas de autoridade e resistência associadas
Kleinman tenha enfatizado os determi- aos elementos centrais do sistema médico.
nantes sociais dos modelos explanatórios e As redes semânticas são produzidas e re-

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produzem estruturas de poder e de autori-
dade. Elas podem prover os meios necessá- A TEORIA DOS SIGNOS,
rios para se entender como as formas
hegemônicas são organizadas e SIGNIFICADOS E PRÁTICAS DE
reproduzidas, já que elas são culturalmente
enraizadas e sustentam discursos e práti- SAÚDE MENTAL
cas. Entretanto, reconhece Good que essa
relação entre as estruturas semânticas e as Desde 1980, Gilles Bibeau e Ellen
relações hegemônicas de poder não tem sido Corin, herdeiros da escola canadense de
suficientemente desenvolvida pelos prin- Psiquiatria Transcultural na tradição de
cipais autores dessa linha teórica. Murphy e Leighton, vêm propondo o de-
Good (1994) amplia então a noção de senvolvimento de uma antropologia críti-
rede semântica para indicar que o signifi- ca, capaz de superar a dicotomia cultura-
cado da doença não é unívoco, mas sim um sociedade e a correspondente clivagem no
produto de interconexões. Não mais ape- campo antropológico entre uma antropolo-
nas síndrome de significados, mas também gia cultural (interpretativa e fenome-
síndrome de experiências, palavras, senti- nológica) e uma antropologia social (estru-
mentos e ações dos diferentes membros de tural-funcionalista). Para esses autores, a
uma sociedade. Esse conjunto de elemen- antropologia cultural, em suas vertentes
tos é condensado nos símbolos essenciais interpretativa e fenomenológica, mostra-
do léxico médico, o que implica que tal se insuficiente para abordar a complexida-
diversidade pode ser sintetizada e de dos processos de saúde e doença. Isso
objetivada culturalmente. As redes semân- resulta da ênfase concedida ao estudo das
ticas são estruturas profundas que ligam a experiências subjetivas de adoecimento e da
enfermidade a valores culturais fundamen- reificação das narrativas sobre a doença,
tais de uma cultura, permanecendo, ao consideradas enquanto textos autônomos,
mesmo tempo, fora do conhecimento cul- sem estabelecer, em qualquer dos casos,
tural explícito e da consciência dos mem- relação com o contexto cultural global
bros que compõem a sociedade, apresen- (Bibeau, 1987; 1988; Bibeau e Corin, 1994).
tando-se como naturais. Dentro dessa perspectiva de crítica,
Essa nova análise das redes semânticas Bibeau e Corin articulam uma teoria metas-
trata a enfermidade como uma narrativa, sintética que tem como pretensão integrar
oral e corporal, marcada por uma rede de elementos semiológicos, interpretativos e
perspectivas (Good, 1994). O texto resul- pragmáticos essenciais para uma abordagem
tante de um processo concreto de doença é cultural da saúde mental. Trata-se de um
parcialmente indeterminado e provoca uma programa de investigação (Bibeau, 1988;
resposta que não é dada nem por ele mes- Corin et al., 1989; 1990; Corin e Lauzon,
mo, nem pela vida mental de um leitor ou 1992; Bibeau, 1993; Corin, 1993; Corin,
de uma comunidade de leitores. Essa res- Bibeau e Uchoa, 1993; Inecom, 1993; Bibeau
posta costuma ser constituída por relações e Corin, 1994; 1995; Corin, 1994; 1995;
complexas de dependência e transcendência Almeida Filho et al., 1998; Almeida Filho,
entre o texto, o leitor (técnico ou trivial) e Corin e Bibeau, 1999) que se pretende aber-
os momentos sociais e históricos de cada to a comparações e generalizações no nível
um. A síntese não é um ato final do leitor, do conhecimento, ao tempo em que se pre-
mas um processo em andamento, um ponto tende êmico no sentido de respeitar os crité-
de vista em movimento, no qual o reconhe- rios locais de definição, identificação, reco-
cimento da rede de perspectivas, do movi- nhecimento, reação social e tratamento dos
mento e das atividades de objetivação ofe- problemas de saúde mental.
rece valiosas oportunidades para estudos Para Bibeau e Corin, as experiências
comparativos dos textos culturais da saúde subjetivas formam-se a partir de represen-
e da doença-enfermidade. tações culturais sobre a subjetividade, o

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corpo, o mundo e a vida, criadoras dos sig- (Bibeau, 1992; Bibeau e Corin, 1994; Corin,
nificados que se expressam através de nar- 1995). Nesse sentido, propõem um esque-
rativas individuais (Bibeau, 1993; Bibeau ma analítico fundado em dois conceitos
e Corin, 1994). Daí a necessidade de con- centrais: condições estruturantes e experi-
siderar a experiência do adoecimento e as ências organizadoras coletivas. Pretendem
narrativas sobre a doença em sua relação com esses conceitos representar os dife-
com a rede de significações culturais. Nes- rentes elementos contextuais (sociais e
se sentido, os autores inicialmente recor- culturais) que se articulam para formar os
rem à concepção de rede semântica de Good “dispositivos patogênicos estruturais”. As
que, conforme explicita Bibeau (1993, p. condições estruturantes abrangem o
9), “permite identificar os laços que unem macrocontexto, ou seja, as restrições
categorias-chave culturais tanto a sistemas ambientais, as redes de poder político e as
de interpretação quanto a histórias pesso- bases de desenvolvimento econômico, as
ais de indivíduos”. Entretanto, apesar de heranças históricas e as condições cotidia-
enfatizar a importância dos valores cultu- nas de vida (ou modos de vida). Ou seja,
rais e a influência da concepção de rede trata-se de condicionantes referidos ao ma-
semântica em seu trabalho, Bibeau reafir- crocontexto que atuam como elemento de
ma a necessidade de uma abordagem modulação da cultura e como limitador da
macrossocial e histórica para a compreen- liberdade de ação individual. As experiên-
são dos contextos locais. cias organizadoras coletivas, por sua vez,
Isso significa estabelecer uma conexão representam os elementos do universo só-
epistemológica, teórica e metodológica cio-simbólico do grupo que atuam no sen-
entre diferentes dimensões da realidade, tido de manter a identidade grupal, os sis-
adotando-se uma “perspectiva global” temas de valores e a organização social
(Bibeau, 1988, p. 411). Resultante de um (Bibeau, 1992; Bibeau e Corin, 1994).
trabalho de articulação entre micro e Desse modo, ao postular que os sistemas
macrocontextos sociais, tal perspectiva semiológicos e os modos de produção arti-
expressa-se em uma dupla orientação que culam-se para produzir a experiência do
aponta, “de um lado, para uma leitura adoecimento, os autores resgatam a pre-
historicizada e contextualizada da cultura tensão de Young de considerar o contexto
[local] e, de outro lado, para uma interpre- socioeconômico, político e histórico nos
tação das concepções que a população pro- processos de saúde-doença-cuidado.
duz sobre os problemas de saúde mental” Além da influência dos fatores
(Corin et al., 1990, p. 55). Na esfera parti- macrossociais, Bibeau e Corin enfatizam a
cular da saúde-enfermidade-cuidado, tra- autonomia e a responsabilidade dos indiví-
ta-se de integrar sistemas semiológicos de duos na modificação da história e dos fatos
significação e condições externas de pro- sociais. De acordo com essa perspectiva,
dução (contexto econômico-político e sua sendo a sociedade composta por diferentes
determinação histórica) com a experiência indivíduos, ao mesmo tempo em que estes
do adoecimento, enquanto transformação possuem experiências de vida semelhantes
da identidade individual e do modo de ser- no plano cultural, sofrem vivências distin-
no-mundo. tas no plano subjetivo, o que faz com que as
Ao propor a compreensão da experiên- versões das suas narrativas se assemelhem
cia de adoecimento a partir dessa “perspec- em certos aspectos e se distanciem noutros
tiva global”, construindo uma articulação (Corin et al., 1989; Bibeau, 1992; Bibeau e
entre trajetórias individuais, códigos cul- Corin, 1995; Almeida Filho et al., 1998). O
turais, contexto macrossocial e determina- plano individual engloba, portanto, as ex-
ção histórica, Bibeau e Corin introduzem, periências, histórias individuais e signifi-
no campo da antropologia médica, a pro- cados singulares de cada sujeito, bem como
blemática da causalidade em diferentes as diferentes vozes expressas pela primeira
níveis de determinação dos fenômenos voz do autor (a da sua família, classe ou

