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Pa t r i m ô n i o I m a t e r i a l

f o rta l e c e n d o o s i st e m a n a c i o n a l
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

Patrimônio Imaterial:

fortalecendo o Sistema Nacional

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN


Brasília, 2014

1
PATRIMÔNIO IMATERIAL

© 2014 IPHAN

A reprodução desta publicação, na íntegra ou em parte, é permitida desde que citada sua fonte.

Publicado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em parceria com a Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e a Inspire Gestão Cultural (Inspire|EAD).

Organização: Lucas dos Santos Roque e Maria Helena Cunha


Produção: Christiane Birchal – Inspire| Gestão Cultural
Revisão técnica: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e Setor de Cultura da Representação
da UNESCO no Brasil
Revisão editorial e projeto gráfico: Unidade de Comunicação, Informação Pública e Publicações da Representação da
UNESCO no Brasil

Brasil. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional


Patrimônio imaterial: fortalecendo o Sistema Nacional / Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional. – Brasília : IPHAN, 2014.
174 p.
Incl. Bibl.
ISBN: 978-85-7334-247-5

1. Patrimônio cultural imaterial 2. Brasil I. Título

Esta publicação é parte de ação coordenada entre o Programa Regular da UNESCO Capacity Building on Living
Heritage (6413305006BRZ) e o Projeto de Cooperação Técnica Difusão da Política do Patrimônio Cultural Imaterial
no Brasil (914BRZ4012), entre o IPHAN e a Representação da UNESCO no Brasil, e visa a contribuir na gestão
integrada da política de promoção e salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. Os autores são responsáveis
pela escolha e pela apresentação dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opiniões nele expressas, que não
são necessariamente as da UNESCO, nem comprometem a Organização. As indicações de nomes e a apresentação
do material ao longo desta publicação não implicam a manifestação de qualquer opinião por parte da UNESCO
a respeito da condição jurídica de qualquer país, território, cidade, região ou de suas autoridades, tampouco da
delimitação de suas fronteiras ou limites.

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FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

SUMÁRIO

PREFÁCIO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ............................................................... 5

APRESENTAÇÃO.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ............................................................... 7

CORDEL: Patrimônio Imaterial: fortalecendo o Sistema Nacional


Eliane Franco Pereira.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ............................................................... 9

1. INTRODUÇÃO
Lucas dos Santos Roque e Maria Helena Cunha............................................... 11
1.1 Um breve histórico: do curso à publicação. .................................................. 11
1.2 Sistema Nacional de Patrimônio Imaterial: conquistas e desafios.................... 13
1.3 Educação a distância (EAD): desafios de um processo formativo. . ................... 15

2. PATRIMÔNIO IMATERIAL: Fortalecendo o Sistema Nacional. . ................................. 19

2.1 Tratando de conceitos – Mônia Silvestrin................................................... 19


Referências bibliográficas.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . ............................................................. 38
Fórum de discussão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ............................................................. 40
2.2 a Instrumentos e práticas de salvaguarda (Turma 1) – Márcia Sant’Anna...... 43
Referências bibliográficas.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . ............................................................. 48
Fórum de discussão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ............................................................. 50
2.2 b Instrumentos e práticas de salvaguarda (Turma 2) – Rívia Bandeira ........... 53
Referências bibliográficas.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . ............................................................. 66
Fórum de discussão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ............................................................. 67
2. 3 Instrumentos de gestão e políticas de fomento – Maria Elizabeth Costa. .... 70
Referências bibliográficas.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . ............................................................. 79
Fórum de discussão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ............................................................. 80
2.4 Convenção da UNESCO de 2003 – Lucas dos Santos Roque........................ 82
Referências bibliográficas.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . ........................................................... 102
Fórum de discussão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ........................................................... 102
2.5 Participação e gestão do patrimônio – Letícia Vianna............................... 105
Referências bibliográficas.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . ........................................................... 118
Fórum de discussão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ........................................................... 118

3
PATRIMÔNIO IMATERIAL

2.6 Legislação brasileira (PNPI, estados e municípios) – Mário Pragmacio........ . 121


Referências bibliográficas.............................................................................. . 131
Fórum de discussão. . . . . . ............................................................................... . 132
2.7 Intersetorialidade, patrimônio e desenvolvimento – Juliana Santilli.......... . 134
Referências bibliográficas.............................................................................. . 152
Fórum de discussão. . . . . . ............................................................................... . 155

3 AVALIAÇÕES E CONSIDERAÇÕES SOBRE O CURSO.. ........................................... . 159

4 FICHA TÉCNICA.. . . . . . . . . . . . . . ............................................................................... . 173

4
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

PREFÁCIO

UNESCO e IPHAN: princípios e estratégias em alinhamento

para salvaguarda e promoção do Patrimônio Imaterial

A proposição e a implementação de políticas públicas com foco no Patrimônio Imaterial,


em sinergia com princípios e instrumentos normativos da UNESCO, vêm conferindo um
papel de destaque ao Brasil, a exemplo do Decreto n° 3.551/20001, voltado ao Registro
de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem o Patrimônio Cultural brasileiro.

Esse protagonismo na concepção e na instituição de um instrumento legal que


mobiliza o Estado para conhecer e registrar – passos fundamentais para proteger e
promover – as formas de expressão do Patrimônio Imaterial, influenciou a conformação
da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial2, aprovada pela
UNESCO em 2003 e já ratificada por mais de 150 países.

Em meio ao fenômeno da crescente massificação cultural, ocorrido nas últimas


décadas, perceber a importância e ativar mecanismos para preservação e promoção
das tradições populares, os saberes, as manifestações culturais e lugares onde elas
se realizam, significou não somente um avanço setorial no campo em questão, mas
um alinhamento a políticas mais amplas de valorização da cidadania e respeito à
diversidade cultural.

Grandes desafios têm se interposto à efetivação dessas políticas, dos quais podemos
mencionar a articulação federativa mediante a dimensão do território e a complexidade
dos marcos e instrumentos legais, tendo-se em vista as limitações existentes para
profissionalizar a gestão local. Mais recentemente, os impactos causados por
intervenções em grande escala, afetando diversas comunidades, vêm exigindo novos
arranjos institucionais, físicos e simbólicos, que assegurem sustentabilidade ao processo
de desenvolvimento e crescimento econômico.

1. BRASIL, 2000.
2. BRASIL, 2000.

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PATRIMÔNIO IMATERIAL

Temos nos alinhado a algumas ações do IPHAN em prol da expansão do Programa


Nacional de Patrimônio Imaterial, especialmente por meio de estratégias que envolvem
o fortalecimento de instâncias regionais e locais, ao mesmo tempo em que visualizamos
um movimento de aproximação entre tais políticas e outras áreas, pela transversalidade
de algumas temáticas.

Nesse contexto, as experiências para difusão de conteúdos e capacitação de agentes


e gestores locais, das quais temos participado desde o ano de 2008, em parceria com
o IPHAN, vêm se confirmando como uma estratégia bem-sucedida para disseminar
os princípios gerais, as políticas e os instrumentos de identificação, documentação e
salvaguarda do Patrimônio Imaterial.

A experiência mais recente, que referencia essa publicação, mobilizou diretamente 400
pessoas, selecionadas a partir de mais de três mil inscrições, envolvendo as instâncias
públicas estadual, municipal e sociedade civil, em todos os estados brasileiros.
Sua dinâmica, a exemplo das referidas edições anteriores, tem contribuído para o
diálogo entre especialistas, gestores locais e demais agentes, favorecendo o debate e
consequentes respostas a demandas tão distintas, distribuídas pelo país.

Torna-se gratificante compartilhar os conteúdos resultantes dessa ação com os leitores,


na expectativa de que possam, por sua vez, atuar para a multiplicação de iniciativas que
venham a fortalecer o tema dentro do conjunto das políticas públicas brasileiras para o
desenvolvimento sustentável.

Representação da UNESCO no Brasil

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FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

APRESENTAÇÃO

Disseminando a política de salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial

A comemoração dos dez anos da Convenção de 2003 da UNESCO para Salvaguarda


do Patrimônio Cultural Imaterial3 é um momento apropriado para promover a reflexão
e fortalecer capacidades em torno da política brasileira de salvaguarda do Patrimônio
Cultural Imaterial, tendo como foco a sua descentralização e o aumento da escala de
participação de estados, municípios e sociedade civil.

Após mais de uma década da assinatura do Decreto n° 3.551/20004, que instituiu o


Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem Patrimônio Cultural
brasileiro e criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, em âmbito federal,
verifica-se um grande avanço profissional no setor e a criação de ações de mapeamento,
inventários de referência cultural, pesquisas para registros de bens, editais para
financiamento. Entretanto, grande parte dessas ações ainda está muito restrita à
área federal e, apesar de estados e municípios se mobilizarem para a criação de suas
legislações concorrentes sobre o assunto, é cada vez mais evidente a necessidade de se
aumentar o alcance da política e incentivar a formação de profissionais que tenham a
percepção ampla de todo o processo, e que possam responder, de forma mais reflexiva
e efetiva, a essa nova demanda em seus estados e municípios.

Ao optar pela edição de um curso livre a distância (EAD) com o tema Patrimônio
Imaterial: fortalecendo o Sistema Nacional, por meio do Projeto Difusão da Política do
Patrimônio Cultural Imaterial no Brasil, parceria do Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (IPHAN) com a Representação da UNESCO no Brasil, pretendeu-
se levar os conceitos e instrumentos, que já estão consolidados no âmbito federal,
para as demais esferas de governo, buscando-se também a participação fundamental
de organizações não governamentais e indivíduos com interesse na área, em todo
território nacional.

Experiências anteriores na mesma área tiveram bastante êxito, tais como: o Curso
Patrimônio Imaterial: Política e Instrumentos de Identificação, Documentação e
Salvaguarda, realizado, em duas turmas, em 2008 e 2009, e aquele realizado pelo Centro

3. Idem.
4. BRASIL, 2000.

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PATRIMÔNIO IMATERIAL

Regional para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial da América Latina (CRESPIAL), em


2011, que versava sobre Registro e Inventário do Patrimônio Imaterial.

Apesar da divulgação realizada somente junto às redes sociais, houve uma grande
procura, com mais de três mil inscrições, o que determinou a realização de mais uma
turma, e deixou claro que há interesse e necessidade de ações desse tipo.

O IPHAN acredita que a realização dos cursos e a publicação do seu conteúdo, que
ora é colocado à disposição, oferecerá a um público mais amplo de profissionais as
informações necessárias para a difusão da política e da legislação do PCI, consolidando
e fortalecendo o Sistema Nacional de Patrimônio e, em consequência, o próprio Sistema
Nacional de Cultura.

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)

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FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

CORDEL
“Patrimônio Imaterial: fortalecendo o Sistema Nacional”
Eliane Franco Pereira
Assistente social, aluna da Turma 2

I XI
A meus colegas vou falar, Instrumentos e Práticas de Salvaguarda,
Aos professores vou contar, Tivemos Rívia Bandeira de Alencar,
Nesse cordel audacioso, Instrumentos de Gestão e Práticas de Fomento,
Que irei confabular. Elizabeth Costa!  Dinâmica no comentar.
II XII
Vocês nem imaginam, Convenção 2003 UNESCO,
Como me dá aflição, Sabem quem foi o doutor?
Escrever essas palavras, O Lucas dos Santos Roque,
Cheias de muita emoção! Que é um mestre de valor!
III XIII
Pensem o quanto é bom! Participação Social dos atores,
Conhecer a grandeza, E Gestão do Patrimônio Imaterial,
Do patrimônio imaterial, Letícia Costa Rodrigues Vianna,
Em EAD, ó que beleza! Levantou questões da política cultural.
IV XIV
Muitas informações, Legislação Brasileira, ó gente!
E conteúdos também, Mário Pragmácio regente,
Riquezas por demais! PNPI, estados e municípios,
Os comentários contêm. Eita! Dominou legalmente!
V XV
Ah! Ia me esquecendo, Intersetorialidade, Patrimônio,
Do que estou falando, E  Desenvolvimento também,
É do curso do IPHAN, Juliana Santilli é competente!
Inspire|EAD aproximando. Empoderamento... , ela tem!
VI XVI
IPHAN e UNESCO unidos, Algumas colegas marcantes,
Na luta para preservar, Com uma forte mentalidade,
Os Patrimônios Imateriais, Pra não ser injusta com os outros,
Inspire|EAD veio encampar! Eu não falo a identidade.
VII XVII
Planos de salvaguarda, Cursamos Patrimônio Imaterial,
A PCIs miscigenados, Fortalecendo o Sistema Nacional
Legados dos ancestrais, Viajamos em EAD pelo Brasil,
Também sincretizados! Foi bastante sensacional!
VIII XVIII
Tomamos cafezinhos, Só temos a agradecer,
Sem importar a hora, Pela boa oportunidade,
Ana, tutora valente! Que a coordenação técnica,
Estava no “aqui e agora”! Concedeu-nos com a verdade.
IX XIX
Tamanha envergadura! E agora pessoal! E aí?
Nas retóricas procedentes, O curso chegou ao fim.
Comentadas em pouco tempo, Só vai deixar saudade, ai!
Tão corrido como o vento. O peito aperta em mim.
X XX
Adaptação e Ambientação em EAD, No meu cofo de segredos,
Que a Patrícia Faria orientou, Guardo todos com afeição,
E Tratando de Conceitos, Desculpem a rima truncada,
A Mônia Silvestrin ensinou! Mas estão no meu coração!

Cururupu (Ma), 14/07/2013


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FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

1 Introdução
Lucas dos Santos Roque

Coordenador de conteúdo

Maria Helena Cunha

Coordenadora pedagógica

A publicação “Patrimônio Imaterial: fortalecendo o Sistema Nacional“ é resultado da


organização do conteúdo de duas turmas do curso homônimo realizado pelo Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e pela Representação da UNESCO
no Brasil, por meio do Projeto Difusão da Política do Patrimônio Cultural Imaterial no
Brasil e oferecido na modalidade a distância pela plataforma Inspire|EAD. O curso foi
realizado entre os meses de março e julho de 2013 e contou com a coordenação de
conteúdo de Lucas dos Santos Roque, com a coordenação técnica e pedagógica de
Maria Helena Cunha e com a participação de vários especialistas que ministraram as
disciplinas de temas específicos.

1.1 Um breve histórico: do curso à publicação

Em uma rápida retrospectiva histórica, o curso Patrimônio Imaterial: fortalecendo o


Sistema Nacional, durante o seu processo de inscrições, superou as expectativas iniciais
com relação às 200 vagas gratuitas oferecidas inicialmente para profissionais de todo o
país, pois as inscrições alcançaram um número superior a 3,3 mil pessoas.

A primeira turma do curso teve início em março de 2013, mas essa demanda muito
superior ao previsto inicialmente levou aos organizadores do curso a considerarem a
necessidade de estruturação de uma segunda turma, que teve início em maio de 2013,
um pouco depois da finalização da primeira.

O processo de seleção teve como base os critérios definidos em conjunto entre as


instituições realizadoras e os organizadores do curso, com a perspectiva de orientar
os membros da comissão de todo o processo seletivo. Para tanto, na primeira
turma levou-se em consideração, prioritariamente, profissionais com atuação na área
específica, tendo como perspectiva um melhor aproveitamento e aplicabilidade do
curso. Assim, foram selecionados a partir da definição do perfil de público, conside-
rando a proporcionalidade por segmento (experiência/função) e a proporcionalidade
regional, além de critérios específicos, como o envolvimento com a base social e no

11
PATRIMÔNIO IMATERIAL

campo do Patrimônio Cultural Imaterial (PCI); sujeitos com potencial de multiplicação


do conhecimento adquirido; profissionais de regiões/municípios onde há bem
inventariado, em processo de registro e/ou registrado, onde não há nenhuma instituição
de preservação/salvaguarda de patrimônio e municípios considerados estratégicos.

Dessa forma, considerando que o foco principal do curso foi estabelecer um processo
que levasse ao fortalecimento do Sistema Nacional de Patrimônio Imaterial, e diante
do número excessivo de inscrições recebidas, optou-se por abrir a segunda turma,
com perfis de alunos mais diversificados com relação aos segmentos de atuação
em comparação à primeira. Essa forma de estruturação propiciou a manutenção do
foco da primeira turma mais concentrado na estruturação do Sistema Nacional, com
representantes dos estados e municípios, e na segunda turma com a ampliação
dos atores envolvidos no processo de salvaguarda do Patrimônio Imaterial, a saber:
pesquisadores, membros de ONGs e estudantes, dentre outros.

No total, foram selecionados 418 alunos, com representação de praticamente todos


os estados brasileiros, Distrito Federal, capitais e cidade do interior dos estados, como
podemos ver no relato de um dos participantes:
Para mim, que moro num município do interior do RS, foi uma
oportunidade muito importante poder fazê-lo a distância, pois se fosse
semipresencial, já não teria condições de participar. Desejo que muito
em breve eu possa fazer um curso de pós-graduação a distância, para
conseguir me instrumentalizar ainda mais sobre patrimônio. (Turma 1)

Reiteramos que a excessiva procura para a realização do curso demonstra a dimensão


e a importância que a temática do Patrimônio Imaterial têm ganhado em todo o
Brasil. Essa constatação ressalta a importância desta publicação, que tem como um
de seus principais objetivos a disponibilização do conteúdo gerado para o curso e
durante a sua realização, o que significa ampliar a capacidade de alcance e circulação
de conhecimentos específicos para além dos alunos que tiveram a oportunidade de
acesso gratuito ao curso, suprindo uma deficiência no setor cultural, no que diz respeito
às referências bibliográficas.
O depoimento abaixo corrobora a importância de se disponibilizar o conteúdo do
curso para um número maior de pessoas da área:
O curso trouxe muitos conceitos e reflexões que contribuíram para um
maior esclarecimento sobre o Patrimônio Cultural Material e Imaterial.
Os textos, embora eu não tenha conseguido ler tudo, são de uma riqueza
muito grande e que servirá de consulta para os trabalhos que realizo.
(Turma 1)

O conteúdo desta publicação tem como base as informações e os dados gerados desde
o processo de seleção até a conclusão das duas turmas. Para tanto, foram considerados
os questionários de avaliação respondidos pelos alunos, o resultado conceitual gerado
durante os fóruns de debates, estabelecidos por professores e alunos na plataforma, bem

12
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

como a veiculação dos textos referenciais produzidos pelos professores responsáveis


pelas disciplinas.

1.2 Sistema Nacional de Patrimônio Imaterial: conquistas e desafios

A realização do curso a distância Patrimônio Imaterial: fortalecendo o Sistema Nacional


e, consequentemente, a produção desta publicação têm como objetivo fortalecer as
capacidades locais para estruturação e execução de políticas de Patrimônio Imaterial
nos estados e municípios brasileiros, por meio da capacitação de gestores culturais para
atuarem na salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial – legislação, identificação,
reconhecimento, apoio e fomento à sustentabilidade.

Para a estruturação conceitual do curso, levou-se em consideração que é fato inegável


o avanço das políticas públicas de preservação do Patrimônio Cultural brasileiro nas
últimas décadas. Um importante marco nesse sentido foi a ampliação da noção de
Patrimônio Cultural, a qual passou a considerar não somente os aspectos materiais
das manifestações culturais, mas também suas dimensões natural e imaterial. Essa
ampliação, consolidada nas últimas décadas do século XX, demandou, por sua vez, que
fossem implementados novos instrumentos de pesquisa e arcabouços jurídicos que
garantissem a salvaguarda dos bens culturais sob essa perspectiva ampliada.

É nesse contexto que se dá a criação do Programa Nacional de Patrimônio Imaterial


(PNPI), por meio do Decreto n° 3.551, de 20055, o qual instituiu o Registro como
instrumento de proteção e salvaguarda dos bens de natureza imaterial. Ainda de acordo
com esse Decreto, em seu artigo 2º: São partes legítimas para provocar a instauração
do processo de registro:

I. O Ministro de Estado da Cultura;


II. Instituições vinculadas ao Ministério da Cultura;
III. Secretarias de Estado, de Município e do Distrito Federal;
IV. Sociedades ou associações civis.

Torna-se evidente a possibilidade e a necessidade do envolvimento dos diferentes


entes federados e da sociedade civil nos processos de instauração de Registro, ainda
que a instrução desses processos deva ser supervisionada pelo IPHAN, e na própria
implementação do Programa Nacional de Patrimônio Imaterial.

Considerando as características dos bens de natureza imaterial – saberes, fazeres,


celebrações e formas de expressão – assim como o processo de abertura para a
implementação de processos participativos, toda a Política de Patrimônio Imaterial está
baseada na participação e no protagonismo das comunidades detentoras no processo
de pesquisa, inventário e implementação das ações de salvaguarda.

5. Idem.

13
PATRIMÔNIO IMATERIAL

Nota-se que, diferentemente das políticas voltadas para a preservação do Patrimônio


Material, o processo de Registro é considerado não somente como um ato administrativo,
mas, também, como um ato social, o qual vem carregado dos vários sentidos dados
pelos envolvidos nesse processo: poder público, comunidade detentora, ONGs, dentre
outros. Além disso, a efetividade das ações de salvaguarda está diretamente associada à
forma de condução dessas ações e ao envolvimento direto da comunidade detentora.

Esse caráter participativo, expresso tanto no Decreto n° 3.551/20006 quanto no PNPI,


fez com que essa noção de Patrimônio Imaterial fosse amplamente difundida para
todos os entes federados, bem como entre as ONGs e nas comunidades detentoras.
Pode-se dizer que a noção da importância dos bens de natureza imaterial – (seja
esta ou não a denominação utilizada nos discursos) – é atualmente reconhecida por
grande parte da população do país. Entretanto, o reconhecimento da importância do
Patrimônio Imaterial não se converteu necessariamente em implementação de políticas
de salvaguarda em âmbito estadual e municipal. O cenário que se tem hoje no país
é da existência de profundas desigualdades em relação à implementação de políticas
públicas de salvaguarda do Patrimônio Imaterial e de consolidação do Sistema Nacional
de Patrimônio Imaterial.

Assim, tendo como premissa que a salvaguarda do Patrimônio Imaterial é realizada, em


última instância, pelas comunidades portadoras, o curso e a publicação “Patrimônio
Imaterial: fortalecendo o Sistema Nacional” buscam aprofundar o entendimento do
papel das comunidades em todo o processo de planejamento e execução das políticas
públicas de gestão e promoção desse tipo de patrimônio. Também enfocam a questão
da legislação sobre o patrimônio, tratando dos principais aspectos e utilizando estudos
de caso nos âmbitos internacional – com a análise de um importante marco para a
consolidação da ideia de Patrimônio Imaterial, que foi a Convenção de 2003 da UNESCO
–, nacional, estadual e municipal.

