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Origem e façanhas dos Godos 

(c. 551)
 
Jordanes
Trad.: Ricardo da COSTA (mailto:ricardo@ricardocosta.com)
Base da tradução: JORDANES. Origen y gestas de los godos.
Madrid: Cátedra, Letras Universales, 2001.

 
(...)
121. Depois de um breve período de tempo, como nos conta Orósio1, o
povo dos hunos, o mais feroz e atroz de todos, se lançou com sanha
contra os godos. Investigando os relatos antigos, descobrimos o seguinte
sobre suas origens: Filimer, rei dos godos e filho de Gadarico, o Grande,
que ocupou o trono dos getas em quinto lugar depois de sua saída da
ilha da Escandia, quando entrou com seu povo no território da Escítia,
como já dissemos acima, encontrou feiticeiras entre seu povo, a quem
chamou, de acordo com a língua de seus pais, de haliarunas. Como elas
não inspiravam confiança, mandou expulsá-las dos seus, e depois que o
exército as fez fugir para bem distante, as obrigou a andar errantes por
uma zona despovoada.
122.  Quando os espíritos imundos que erravam pelo deserto as viram,
se jogaram em seus braços e, após copular com elas, engendraram essa
raça ferocíssima que no início viveu nos pântanos, minúscula, sombria
e raquítica, uma raça que apenas se parecia à humana e que não
conhecia outra linguagem além de uma que parecia remotamente à
humana. Assim, essa era a estirpe que chegou às terras dos godos e da
qual os hunos procederam.
123.  Este povo cruel, como se refere o historiador Prisco2 se assentou
sobre a ribeira mais distante da lagoa Meótida, sem se dedicar a outra
atividade a não ser a caça, salvo quando, devido ao crescimento de sua
população, perturbaram a tranqüilidade dos povos limítrofes com seus
saques e rapinas.
(...)
126.  Pois assim como logo atravessaram aquela enorme lagoa,
arrasaram como um furacão de povos os alpizuros, acilzuros, itimaros,
tuncarsos e boiscos que estavam assentados no litoral da Escítia.
Também submeteram os alanos que se igualavam a eles na luta, mas
eram diferentes culturalmente, em seu modo de vida e características
físicas, depois de esgotá-los com contínuos ataques.3
127.  Pois aqueles que em muitos casos não conseguiam vencer pelas
armas, os faziam fugir aterrorizando-os com seus espantosos
semblantes, porque tinham um aspecto de uma negrura extremamente
apavorante e seu rosto não era mais que uma massa disforme com dois
buracos em lugar dos olhos. Essa aparência sinistra manifesta a
crueldade do caráter desses homens, que cortam as bochechas de seus
filhos varões com a espada no mesmo dia em que nascem, para que
antes de receber o alimento do leite sejam obrigados a se acostumar a
resistir às feridas.
128.  Por esse motivo, chegam à velhice sem barbas, e são jovens sem
beleza, porque seu rosto, marcado pelas cicatrizes das espadas, é
privado de pêlo que cai tão bem a essa idade. São baixos de estatura,
mas ágeis e desenvoltos em seus movimentos, além de muito aptos para
a equitação; têm ombros largos e são hábeis no manejo do arco e das
flechas, com o pescoço firme e sempre erguidos de orgulho. Mas, apesar
dessa aparência humana, o certo é que vivem como bestas selvagens.
[5]4
(...)
134. Aconteceu com os visigodos o que costuma ocorrer a um povo que
não está ainda totalmente assentado em um lugar: sofreram fome. Suas
personalidades mais distintas e os chefes que ocupavam os postos de
reis, a saber, Fritigern, Alateo e Safraco, começaram a se compadecer da
situação de escassez que passava o exército e solicitaram aos generais
romanos Lupicínio e Máximo5 o estabelecimento de relações
comerciais. Mas a que excessos não leva o afã desordenado de ouro!
Estes generais, empurrados pela cobiça, começaram a lhes vender não
só carne de ovelha e de boi, mas também cadáveres de cachorro e
outros animais imundos, e isso a tal preço que lhes exigia qualquer de
suas propriedades por um só pão ou dez libras de carne.
135.  Mas quando já não tinham nem propriedades, nem haveres, os
avaros mercadores pedem àqueles a quem a penúria premiava de fome
que lhes entreguem seus próprios filhos. Aos pais não havia outro
remédio que concordar, para assegurar a salvação de sua prole, e não
duvidaram em lhes fazer perder a liberdade que a vida, pois é mais
compassivo vender um filho que se sabe que vão alimentar que
conservá-lo para que morra de fome.
136.  Assim, aconteceu naquele tempo de desgraça que o general