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categoria social, etc.), já que este é sempre doença precisa romper. Nessa perspectiva,
co-autor de uma narrativa que o ultrapassa Bibeau e Corin apontam para um novo olhar
(Bibeau e Corin, 1995). A interpretação do sobre a enfermidade e uma abertura de sen-
mundo e da vida é feita por cada pessoa a tido no campo da saúde mental.
partir de um marco referencial lógico, se- Para Corin (1993), o que está em jogo,
mântico, cultural e cognitivo prévio. O pa- em última instância, é a questão da atribui-
pel “ativo” dos sujeitos, portanto, é influen- ção de sentido. Os comportamentos e dis-
ciado pelos fatores macrossociais e coleti- cursos anormais ou não-convencionais de-
vos, a ser compreendido, segundo Bibeau vem ser considerados não apenas como
(1992, p.16), através “da intrincação e do sintomas ou mecanismos de defesa, mas
emaranhado da história social e das trajetó- enquanto sinal de uma experiência de reor-
rias pessoais, dos jogos sociais e dos proje- ganização da relação do sujeito com o
tos individuais, que os especialistas das ci- mundo. A experiência básica de adoeci-
ências humanas devem tentar esclarecer”. mento deve ser compreendida a partir de
A concepção médica de nosologia, se- sua ancoragem na matriz que se constitui a
gundo a qual cada signo patológico corres- partir da articulação das forças micro e
ponde a um significado numa rede de cau- macrossociais.
salidade e a procedimentos de cura-cuida- Dessa forma, Bibeau e Corin propõem
do numa rede de práticas terapêuticas, não um quadro teórico de referencial antropo-
pode deixar de ser considerada, embora de lógico, semiológico e fenomenológico para
forma modificada. Além de investigar os o estudo das semiologias populares e dos
elementos típicos dos quadros nosográficos sistemas locais de significação e de ação
psiquiátricos, a fim de subsidiar o planeja- frente aos transtornos mentais. Esses siste-
mento e a reorientação dos serviços de saú- mas enraízam-se nas dinâmicas sociais e
de mental, Corin, Bibeau e colaboradores nos valores culturais centrais do grupo e
propõem tomar os comportamentos consi- fundamentam as construções individuais
derados anormais não apenas como sinto- da experiência de adoecimento (Bibeau,
mas de transtornos mentais mas como sig- 1992; Bibeau e Corin, 1994; Corin, 1995).
nos de uma experiência de reorganização Na prática metodológica, isso implica o
da subjetividade (Corin et al., 1989; Corin desenvolvimento de uma “abordagem se-
e Lauzon, 1992). Para Corin e Lauzon mântico-pragmática e contextual”, capaz
(1992), a moderna psiquiatria se caracteri- de partir de casos concretos para compre-
za pela busca de objetivação e univer- ender como a comunidade percebe, inter-
salização do processo diagnóstico, propon- preta e reage com relação aos problemas de
do estabelecer signos objetivos que sejam saúde mental.
identificados e classificados de maneira Para melhor compreender o substrato
idêntica por diferentes observadores. Tem antropológico do modelo proposto, primei-
como pretensão excluir toda subjetividade ro será importante explicitar o conceito de
do diagnóstico, desconsiderando a influ- cultura utilizado pelos autores. De acordo
ência dos fatores pessoais e culturais na com Corin et al. (1990, p. 55), a cultura se
psicopatologia a fim de identificar os ele- define como “um produto coletivo que se
mentos “reais” e metaculturais dos distúr- estrutura e é a cada momento codificado de
bios mentais (Corin, 1993). maneira relativamente original a partir dos
Na moderna psiquiatria, o sentido do contextos sócio-históricos particulares de
sintoma é portanto dado pelo processo cada sociedade”. O enfoque de Bibeau e
biofisiológico que lhe é subjacente que, Corin baseia-se em uma concepção
dessa maneira, encontra-se bloqueado ou interpretativo-comportamental de cultura,
massificado (Corin, 1993). E é justamente em que, “por um lado, a cultura fornece
essa massificação/universalização do sen- pontos de referência conceitual, emocio-
tido que um enfoque alternativo sobre o nal e expressiva que servem para dar sen-
complexo saúde/patologia-enfermidade- tido às experiência de enfermidade das

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FIGURA 3
Modelo de Bibeau/Corin

Nível Macro Nível Micro

Condições meta ou Dispositivos


História individual
patogênicos estruturantes

Global Local Individual

Estrutura social Desenvolvimento histórico local Círculo familiar e


de relação
Sistema/situação econômica Organização social

Poder político Valores culturais Exp. individual de Problema


doença concreto
Desenvolvimento histórico- Universo sócio-simbólico
social identificados
interpretados
reações

Condições estruturantes Experiências organizadoras S/ssp


coletivas

pessoas. Por outro lado, é [uma definição] plícito, mas são formados por um conjunto
comportamental na medida em que a cultu- variado de elementos imaginários e simbó-
ra provê sistemas de signos e significados licos, ritualizados como racionais (Almeida
nos quais condutas esperadas e formas de Filho, Corin e Bibeau, 1999). Para esses
sentir e expressar as coisas são codifica- autores, o conhecimento popular em torno
das” (Bibeau, 1993, p. 15). da problemática da enfermidade mental se
Nessa perspectiva, nas esferas de cons- articula e se expressa em termos de siste-
trução simbólica das comunidades, signos mas de ssp/sm construídos social e histori-
corporais e comportamentais são transfor- camente. De todo modo, as semelhanças
mados em sintomas de uma dada enfermi- entre a semiologia popular e a semiologia
dade mental, adquirindo significados cau- clínica psiquiátrica reforçam a perspectiva
sais específicos e gerando determinadas metassintética da teoria dos ssp/sm.
reações sociais, configurando, enfim, o que Evitando entrar na polêmica aberta por
Bibeau e Corin propõem denominar de Kleinman (Littlewood, 1990), esta aborda-
“sistema de signos, significados e práticas gem propõe a superação da dicotomia en-
de saúde mental” (ssp/sm). No geral, o tre o universal e o particular, na medida em
conhecimento popular localmente que ambas as aproximações são admitidas
construído é plural, fragmentado e até con- e valorizadas. A idéia básica é que existem
traditório. A semiologia popular e os mo- regularidades culturais universais que se
delos culturais de interpretação não exis- expressam em categorias plurais locais
tem como um corpo de conhecimento ex- (Inecom, 1993). Por trás dos múltiplos diag-

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nósticos, nomes de enfermidade e semio- Newton da Costa) – do que a uma classifi-
logias populares haveria um mesmo qua- cação hierárquica de categorias discretas,
dro nosológico com algum grau de univer- mutuamente exclusivas e estáveis,
salidade. Buscando uma nova abordagem tipificadas através de lógicas de consistên-
científica dos fenômenos de saúde mental, cia formal. Pelo contrário, as categorizações
a teoria dos ssp/sm pretende abrir um diá- dos sistemas ssp/sm são fragmentadas, con-
logo entre a particularidade dos casos con- traditórias, parcialmente compartilhadas e
cretos (definidos, identificados e reconhe- construídas localmente, organizadas em
cidos localmente) e a generalidade do múltiplos sistemas semânticos e praxio-
enquadramento científico da clínica ou da lógicos (estruturados em práticas), histori-
pesquisa (Almeida Filho, Corin e Bibeau, camente contextualizados e acessíveis so-
1999). Mesmo considerando que as mente através de situações concretas – even-
semiologias locais são organizadas de acor- tos, comportamentos e narrativas (Almeida
do com padrões culturais específicos, elas Filho et al., 1998).
seriam respostas a alterações básicas do Segundo Bibeau e Corin (1994), o
afeto, pensamento e comportamento e po- substrato antropológico da abordagem teó-
dem ser expressas, experienciadas, cons- rica dos ssp/sm pressupõe uma metodolo-
truídas e interpretadas de várias formas. gia a um só tempo fática, narrativa e
Os ssp/sm configuram, portanto, uma interpretativa.
semiologia popular contextualizada dos A vertente fática (ou factual) expressa-
problemas de saúde mental, conforme a se através da descrição de eventos, práticas
Figura 3. Para abordá-la de modo siste- e comportamentos relacionados a proble-
mático ou “científico”, os autores propõem mas de saúde mental pela população. Com
procurar além dos critérios diagnósticos relação às práticas, as expectativas, julga-
profissionais do modelo biomédico, do- mentos e reações não só respondem às ca-
cumentando-se os casos particulares que racterísticas objetivas dos signos e sinto-
concretamente constituem as variações mas mas são também guiados pelos signi-
culturais. Como essas variações culturais ficados, valores e normas que definem a
fazem parte de um dado contexto posição relativa dos atores no campo social
socioeconômico-político-histórico, elas e cultural, variável de acordo com os even-
devem ser interpretadas em suas relações tos e circunstâncias. Compreende as rea-
com o contexto (Corin et al., 1989; Bibeau, ções dos familiares, vizinhos, amigos e
1994; Bibeau e Corin, 1994; Almeida Fi- colegas de trabalho no que diz respeito a
lho et al., 1998). comportamentos e atitudes frente aos indi-
No processo cotidiano de definição de víduos tidos como doentes (Corin et al.,
categorias e reconhecimento dos casos 1989; Almeida Filho et al., 1998). Consi-
dessas categorias, as pessoas “comuns” (a deram-se tanto as reações positivas, como
comunidade para Bibeau e Corin) não ne- a normalização, quanto as reações negati-
cessariamente funcionam identificando vas, como a estigmatização, juntamente
categorias nítidas de pensamento, mas per- com a sua repercussão sobre as pessoas
cebendo semelhanças, analogias e estabe- próximas do enfermo mental.
lecendo uma continuidade entre os casos A vertente narrativa expressa-se atra-
de acordo com uma rica e flutuante varie- vés da retórica popular captada individual-
dade de critérios (Almeida Filho, Corin e mente ou no processo de descrição etno-
Bibeau, 1999). Essa categorização remete gráfica da população (Bibeau, 1993). Nes-
mais a modelos do tipo “protótipos de se aspecto, Corin destaca o papel da atri-
Lakoff” – resultantes de processos de family buição de sentido na construção da experi-
resemblance de Wittgenstein, por sua vez ência do adoecimento, enfatizando a im-
melhor compreendidos por sistemas alter- portância das narrativas individuais en-
nativos de lógica (como a lógica fuzzy de quanto via de acesso à rede de significados
Zadeh ou as lógicas paraconsistentes de que constroem a visão de mundo e às estra-