A perda e os riscos a que estão submetidas as manifestações do Patrimônio Imaterial são


também enfocados como conteúdo, bem como o papel do Estado na sua salvaguarda.
Tem-se o contraponto dos principais instrumentos de preservação do Patrimônio
Cultural brasileiro, a saber: inventário; registro; planos de salvaguarda; políticas de
incentivos fiscais; educação patrimonial; e listas UNESCO; também são abordados
conteúdos que apresentam as suas características, seus alcances, seus impactos e suas
potencialidades.

A dinamicidade, as interações com aspectos de identidade, o território e o meio


ambiente são algumas das dimensões que compõem os bens de natureza imaterial, e
tratar desses temas e manifestações tão dinâmicos em um formato de curso a distância,
para um público que abrange todo o território nacional e, em seguida, transformá-lo em
uma versão para a publicação, são desafios postos sob o ponto de vista metodológico
e da organização de conteúdos.

6 Ibid.

14
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

No que diz respeito ao conteúdo, dar voz aos participantes é fundamental para a
avaliação dos caminhos escolhidos, pois quando se escuta que o “curso me capacitou
para melhor trabalhar com as comunidades e falar com mais propriedade sobre o
Patrimônio Imaterial”, nos permite auferir que os resultados foram positivos, e que
a ampliação do acesso às informações geradas é necessária como uma iniciativa
democrática e contribuirá para o fortalecimento do Sistema Nacional. Assim,
continuamos com o depoimento de um dos alunos:
Eu achei o curso muito esclarecedor, os professores excelentes, e o
material disponibilizado igualmente satisfatório. O curso ultrapassou as
minhas expectativas, aumentando ainda mais minha conscientização
com relação ao Patrimônio Imaterial, e a vontade de contribuir para a
salvaguarda dos bens imateriais. (Turma 1)

A resolução desse desafio se deu com a participação de especialistas em cada um


dos temas abordados e com a utilização de diferentes tipos de materiais de apoio.
Esses materiais, associados às discussões estabelecidas nos fóruns, promoveram a troca
de experiências, o aprofundamento do conhecimento acerca dos conceitos e dos
instrumentos relacionados ao tema.

Identifica-se como desdobramento do curso a ampliação do acesso ao conteúdo por


iniciativa dos próprios alunos, quando um deles afirma:
que dispus o conteúdo do curso e os textos para os membros da equipe
que trabalha comigo (arquiteta, historiadora e estagiários de arquitetura
e história) e repassei para os membros do Conselho de Patrimônio como
forma de difusão do conteúdo curso, em uma ação multiplicadora.
(Turma 1)

Essa é uma das iniciativas que são incentivadas pelo formato de educação a distância,
quando os alunos extrapolam o ambiente virtual e compartilham os conhecimentos
adquiridos durante a realização do curso, cumprindo o papel de multiplicadores de um
processo formativo. Em uma perspectiva de continuidade, outro aluno afirma sobre
essa possibilidade:
O assunto é muito novo pra mim e não tenho o conhecimento necessário
sobre o Patrimônio Imaterial da minha região. Acho interessante montar
um grupo de estudo para provocar discussões, reflexões e trocas com outros
que também se interessam pelo assunto no meu município. (Turma 1)

1.3 Educação a Distância (EAD): desafios de um processo formativo

Como dito anteriormente, foi um grande desafio trabalhar conceitualmente os diversos


conteúdos dentro de um formato de curso que abrangesse grande parte da discussão
em torno do tema Patrimônio Imaterial conteúdos que, pela própria natureza, são
dinâmicos e complexos. No entanto, esse desafio torna-se ainda mais evidente quando

15
PATRIMÔNIO IMATERIAL

se trata de um curso no formato a distância (EAD) com a perspectiva de alcançar um


público de abrangência nacional, tendo que considerar a própria diversidade cultural
brasileira, além das questões sociais, políticas e econômicas.

Superados os desafios conceituais e metodológicos para a realização do curso a distância


Patrimônio Imaterial: fortalecendo o Sistema Nacional, é importante ressaltar que a EAD
no Brasil tem sido uma ferramenta de formação profissional que tem proporcionado
condições reais de acesso a conhecimentos específicos para um grande número de
pessoas distantes dos grandes centros urbanos, o que significa investir na democratização
do direito de aquisição de saberes, como fonte de construção da cidadania.

É preciso considerar que vivemos em um país de grandes extensões territoriais e com


uma diversidade cultural extraordinária, o que faz da aprendizagem virtual uma das
principais oportunidades de acesso à educação formal e informal de vários profissionais.
Um dos participantes do curso reafirma em sua avaliação que:
Só mesmo [para] reforçar meus cumprimentos pela iniciativa e dizer
que esta ação traz um grande fortalecimento, principalmente aos
municípios do interior, como o nosso, que necessitam muito deste tipo
de atividade para o alcance de melhores resultados em seu trabalho e
maior integração com os demais. (Turma 1)

As novas tecnologias da informação e a metodologia de ensino para EAD tornaram-se


ferramentas facilitadoras que garantem um processo contínuo de formação, por meio
da aprendizagem colaborativa e do compartilhamento de ideias e reflexões coletivas,
incentivando a participação ativa e a interação permanente entre os participantes e
seus pares profissionais. O envolvimento completo de um aluno no curso permite
que ele extrapole o ambiente exclusivo da plataforma e crie oportunidade de dar
continuidade aos seus estudos e à busca de conhecimento:
O fato de exercitar o pensamento de acordo com o conhecimento me
deu muita vontade de voltar a estudar. Foi uma vivência especial em
um momento em que necessitava de renovação, desmistificando,
inclusive, o estudo à distância, que é uma oportunidade incrível na
contemporaneidade. Gosto de fazer parte e de estar integrada a isso.
Gostaria de continuar debatendo alguns temas e dúvidas específicos no
trabalho prático, como poderei fazer? (Turma 1)

Nesse espaço virtual, é possível interagir – alunos, monitores, professores, coordenadores


– para trocas de experiências e construção de conhecimento comum entre os pares
profissionais, criando condições para a formação de redes de cooperação a partir de
um ambiente de estudo que tem como princípio o processo formativo na diversidade.
Nem sempre a tecnologia torna-se uma ferramenta virtual de estudos amigável e
compatível com o perfil de alunos, tanto que um dos alunos da primeira turma expõe
o seu problema:

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FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

É a primeira vez que participo de um curso nesta modalidade e, pelo


que percebo, a interação entre as pessoas não é um aspecto fácil de
resolver; ocorre que, considerando o meu ritmo de vida e de trabalho,
minha autoavaliação diz que não estou conseguindo alcançar a minha
própria expectativa com relação ao aproveitamento do curso, portanto,
não tenho sugestões a fazer. (Turma 1)

A escolha por uma metodologia de formação a distância busca responder às necessi-


dades de uma formação continuada e estimula o compartilhamento do seu conteúdo
com outros profissionais à sua volta, principalmente, quando se trata do mesmo
ambiente de trabalho. Ao mesmo tempo, tem a capacidade de incentivar o acom-
panhamento dos profissionais nos desafios e atividades cotidianas, motivando-os no
desenvolvimento de seus trabalhos. Isso é visto no depoimento de um dos alunos do
curso, que entre outros, afirma:
Tenho a dizer que este curso foi um verdadeiro aprendizado para
mim. Atualmente, trabalho na Secretaria de Turismo do município e
todo conteúdo do curso partilhei em forma de oficinas para os nossos
funcionários. Foi um verdadeiro sucesso. (Turma 2)

De forma mais específica, com a relação à metodologia dos cursos a distância realizados
pela plataforma Inspire|EAD, é seguido o modelo pedagógico em que metade das
atividades envolve autoinstrução (leitura de textos e artigos de especialistas), e a outra
metade envolve aprendizagem colaborativa e a criação de uma comunidade virtual,
por meio da participação de um fórum de debates entre professores e alunos. Além
disso, são disponibilizados outros espaços na plataforma para a complementaridade
da busca de interatividade e conhecimentos, como o Cafezinho, espaço de diálogos
informais e área para cadastro de perfil dos participantes, com o objetivo de integração
dos alunos, documentos específicos para a turma, notícias e midiateca, que é uma
biblioteca digital multimídia. Neste último item, uma dos participantes relata a seguinte
experiência com a plataforma:
Em geral, tirando as particularidades já mencionadas, estou bastante
satisfeita com o curso, inclusive [destaco] a midiateca, que nos fornece
o acesso a conteúdos com primazia e com riqueza de conhecimentos,
como também todos os conteúdos que são postados pelos professores
em suas aulas as quais já participamos. (Turma 2)

O que norteou a construção da plataforma foi o estabelecimento de um ambiente


em que todos possam navegar e acessar os conteúdos facilmente e, posteriormente,
discutir os temas apreendidos no fórum de debates, junto aos professores. Assim,
para alcançar um maior número de pessoas na diversidade territorial em todo o Brasil,
independentemente da região, de norte a sul, no interior ou nas capitais, estruturou-
-se uma plataforma de navegação simples, amigável e sem muitos recursos visuais e
“pirotecnias” que possam dificultar o acesso em determinadas localidades.

17
PATRIMÔNIO IMATERIAL

Dessa forma, consideramos que os recursos tecnológicos aplicados à informação e


à comunicação funcionam como facilitadores do processo de aprendizagem, incen-
tivando a participação ativa e a interação permanente, como forma de ampliação e
compartilhamento de conhecimentos diferenciados.

Assim, a realização das duas turmas do curso Patrimônio Imaterial: fortalecendo o


Sistema Nacional tornou-se mais do que uma oportunidade para contribuir e participar
da divulgação do conteúdo sobre o Patrimônio Cultural brasileiro e fortalecer, mais
especificamente, o Sistema Nacional de Patrimônio Imaterial, mas também de criar as
condições para dar continuidade ao trabalho de formação do profissional de cultura.
Neste momento, cumprindo um dos objetivos da iniciativa, colocamos à disposição
de um maior número de pessoas o acesso a todo o seu conteúdo, por meio desta
publicação.

18
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

2. Patrimônio Imaterial:
fortalecendo o Sistema Nacional

Para a realização das duas turmas do curso, foi estruturado um conjunto de disciplinas,
as quais são apresentadas neste tópico, como o conteúdo principal desta publicação.
Além do texto principal do autor/professor e suas respectivas referências bibliográficas,
foi incluída uma síntese do fórum de discussão realizado entre alunos e professores
na plataforma Inspire|EAD, com o objetivo de compartilhar uma parte do debate
estabelecido em torno dos temas específicos de cada disciplina.
O curso tem como aula inicial a disciplina de Adaptação e Ambientação em EAD,
ministrada pela professora Patrícia Faria. O seu objetivo é oferecer o instrumental
adequado para uma aprendizagem virtual e estabelecer uma relação amigável com a
tecnologia. Objetiva também analisar os vários pontos da plataforma do curso, otimizar
a utilização de seus recursos e explicitar a metodologia de aprendizagem adotada. Por
fim, visa a apresentar o curso, detalhar o conteúdo de cada aula, os nomes e currículos
dos profissionais envolvidos em sua concepção pedagógica.

2.1 Tratando de conceitos

Ementa: Analisar e discutir os principais conceitos relacionados ao Patrimônio Cultural


brasileiro em suas diferentes dimensões e interações com aspectos de identidade,
território, meio ambiente. Referências culturais e patrimônio; conceito de comunidades,
sob o ponto de vista da gestão do Patrimônio Cultural, identidade, território e referências
culturais.

Professora: Mônia Silvestrin

Graduada em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e mestre em


História pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é coordenadora-geral de
identificação e registro do Departamento de Patrimônio Imaterial do IPHAN.  Atua
como docente no ensino superior desde 2003 e, como pesquisadora, desenvolve
estudos no campo da história das ideias, história cultural e Patrimônio Cultural.

19
PATRIMÔNIO IMATERIAL

2.1.1 Tratando de conceitos: introdução

Este texto tem como objetivo propor alguns olhares acerca de conceitos importantes
para o entendimento das políticas e das ações relativas à salvaguarda do PCI. As
reflexões aqui apresentadas têm como base textos e documentos referenciais, de
cunho acadêmico e/ou institucional, assim como as experiências desenvolvidas no
âmbito da política federal do Patrimônio Imaterial.

A proposta é apontar uma definição geral desses conceitos7, de modo que possam
fornecer referências para a compreensão do campo do Patrimônio Imaterial, abarcando
as questões estruturantes que eles suscitam quando se trata de pensar as práticas de
patrimonialização no âmbito da ação estatal. Isso quer dizer que não estaremos tratando
aqui do Patrimônio Imaterial per se, mas sempre na perspectiva da sua condição de
objeto de políticas públicas.

2.1.2 O Patrimônio Cultural como objeto de política pública

Pensar o Patrimônio Cultural na perspectiva de política pública suscita ao menos duas


questões importantes. A primeira é a da existência de marcos legais. Qualquer política
pública somente se constitui como tal se houver instrumento legal que autorize a sua
criação e regulamente o seu funcionamento. No caso do Patrimônio Cultural, os marcos
legais mais conhecidos, além do artigo 216 da Constituição Federal de 19888, são o
Decreto-lei n° 25, de 1937, que criou o IPHAN9 e instituiu o Tombamento; e o Decreto
n° 3.551/200010, que instituiu o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e criou o
Registro como instrumento de reconhecimento específico para o Patrimônio Imaterial.

Considerando que a preservação do Patrimônio Cultural é responsabilidade de todos


os entes da União, é muito importante que os estados e os municípios elaborem
suas políticas específicas sobre o tema, atendendo aos contextos socioculturais,
econômicos e políticos nos quais estão inseridos. Somente quando tivermos uma rede
institucional bem estruturada de políticas públicas, com as seus respectivos órgãos, é
que poderemos, de fato, trabalhar de forma articulada. Essa é uma das fragilidades em
termos de gestão do Patrimônio Cultural no Brasil.11

A segunda questão relevante diz respeito à relação entre Estado e sociedade civil. Todas
as políticas públicas se destinam a atender a demandas de cidadãos, o que significa,
hoje, trabalhar na perspectiva da construção compartilhada dessas políticas, de seus
programas e ações, assim como garantir a participação de grupos sociais na sua execução
e acompanhamento. No caso da política federal de Patrimônio Imaterial, a participação
dos detentores e grupos interessados é pressuposto de qualquer uma das suas ações.

7. Muitos desses conceitos apresentam historicidades e trajetórias próprias no campo das ciências sociais, impossíveis de serem
abordadas aqui na sua integralidade. Recomendamos, portanto, a leitura dos livros indicados nas bibliografias e os textos
complementares, para o aprofundamento das questões abordadas.
8. BRASIL, 1988.
9. Na época, Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) (BRASIL, 1937).
10. BRASIL, 2000.
11. Ver: CRESPIAL, 2008; FONSECA; CAVALCANTI, 2008.

20
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

Partir desse princípio significa também trazer para o âmbito das políticas públicas a
questão da diversidade, e não apenas como tema ou objeto de projetos, mas funda-
mentalmente como modos diferentes de conceber o mundo e de agir. Significa dar
concretude ao cidadão universal e abstrato que o aparato estatal tradicionalmen-
te elegeu como interlocutor. Isso implica repensar o nosso modelo de Estado e de
administração pública, tanto nas suas perspectivas, como nos seus tempos, na sua
burocracia, nos seus instrumentos, nas suas dinâmicas.

No caso do Patrimônio Imaterial, para o qual os detentores são os elementos-chave


na execução das ações e não somente seu “público-alvo”, esse ponto torna-se mais
sensível ainda, pois é necessário considerar as condições de inserção dos grupos nesses
processos, as suas possibilidades de acesso, compreensão e manejo das estruturas
existentes. Além disso, é preciso criar instrumentos que possam levar em conta suas
especificidades, construindo condições para que as políticas sejam, de fato, efetivas.

Outro desafio que o campo do Patrimônio Imaterial coloca é a necessidade de se


assumir a complexidade e o risco inerentes ao próprio processo de construção dessas
ações, pois a participação implica também responsabilidades compartilhadas, mesmo
considerando as possibilidades de cada ator envolvido. Sendo assim, os resultados
também serão aqueles passíveis de serem pactuados e realizados dentro de um
determinado processo, sem estarem necessariamente condicionados pela vontade de
um gestor público ou de um ator social em particular.

A coordenação desses processos implica, por outro lado, uma alta capacidade de
articulação, negociação, mediação por parte dos órgãos governamentais e instituições
parceiras – e de tempo e recursos para que as coisas possam acontecer. Além disso, é um
caminho de mão dupla: também a sociedade civil precisa rever as suas representações
acerca do Estado, perceber que ele pode ser diverso, e que vem passando por processos
de mudança significativos nas últimas décadas – não se pode continuar pensando que
o Estado é tão somente o provedor paternalista ou o autoritário repressor.

2.1.3 Sobre Patrimônio Cultural


A. O que é?

As palavras que formam a expressão Patrimônio Cultural explicitam os sentidos básicos


para a compreensão do que se trata esse conceito. A primeira nos remete à ideia mesma
de valor, algo importante, que se acumula e se transmite pelo tempo e pelas gerações,
que se constitui como “herança”. E cultural, claro, porque se refere ao campo da cultura,
que se expressa por meio de práticas e expressões culturais. Isso significa que seria uma
espécie de “herança cultural”. Contudo qual herança? De quem? Para quem?

A construção da ideia de Patrimônio Cultural se deu no bojo de dois processos históricos


muito importantes para o Ocidente: a constituição dos Estados-nações europeus e a
formação da história como um campo específico de conhecimento, como ciência,

21
PATRIMÔNIO IMATERIAL

ambos ocorridos entre o final do século XVIII e início do XIX. Não é difícil entender
essa relação íntima entre eles: para unificar populações, culturas, territórios – operação
imprescindível na construção dos Estados contemporâneos – foi preciso elaborar
a própria ideia de nação, que se fundamenta em alguns elementos estruturantes:
um conjunto de pessoas que partilha uma cultura, uma língua, uma origem comum,
experiências vividas, uma única identidade, ou seja, um povo. Isso tudo geralmente
associado à existência de um território específico e de um governo único.

Nesse contexto, a história foi um poderoso elemento de legitimação dessa ideia de


nação, pois era preciso buscar suas origens no passado, evidenciando a continuidade,
o caráter e a força do povo que a constituía. Essas características não apareciam
somente nos fatos históricos, mas também nas produções artísticas, consideradas o
locus privilegiado para a manifestação do “espírito” de um povo, de suas características
essenciais, de sua especificidade, muito próximo daquilo que mais tarde seria associado
ao próprio conceito de identidade. Houve um investimento deliberado na construção
dessa ideia, afinal, era necessário convencer as pessoas de que elas faziam parte de
uma mesma “comunidade imaginada”, como sugere Benedict Anderson.12 Investimento
político, simbólico, físico, por variados meios – arte, literatura, eventos públicos,
educação e, porque não, na construção das memórias nacionais e seus respectivos lugares
de referência.

A concepção do passado como “herança da nação” está dada como fundamento


mesmo da possibilidade de futuro – e nesse sentido é necessário preservá-lo, garantir
a existência de seus vestígios e sinais, para usufruto das gerações que virão. Por outro
lado, o Estado, como poder legítimo instituído, que zela pelo bem da coletividade,
torna-se o principal ator nesse processo de guarda da memória. Com isso, voltamos à
ideia de patrimônio: tudo aquilo que “restou” do passado, que se constitui como vestígio
das experiências vividas e do potencial de criação de um povo, é passível de se tornar
patrimônio da nação. Naquele momento não se tratava de patrimônio “cultural” – essa
é uma perspectiva recente, como veremos adiante, cara ao século XX. Para o século XIX,
o patrimônio era essencialmente histórico e artístico.13

Dito isso, nos encaminhamos para a definição de algumas características desse


“patrimônio cultural”. Primeiro, é importante destacar que não há valores ou sentidos
imanentes, naturais em um bem cultural ou em uma prática social – a patrimonialização,
ou seja, o processo por meio do qual eles se constituem em patrimônios culturais, é
sempre uma construção, uma narrativa, uma elaboração discursiva, simbólica, política,
que se constitui mediada por um conjunto de saberes técnicos, pelos embates políticos
dos diversos atores interessados, pelos contextos e conjunturas presentes no momento
da sua elaboração.

12. ANDERSON, 2008.


13. Ver: CHOAY, 2006.

22
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

Outra característica importante é que esse processo de patrimonialização implica


sempre seleção. Assim, dizer que algo é patrimônio significa assumir que, diante de um
universo imenso de bens culturais, foram eleitos somente alguns para ser patrimônio.
Isso significa dizer que eles possuem um valor diferente dos demais. Por outro lado, a
dotação desse valor é realizada a partir de critérios específicos, que também variam de
acordo com a natureza do bem, com as políticas instituídas, com as concepções de
patrimônio cultural vigentes, com os grupos sociais envolvidos.14 Isso nos coloca uma
questão importante, que gera, no senso comum, muita confusão: Patrimônio Cultural
não é sinônimo de cultura. É, ao contrário, uma especificação dela, um recorte dentro
do seu campo – o Patrimônio Cultural sempre é cultura, mas nem toda prática ou bem
cultural é patrimônio.

A perspectiva da seleção tenta, de um modo ou de outro, responder à seguinte


questão: no campo da cultura, o que é importante preservar para as gerações futuras?
O primeiro critério que embasa a resposta e que justifica a ideia de patrimônio como
“herança” é a sua inscrição no tempo. Assim, para que uma prática ou bem cultural
sejam considerados patrimônio devem ter densidade histórica, estar inscritas em
uma ordem temporal. Mesmo para o caso do Patrimônio Imaterial, patrimônio vivo,
essa dimensão se explicita por meio do conceito de continuidade histórica, ou seja, da
possibilidade de uma prática cultural subsistir no tempo e continuar, para além das
mudanças, mantendo suas características estruturantes e seu valor referencial para
determinados grupos sociais.

B. O Patrimônio Cultural no Brasil

a. Histórico

No Brasil, o campo do Patrimônio Cultural se estruturou a partir da criação do IPHAN – na


época SPHAN –, em 1937, no contexto dos movimentos intelectuais modernistas que
buscavam, como outros grupos, repensar o modelo de nação e identidade brasileiros.15
O anteprojeto de lei elaborado por Mário de Andrade para a criação da nova instituição
propunha uma perspectiva abrangente de Patrimônio Cultural, que incluía algumas
dimensões daquilo que hoje chamamos de Patrimônio Imaterial. O texto aprovado
como decreto, entretanto, restringiu esse olhar, enfatizando a excepcionalidade
histórica e artística como critério principal de reconhecimento, e os vestígios materiais
do passado como objetos privilegiados de patrimonialização.

