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MANUEL ARRUDA
DA CÂMARA:
A REPÚBLICA DAS
LETRAS NOS SERTÕES
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Se a morte me surpreender antes que eu
complete a História natural do meu país,
a levarei atravessada na garganta
M. Arruda da Câmara, 1799
Durante o Iluminismo, a maior parte das pesquisas sobre animais, A história natural no século XVIII abrangia a descrição dos
vegetais e minerais se deu em torno de grandes problemas chamados três reinos da natureza e também o conhecimento de
relacionados à administração do Estado ou a áreas com potencial sua utilidade. Diversos governantes incentivaram pesquisas sobre
comercial elevado: salitre, cordoaria, tinturas e plantas produtos da América portuguesa, mas houve um incremento
medicinais, principalmente a quina. O semiárido, no Século das dessas atividades a partir do reinado de D. José I e a atuação do
Luzes, não era em si um objeto para as ciências. A principal ministro esclarecido Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês
atividade econômica que se exercia aí era a criação de gado. de Pombal. De fato, a segunda metade do século XVIII marca,
No entanto, a documentação de época indica que muita coisa já na Europa, o desenvolvimento acelerado da presença da ciência
se sabia sobre esses Sertões, por parte dos agentes da Coroa. e da técnica como ferramenta essencial para o funcionamento
É claro que uma massa grande de informações se perdeu e que dos Estados. A expertise de médicos, cirurgiões, engenheiros,
uma parte bem pequena dos saberes indígenas e sertanejos arquitetos e naturalistas é cada vez mais valorizada. No caso de
chegou a ser sistematizada. Ainda assim, as ciências e as artes Portugal, era comum recorrer a especialistas estrangeiros quando
estiveram presentes nas Caatingas e foram agentes importantes havia necessidade de algum tipo de ação mais específica. Foi
de transformação da região. o que aconteceu nas comissões para demarcação de fronteiras,
decorrentes dos Tratado de Madri (1750) e Santo Ildefonso
(1777), que contaram, por exemplo, com o astrônomo Giovanni
Angelo Brunelli e o arquiteto Antonio Giuseppe Landi, ambos
bolonheses. Para além dos trabalhos de estabelecimento dos
limites portugueses, a presença de técnicos e especialistas
oriundos de outras regiões da Europa, com grande representação
italiana, foi um traço característico dos governos ilustrados.
Domenico Vandelli foi chamado de Pádua pelo futuro Marquês
de Pombal para dirigir o jardim botânico da Ajuda e ministrar
aulas em Coimbra. Carlo Antonio Napione foi para Portugal
como engenheiro militar especializado em metalurgia e acabou
atuando na América, tendo sido o primeiro diretor da fábrica de
pólvora da Lagoa Rodrigo de Freitas.
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No que concerne à história natural, a atuação de Vandelli em
Coimbra e em Lisboa alterou significativamente o tipo de
formação dos naturalistas. Ele preparou diversos especialistas que
atuaram no reconhecimento e catalogação das produções dos
territórios lusos da América e da África, realizando as chamadas
“viagens filosóficas”.
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ARRUDA DA CÂMARA:
UMA FILOSOFIA TROPICAL
acima: tatu-de-rabo-mole,
Cabassous unicinctus
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Arruda da Câmara era um homem do Sertão. As datas e locais de A tese de Arruda da Câmara defendida na Faculdade de Medicina
seu nascimento e morte ainda não foram totalmente esclarecidos. de Montpellier versava sobre as influências do oxigênio na
O botânico Francisco Freire Allemão, que estudou sua obra e economia animal. Seu principal argumento é que o oxigênio é o
pretendia escrever sua biografia, registrou a data de 1768 para seu agente responsável pela diversidade das cores da espécie humana.