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tégias simbólicas e imaginárias que tecem reconhecer o conjunto dos discursos locais,
a relação dos pacientes com o mundo e penetrar nos múltiplos pontos de vista a
consigo mesmos (Corin, 1993). Tais narra- partir dos quais são construídas as interpre-
tivas e ações têm uma multiplicidade de tações, e identificar a pluralidade dos siste-
sentidos e escondem tanto quanto revelam mas de referência que servem de matriz
(Bibeau e Corin, 1995). Considera-se tam- interpretativa” (Bibeau, 1994).
bém que elas apresentam “lacunas”, vazios A interpretação de segundo nível vai
e silêncios que devem também ser inter- além das interpretações ditas “nativas”, na
pretados. Por outro lado, o conhecimento medida em que tem como objetivo traduzi-
popular localmente construído através de las para outro referencial – o da linguagem
narrativas coletivas apresenta uma dimen- científica, explorando as correlações com
são universal, um eixo organizador comum, o contexto sociocultural mais amplo
padrões culturais básicos que são coletiva- (Almeida Filho, Corin e Bibeau, 1999). Essa
mente compartilhados (Almeida Filho et interpretação tanto é influenciada quanto
al., 1998). Essa dimensão universal que influencia a interpretação de primeiro ní-
constitui os sistemas de ssp/sm se apresen- vel, podendo fazer emergir sentidos que
ta nas narrativas individuais sob a forma de escapam aos atores sociais, através de um
uma matriz implícita e estruturante, porém processo de contaminação das categorias
se mostra mais permeável à abordagem locais pelas teorias e conceitos dos pesqui-
etnográfica competente do discurso social sadores (Bibeau, 1994). Nessa dupla pers-
sobre a temática da saúde mental (Corin, pectiva, ao mesmo tempo em que há uma
Bibeau e Uchoa, 1993). submissão aos textos locais, buscando res-
A vertente interpretativa, por sua vez, peitar os glossários e percepções dos mem-
deve ser considerada em dois níveis distin- bros da comunidade, uma certa violência
tos: uma interpretação de primeiro nível, interpretativa a eles é imposta na medida
ou hermenêutica popular, componente do em que a produção do conhecimento cien-
próprio sistema de signos, significados e tífico inapelavelmente tende à universali-
práticas. Ela diz respeito às formas da co- dade (Bibeau e Corin, 1995).
munidade identificar, estruturar, interpre-
tar e explicar as práticas reativas frente aos Vejamos agora brevemente os compo-
casos problemáticos percebidos (Almeida nentes semiológico e hermenêutico da pro-
Filho, Corin e Bibeau, 1999). A interpreta- posta teórica em pauta.
ção popular permeia a descrição e o relato Com o objetivo de fundamentar con-
obtidos dos diferentes atores sociais sobre ceitualmente e viabilizar metodologica-
“as condições específicas de seu contexto mente a teoria dos ssp/sm, Bibeau, Corin e
cotidiano de vida” (Bibeau, 1994), de modo colaboradores buscam na lingüística pós-
que múltiplas leituras de um mesmo pro- saussuriana elementos que permitam uma
blema coexistam, algumas delas enfa- leitura polissêmica e intertextual das nar-
tizando elementos econômicos, políticos, rativas sobre a doença mental. Nesse sen-
sociais e culturais, e outras elementos indi- tido, partem da concepção peirciana de sig-
viduais ou familiares. no segundo a qual, conforme Corin (1993),
Dada a complexidade da realidade cul- os signos não possuem existência autôno-
tural, as diferentes interpretações dos su- ma, ou seja, eles recebem o valor de signo
jeitos oriundos do centro ou da margem da a partir do sistema de referência utilizado
sociedade refletem heterogeneidades soci- pelo intérprete. Assim, não só o sentido
ais, econômicas, étnicas e culturais, bem atribuído a um determinado signo, mas o
como a realidade concreta dos diferentes próprio signo deve ser contextualizado.
atores sociais que participam das diversas Segundo afirma Corin (1989, p. 463), “esta
situações. Para evidenciar a rica dimensão pluralidade da démarche semiológica não
social ou coletiva dos discursos produzi- concerne somente à interpretação plural do
dos em torno de casos concretos, “cabe sentido do que se observa; ele implica a

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referenciação mesma dos signos, que apa- constituem um elemento de ideologia
rece sempre relativa e localizada”. tangencia a proposta de Kristeva de privi-
Questionando a relação direta entre sig- legiar a dimensão intertextual na análise
no e “realidade” – o que, para os autores, semiótica. Kristeva (1969) aponta para a
permite romper com a concepção natu- necessidade de explorar a relação entre um
ralizante dos signos clínicos – Corin utili- texto e aquilo que o envolve. Para essa
za-se da formulação de Umberto Eco acer- autora, o texto é o produto do trabalho de
ca da mediação entre signos – paralelos, de um sujeito social e histórico sobre a língua,
oposição e semelhança – que constituem o ou seja, ele deve ser considerado em sua
sistema de representação do intérprete. É relação com a língua, a sociedade e a
nesse sentido que Eco traz a noção de ob- história. Para Kristeva (1969), todo texto
jeto imediato enquanto referente do signo, tem um contexto e constitui um mosaico de
aquilo a que o intérprete se refere ao utili- citações, absorções e transformações de
zar-se de um signo específico. Esse objeto outros textos, nos quais se incluem a história
imediato não é a “coisa” (que Eco, seguin- e a sociedade, de modo que toda leitura é
do Peirce, denomina de objeto dinâmico) intertextual.
mas se trata de algo constituído pelo siste- Nessa perspectiva, a interpretação opera
ma de representação do sujeito a partir dos retroativamente e aproxima-se da realidade
registros de signos disponíveis (apud Corin, estudada para só apreendê-la parcialmente
1993, p. 11). Isso quer dizer que o referente (Bibeau e Corin, 1995). Haverá sempre uma
do signo não é o objeto real existente no parcela do objeto significado impossível de
mundo enquanto uma realidade natural e ser referida e outra que permanece inconsci-
concreta, mas sim resultante da interação ente ou subjacente no processo herme-
de outros signos que este evoca e que con- nêutico. O método etnográfico pode ajudar
formam o sistema de representação. To- a produzir as inferências adequadas a uma
mando o referente do signo como produto interpretação de primeiro nível, porém não
do sistema de representação ele é, em últi- é suficiente para superar as dificuldades
ma instância, “formado” pela co-ocorrên- apresentadas pelos tropos, como as
cia de signos que se encontram em inter- metonímias e as metáforas, criadores de
relação. Daí a possibilidade de uma leitura deslocamentos e condensações que dificul-
efetivamente polissêmica, através de uma tam o aprofundamento dos níveis de análise
abertura na tarefa interpretativa. dos textos culturais da saúde-doença.
A teoria dos ssp/sm baseia-se também Com a finalidade de reforçar a vincu-
na semiótica de Barthes. Segundo esse lação do processo interpretativo à inter-
autor, interpretar um texto não significa textualidade, Bibeau e Corin (1995) utili-
atribuir-lhe um sentido, mas apreciar o plu- zam-se da perspectiva “enciclopédica”
ral que o constitui, através de processos postulada por Eco, que permite integrar
conotativos (Corin, 1993). A conotação é semântica e pragmática ao privilegiar os
resultante da relação entre dois sistemas de significantes situacionais. Estes referem-
significação, funcionando um como plano se àquilo que o sujeito quer dizer ao empre-
de expressão e o outro como plano de con- gar uma expressão, considerando-se a situa-
teúdo. É pela conotação que a sociedade ção da enunciação. Eco define o significante
desenvolve sistemas de segundos sentidos, situacional em oposição aos significantes
o que possibilita uma leitura plural do tex- convencionais, os quais “representam o que
to. Trata-se da via por onde o mundo pene- diz uma expressão conforme as conven-
tra o sistema lingüístico. Os significados ções e segundo uma série de definições que
da conotação são um fragmento da ideolo- se encontram catalogadas nos dicionários”
gia, na medida em que estão em estreita (Corin, 1993, p. 13). Mais do que as infor-
relação com a cultura, o saber e a história. mações semânticas, sintáticas e fonológicas
Segundo Corin (1993), a proposição de fornecidas pelos dicionários, uma enciclo-
Barthes de que os significados da conotação pédia informa acerca dos principais códi-