Aquilo que se refere ao que denominamos hoje de Patrimônio Imaterial, portanto,


caminhou, durante muito tempo, ao largo das políticas patrimoniais. Nesse sentido, vale
a pena destacar alguns momentos que se tornaram referenciais no processo brasileiro

14. No caso do Patrimônio Imaterial, esse processo de construção de valor é sempre realizado em conjunto com as comunidades
detentoras, a partir de uma solicitação destas. São elas que definem os bens a serem patrimonializados, assim como os
sentidos e os valores a eles associados, que os qualificam como patrimônio – não há requisitos externos (de excepcionalidade,
de singularidade, por exemplo), que definam, a priori, esse valor. É claro que os saberes técnicos – das equipes de pesquisas e
das instituições de patrimônio – e o próprio entendimento do Conselho Consultivo, que é quem delibera, participam desse
processo, mas eles não devem ser as partes determinantes na indicação dos valores patrimoniais.
15. CHUVA, 2009; GONÇALVES, 2002; CAVALCANTI, 2000; FONSECA, 2005.

23
PATRIMÔNIO IMATERIAL

de constituição desse campo.16 Além do anteprojeto, outra referência importante que


se insere no processo de construção da identidade nacional característico do período
foi a criação da Comissão Nacional de Folclore, em 1947 – e seus desdobramentos nas
diferentes regiões do país –, por meio da qual se lançou, em 1958, a Campanha Nacional
em Defesa do Folclore Brasileiro, dando origem ao Instituto Nacional do Folclore, atual
Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP), que atualmente faz parte da
estrutura do IPHAN.

A criação do Centro Nacional de Referências Culturais (CNRC) em 1975, por iniciativa


de Aloísio Magalhães, mais tarde, da Fundação Pró-Memória, representa uma inflexão
significativa nas práticas de patrimonialização em curso até aquele momento. O
trabalho do CNRC tinha como objetivo construir, por meio da pesquisa social-histórica-
etnográfica, um sistema referencial básico para a compreensão das características
e dinâmicas da cultura brasileira, de modo que se pudesse elaborar um modelo de
desenvolvimento adequado às necessidades nacionais.17 Fazia-se necessário também
evidenciar a “autenticidade e originalidade” dessa nação ainda em processo, viva e
que encontrava sua possibilidade de um vir a ser justamente naquilo em que ela se
revelava de modo mais espontâneo e forte: na vida cotidiana das pessoas, nas práticas
e dinâmicas culturais nas quais elas estavam imersas.

Em 1997, no âmbito do primeiro Seminário Internacional de Patrimônio Imaterial,


realizado pelo IPHAN, foi proposta a criação de grupo de trabalho (GTPI) para desenhar
uma política específica para essa dimensão do Patrimônio Cultural, que resultou no
Decreto nº 3.551, de 200018. A política federal do Patrimônio Imaterial é caudatária,
portanto, de estudos que reuniram os conhecimentos acadêmicos produzidos sobre
o tema, marcos legais e experiências internacionais sobre a preservação do Patrimônio
Cultural, somadas à experiência brasileira na mesma área, dentro e fora do IPHAN.19

Feito esse breve histórico, que pode ser aprofundado por meio das leituras
recomendadas, é necessário tratar da relação entre as dimensões material e imaterial
do Patrimônio Cultural. Embora esse campo no Brasil tenha sido construído reiterando-
se a dicotomia entre esses dois domínios – mais em alguns momentos e menos em
outros –, hoje há uma percepção clara de que esse modelo deve ser superado, pois
do mesmo modo que podemos defender que todo o patrimônio é determinado, no
processo de seleção e reconhecimento, por estruturas de significação, de dotação de
valor – ou seja, é, no limite, intangível –, pode-se argumentar também que, de fato, não
existe Patrimônio Imaterial sem alguma espécie de materialidade por meio da qual ele
se concretize ou estabeleça uma relação de interdependência.

Do ponto de vista concreto, temos ainda outro dado a ser considerado: na percepção
de quem vive o patrimônio, essa separação não existe. As pessoas querem preservar ou

16. Para cronologia completa, ver: IPHAN, 2006c.


17. FONSECA, 2005, p. 144.
18. BRASIL, 2000.
19. IPHAN, 2006a, p. 16.

24
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

não uma praça ou uma festa, porque estabelecem – ou não – uma relação de sentido
com esses bens culturais. Elas sabem dizer por que aquilo é patrimônio para elas,
mas qual parte disso é material ou imaterial, ou o que esses termos significam nesse
contexto, é certamente uma abstração.

Se a questão nos parece simples nessa perspectiva, ela se apresenta de forma


desafiadora quando se trata da sua operacionalização dentro da instituição, pois a
separação entre essas duas dimensões do Patrimônio Cultural está presente tanto
nos processos técnicos mais básicos, como a definição de metodologias para a
produção de conhecimento, quanto nos próprios mecanismos de institucionalização
e construção de capital político e simbólico a favor de um ou de outro domínio.
Em outras palavras, permeia todos os campos da atividade patrimonial e ainda se
encontra, devido à tradição instaurada, reificada na percepção do senso comum.20
Gostaríamos, portanto, de ressaltar a importância dessa questão para os gestores de
prefeituras e estados que, de alguma forma, possam estar envolvidos na elaboração
de marcos legais e políticas. É possível, e muito necessário, tentar construir alternativas
para além dessa dicotomia. Alguns países da América Latina, inclusive, têm avançado
bastante nessas questões.

b. Conceito

Considerando a história do campo do patrimônio no Brasil, o conceito explicitado na


Constituição Federal de 1988, mesmo mantendo essa dicotomia, permitiu o avanço
considerável na concepção de Patrimônio Cultural. Incorporando uma perspectiva
antropológica de cultura, o texto constitucional ampliou o seu campo conceitual,
permitindo que novos objetos, atores sociais e universos culturais entrassem em cena
e fossem reconhecidos como parte da nação brasileira, vista agora sob o signo da
diversidade:
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I – as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico,
artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.21

20. Temos como exemplo dessa complexidade a decisão tomada pelo GTPI quando da definição da expressão Patrimônio
Imaterial, em 1998. Mesmo entendendo que reforçaria a ideia da falsa dicotomia entre material e imaterial, entendeu-se que
delimitar essa área como um campo específico poderia dar mais visibilidade e força para uma dimensão do Patrimônio Cultural
que, mesmo estando fortemente ligada a uma cultura material, havia sido negligenciada nas políticas de preservação.
21. BRASIL, 1988.

25
PATRIMÔNIO IMATERIAL

Incorporar uma perspectiva antropológica de cultura ao campo do patrimônio


significou uma ruptura com aquele modelo de patrimônio histórico e artístico sobre o
qual falamos no início deste tópico – aqui, de fato, podemos falar de Patrimônio Cultural.
É claro que não foi a CF que inaugurou isso; ela apenas explicitou e deu concretude
jurídica a uma perspectiva que já vinha sendo discutida no âmbito de experiências
diversas com a gestão do patrimônio, dentro e fora das instituições governamentais.

Ao lado da ideia de cultura, temos a de identidade que, nesse caso, orienta o próprio
conceito de patrimônio. Este último tem, nos itens de I a V do artigo 216, uma proposta
de definição de escopo que abarca desde os modos de criar, fazer e viver, até os
objetos tradicionais do campo, como as obras de arte e os sítios históricos. O conceito
de identidade é mais um desses que motivam infinitos debates, apresentando uma
tradição considerável no âmbito das ciências sociais. Também solicita um olhar crítico,
sensibilidade e bom senso na sua utilização, pois tem uma predisposição imensa à
naturalização. Se isso já não é fácil de ser tratado no âmbito acadêmico, menos ainda o
é no patrimônio, para o qual o conceito papel legitimador.

Em uma acepção bem direta, podemos dizer que a identidade é aquilo que nos coloca
no mundo em oposição ao “outro”, o que nos define e nos identifica por meio do
estabelecimento de distâncias, de diferenças – e, nesse sentido, é sempre relacional.
Não há identidade eterna, imutável e homogênea, embora as representações que se
constituem em torno dela possam tender a construir signos em sentido oposto: de
reificar continuidades, unicidades, universalidades. Ela é sempre produto da linguagem,
é discurso, atravessado por intencionalidades, conflitos, valores, e se redefine em função
dos problemas e questões às quais o grupo social tem que responder em um dado
momento. A identidade, portanto, é um constructo contemporâneo, que se atualiza e
se reinventa mobilizando elementos do passado, da memória.

No caso do patrimônio, a identidade que interessa é sempre aquela coletiva, de grupos


sociais, comunidades, e que se constrói a partir dos elementos e dinâmicas de um
determinado universo cultural, adquirindo materialidade por meio dos bens, práticas e
representações que lhes são pertinentes. A identidade, portanto, é indissociável da cultura,
entendida como sistema simbólico que fornece os referenciais para a visão de mundo
das pessoas que dela partilham, para a construção dos seus sentidos de pertencimento,
de continuidade, de comunidade, como ressalta Katryn Woodward no trecho abaixo:
Aqui estaremos tratando de outro momento do ‘circuito da cultura’:
aquele em que o foco se desloca dos sistemas de representação para
as identidades produzidas por aqueles sistemas.
A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbó-
licos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionan-
do-nos como sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas
representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que
somos. Podemos inclusive sugerir que esses sistemas simbólicos
tornam possível aquilo no qual podemos nos tornar. A representação,

26
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

compreendida como um processo cultural, estabelece identidades


individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais ela se baseia
fornecem possíveis respostas ás questões: Quem eu sou? O que eu
poderia ser? Quem eu quero ser? Os discursos e os sistemas de repre-
sentação constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem
se posicionar e a partir dos quais podem falar.22

2.1.4 Patrimônio Cultural de natureza imaterial – definição, conceitos e características

Os documentos referentes à constituição da política federal do Patrimônio Imaterial não


explicitam, de forma clara, um único conceito de Patrimônio Imaterial, talvez porque,
na época de sua elaboração, o próprio campo em torno desse termo estivesse ainda se
estruturando.23 É importante lembrar que a Convenção da UNESCO para a Salvaguarda
do Patrimônio Imaterial, que se tornou o documento referencial para a constituição
desse conceito no âmbito das políticas nacionais de patrimônio, é de 2003.24

Embora a política de Patrimônio Imaterial brasileira seja anterior a essa Convenção, o


conceito proposto por ela para a definição de Patrimônio Imaterial pode ser utilizado
como possibilidade de caracterizar, de modo abrangente, essa área específica:
são os usos, representações, expressões, conhecimentos e técnicas
– junto com os instrumentos, objetos, artefatos e espaços culturais
que lhes são inerentes – que as comunidades, os grupos e em
alguns casos os indivíduos reconheçam como parte integrante de
seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se
transmite de geração em geração, é recriado constantemente pelas
comunidades e grupos em função de seu entorno, sua interação
com a natureza e sua história, infundindo-lhes um sentimento de
identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o
respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. 25

Nessa definição, o aspecto coletivo, a transmissão geracional e a concepção dinâmica


desses bens culturais vão ao encontro da definição presente na Resolução IPHAN nº 01,
de 2006, que regulamenta a instrução do processo de Registro. Esta define bem cultural
de natureza imaterial como “as criações culturais de caráter dinâmico e processual,
fundadas na tradição e manifestadas por indivíduos ou grupos de indivíduos como
expressão de sua identidade cultural e social”, ressaltando que, nesse contexto, “toma-se
tradição no seu sentido [...] de ‘dizer através do tempo’, significando práticas produtivas,
rituais e simbólicas que são constantemente reiteradas, transformadas e atualizadas,
mantendo-se para o grupo, um vínculo do presente com o seu passado”.26

22. WOODWARD, 2000, p.17.


23. Indicativo disso é a menção, no relatório final do GTPI, à abrangência da definição das categorias do Patrimônio Imaterial
nos livros do Registro, com a expectativa de que ela “venha a estimular o processo de construção do conceito de patrimônio
imaterial, mantidos os parâmetros estabelecidos pela Constituição”.
24. UNESCO, 2003.
25. Idem.
26. IPHAN, 2006b.

27
PATRIMÔNIO IMATERIAL

Temos, portanto, três elementos-chave para a compreensão do conceito de Patrimônio


Cultural no âmbito dessa política. Primeiro, seu caráter coletivo – a unidade fundamental
sobre a qual incidem as ações é sempre um grupo de pessoas, que pode ser pensado
como comunidade, grupo social, segmento, base social, a depender do contexto, da
natureza da ação, do entendimento que se quer construir. Esse é um dos pressupostos
da ação institucional e está presente em todos os seus processos, o que significa, por
exemplo, que não há ação de salvaguarda que se volte apenas para indivíduos.

Quando há alguma atividade dessa natureza é sempre no contexto de uma ação mais
ampla de fortalecimento da comunidade detentora do bem cultural, como foi, por
exemplo, o Prêmio Viva Meu Mestre, que reconheceu o trabalho de mestres de capoeira
em todo o Brasil, no âmbito do Programa Pró-Capoeira. No entanto, foi uma ação
específica, pontual. Isso é diferente de programas como o Tesouros Humanos Vivos27 da
UNESCO, ou mesmo de experiências similares existentes em âmbito estadual no Brasil.

É importante ressaltar que não há nenhuma perspectiva valorativa que oponha


“coletivo” e “individual” nesse contexto. Essa foi uma opção tomada quando da
construção da política, a partir de razões específicas, entre elas as próprias características
e dinâmicas da sociedade brasileira. Baseada nessa mesma ideia de coletividade, por
mais que pareça óbvio, é importante ressaltar que os bens culturais passíveis de se
tornarem patrimônio são sempre coletivos, reconhecidas pelo grupo como parte da
sua identidade, história e memória.

Isso é particularmente importante aqui, porque há mais uma diferença a ser ressaltada,
no que se refere às expressões artísticas. Não se reconhece como passível de
patrimonialização, nessa concepção de Patrimônio Cultural, a criação artística individual,
a obra de um cantor, por exemplo, ou de um pintor. Nesse sentido, a definição da
categoria formas de expressão, tal qual se encontra no INRC, é bastante significativa:
[…] são formas de comunicação associadas a determinado grupo
social ou região, desenvolvidas por atores sociais reconhecidos
pela comunidade e em relação às quais o costume define normas,
expectativas e padrões de qualidade. Trata-se da apreensão das
performances culturais de grupos sociais [manifestações literárias,
musicais, plásticas, cênicas e lúdicas].28

A criação individual existe no âmbito do Patrimônio Imaterial, mas como parte


do processo mesmo de transformação da expressão artística coletiva, como uma
contribuição à sua dinâmica e reinvenção. Para além desse aspecto, é preciso ressaltar
também que a patrimonialização incide sobre práticas culturais e não sobre objetos
e pessoas. Assim, quando se fala do Ofício da Baiana de Acarajé, o que é considerado
patrimônio são os conhecimentos tradicionais, os saberes e as representações

27. UNESCO. Encouraging transmission of Intangible Cultural Heritage: Living Human Treasures. Disponível em: <http://www.unesco.
org/culture/ich/?pg=00061>.
28. IPHAN. 2000.

28
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

associados ao universo do acarajé, e não o bolinho em si, o produto. De forma


semelhante, não existe uma categoria para se identificar ou reconhecer um mestre – o
que é patrimônio é o saber, reconhecido como coletivo, do qual ele é detentor e em
relação ao qual atua como guardião e transmissor.

O segundo elemento importante nessa definição é a transmissão geracional. Um bem


cultural de natureza imaterial, seja uma festa, um conhecimento tradicional, uma
manifestação artística, deve sempre estar inserido em uma dinâmica de transmissão
geracional, ou seja, devem existir, em alguma medida, processos de transmissão de
conhecimentos, técnicas, sentidos, memórias e valores associados ao bem cultural, dos
mais velhos para os mais novos. Isso geralmente é realizado por meio da oralidade – mas
não exclusivamente –, pelos meios e técnicas reconhecidos como os mas legítimos em
cada cultura, geralmente em contextos da vida cotidiana. Saber o grau e a qualidade
dessa transmissão geracional é fundamental para avaliar as condições de existência
dos bens culturais e as necessidades de outras ações de salvaguarda.

Por fim, o terceiro elemento se refere ao caráter dinâmico e processual desses bens
culturais. Com isso, falar em Patrimônio Imaterial significa incorporar ao campo
tradicional do patrimônio a dimensão do presente, das práticas culturais vivas, do
cotidiano, da sincronia. Isso significa que é imprescindível considerar as pessoas como
parte envolvida diretamente nos processos, com tudo o que isso implica em termos
das práticas de preservação e gestão do patrimônio.

A salvaguarda desses bens depende não apenas da interlocução com as pessoas, mas
também da sua vontade, do valor e do sentido que esses bens culturais têm para elas
e que as fazem querer mantê-lo vivo. Sendo assim, há um limite claro para o desejo
de preservação – e o Estado não deve intervir à revelia das comunidades detentoras.
Nesse sentido, é diferente do que acontece com bens materiais: a restauração de
um prédio, por exemplo, pode acontecer sem interlocução mais próxima com as
pessoas interessadas, embora isso não seja uma prática recomendável, salvo nos casos
emergenciais, excepcionais. Em segundo lugar, qualquer ação nesse campo pressupõe
um investimento alto na mediação, na interlocução, no fortalecimento das capacidades
e condições de vida das pessoas e grupos que podem manter vivo aqueles bens.

Esse fortalecimento depende muitas vezes de políticas públicas e iniciativas governa-


mentais que não são especificamente do campo da cultura. Como o requisito para
a vigência de práticas culturais reconhecidas é a existência e a vontade dos próprios
detentores, muitas vezes a transmissão de um conhecimento tradicional, por exemplo,
depende mais de acesso a serviços de saúde do que recursos para a realização de uma
oficina: qual é a rendeira que vai continuar fazendo renda sem poder enxergar?

Existe ainda outro aspecto importante dado por essa condição de “patrimônio vivo”:
a própria natureza dos bens culturais exige que se vá além do aspecto cultural. Isso
se explicita, por exemplo, quando tratamos de saberes e técnicas tradicionais, que
geram produtos ou serviços específicos e são feitos a partir de elementos naturais,

29
PATRIMÔNIO IMATERIAL

como plantas, minerais, materiais orgânicos. Podemos reconhecer esses saberes e


práticas como patrimônio, em função do seu valor referencial para a identidade e a
memória das comunidades detentoras, mas qualquer ação de apoio à sustentabilidade
desses bens terá que considerar a irredutibilidade dessa materialidade que o sustenta e
permite sua existência. Isso torna obrigatória a interlocução com outras áreas e campos
do conhecimento, sem a qual a salvaguarda, em alguns casos, se torna impossível. A
interface com o meio ambiente, em particular, tem sido frequente.

Esse caráter processual e dinâmico também coloca questões importantes em relação


ao recorte dos objetos nas ações de salvaguarda e no processo de reconhecimento
como patrimônio. Diferentemente de um bem material – que, com exceção dos bens
móveis, sempre está em um mesmo lugar –, as práticas culturais se deslocam com as
pessoas, seguem o ritmo das migrações, ocupando territórios diversos em extensão e
características, em diferentes áreas do país. Tal característica torna complexa a definição
do que e como vai ser reconhecido, da definição das comunidades envolvidas, assim
como também o planejamento das ações de apoio e fomento.

Cabe ainda mencionar outra especificidade: bens culturais de natureza imaterial não
podem ser tratados sob a égide da “originalidade” naquilo que se refere à manutenção,
cristalizada, de características que ele apresentava quando do seu surgimento. Eles
são bens dinâmicos, e a mudança faz parte da sua natureza, por isso, temos que ter
cuidado com termos como descaracterização, degeneração, perda, pois eles geralmente
pressupõem a ideia de um modelo originário de referência como critério de valoração,
o que nem sempre é compatível com a perspectiva processual do Patrimônio Cultural.
O mais importante, portanto, é a sua continuidade no tempo e a sua capacidade de se
manter como referência cultural para as comunidades, apesar das transformações que
podem sofrer em função das mudanças nos contextos socioculturais e econômicos
nos quais se encontram inseridos29. Isso significa a sua capacidade de se constituir
como tradição, no sentido já explicitado neste texto anteriormente.

A palavra originalidade pode ter ainda outro sentido no campo do patrimônio, que
também deve ser problematizado: é aquele que se refere ao estabelecimento de uma
relação de hierarquia entre bens culturais. Não é pertinente dizer que um bem de
natureza imaterial referencial para um grupo social é mais original ou importante que o
de outro, pois isso pressuporia critérios universais e externos às próprias comunidades,
que são aquelas que definem seu valor. Assim, como dizer que a Festa do Divino
de Pirenópolis é mais importante do que a Festa do Divino de Paraty, se nem as
comunidades de referências, nem os significados associados às celebrações, são os
mesmos?

29. É claro que a manutenção de elementos estruturantes de um bem cultural ao longo do tempo é importante, inclusive para
que se possa reconhecê-lo como tal e identificar a sua continuidade. Esses elementos, entretanto, podem ser reelaborados,
reinventados e ressignificados, dentro de contextos e processos específicos sem que o bem perca, necessariamente, seu valor
como patrimônio. Até mesmo porque aquilo que se entende como “elemento estruturante” não se refere exclusivamente a
características pontuais – como seria um adereço, o uso de um instrumento ou uma marcação coreográfica –, mas a processos,
relações de significado e pertinência que se estabelecem no seio das dinâmicas culturais.

30
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

No âmbito dessa perspectiva de Patrimônio Imaterial, temos ainda dois conceitos muito
importantes, dos quais falaremos a seguir: o de referência cultural, que é o elemento
estruturante dessa política; e o de salvaguarda, que se refere ao seu campo de ação,
seus processos e instrumentos.

A. Referência cultural: conceito estruturante

A perspectiva de apreender a cultura a partir da dimensão valorativa e referencial que


está na base do conceito de Patrimônio Imaterial se explicita por meio da noção de
referência cultural, elemento estruturante da política de Patrimônio Imaterial que
perpassa todos os processos de salvaguarda.