nascimento. Seu maior biógrafo, José Antônio Gonsalves de Os negros, segundo ele, nasceriam brancos e passariam
Mello, registra o ano de 1752, com dúvidas. Parte da gradualmente a uma cor mais escura, pelo contato com o ar. Para
historiografia optou por 1766, de acordo com sua inscrição na provar essa afirmação bastaria observar que a pele que se esconde
Universidade de Coimbra, o que parece ser o mais correto.2 O sob o prepúcio dos homens negros é branca. Assim, a menor ou
local de seu nascimento foi provavelmente na jurisdição da Vila maior quantidade de oxigênio, decorrente da temperatura e da
de Pombal,3 da qual seu pai foi capitão-mor. Sua família tinha intensidade da luz solar, e qualquer outro fenômeno que interfira
terras pelo Cariri paraibano, Piancó e Pombal. Em na atuação do oxigênio, como a alimentação, são responsáveis
correspondência oficial, enviada ao ministro D. Rodrigo, que pela cor da pele. Ele acreditava que os pulmões produziam o
ordenava que se buscassem os manuscritos de Câmara, há “calórico” de que os seres humanos necessitam. Os indivíduos
indicação de suas três residências: a vila de Goiana, o Engenho do que vivem em regiões onde o ar é frio ou rarefeito têm, segundo o
Abiaí e o sertão do Piancó.4 Essas propriedades serviam naturalista, pulmões maiores para abarcarem mais oxigênio e
provavelmente de pouso para suas excursões. A maior parte de suprirem a falta de calor. Além disso, os habitantes dos climas
suas observações foi feita no interior. Ao descrever o “tucum”, frios chegariam ao ponto de terem que se vestir com peles de
uma espécie de palmeira de Pernambuco, o naturalista explicou, animais para poderem sobreviver. A conclusão de Câmara é que a
em texto publicado em 1810: cor “natural” dos homens não seria a branca e sim a daqueles que
habitam as regiões intertropicais, os quais podem sobreviver sem
habitando eu no interior do Sertão, e não vindo à beira-mar onde esta
o auxílio de artifícios.
planta habita, senão de três em três anos, não tive ocasião de a encontrar
em flor.5 Como argumento de autoridade, Câmara cita uma tese de um
estudante de Lineu, de 1763, sobre vegetais comestíveis:
A morte de Câmara se deu em 1810 ou 1811, ainda relativamente
jovem. Segundo um depoimento recolhido por Francisco Freire Ao homem, saído inteiramente nu da natureza, parece com toda a
Allemão, o naturalista era “homem agigantado e bem apessoado; verossimilhança terem sido destinadas as regiões tropicais, mais quentes,
de trato afável. Nunca veio ao Rio de Janeiro”.6 ainda que por meio de sua indústria e sagacidade fizeram as regiões mais
frias habitáveis. O eterno estio tropical faz crescer plantas verdes, flores
Inicialmente, Câmara seguiu a carreira eclesiástica,7 mas acabou
e frutos por todo o ano, e neste seu lugar natal, por conta disso, fez o
por tornar-se um naturalista, com formação em Coimbra
homem se alimentar das plantas.8
e em Montpellier, onde cursou medicina entre 1790 e 1791.
Aí, teve oportunidade de travar contato com as ciências francesas Câmara opõe-se, desse modo, a autores consagrados da época das
do final do século XVIII, que passavam por um momento Luzes, como Buffon e Valmont de Bomare,9 que, segundo ele,
de intensa renovação. Ele estudou com o médico e químico levados pelo amor a sua pátria, consideravam o branco a cor
francês Jean-Antoine Claude de Chaptal (1756-1832), um dos natural dos homens. Para Buffon, como é sabido, a habitação
principais expoentes da “nova química” na França. Seus Éléments mais adequada à espécie humana seria um clima temperado, entre
de chimie (1790), foram traduzidos em inúmeras línguas e 40 e 50 graus de latitude. Segundo este autor,
circularam amplamente pela Europa e Américas. Em Portugal,
é também nesta zona que se encontram os homens mais belos e mais bem
parte dessa obra foi traduzida em 1798, e a edição em castelhano
feitos; é neste clima que devemos tomar o modelo ou a unidade com a
circulava igualmente. Chaptal, que era discípulo de Lavoisier, se
qual contrastar todos os demais matizes de cor e beleza.10
notabilizou pela aplicação da química à indústria e à agricultura.
