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(7 A Técnica B na Psicandalise ES, Mi Intantilt @ A.. F E R R OO A criangaeo afi sta: ' da relag ao i) = Fe eee | Ta) Or SECO AS MALLET. DA TROcHa BA ! A Técnica na Psicanalise Infantil Antonino Ferro A Técnica na Psicandlise Infantil se apresenta como uma tentativa de re- ver Os orincipais aspéctos da teoria e da técnica da psicandlise infantil, 4 luz dos desenvolvimentos kleinianos e particularmente a luz da “mudanga catastréfica” derivada do pensamento de Bion, cuja obra 6 considerada como uma expansdo dos modelos kleinianos ¢ freudianos, dos quais toma a origem ea vilalidade, O autor tenta realizar o proprio projeto, valendo-se sobretudo das situagées clinicas, que nos mos- tram em primeiro plano o analista e 0 paciente trabalhando. Sdo considera- das as principais modalidades expres- sivas da crianga no Ambito da andlise (o desenho, 0 jogo, o sonho, o didlo- go), dentro de uma otica que, partindo da relagéo e transitando através dos conceitos de “campo” e de “nao sa- » turagao”, chega a uma nova concei- tualizagéo dos personagens e dos fatos da sesso, considerados em sua qualidade de “holografias afetivas”, ou seja, como expresso sincrética e dinamica da interagao entre o funcio- namento mental do paciente e do ana- lista, durante o trabalho —- vértice que oscila com aqueles mais cléssicos que consideram og personagens como pertencentes a historia ov ao mundo interno da crianca. Rak ao ——— A TECNICA NA PSICANALISE INFANTIL < Livraria do Psicanalista 94) 3227.6008 Antonino Ferro A TECNICA NA PSICANALISE INFANTIL A crianga e o analista: da relacgéo ao campo emocional Te ae DA PSICANALISE DIRIGA ELIAS MALLET DA'ROCHA BARROS Traducao MERCIA JUSTUM. Revisdo Técnica RENZO BIROLLINI Imago Titulo original: La tecnica nella psicoanalisl infantile © 1995 Antonino Ferro Capa: VISIVA COMUNICAGAO E DESIGN: CIP-Brasil. Catalogagiio-na-fonte ‘Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Ferro, Antonino A técnica na psicandlise infantil; a criangae 0 analista da relagdo a0 campo emocional / Antonino Ferro; traducio, Mercia Justum, ~ Rio de Janeiro: Intago Ed., 1995 228p. Traduca de: 1.a tecnica nella psicoanalisi infantite Inclul apéndice e bibli ISBN 85-312.0407.0 1, Psicandlise infantil. 1. Titulo, CDD ~~ 618,928917 9461451 CDU ~ 159.922.7 Reservados todos os direitos, Nenhuma parte desta obra poder ser reproduzida por fotoc6pia, microfilme, processo fotomecnico ou cletronico ‘sem permissio expressa da Editora, IMAGO EDITORA LTDA, ‘Rua Santos Rodrigues, 201-A ~- Esticio 20250-430 ~ Rio de Janeiro — Ry Tel: (021) 293-2092 Imptesso no Brasil Printed in Brazit SUMARIO Apresentac4o (Giuseppe di Chiara) Prefacio (Luctana Nissim Momigliano) Capitulo 1 Um Rapido Zoom sobre os Modelos Tedricos Capitulo IL Pequeno Mapa de Orientagdo Capitulo HL O Desenho Desenho do paciente O desenho como emergéncia As palavras como “desenho” na relacdo, na anélise dos adultos O desenho de palavras no campo Algumas reflexdes Capitulo IV O Jogo Introducdo Jogo ¢ psicandlise Observacao e interpretagio O jogo ea relacao Capitulo V O Sonha Alguns pontos de vista sobre o sonho Sonho e narragoes As reveries durante a sessao Patologia da fungdo onirica Sonhos de contratransferéncia Capitulo VI O Didlogo: Personagens e Naracdes Para um “aprender com a experiéncia” Capitulo VIL A Crianga e o Grupo Familiar Apéndice A Mente do Analista ao Trabalho: Problemas, Riscos, Necessidacdes A salvaguarda do paciente A salvaguarda do analista A salvaguarda dos familiares Bibliografia A todos aqueles que comigo foram pacientes APRESENTACAO Os livros de psicanalistas que praticam a psicandlise com criangas ~ como o autor deste volume —- suscitam sempre um interesse particular io mundo dos leitores, pelo claro motivo que, j4 h4 tempo, estamos acostumados a encontrar em suas paginas, algumas das melhores coisas que a clinica ¢ a teoria psicana- Iiticas nos podem oferecer. E supérfluo relembrar os nomes dos autores aos quais devemos grande parte do progresso da disciplina psicanalitica; mas é importante relembrar que a relagao com a infancia permanece como uma exigéncia funda- mental na psicanilise. E por isso, creio, que entre os que se ocupam de criangas ~ dos educadores aos neuropsiquiatras — e a psicandlise fluem, com maior freqiéncia que em outros ambitos profissionais, boas relagées, quer dizer, relagées leais e reciprocamente produtivas. O autor deste livro, psicanalista de adultos ¢ de criangas, colocou a disposi¢ao esta sua vasta competéncia, na composicado deste trabalho de clinica, teoria e técnica da psicandlise. Aestrutura do modelo de referéncia fundamental do psiquismo é a de uma rede cujos nés foram esclarecendo-se e enriquecendo-se no decurso da pesquisa. Noés estes feitos durante a tramitacdo dos percursos pulsionais, em sets encon- tros com as relacées histéricas; nés da afetividade que conduz ao encontro ¢ que, a partir deste, volta a emergir, enriquecida e modulada ou coartada e exasperada; nés de uma rede de relagdes intrapsiquicas e nés de wna rede narrativa interpessoal. De Freud até Bion, é um percurso de enriquecimento ¢ de desenvolvimentos sobre a qual, ja ha algum tempo, vim refletindo. No ajuste de um modelo compreensivo da situagdo psiquica, segundo a éptica da psica- nalise — portanto de um ponto de vista que leve em contra primeiramente o inconsciente — Ferro utiliza, em particular, a pesquisa biontana ea dos Baranger, De Bion, vem a tonica sobre a modalidade originaria da relagdo entre duas mentes — e na vida entre a mente da crianca e a da mae, em primeiro lugar, mas junto com todo 0 “mental” que esta dispontvel no ambito do relacionamento/de- A. Ferro senvolvimento regulado pelos fendémenos da intercomunicacdo, através da iden- tificagdo projetiva e da réverie, e da interacdo destas no sentido de assegurar a metabolizacao mutativa que edifica 0 pensamento — sugestivamente indicavel como a alfabetizacao primaria. Dos Baranger, junto com Mom, a colocagdo