Referências culturais podem ser definidas como


os sentidos e valores de importância diferenciada atribuídos aos diversos
domínios e práticas da vida social [festas, saberes, modos de fazer, lugares
e formas de expressão etc.] e que, por isso mesmo, se constituem em
marcos de identidade e memória para determinado grupo social.30

Ou ainda:
Referências são edificações e são paisagens naturais. São também as
artes, os ofícios, as formas de expressão e os modos de fazer. São as
festas e os lugares a que a memória e a vida social atribuem sentido
diferenciado: são as consideradas mais belas, são as mais lembradas
as mais queridas. São fatos, atividades e objetos que mobilizam
a gente mais próxima e reaproximam os que estão distantes, para
que se reviva o sentimento de participar e pertencer a um grupo,
de possuir um lugar. Referências são objetos, práticas e lugares
apropriados pela cultura na construção de sentidos de identidades,
são o que popularmente de chama de ‘raiz de uma cultura’.31

Referências culturais não são simplesmente quaisquer expressões culturais ou práticas


sociais, mas aquelas que, em um universo sociocultural específico, imersos geralmente
na dinâmica da vida cotidiana, são dotadas de um valor referencial maior do que outras,
articulando dimensões estruturantes da vida social e os sentidos que constituem o
modo de ser e estar no mundo do grupo. Com isso, são particularmente significativas
naquilo que se refere à sua experiência histórica, à sua memória e identidade.

Nesse sentido, o conceito de referência cultural é aquele que representa a realização


do processo de patrimonialização, ou seja, quando dizemos que uma prática cultural
é uma referência cultural significa que já foram associados a ela, por meio de estudos,
inventários ou dossiês, os valores que justificam a sua pertinência como patrimônio
imaterial. Assim, ela adquire o status de bem cultural, no sentido que essa expressão
apresenta dentro do campo do Patrimônio Cultural.

30. IPHAN, 2000, p. 29.


31. Idem, p. 19.

31
PATRIMÔNIO IMATERIAL

Um exemplo, para esclarecer: durante a primeira etapa de um inventário elabora-se


uma lista geral de bens culturais, a partir de fontes secundárias. Na segunda etapa,
uma parte deles é objeto de pesquisa etnográfica para investigar se, entre tantos
outros bens, eles são aqueles que articulam os sentidos identitários da comunidade
ou grupo social aos quais se referem, podendo ser descritos como referências culturais.
No caso dos processos de reconhecimento, quando a Câmara Setorial do Patrimônio
Imaterial aprova a pertinência de uma solicitação de Registro, ela está dizendo que
aquele bem cultural provavelmente é uma referência cultural, mas somente o estudo
para a instrução do processo, realizado junto às comunidades, confirmará ou não isso,
possibilitando o encaminhamento da solicitação ao Conselho Consultivo do IPHAN
para deliberação.

As referências culturais são identificadas a partir de cinco categorias que abrangem


todos os domínios do Patrimônio Imaterial considerados pela Convenção da UNESCO.
São elas: celebrações, saberes (ofícios e modos de fazer), formas de expressão, lugares e
edificações. É também nessas categorias que um bem cultural pode ser reconhecido
como patrimônio, com exceção da última delas, que é exclusiva do inventário. Isso quer
dizer que toda vez que pesquisamos sobre um bem para sabermos se ele é ou não
uma referência cultural, temos que definir em qual dessas categorias ele se enquadra.
Às quatro primeiras correspondem também os livros de registro, nos quais são inscritos
os bens reconhecidos como Patrimônio Cultural do Brasil.

B. Salvaguarda

Entende-se por salvaguarda as medidas que visam a garantir a viabilidade do PCI, tais
como a identificação, a documentação, a investigação, a preservação, a proteção, a
promoção, a valorização, a transmissão – essencialmente por meio da educação formal
e não formal – e a revitalização desse patrimônio em seus diversos aspectos.32

O termo salvaguarda – que não é exclusivo do campo do Patrimônio Cultural – remete à


ideia de proteção ou garantia. Aplica-se, no nosso caso, a toda e qualquer ação ou processo
destinado a apoiar e fortalecer a existência dos bens culturais de natureza imaterial, como
indica a definição dada pela própria Convenção da UNESCO. No âmbito da política
federal do Patrimônio Imaterial, esse termo está historicamente associado a um de seus
processos específicos – o de Apoio e Fomento –, nomeando, inclusive, alguns de seus
instrumentos: Plano de Salvaguarda, Ação de Salvaguarda e Salvaguarda Emergencial.

O uso de tal termo no âmbito geral da política, e também no específico, pode levar
a entendimentos equivocados acerca da sua definição. Por esse motivo, é necessário
deixar claro que a definição a ser utilizada como salvaguarda é aquela explicitada no
parágrafo anterior, respaldada pela definição da Convenção. Nesse sentido, são três os
principais processos que compõem o que chamamos de salvaguarda do patrimônio
imaterial no âmbito federal: identificação, reconhecimento e apoio e fomento.

32. UNESCO, 2003.

32
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

a. Processos que compõem a salvaguarda: definição, instrumentos e estrutura33

Identificação

O termo identificação se refere aos processos de produção de conhecimento e


documentação sobre bens culturais. As atividades de identificação fazem uso de diversas
metodologias e técnicas de pesquisa, em um diálogo bastante próximo com a produção
acadêmica.34 Essas metodologias podem ser variadas ainda em termos de alcance e
profundidade: pode ser um inventário, um estudo preliminar, um mapeamento, uma
pesquisa exploratória, ou ainda uma etnografia, entre outras possibilidades.

É muito importante, entretanto, assinalar o que caracteriza essa produção de conhe-


cimento no âmbito da ação institucional. Primeiramente, ela é uma pesquisa que
poderíamos chamar de “aplicada”, considerando que tem uma finalidade que vai além
da produção do conhecimento por si: ela visa à identificação de bens culturais e dos
universos socioculturais a eles associados, justamente para subsidiar a implementação
de outras políticas públicas de salvaguarda. Assim, atende à prática, já consagrada no
campo da atuação pública, de produzir conhecimento para poder intervir. Nesse
sentido, embora partilhe princípios, perspectivas teóricas, metodologias, e técnicas
com as disciplinas acadêmicas, elas não têm necessariamente a mesma natureza.

Em segundo lugar, cabe mencionar que ela é sempre participativa, como todas as
demais ações desenvolvidas no âmbito dessa política. Isso implica pensar em uma
produção de conhecimento que traz no seu próprio cerne a mobilização dos atores
envolvidos e não apenas no sentido de participarem da pesquisa em si, mas também
de se apropriarem da própria reflexão acerca do patrimônio, da política que está
sendo proposta, das decisões em relação ao que deve ser produzido, documentado
e patrimonializado. É o Estado assumindo compromisso com os atores envolvidos na
perspectiva de construção conjunta de ações de salvaguarda para a preservação dos
bens culturais referenciais.

Como terceiro ponto, devemos mencionar que os processos de identificação no âmbito


do IPHAN se constituíram por meio da realização de inventários, com ênfase especial
aos processos de documentação, seja ela textual, gráfica ou audiovisual. No caso do
Patrimônio Imaterial essa característica é pa rticularmente relevante, pois, como os
bens são dinâmicos – e até certo ponto mais sensíveis às mudanças que outros – a
documentação tem papel fundamental no acompanhamento das transformações
pelas quais eles passam, sendo, muitas vezes, a única forma de salvaguarda possível
(quando não há mais lastro social ou construção de sentido referencial possível para
a manutenção do bem cultural), por meio da geração de acervos e da preservação da
memória a seu respeito.

33. A definição e a caracterização dos instrumentos da política serão abordadas de forma mais detalhada em outro módulo do
curso.
34. No campo do PCI, por sua própria natureza e historicidade, as disciplinas com as quais se constituem as interfaces mais
importantes são a antropologia, a sociologia, a história – e a história oral – e a geografia.

33
PATRIMÔNIO IMATERIAL

Nesse sentido, cabe ainda mencionar que a maior parte das políticas públicas
apresentam instrumentos oficiais que viabilizam a sua execução e que, devido à
natureza de ação institucional – que requer comparabilidade de dados para gestão –,
tendem à padronização e à universalização. No caso da política federal de Patrimônio
Imaterial, são dois os instrumentos relacionados ao processo de identificação e que
têm como finalidade a produção de conhecimento, a realização de documentação e
a mobilização de grupos interessados: o Inventário Nacional de Referências Culturais
(INRC) e o Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL).

Reconhecimento

O segundo dos processos que compõem a salvaguarda é o de reconhecimento. Por


reconhecimento, entende-se a ação do Estado por meio da qual se realiza a seleção
e a valoração de bens culturais por meio de processos e instrumentos específicos,
constituindo-os como Patrimônio Cultural.35 No campo do Patrimônio Imaterial, se
considerarmos as experiências de diferentes países latino-americanos, observamos que
são muitas as possibilidades por meio das quais esse reconhecimento pode acontecer.

No caso do Brasil, optou-se pela construção de um instrumento específico para o


reconhecimento, equivalente ao tombamento, denominado Registro. Ele foi pensado,
como podemos observar no relatório do GTPI, para abarcar as especificidades do bem
cultural de natureza imaterial, notadamente a sua natureza dinâmica e processual,
instituindo36, inclusive, a obrigatoriedade da revalidação do título de patrimônio a cada
10 (dez) anos.

Dos três processos que constituem a salvaguarda, este é o que apresenta um caráter mais
processual, no sentido jurídico do termo, de estabelecimento de rito. Acompanhando
os procedimentos gerais de reconhecimento já existentes no IPHAN – solicitação,
abertura de processo, instrução técnica (pesquisa e documentação para construção
do recorte e justificativa de valoração), submissão ao Conselho Consultivo do IPHAN
(instância representativa da sociedade civil) para a aprovação ou não, e inscrição nos
livros – o Registro inova em alguns aspectos, como, por exemplo, a necessidade do
pedido coletivo para o reconhecimento e a submissão das solicitações à Câmara
Setorial do Patrimônio Imaterial, para o julgamento da pertinência. Como os demais
processos da salvaguarda, a participação dos detentores aqui é fundamental, desde
o início do processo até o desenvolvimento da pesquisa, a elaboração do dossiê de
Registro e a definição daquilo que vai se tornar oficialmente Patrimônio Cultural.

Em relação ao reconhecimento, uma questão importante é a delimitação do objeto a


ser reconhecido e a definição dos critérios/elementos que justificam a valoração, o que
envolve uma série de determinantes. A questão do nacional, que é a mesma, em escalas
diferentes, daquela do regional e do local, é um bom exemplo. Quais são os elementos

35. Ver esquema anexo.


36. Ver: Decreto n° 3.551/2000 (BRASIL, 2000) e Resolução IPHAN nº 01/2006 (IPHAN, 2006b).

34
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

de um bem cultural que justificariam o seu reconhecimento como patrimônio


nacional, estadual, ou municipal? A perspectiva mais recorrente na definição do que
é nacional é aquela que atua por exclusão, do menos para o mais abrangente. Isto é,
passível de ser patrimônio nacional seria apenas aquele bem cujo espectro de sentido
e valor referencial extrapolassem a escala estadual. Do mesmo modo, seria patrimônio
estadual aquilo que fosse além do contexto local.

Essa é uma perspectiva importante, principalmente quando falamos de gestão


compartilhada do patrimônio, na qual a ideia é somar esforços na salvaguarda dos bens
culturais de natureza imaterial – União, estados e municípios implementando ações nas
suas respectivas esferas de atuação. No entanto, ela também coloca algumas questões
relevantes, quando consideramos o exercício de repensar a perspectiva do nacional,
assumindo que não é mais pertinente operar sob o signo da unidade, do universal, do
homogêneo. Parte-se do princípio da diversidade cultural, da diversidade dos grupos
sociais, da diversidade dos processos históricos, da diversidade das memórias, ou seja,
de que o Brasil é um país plural e heterogêneo. Com isso, no processo de seleção
inerente à definição do que é patrimônio, essa diversidade deve estar representada.

Se a ideia, portanto, é que esse “nacional” representado pelo Patrimônio Cultural


também dê conta da diversidade cultural do país, falar em escalas locais e regionais
em contraposição ao nacional não é suficiente. É nesse contexto que a perspectiva do
“representativo” tem se fortalecido. Um bem cultural que é notadamente circunscrito
em um contexto local pode ser reconhecido como patrimônio nacional – ele o é,
entretanto, pelo seu caráter representativo no âmbito dessa diversidade.

Outras tantas observações poderiam ser feitas, pois o tema é complexo e suscita debate.
Nossa intenção aqui, entretanto, é apenas a de apontar para a complexidade dessa
questão e para a necessidade de que ela seja explicitada e discutida nos processos de
patrimonialização, assim como nos processos de construção das políticas e dos marcos
legais que os sustentam.

Como indicamos acima, o principal instrumento desse processo é o Registro, que


reconhece o valor patrimonial por meio do título de Patrimônio Cultural do Brasil. Os
critérios para o Registro, por exemplo, pressupõem a demonstração da continuidade
histórica do bem cultural, ou seja, que se mostre como ele vem se mantendo como uma
referência cultural ao longo do tempo; que o bem tenha ao menos o tempo de existência
comprovada de três gerações – 75 anos; e que se mostre o seu valor em relação à memória,
à história e à identidade dos grupos formadores da sociedade brasileira.

Apoio e fomento

O terceiro processo da salvaguarda do Patrimônio Imaterial visa a criar condições


de sustentabilidade dos bens culturais imateriais, para garantir a sua continuidade.
É o processo que atua de modo mais decisivo nas atividades realizadas após o
reconhecimento, pois é nele que se constroem as estratégias de implementação das

35
PATRIMÔNIO IMATERIAL

ações de apoio indicadas nos dossiês de Registro, que foram estabelecidas junto com
os grupos interessados.

No âmbito das atividades de apoio e fomento se explicita, de modo mais contundente


do que nos outros processos, a necessidade de articulação, de atuação conjunta
com os detentores e outras instituições da sociedade civil, pois se trata de responder
concretamente a situações que implicam a continuidade do bem, com tempos,
características, contextos e dinâmicas bastante diferenciadas em cada caso.

A perspectiva adotada no Brasil, principalmente no caso dos bens reconhecidos, é aquela


do desenvolvimento de ações que visem a fortalecer a autonomia dos detentores dos
bens culturais, de modo que eles possam, depois de um tempo de atuação conjunta
com o Estado, realizar a gestão do seu próprio patrimônio. O Estado atua pontualmente
nas situações emergenciais, mas o grande investimento, inclusive financeiro, volta-se
para as atividades que possam ajudar a estruturar as comunidades detentoras nesse
sentido, o que pressupõe constantes processos de acompanhamento, inclusive com
monitoramento e avaliação das ações.

Aí também se explicitam os grandes desafios desse processo: fortalecer a autonomia


significa possibilitar que as comunidades tenham acesso aos recursos – materiais e
simbólicos – que permitam a compreensão do que significa lidar com o Estado e com
outros parceiros potenciais; dos processos e instrumentos de acesso a financiamento,
de planejamento de atividades, de gestão de recursos, entre outros tantos. Com
isso, é preciso investir na formação de gestores de Patrimônio Cultural advindos
das próprias comunidades. As atividades referentes a esse processo exigem um alto
grau de mobilização e envolvimento dos detentores e parceiros, que devem estar
comprometidos, de fato, com os objetivos da salvaguarda.

Além das ações direcionadas para os bens reconhecidos, são desenvolvidas também
outras atividades de apoio e fomento. São três os principais instrumentos referentes
a esse processo: Plano de Salvaguarda, exclusivo para bens Registrados, Ações de
Salvaguarda e Salvaguarda Emergencial. Existe ainda o Edital do Programa Nacional
do Patrimônio Imaterial (PNPI), voltado para o financiamento de projetos da sociedade
civil, que vem desempenhando papel importante, desde a sua criação, no fomento do
campo do Patrimônio Imaterial e na disseminação dessa política.

C. Atores sociais envolvidos na salvaguarda de bens culturais de natureza imaterial

Estado, comunidade, portadores ou detentores são termos que se referem aos atores que
podem estar envolvidos nas ações de patrimonialização. Como o campo no qual se
desenvolvem essas ações é sempre dinâmico e bastante complexo – mais ou menos
a depender da natureza e das características dos bens culturais envolvidos –, com
exceção do Estado, nem sempre todos eles estão presentes em um mesmo contexto,
assim como a relação entre eles não tem um roteiro pré-estabelecido ou uma tipologia
norteadora.

36
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

Começando pelo termo Estado, nos referimos aqui à atuação do poder público
competente para desenvolver ações relativas à preservação do Patrimônio Cultural
que, nesse caso, quer dizer governos federal, estadual e municipal, com seus respectivos
órgãos e instituições de patrimônio. Como explicitado na introdução, a atuação
governamental é inerente aos processos de patrimonialização, de modo que ela estará
sempre presente no desenvolvimento de qualquer ação ou política.

O termo comunidade é geralmente associado à ideia de um grupo social que partilha


um mesmo universo cultural, um mesmo conjunto de experiências históricas e de
memórias, apresentando uma identidade legitimada e reiterada por meio das suas
representações e práticas sociais. Solidariedade, objetivos em comum, organicidade,
tradição e segurança são algumas ideias associadas a esse conceito, que dizem respeito
à sua própria historicidade.

No campo do Patrimônio Imaterial, como em outras áreas do conhecimento e da


atuação do Estado, observa-se uma variedade considerável na utilização do termo,
sendo duas apropriações as mais recorrentes: na primeira, ele é utilizado como sinônimo
de grupo social, de modo genérico, remetendo à perspectiva de pessoas que têm “algo
em comum”; na segunda, associado a uma concepção até certo ponto idealista e
abstrata de comunidade, que muitas vezes, fica aquém da possibilidade de explicação
ou compreensão das dinâmicas sociais existentes de fato. Nos dois casos, o risco é o de
naturalizar um conceito que é um constructo social, reificando olhares, representações
sociais e tradições, o que implica diretamente no modo como se constroem os objetos
nos processos de patrimonialização.

Propõe-se, portanto, que sempre que esse termo for utilizado, seja explicitado o que se
entende por ele no contexto específico do projeto ou ação. Mais do que isso, o ideal
é que essa conceitualização seja realizada a partir dos próprios detentores. Assim, que
se discuta com eles o que se entende por comunidade, em diálogo com os contextos
concretos existentes e com as referências acadêmicas disponíveis. Dessa forma, é possível
dar densidade e concretude ao termo, problematizá-lo, explicitar seus limites e definir até
que ponto ele serve ou não para a compreensão da realidade social em estudo.

À ideia de comunidade está associado, de modo muito íntimo, o conceito de detentores/


portadores – no Brasil, o mais comum é a utilização do termo detentores. Ambos referem-
se, como as próprias palavras explicitam, àqueles que detêm, que produzem, que são
responsáveis pela existência de um determinado bem cultural imaterial e para os quais
este é realmente referencial e significativo. São, no campo do Patrimônio Imaterial,
os atores mais legítimos e estratégicos sobre os quais devem incidir os esforços das
políticas públicas, pois sem o seu envolvimento, interesse e compromisso, não há bem
imaterial que possa continuar a existir.

A definição de quem são os detentores nem sempre é fácil e varia muito, a depender
da natureza do bem cultural e do universo sociocultural no qual ele está inserido. O
ponto de partida para essa definição é sempre a própria prática cultural: os primeiros

37
PATRIMÔNIO IMATERIAL

detentores são as pessoas que têm uma relação direta com ela, que participam da
sua dinâmica, da sua existência, como mestres, aprendizes, artífices, idosos que detêm
memórias relacionadas à prática etc. Na maior parte das vezes, os detentores se
reconhecem como parte de um grupo que partilha um universo de práticas culturais
que vão além do próprio bem, identificando-se com alguns dos qualificativos que
podem ser associados ao conceito de comunidade – para esse grupo, o bem cultural
patrimonializado agrega valores da sua identidade coletiva, da sua história e tradições
comuns.

Para além dos detentores, existem outros grupos que devem ser considerados. No
âmbito do Patrimônio Imaterial, como já vimos, não é possível o desenvolvimento de
ações sem que se considere a articulação com outros atores sociais, principalmente
as instituições. Em qualquer projeto, é importantíssimo mobilizar outros segmentos
que tenham interesse na salvaguarda daquele bem cultural, como as organizações
da sociedade civil – (organizações não governamentais – ONGs e organizações da
sociedade civil de interesse público – Oscips; associações diversas); universidades e
centros de pesquisa; produtores culturais; pesquisadores; outros órgãos públicos etc.
Nas condições atuais de execução das ações nas instituições de patrimônio, são essas
instituições que muitas vezes realizam as pesquisas, participam das mobilizações,
atuam como mediadores nas ações de apoio e fomento, entre outros.

A esses diversos atores envolvidos nas ações de salvaguarda do Patrimônio Imaterial,


interessados na sua preservação, mas que não são necessariamente detentores nem
representantes dos órgãos de patrimônio, denominamos de parceiros ou instituições
parceiras.

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Petrópolis: ed. Vozes, 2000. p. 17.

39
PATRIMÔNIO IMATERIAL

Fórum de Discussão
O texto a seguir é a compilação dos debates realizados entre professor e alunos nos
fóruns de discussões da plataforma de educação a distância, tendo como base o texto
autoral do professor, publicado acima, e as seguintes perguntas orientadoras:

1. De acordo com o que foi tratado no texto, o que caracteriza o que chamamos
de Patrimônio Imaterial? Poderíamos dizer que ele se constitui como uma
dimensão específica dentro do campo do Patrimônio Cultural?

2. Tendo como referência as características do campo do Patrimônio Imaterial apre-


sentadas no texto, selecione um bem cultural da sua região e indique porque ele
poderia ser considerado uma “referência cultural”, justificando sua pertinência.

3. Considerando as especificidades socioculturais, políticas e institucionais da


sua região, bem como as questões abordadas no texto, como o Patrimônio
Imaterial poderia ser objeto de políticas públicas? Em outras palavras, se você
tivesse a possibilidade de implementar ações de salvaguarda do Patrimônio
Imaterial onde você mora ou atua profissionalmente, o que você privilegiaria?
Que tipo de ações? Elas seriam implementadas de que forma? Envolvendo
que atores sociais?

Considerando os conceitos tratados no texto, discutiu-se de que forma as ideias de


cultura, identidade e comunidade se relacionam nos processos de patrimonialização.
Em primeiro lugar, o processo de patrimonialização é, sim, uma operação do Estado,
imbuído do seu papel de “guardião da memória nacional”. Entretanto, esse Estado
não é monolítico e homogêneo, nem o processo de patrimonialização. Isso significa
dizer que são várias as dimensões implicadas nessa operação, desde o conhecimento
dos técnicos especialistas até a compreensão que os conselhos deliberativos dos
órgãos constroem sobre os bens culturais, partindo, no caso do Patrimônio Imaterial,
sempre da perspectiva das comunidades detentoras, sendo essa a premissa do
campo do Patrimônio Imaterial. São os detentores que devem definir o que vai ser
patrimonializado e como isso vai acontecer.