Ele chegou a ser ministro do Interior entre 1800 e 1804
e engajou-se em diversos projetos de ciência aplicada, como Não se sabe com que intuito Câmara confeccionou
é o caso da produção de açúcar de beterraba e de vinhos, essas imagens, mas provavelmente trata-se de um
caderno de estudos. O naturalista desenhava
além da criação de ovinos para produção de lã, da administração
animais com os quais tinha contato frequente,
de cemitérios segundo princípios higiênicos e da realização
como os escorpiões e as cigarras.
de estatísticas. Na dupla de páginas seguinte, um desenho
inacabado de urubu-rei (Sarcoramphus papa)
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As concepções filosóficas de Câmara sobre a natureza humana e
a valorização dos habitantes das regiões tropicais acompanharam-
no ao longo de sua vida. Elas reaparecem em memória sobre
a utilidade dos jardins e também em sua famosa Memória sobre
a cultura dos algodoeiros, escrita em 1797. Para ele, por exemplo,
a tecelagem não deve ter sido das primeiras artes a serem
inventadas, já que no início os panos não eram necessários para
esquentar o corpo, pois os primeiros homens certamente viviam
em um clima ameno. Filosoficamente, Câmara relativizou
o próprio pudor:
O pudor, que hoje nos parece tão natural em um e outro sexo, não podia
decidir o homem a inventar, nem dar o mínimo para a invenção da arte
de tecer; porque a maior parte do povo selvagem, que vive nos bosques
do Brasil em um estado bem vizinho ao natural, anda inteiramente nua:
eu vi na Aldeia de S. Gonçalo na minha viagem do Piauí, cento e sessenta
índios, Gamelas de nação, desentranhados há pouco daqueles vastos
matos, andarem inteiramente nus, e tão despojados, que se apresentavam
assim mesmo à maior publicidade, tanto mulheres, como homens.11
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A CIÊNCIA ÚTIL
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Segundo análise recente,15 o naturalista teria realizado nessa D. Rodrigo foi lembrado posteriormente pelo naturalista com um
memória “uma das mais completas caracterizações da catinga”, gênero vegetal novo: Linharea. Em seu Discurso sobre a utilidade
que seria um dos terrenos apropriados à cultura do algodão, da instituição de jardins, publicado no Rio de Janeiro, em
além da “vargem”. Na definição de Câmara: 1810, Câmara indica duas espécies do gênero, descritas em sua
Centúrias, manuscrito desaparecido: a canela-do-mato (Linharea
Catinga, em todo o rigor do termo, entende-se por um terreno cheio
aromatica) e a catinga branca (Oreodaphne tinctoria (Arruda)
ou coberto de uma espécie de cássia, não descrita ainda por Lineu,
Rosenthal). A primeira espécie se caracteriza por ter folhas e
a que eu tenho dado o nome de moscata; mas lato modo também
casca cheirosas e abunda nos “tabuleiros na extrema da Capitania
se chama catinga um terreno coberto de outro qualquer arbusto baixo,
da Paraíba com a do Ceará na ribeira do Pinhancó e também a
como é o marmeleiro, velame, Broterea velame, e tem-se generalizado
encontrei no Piauí”.18 Já a segunda, se encontra “nas fraldas das
tanto este nome que até chamam hoje catinga, em algumas partes, tudo
serras e margens dos riachos dos Sertões de Pernambuco,
o que não é vargem, inda que seja coberto de mata virgem.16
Paraíba e Ceará”. Ela fornece uma tinta amarela que – acredita
o naturalista – poderia ser fixada em panos de algodão.
Depois das vargens, típicas das beiras de rios e riachos, a catinga
Além disso, teria propriedades medicinais. O novo gênero foi
seria a mais apropriada para o plantio do algodão, pouco
chamado Linharea,
inferior, com exceção do que Câmara chamava de catinga de
marmeleiro, terreno que só deveria ser usado na impossibilidade para eterna memória do Excelentíssimo Senhor D. Rodrigo de Sousa
de se plantar nos demais. Vê-se que o naturalista estabelecia Coutinho, Conde de Linhares, Cultivador e Protetor das Letras.19
subdivisões nos terrenos, de acordo com as plantas que crescem
neles espontaneamente. Suas andanças permitiram que Câmara costumava, em suas cartas, se despedir de seu protetor
identificasse o rendimento de cada tipo de terreno. Ele procedia, com a seguinte fórmula: “Deus guarde a V. Excia. como o Brasil
assim, a uma classificação das paisagens do Sertão, associadas e eu havemos mister”.20 Sem dúvida, para os homens de ciência
aos tipos de terreno. brasileiros a presença de um ministro como D. Rodrigo
reforçava o reconhecimento de suas habilidades específicas
Nessa memória, Câmara acrescenta aqui e ali informações sobre e de sua formação científica. Apesar de ter sua atenção voltada
os produtos naturais do Sertão, como é o caso da nota de número principalmente para os vegetais, os conhecimentos químicos
três, na qual indica as sementes e plantas oleaginosas que conhece, de Arruda da Câmara o capacitavam para o reconhecimento
como o carrapato (mamona), a andiroba, batiputá, pequi, catolé, e tratamento de outros produtos naturais, inclusive minerais.
oiticica, entre outras.