da experiéncia do encontro no tabuleiro especifico do “campo” psicanalitico. No lastro dos autores relembrados, tantos outros trabalhos somados aquele feito em relacéo aos mesmos, ¢ particularmente na Itélia, com os quais, j4 ha muitos anos, © proprio Ferro contribui ativamente. Assim, colhe-se de modo significativo, ¢ nao ecleticamente, mas num processo de desenvolvimento e continua revisio critica, o trabalho clinico e teérico de geragées de analistas. Um fruto significative do modelo proposto € 0 desenvolvimento de uma critica convincente sobre a rigidez reificante da assim chamada interpretacdo direta da fantasia inconsciente, variagéo mais avancada da interpretacdo selva- gem, porque feita quando o cendrio interpretacao nao est4 no “campo”, mas alhures. Isto bem em continuidade vital com a licdo freudiana, E € também exemplo evidente da evolucdo do conhecimento 4 compreensao — muito bem colocado em evidéncia, recentemente, por Lussana ~ como caracteristica salien- te da pesquisa pos-kleiniana. Pelas indicagdes sumarias ja fornecidas, evidencia-se bem no livro a centra- lidade do tema da “relacdo psicanalitica”. Este tema, muito presente no trabalho dos psicanalistas da Itélia, ¢ tratado amplamente ao longo de todo o volume. Particularmente o encontramos desenvolvido no interior da reflexdo sobre o modo de encarar o sonho, A intervengdo interpretativa do psicanalista sobre 0 texto do sonho contextualiza o contar onirico naéo somente na decodificacdo guiada pelos significados relacionais, mas sustentando ao mesmo tempo o proprio movimento racional em si. O sonho desvela a trama da relagdo pacien- te-analista e a dupla historia do paciente ¢ do analista sobre o tear precioso do sonho, que constitui ¢ transforma a relagdo entre eles: verdadeiro desde sempre, s¢ quisermos, mas agota muito mais claro, tao mais claro a ponto de evidenciar o sonho como a “religido da mente” (Mancia, 1987). Oanalista nao ¢ s6 chamado a participar como supervisor do processo, mas como 0 oficial que combate, dividindo com seus soldados as fadigas da batalha — Ferro relembra esta imagem de Bion. O destino da andlise é portanto o destino do par empenhado na anilise. Naturalmente tudo isso 6 0 produto do vigoso desenvolvimento que teve a pesquisa sobre a contratransferéncia. Estaria por- tanto realmente fora de cogitagdo a possibilidade de uma cura, como ponto de chegada da andlise? Bastara para definir o fim da andlise o fato que ela deva terminar um dia? E que aquilo que conta é ter feito o melhor que se podia fazer com aquilo que se €? Certamente precisaremos fazer o melhor. Mas acredito que se deva ter consciéncia de que uma cura, uma transformagdo, néo basta, sio 10 A técnica na psicandlise infantil necessarias duas: uma que, interessando ao par em anilise, pertenca tanto ao paciente quanto ao analista, Nao devemos esquecer que a contratransferéncia se torna operagio significativa para a andlise, a partir do momento em queo analista foi, por sua vez, capaz de uma transformacdo analitica suficiente ¢ continua a ser capaz de uma suficiente auto-andlise - mesmo que seja dentro de seus limites pessoais. E € desta maneira que o traco pessoal do analista, aquele que muitas vezes é indicado como seu estilo, perde a permissao de ser o arbitro inquestio- navel da situacao analitica: € quando se restitui o valor a competéncia afetiva do analista que esta € chamada a se unir ao seu conhecimento e responsabilidade na estruturacio do campo emocional, afetivo ¢ lingitistico — gostaria de subli- nhar — no quadro de wma técnica reproduzivel ¢ transmissivel. E é para responder a essa exigéncia que o autor inseriu neste volume um capitulo dedicado ao tema especifico sobre a qualidade da mente do psicanalista no trabalho. A contratransferéncia nao é portanto a indicacao digital daquilo que acontece na mente do paciente, é mais wn sinal complexo, e 0 analista, enquanto a andlise se desenvolve, se observa com vigilancia critica e nestas paginas ele se relata. Mas qual seria orelato da psicandlise? Certamente nao é0 relato da literatura, nem aquele da narratologia. Ferro ja tinha esclarecido o sentido psicanalitico do relato, em colaboragdo com outros eminentes autores, em Psicandlise ¢ fabulas, uma obra de 85, na qual, com interessantes ensaios experimentais-observacio- nais, mostrou a importéncia para a mente das criangas da contextualidade dos contos em fabulas. Tema que é recuperado e desenvolvido num capitulo deste volume, com o aprofundamento do estudo da contempordanea “presenga de dois textos vivos que interagem continuamente entre si ¢ se transformam” (Cap. VI, nota 1). Este volume nos conta o que quer dizer praticar a psicandlise apés seis, oito geracées de analistas e de seus trabalhos. Antes de mais nada, na clinica, que ¢ o trabalho principal do analista, sem o qual nao existe a possibilidade de legitimizacao da pesquisa, teoria ¢ identidade psicanaliticas; e portanto da cura psicanalitica dos distibios psicéticos assim como as pesquisas sobte sua natureza, formagao e transformacées terapéuticas, acoplando o interesse pela cura ea paixdo da investigagdo que formam o esqueleto da psicandlise, de Freud até hoje. A estratificacdo produtiva das contribuigées cientificas sucessivas ao longo dos anos torna-se evidente em livros como este: leia-se a respeito o Capitulo II, como wma notavel tentativa bem conduzida e bem-sucedida de integrar as contribuigdes da diferentes investigacdes. Empreendimento bem-sucedido, a medida que seu autor, reconhecendo — porque as conhece e lhes é grato — as outras contribuicdes, ndo se deixa seduzir pela comoda mas restritiva e empo- aR} A. Ferro . brecedora adesdo a uma contribuicdo parcial, sustentada ideologicamente. Per- manece livre para desenvolver e cultivar a propria investigacao clinica e teérica. Leia-se, para que se possa perceber o que estou querendo pér em foco, a extraordinaria seqtiéncia da andlise de Francesca, no Capitulo Hl! De resto, as historias dos pacientes, dos encontros