Dessa forma, cultura, identidade e comunidade se relacionam de forma perfeita no


que diz respeito à patrimonialização na medida em que a cultura, como meio propício
para o exercício do cultivo, do trato, do cuidado com a herança legada, é geradora de
reconhecimento e consciência naqueles que se reconhecem como herdeiros legítimos
dos traços culturais do grupo (comunidade) a que pertencem, e, em se percebendo
como membros, se identificam como sendo iguais a todos (identidade). Sendo assim,
a cultura, a identidade e a comunidade, quando em harmonia, elegem, em comum
acordo, alguns elementos que compõem o acervo de costumes, hábitos, usos, saberes
e fazeres, considerando-os possuidores de relevantes sentidos para si mesmos e que,
portanto, devem ser transmitidos de geração para geração, formando, assim, o que, em
sentido genérico, poderíamos chamar de procedimento de constituição de patrimônios
culturais (patrimonialização).

40
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

Esse valor é coletivo, é o que nos identifica, entra aí a ideia de identidade, ou seja, o
que nos define, não no sentido imutável, mas do reinventar, mobilizando elementos
do passado e do presente. Cultura e identidade são indissociáveis, pois a segunda nos
fornece referências para a construção de sentido de pertencimento, de continuidade
e de comunidade.

Vale ressaltar que não há nada de harmonioso, de naturalmente consensual, nesses


processos. Há, sim, muito debate, conflito, negociação e a necessidade de construção
de consensos. Por isso, são processos complexos. As operações de patrimonialização,
sejam elas por meio da produção de conhecimento ou pelas ações de reconhecimento,
sempre implicam essa densidade, pois elas são parte de um processo de construção de
identidade. Quando uma comunidade escolhe um ou mais bens culturais para serem
reconhecidos pelo Estado, ela está dizendo, de certa forma, como ela quer ser vista,
como quer ser representada; ela está demarcando limites em relação a outros grupos.

Por outro lado, aquilo que se entende como comunidade também não é homogêneo e
harmonioso. Há hierarquias, relações de poder, estruturas e dinâmicas próprias. O que
parece “homogêneo”, quando olhamos de fora a dinâmica de um determinado grupo,
ou o que identificamos como sua “identidade”, é uma representação, construída por
meio desses embates internos.

Cabe mencionar ainda que levar a termo o propósito da participação, de modo


responsável e coerente, é bastante trabalhoso e complexo. Construção participativa
implica reunir todos os atores sociais interessados para que discutam conjuntamente
as questões relativas ao seu patrimônio, construam consensos, e tomem decisões. Isso
significa milhares de vozes, pontos de vista diferentes, interesses variados, jogos de
poder, e o Estado atuando como mediador. Significa também assumir responsabilidades
compartilhadas pelos vários atores – ou seja, rompe-se com a ideia do “Estado provedor”
e “autoritário e centralizador”. As pessoas e os grupos devem se comprometer com a
salvaguarda e compreender que o que será feito com o apoio do Estado será resultado
daquilo que for possível de ser construído no processo, e não depende somente da
vontade de um gestor ou instituição. Isso implica outra gestão de tempo, da ideia
de resultado, coisas com as quais nem o Estado nem a sociedade civil estão muito
acostumados a lidar.

Em suma, pode-se elencar alguns pontos específicos acerca da política de PCI:

1. O processo de patrimonialização, na perspectiva com a qual estamos


trabalhando, refere-se a todas as atividades que fazem com que um bem
cultural, imerso em uma dinâmica sociocultural específica, possa se tornar
um Patrimônio Cultural. A patrimonialização não é um processo natural, que
surge espontaneamente; é uma construção, elaborada socialmente, com a
participação de diversos atores.

41
PATRIMÔNIO IMATERIAL

2. Essa transformação de bem cultural em Patrimônio Cultural significa sempre


uma seleção – é aquilo que tratamos no texto: nem tudo que é do campo da
cultura, necessariamente, deverá ser patrimônio.

3. A seleção é realizada de diferentes formas, por meio de vários instrumentos,


mas sempre implica a elaboração de algum tipo de estudo, pois é necessário
justificar porque aquele bem e, não outro, deve ser patrimônio. Porém não só:
também é importante descrever esse bem cultural, suas características, e seus
processos, e documentá-los em meios audiovisuais.

4. Os elementos para a definição dessa valoração vêm de vários lugares. Podemos


apontar três principais:

a) os “pré-requisitos” para a sua definição como Patrimônio Imaterial (podemos


ver o conceito da Convenção da UNESCO e a definição de referência cultural,
do texto base e do Manual do INRC);

b) os requisitos específicos do Registro (ver Decreto n° 3.551/200037 e a


Resolução n° 001/200638), quando a patrimonialização ocorrer por meio do
processo de reconhecimento;

c) os valores relacionados ao bem, apontados pelas comunidades.

Observe-se que, um não vive sem o outro: se o bem que a comunidade indicar não
puder ser considerado Patrimônio Cultural segundo os critérios a e/ou b, não poderá ser
considerado Patrimônio Cultural – será um bem importante para aquela comunidade,
que pode receber apoio de outras políticas culturais, mas não um patrimônio.

Da mesma forma, se um bem cultural, mesmo que se enquadre nos conjuntos


de critérios a e/ou b, não tiver o respaldo das comunidades detentoras, e não for
considerado por elas como uma referência cultural, também não poderá ser entendido
como patrimônio, ao menos não no campo do imaterial.

4. Para deixar mais claro, quando dizemos que o processo de patrimonialização


pode acontecer de diferentes formas, é porque uma política de salvaguarda
geralmente se estrutura por meio de vários processos, áreas ou linhas de
atuação – os nomes podem variar –, e a patrimonialização pode acontecer
em mais de uma delas, com finalidades e procedimentos diferentes.

5. De qualquer modo, o processo de patrimonialização, como entendido aqui,


implica sempre uma atuação do Estado. Isso é diferente dos outros e variados
processos de reflexão sobre o Patrimônio Cultural que podem acontecer
dentro das próprias comunidades, sem intervenção do poder público ou de
outras instituições.

37. BRASIL, 2000.


38. IPHAN, 2006b.

42
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

2.2a Instrumentos e Práticas de Salvaguarda (Turma 1)39

Ementa: Inventário; Registro; Planos de Salvaguarda; Políticas de Incentivos Fiscais;


Educação Patrimonial; Listas UNESCO; Tutela Penal do Patrimônio Cultural.

Professora: Márcia Sant’Anna (Turma 1)


Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de Brasília (UnB), mestre
em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e doutora em
Arquitetura e Urbanismo pela UFBA (2004). Até março de 2011, trabalhou no Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), onde exerceu diversos cargos,
entre os quais o de diretora do antigo Departamento de Proteção (1998-1999) e diretora
do atual Departamento de Patrimônio Imaterial (2004-2011).

A Política Federal de Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial40

Concepção geral, princípios e diretrizes


Durante os estudos do grupo de trabalho criado pelo Ministério da Cultura (MinC) para
propor formas de salvaguarda do Patrimônio Imaterial, concluiu-se que o modelo dos
Tesouros Humanos Vivos não era totalmente adequado à realidade brasileira. A despeito
de se manter a noção de que o ser humano e a transmissão do saber são centrais
para o processo de salvaguarda, deveríamos considerar a tradição brasileira de atuação
nesse campo, incorporando os avanços conceituais e metodológicos conquistados
por Mário de Andrade, Luis Saia, Aloísio Magalhães, bem como por experiências
etnográficas e do campo das culturas populares. Assim, optou-se pela montagem
de um sistema que abordasse as expressões culturais no contexto social e territorial
no qual se desenvolvem e contemplasse as condições sociais, materiais e ambientais
que permitem que se mantenham e reproduzam. Os mestres e os bons executantes,
por sua vez, seriam identificados e incorporados em programas de transmissão no
âmbito de planos de salvaguarda que visariam à melhora das condições de produção,
reprodução, circulação, difusão, consumo e fruição desses bens culturais.
Embora a Constituição Federal de 198841 tenha estabelecido que o Patrimônio Cultural
seja construído pela sociedade, cabendo ao Estado reconhecê-lo e protegê-lo,
apenas muito recentemente esse princípio começou a ser absorvido nas práticas de
preservação. Até pouco tempo atrás, apenas especialistas e técnicos eram considerados
aptos a identificar e selecionar o que deveria ser declarado patrimônio, com pouco ou
nenhum diálogo com a sociedade. O fortalecimento da noção de Patrimônio Cultural
Imaterial (PCI) contribuiu para alterar essa prática, pois os grupos e indivíduos
que detêm esses bens culturais são suas primeiras instâncias de reconhecimento e os
principais responsáveis por sua vigência.

39. Esta disciplina contou com duas professoras, Márcia Sant’Anna para a primeira turma e Rívia Bandeira para a segunda turma, optamos
por manter as informações geradas por ambas em cada uma das turmas.
40. Texto incorporado à primeira edição do curso a distância Patrimônio Imaterial: política e instrumentos de identificação, documentação e
salvaguarda, revisto e atualizado em abril de 2013.
41. BRASIL, 1988.

43
PATRIMÔNIO IMATERIAL

O “suporte” dos valores atribuídos aos bens culturais imateriais são as pessoas e os
grupos que os mantêm, transmitem e, assim, possibilitam sua existência. Esses bens
estão inscritos nos corpos e mentes daqueles que lhes dão vida e, portanto, podem
apontar o que é importante e o que é referencial no contexto de sua preservação.
Assim, os detentores do PCI devem participar ativamente do processo de salvaguarda,
em todas as suas etapas: da identificação ao reconhecimento patrimonial e, daí, ao
apoio e fomento à continuidade da expressão cultural.

Outro princípio de atuação da política federal diz respeito à centralidade que a


produção de conhecimento e a documentação ocupam no processo de salvaguarda,
pois esse patrimônio é extremamente dinâmico e se transforma cotidianamente. A
documentação sonora, fotográfica e, principalmente, audiovisual, permite “fixá-lo” em
um suporte material e difundir o conhecimento produzido sobre ele. A produção de
conhecimento, por seu turno, é essencial para que a continuidade dos bens culturais
imateriais ocorra de modo sustentável. É preciso conhecê-los e a seus contextos socio-
ambientais, de modo razoavelmente profundo, para que se possa agir delicada e
estrategicamente nos pontos e aspectos que são fundamentais para a sua continuidade.

Como são as pessoas que mantêm e transmitem essas expressões da cultura, é


importante compartilhar métodos e instrumentos com elas. Durante o processo de
salvaguarda, os grupos, os indivíduos e as comunidades que dele participam são
instados a produzir conhecimento e documentação sobre seu patrimônio, bem como
a empreender ações de organização e articulação de parcerias.

A articulação da política de salvaguarda às políticas das áreas de educação, meio


ambiente, desenvolvimento econômico e social é, por fim, igualmente fundamental,
pois, como já mencionado, é necessário ter uma visão global e integrada do contexto de
existência e dos problemas que afetam esses bens. Esses problemas, frequentemente,
estão fora da alçada da cultura e demandam a intervenção de outros setores do governo.

A política de salvaguarda implementada pelo IPHAN entre 2003 e 2010 apoiou-se em


três diretrizes básicas. A primeira propunha investir prioritariamente no mapeamento, no
inventário e na documentação dos bens culturais no território nacional, pois, como visto,
a produção de conhecimento é condição para o desenvolvimento das demais ações
de salvaguarda. A segunda diretriz buscava melhorar as condições sociais, materiais e
ambientais que promovem a continuidade dos bens culturais, e a terceira relacionava-
se ao desenvolvimento das bases conceituais, técnicas e administrativas necessárias
ao trabalho de salvaguarda, ou seja, ao investimento na criação e na capacitação de
estruturas institucionais. A implementação dessa última diretriz vem possibilitando
que as Superintendências do IPHAN atuem como pontos multiplicadores e apoiadores
de ações de salvaguarda na sua região, inclusive em parceria com governos estaduais
e municipais. A partir de 2011, foi verificada a necessidade de mais investimento, no
sentido de se melhorar os recursos humanos para o trabalho com a salvaguarda do
PCI nas unidades estaduais do IPHAN, o que vem sendo implementado no âmbito

44
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

do projeto de descentralização da política federal, realizado com o apoio da UNESCO.


Outra ação importante, articulada à já mencionada terceira diretriz, diz respeito à
formulação de um sistema de monitoramento e avaliação dos planos de salvaguarda já
implementados, cuja implementação deverá gerar informações e subsídios importantes
para o processo de revalidação decenal dos Registros, conforme determina o Decreto
nº 3.551/200042. Cabe ressaltar que, em abril de 2013, o Conselho Consultivo do
Patrimônio Cultural aprovou a norma que regulará esse procedimento. Assim, os bens
culturais reconhecidos como Patrimônio Cultural do Brasil em 2002 e 2003 deverão
passar em breve por esse exame.

Instrumentos de fomento, financiamento e ampliação de parcerias.

As ações de fomento e financiamento de projetos de salvaguarda têm sido realizadas


no âmbito dos editais do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI). Por
meio desses processos seletivos, são firmadas parcerias com organismos estaduais,
municipais, universidades, e instituições não governamentais e privadas sem fins
lucrativos, fomentando-se a pesquisa, a documentação, a produção e o tratamento
de informações sobre bens culturais imateriais; projetos voltados para a melhoria das
condições de produção e reprodução de expressões tradicionais e, principalmente, ao
apoio a comunidades para o desenvolvimento de ações voltadas para a organização
social, a transmissão de saberes e a capacitação para gestão do próprio patrimônio.
A partir do primeiro edital lançado em 2005, vários projetos foram fomentados,
abrangendo todas as regiões do país.

O Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), tanto no que toca ao Fundo Nacional
da Cultura quanto por meio do Incentivo a Projetos Culturais (Mecenato), tem sido
um instrumento igualmente importante para o desenvolvimento de articulações
com a sociedade, com vistas ao trabalho de salvaguarda do PCI. A Petrobras e a Caixa
Econômica Federal, por exemplo, lançaram, por meio desse programa, editais de apoio
a projetos afinados com as linhas de ação do IPHAN, e esse tipo de sinergia tem grande
alcance porque, além dos inventários que a instituição desenvolve e apoia, vários outros
trabalhos dessa natureza vêm sendo viabilizados pelo Pronac, o que torna mais viável a
meta de mapear as referências culturais em todo o território nacional.

Outra maneira de ampliar a rede de parceiros em torno da salvaguarda do PCI no


Brasil tem sido o estabelecimento de convênios com instituições públicas e privadas,
notadamente universidades, que já trabalham com esse tipo de ação cultural. Por meio
das contrapartidas previstas nesses instrumentos, o IPHAN tem ampliado os recursos
destinados à área e conjugado esforços para a concretização de ações. Um exemplo
nesse sentido é a execução do Projeto Mestres e Artífices – de inventário e cadastramento
dos detentores dos saberes relacionados às técnicas construtivas tradicionais –, cujas
etapas de Pernambuco e de Santa Catarina foram realizadas por meio das faculdades de
Arquitetura e Urbanismo das universidades federais desses estados.

42. BRASIL, 2000.

45
PATRIMÔNIO IMATERIAL

Instrumentos de identificação e produção de conhecimento

O Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), cuja metodologia já está bem


difundida, é a principal ferramenta de identificação das referências culturais brasileiras
no âmbito da política de salvaguarda de bens culturais imateriais. Entre 2009 e 2010,
também foi testado pelo IPHAN um novo instrumento para sistematização e organização
de informações sobre as línguas faladas e utilizadas por comunidades de brasileiros
como veículos de transmissão cultural – o Inventário Nacional da Diversidade Linguística
(INDL). Com isso, e com a promulgação do Decreto nº 7.387/2010, que instituiu esse
inventário também como um instrumento de reconhecimento patrimonial, espera-se
mapear as quase 200 línguas ainda faladas por comunidades indígenas, afro-brasileiras,
de deficientes auditivos e de descendentes de imigrantes europeus e asiáticos que,
em seu conjunto, contribuíram de modo fundamental para a formação da sociedade
brasileira. Além de constituir uma metodologia de organização e síntese de dados que
possibilita, ainda, um diagnóstico das mais variadas situações sociolinguísticas, o INDL
estabelece, como instrumento de reconhecimento dessas línguas como referências
culturais, o compromisso do Estado de implementar, em conjunto com a sociedade,
ações para o apoio à sua transmissão e de promoção.

A intenção do IPHAN, contudo, nunca foi ter o uso exclusivo dessas metodologias, mas
divulgá-las e compartilhá-las com o maior número possível de parceiros institucionais.
A metodologia do INRC, por exemplo, está disponível para qualquer órgão estadual ou
municipal de preservação que desejar utilizá-la, bastando, para tanto, que encaminhe
projeto para análise e posterior celebração de Termo de Uso e Responsabilidade com o
IPHAN. 43 Os procedimentos para o uso da metodologia e a inclusão de línguas no INDL
estão ainda em discussão.

Para que as ações de salvaguarda ocorram de modo integrado entre as esferas gover-
namentais, é fundamental o compartilhamento de métodos, categorias de análise e de
informações, o que torna ainda mais fundamental o papel dos inventários. Para produzir
conhecimento e implementar projetos de apoio a expressões que estão localizadas
em diferentes unidades da federação, esse compartilhamento é essencial, pois permite
cruzar dados e promover ações mais eficientes.

Instrumento de reconhecimento

O instituto do Registro de bens culturais de natureza imaterial, criado pelo Decreto n°


3.551/200044, é o principal instrumento de reconhecimento e valorização da política
federal de salvaguarda. É importante destacar que o Registro confere ao bem imaterial
o mesmo status do bem tombado, contendo, porém, disposições adequadas à sua
natureza dinâmica e mutável. Equivale, resumidamente e em termos operacionais, a
aprofundar o conhecimento sobre a história e a trajetória da expressão cultural em

43. Ver Instrução Normativa do DPI/IPHAN n° 001/2009 (IPHAN, 2009).


44. BRASIL, 2000.

46
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

foco, sobre as condições sociais, materiais e ambientais que propiciam sua existência,
o que possibilita diagnosticar os problemas que comprometem, ou que podem vir a
comprometer, sua continuidade, reprodução ou circulação.

Assim, da mesma forma que o inventário, o Registro não é perene: é sempre datado
e deve ser refeito após 10 (dez) anos do reconhecimento oficial. O objetivo desse
dispositivo é acompanhar as transformações ocorridas no bem cultural ou no contexto
que viabiliza sua existência, bem como reavaliar o Registro realizado. A função maior
do Registro é, portanto, firmar o compromisso de que o Estado envidará esforços para
fortalecer as condições que propiciam a continuidade do bem. Contudo, é importante
não se perder de vista que esse tipo de patrimônio é passível de desaparecimento,
não somente devido a ameaças ou fatores exógenos, mas também por eventual perda
de função simbólica, tecnológica ou mesmo econômica, junto à base social que o
sustenta. Nesses casos, o Registro realizado é mantido como documentação exaustiva
da expressão cultural, preservando-se, dessa forma, sua memória para a posteridade.

Instrumentos de promoção da continuidade e da sustentabilidade.

Os planos de salvaguarda destinam-se a apoiar e fomentar a continuidade e a


sustentabilidade dos bem culturais imateriais registrados. São formulados com base
no conhecimento produzido e no diagnóstico realizado nos processos de Registro, e
em conjunto com os produtores ou detentores do bem cultural. Contêm, em geral e
a depender de cada situação encontrada, um conjunto de ações, de curto, médio e
longo prazos, destinadas a apoiar processos de transmissão de saberes e habilidades às
novas gerações; a melhorar as condições de produção e reprodução do bem cultural;
a promover e difundir informações; a defender direitos coletivos relacionados ao uso
e à difusão desse patrimônio, e a capacitar detentores a liderar e gerenciar processos de
salvaguarda. Enfim, os planos de salvaguarda organizam os investimentos necessários
para promover a continuidade, social e ambientalmente sustentada, dos bens culturais
registrados.

A participação ativa da base social que detém e dá sustentação a esses bens é


fundamental, assim como da sociedade em geral e de parceiros governamentais
que possam contribuir no processo de salvaguarda. Por isso, em cada plano deve ser
constituído um Comitê Gestor, composto pelos parceiros mais diretamente envolvidos
na sua execução e, ainda, uma Comissão Consultiva ou Conselho, que reúne, mais
amplamente, os indivíduos e as instituições que podem, com sua expertise ou por meio
de sua estrutura de apoio, colaborar para o sucesso dos planos de salvaguarda.

Como resultado da articulação realizada pelo IPHAN com o Programa Cultura Viva, do
MinC, a política de implementação de pontos de cultura foi articulada com os planos
de salvaguarda. Com isso, todos os bens culturais registrados passaram a fazer jus à
instalação de pontos ou pontões de cultura destinados a viabilizar a constituição de
centros de referência, que devem funcionar como locais de pesquisa, de promoção e
de transmissão das habilidades e conhecimentos vinculados às expressões registradas.

47
PATRIMÔNIO IMATERIAL

O Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular do IPHAN (CNFCP), localizado no Rio


de Janeiro, também realiza importantes ações de apoio à produção e à reprodução
de saberes tradicionais, por meio do desenvolvimento de pesquisas, da elaboração de
diagnósticos e do apoio direto à organização e à capacitação gerencial de comunidades
artesanais. Essa linha de ação foi ampliada com a criação do Programa de Promoção
do Artesanato de Tradição (Promoart), que já constitui um marco da atuação do
governo federal nesse campo. O programa contemplou, inicialmente, 65 comunidades
artesanais em 24 estados do país, desenvolvendo ações de capacitação organizacional
e gerencial, treinamento e melhoria da estrutura de produção e, especialmente, de
seu escoamento. A ideia do programa é buscar uma melhor inserção desses produtos
no mercado consumidor com preço justo, mas sem comprometimento dos processos
tradicionais de criação e de produção.

A continuidade e a sustentabilidade de expressões culturais ditas imateriais também


são fortalecidas por meio da divulgação de experiências de salvaguarda, da difusão
do conhecimento produzido ou sistematizado sobre esses bens culturais e, ainda,
por meio de sua promoção, inclusive nos meios de comunicação. É necessário,
entretanto, garantir que essa promoção beneficie, primordialmente, os processos de
salvaguarda e os grupos detentores, conte com sua anuência e observe os direitos de
imagem e de propriedade intelectual envolvidos. Nesse sentido, o DPI e o CNFCP têm
desenvolvido linhas editoriais voltadas para a publicação de dossiês de registro e de
outras experiências de pesquisa, apoio e fomento.