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Desde o século XVII buscava-se salitre pelos Sertões, além de
metais preciosos. O salitre (nitrato de potássio) era essencial para
a fabricação de pólvora, necessária para o uso das armas de fogo,
mas também para a exploração de alguns tipos de minas e para
trabalhos públicos de grande magnitude. Além disso, esse sal
podia ser usado na conservação de carnes. Muitos militares e
práticos, além de naturalistas formados se envolveram na busca
por nitreiras naturais e, no final do século XVIII, na preparação
de nitreiras artificiais. João Manso Pereira, por exemplo, espécie
de inventor e químico sem formação universitária, foi
encarregado de descobrir salitre na capitania de São Paulo.
Os naturalistas Joaquim Veloso de Miranda, João da Silva Feijó,
Manuel Arruda da Câmara, José Vieira Couto, José de Sá
Bittencourt e Accioli, além de Manuel Ferreira da Câmara
participaram de um modo ou de outro da busca por salitre.21
Para o aproveitamento das minas era necessário contar com
algum tipo de formação, que permitisse o refinamento do sal.
Feijó chegou a realizar diversos envios de salitre refinado do
Ceará para Portugal.22 Mas, na falta de um naturalista, militares
e práticos se encarregavam das diretrizes das fábricas, que
contavam com trabalho escravo negro e mão de obra indígena.
Havia produção de salitre nas capitanias de Bahia, Pernambuco
e Ceará. Essa indústria teve, aliás, papel relevante para
o desenvolvimento da lavoura de víveres nos sertões de
Pernambuco.23 As principais minas de salitre da capitania eram
próximas ao Rio São Francisco.24 Nos sertões baianos, também
se encontrou salitre perto do São Francisco, o que valeu o nome
de um de seus afluentes.
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As ordens de D. Rodrigo a Arruda da Câmara para busca de
salitre diziam que o naturalista deveria visitar a capitania
de Pernambuco em busca do sal e de outras minas. Em seguida,
deveria passar a Jacobina (Bahia) e ao São Francisco
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Arruda da Câmara dedicou-se à pesquisa
de plantas para cordoaria e tecidos
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Como os manuscritos de suas Centúrias dos novos gêneros
e espécies de plantas de Pernambuco desapareceram, apenas
algumas de suas cartas e artigos relativos a história natural
aplicada informam sobre seus trabalhos de descrição botânica.
Em 1810, Câmara publicou pela Impressão Régia do Rio de
Janeiro o Discurso sobre a utilidade da instituição de jardins
nas principais províncias do Brasil. Nesse interessante artigo,
ele defendia a fundação de jardins botânicos em algumas das
principais cidades brasileiras. Ele mesmo estaria à frente do
Real Viveiro de Plantas de Olinda, oficialmente fundado em
1811, mas sua morte prematura o impediu de assumir o cargo.
Seu discípulo, o Padre João Ribeiro Montenegro, dirigiu
interinamente a instituição.30
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Originárias de um genérico “Pernambuco”,33 Arruda
recomendava o cultivo de diversas espécies, como a planta de
flores “formosíssimas” chamada “bilros”, que constituiriam
para ele um gênero novo, que nomeou Carlotea, em
homenagem à princesa:
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REGISTROS DE TRABALHO
Cynophalla flexuosa
Os registros de trabalho de Arruda
e Montenegro incluem diversos
tipos de plantas, muitas das quais
encontradas nas Caatingas
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à esquerda: Vochysia oblongifolia
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Pouco se sabe sobre as atividades de João Ribeiro anteriores a
1817, quando se suicidou ao ver que sua causa estava perdida.