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gos e categorias-chave presentes em uma diferenças, sem valor vital positivo ou ne-
dada cultura, as quais estão presentes nos gativo. Para o diagnóstico da patologia, a
textos como espaços vazios que escapam à primeira e última palavra é a da clínica que,
leitura superficial. Para preencher os espa- apesar de utilizar métodos endossados pela
ços vazios e superar a ambigüidade básica ciência, não constitui, senso estrito, uma
do texto é necessário, para Eco, que o leitor disciplina científica. Nessa perspectiva, os
compartilhe os pressupostos culturais que pares de conceitos normal-patológico e
dão coerência a todos os textos produzidos saúde-doença não seriam simétricos ou
em uma dada cultura, através de uma leitu- equivalentes, na medida em que normal e
ra remissiva ou enciclopédica (Bibeau e patológico não configuram conceitos con-
Corin, 1995). trários ou contraditórios. O patológico não
significa ausência de normas, mas a pre-
sença de outras normas vitalmente inferio-
res, que impossibilitam ao indivíduo viver
CIENTIFICIDADE DO CONCEITO DE o mesmo modo de vida permitido aos indi-
víduos sadios. Dessa forma, o patológico
SAÚDE MENTAL: EPISTEMOLOGIA corresponde diretamente ao conceito de
doença, implicando o contrário vital do
VS. HERMENÊUTICA sadio. As possibilidades do estado de saú-
de são superiores às capacidades normais:
Cabe neste momento considerar a ques- a saúde constitui uma certa capacidade de
tão: haverá mesmo viabilidade no projeto ultrapassar as crises determinadas pelas
de uma teoria geral da saúde, tomando o forças da patologia para instalar uma nova
conceito de saúde como objeto-modelo de- ordem fisiológica.
terminado? Em síntese: constitui a saúde uma A abordagem foucaultiana representa
noção vulgar ou um conceito científico? De uma vertente historiográfica da teoria
fato, esta constitui uma questão filosófica canguilhemiana da tensão normal-patoló-
secular, quiçá do porte do paradoxo de gico, indicando como, a partir da segunda
Russell ou do problema de Hume. Descartes metade do século XIX, surgiram novos
indicou-a e depois Kant a sistematizou como padrões de normalidade no âmbito da me-
um problema de fundo (Canguilhem, 1990). dicina geral e mental, bem como no âmbito
Chamemo-la portanto de Problema de Kant. das nascentes ciências humanas – sociolo-
Para prosseguir, precisamos tomar um gia e psicologia. Nesse contexto, buscava-
posicionamento frente ao debate se intervir sobre o indivíduo humano, seu
Canguilhem versus Gadamer (epistemolo- corpo, sua mente, e não apenas sobre o
gia versus hermenêutica) com relação a este ambiente físico, para com isso normalizá-
problema, objeto da presente seção. lo para a produção. O homem, tal como a
Georges Canguilhem (1943 [1978]) máquina, poderia ser programado, posto a
afirmara que a medicina, cuja prática se funcionar e consertado. Listar as possibili-
baseia em diagnosticar, tratar e curar para dades normais de rendimento do homem,
reinstaurar a normalidade, não se interessa suas capacidades, bem como os parâmetros
pelos conceitos de saúde e doença porque do funcionamento social normal passou a
estes lhe parecem excessivamente teóricos. ser tarefa da medicina mental, da psicolo-
Por esse motivo, a definição médica de gia e das ciências sociais aplicadas. Nessa
normal provém em larga medida da fisio- perspectiva, os conceitos implícitos do jo-
logia, fundando uma positividade que im- vem Foucault (1954 [1976]; 1963) denun-
pede considerar a doença como uma nova ciam a sua adesão a uma definição de saúde
forma de vida. A abordagem canguilhe- como capacidade adaptativa (ou submissa)
miana não admite a patologia como um dado aos poderes disciplinares de corpos e atos.
objetivo, posto que os métodos da ciência Relembra Foucault (1963) que não por
positivista só podem definir variedades ou acaso a palavra normal, derivada do nomos

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grego e do norma latino (cujo significado é Freud, manteve-se uma estrutura antropo-
lei), surgiu no século XVIII, significando lógica de três termos – homem, loucura e
aquilo que não se inclina nem para a direi- verdade – que substituiu a estrutura binária
ta, nem para a esquerda, e que se conserva do século XVIII (verdade e erro, mundo e
num justo meio-termo. Embora a temática fantasma, ser e não-ser). O louco do século
da normalidade fosse tratada desde a Gré- XIX não era mais o insensato do século
cia antiga, esse termo só ressurgiu quando, XVIII, mas o alienado, sendo ao mesmo
com o movimento da Revolução Francesa, tempo a verdade e o contrário da verdade,
a burguesia funda uma nova ordem com a ele mesmo e outra coisa que não ele mes-
pretensão de funcionar como norma para mo. Do mesmo modo que, no século XIX,
toda a sociedade: a ordem econômica capi- a doença não era tida como a perda comple-
talista. Com isso, a medicina adotou uma ta da saúde, a loucura também não era con-
nova postura normativa. Com a concomi- cebida como perda total da razão, mas como
tante industrialização e complexificação do uma contradição na própria razão que ain-
trabalho, tornou-se necessário o estabele- da existia, daí a possibilidade de sua cura.
cimento de novas normas e padrões de O paradoxo da psicologia positivista do
comportamento. O rendimento e a saúde século XIX foi ter se viabilizado enquanto
individual passaram a ser indispensáveis protociência pela negatividade, ou seja,
ao bom funcionamento da nova engrena- psicologia da memória pelas amnésias, da
gem social. linguagem pelas afasias, da inteligência pela
Até o fim do século XVIII, afirma debilidade mental, sendo a verdade do ho-
Foucault (1963), a medicina referiu-se mais mem manifestada pela sua loucura.
à saúde do que à normalidade, apontando Na sua maturidade, Canguilhem (1966;
para as qualidades de vigor, flexibilidade e 1990) reafirma que a normalidade enquan-
fluidez que a doença faria perder e que se to norma de vida é uma categoria mais
deveria restaurar. A prática médica pré- ampla, que engloba a saúde e o patológico
Revolução Industrial destacava o regime, a como distintas subcategorias. Nesse senti-
dietética, enfim, toda uma regra de vida e do, tanto a saúde quanto a doença são nor-
de alimentação que o indivíduo impunha a mais, na medida em que ambas implicam
si mesmo. Já a medicina do século XIX se uma certa norma de vida, sendo a saúde
apoiava na análise de um funcionamento uma norma de vida superior e a doença uma
regular, normal, para detectar onde o indi- norma de vida inferior. A saúde deixa de se
víduo teria se desviado. A partir das refor- limitar à perspectiva da adaptação, não
mas da instituição pedagógica e da institui- sendo mais a obediência irrestrita ao mo-
ção sanitária, o termo normal passou a ser delo estabelecido. Ela é mais do que isso,
utilizado pelo povo, significando o estado na medida em que pode se constituir justa-
de saúde orgânica e o protótipo escolar, mente pela não obediência e através da
conforme o indício de que a escola normal transformação. De acordo com o Cangui-
era aquela que ensinava a ensinar. lhem (1966) da maturidade, a perda da
Especificamente no campo da saúde possibilidade de testar a saúde através da
mental, é interessante lembrar que Foucault doença é patológica. Saúde enquanto per-
(1972), realizando uma retrospectiva his- feita ausência de doença situa-se no campo
tórica sobre as transformações operadas no da patologia. Nessa perspectiva, o limiar
conceito de loucura, constatou que, do sé- entre a saúde e a doença é singular, ainda
culo XV até o século XVIII, a loucura foi que influenciado por planos que transcen-
definida pela sua dimensão negativa, a partir dem o estritamente individual, como o cul-
de uma lógica binária, como sendo o opos- tural e o socioeconômico. Em última ins-
to da razão: o desatino. A partir do século tância, a influência desses contextos dá-se
XIX, entretanto, sob a diversidade das for- no nível individual (Canguilhem, 1966;
mulações científicas de diferentes autores, 1990). Entretanto, tal influência não deter-
de Esquirol e Broussais a Janet, Bleuler e mina diretamente o resultado (saúde ou