psicanaliticos do autor com seus pacien- les, numerosas ¢ bem-apresentadas, fazem do livro um verdadeiro atlas de técnica psicanalitica, gracas a riqueza da experiencia clinica ¢ a capacidade de transmiti-la de maneira muito vivaz, peculiar do autor. Poderia ainda dizer que se trata de um livro com belissimas ilustragdes. Nao 86 aquelas dos pacientes criangas, mas também aquelas desenhadas pelo relato do. analista-narrador. Temos assim uma extraordindria galeria de desenhos muito vivazes, uma verdadcira exposi¢ao de quadros muito significativos, talvez obras-primas da experiéncia psicanalitica. Com a particularidade de que o publico, o leitor, é convidado a conhecer as modalidades interiores, segundo as quais 0 analista ¢ seu paciente vivem, reconhecem e relatam a sua experiencia. Giuseppe Di Chiara PREFACIO No momento em que Ferro libera para o prelo o seu livro, solicita-me uma apresentacao “afetiva” para flanquear a respeitavel e “cientifica” apresentagdo de Giuseppe Di Chiara; sou de fato a mais antiga testemunha do seu inicio como candidato a Sociedade Italiana de Psicandlise. A inesquecivel “professorinha”, portanto? Ou quem sabe uma celebragao do tipo festa em familia? Mais que afetiva, esta apresentacio corre o risco de se transformar em sentimental, entio prefiro falar do quanto me parece importante a investigacdo que Ferro esta levando adiante, desenvolvendo de forma original e muito convincente o discurso que alguns de nés tinhamos comegado ha anos no Centro de Psicandlise de Mildo (que sera apresentado no volume intitulado O espaco compartilhado), e do prazer que se pode obter da leitura deste livro, especialmen- te daquelas paginas particularmente felizes onde se pode observar o analista trabalhando. Aqui nado sabemos se devemos admirar a habilidade do autor enquanto colhe, com ouvido finissime e treinado, observagées e associacSes do paciente, que poderiam ser casuais, e que se revelam indicacées preciosas sobre o andamento do trabalho, ou a sua capacidade de comunicé-las, convidando-nos a participar com ele, seja dos momentos de jabilo pelo encontro havido entre as duas mentes seja dos de reflexdo sobre as proprias incompreensdes € cercea- mentos. Pergunto-me porém que impressao pode causar esta maneira nova de fazer psicanilise, tao leve endo pantanosa, a um leitor, competente que seja, mas ainda ligado as concepgoes tradicionais da psicandlise, ou melhor, a alguns dos “clichés” ainda amplamente difundidos. Convida-lo-ia entdo a saborear as belis- simas “ilustragdes” ou vinhetas que Ferro nos expée com tanta sinceridade, tendo presentes alguns pontos fundamentais do seu discurso, tais como: a escuta acurada do que diz o paciente “assumindo como ‘verdadeiro’ o seu ponto de vista”; a conceitualizacao do “campo”: “ndo é somente o paciente que influencia 13 A, Ferro o analista com todos os relativos problemas de contratransferéncia, mas ¢ também o analista que influencia o paciente”, a interpretacgdo pensada como “algo construido a duas vozes”, onde portanto, “a decodificago do significado cede lugar a construgdo de um sentido”; o trabalho absolutamente original sobre os “personagens” (do didlogo, do desenho, do jogo, do sonho), cujo compareci- mento testemunha “a elaboracao feita pelas duas mentes” etc. Algumas das ilustragées clinicas se tornarao entéo inesqueciveis, por exem- plo, a emocionantissima historia de André e das tarantulas, ou as coisas extraordinarias que as criancas sabem dizer a quem as sabe escutar, como os sdbios comentarios de Marina, aqueles transparentes de Laura, ou a admoesta- cdo amargurada de Carlos, quando diz ao analista “Nao é assim que vocé deve falar quando estou mal; zango-me ainda mais. Vocé deve dizer-me algo seu, que me faca compreender que nao estou s6... assim eu sorrio e me acalmo...”. Nao quero me estender mais. Jé esta claro para todos que esta maneira de trabalhar analiticamente, colocando-se continuamente no jogo, me entusiasma € me comove, € que portanto aconselho calorosamente a leitura deste livro as pessoas que, através de varias especializagées, escolheram encarregar-se profis- sionalmente do sofrimento humano. E também clara, acredito, a minha convicgdo de que o candidato promissor de alguns anos atras, transformou-se hoje num pesquisador em pleno desenvol- vimento, caminhando no sentido de aprofundamentos cada vez maiores, naquilo que ocorre, quando duas pessoas estdo juntas no consultério de anilise ¢ almejam conseguir uma communica¢ao entte si, apesar dos numetosos obstacu- Jos, internos e externos, que se interpdem constantemente. O meu augiirio o acompanha. E da mesma forma, como em cada vez que ‘uma pessoa querida pot mim se destaca para seguir 0 préprio caminho e 0 proprio destino, também a Nino Ferro oferego, como viatico para uma feliz navegacao, os delicados versos de “Cos! fan tutte”: “Soave sia il vento/tranquilla sia l’onda/ Ed ogni elemento/Benigno risponda/Ai nostri desir. Luciana Nissim Momigliano UM RAPIDO ZOOM SOBRE OS MODELOS TEORICOS Diversos so os autores (Money-Kyrle, 1968; Meltzer, 1978; De Bianchedi, 1991) que, em relagao a psicandlise dos adultos, propdem, radicalizando, distinguir trés modelos fundamentais: o freudiano, o kleiniano e um modelo inspirado em Bion. Sou do parecer que tal triparticdo possa valer também para aanilise das criangas. Considero também que outros autores, ainda que de primeirissimo escalao, no fundo, nao constituem um modelo unitério préprio, mesmo tendo dado contribuig6es muito relevantes, mas se colocam como “variagdes sobre o mesmo tema”; talvez com trajetorias evolutivas complexas, como a de Meltzer que, tendo partido de posicées estritamente kleinianas, nos ultimos anos assume de manei- ra original posigées radicais do pensamento de Bion (percurso este nao diferente daquele de Rosenfeld). Nem considero que exista uma especificidade particular da analise de criancas, pela qual existiriam autores ¢ problemas de psicandlise de adultos ¢ autores e problemas de psicandlise de