O botânico Francisco Freire Allemão, em suas pesquisas sobre
Câmara, tentou averiguar a efetiva participação do padre nos
trabalhos do naturalista. Os dois manuscritos ilustrados que
se conhece, atribuídos a Câmara, chegaram aos arquivos públicos
pelas mãos de Freire Allemão. Segundo este, grande parte
dos desenhos botânicos do códice do Museu Nacional39 é
de autoria do Padre João Ribeiro de Montenegro. Quanto aos
desenhos do caderno da Biblioteca Nacional, não há autoria
alguma indicada. Um dos informantes de Allemão foi o Visconde
da Praia Grande (1796-1851), que garantiu que Câmara
não desenhava. Trata-se provavelmente do filho homônimo
de Caetano Pinto de Miranda Montenegro (1748-1827),
governador de Pernambuco entre 1804 e 1817. Com a morte
do Padre João Ribeiro, os manuscritos teriam ido parar nas mãos
do governador.40
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à esquerda: anotação de Francisco
Freire Allemão sobre o manuscrito
ilustrado de Arruda da Câmara e
Montenegro: “Estes desenhos
do Dr. Arruda me forão dados pelo
Dr. Ildefonso Gomes, q. os obteve do
Visconde da Praia Grande filho, creio
eu, do Desembargador Montenegro
q. foi Governador de Pernambuco,
notempo da revolta [§] Grande parte
dos desenhos forão feitos pelo Padre
João Ribeiro Montenegro [§] As notas
escritas são de Arruda = (o Dr. Manoel
Arruda da Camara.)”
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Os manuscritos botânicos que se encontram no Museu Nacional
são, portanto, uma obra coletiva, realizada por Câmara e por
professores do Seminário de Olinda. Os nomes atribuídos às
plantas constituem, algumas vezes, homenagens aos patronos
dos naturalistas. Uma dessas homenagens foi a “Azeredea
pernambucana”, um algodoeiro bravo (Cochlospermum regium
(Mart. ex Schrank) Pilg.), dedicado ao fundador do Seminário de
Olinda, o bispo Azeredo Coutinho, chamado de “litteratorum
patrono”.
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à esquerda: Andradea brederoda foi o
nome dado por Arruda da Câmara para
uma planta subaquática, com
propriedades antioxidantes, conhecida
como pataqueira (Conobea
scoparioides). Lê-se ao pé da imagem:
“Offerecida ao Dor. Dez.or. Antonio
Felipe Soares de Andrade Brederode
[§] Emanuel Arruda da C. ad naturam
pinxit”. Há também uma nota
de Antonio Alexandre Vandelli, filho
de Domenico Vandelli, a respeito
de Brederode
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O manuscrito que se encontra na Biblioteca Nacional contém
ainda menos informações que os papéis botânicos. Freire
Allemão afirmou em chamada publicada no Arquivo Médico
Brasileiro que tinha em seu poder “boa porção de desenhos do
próprio punho de Arruda. Destes são muitos representando
insetos; alguns mostram peixes, répteis, aves e mamíferos”.45
A lista de suas obras enviada a D. Rodrigo de Sousa Coutinho
consta de uma “Nova insetologia”. Na obra do naturalista
sobre o algodoeiro havia já desenhos detalhados de gafanhotos,
pragas das plantações. Na memória publicada sobre o tema
e no manuscrito46 há indicação de que ele mesmo desenhava os
insetos, a partir de sua coleção:
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O caderno manuscrito conservado
na Biblioteca Nacional contém
desenhos de vários tipos de
animais do Nordeste e dos Sertões
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à esquerda, no alto: gravura de
gafanhoto da Memória sobre a cultura
dos algodoeiros
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ilustrações de insetos de caderno
manuscrito de Câmara. A execução
de imagens de insetos foi a parte
mais desenvolvida de sua técnica
de desenho
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à esquerda: pássaro da família
Columbidae
As aves ilustradas por Arruda da
Câmara não atingiram o grau de
precisão dos insetos e das plantas.
Apesar da impossibilidade de
identificação das espécies, muitas das
famílias que retratou ocorrem nas
Caatingas
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à esquerda: pássaro não identificado
acima: um pica-pau
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Uma das imagens do caderno mostra um homem com uma rede Em uma de suas interessantes memórias publicadas, o naturalista
de pegar insetos. É provável que a figura se destinasse a mostrar descreveu o uso da batata-de-purga e acrescentou uma
a melhor maneira de coletar insetos sem os danificar. Como se observação, que busca distinguir a sua maneira de proceder da
sabe, circulava entre os alunos de Vandelli e os naturalistas lusos prática do vulgo:
em geral, uma série de instruções de viagem e de coleta, tanto em
Advirto, de passagem, uma coisa notável, e é que os rústicos vendem
outras línguas quanto em português.49 O próprio Câmara teria
às vezes a batata, que pouco efeito obra, o que se deve atribuir
recebido instruções de Frei Mariano da Conceição Veloso.50
a colherem-na fora do seu tempo próprio; todos os produtos vegetais
De todo modo, a realização de suas missões já pressupunha uma
devem ser colhidos depois de sua maturação; assim o tempo de colher
preparação prática bem estabelecida.