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doença) dessa interação, na medida em que ca” que passa longe do alcance dos instru-
seus efeitos encontram-se subordinados a mentos, protocolos e aparelhos da ciência,
processos normativos de simbolização. pois se define como livre e não condiciona-
Canguilhem sistematiza suas reflexões da. Essa saúde filosófica recobriria, sem
sobre a saúde numa conferência pouco com ela se confundir, a saúde individual,
divulgada, ministrada na Universidade de privada e subjetiva. Trata-se, nesse caso,
Estrasburgo em 1988, conforme detalha- de uma saúde sem conceito, que emerge na
mos em outra oportunidade (Coelho e relação práxica do encontro médico-paci-
Almeida Filho, 1999). Após breve análise ente, validada exclusivamente pelo sujeito
etimológica, remontando às idéias hipo- doente e seu médico. O saber clínico se
cráticas, Canguilhem (1990) observa que, atribui a missão de aplicar uma tecnologia
ao longo da história, a saúde foi tratada e uma prática de proteção dessa saúde sub-
como se não pudesse ser apreendida pela jetiva, individual. Porém a saúde filosófica
razão e, por isso, não pertencesse ao campo não incorpora apenas a saúde individual,
científico. Detém-se particularmente no mas também o seu complemento, reconhe-
filósofo Kant que, como vimos, teria fun- cível como uma saúde pública, ou melhor,
damentado a posição de que a saúde é um publicizada.
objeto fora do campo do saber e que, por O conceito de saúde pública do filóso-
esse motivo, nunca poderia ser um concei- fo, referido a questões de base ética e me-
to científico, mas sim uma noção vulgar, tafísica (que resultaria por exemplo nas
popular, ao alcance de todos. noções de utilidade, qualidade de vida e
A idéia de que a saúde é algo individual, felicidade), distancia-se do conceito de
privado, singular e subjetivo tem sido re- saúde pública do sanitarista, complemento
centemente defendida pelo eminente filó- do conceito epidemiológico de risco, que
sofo Hans-Georg Gadamer (1993 [1996]), compreende o estado de saúde das popula-
um dos principais expoentes da hermenêu- ções e seus determinantes. Porém Can-
tica contemporânea. Segundo esse autor, o guilhem, epistemólogo de fina linhagem,
mistério da saúde reside em seu caráter reconhece a centralidade desse conceito
elíptico, enigmático. A saúde não se apre- científico e – fato digno de nota – concebe-
senta às pessoas, não pode ser medida, o restrito ao campo da saúde pública ou da
porque implica um acordo interior e não Higiene.
pode ser controlada por forças externas. Dessa maneira, Canguilhem (1990)
Gadamer chega a dizer que o mistério da opõe-se à exclusão da saúde como objeto
saúde equivale ao mistério da vida. Para do campo científico, antecipando uma po-
ele, a distinção entre saúde e enfermidade sição antagônica à de Gadamer. Ele consi-
não pode ser claramente definida. Trata-se dera que a saúde se realiza no genótipo, na
de uma distinção pragmática, a que só tem história da vida do sujeito e na relação do
acesso a pessoa que está se sentindo enfer- indivíduo com o meio, daí porque a idéia
ma e que, por não poder mais lidar com as de uma saúde filosófica não impossibilita
demandas da vida, decide ir ao médico. A tomar a saúde como objeto científico. En-
conclusão de Gadamer é singela: por seu quanto a saúde filosófica compreender a
caráter privado, pessoal, radicalmente sub- saúde individual, a saúde científica será a
jetivo, a saúde nunca poderá ser reduzida a saúde pública, ou seja, uma salubridade que
um objeto da ciência. se constitui em oposição à idéia de morbi-
O velho Canguilhem (1990) de certo dade. Sendo o corpo um produto de proces-
modo concordaria em que a saúde é uma sos complexos de intercâmbio com o meio,
questão filosófica na medida em que, tal na medida em que estes podem contribuir
como a filosofia, constitui um conjunto de para determinar o fenótipo, a saúde
questões no qual ela mesma se faz questão. corresponderia a uma ordem implicada tan-
Na conferência acima mencionada, propõe to na esfera biológica da vida, quanto no
o reconhecimento de uma “saúde filosófi- modo de vida (Canguilhem, 1990). Como

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produto-efeito de um dado modo de vida, a FIGURA 4
saúde implica um sentimento de poder en-
frentar a força da enfermidade, funcionan-
Modelo de Canguilhem (adaptado)
do assim como um seguro social implícito
contra os riscos.
Nessa altura do seu argumento,
Modos de Saúde e D-E-P
Canguilhem refere-se à Higiene, que se ini-
Saúde filosófica (valor)
cia como uma disciplina médica tradicio-
nal, feita de normas e possuindo uma am-
bição sociopolítico-médica de regulamen-
tar a vida dos indivíduos. A partir dela, a
saúde torna-se um objeto de cálculo e co- D E
meça a perder a sua dimensão de verdade Saúde social Saúde privada
particular, privada, passando a receber uma
significação empírica como conjunto e efei-
(ssp) P (sentimento)

to de processos objetivos. Insiste Saúde normal


Canguilhem (1990) que a saúde não é só a
(sinais & sintomas)
vida no silêncio dos órgãos, como afirmara Saúde
Leriche. Ela também é a vida no silêncio Salubridade individual
das relações sociais. Nessa perspectiva Saúde científica (conceito)
podemos inserir o discurso da saúde cole-
tiva tal como o conhecemos. Porém
Canguilhem (1990) defende que a saúde privada, subjetiva, inerentemente enigmá-
científica pode enfim assimilar também tica, justificaria desconsiderar a viabilida-
alguns aspectos da saúde individual, subje- de de uma abordagem científica da saúde.
tiva, filosófica, e então não apenas a doen- Entretanto, encontramos o paradoxo de que
ça e a salubridade (ou, numa terminologia umas das principais proposições de
mais atualizada, os riscos) devem ser estu- Gadamer (1993 [1996]) resulta crucial para
dadas pela ciência. A posição canguilhe- o avanço de uma formulação alternativa do
miana sobre essa questão encontra-se (po- objeto científico da saúde. Trata-se da idéia
bremente) esquematizada na Figura 4. de que a saúde é inapelavelmente totali-
É curioso observar que Canguilhem já zante. Apóia-se, como lhe é característico,
teria há muito uma posição firmada sobre em um argumento etimológico: segundo
essa questão. Por um lado, reconhece a ele, o vocábulo milenar germânico
cientificidade potencial do conceito de saú- gesundheit implica diretamente a idéia de
de pois, mesmo admitindo que esta não se integralidade ou totalidade (ganzheit). Por
referira a uma existência e sim a uma nor- essa via, a abordagem gadameriana do
ma com função e valor, “isto não significa “enigma da saúde” termina por abrir cami-
que saúde seja um conceito vazio” nho para uma abordagem sintética (ou
(Canguilhem, 1943 [1978, p. 54]). Por ou- metassintética, como veremos adiante) do
tro lado, o jovem Canguilhem não conse- conceito científico de saúde.
guia encontrar justificativa para o projeto O epistemólogo argentino Juan Samaja,
de uma ciência específica da saúde. Em suas autor do clássico Epistemología y Meto-
próprias palavras: “Se a saúde é a vida no dología (1994), caso raro de filósofo com
silêncio dos órgãos, não há propriamente formação e interesse em Saúde Pública, toma
ciência da saúde. A saúde é a inocência Canguilhem como ponto de partida para
orgânica. E deve ser perdida, como toda investigar as condições de possibilidade de
inocência, para que o conhecimento seja uma teoria científica da saúde. Segundo
possível” (Canguilhem, 1943 [1978, p. 76]). Samaja (1997, p. 278), a tese canguilhemiana
Na perspectiva gadameriana, radical- de que o conceito de saúde articula-se pri-
mente fenomenológica, a defesa da saúde mordialmente ao mundo biológico deve ser