criangas: penso a psicandlise como “una”, com diferentes situaces clinicas onde podemos encontrar uma “realizagao”,’ com modelos diversos ¢ talvez diversos objetos; por outro lado, sublinhando as diferengas, cada encontro analitico € tmico e nao se repete. Nao ha nenhuma intengdo de objetivar ou de exautir, nos poucos pontos que vou expor para caracterizar estes modelos: falarei somente de como eles vivem dentro de mim, e de como eu os percorti até hoje. 1 Natwralmente nao ponho em discussio as necessérias diferencas de setting ou de modalidades expressivas, faco referéncia ao fato de que o funelonamento mental do anslista € 0 mesmo nos vvarlas situagées. Para um aprofundamento, remeto a Flegenheimer (1983) e Wallerstein (1988). Alem disso, falo de renlizagao e nfo de aplicagdo, enquanto estou convencido de que a assim chamada lente psicanalitica ¢ uma lente de contato que se realiza somente no contato emocional entre paciente ¢ analista no interlor de tm seiting rigoroso. 15 A. Ferro Antes de mergulhar nesta tentativa, gostaria de sublinhar como chegamos igualmente a uma tripartigao, se tentarmos caracterizar, sempre radicalizando, os diyersos modelos dependendo da maneira pela qual séo considerados os personagens da sesso (Ferro, 1991a; Bezoari, Ferro, 1992). Num primeiro modelo de escuta, os personagens sao entendidos “prevalen- temente” como nds de uma rede de relagdes historicas; os fatos narrados sao, por sua vez, ocasiao de sentimentos, conflitos, estratégias emocionais, sempre em relacdo aqueles personagens, ou fatos, que mesmo atualizados na dindmica intrapsiquica receberéo quase que o crédito de uma existéncia “propria”. De resto, € 0 que vemos acontecer nos estudos sobre personagens em literatura, antes da revolucdo proppiana.' Num segundo modelo (que encontramos maximizado com clareza em Klein e seus seguidores), os personagens sdo nés de uma rede de relacdes intrapsiqui- cas; os fatos nartados, no fundo, sao um disfarce comunicavel da realidade interna do paciente, considerada porém como ja “dada”, a espera de uma interpretacao que esclareca o seu funcionamento, reenconirando suas taizes nas fantasias inconscientes. De grande interesse ¢ estudar, por exemplo na andlise de Dick, a forma com que Klein entende os personagens que tomam corpo na sesso, ou os fatos narrados, sempre reconduziveis a fantasias inconscientes do pequeno paciente.” No terceiro modelo, e nos referimos a Bion (e aos desenvolvimentos que deste poderao derivar), os personagens séo “nos” de uma rede narrativa inter- pessoal, ou-melhor, intergrupal, que nascem como “holografias” da inter-relagao emocional atual analista-paciente. Na sesso, estéo em jogo emogées, ou melhor, estados de espirito muito primitivos, que nao tiveram ainda acesso a possibilidade de serem pensados ¢ que estéo aguardando que o analista e o paciente, usando todos os meios disponiveis, saibam recolhé-los, ndo permanecam neles submersos, ¢ possam narré-los um ao outro. No fundo, 0 par analitico (e as grupalidades que ativa) esta substancialmente buscando comunicar (verbalmente, mas ndo s6 verbalmente) as emogées que 0 invadem: freqdentemente os personagens sao “criados” ali, no encontro e do encontro das mentes; sio um dos meios possiveis de compartilhar, narrar e transformar, gracas as funcdes psicanaliticas da mente do analista,’ estes estados LNT: ~ adj, ref. a Vladimir Prop. 2. No Cap. V vou propor mais detalhadamente 0 comentario de uma sessto de Dick. 3. Di Chiara (1982) se deteve nas fungdcs da mente do analista, que individualiza na “qualidade do contato € da separagao, da dependencia e do desenvolvimento”, e da “atencao”, alcancadas por meio da andlise do analista que o instrumentaliza com “uma estrutura do carater analisada’, vide também Hautmann (1976), Carloni (1982) e Grenson (1967). 16, A técnica na psicandlise infantil primitivos da mente. Por exemplo, na famosa passagem de Bion (1962) do ice-cream/sorvete (também emogoes geladas) que € transformado no novo e dramatico personagem “I scream” ~ © grito que visivelmente ndo pode deixar de nos lembrar aquele de Munch —, é 0 desespero que encontra expressividade narrativa, Voltemos agora as trés modelizaces de que falava no inicio, Do modelo de Freud, 0 que me parece caracteristico é 0 alto indice de referenciabilidade historica atribuido as comunicagées do paciente: o que este diz ¢ considerado, mesmo se com oscilagées diversas, como um fato que teve, de qualquer maneira, muito a ver com a realidade por ele mesmo vivida; quer se trate de realidade externa, quer de realidade psiquica ativada em diferente medida com o concurso dos fatos externos: como na célebre questao da seducéo infantil. Podem ser indagados fatos que conservam, de todo modo, um alto grau de histoticidade: os fatos sao reconstruiveis, subtrainda-os ao espesso véu da repressao; varios mecanismos de defesa se opdem a atividade cognitiva do analista que devera, de alguma maneira, forcélos a fim de chegar a uma verdade a ser reconduzida a luz: trata-se de uma arqueologia, mesmo que seja uma arqueologia viva, para dizé-lo com Greeen (1973). O paciente pode vir a ser conhecido, indagado em seu funcionamento e cardter enquanto tal; € um modelo, como dizem os Baranger (1969), que embora tenha sido elaborado em termos relacionais ¢ dialégicos, comporta que a maioria dos conceitos que 0 constituem, 0 edificio tedrico, seja formulado em termos unipessoais. Retornemos a algumas notas do modelo, Geniais intuigées de Freud foram a introdugdo do método das associacdes livres em substituicdo aos da hipnose e da sugestéo, a descoberta do intenso vinculo que se cria entre paciente e analista, a transferéncia, entendida como repetigao do que ndo pode ser lembrado e que se atém a situagées da primeira infancia, e a utilizacado da interpretacdao como operac¢ao que torna consciente 0 que foi reprimido, permitindo assim um alargamento dos limites da consciéncia, E£ sabido como Freud remanejou seguidamente 0 seu dispositivo tedrico, acrescentando novas elaboracées teéricas sem nunca eliminar completamente os contetidos precedentes; permanecem no entanto centrais 0 conceito de “trauma”, de “pulsdo” ¢ de “sexualidade infantil”, o desenvolvimento através de “fases” (oral, anal, félica ¢ genital) cada uma delas acompanhada por aspectos particulares do funcionamento psiquico ¢ do carater.? 