das batatas-de-purga é depois que tiverem secado os seus frutos
e a mesma rama, antes que lhe chova; porque então sua fécula se altera,
Pouco se sabe sobre o dia a dia de suas excursões e coletas.
e passa a esta’do de mucilagem para nutrir os renovos.53
Os documentos deixaram alguns traços de como se deu esse
amálgama de estudioso com homem do Sertão. Em carta a
Vandelli, de 1797, distinguiu o trabalho de quem viaja daquele Em uma carta endereçada ao editor e botânico Frei Veloso,
do sedentário: Câmara narrou um episódio interessante ocorrido nos Sertões.
Segundo ele, o ouvidor do Ceará e o General D. Thomás
Não o devo [correr] no sossego de minha casa, como faz um Professor
ordenaram que os comandantes e câmaras da Comarca
de Gramática, ou outro qualquer, [...] mas devo viajar, em que
infalivelmente ei de pagar a cinco pessoas, que me acompanham, chamassem os homens que lhes parecessem mais inteligentes, e que lhe
51
guiando cada uma sua cavalgadura. encarregassem irem discorrer montes e vales em cata de quina e salitre.
Já em relatório sobre plantas que dão linho, enviado ao Os que se recusassem seriam presos. E continua:
governador da Paraíba, Câmara indicou: “me entranhei pelas
assim que se espalharam estas ordens viram-se aqueles matos inundados
matas, acompanhado de alguns escravos”.52
de naturalistas, vaqueiros, roceiros sem outro conhecimento mais do que
saberem tanger gados [...]. Quantos vi [...] serem obrigados a deixarem as
suas famílias e serviços para procurarem o que não conheciam.
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O bispo Azeredo Coutinho em seu Discurso sobre o estado atual
das minas do Brasil, de 1804, dissertou em favor dos
viajantes, dos naturalistas e das descobertas da história natural
e da química. Ele se queixa, porém, que muitos indagadores
da natureza acabam perpetuando erros, por se fiarem
em informações “do homem silvestre, ou de um ignorante”.
Segundo ele, “o Filósofo Naturalista, ainda que muito Indagador
da Natureza, é sempre um homem de gabinete” e só examina
a Natureza
Em seguida, vaticinou:
na página 203:
Descrição da Azeredea pernambucana,
em latim, de acordo com os critérios
de Lineu
201
1 Ver carta a Vandelli, Pirauá, 11 de dezembro de 1797 16 Câmara, Manuel Arruda da. 1799. Memória sobre a 37 Ver Neves, Guilherme Pereira. 1992. Uma réstia de luz:
(Museu Bocage), transcrita em Simon, William Joel. cultura dos algodoeiros. Lisboa: Arco do Cego. Mello, Rodrigo de Souza Coutinho e a criação do Seminário
1974. Scientific Expeditions in the Portuguese Overseas José Antônio Gonsalves de. 1982. Op. cit., p. 126. de Olinda. Revista da SBPH 7:15-22; Almeida, Argus
Territories, 1783-1808; the Role of Lisbon in the Sobre suas relações com Félix de Avelar Brotero, Vasconcelos de et al. 2008. Pressupostos do ensino de
Intellectual-scientific Community of the Late homenageado na denominação do velame, ver em filosofia natural no Seminário de Olinda (1800-1817).
Eighteenth Century. Tese de doutorado. Nova York: Mello, p. 21. Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias 7(2):
City University, p. 366-369. 17 Ver Mello, José Antônio Gonsalves. Op. cit., p. 107. 480-505. Disponível em http://www.saum.uvigo.es/
2 Ver Prestes, Maria Elice Brzezinski. 2000. A 18 Câmara, Manuel Arruda da. 1810. Discurso sobre a reec/volumenes/volumen7/ART12_Vol7_N2.pdf).
investigação da natureza no Brasil Colônia. São Paulo: utilidade da instituição de jardins nas principais Acesso em 10 de julho de 2012 e Kulesza, Wojciech.