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criticada, tanto quanto a tese foucaultiana Nesse percurso de construção, que
implícita que proporia um conceito de saú- assumidamente toma a saúde como um
de puramente social ou quiçá meramente valor social (e quase como um tipo-ideal),
discursivo (ideológico-político). Samaja destaca a sua natureza complexa,
Para Samaja (1997), o paradigma dos plural e, fundamentalmente, articuladora
Sistemas Complexos Adaptativos poderá de múltiplas determinações: “El objeto de
servir como base epistemológica para a las Ciencias de la Salud, en tanto objeto
superação da antinomia biológico-social, complejo que contiene sub-objetos de dife-
dadas as demandas conceituais já estabele- rentes niveles de integración (células,
cidas pelos desenvolvimentos e usos práti- tejidos, organismos; personas; familias;
cos da noção “saúde” nos discursos leigos vecindarios; organizaciones; ciudades;
e técnicos da modernidade. Em sua opi- naciones…), implica un gran número de
nião, é preciso conceber o conceito da saú- interfaces jerárquicas y enorme cantidad
de como um objeto-sujeito, com distintas de información, y en ellas cobran sentido y
faces hierárquicas, o que “permite dialetizar dimensión dramática, sus vivencias y
la salud/enfermedad y las prácticas que la postulaciones (verdaderas o falsas) sobre
constituyen, dejando lugar al reconoci- lo normal y lo patológico, lo sano y lo en-
miento de varios planos de emergência, en fermo, lo curativo y lo preventivo” (Samaja,
un sistema complejo de procesos 1997, p. 213).
adaptativos” (Samaja, 1997, p. 272). In- O autor deriva destas reflexões uma
corporando elementos da hermenêutica série de conclusões epistemológicas, den-
crítica contemporânea, esse autor propõe tre as quais ressalta a de que o campo te-
que o objeto-modelo “saúde” deve operar órico da saúde emerge da produção e for-
sob quatro determinações ontológicas es- mulação de um conhecimento “polito-
senciais: morfo” sobre a dialética normal-patológi-
a) Normatividade. O objeto saúde é nor- co. Para isso, o campo interdisciplinar das
mativo porque existe e consiste nas inter- ciências da saúde estrutura-se sobre pro-
faces hierárquicas dos sistemas dinâmi- duções cognitivas dos distintos objetos
cos sociais e biológicos, reais e ideais, subordinados, revelando diferentes planos
que conformam o mundo humano por de emergência e interfaces hierárquicas.
meio de processos de estabelecimento e A questão fundamental dessa investiga-
avaliação das normas de existência. ção epistemológica consiste justamente
b) Dramaticidade. O objeto saúde é dra- na identificação das interfaces estru-
mático em dois sentidos: primeiro, num turantes da totalidade multifacética do
sentido recursivo, na medida em que objeto-modelo “saúde”. Para Samaja
existe-consiste nos processos iterativos, (1997), as interfaces principais seriam:
reprodutores e transformadores das molécula // célula (categoria específica:
interfaces e dramáticos; segundo, num autopoiesis); célula // organismo (cate-
sentido conflitivo, posto que cada ordem goria: ontogênese); organismo // socie-
hierárquica conserva um alto nível de dade (categoria: acoplamento estrutural).
autonomia e, conseqüentemente, de Além disso, propõe considerar ainda as
vulnerabilidade em relação às interfaces. interfaces na esfera da sociedade, desdo-
c) Reflexividade. O objeto saúde é reflexi- bradas da seguinte maneira: biosso-
vo porque existe-consiste no campo dos ciedade // sociedade gentílica; sociedade
sentidos professados e das práticas vivi- gentílica // sociedade política. Em sínte-
das pela “conduta produtora-apropria- se, a contribuição de Samaja apresenta-
dora (especificamente humana)”. se como uma proposição crítica, porém
d) Historicidade. O objeto saúde possui uma intermediadora do pensamento de
natureza onto-sócio-genética: existe-con- Canguilhem, possibilitando a sua instru-
siste na dialética dos processos estrutu- mentalização como marco de referência
rais que recapitulam as gêneses passadas. para uma teoria geral da saúde.

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com a etnopsiquiatria clássica, a chave para
O OBJETO-MODELO DA SAÚDE a normalidade psíquica não é a adaptação
mas o ajustamento. Laplantine (1994) con-
MENTAL siderou que a capacidade de comunicação
simbólica e a solidariedade da cultura com
Tomando posição no debate sobre a os interesses de um ego capaz de
irredutibilidade da saúde ao escrutínio da maleabilidade e sublimações criadoras são
ciência, preliminarmente concordamos que critérios epistemológicos de normalidade.
não é impossível construir um conceito de Embora existam fenômenos ajustados à
saúde. Assumindo a saúde como um con- cultura e por ela considerados normais, tais
ceito científico, é importante ressaltar uma fenômenos não implicam, necessariamen-
outra proposição de Canguilhem (1968) te, normalidade mental. Nesse sentido, a
segundo a qual os objetos conceituais não normalidade tem pouca relação tanto com
possuem fronteiras epistemológicas e apre- a inadaptação, quanto com a adaptação
sentam uma relativa independência do sis- sociológica à norma, ou seja, aos compor-
tema teórico a que pertencem. Cada con- tamentos valorizados pela cultura. Isso sig-
ceito tem a sua história: forma-se numa nifica que ela pode coincidir ou não com a
determinada época e vai sendo retificado média e que não converge, necessariamen-
(e reificado) ao longo do tempo. Em conse- te, ao padrão cultural geral, podendo tam-
qüência, o conceito não necessariamente bém expressar os padrões das subculturas
se limita ao interior de uma única ciência, e dos seus indivíduos.
mas em geral segue distintas filiações con- Com a nova psiquiatria transcultural,
ceituais em ciências diferentes. Além dis- especialmente preocupada com os efeitos
so, pode nesse percurso ampliar suas rela- culturais das heterogeneidades estrutu-
ções com saberes não-científicos e com rantes das sociedades ditas desenvolvidas,
práticas sociais, políticas e ideológicas. aprendemos que, embora haja uma tendên-
A concepção da saúde enquanto ausên- cia para que os problemas concernentes à
cia de doença continua a ser reafirmada pela saúde-doença sejam resolvidos e decididos
prática da medicina contemporânea e pela pela ciência, eles envolvem uma multipli-
antropologia médica. Ademais, como vi- cidade de vozes a serem consideradas. Um
mos, ela foi ampliada pela perspectiva da mesmo signo pode ter diferentes significa-
normalidade com doença defendida pela dos a depender do seu contexto; um signo
epistemologia canguilhemiana. Os mode- de anormalidade perante a nosologia mé-
los de doença e os modos de adoecer são dica pode indicar normalidade no contexto
relativamente pautados pela patologia e do próprio indivíduo ou de seu grupo soci-
pelos processos sociais de normalização, al. Além disso, anomalias e alterações no
contrastando com as inumeráveis e criati- mais estrito senso biológico, signos de pa-
vas maneiras de estar sadio. Conclusão tologia, sintomas considerados mórbidos,
provisória: a saúde deve ser tomada como possuem múltiplos sentidos e ocorrem, com
um conceito aberto, no sentido de que os freqüência inusitada, em indivíduos tidos
signos, significados e práticas mostram como normais.
grande variação, pois não é possível um Com relação aos signos e significados
padrão unificado de normalidade para a de saúde mental propriamente, estes não se
saúde. A saúde não se reduz a um único reduzem a uma leitura pela negativa da
modelo explanatório na medida em que psicopatologia, de fato requerendo uma
diversas formas de viver, sejam histórica, ampliação de sentido somente possível pelo
cultural ou individualmente determinadas, recurso à semiologia e à hermenêutica.
apresentam-se como possibilidades distin- Canguilhem já propunha que a saúde impli-
tas de normalidade. ca em poder desobedecer, em produzir ou
Trazendo a discussão sobre o conceito acompanhar uma transformação, adiantan-
de saúde para o campo mental, de acordo do que a saúde estaria relacionada à forma