romano Lupicínio convidou Fritigern, rei dos godos, para um banquete,
com a intenção de fazer-lhe uma emboscada, como logo se descobriu.
Fritigern, que desconhecia a trapaça, foi ao banquete com uma pequena
comitiva e enquanto comia no interior do pretório escutou os gritos de
uns desgraçados que parecia que estavam sendo executados; na
verdade, se tratava de seus companheiros, que os soldados haviam
fechado em outro lugar por ordem de seu general, que estavam sendo
mortos. Os fortes gritos dos moribundos chegaram aos ouvidos de
Fritigern, que já suspeitava de algo, e imediatamente descobriu a
trapaça que lhe haviam feito. Desembainhou então sua espada, saiu
rapidamente do banquete e com grande ousadia libertou seus
companheiros da morte segura que se lança sobre eles e os incitou a
aniquilar os romanos.
137.  Estes homens valentes encontraram então a oportunidade que
tanto buscavam e, preferindo morrer na guerra a de fome, tomaram as
armas para acabar com os generais Lupicínio e Máximo. Foi aquele dia
que verdadeiramente pôs fim à fome dos godos e a tranqüilidade dos
romanos, e os godos começaram a dar ordens a seus amos não como
fugitivos e estrangeiros, mas como cidadãos e senhores, submetendo ao
seu domínio os territórios setentrionais até o Danúbio.
138.  O imperador Valente se inteirou do ocorrido em Antioquia e
imediatamente se dirigiu aos territórios da Trácia à frente de seu
exército. Ali manteve uma lamentável guerra na qual venceram os
godos, e ele teve que se refugiar ferido em uma fazenda próxima a
Adrianópolis. Os godos, ignorando que o imperador se refugiava em
uma casucha miserável, tocaram fogo, como costuma acontecer quando
o inimigo está enfurecido, e o imperador pereceu queimado junto com
seu séquito real.6 Isso não foi senão o mesmíssimo juízo de Deus, para
que morresse queimado pelos mesmos que, desejando a verdadeira fé,
haviam sido conduzidos por ele para a heresia, transformando assim o
fogo da caridade em fogo do inferno. Nesse tempo, depois de alcançar a
glória de tamanha vitória, os godos começaram a habitar o solo da
Trácia e a Dácia Ripuária, como se se apropriassem da terra que os viu
nascer.
(...)
152.  Quando o exército dos visigodos se posicionou nas imediações da
cidade de Roma, enviou uma delegação ao imperador Honório, que se
encontrava no interior, dizendo-lhe que se permitisse que eles
assentassem pacificamente na Itália, viveriam com os romanos como se
tratasse de um só povo, mas que se não estivesse de acordo, lutariam, e
aquele que fosse mais forte expulsaria o outro e poderia viver tranqüilo
governando como vencedor. No entanto, o imperador Honório,
temendo ambas as propostas, depois de aceitar a opinião do Senado,
estudava um plano para expulsar os godos da Itália.
153. Finalmente, ele tomou a decisão de que Alarico e seu povo, se eram
capazes, deveriam reclamar como sua própria terra as Gálias e as
Espanhas, províncias distantes e que estavam já quase perdidas e
devastadas pela invasão do rei vândalo Genserico.7 Os godos aceitaram
este acordo, e depois de confirmarem esta doação por um oráculo
sagrado, se puseram a caminho até a pátria que lhes havia sido
entregue.
154. Depois de se retirarem da Itália sem terem cometido nenhuma má
ação, o patrício Estilicão, sogro do imperador Honório (pois o
imperador se casou sucessivamente com suas duas filhas, Maria e
Termancia, e ambas foram chamadas por Deus deste mundo quando
ainda eram virgens e intactas)8, este Estilicão se aproximou
furtivamente da cidade de Polentia, situada nos Alpes Cotios9, e sem os
godos suspeitarem de nada, se lançou a uma guerra que produziria a
destruição de toda a Itália e sua própria vergonha.10
155.  Ao vê-lo se apresentar tão de repente, os godos ficaram
aterrorizados em um primeiro momento, mas logo recobraram os
ânimos incitando-se uns aos outros à luta, como freqüentemente faziam
nesses casos, e conseguiram aniquilar quase todo o exército de Estilicão,
que teve que fugir. Cheios de raiva, abandonaram a viagem que haviam
empreendido e voltaram novamente à Ligúria, por onde já haviam
passado, e depois de saqueá-la e espoliá-la, arrasaram Emília da mesma
maneira. Seguindo a rota da calçada Flamínia em direção a Roma, entre
o Piceno e a Toscana, devastaram e saquearam tudo o que encontraram
em seu caminho por ambos os lados.11
156. Finalmente entraram em Roma, e Alarico deu ordem que somente