Annablume-Fapesp, cap. IV. províncias do Brasil. Rio de Janeiro: Impressão Régia. 1991. O trânsito das Luzes no final do século XVIII:
3 Aguiar, José Otávio. 2011. A botânica como missão In: Mello, José Antônio Gonsalves de. 1982. Op. cit., p. o caso do Seminário de Olinda. Resgate 3: 21-26.
pedagógica: Manuel Arruda da Câmara e a 216. 38 Neves. Op. cit., p. 17.
peculiaridade de suas interpretações. In: Clio - Revista 19 Ibid., p. 217. 39 Montenegro, João Ribeiro Pessoa de Melo. [Desenhos
de Pesquisa Histórica 29:1, s/p. Disponível em http:// 20 Cartas a D. Rodrigo de Souza Coutinho. In: Mello, botânicos], s. l. n. d. Ms., Museu Nacional do Rio de
www.ufpe.br/revistaclio/index.php/revista/article/ José Antônio Gonsalves de. 1982. Op. cit., p. 238, 241 e Janeiro.
viewFile/169/114. 243. 40 Allemão, Francisco Freire. Notas sobre o botânico
4 Anônimo. Relação dos manuscritos do Dr. M. A. C. 21 Ver Ferraz, Márcia H. Mendes Ferraz. 2000. A Arruda da Câmara e o padre João Ribeiro Montenegro.
1982. In: Mello, José Antônio Gonsalves. Manuel produção do salitre no Brasil Colonial. Química Nova, FBN, manuscrito.
Arruda da Câmara. Obras reunidas. Recife: Fundação 23:845-850 e Pataca, Ermelinda Moutinho. 2006. 41 Ibid.
de Cultura Cidade do Recife, p. 276. Terra, água e ar nas viagens científicas portuguesas 42 As referências às espécies atuais estão em Mello, José
5 Câmara, Manuel Arruda da. 1982. Dissertação sobre as (1755-1808). Tese de doutorado. Campinas: Instituto Antônio Gonsalves de. 1982. Op. cit. A revisão foi feita
plantas do Brasil que podem dar linhos próprios para de Geociências. pelo biólogo Marcos Vinicius Meiado, da Universidade
muitos usos da sociedade e suprir a falta de cânhamo. 22 Por exemplo: AHU: Ceará, caixa 11, docs. 1 e 3; caixa do Vale do São Francisco, Univasf.
In: Mello, José Antônio Gonsalves. Op. cit., p. 182-183. 12: doc. 1.; caixa 13: doc. 29 e caixa 14: doc. 15. 43 Montenegro, João Ribeiro Pessoa de Melo. Op. cit.
6 Allemão, Francisco Freire. Notas sobre o naturalista 23 Medeiros, Tiago Silva 2009. O sertão vai para o além- 44 Projeto Resgate. Ofício do [governador da Paraíba]
Manuel Arruda da Câmara, 1848-49. Ms. FBN. mar: a relação centro e periferia e as fábricas de couro coronel Jerónimo José de Melo e Castro, ao [secretário
7 Segundo Bella Herson, seu pai teria obrigado o filho em Pernambuco nos setecentos. Dissertação de de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo
a seguir carreira religiosa para afastar a identificação mestrado. Natal: UFRN. e Castro, 19 de abril de 1788, Paraíba. AHU_ACL_
como cristão-novo. Herson, Bella. 1996. 24 Ibid., p. 56. CU_014, Cx. 30, D. 2186.
Cristãos-novos e seus descendentes na medicina 25 [Silva, José Bonifácio de Andrada e]. Memória 45 Allemão, Francisco Freire. 1846. Botânica.
brasileira, 1500-1850. São Paulo: Edusp, p. 281. do Desembargador José Bonifácio de Andrade. 1813. Aparecimento de uma coleção de desenhos
8 Salberg, Johannes [Linnaeus]. Fructus esculenti de. In: In: O Patriota, julho, p.13. do Dr. Manuel Arruda da Câmara. Arquivo Médico
Amoenitates Academicae, Upsala, v. 6 (119), 1763. 26 Ofício, 18 de março de 1797. In: Mello, José Antônio Brasileiro, t. II, 7, 1846, p. 146-146. In: Mello, José
Salberg era aluno de Lineu. Tradicionalmente, as teses Gonsalves de. 1982. Op. cit., p. 268. Antônio Gonsalves de. 1982. Op. cit., p. 280.
são atribuídas ao mestre e defendem seu ponto de vista. 27 Ofício, Recife, 25 de outubro de 1799. Projeto Resgate, 46 Pataca, Ermelinda M. Op. cit., p. 142-144.