Para se avançar na capacitação de agentes locais e comunitários, a participação de


estados e municípios é essencial. A primeira ação do DPI com esse objetivo foi a
realização, em 2008, dos encontros regionais para divulgação do chamado Balaio do
Patrimônio Cultural – um conjunto de publicações e relatos que visam a colaborar na
formulação de políticas de salvaguarda estaduais e municipais.45 Foi realizada também
uma primeira experiência de capacitação à distância, promovida pela UNESCO, o
Curso de Patrimônio Imaterial: Política e Instrumentos de Identificação, Documentação e
Salvaguarda, que já teve algumas edições.

Referências Bibliográficas
ABREU, Regina. ”Tesouros humanos vivos” ou quando as pessoas transformam-se
em patrimônio cultural: notas sobre a experiência francesa de distinção do “mestre
da arte”. In: ABREU, Regina, CHAGAS, Mário (Orgs.). Memória e patrimônio: ensaios
contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 81-94.

ARANTES, Antonio Augusto. Patrimônio imaterial e referências culturais. Revista Tempo


Brasileiro. Rio de Janeiro, n. 147, p. 129-139, out./dez., 2001.

45. As oficinas do Balaio do Patrimônio Cultural contribuíram para a capacitação de funcionários das Superintendências Regionais do IPHAN
e de dirigentes e quadros técnicos de organismos estaduais e municipais das cinco regiões do país. Nesses encontros, foram distribuídas
publicações sobre a política federal de salvaguarda, sua legislação, conceitos, instrumentos e experiências significativas, tornando
disponíveis a esses parceiros documentos referenciais para a formulação de implementação de políticas específicas.

48
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado


Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constituicao.htm>.

BRASIL. Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000. Institui o Registro de Bens Culturais


de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa
Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências. Diário Oficial da União.
Brasília, DF, 5 ago. 2000. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/
D3551.htm>.

CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Estado da arte do patrimônio cultural


imaterial: Brasil. In: CRESPIAL. Estado del arte del patrimonio cultural inmaterial. Cusco:
CRESPIAL, 2008. p. 107-143.

CRESPIAL. Estado del arte del patrimonio cultural inmaterial. Cusco, 2008.

GANDELMAN, Silvia Regina Dain. Propriedade intelectual e patrimônio cultural imate-


rial: uma visão jurídica. In: MOREIRA, Eliane et al. (Orgs.). Anais do Seminário Patrimônio
Cultural e Propriedade Intelectual: proteção do conhecimento e das expressões culturais
tradicionais. Belém: CESUPA/MPEG, 2005. p. 211-222.

IPHAN. Instrução normativa nº 001/2009, de 2 de março de 2009. Dispõe sobre as con-


dições de autorização de uso do Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC.
Brasília: DPI/IPHAN, 2009. Disponível em:<http://portal.iphan.gov.br/portal/montarDe-
talheConteudo. do;jsessionid=02A69F3D4C13DE70538F5E8FEBDBB343?id=14318&si-
gla=Institucional&retorno=detalheInstitucional>.

IPHAN. O Registro do Patrimônio Imaterial: dossiê final das atividades da Comissão e do


Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. 2.ed. Brasília: IPHAN, MinC, 2003.

IPHAN. Os sambas, as rodas, os bumbas, os meus e os bois: princípios, ações e resultados


da política de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial no Brasil. 2. ed. rev. aum.
Brasília: DPI/IPHAN, 2010.

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direito autoral. In: MOREIRA, Eliane et al. (Orgs.). Anais do Seminário Patrimônio Cultural
e Propriedade Intelectual: proteção do conhecimento e das expressões culturais
tradicionais. Belém: CESUPA/MPEG, 2005. p. 177-193.

SANT’ANNA, Márcia. Patrimônio imaterial: do conceito ao problema da proteção. Revista


Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, n. 147, p. 151-161, out./dez. 2001.

SANT’ANNA, Márcia. Patrimônio material e imaterial: dimensões de uma mesma ideia.


In: GOMES, Marco Aurélio Filgueiras; CORREIA, Eliane Lins (Orgs.). Reconceituações
contemporâneas do patrimônio. Salvador: EDUFBA; IAB, 2011. p. 193-198.

49
PATRIMÔNIO IMATERIAL

SANT’ANNA, Márcia. Políticas públicas e salvaguarda do patrimônio cultural imaterial.


In: FALCÃO, Andréa (Org.). Registro e políticas de salvaguarda para as culturas populares.
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UNESCO. Basic texts of the 2003 Convention for the Safeguarding of the Intangible Cultural
Heritage. Paris: UNESCO, 2010.

Fórum de Discussão

O texto a seguir é a compilação dos debates realizados entre professor e alunos nos
fóruns de discussões da plataforma de educação a distância, tendo como base o texto
autoral do professor, publicado acima, e as seguintes perguntas orientadoras:

1. Em meados da década de 1990, a UNESCO divulgou para os países-membros


o Sistema Tesouros Humanos Vivos, inspirado na legislação japonesa de
salvaguarda do que hoje denominamos PCI. Explique como funciona esse
sistema e como ele tem sido aplicado no Brasil. Em seguida, comente os
resultados dessa aplicação em alguns estados do Nordeste.

2. Explique por que a realização de inventários e de outras formas de docu-


mentação do PCI são consideradas ações de salvaguarda em si. Em seguida,
comente qual é o papel dos detentores de bens culturais imateriais nessas
iniciativas. Se for do seu conhecimento, cite uma ação de documentação que
pode ser considerada exemplar como ação de salvaguarda.

3. A continuidade de bens culturais imateriais depende de muitos fatores,


sendo o principal deles a manutenção das condições socioambientais que
propiciam sua existência. Explique como o Estado e a sociedade podem atuar
conjuntamente para fortalecer essas condições, no caso de bens culturais de
apropriação social difusa e que não se articulam a uma base territorial contígua
e circunscrita.

Em meados da década de 1990, a UNESCO divulgou para os países-membros o


Sistema Tesouros Humanos Vivos, inspirado na legislação japonesa de salvaguarda
do que hoje denominamos PCI. Uma das discussões desenvolvidas foi acerca do
funcionamento desse sistema e como ele tem sido aplicado no Brasil. De acordo com
os debates, identificou-se que o Sistema de Tesouros Humanos Vivos é desenvolvido
pelo Estado, no sentido de reconhecer e valorizar aquelas pessoas que possuem
o mais alto grau de conhecimento e as técnicas necessárias para interpretar alguns
elementos do PCI. Há um ponto fundamental nesse sistema, que é a articulação do
reconhecimento do detentor e a ajuda governamental, a um programa de transmissão
do seu conhecimento/habilidade. Essa é de fato a espinha dorsal do sistema, ou seja,
o seu objetivo não é apenas reconhecer a importância de determinado mestre e dar a
ele uma ajuda financeira, mas garantir que esse conhecimento não se perca por falta

50
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

de repasse do conhecimento. Para tanto, o poder público, a partir de um processo de


identificação e seleção desses detentores, outorga-lhes o título de Tesouros Humanos
Vivos e lhes concede uma ajuda financeira vitalícia para que transmitam os seus saberes
a jovens aprendizes. Além disso, o sistema objetiva ampliar o conhecimento sobre o
bem e os modos como ele pode ser apropriado socialmente, inclusive no que toca à
ampliação de públicos e mercados.

No Brasil, até o momento, esse sistema foi adotado exclusivamente por governos
estaduais, já que no plano federal o sistema tem um foco mais abrangente, ou
seja, está voltado não apenas para a garantia da transmissão, mas também para as
condições sociais, ambientais e materiais que permitem a existência e a reprodução
dos bens culturais imateriais reconhecidos como patrimônio. Os sistemas estaduais
implementados diferem bastante do sistema da UNESCO, em termos de procedimentos
de seleção e de funcionamento, embora o foco seja também a valorização de detentores.
No que diz respeito à seleção, muitos estados definem os mestres que serão laureados
a partir de propostas que são encaminhadas a editais. Assim, não há um trabalho prévio
junto às comunidades e aos grupos sociais que se relacionam com o bem cultural,
para a identificação daqueles indivíduos ou grupos que aqueles consideram de fato
mestres. Essas propostas são julgadas por comissões de especialistas, conforme sugere
a UNESCO. Entretanto, a principal diferença entre o sistema internacional e os estaduais
é justamente a falta de articulação entre o mestre laureado e um programa efetivo
de transmissão. Outros problemas foram apontados, como a falta de critérios claros
para a seleção dos laureados; o caráter muitas vezes assistencialista dessas ações, sem
a contrapartida da transmissão do saber; o efeito de exclusão de outros detentores e
praticantes que também são fundamentais para a existência e a reprodução do bem
cultural. Essas reflexões não devem ser vistas como uma rejeição ao sistema. Ele pode
ser muito importante como ação de salvaguarda, sendo necessário fazer com que os
estados que o implementaram aperfeiçoem os seus sistemas, articulando-os, inclusive,
ao próprio sistema federal.

Outra discussão desenvolvida foi por que a realização de inventários e de outras


formas de documentação do PCI são consideradas ações de salvaguarda em si, e qual
é o papel dos detentores de bens culturais imateriais nessas iniciativas. Para além das
funções de documentar, por diversos meios, práticas culturais de valor patrimonial, de
produzir conhecimento sobre elas e de proporcionar a elaboração de diagnósticos que
fundamentam posteriores ações de reconhecimento, apoio e fomento, os inventários
desempenham o papel fundamental de fixar em suporte físico ou material (por meio de
entrevistas, filmagens, fotografias, descrições, desenhos) atos ou performances e, dessa
forma, preservar sua memória, caso não tenham continuidade por diversas razões.
Além disso, a realização de inventários proporciona um trabalho conjunto entre os
segmentos detentores dos bens imateriais, os mediadores e os entes políticos, União,
estados e municípios.

51
PATRIMÔNIO IMATERIAL

Foi ressaltado que os detentores têm um papel importante nos inventários, que
é o de transmissores do seu conhecimento às novas gerações. Entretanto, há outro
papel fundamental, que é o de identificar para o poder público – e, portanto, para
as equipes técnicas – os bens que devem ser inventariados. Com isso, a participação
dos detentores nos inventários vai ainda além, no sentido de que podem e devem
participar das próprias equipes de inventário, passando também a dominar suas
metodologias. Isso é fundamental porque, devido à sua natureza dinâmica, os bens
culturais imateriais devem ser documentados periodicamente, e ninguém melhor
para fazê-lo do que a própria comunidade detentora. Com isso, o inventário torna-se
também um instrumento de incentivo à autonomia do grupo. Um aspecto importante
mencionado é a questão do respeito aos direitos de imagem e de propriedade
intelectual dos detentores envolvidos.

Ações conjuntas e constantes devem ser implementadas entre o Estado e a sociedade,


para a manutenção das condições socioambientais referentes à continuidade de
preservação dos bens culturais imateriais. O primeiro passo para tanto é a soma de
políticas educacionais e culturais de valorização do saber-fazer, das experiências
e expertises, com a criação de ações socioeducativas no ensino formal e não formal.
Também deve ocorrer um pacto federativo entre as políticas, e que as de caráter
econômico não desprezem a preservação dos bens culturais, por somente objetivar
a função socioambiental da propriedade e dos proprietários, em total detrimento da
comunidade social. Entretanto, a conscientização e a capacitação de agentes locais
e comunitários deve ser priorizada, bem como divulgadas suas ações, expressões,
conhecimento produzido para a sustentabilidade, manutenção e continuidade dos
bens culturais.

Algumas ações são essenciais para encaminhar um processo de salvaguarda desses


conhecimentos tradicionais:

1. Mapeamento, inventário e cadastramento (por município e estado) dos


vários grupos e famílias que podem ser considerados detentores desses
conhecimentos, com vistas a diagnosticar forças, vantagens, fragilidades e
ameaças à sua continuidade; ou seja, produção sistematizada de conhecimento
sobre os diversos contextos socioambientais de produção e reprodução
desses conhecimentos;

2. Criação de base de dados compartilhada para intercâmbio, diálogo, troca e


atualização de informações;

3. Organização social por meio da criação de comissões ou conselhos locais,


estaduais e regionais (autogeridos) para discussão de agenda comum de
salvaguarda;

4. Discussão nesses fóruns da adoção de instrumentos ligados à proteção da


propriedade intelectual e à defesa de direitos culturais, como patentes,

52
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

indicação geográfica ou denominação controlada, com vistas também


à apropriação dos benefícios gerados pelo uso desses conhecimentos e
pelo consumo dos seus produtos, e ao controle da apropriação desses
conhecimentos pelo mercado.

5. Formulação e estabelecimento de políticas públicas de desenvolvimento


socioeconômico e ambiental dessas regiões, tendo como base e foco esses
conhecimentos tradicionais.

Isso posto, fica cada vez mais claro que o Estado tem o papel essencial de promover
a possibilidade de compartilhamento e diálogo, difundindo informações e facilitando
o acesso a elas por diversos meios. Entretanto, é preciso estar atento ao perigo do uso
dessas estruturas organizativas para a homogeneização de identidades, a criação de
falsos consensos e a legitimação de grupos políticos. O antídoto contra esses riscos
é que essas estruturas sejam criadas efetivamente pelas bases sociais interessadas na
salvaguarda.

2.2b Instrumentos e Práticas de Salvaguarda (Turma 2)

Professora: Rívia Ryker Bandeira de Alencar (Turma 2)

Licenciada e bacharel em Ciências Sociais, com habilitação em Antropologia pela


Universidade de Brasília (UnB, 2002). Mestre em Antropologia pela UnB (2005). Doutora
em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp, 2010).
Tem experiência na área de teoria antropológica e atua principalmente nos seguintes
temas: análise de rituais, relações raciais, cultura popular, política cultural e políticas
para o PCI. Servidora do IPHAN (2006). Ocupou o cargo de coordenadora de Apoio
à Sustentabilidade do Departamento do Patrimônio Imaterial/IPHAN (2009-2013).
Atualmente, atua como coordenadora-geral de Salvaguarda no mesmo setor.

Introdução

Este texto tratará especificamente dos instrumentos e práticas utilizados atualmente


pelo governo federal para a salvaguarda da dimensão imaterial do Patrimônio Cultural.
As iniciativas propostas pela UNESCO também serão abordadas.

Os três principais processos da política de salvaguarda executada pelo governo federal


são: identificação, reconhecimento e apoio e fomento. Os instrumentos e práticas que
correspondem a esses processos são:
Instrumentos de identificação

1. Inventário Nacional de Referências Culturais

2. Inventário Nacional da Diversidade Linguística

53
PATRIMÔNIO IMATERIAL

Instrumento de reconhecimento

1. Registro

Instrumentos de apoio e fomento

1. Ações e Planos de Salvaguarda para Bens Registrados

2. Ações de salvaguarda durante processos de Inventário ou Registro

3. Ações de Salvaguarda Emergenciais

4. Edital de Chamamento Público do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial

No âmbito internacional, os instrumentos de salvaguarda promovidos pela UNESCO


são:

1. Lista Representativa do Patrimônio Imaterial da Humanidade

2. Lista do Patrimônio Cultural Imaterial em Necessidade de Salvaguarda Urgente

3. Registro das Melhores Práticas Mundiais de Salvaguarda

Por último, a disciplina apresentará o meio para o desenvolvimento de ações de


salvaguarda para o PCI por meio do mecanismo de incentivo fiscal do Programa
Nacional de Apoio à Cultura (Pronac).

Instrumentos de identificação

Inventário Nacional de Referências Culturais

O Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) é um instrumento metodológico


disponibilizado pelo IPHAN para a produção de conhecimento sobre bens culturais
de natureza imaterial. A realização do INRC é estruturada em três fases: levantamento
preliminar, identificação e documentação. O objetivo inicial da aplicação do INRC é
produzir a localização de acervos, a sistematização de documentos e bibliografias, sobre
os domínios da vida social aos quais são atribuídos sentidos e valores diferenciados,
constituindo-se como marcos e referências de identidade para determinado grupo
social. É realizado com vistas a mapear os saberes, as celebrações, as formas de
expressão, os lugares (categorias do PCI estabelecidas pelo Decreto n° 3.551/200046),
e, ainda, as edificações associadas a certos usos, a significações históricas e a imagens
urbanas, independentemente de sua qualidade arquitetônica ou artística.

Por meio do INRC é possível, em um primeiro momento, identificar as referências


culturais de determinada localidade ou grupo social.47 Assim, a partir da identificação
realizada com a aplicação do inventário, é possível não apenas conhecer bens culturais,
mas também os valores e os significados atribuídos a esses bens pelos grupos sociais.

46. BRASIL, 2000.


47. O conceito de referência cultural foi abordado no subitem 4.1 da aula 2.

54
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

Em consequência disso, a aplicação do inventário deverá realizar a mobilização dos


grupos sociais envolvidos para a participação direta na pesquisa, diagnóstico da
realidade e proposição de ações resolutivas.

A identificação de bens culturais promovida pelo inventário gera a produção de


ampla documentação, utilizando-se das perspectivas, marcos teórico-metodológicos
e técnicas de campo advindos das ciências sociais, notadamente da Antropologia e da
História. Estruturado em três fases sucessivas – levantamento preliminar, identificação
e documentação –, propõe um olhar sobre o campo que caminha do geral para o
específico, envolvendo levantamentos bibliográficos, entrevistas com os detentores/
produtores dos bens culturais, fotografias, gravações sonoras e visuais, produções de
textos, dentre outros. Gera-se, com isso, um histórico e uma atualização de informações
sobre as referências culturais pesquisadas.

O conceito fundamental que organiza a identificação é o de referências culturais, no


sentido em que ele foi tratado na primeira disciplina. O processo de identificação,
entretanto, implica a compreensão de que o bem cultural não é uma realidade
dada, de que é preciso constituí-lo como uma referência cultural, ou seja, detectar os
significados e os valores da comunidade em questão para que determinado aspecto
da vida social seja eleito como referência de história, identidade e memória do grupo.
Nesse sentido, para identificar as referências culturais de uma comunidade, é preciso,
primeiramente, constituir uma análise sobre o domínio social, minimamente informada
por um referencial teórico e conceitual que forneça as bases para a pesquisa. Porém,
em contrapartida, é fundamental que os critérios para a eleição dos bens culturais,
assim como a própria eleição, partam dos referenciais próprios do grupo pesquisado.

É preciso explicitar, para cada bem identificado, a sua representatividade e o seu


significado para a comunidade; qual segmento social o considera como referência;
quais os sentidos, valores e significados que o constituem como tal. Isso envolve os
mitos de origem, as referências temporais, as razões pelas quais as pessoas reproduzem
essas práticas; as transformações que elas têm em função de cada segmento social
praticante ou detentor, além de sua dinâmica no tempo. Ainda, o imaginário social
constituído sobre o bem, as histórias particulares de cada pessoa ou segmento, que
além de significarem o bem, demonstram sua relação de pertencimento à vida do
indivíduo e da comunidade.

Conforme apresentado acima, por meio do inventário é possível identificar as referências


culturais e, consequentemente, documentá-las. A importância da documentação das
referências culturais pode ser verificada de diversas maneiras: como preservação da
memória de determinadas práticas culturais; como forma de reconhecer as mudanças
ocorridas ao longo do tempo; como produção de conhecimento para as futuras
gerações; como divulgação da diversidade cultural; e, inclusive para a proposição de
políticas públicas.

55
PATRIMÔNIO IMATERIAL

Como minuciosamente apresentado na aula 2, a participação dos detentores/produto-


res como sujeitos intervenientes nas ações de salvaguarda é condição imprescindível
para a sua execução. Isso posto, a aplicação do INRC requer fundamentalmente a
mobilização dos grupos sociais envolvidos. Desse modo, os levantamentos de infor-
mações produzidos ao longo do inventário também deverão reconhecer eventuais
dificuldades enfrentadas pelos grupos sociais para a continuidade da prática cultural,
ou vulnerabilidades presentes na transmissão dos saberes. Assim, em última instância,
o INRC se apresenta como um instrumento bastante eficaz para a salvaguarda: por
meio de sua aplicação, é possível identificar, documentar e, ainda, gerar subsídios
para políticas públicas.

O INRC, portanto, estrutura-se sob três ações fundamentais: produção de conhecimento,


documentação e mobilização social. Embora cada uma dessas dimensões possa ganhar
ênfases diferentes de acordo com as especificidades do objeto ou dos contextos
envolvidos, recomenda-se que todos eles sejam contemplados de forma satisfatória
no âmbito do inventário.

O IPHAN, por meio do Departamento do Patrimônio Imaterial e das Superintendências


Estaduais, é o órgão federal responsável por realizar treinamento sobre a aplicação da
metodologia e acompanhar a realização do inventário. Instituições públicas de qualquer
esfera bem como instituições privadas interessadas em realizar o INRC, deverão
contatar as unidades do IPHAN para solicitar a autorização de uso da metodologia.
As condições para aplicação do INRC estão dispostas na Instrução Normativa do DPI/
IPHAN nº 001/200948.

Inventário Nacional da Diversidade Linguística

O Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL) é um instrumento de


identificação, documentação, reconhecimento e valorização das línguas portadoras
de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira. Seu objetivo é mapear, caracterizar, diagnosticar e dar visibilidade
às diferentes situações relacionadas à pluralidade linguística brasileira, de modo a
permitir que as línguas sejam objeto de políticas patrimoniais que colaborem para sua
continuidade e valorização.

Instituído por meio do Decreto nº 7.387/201049, o INDL prevê que o Ministério da


Cultura (MinC), por meio do IPHAN, atue de forma compartilhada com os Ministérios
da Educação (MEC), da Justiça (MJ), da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e do
Palnejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), para a elaboração das diretrizes, dos
planos de ação e a implementação de políticas para a diversidade linguística.

O INDL pode ser considerado um instrumento de salvaguarda “híbrido”, no que


se refere aos processos que compõem a salvaguarda, pois, ao passo que identifica,

48. IPHAN, 2009.


49. BRASIL, 2010.

56
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

também reconhece. As línguas inventariadas receberão o título de “Referência Cultural


Brasileira”, a ser expedido pelo MinC, e, com isso, farão jus a ações de valorização e
promoção por parte do poder público.

Até então, foram realizados oito projetos-piloto para teste da metodologia em algumas
comunidades indígenas, afro-brasileiras, de imigração e de Libras. A expectativa do
IPHAN é concluir o manual de aplicação do INDL ainda este ano e divulgá-lo para a
sociedade em geral.