1 Deve-se poréin sublinhar como existe uma tencléncia a buscar em Freud a existéncia de tendéncias diversas (Chianese, 1988; Muratori, Cargnelutti, 1988; etc). 2 Encontraremos alguns derivados destes estados na sucessiva formulagio de PS ¢ D de Klein, entendidas de inicio como estagios evolutivos em seqtencia temporal, caracterizando “etapas” do 17 A. Ferro Uma ulterior teorizagao genial diz respeito aos sonhos: é gracas A Traumdeu- tung eA rentincia de Freud a outros modelos mais do tipo neurofisiolégico, que se tornou possivel “explicar 0 psiquico com o psiquico”, Sao individualizadas, portanto, modalidades especificas seja na formagao do sonho (realizacaio aluci- natéria de desejos, condensagao, censura, deslocamento, simbolizacdo, restos diurnos), seja na subseqiiente operagao de interpretacdo, em que o sonho sera decodificado com a contribuigéo do sonhador, o que consentiré encontrar o significado latente, oculto por tras do texto manifesto do sonho; texto que devera ser decomposto, para que se consigam as livres associagées para cada subuni- dade do mesmo, seja em teferéncia 4 vida atual ou as experiéncias infantis. Permanece no trabalho de Freud, sempre central, 0 conceito de repressdo! que “torna inacessivel e contemporaneamente conserva algo de pstquico...” (Freud, 1906), com a idéia de alguns eventos a serem desenterrados, como na cidade de Pompéia ~ lembra Freud — mesmo se tal trabalho de escavagao transita através do momento atual emocional da terapia, que permite tornar os fatos enterrados “materiais vivos da narracdo” (Petrella, 1988). De qualquer forma, esta preservada a idéia de um nitcleo historico de verdade pertencente ao paciente, ¢ que pode ser reconhecida, fato este que ¢ considerado como um fator de cura, Enfim, sao imprescindiveis as descriges do aparato psiquico com a primeira topica (inconsciente — pré-consciente — consciente) e a segunda (as instancias constituidas pelo Id, Ego, Superego). Naturalmente estes acenos so somente vestigios e seria interessante ver as implicagdes deste modelo no que diz respeito ao simbolismo, as cefesas, a interpretagao, & transferéncia, A contratransferéncia e assim por diante, mas nado € este o momento em que podemos fazé-lo. Nao podemos porém deixar Freud sem acenar a um de seus casos clinicos, que para ele (e para quem se ocupa de andlise de criangas) foi de maxima importancia. Refiro-me, naturalmente, ao Caso clinico do pequeno Hans (1908), de grande relevancia para Freud, pois lhe consentia “ver” ao vivo todas as teorias desenvolvimento mental, Sucessivamente Klein as entenderd como posigées, cada qual com uma constelacao caracteristica de angastias e defesas, Posicdes que posteriormente serao consideradas por Bion em continua oscilagiio PS ¢ D, caracterizando todo o decurso da vida mental de cada individuo. 1 A mesma centralidade que, no modelo de Freud, tem a repressiio, tera em seguida, em Klein, 0 conceito de cisto; a operagdo necessiria para cumprir as primeiras operacées mentais de discrininagho, mas que, caso supere um certo nivel, comporta a perda de partes do Self. No modelo de Bion, central seré a inter-relaco continente/contido (Q OJ que implica a ceneralidade da relacéo com o outro, come lugar onde toma vida 0 proprio aparelho para pensar os pensamentos, operagio esta que comporta uma exitosa introjecdo da relacdo com a outra mente, que abre as portas a propria pensabilidade: isso através da repetida experiéncla comunicativa do jogo entre identificagdes projetivas e operagdes de reverie. 18 A técnica na psicandlise infantil sobre 0 desenvolvimento, sobre a sexualidade infantil, Edipo e assim por diante, que tinham sido inferidas a partir da andlise de adultos e que podiam agora ser estudadas status nascendi, fornecendo a confirmagao direta das proprias teorias; muito relevante para nds, enquanto nos fornece o primeiro modelo de andlise infantil, com a possibilidade que abre de se ter acesso a linguagem paraverbal de wma crianca (semelhante as associagées livres), ao desenho, aos sonhos, as fantasias que lancam as bases cle uma técnica da psicandlise infantil. Como é sabido, trata-se da fobia por cavalos, que desenvolveu de improviso em Hans, 0 qual nao sera analisado diretamente por Freud, mas através do pai, que estabelece com Freud 0 que hoje chamariamos supervisdo. Freud encontra em Hans a confirmagao da existéncia de uma neurose infantil ¢ estigmatiza como acontecimentos traumAticos a angistia de castracdo (as ameagas da mae de que omédico lhe cortaria os genitais se continuasse a tocé-los), o nascimento da irma Hanna (ou melhor, os enganos a que Hans foi submetido naquela ocasiao, em contradigaéo com o que ele mesmo via), as dificuldades ligadas 4 evacuagio e, também, a-descricdo inexata das diferencas existentes entre os sexos. Aberastury (1981) da vivo destaque também ao trauma da amigdalectomia, ao qual remonta a fobia particular a cor do cavalo “branco”, coligada a bata do médico, assim como o medo de que os dedos fossem mordidos (“os dedos do médico que operou”; os “dedos da masturbag4o”) e afirma que esclarecimentos sexuais adequados teriam talvez evitado a fobia de Hans; enquanto as angustias de castracdo receberam confirmacdo pela amigdalectomia, que induzia a pensar que as mutilacées reais do corpo seriam possiveis. Passo a passo, naturalmente, Freud pde em evidéncia os nexos entre a fobia, 0 processo edfpico, a realidade dos impulsos sexuais, o complexo de castragao e assim por diante. Genial a tirada de Hans, ao propor ficar com a mae para si, oferecendo ao pai, em troca, aavé, com a esperada paz para todos. A medida que os aspectos conflitantes e