9 Câmara não indica sua fonte. Sobre os autores que AHU_ACL_CU_015, Cx. 211, D. 14321. 47 Memória sobre a cultura dos algodoeiros. Op. cit., p.
refletiram acerca do Estatuto das Américas, ver o 28 Câmara, Manuel Arruda da. 1810. Dissertação sobre as 140-141.
clássico: Gerbi, Antonello. 1960. La disputa del Nuevo plantas do Brasil que podem dar linhos. Rio de Janeiro: 48 Carta de Manuel Arruda da Câmara a Mariano
Mundo. História de una polémica. México: Fondo de Impressão Régia, 1810. In: Mello, José Antônio da Conceição Veloso, 2 de junho de 1799. Museu
Cultura Económica. Gonsalves de. 1982. Op. cit., p. 168. Paulista, ms. (cópia), p. 5. Disponível em http://www.
10 Buffon, [Georges-Louis Leclerc, Comte de]. 1749. 29 Ibid., p. 170. obrabonifacio.com.br/colecao/obra/581/digitalizacao/
Histoire naturelle, générale et particulière. Paris: 30 Cf. Meunier, Isabelle M. J. e da Silva, Horivani C. 2009. 49 Ver Pataca, Ermelinda M. Op. cit e Pereira, Magnus &
Imprimerie Royale, t. 3, p. 528. Gomes. Horto d’El Rey de Olinda, Pernambuco: Cruz, Ana Lúcia B. da. 2012. Instructio Peregrinatoris.
11 O Patriota, Rio de Janeiro, 1813, jan., p. 24. história, estado atual e potencialidades de cobertura Algumas questões referentes aos manuais portugueses
12 Câmara, Manuel Arruda da. 1792. Aviso aos lavradores vegetal de uma área verde urbana (quase) esquecida. sobre métodos de observação filosófica e preparação de
sobre a inutilidade da suposta fermentação de qualquer Revsbau 4(2):62-81. produtos naturais, da segunda metade do século XVIII.
qualidade de grão ou pevides. Lisboa: Oficina de 31 Câmara, Manuel Arruda. Discurso sobre a utilidade da In: Kury, Lorelai e Gesteira, Heloisa (orgs.). Ensaios de
Antonio Rodrigues Galhardo. instituição de jardins nas principais províncias do história das ciências no Brasil. Das Luzes à Nação
13 Carta a Vandelli. Op. cit. Brasil. Op. cit., p. 215. independente. Rio de Janeiro: EdUerj.
14 Anúncio dos descobrimentos feitos em Paranambuc e 32 Ibid., p. 216. 50 Ermelinda M. Pataca. Op. cit., p. 390.
remetido a um dos editores. Paládio Português 1(2):4- 33 A capitania na época englobava parte da Bahia. 51 Carta a Vandelli, op. cit., 367. Modifiquei ligeiramente e
13, 1796. In: Mello, José Antônio Gonsalves. 1982. Op. 34 Discurso sobre a utilidade da instituição de jardins nas atualizei a transcrição de Simon, que contém pequenos
cit., p. 104. principais províncias do Brasil. Op. cit., p. 216. erros evidentes.
15 Bonato, Tiago Bonato. 2010. O olhar, a descrição: a 35 Anônimo. Relação dos manuscritos do Dr. M. A. C. 52 Relatório ao governador Freire de Castilho, s. d.
construção do sertão do Nordeste brasileiro nos relatos Op. cit., p. 279. [1800]. In: Mello, José Antônio Gonsalves de. Op. cit.,
de viagem do final do período colonial (1783-1822). 36 Cf. Kury, Lorelai. 2011. La nature de la nation: le p. 249.
Dissertação de mestrado. Universidade Federal do climat et les gens du Brésil (1780-1836). Annales 53 Discurso sobre a utilidade da instituição de jardins nas
Paraná, p. 107. historiques de la Révolution française 365(3):129-152. principais províncias do Brasil. Op. cit., p. 223.
54 Carta..., Museu Paulista. Op. cit., p. 6 e 7.
55 Azeredo Coutinho, José Joaquim da Cunha de. 1804.
Discurso sobre o estado actual das minas do Brazil.
Lisboa: Impressão Régia, p. 38-39.
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