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pela qual o indivíduo reage aos eventos de depressão é mais que uma “doença” no sen-
vida ou interage nos modos de vida. Entre- tido clínico, mais que um “transtorno” no
tanto, a excessiva generalidade e reduzida sentido estrutural psicopatológico, mais que
precisão de formulações desse tipo mais um “risco” no sentido epidemiológico, mais
revelam limitações intrínsecas a uma racio- que uma “morbidade” no sentido da saúde
nalidade originariamente positivista do que pública, mais que um “processo complexo”
contribuem para a construção do objeto- no sentido socioecológico, mais que um
modelo “saúde” ou para a elucidação do “protótipo” no sentido “semiológico”, e não
enigma da saúde (parafraseando Gadamer). se reduz a uma “forma”, componente do
Por outro lado, o grau de sofisticação e imaginário social. A malaise chamada “de-
sutileza revelado pela exploração semioló- pressão” é isso tudo, mais que tudo isso e,
gica dos conceitos de doença e correlatos mais ainda, incorpora a transformação (a
(levada a cabo pela linhagem Kleinman- historicidade, não podemos esquecer) de
Good-Young) parece indicar uma frutífera cada uma dessas faces de um objeto-modelo
via de acesso aos conceitos equivalentes de totalizado. Em síntese, a depressão não pode
saúde. A série semântica patologia-doen- ser compreendida através do somatório das
ça-enfermidade poderá ser ampliada e tor- explicações parciais com base em cada uma
nada ainda mais específica, o que certa- das suas manifestações particulares.
mente permitirá um tratamento conceitual Começamos por ilustrar o objeto sinté-
competente para a tão falada porém pouco tico “saúde mental” através de uma catego-
contemplada polissemia ou multiplicidade ria nosológica de doença mental… Para-
de sentidos do conceito de saúde. Nesse doxo? De modo algum, se bem compreen-
sentido, consideremos o conjunto de pres- demos Canguilhem. Porém o problema de
crições sobre o dever-ser do objeto com- base permanece: como efetivar a constru-
plexo da saúde mental, conforme desdo- ção deste objeto tão plural?
bramos em seguida à guisa de conclusão. Uma importante tendência da filosofia
Em oposição ao caráter modular e frag- da ciência contemporânea assinala a possi-
mentado da “doença mental”, o objeto- bilidade e necessidade de uma epistemolo-
modelo “saúde mental” só se define em gia da figura enquanto dispositivo de cons-
sua configuração inteira, já que tem trução de objetos científicos, com implica-
facetas, acidentes, zonas de sombra, ân- ções para o projeto de construção do con-
gulos ocultos, sendo que a mirada de cada ceito de saúde mental enquanto objeto
um desses ângulos de fato não dá acesso totalizado e complexo. Nessa perspectiva,
ao conjunto de propriedades definidoras a investigação epistemológica se constitui-
deste objeto. Por esse motivo, devemos ria como uma certa “cartografia” dos siste-
pensar o conceito de saúde mental como mas de representação de um dado objeto.
“integrais de saúde-enfermidade-cuidado” Adotando essa perspectiva de base e apli-
(Almeida Filho, 1997). Os integrais de cando “em abstrato” algumas das tendên-
saúde-enfermidade-cuidado podem ser cias de mudança paradigmática presentes
referenciados tanto como tecidos de pon- no panorama científico atual, poderemos
tos sensíveis ou metáforas de representa- avançar na configuração de um certo obje-
ção social de enfermidades como estrutu- to-modelo ontológico por referência aos
ras epidemiológicas, cadeias de causali- fenômenos da saúde-doença mental.
dade ou relações de produção de risco. A O princípio fundamental dessa proposi-
lógica que predomina nesta família de ção é a busca da integralidade da “figura
objetos possíveis é uma lógica múltipla e saúde mental” proposta, o que implica
plural que não se expressa de maneira referenciar os fenômenos da saúde-doença
codificada, mas que somente se pode re- mental por meio de um objeto-modelo
conhecer por seus efeitos. totalizado. Nessa perspectiva, o objeto pode
Façamos um exercício de aplicação des- assumir a forma de um “integral”. É bem
sas idéias no campo da saúde mental. A verdade que objetos-modelos parciais têm

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sido abundantemente construídos no campo de uma conceitualização ainda provisória
das ciências biológicas e das ciências soci- mas de grande potencial. Trata-se dos sis-
ais, dentro de uma perspectiva em geral temas que propomos denominar de “a-li-
denominada de “estruturalismo”. No que nos neares” ou objetos mais propriamente me-
interessa mais de perto, essa abordagem tafóricos, figuras em que o borramento dos
intervém no objeto-modelo de base confi- limites entre elementos e intercontextos
gurando “estruturas” resultantes de “altera- dificulta qualquer tentativa de formalização
ção”, por sua vez resultantes de “processos (Capra, 1995). Os dispositivos heurísticos
subordinados estruturais”. Aqui, sim, a ló- que têm sido desenvolvidos para tal, que
gica dedutiva tem praticamente dominado apresentam melhor potencial de uso, são
tais modelos topológicos hierarquizados. os “protótipos” de Lakoff (1993). Ainda
Na instância dos sistemas dinâmicos, não se estabeleceram critérios mais firmes
onde se configuram os modelos heurísticos para o tratamento desses novos objetos no
que se definem pela sensibilidade ao pró- campo lógico. Enquanto isso, indica-se a
prio movimento, os produtos de tais mode- “lógica paraconsistente” (Costa, 1989),
los são redes de processos que produzem traduzida no esquema como “dialética do
processos. A lógica predominante nesses tipo II”, incorporando as possibilidades de
objetos-modelo é a lógica que podemos tratamento das ambigüidades e das incon-
chamar de “dialética do tipo I”, especial- sistências. Em outra vertente, abre-se a
mente aquela que se preocupa com as leis possibilidade de desenvolvimento de uma
gerais do movimento e das transformações. abordagem mais abertamente metafórica
A faceta do objeto integral correspondente para a construção dessa faceta dos objetos
a esta instância/domínio assume a forma complexos, ou melhor, dos objetos-mode-
geral de “sistemas de saúde-doença-cuida- lo integrais, prescindindo portanto de ex-
do”, produto de modelos sistêmicos essen- pressões de ordem formal.
cialmente iterativos, interconectados, Finalmente, chegamos à instância dos
fractais (no sentido de que cada elemento processos hermenêuticos, produtores de
configura em si uma rede de processos de objetos-modelo sintéticos, imagens, figu-
nível inferior) (Krieger, 1994). ras (em um sentido wittgensteiniano). No
No domínio da generalização, os mo- domínio do particular, considera-se a pos-
delos explicativos próprios dessa instân- sibilidade da “emergência”, como engen-
cia se configuram em torno de matrizes de dramento do novo, do que efetivamente
possibilidades, tendo como produto for- resulta da síntese para além das múltiplas
mas lógicas verdadeiras. O seu efeito so- determinações. No domínio da generaliza-
bre uma das faces do objeto “integrais de ção, trata-se dos processos praxiológicos
saúde-doença-cuidado” pode ser expres- de construção do cotidiano (em um certo
so como morbidade, noção bem mais apro- plano parcial). Em ambos os casos, propo-
ximada à concepção do senso-comum de mos considerar uma forma elementar de
risco enquanto ameaça-perigo potencial. determinação, até o momento mais famili-
A potencialidade (ou virtualidade) desse ar ao campo da estética, que se chama
risco será dada pela operação de uma ló- “anamorfose”, capaz de expressar de modo
gica que chamaríamos de “quasi-deduti- incipiente a transição da práxis e da emer-
va”, produtora de possibilidades de ocor- gência às imagens-figuras.
rência de eventos, “deduzidas” da compi- Desnecessário dizer quão insuficiente
lação de conhecimentos produzidos pela tem sido o tratamento dessa face do objeto
aplicação dos modelos de explicação “integrais de saúde-doença-cuidado” na
determinante aparentados. prática científica contemporânea. De todo
O tratamento dos modelos desta instân- modo, é possível avançar uma definição
cia equivalentes ao domínio da generaliza- “imaginária” da saúde mental nesta pers-
ção apresenta grandes dificuldades, que só pectiva: formas metassintéticas, condensa-
recentemente têm sido abordadas através ção de instâncias, domínios, níveis, lógi-