Instrumento de reconhecimento

Registro

O artigo 216 da Constituição Federal50, além de ampliar o conceito de patrimônio e


abarcar a dimensão imaterial, também autorizou, juridicamente, a possibilidade de
criação de outros instrumentos de preservação e apoio ao Patrimônio Cultural brasileiro.
Com os artigos 215 e 216 da CF, ficou estabelecida a base que amplia a noção de
patrimônio e permite a criação de novas maneiras de tratá-lo, ou seja, aqueles bens
culturais que foram obscurecidos no passado, por não serem alvo do instrumento
de preservação vigente, isto é, o tombamento, ganharam a oportunidade de serem
legalmente reconhecidos tendo o tombamento perdido a exclusividade.

No ano 2000, após um longo período de debates institucionais para a elaboração do


instrumento específico para a preservação da dimensão imaterial do patrimônio, foi
promulgado o Decreto nº 3.551/200051. Este instituiu o Registro como o instrumento
legal para o reconhecimento e a valorização do PCI.

Por um lado, diferentemente do Patrimônio Material, a dimensão imaterial do


patrimônio condiciona outras formas de atuação e demonstra um novo campo de
atuação da política patrimonial:
O patrimônio imaterial não requer ‘proteção’ e ‘conservação’ – no
mesmo sentido das noções fundadoras da prática de preservação de
bens culturais móveis e imóveis –, mas identificação, reconhecimento,
registro etnográfico, acompanhamento periódico, divulgação e
apoio.52

Por outro lado, a noção de autenticidade aplicada ao Patrimônio Material também precisou
ser revisitada e foi substituída pela noção de continuidade histórica. Essa substituição
busca reconhecer a dinâmica particular de transformação do bem cultural imaterial, que
pode ser verificada por meio de estudos históricos e etnográficos que busquem observar
as características essenciais do bem e sua modificação ao longo do tempo.

50. BRASIL, 1988.


51. BRASIL. 2000.
52. IPHAN, 2006a, p. 19.

57
PATRIMÔNIO IMATERIAL

De acordo com o Decreto nº 3.551/200053, os pedidos de Registro podem ser apresentados


pelo ministro da Cultura, instituições vinculadas ao MinC, secretarias de estado, de
município e do Distrito Federal, e sociedades ou associações civis.

Os pedidos de Registro devem conter justificativa, denominação e descrição sumária


do bem proposto, indicação de onde ocorre ou se situa, do período e da forma em que
ocorre; informações históricas básicas sobre o bem cultural; indicação da participação
e/ou atuação dos grupos sociais envolvidos; documentação mínima disponível
adequada à natureza do bem, tais como fotografias, desenhos, vídeos, gravações
sonoras ou filmes; referências documentais e bibliográficas disponíveis; declaração
formal de representante da comunidade produtora do bem ou de seus membros,
expressando o interesse e a anuência quanto à instauração do processo de Registro.

Os pedidos de Registro encaminhados ao IPHAN terão a pertinência julgada pela


Câmara do Patrimônio, – colegiado composto por membros do Conselho Consultivo
do Patrimônio Cultural, instância do IPHAN responsável pelo julgamento dos pedidos
de tombamento e Registro. Uma vez aprovada a proposta, a instrução do processo de
Registro deverá seguir as orientações da Resolução DPI/IPHAN nº 001/200654.

Com a instrução do processo de Registro concluída e o pedido de Registro aprovado


pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, o bem é inscrito em um ou mais de
um dos seguintes livros:

• Livro dos Saberes – para a inscrição dos conhecimentos e modos de fazer


enraizados no cotidiano das comunidades.

• Livro das Formas de Expressão – para a inscrição de manifestações literárias,


musicais, plásticas, cênicas e lúdicas.

• Livro das Celebrações – para a inscrição de rituais e festas que marcam a vivência
coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas
da vida social.

• Livro dos Lugares – para a inscrição de mercados, feiras, santuários, praças e demais
espaços onde se concentram e se reproduzem práticas culturais coletivas.

Os bens inscritos recebem o título de Patrimônio Cultural do Brasil e, a partir de então,


o Estado passa a ser responsável por dar ampla divulgação a esses bens, de modo que
toda a sociedade possa ter acesso a informações sobre suas características, significados,
e representações, dentre outros aspectos constitutivos.

A função imediata do Registro de um bem cultural é, por um lado, a valorização dos


grupos sociais detentores e produtores e, por outro, reconhecer o seu papel para a
formação da cultura brasileira. Em consequência disso, o IPHAN atua no sentido de

53. BRASIL, 2000.


54. IPHAN, 2006a.

58
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

estimular o envolvimento dos detentores/produtores e da sociedade em geral na


tarefa de preservar esses bens, e, além disso, para o estabelecimento de ações diretas
por parte de instituições públicas e privadas, em âmbito federal, estadual e municipal,
para o apoio e fomento desses bens.

Instrumentos de apoio e fomento

Por meio dos instrumentos de apoio e fomento, o IPHAN busca incentivar e


criar condições para que sejam executadas iniciativas e práticas de preservação
desenvolvidas pela sociedade. Atualmente, os seguintes instrumentos são dispo-
nibilizados: Ações e Planos de Salvaguarda para Bens Registrados; Ações de Salvaguarda
durante processos de Inventário ou Registro; Ações de Salvaguarda Emergenciais; e
Ações de Divulgação e Promoção.

Ações e Planos de Salvaguarda para Bens Registrados

Conforme explicitado na aula anterior, item 4.2, o termo salvaguarda aplica-se a toda e
qualquer ação ou processo destinado a apoiar e fortalecer a existência dos bens culturais
de natureza imaterial. Não obstante isso, a política desenvolvida pelo IPHAN também
denomina ações de apoio e fomento como “ações de salvaguarda”. Nesse contexto,
salvaguardar um bem cultural de natureza imaterial significa atuar no sentido de apoiar e
buscar melhorar as condições sociais e materiais de produção, reprodução e transmissão,
buscar garantir meios para a continuidade do bem cultural de modo sustentável, e visar,
a longo prazo, à autonomia dos grupos detentores para a gestão de seu patrimônio.

A execução da denominada “salvaguarda” de um bem registrado, ou seja, o processo


de preservação do PCI reconhecido, parte do pressuposto da gestão compartilhada.
Isto é, para a formulação e a implementação das ações ou planos de salvaguarda, é
imprescindível a ampla mobilização e participação dos detentores/produtores dos bens
registrados. A partir do diagnóstico e das recomendações para ações já apresentados
na instrução do Registro, são os detentores/produtores que vão apontar as situações
particulares em que ocorre a transmissão de saberes, e indicar os eventuais problemas
que enfrentam para a sua continuidade.

Uma vez que o Patrimônio Cultural é uma riqueza de toda a nação, uma primeira
medida da salvaguarda consiste em buscar reconhecer parceiros, em todos os âmbitos
da sociedade, como instituições públicas locais e organizações não governamentais,
para o estabelecimento de uma agenda para o encaminhamento de demandas e
soluções para a realidade do bem registrado. Nesse sentido, o Departamento do
Patrimônio Imaterial do IPHAN recomenda a formação de um Comitê Gestor para a
Salvaguarda do Bem Registrado, formado por membros dos grupos detentores do
bem, representantes do IPHAN (DPI e Superintendências Estaduais envolvidas), dos
poderes públicos municipais e estaduais, e de outros segmentos da sociedade, para a
elaboração, a execução e a avaliação das ações, bem como para o acompanhamento
de seus desdobramentos.

59
PATRIMÔNIO IMATERIAL

Eixos e tipos das ações de salvaguarda

A política de salvaguarda, em observância com sua competência, pode atuar no


desenvolvimento de ações que estejam relacionadas com os seguintes eixos:

1. Produção e Reprodução Cultural

2. Mobilização Social e Alcance da Política

3. Gestão Participativa e Sustentabilidade

4. Difusão e Valorização

Esses eixos desdobram-se em 13 (treze) tipos de ações de salvaguarda, que podem ser
combinadas entre si para a execução em longo prazo. A depender do contexto de cada
bem registrado, é possível elaborar e implementar um conjunto de ações, nesse caso,
um Plano de Salvaguarda, com proposição de ações a curto, médio e longo prazo.

Os tipos de ação de salvaguarda são:

1. Apoio à criação de Comitê Gestor à elaboração do Plano de Salvaguarda e/


ou associações – apoio a ações estruturantes para o início do processo
de salvaguarda, como o apoio e o custeio para a realização de reuniões,
seminários; disponibilização de documentos e recursos humanos para
orientação e assessoria; mediação com instituições para a ampliação da
mobilização e compromisso dos segmentos sociais envolvidos.

2. Transmissão de saberes – transmissão de conhecimentos de detentores e/ou


produtores de bens culturais de natureza imaterial para as novas gerações.
Realização de ações de apoio às condições de permanência do bem cultural
como prática vivenciada, por meio do ensino às novas gerações dentro do
grupo ou comunidade onde é tradicionalmente cultivada, como: oficinas,
aulas, vivências, entre outras.

3. Ocupação, aproveitamento e manutenção de espaço físico – aquisição de equi-


pamentos, reformas, adequação de espaços para atividades de salvaguarda,
sinalização.

4. Apoio às condições materiais de produção – obtenção ou aquisição de matérias-


-primas e equipamentos para a produção cultural, manejo ambiental.

5. Geração de renda e ampliação de mercado – apoio à participação em feiras,


exposições, colocação em pontos de venda, confecção de etiquetas diferen-
ciadas, catálogo de venda.

6. Capacitação de quadros para gestão do patrimônio – formação da sociedade


e de gestores públicos para o desempenho civil e oficial de ações de
salvaguarda, por meio de oficinas, seminários, cartilhas, manuais.

60
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

7. Pesquisa participativa – estímulo à formação de detentores/produtores como


pesquisadores e agentes de preservação.

8. Edição e difusão de resultados – disponibilização de conteúdos a respeito do


universo cultural significativo do bem cultural registrado para a sociedade
em geral.

9. Constituição, conservação e disponibilização de acervo – apoio à produção e à


guarda de acervos documentais sobre o bem cultural, de modo a socializar o
conhecimento acumulado.

10. Ações educativas – preparação de conteúdos dirigidos a segmentos de


ensino, visitas guiadas, palestras, oficinas.

11. Atenção à propriedade intelectual e aos direitos coletivos – ações de apoio,


esclarecimento e mediação institucional de modo a salvaguardar os direitos
dos detentores dos saberes em questão.

12. Editais, prêmios e seleção de iniciativas de salvaguarda – voltados para a valori-


zação de iniciativas relativas à salvaguarda do bem cultural.

13. Articulação institucional e política integrada – ações voltadas, para o desenvol-


vimento de projetos integrados com diferentes áreas governamentais para o
estabelecimento de políticas intersetoriais.

Ações de salvaguarda durante processos de Inventário ou Registro

Há situações em que não é possível aguardar o Registro de um bem cultural para a rea-
lização de ações de salvaguarda. Ao longo da aplicação do INRC ou do desenvolvimen-
to de um processo de Registro, podem surgir situações prementes que necessitem do
apoio da política de salvaguarda. Nessa linha, apresentamos um exemplo de ação de
salvaguarda desenvolvida ao longo da instrução do Registro do bem cultural Cachoeira
de Iauaretê – Lugar Sagrado dos Povos Indígenas dos Rios Uaupés e Papuri (localizada na
região do Alto Rio Negro, distrito de Iauaretê, município de São Gabriel da Cachoeira,
Estado do Amazonas) no Livro dos Lugares em 10 de agosto de 2006.

No final dos anos 1920, missionários salesianos chegaram à região do Alto Rio Negro,
no Amazonas, com o objetivo de “civilizar” os povos indígenas por meio da catequese.
Compreenderam os ornamentos sagrados dos indígenas, que eram guardados e
utilizados cerimonialmente em rituais de iniciação e como objeto de troca entre grupos,
como “coisas do diabo”. Por esse alegado motivo, recolheram quase a totalidade dos
ornamentos e os levaram a museus ou os venderam para acervos particulares.

Na década de 1950, outra vertente de missionários da região, as Irmãs Filhas de Maria


Auxiliadora, buscaram grande parte desses adornos para a criação do Museu do Índio
de Manaus. O Museu, mantido pelo Patronato Santa Teresinha, passou a ser ponto

61
PATRIMÔNIO IMATERIAL

turístico da capital. Os índios tomaram conhecimento do acervo composto por seus


objetos sagrados e se questionaram: por que não foram destruídos, se eram “coisas do
diabo”?

Durante a pesquisa para a instrução do Registro da Cachoeira de Iauaretê, os grupos


indígenas da região manifestaram interesse em visitar o Museu do Índio de Manaus,
chamado por eles de “museu das freiras”, para enfim reconhecer os ornamentos que
estavam ali. Foram identificados 108 itens, pertencentes a 16 tipos de objetos que
compõem o conjunto de adornos de dança dos povos do Rio Uaupés.

Imediatamente, os índios manifestaram a intenção de recuperar os objetos e levá-las


de volta para casa. Sendo assim, o IPHAN, em conjunto com os parceiros Federação dos
Povos Indígenas do Alto Rio Negro (Foirn) e o Instituto Socioambiental (ISA), passou
a negociar com o Patronato Santa Teresinha a reintegração dos ornamentos para a
região do Rio Uaupés.

Em consequência, foi elaborado um Termo de Compromisso entre as partes envolvidas


para o retorno dos ornamentos a Iauaretê. Essa foi uma ação institucional inédita, que
teve como fundamento a inscrição da Cachoeira de Iauaretê como Patrimônio Cultural
do Brasil. Assim, os objetos puderam ser repatriados e foram recuperadas suas funções
simbólica e ritual.

Ações de salvaguarda emergenciais

Há ainda outra forma de ação de salvaguarda, que pode ser empregada a bens
culturais que não forem registrados ou que não estejam em processo de identificação
ou instrução de Registro. São as chamadas ações de salvaguarda emergenciais.

Essas ações são utilizadas no sentido de apoiar, emergencialmente, bens culturais de


natureza imaterial em situação de risco. Caracterizam-se por serem ações de execução
imediata e de curto prazo. A conclusão da ação deverá culminar em um processo mais
amplo de salvaguarda, como a realização de Inventário ou da instrução técnica para o
Registro. Segue um exemplo.

Em 2004, o IPHAN foi procurado por pessoas preocupadas com o desaparecimento


de um tipo de renda tradicional do município de Marechal Deodoro, em Alagoas. A
preocupação se justificava, pois a renda, conhecida como “Bico de Singeleza”, dispunha
apenas de uma única detentora do saber, Dona Marinita, de idade bastante avançada.

Nesse contexto, o IPHAN-Alagoas, com apoio do IPHAN-Sergipe e parceria da Secretaria


Estadual de Cultura de Alagoas, promoveu a realização de oficinas de repasse do
saber-fazer “Bico de Singeleza” para oito artesãs que desconheciam totalmente aquele
artesanato. Logo após a realização da oficina, a renda passou a ser produzida por um
número maior de artesãs, o que contribuiu para a melhora da condição social daquelas
pessoas e também para a continuidade do bem cultural.

62
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

Em continuidade à ação emergencial realizada, foi realizado o pedido de Registro do


Bico Singeleza. Neste momento, a instrução do processo está em andamento.

Edital de chamamento público do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial

Com o intuito de descentralizar a política de salvaguarda do Patrimônio Imaterial, apoiar


iniciativas e práticas de preservação desenvolvidas pela sociedade, contribuir para a
preservação da diversidade cultural do país e para a disseminação de informações
sobre o Patrimônio Cultural brasileiro a todos os segmentos da sociedade, desde 2005,
anualmente, o IPHAN publica o edital do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial
(PNPI).

O edital do PNPI seleciona projetos de identificação, documentação e/ou melhora das


condições de sustentabilidade de conhecimentos tradicionais, modos de fazer, formas
de expressão, festas, rituais, celebrações, lugares e espaços que abrigam práticas
culturais coletivas vinculadas às tradições de comunidades de afrodescendentes,
indígenas e imigrantes, dentre outras.

Os projetos podem ser apresentados por instituições públicas ou privadas sem fins
lucrativos, e devem seguir as orientações do edital de cada ano. É condição fundamental
para a aprovação do projeto a comprovação da participação e do consentimento
prévio das comunidades envolvidas ou das instituições que as representam.

Em 2011, o edital do PNPI foi reconhecido pelo Comitê Intergovernamental da


UNESCO para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial como um dos programas
que melhor refletem os princípios e objetivos da Convenção para a Salvaguarda do
Patrimônio Cultural Imaterial55, aprovada em 2003 pela Organização.

Instrumentos de salvaguarda promovidos pela UNESCO

A salvaguarda do Patrimônio Imaterial está presente nas áreas de atuação da UNESCO.


Entre os mecanismos criados por essa instância, podemos destacar a Recomendação
para a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular56, de 1989, que constitui um
instrumento legal de orientação para a identificação, a preservação e a divulgação do
PCI em âmbito internacional.

Em 2003, após grande mobilização mundial, a UNESCO adotou a Convenção para a


Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial57. Essa convenção normatiza o tema do
PCI, além de complementar a Convenção do Patrimônio Mundial58, de 1972, que trata
dos bens culturais materiais.

Com o objetivo de estimular o reconhecimento e a promoção da diversidade mundial


do PCI, em 2003 e 2005, a UNESCO realizou a Proclamação das Obras-Primas do

55. UNESCO, 2003.


56. UNESCO, 1989.
57. UNESCO, 2003.
58. UNESCO, 2004.

63
PATRIMÔNIO IMATERIAL

Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade59. Para se candidatar ao título, era necessário


que o bem cultural já fosse reconhecido nacionalmente como Patrimônio de seu país.
Dois bens culturais registrados receberam o título de Obra-Prima da Humanidade: a
Arte Kusiwa – pintura corporal e arte gráfica Wajãpi (em 2003) e o Samba de Roda do
Recôncavo Baiano (em 2005). Até 2008, 90 bens culturais imateriais mundiais foram
proclamados Obras-Primas.

Em 2009, a Proclamação foi substituída pela inscrição na Lista Representativa do


Patrimônio Imaterial da Humanidade60. Todos os bens culturais proclamados Obras-
Primas foram conduzidos à Lista. Em 2012, a candidatura do bem registrado Frevo foi
aprovada, totalizando hoje 257 bens incluídos na Lista. Perfazendo uma analogia com
a política de salvaguarda do governo federal, é possível considerar que a inclusão de
um bem cultural na Lista Representativa da UNESCO seria o equivalente ao Registro do
Patrimônio Cultural do Brasil, ou seja, uma ação na linha do reconhecimento.

Nesse sentido, a Lista de Patrimônio Cultural Imaterial em Necessidade de Salvaguarda


Urgente seria uma ação na linha de apoio e fomento. Para o envio de candidaturas, os
bens culturais também devem ser oficialmente reconhecidos em seu país de origem. O
objetivo da inscrição na Salvaguarda Urgente é mobilizar a cooperação internacional e
a assessoria especial para os detentores do bem cultural, na elaboração e execução de
ações de salvaguarda específicas e emergenciais. Iniciada em 2009, atualmente 31 bens
culturais mundiais estão inscritos nessa Lista. Em 2011, o bem registrado Ritual Yaokwa
do povo indígena Enawenê Nawê foi considerado em Necessidade de Salvaguarda
Urgente.

Ainda na linha de apoio e fomento, desta vez com o caráter de premiação, a UNESCO
realiza o Registro das Melhores Práticas de Salvaguarda. Nesse caso, o objetivo é divulgar
programas, projetos e atividades de salvaguarda que melhor refletem os princípios e os
objetivos da Convenção de 2003. Durante o período de 2009 a 2012, foram selecionados
10 programas, projetos e atividades. Dentre eles, duas experiências brasileiras: o Edital
do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, descrito acima, e o Museu Vivo do
Fandango.

Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac)

A Lei n° 8.313/1991, conhecida como Lei Rouanet, institui o Programa Nacional de


Apoio à Cultura (Pronac). A finalidade do Pronac, de competência do Ministério da
Cultura (MinC), é permitir a captação de recursos financeiros por meio do mecanismo
de incentivo fiscal para a execução de projetos culturais61:
De acordo com o Art. 1°, a finalidade do PRONAC é captar e canalizar
recursos para o setor cultural de modo a:

59. UNESCO, 2006.


60. Disponível em: <http://www.unesco.org/culture/ich/index.php?pg=00559>.
61. Além do incentivo a projetos culturais o Pronac tem outros dois mecanismos que não serão abordados aqui: o Fundo Nacional
da Cultura (FNC) e os Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Ficart).

64
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

I – contribuir para facilitar, a todos, os meios para o livre acesso às


fontes da cultura e o pleno exercício dos direitos culturais;
II – promover e estimular a regionalização da produção cultural e
artística brasileira, com valorização de recursos humanos e conteúdos
locais;
III – apoiar, valorizar e difundir o conjunto das manifestações culturais
e seus respectivos criadores;
IV – proteger as expressões culturais dos grupos formadores da
sociedade brasileira e responsáveis pelo pluralismo da cultura
nacional;
V – salvaguardar a sobrevivência e o florescimento dos modos de
criar, fazer e viver da sociedade brasileira;
VI – preservar os bens materiais e imateriais do patrimônio cultural e
histórico brasileiro;
VII – desenvolver a consciência internacional e o respeito aos valores
culturais de outros povos ou nações;
VIII – estimular a produção e difusão de bens culturais de valor
universal, formadores e informadores de conhecimento, cultura e
memória;
IX – priorizar o produto cultural originário do país.62

Os segmentos culturais que podem ser contemplados pela Lei Rouanet são:

1. Artes cênicas;
2. Livros de valor artístico, literário ou humanístico;
3. Música erudita ou instrumental;
4. Exposições de artes visuais;
5. Doações de acervos para bibliotecas públicas, museus, arquivos públicos e
cinematecas, bem como treinamento de pessoal e aquisição de equipamen-
tos para a manutenção desses acervos;
6. Produção de obras cinematográficas e videofonográficas de curta e média
metragem, e preservação e difusão do acervo audiovisual;
7. Preservação do Patrimônio Cultural Material e Imaterial;
8. Construção e manutenção de salas de cinema e teatro, que poderão funcionar
também como centros culturais comunitários, em municípios com menos de
100.000 (cem mil) habitantes.

Com isso, é possível a apresentação de projetos para a realização de ações de


salvaguarda por meio da captação de recursos. De acordo com a súmula aprovada
pela Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC), instância do MinC responsável
pela aprovação dos projetos que poderão realizar captação, os projetos encaminhados
para o segmento Patrimônio Cultural Imaterial deverão abranger o seguinte escopo:
62. BRASIL, 1991.