a saqueassem, não permitindo que a incendiassem, como costumam
fazer estes povos, nem que se cometesse nenhuma afronta contra
qualquer coisa que se encontrasse nos lugares sagrados.12 Dali se
dirigiram à Campânia e à Lucânia, de onde seguiram ocasionando os
mesmos estragos, até chegarem ao território dos brícios.13 Ficaram ali
uma temporada, e logo decidiram passar à Sicília, e dali aos territórios
africanos. A região dos brícios se encontra nos confins meridionais da
Itália. Forma um ângulo no começo dos montes Apeninos e que se
prolonga como se fosse uma língua, separando o mar Tirreno do
Adriático.14 Há muito seu nome foi tirado da rainha Brícia.
157. Foi assim que ali chegou o rei visigodo Alarico com as riquezas de
toda Itália que havia tomado como botim de guerra, e logo se dispôs a
passar para a tranqüila terra africana através da Sicília, como dissemos.
Mas em seu pavoroso estreito (quão pouco livre é o homem para fazer
algo sem a aprovação de Deus!) afundaram uns quantos barcos e a
maioria sofreu graves danos.15 Dissuadido por esse contratempo,
enquanto estava decidindo o que fazer, Alarico deixou os assuntos
desse mundo como conseqüência de uma morte prematura e
repentina.16
158.  Ele é muito chorado pelos seus, que lhe tributavam um grande
afeto. Desviaram o curso do rio Buzento, junto à cidade de Cosenza (pois
com suas saudáveis águas este rio corre do pé do monte até a cidade) e
reuniram um grupo de prisioneiros para que cavassem uma tumba no
meio da corrente do rio. No interior desse buraco enterraram Alarico
com muitas riquezas, voltando a conduzir de novo as águas a seu leito e
matando todos os enterradores, para que ninguém nunca pudesse
encontrar o lugar. Logo entregaram o reino visigodo a Ataulfo, parente
de Alarico e famoso por sua inteligência e beleza, pois embora não
tivesse grande estatura, se distinguia pela beleza de seu corpo e de seu
rosto.17
(...)
180.  Este Átila teve como pai a Mundiuco, cujos irmãos foram Otar e
Ruas, que dizem que foram reis dos hunos antes de Átila, embora não
tenham reinado sobre todos como ele. Depois da morte deles, lhes
sucedeu no trono dos hunos com seu irmão Bleda, e para poder
livremente levar a cabo os projetos que preparava, tratou de aumentar
suas forças com o fratricídio, começando a destruição universal com o
assassinato de sua própria família.
181.  Mas a justiça atuou sobre ele, que não duvidava de empregar os
meios mais detestáveis para aumentar seu poder, e sua crueldade
encontrou um fim vergonhoso. Assim, após assassinar traiçoeiramente
seu irmão Bleda18, que reinava sobre boa parte dos hunos, reuniu em
torno de si a todo seu povo e outro numeroso grupo de nações que
estavam então submetidas a sua obediência, com o desejo de subjugar
os povos mais numerosos do mundo, os romanos e os visigodos.
182. Estimava-se que o número de efetivos de seu exército era cerca de
quinhentos mil, e que ele era um homem nascido para perturbar os
povos e infundir pavor a todo o universo, pois só com sua tremenda
reputação conseguia aterrorizar a todos. Era arrogante no porte e
virava os olhos de um lado para o outro para que o poder de seu
espírito orgulhoso se manifestasse em cada movimento de seu corpo.
Embora fosse amante da guerra, sabia manter o controle de seus atos.
Era sumamente judicioso, clemente com os que suplicavam perdão e
generoso com os que se aliavam a ele. Era baixo de estatura, de peito
largo, cabeça grande e olhos pequenos; tinha a barba rala, os cabelos
ralos, o nariz achatado e a pele escura, características que denotavam
sua raça.
183. Embora por sua natureza sempre tenha tido grandes esperanças de
êxito, sua ambição cresceu ao encontrar a espada de Marte, que sempre
havia sido considerada sagrada pelos reis da Escítia. O historiador
Prisco19 se refere assim à descoberta: “Um pastor observou que uma das
novilhas de seu rebanho coxeava, e como não encontrava o que podia
ter-lhe causado uma ferida tão grande, seguiu com preocupação os
rastros de sangue, até que finalmente chegou à espada que a incauta
novilha havia pisado enquanto pastava. Ele a desenterrou e a levou
imediatamente a Átila. Este agradeceu o presente, e com a presunção
que o caracterizava, pensou que havia sido designado senhor de todo o
universo, e que por meio dessa espada lhe havia sido concedido o poder
de decidir o resultado das guerras.”
 