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cas, modelos, produtos, objetos. Saúde- tensa desigualdade social, como a socieda-
doença mental será portanto uma imagem, de brasileira contemporânea, essa proble-
uma configuração, uma dessas curiosas mática se reveste ainda de maior centrali-
formas que, em conseqüência do que refe- dade. Nesse caso, as reflexões de Good e
rem no mundo concreto, somente fazem Good, operadas teoricamente pelo concei-
sentido como uma Gestalt, como um inte- to de ssp/sm de Bibeau e Corin, conside-
gral. Afinal, a história etimológica do ter- rando a pluralidade de vozes oriundas da
mo “saúde” revela uma intrigante linha- multiculturalidade e das heterogeneidades
gem, com origem no radical grego antigo de classe, gênero e geração, contribuem para
holos (todo), através da transição s’olos - compreender o processo de constituição de
salus - salut - salud - saúde (Rey, 1993). um imaginário social sobre os fenômenos
da saúde mental, no âmbito restrito de uma
definição coletiva de doença.
COMENTÁRIOS FINAIS Os outros componentes do modelo an-
tropológico de saúde-doença, patologia e
Para concluir, precisamos minimamente enfermidade, padeceriam, por razões distin-
indicar as conseqüências dessa viagem tas, de uma certa vulnerabilidade a proces-
epistemológico-teórica para as práticas sos de intervenção prática ou tecnológica.
concretas de saúde mental. Por um lado, o conceito de transtorno men-
A proposta kleinmaniana já demons- tal, com base na psicopatologia biomédica,
trava uma preocupação eminentemente clí- apresenta um alto grau de estabilidade como
nica e, nesse sentido, toma como objeto modelo explicativo e uma restrita apli-
privilegiado de discussão a relação médi- cabilidade a contextos coletivos. Por outro
co-paciente. Modelos explicativos diver- lado, a subjetividade radical implícita na
gentes podem levar a problemas na con- noção de enfermidade, consoante com as
dução clínica dos casos, comprometendo teorias psicodinâmicas, remete ao impasse
a adesão do paciente ao tratamento com gadameriano da irredutibilidade da experi-
conseqüente menor eficácia e insatisfação. ência de doença mental, tanto a processos
Isso ocorre porque a medicina moderna comunicativos característicos do agir social
diagnostica e trata a doença, enquanto os quanto a modelos explicativos sistemáticos
pacientes sofrem de enfermidade, o que possibilitadores de uma tecnologia clínica.
estabelece um problema “comunica- Pelo que aprendemos da obra-mestra de
cional” no encontro entre médico e paci- Canguilhem, os conceitos de normalidade
ente. Os pacientes podem não aderir ao e de patologia também teriam pouca utili-
tratamento porque não entendem ou não dade no sentido de uma “engenharia social
concordam com as condutas médicas, o da saúde” (e da saúde mental em particu-
que leva a uma menor efetividade da in- lar). Nesse aspecto, Samaja (1997) já cor-
tervenção clínica (Kleinman, 1992). Allan retamente criticava a excessiva ou quiçá
Young, como vimos acima, acrescentaria exclusiva referência canguilhemiana aos
que a sociedade (ou a comunidade, caso âmbitos subindividual e individual e ao
se opte por um referencial mais discurso biomédico. Não obstante, a “teo-
culturalista) lidaria com a dimensão da ria geral da saúde” do velho Canguilhem,
doença/sickness, o que complexifica mais indicando uma certa “saúde filosófica” em
ainda este problema de comunicação. oposição a um conceito restrito de “saúde
Temos aí um primeiro dilema crucial pública”, certamente abre perspectivas para
para a operação dos sistemas de cuidado à uma definição mais precisa dos objetos de
saúde mental, na medida em que cada um intervenção dos chamados projetos comu-
dos key-players envolvidos “visualiza” dis- nitários de saúde mental.
tintas dimensões do complexo saúde-do- Resta-nos avaliar algumas repercus-
ença-cuidado, irredutíveis entre si. Em so- sões pragmáticas das explorações teóri-
ciedades complexas caracterizadas por in- cas acima expostas.

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Em primeiro lugar, não podemos dis- da doença-sickness em nossa sociedade. No
cordar de que reduzir a “carga de doença entanto, todos esses movimentos ainda se
mental”, diminuindo o volume de mor- baseiam em uma concepção da saúde men-
bidade pela via do tratamento e reabilita- tal enquanto mera ausência de doença
ção de casos, resultará em melhores índi- neuropsiquiátrica ou de transtornos compor-
ces de saúde mental no sentido da salubri- tamentais. Enfim, no que se refere ao plane-
dade. Buscando superar o chamado mode- jamento na área da saúde mental, não se deve
lo hospitalocêntrico, com grande potencial absolutamente confundir programas ou ati-
de iatrogenia e estigmatização social, a vidades de assistência psiquiátrica ou de
expansão de cobertura e organização da rede prevenção de transtornos mentais com ações
psiquiátrica e a melhor qualificação e de promoção da saúde mental.
efetividade dos serviços assistenciais têm Situa-se aqui a importância crucial da
sido as estratégias de escolha nessa pers- conceituação positiva (mesmo que provi-
pectiva. Entretanto, esse modelo “comuni- sória e limitada) de “saúde mental”, em
tário” da medicina mental traz pelo menos todos os seus níveis, instâncias e dimen-
dois perigos potenciais: a) uma tendência à sões. Desde a normalidade no nível
psiquiatrização da vida social – deslocan- subindividual (subsidiando uma certa Psi-
do o papel das redes de suporte social e os quiatria Molecular) ao estado de saúde
dispositivos simbólicos de promoção da mental no nível individual (configurando
“saúde cultural” (processo desde há muito uma “síndrome de bem-estar”) e daí a um
já analisado por diversos autores, confor- conceito ampliado de saúde mental como
me Pinheiro e Almeida Filho, 1981); e b) expressão de saúde social. Este último pode
um incremento tecnológico e uma expan- ser tomado em duas vertentes: por um lado,
são de cobertura – resultando em um com- como situação de “salubridade psicos-
prometimento cada vez mais profundo de social”, correspondendo ao contradomínio
escassos recursos públicos, na medida em do conceito epidemiológico de “morbidade
que, conforme alertado pelos economistas psiquiátrica”. Por outro lado, como com-
da saúde (Williams, 1985), trata-se de um plexo integral e articulado de forças posi-
setor social portador de uma impressionante tivas no sentido da constante superação dos
elasticidade de demanda por serviços, ver- limites da normalidade.
dadeiro “poço sem fundo”. Em suma, transitamos da compreensão
Nas sociedades multiculturais que pra- da experiência da enfermidade mental à da
ticamente definem o que se vem chamando patologia neuropsiquiátrica, daí ao trata-
de pós-modernidade, o pluralismo étnico, mento da doença e à prevenção dos riscos,
a exclusão social, a brecha geracional, a e finalmente apontamos para a promoção
desigualdade de gênero, e tantos outros da saúde. Agora então o conceito de “saú-
processos heteronômicos, indicam a neces- de” se torna necessariamente objeto de uma
sidade de aparelhos de cuidado psiquiátri- perspectiva transdisciplinar e totalizadora,
co culturalmente sensíveis, a fim de pelo fora do âmbito dos programas de assistên-
menos aumentar a resolutividade da sua cia. Objeto-modelo construído por meio de
ação. Nesse sentido, dentro do horizonte práticas trans-setoriais, a saúde mental sig-
lógico-epistemológico tentativamente nifica um socius saudável; ela implica
explicitado no presente ensaio, não será emprego, satisfação no trabalho, vida coti-
desejável desenhar e planejar programas diana significativa, participação social, la-
de assistência em saúde mental a partir de zer, qualidade das redes sociais, eqüidade,
modelos baseados no conceito restrito de enfim, qualidade de vida. Por mais que se
transtorno mental ou em referenciais de decrete o fim das utopias e a crise dos va-
enfermidade enquanto dimensão idiossin- lores, não se pode escapar: o conceito de
crática do sujeito. Para aumentar a efetivi- saúde mental vincula-se a uma pauta
dade da assistência psiquiátrica, será preci- emancipatória do sujeito, de natureza
so conhecer em profundidade as dimensões inapelavelmente política.

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