os temores de Hans encontram explicitacao e esclarecimento, chega-se ao desaparecimento da prépria fobia. A leitura deste caso clinico nao termina nunca de pasmar ¢ fascinar, também, quando nos mostra Freud trabalhando, com extraordindria delicadeza, em seu tmico encontro com o pequeno paciente. Mais realista que o rei, ¢ também freqiientemente julgaclo por Freud exces- sivo e até intrusivo, aparece o pai, que muitas vezes invade o pequeno Hans com perguntas ¢ investigagdes ao ponto de, certa vez durante um desses interrogaté- rios, A enésima pergunta sobre o que estaria pensando, Hans responder: “No xarope de framboesa e numa espingarda para atirar nas pessoas”, como se quisesse dizer: “Num pouco de dogura e em dar um tiro em quem me atormenta desta maneira”. Seria demasiado facil mover criticas, hoje, as interpretag6es e explicagdes 19 A. Ferro fornecidas a0 menino, ou nao entender como Hans estaria se sentindo “amassa- do como a girafa” pelos esclarecimentos freqiientemente niio solicitados, mas nao podemos nos esquecer de que estavamos em 1908, nos primérdios da psicanilise e que é assombroso que se dessem sentido ¢ ouvidos as palavras, fantasias, aos sonhos de um menino de cinco anos. E também verdade que, no caso descrito freqientemente, h4 um esforco na tentativa de encontrar nas palavras de Hans uma confirmacdo daquilo que se buscava; por outro lado, era uma ocasido unica para verem-se confirmados os fundamentos teéricos da nova ciéncia. “Mas se ¢le ja sabe as coisas sem que eu as diga, é Deus?” — pergunta ao papai um Hans assombrado depois do encontro com Freud que o ilumina sobre alguns aspectos do complexo edipico. Meltzer (1978) diz que hoje naturalmente nao seriam pensaveis, sem correr graves riscos, nem uma exploracdo tao direta da vida mental de uma crianga, nem a estimulacdo das suas fantasias inconscientes, e sublinha a diferenca entre o trabalho reconstrutivo e destinado a encontrar a confirmagdo da neurose infantil feito com o pequeno Hans e aquele de Klein com seus pequenos pacientes, que desde 0 inicio tem um carater evolutivo, interessada que esta no desenvolvimento da crianca. Obviamente, infinitas foram as exercitacées feitas sobre este texto de Freud, na busca de novas verdades, pontos de vista que as vezes beiram o “descontru- tivismo”', onde todas as interpretag6es se tornam possiveis. Porém a grandeza de Freud nao esté somente em sua monumental obra teorica e clinica, esté também no fato de termos deixado “um método” de trabalho € de investigagdo (Tagliacozzo, 1990) para a compreensto dos fendmenos psiquicos, o que vale também para a anilise infantil. Depois de Freud, a tentativa de analisar criancas foi levada adiante por Hugh-Hellmuth (1921) que porém nao nos legou uma sistematizagao do seu modo de trabalhar por meio do jogo. Chegamos portanto a Sophie Morgenstern, que trabalhava na clinica de Heuyer na Franga, ¢ que nos deixou um livro sobre psicanalise da crianga (1937), onde percebemos que ela privilegiava 0 uso dos desenhos, depois que estes se tinham tornado necessdrios para o tratamento de um menino de dez anos, afetado por mutismo, que no entanto desenhava muito: o sucesso obtido a encorajou a continuar nesta dire¢&o, Rambert (1938) na Suica, introduziu o uso de marionetes com personagens tipicos (a mae, a tia, o pai, o médico etc.) animando os contos. Foram Anna Freud (1927) ¢ Melanie Klein (1932) que publicaram os 1_N.T; tendéncia flosefica que ganha seu espaco na psicanalise. 20 A técnica na psicandlise infantil primeitos dois livros de técnica que iriam permitir a sistematizacao da andlise de eriangas. Anna Freud considera necessario um periado de preparacao a anilise e yaloriza a utilizacéo do sonho, das fantasias diurnas e dos desenhos, ¢ limita a utilizagao do jogo. Veremos mais adiante porém, como a utilizagdo do jogo, no interior da situacdo analitica, assim como 0 introduziu Melanie Klein, constituiu a grande revolucdo da anilise infantil. Antes de tragar as linhas deste segundo modelo, gostaria de acenar com algumas tomadas de posi¢ao ja historicas, e com algumas teorizacées de Anna Freud que, como veremos, se distanciam muito das de Klein, apesar de terem sido, sucessivamente, bastante reelaboradas e modificadas (Aberastury,. 1981). Anna Freud afirmava que as criancas nao tém a capacidade de transferéncia por nao terem ainda desatado as suas ligacdes externas originais; nao pode haver uma segunda edicdo enquanto a primeira nao se tiver esgotado; as criangas necessitariam de um periodo preparatorio para aceitarem o tratamento e da manutencdo continuada de uma situacdo positiva, enquanto que as situacées negativas emergentes se resolveriam por meios no analiticos; seria necessaria uma acdo pedagogica constante do analista, por ter a crianca um Superego imaturo; as associacées livres ndo poderiam ser substituidas pelo jogo, ou melhor, 0 jogo livre corresponderia as livres associagdes, enquanto 0 jogo na sala de andlise seria equiparavel as resisténcias, em fungdo das continuas interrupgdes e mudangas que encontra, Posteriormente Anna Freud renunciar4 a fase preparatoria, introduzindo a crianga diretamente na situagdo analitica, mas, em muitos outros aspectos de sua teoria, nao avancar4; de qualquer forma, ndo é minha intengdo aprofundar neste texto a vivacidade de outras contribuicdes de Anna Freud, entre as quais nao posso deixar de citar as que se referem aos mecanismos de defesa do Ego, que permanecem fundamentais até hoje e para toda a psicandlise. E com Melanie Klein que se realiza uma auténtica revolugao e uma formu- lacao plena e exaustiva de um modelo de anilise infantil: mas falando em Klein, nao é possivel referir-se exclusivamente as criangas, visto o aporte geral, para toda a psicanilise, do seu modelo. Klein torna plenamente possivel uma efetiva andlise infantil, isenta de qualquer intencdo pedagégica, gracas a genial introducgao do material do jogo (vide Cap. IV), ¢ a igualmente genial intuicdo da contmua atividade de personifi- cagdo (1929) desenvolvida pela crianca, com o uso dos brinquedos na sessao, atividade semelhante em tudo e por tudo as associacées livres. Klein, ouvindo as criangas, tomou consciéncia da extrema importancia que tém pata elas os “espagos” no interior do corpo, seja o corpo da mae, seja o seu proprio corpo: deriva dai uma revolucdo da “geografia da mente” (Meltzer, 1979) al A, Ferro que se torna, assim um “lugar” onde existem presengas e acontecem [atos. E justamente o uso de uma imaginacdo prevalentemente visual (Meltzer, 1979) que permite a formagao de um modelo “teatral” da mente, descritivo dos acontecimentos que se verificam nos espacos internos, modificando assim o precedente modelo reconstrutivo freudiano.' A translagéo se torna, agora, a situagdo observavel por exceléncia, a tnica da qual se pode ter certeza: a relagdo atual analista-paciente é esclarecida pela compreensdo das identificagées proje- tivas, que enriquece a compreensao da contratransferéncia; isto.ao lado de uma extrema atengdo para com os fatos da vida externa do paciente, mesmo sendo as comunicagdes de realidade externa vistas em conexdo com as fantasias inconscientes que subentendem, Para Klein, portanto, adquire bem mais importancia 0 peso dado ao funcio- namento do mundo interno e aos [atos psiquicos que nele se passam: toda vida psiquica aparece como dominada pela atividade fantasmatica, isto 6, pelo jogo das fantasias inconscientes e das defesas a elas conectadas. Adquirem relevancia as angastias mais primitivas, ligadas a agressividade, ao instinto de morte, a destrutividade, ao sadismo, a voracidade, a inveja, ¢ as retorgdes fantasmaticas do objeto agredido: uma boa experiéncia com 0 abjeto real externo, mediada pelas interpretacdes, € o que permite gradualmente abrandar estas angistias e diminuir a distancia entre o mundo dos fantasmas inconscientes ¢ o da realidade externa: os fantasmas mais primitives, positivos e sobretudo os negativos, devem ser assumidos, ¢ sobretudo interpretados, imediatamente na transferéncia; sendo a idealizagao ou a persecutoriedade se deslocam para pessoas externas 4 andlise, com grandes riscos de atuacao (Aberastury, 1981). Torna-se, portanto, compreensivel (basta olhar a andlise de Richard) o privilégio absoluto dado ao significado das comunicacées prevalentemente do vértice do significado transferencial na atualidade. A interpretacdo destina-se, seja a tornar contatavel este mundo interno com as distorgdes, os subentendidos, as cegueiras, os ataques etc. que nele tém lugar, seja a tornar possivel o contato com as fantasias corporais mais primitivas, seja a abrandar, pelo “sentir-se compreendido e aliviado” (Lussana, 1983), a angistia de morte subjacente. O trabalho do analista parece-me, nesta optica, semelhante aquele de um “enviado da ONU” que intermedeia a relacdo-do paciente com os fantasmas do seu mundo interno: 0 paciente distorce, ataca, cinde, projeta, enquanto 0 analista, assumindo aqueles fantasmas, deve tornar 0 paciente consciente destas 1 Que se bascava nao sobre a atualidade dos fatos descritos como acontecimentos do mundo interno, mas como reconstrugao dos fatos historicos; dai o diferente significado da transferéncia como projecdo para o exterior de fantasmas atuais (Klein) ¢ como repeticao (Freud) do que nao pode ser lembrado. 22 A técnica na psicandlise infantil opetagdes que ele vai realizando e, em tltima instancia, mostrarhe a distancia entre estes seus funcionamentos ¢ a realidade externa da qual, no fundo, o analista 6a testemunha e o depositatio. Neste modelo existem inovagdes de extremo interesse (Bleandonu, 1985; Bott-Spillius, 1983; Corti, 1981; De Simone Gaburti, Fornari, 1988; Lichtmann, 1990 etc.)}: a) aimportancia dada a realidade interna, t4o “real” quanto a externa (dai a necessaria especificacdo a propésito de qual realidade se fala, se da externa ou da interna), b) o reconhecimento de um espaco interno do individuo, onde, verdadeira- mente, acontecem “os fatos das fantasias inconscientes”, c) a retrodatagao dos conflitos (em pasticular do Edipo e da formagao do Superego, cuja violéncia ¢ sadismo séo assinalados), e o ampliar a visdo para as. angtstias mais primitivas, ligadas as vicissitudes com o seio e com os outros objetos parciais; d) mais do que qualquer outra, 140 importante a ponto de tornar-se uma aquisicao de toda a psicandlise, mesmo fora da area kleiniana, a descrigao da identificacdo projetiva, como mecanismo, para livrar a mente de angistias proprias (ou partes), evacuando-as para fora ¢, ds vezes, dentro de outro que se torna receptor deste processo.’ A propria Klein parece ter-se quase assustado diante das enormes perspec- tivas que a intuigdo, ligada & descrigéio da identificagéo projetiva abria, ¢ recomendava cautela na utilizacao da contratransferéncia (no funda, o aparelho radar preposto para a interceptacdo das identificagses projetivas) e a maxima atengdo ao interpretar o que se observa no paciente até fornecer, em tempos diversos, quase que un manifesto da propria maneira de observar (vide Cap. IV). Em tal modelo, o paciente me parece visto ¢ descrito no “seu” modo de funcionar conosco como imagina que somos.” Oanalista interpreta na atualidade, (posteriormente retrodatando na historia ¢ deslocanda na realidade fora da andlise) uma relagdo transferencial entendida 1 Com Bion, dé-se uma radical mudanga de perspectiva no que diz respeito as identificacdes projetivas, das quais se colhe «.caracteristica de serem a atividade basal cla mente humana para comunicar emogées. “Acredito que o paciente faca algo ao analista e que o analista aga algo ao paciente” (Bion, 1980). . Com Bion, com os Baranger, com o conceito de “holografia afetiva” (Ferro, 1991a), ou “agregado fancional” (Bezoati, Ferro, 1991b), este ponto de vista foi derrubado: o paciente sabe com quem esté lidando, e 0 nosso modo de funcionar, de usar as defesas, de sermos mais ou menos permedveis ds suas identificagdes projetivas, estrutura o campo tanto quanto a