Notas
1. Orósio, Hist., 7, 33, 10.

2. Prisco de Pânio acompanhou o general Maximino em uma embaixada de


Teodósio II a Átila, em 448 d. C. É autor de uma  História Bizantina  e  Sobre
Átila  (oito livros, só conservados fragmentos), e serviu como fonte para
Jordanes.

3. Alanos = povo de origem sármata que a partir do século I d. C. emigrou do


norte do mar Cáspio para as regiões orientais do Império Romano.
4. Descrição muito semelhante à de Amiano Marcelino (Hist., 31, 2, 21), autor do
século IV d. C.

5. Chefes romanos da Trácia e da Escítia Menor, respectivamente.

6. Batalha de Adrianópolis (9 de agosto de 378 d. C.) – atual Edime, ao noroeste


da Turquia (cidade fundada por Adriano em 132 d. C.) – na qual morreram
dois terços do efetivo romano.

7. Rei vândalo que viveu de 400 a 477 d. C. Os vândalos entraram nas Gálias com
os suevos e alanos no ano 406 e se dirigiram para a Hispânia em 409.

8. Tudo indica que Honório sofria de impotência sexual.

9. Atual Pollenza, cidade próxima de Turim.

10. Apesar do que diz Jordanes, Estilicão venceu os visigodos próximo dessa
cidade, em 06 de abril de 402.

11. Fatos ocorridos no ano 408.

12. A queda de Roma aconteceu no dia 24 de agosto de 410. Os godos a


saquearam durante três dias. Jordanes destaca aqui a clemência de Alarico.

13. Na atual Calábria.

14. Na verdade, se trata do Mar Jônico.

15. Trata-se do Estreito de Messina.

16. Alarico morreu no ano 411 d. C.

17. Ataulfo era cunhado de Alarico, e reinou de 411 a 415 d. C.

18. No ano 445 d. C.

19. Prisco, Frag., 8.

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