sua maneira cle colocat-se, permanecendo o conceito de que “€ fiuncamental para.o tabalho psicanalitico” dispor de um instrumento suficientemente aperfeigosdo para poder ser empregado com “sucesso” (Di Chiaya, 1982): a mente analisada do analista, 23 A, Ferro como projeco para o exterior dos fantasmas e de modalidades internas de funcionamento do paciente; interpretara angustias ¢ defesas; permanece firme a idéia de uma neutralidade do analista (Saraval, 1985) que, se por acaso vier a se perder por causa das identificagées projetivas violentas ¢ evacuativas do pacien- te, devera ser recuperada o quanto antes.' O analista se torna local de projecio das mais antigas fantasias inconscientes do paciente e as respostas que este fornecer4 as interpretagdes serao, por sua vez, interpretadas como novas fantasias inconscientes e como testemunho das distorgées que encontrou a recep¢ao da interpretacao (Joseph, 1984). Gostaria de salientar ainda como neste modelo a projegito do que o paciente dig na atualidade da transferéncia (entendida como externalizagio do que acontece no mundo interno) permanece como eixo de sustentacdo. Duas linhas evolutivas me parecem presentes nas sucessivas modelizacées Kleinianas: uma insiste prevalentemente sobre a evidéncia da fantasia corporea subjacente, a outra privilegia a descricdo das qualidades do fato observado, num. plano de funcionamento mental, mas sempre como algo que concerne o mundo interno do paciente, mesmo que seja na “ficcdo verdadeira” da transferéncia: a modalidade de interpretacao da masturbac’o anal (Meltzer, 1965) cobre toda a gama de possibilidades desde a descricdo visual do evento até a interpretagdo das caracteristicas psiquicas que a acompanham, Permanecem, nas sucessivas evolucées do modelo kleiniano, alguns pontos absolutamente centrais: a elaboracdo exitosa da posicdo depressiva® é a garantia da satide mental e portanto da prevaléncia dos mecanismos neuréticos sobre os psicéticos. A interpretacio voltada para material profundo escolhido com base na urgéncia € wma interpretacdo de transferéncia referente a atualidade da relacéa ¢ “dali para fora e para tras”. Segal (1979), ao tentar definir as caracteristicas da andlise kleiniana, acres- centa “rigidez do setting”, para permitir aos fantasmas mais profundos se manifestarem sem contaminacdo, e “capacidade de atencéo” para com todas as formas, inclusive as identificagoes projetivas, com as: quais 0 paciente pode tentar “influenciar” a psique do analista. Outro fulcro € o de fantasia inconsciente, delineado de maneira completa por Isaacs (1948) no primeiro ensaio de As discussdes sobre as controvérsias, e definida 1 No fimdo, no modelo Kleiniano, a identificagao projetiva € aquele fato perturbador, como o era a contratransferencia no modelo freudiano: uma perturbagto de que nos deversamos livrar e que dizia respeito a algo que nao estava indo como deveria; a violencia da identificagao projetiva nfo € relativizada com a fragilidade ou estabilidade do continente que ao assumi-la pode romper-se, ou ser capaz de transformé-la. 2 PD éentendida como uma estrururacdo de angiistias ¢ defesas em que prevalecem o interesse e 0 atnor pelo objeto. 24 A técnica na psicandlise infantil como “expressdo psiquica das pulsdes”, pulsdes que nao podem ser percebidas a nao ser pelo seu representante psiquico: enquanto domina o principio do prazer/dor as fantasias sdo onipotentes, ¢ ndo existe diferenca entre as expe. “™- cias de realidade externa c as de fantasia; na mente do lactente, o desejo de cou. se torna a fantasia onipotente de ter incorporado o seio ideal que nutre, enquants o desejo de destruir se transforma na fantasia onipotente de ter destruido o seio e de ser perseguido por ele,' mesmo que a onipoteéncia dessas fantasias nunca seja completa, pois é enfraquecida pelas experiéncias da realidade externa. Remeto 0 Jeitor a Gaburri, Ferro (1988) para-um aprofundamento das principais linhas evolutivas dos desenvolvimentos kleinianos. Menciono somente como a escola kleiniana se apresenta de forma completa por intermédio de dois trabalhos coletivos: Developments in Pscychoanalysis, de 1952 (publicado por Klein com suas colaboradoras mais proximas), que com- pleta o modelo kleiniano do ponto de vista tedrico, e New Directions in Psychoa- nalysis, de 1955, que testemunha, por sua vez, a riqueza conceitual do modelo, a sua fecundidade clinica e a sua aplicabilidade em outros campos do conheci- mento. As principais linhas de desenvolvimento clinico do trabalho de Klein (a andlise das criancas ¢ a andlise dos psicéticos) conflutram no sentido de tornar posstvel um aprofundamento cada vez maior da andlise dos pacientes “neuroti- cos”, permitindo desvelar as angustias de base, ¢ no sentido de permitir uma extensio da aplicabilidade clinica da andlise em paciente, e areas de pacientes, que antes eram considerados inatingiveis. Amudanga de vértice a respeito de pacientes tradicionais influira de maneira notavel na definic¢ao de novos modelos nosograficos ¢ metapsicolégicos, e a ampliacdo do conceito de analisabilidade permitira estruturar novos modelos da mente. O desenvolvimento de continuas trocas de idéias entre Klein ¢ os seus alunos e entre eles mesmos (como um tear tecido por varias mos) determina uma verdadeira revolucdo conceitual no panorama da psicandlise, seja na aplicagdo clinica, ou fora dela, estendendo-se a estética (Segal), A dimensto politico-filosé- fica (Money-Kyrle), aos grupos (Bion), a politica ea guerra (Fornari), a vida social ¢ institucional (Elliott Jaques e Salzberger-Wittemberg). Deve-se salientar ainda que justamente a fecundidade do modelo kleiniano permitiu o transito e o uso de conceitos nascidos dentro do proprio modelo, por analistas que nao se declaravam Kleinianos, até se tornarem patriménio comum 1 JA encontramos estes conceitos em Klein em Psicandlise das criancas (1932) e mais sistematizados em O nosso mundo aduito (1959). 25

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