65
PATRIMÔNIO IMATERIAL

Para efeitos de enquadramento na alínea ‘g’, parágrafo 3º, artigo 18


da Lei nº 8.313/91, no que tange ao Patrimônio Cultural Imaterial não
Registrado na forma do Decreto nº 3.551/2000, serão considerados
projetos de valorização ou de salvaguarda aqueles relativos a bens
culturais imateriais transmitidos há, pelo menos, três gerações,
que digam respeito à história, memória e identidade de grupos
formadores da sociedade brasileira, que contem com a anuência
comprovada e a participação de representação reconhecida da
base social detentora, e que apresentem proposta de geração
de benefícios materiais, sociais ou ambientais para esta base,
devendo ainda ser enquadrados em tipologia de ações e produtos
estabelecida pelo IPHAN.63

À guisa de conclusão

Com a explanação realizada, percebe-se que há uma gama de possibilidades para a


atuação na salvaguarda do PCI. Contudo, para que sua execução seja eficaz, e a alocação
dos recursos seja eficiente, é preciso considerar tanto o papel da esfera pública quanto
da sociedade em geral. A política nesse campo se faz por meio de uma via de mão
dupla: assim como é dever do Estado criar condições para a ampla difusão e o correto
acesso a esses instrumentos, é papel da sociedade demandar a formação necessária
para alcançar os meios para sua execução e fruição.

Referências Bibliográficas

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado


Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constituicao.htm>.

BRASIL. Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000. Institui o Registro de Bens Culturais


de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa
Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília,
DF, 5 ago. 2000. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3551.
htm>.

BRASIL. Decreto nº 7.387, de 9 de dezembro de 2010. Institui o Inventário Nacional


da Diversidade Linguística e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília,
DF, 10 dez. 2010. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-
2010/2010/Decreto/D7387.htm>.

BRASIL. Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991. Restabelece princípios da Lei n° 7.505,


de 2 de julho de 1986, institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) e dá
63. BRASIL. Ministério da Cultura. Súmula Administrativa nº 7 da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura – CNIC. Disponível em:
<http://www2.cultura.gov.br/site/2011/01/11/sumula-administrativa/>.

66
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 24 dez. 1991. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8313cons.htm>.

IPHAN. Instrução Normativa nº 001/2009, de 02 de março de 2009. Dispõe sobre as con-


dições de autorização de uso do Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC.
Brasília: DPI/IPHAN, 2009. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/portal/montar
DetalheConteudo.do;jsessionid=02A69F3D4C13DE70538F5E8FEBDBB343?id=14318&-
sigla=Institucional&retorno=detalheInstitucional>.

IPHAN. Patrimônio Imaterial: o registro do patrimônio imaterial – dossiê final das atividades
da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. 4.ed. Brasília, 2006a.

IPHAN. Resolução nº 001, de 2006. Brasília, 2006b.

UNESCO. Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural; Paris,


21 de novembro de 1972. Brasília, 2004. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/
images/0013/001333/133369por.pdf>.

UNESCO. Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial; Paris, 17 de


outubro de 2003. Brasília, 2003. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/
0013/001325/132540POR.pdf>.

UNESCO. Masterpieces of the Oral and Intangible Heritage of Humanity: Proclamations


2001, 2003 and 2005. Paris, 2006. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/
images/0014/001473/147344e.pdf>.

UNESCO. Recommendation on the Safeguarding of Traditional Culture and Folklore; Paris,


15 November, 1989. Paris, 1989. Disponível em: <http://portal.unesco.org/en/ev.php-
URL_ID=13141&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html>.

Fórum de Discussão

O texto a seguir é a compilação dos debates realizados entre professor e alunos nos
fóruns de discussões da plataforma de educação a distância, tendo como base o texto
autoral do professor, publicado acima, e as seguintes perguntas orientadoras:

1. No que consiste o caráter participativo na aplicação dos instrumentos de


salvaguarda?

2. Descreva como funciona a gestão compartilhada do PCI.

3. Apresente uma referência cultural da sua região e indique ao menos uma


ação de salvaguarda que poderia ser utilizada para seu apoio e valorização.
Justifique os objetivos e os resultados esperados

Uma das discussões desenvolvidas nos fóruns da disciplina foi sobre o caráter
participativo na aplicação dos instrumentos de salvaguarda. De acordo com o Decreto

67
PATRIMÔNIO IMATERIAL

n° 3.551/200064, a Política de Patrimônio Imaterial deve envolver a sociedade em geral


na gestão do patrimônio, pois este requer a participação dos principais envolvidos
para sua efetiva salvaguarda. Não se trata apenas da convergência de esforços na
“racionalização” do processo. A implementação de políticas participativas corresponde
a um novo momento histórico, no qual a sociedade civil experimenta novas formas de
atuação política. A própria ideia de democracia tem o desafio de vencer a herança de
relações clientelistas com o Estado.

Um novo paradigma se coloca para permitir a comunicação e a produção de (auto)


conhecimento, o que eleva as relações políticas a outro nível – inclusive de dimensão
ética –, implicando o comprometimento dos cidadãos com o que é público. Se não
houver adesão à política de salvaguarda pelos próprios detentores/produtores, não é
possível implementá-la. No caso dos bens imateriais, os grupos sociais são os únicos
que podem arbitrar sobre o que querem preservar e se querem preservar.

Essa possibilidade de escolha está estritamente relacionada ao caráter dinâmico


dos bens culturais imateriais. Assim como determinadas características de um bem
cultural podem se transformar ao longo dos anos, sem que o bem cultural deixe de ser
representativo, referências culturais de uma época podem ter seu valor transformado
em outros momentos. É por esse motivo que ações de salvaguarda não podem ser
compulsórias. Não é o Estado que define o que deve ser preservado: O Estado que deve
criar os meios para que a salvaguarda aconteça, porém, são as pessoas que devem querer
realizá-la. Assim, o Estado dá o suporte, mas os instrumentadores das manifestações
culturais devem se movimentar para decidir os rumos do apoio oferecido.

Nesse sentido, foi discutida a importância de deixar clara a sutil diferenciação entre o
“caráter participativo” da Política de Patrimônio Imaterial e a “gestão compartilhada”.
Para a execução da política de salvaguarda do PCI, a participação dos detentores/
produtores é condição básica e insubstituível. Essa participação é considerada por
meio da escuta das demandas diretas dos detentores/produtores, como também pela
elaboração e execução de ações por eles próprios – isto é, criar condições para que
os detentores/produtores sejam sujeitos ativos na salvaguarda –, como pesquisadores
de suas referências culturais, elaboradores, monitores e avaliadores das ações de
salvaguarda, propositores de políticas públicas e interlocutores das instâncias oficiais
que promovem apoio e fomento ao patrimônio. São nestes dois últimos aspectos que
reside a “gestão compartilhada” que, a partir daí, deve ser amplificada.

A política de salvaguarda requer a ampla participação de detentores/produtores na sua


elaboração e execução e, além disso, que aqueles sejam reconhecidos como sujeitos
atuantes pelas instâncias governamentais e protagonistas nas demandas de políticas
públicas. Esse é o caráter participativo da política de salvaguarda. Agora, para a gestão
do PCI ser de fato compartilhada, não basta a atuação de detentores/produtores na

64. BRASIL, 2000.

68
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

salvaguarda do seu patrimônio. É preciso que estejam envolvidas todas as esferas


governamentais e demais instituições que possuem em sua competência o apoio à
cultura e ao patrimônio. Logo, a “gestão compartilhada” pode ser compreendida como
o estabelecimento de um fórum de debate e deliberação a favor de uma realidade que
sedia bens culturais imateriais. Não necessariamente o bem cultural deve ser registrado
para que haja o envolvimento de entes em sua salvaguarda: Conselhos de Cultura
Municipais e Estaduais, por exemplo, trabalham nesse sentido.

No caso do Brasil, a gestão compartilhada se estrutura a partir da formação de


Comitês Gestores para a Salvaguarda do Bem Registrado, constituídos por membros
dos grupos detentores e de outros segmentos da sociedade e responsáveis pela
elaboração, execução e avaliação das ações, bem como pelo acompanhamento de
seus desdobramentos, junto com os representantes do poder público federal (IPHAN),
estadual e municipal. É essa articulação que propicia a efetivação dos instrumentos e
das práticas de apoio e fomento às manifestações.

Se a função do Comitê Gestor é elaborar, executar e avaliar ações, além de fazer o


acompanhamento dos seus desdobramentos, aos detentores é atribuído um papel
primordial, uma vez que eles detêm o conhecimento e a responsabilidade de execução
do bem em questão.

Outra questão debatida durante os fóruns centrou-se no desafio que constitui viabilizar
a participação “real” desses detentores, uma vez que há diferentes problemas nessa
relação: da falta de conhecimento de muitos detentores, representantes que não
se legitimam a partir do interesse de todos, a interferências de empresas ou grupos
financeiros que, em troca de apoio financeiro, alteram de maneira danosa as práticas
de PCI.

69
PATRIMÔNIO IMATERIAL

2. 3 Instrumentos de Gestão e Políticas de Fomento

Ementa: Os casos de gestão do Patrimônio Cultural. Legislação patrimonial.

Professora: Maria Elizabeth Costa

Graduada em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de


Janeiro (UFRJ) em 1974, mestre em Psicolinguística pela UFRJ em 1996 e doutora em
Antropologia Cultural pela UFRJ em 2005. Desde 2010, é chefe da Divisão de Pesquisa
do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular.

Fomento, salvaguarda e gestão do patrimônio cultural: boas práticas


Chegou o momento de pensar, com seriedade, e de maneira prática,
no problema da proteção aos nossos folguedos populares. Como
tornar efetiva a proteção, sem que, no processo, os nossos folguedos
percam as suas características? Sabemos que a proteção em si
mesma implica uma intromissão erudita no campo do folclore e,
entre os perigos que comporta, está o de poder levar à mais rápida
liquidação de toda essa riqueza.65

A preocupação de Edison Carneiro era, já em 1957, sobre a dificuldade de se definir


as fronteiras entre intervenções adequadas e inadequadas na produção, circulação
e fruição de bens culturais. Em uma discussão que ainda não incluía termos como
patrimônio, imaterial ou salvaguarda, Carneiro propunha como solução para a defesa
e a proteção das manifestações folclóricas o binômio intervenção e liberdade. Para
tanto, apontava a necessidade de pesquisa e registro dos mais variados aspectos
das manifestações culturais – para balizar intervenções informadas e oportunas – e o
desenvolvimento do espírito associativo nos grupos, para promover seu fortalecimento
e assegurar a liberdade de criação. Para convocar a cautela necessária nas intervenções
propostas, ele repetidamente sugeria discrição, “uma extrema discrição”.

No contexto do movimento folclórico daquela época, Vilhena (1997) identifica um


programa de três pontos, englobando (1) pesquisa, (2) proteção e (3) educação. A
cartografia das manifestações culturais forneceria subsídios para as políticas voltadas à
sua defesa e proteção e ao aproveitamento em ações educativas, formais e informais,
compensaria a perda do contato direto com essas práticas, principalmente no que
diz respeito às novas gerações, garantindo a eficácia das políticas de preservação
e revitalização. Esses três pontos articulados resumem os esforços empreendidos
pelo movimento folclórico desde as primeiras décadas do século XX, assim como as
iniciativas da Comissão Nacional do Folclore, acompanhada pelas Comissões Estaduais,
em um plano de trabalho vislumbrado desde 1947, em sintonia com o espírito da
convenção internacional que criou a UNESCO em 1946.

65. CARNEIRO, 2008.

70
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

No contexto de hoje, comemoramos 10 anos de vigência do primeiro Registro de um


Patrimônio Cultural do Brasil, o Ofício das Paneleiras de Goiabeiras, que encabeça uma
lista de 25 bens culturais registrados pelo IPHAN.

Dispomos de um Plano Nacional de Cultura (PNC) que compreende 14 diretrizes, 275


ações, 36 estratégias e 53 metas, a serem implantadas até o ano de 2020, de modo
a promover, no país, um novo cenário cultural. Previsto na Constituição Federal de
1988, o PNC foi elaborado em parceria com a sociedade civil, a partir de um amplo
debate promovido em encontros, conferências, fóruns e seminários, com o objetivo
de definir as políticas públicas que assegurem a proteção e a promoção do Patrimônio
Cultural brasileiro. Seu propósito é balizar as políticas públicas e os projetos culturais
voltados para a o conhecimento, a promoção, a valorização e a preservação da nossa
diversidade cultural.

O PNC baseia-se em três dimensões da cultura, fortemente articuladas:

• a cultura como fonte simbólica;

• a cultura como direito da cidadania;

• a cultura como potencial para o desenvolvimento econômico.

Respeitando-se a profunda imbricação desses aspectos da cultura, todos os projetos


de fomento e salvaguarda do Patrimônio Cultural, assim como todas as ações
implementadas por mediadores e gestores culturais, devem fortalecer as identidades
socioculturais dos segmentos sociais diretamente responsáveis pela criação, produção
e condução de bens culturais e que, em geral, têm sido marginalizados nos processos
de desenvolvimento social e econômico. Aprimorar as condições de produção e
transmissão de técnicas, a divulgação e a difusão de práticas ou a comercialização
de bens culturais, implica não perder de vista as especificidades sociais, econômicas
e culturais dos grupos envolvidos, seu modo de vida, os valores locais, as visões de
mundo e as formas de representação.

São esses os princípios norteadores das boas práticas de fomento, salvaguarda e


gestão de patrimônios culturais, facilmente entendidos e aceitos pelos atores sociais
que participam dos amplos debates em torno das diretrizes dos programas e projetos
culturais. Contudo, nas interlocuções e negociações entre poderes públicos, nos
âmbitos federal, estadual e municipal, organizações privadas, patrocinadores, gestores,
mediadores culturais e a sociedade mais ampla, nem sempre esses eixos são acordados
e pactuados, como se espera ou se almeja, em torno de experiências concretas e
pontuais a serem enfrentadas.

Na medida em que o fomento visa à valorização, promoção e fortalecimento das


manifestações culturais, enquanto a salvaguarda pressupõe identificação,
documentação, apoio à transmissão e à memória dessas expressões e manifestações,
as boas práticas nesse campo são aquelas que refletem tais princípios norteadores,

71
PATRIMÔNIO IMATERIAL

mas que não se descuidam da cautela, ou discrição, no trato com as diversas faces das
identidades socioculturais. Algumas das questões mais pertinentes serão discutidas a
seguir.

O Modo de Fazer Viola de Cocho foi registrado como Patrimônio Cultural do Brasil, no
Livro dos Saberes, em 2005. A instrução do processo reuniu informações, imagens,
vídeos e partituras, um material colhido nos municípios de Cuiabá, Santo Antônio de
Leverger, Nossa Senhora do Livramento, Poconé, Jangadas, Nobres, Várzea Grande, em
Mato Grosso, e em Corumbá e Ladário, no Mato Grosso do Sul.

Isso significa que aquilo que chamamos de território de uma prática cultural não se
trata de uma unidade territorial delimitada geopoliticamente, mas sim de uma região
que apresenta referências socioculturais partilhadas por determinadas populações,
vinculadas aos modos de vida, saberes e fazeres dessas populações. Mais do que uma
territorialidade disputada por dois estados, a região ao longo do Rio Cuiabá é base para
os cururueiros, que se deslocam rio abaixo e rio acima, para uma prática cultural que
passa ao largo de contendas administrativas.

Da mesma forma, o Ofício das Baianas de Acarajé, registrado no Livro dos Saberes em
2005, tomando como referência a cidade de Salvador (BA), se ramifica por outros
estados e municípios brasileiros nos quais as associações das baianas encontram
maior ou menor receptividade por parte dos poderes locais, muitos dos quais não se
mostram ainda sensibilizados para o fomento e a salvaguarda dos patrimônios culturais
existentes em suas regiões.

Nesse sentido, a visibilidade conferida ao bem cultural é ponto fundamental para sua
proteção e preservação. A reivindicação de legitimidade como representante de uma
prática cultural, isto é, o exercício e o domínio dos sentidos e significados que revestem
o bem cultural, dificilmente ocorre sem conflitos e tensões entre os atores sociais
envolvidos nesse diálogo. O reconhecimento público advindo da titulação confere aos
grupos praticantes a possibilidade e o direito de interlocução com os poderes públicos
e com a sociedade mais ampla. É por meio dessa interlocução que se torna possível
e viável a construção de um conceito de patrimônio mais condizente com o cenário
cultural que se deseja.

O Jongo no Sudeste, registrado no Livro de Formas de Expressões em 2005, toma como


referência 16 municípios em quatro estados brasileiros: São Paulo, Rio de Janeiro, Minas
Gerais e Espírito Santo. Nesses oito anos após o registro, já foram mapeados 18 municípios
que praticam o jongo, somente no Estado do Espírito Santo. O Pontão de Cultura que
acompanha o plano de salvaguarda do Jongo, em convênio com a Universidade Federal
Fluminense (UFF), localiza-se no Rio de Janeiro, e está-se em discussão a criação de um
Pontão de Cultura, em convênio com a Universidade Federal do Espírito Santo (UFES),
para um atendimento mais voltado aos municípios desse estado.

O reconhecimento público e a multiplicação de oportunidades para a prática de uma


manifestação cultural são capazes de promover a valorização da atividade por parte

72
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

dos próprios participantes e, principalmente, das gerações mais novas, fortalecendo


o bem cultural. É importante observar que essa estratégia, naturalmente, não incide
apenas sobre os bens registrados. Em São Luiz do Paraitinga (SP), os encontros dos
grupos Moçambiques e Congadas, promovidos pelo Centro Nacional de Folclore e
Cultura Popular (CNFCP), em um projeto de pesquisa, documentação e memória de
folguedos, ocasionou a retomada de pelo menos dois grupos da região rural, cujos
mestres conseguiram reunir os participantes que haviam se dispersado por municípios
vizinhos, em busca de condições mais favoráveis de emprego. Os encontros reuniram
mais de 200 integrantes dos grupos Congadas e Moçambiques, que trocaram histórias
de vida, experiências e expectativa com relação a seus grupos. Tanto os mestres
quanto os demais membros dos grupos também estão inseridos em outros contextos
e participam de manifestações como a Cavalhada, as Folias de Reis, o Jongo e o Brão
(canto de trabalho dos mutirões locais).

Nunca é demais insistir na cautela que deve acompanhar a promoção de uma prática
cultural. Embora a visibilidade seja um dos vetores no campo de forças da valorização
da diversidade cultural, corre-se o risco da banalização e da folclorização das práticas
e expressões. A espetacularização de danças e celebrações modifica a duração do
ritual, o tempo social em que ele ocorre, afetando também as vinculações com outras
dimensões culturais das quais ele faz parte. Isso ocorre porque uma política para o
fomento e a proteção do Patrimônio Cultural não se restringe à manifestação, mas
atinge o cotidiano e se estende ao modo de vida dos grupos envolvidos.

A transmissão dos saberes e fazeres das culturas populares exige a participação direta
dos mestres, mestras e demais praticantes. Tomando novamente como ilustração o
Modo de Fazer Viola de Cocho, as oficinas de repasse de saber, bem-sucedidas de modo
geral, contaram com uma dificuldade que atinge diretamente a técnica artesanal.

A viola de cocho recebe esse nome porque é confeccionada a partir de um tronco de


madeira inteiriço, escavado para produzir uma caixa de ressonância, assim como são
escavados os recipientes que contêm alimento para o gado, chamados cochos. Não há
produção em escala industrial da viola de cocho. Ela é sempre fabricada artesanalmente,
por mestres que a produzem para si mesmos ou para outros cururueiros. Hoje, a
comercialização da viola de cocho se estendeu para além dos cururueiros. Músicos,
colecionadores e turistas se interessam pelo instrumento, o que fez aumentar a demanda
não somente da própria viola como também de réplicas em miniaturas, comercializadas
como souvenirs para compradores de outros estados ou mesmo de fora do país.

O tampo da viola pode ser feito de madeira ou mesmo de compensado. O cavalete, as


pestanas e cravelhas empregam cedro, aroeira, mandacaru e figueira. No entanto, as
madeiras tradicionalmente empregadas na confecção do corpo da viola de cocho são
a ximbuva e o sarã-de-leite, mais macias e mais fáceis de escavar. O sarã-de-leite cresce
em beiras de rios, e sua extração é proibida para evitar as grandes cheias. A ximbuva,
mais facilmente encontrada, também exige licenciamento para o corte.

73
PATRIMÔNIO IMATERIAL

Foram realizados diversos acordos de cooperação para garantir aos mestres o acesso à
matéria-prima. A Fundação Dom Aquino se prontificou a obter as mudas de ximbuva
e delas cuidar até a época de replantio em local definitivo. A partir daí, a Universidade
Federal de Mato Grosso (UFMT) poderia se encarregar do cultivo e ofereceu também
áreas para o replantio no campus. Entretanto, além da preservação e multiplicação da
espécie nativa, os mestres precisam de licenciamento para o corte. O replantio deve
ocorrer em área onde lhes seja possível cortar o tronco para a confecção do corpo da viola.
O modo de confecção, a ser transmitido pelos mestres, inicia-se com o próprio corte da
madeira, que deve ser feito sempre na lua minguante, ou ela corre o risco de ser atacada
por carunchos. O corte também requer uma técnica específica para que a madeira
não trinque ou fissure. Em virtude da legislação ambiental em prol da manutenção
do ecossistema, algumas das matérias-primas empregadas tradicionalmente na
confecção da viola de cocho não são mais viáveis e foram substituídas. As tripas de
macaco, quati e ouriço, utilizadas para as cordas, foram substituídas por linhas de pesca
de diferentes espessuras, e a cola industrializada substituiu um grude feito a partir de
uma pequena bexiga natatória de peixes, conhecida como poca. As dificuldades que
envolvem o licenciamento para o corte, porém, ainda não foram superadas e requerem
uma participação direta dos poderes locais, para a reserva de uma área específica que
possibilite o acesso dos mestres.

A conscientização da comunidade, por meio da educação patrimonial, sobre a neces-


sidade de preservação do meio ambiente que fornece as matérias-primas, também
encontra um ponto focal no Artesanato de Capim Dourado do Jalapão, no Estado de
Tocantins.

O Registro de Patrimônio Cultural do Brasil não é a única certificação, em âmbito


federal, para as expressões e produções que são referência cultural em suas localidades.
O artesanato em capim dourado da região do Jalapão foi certificado pelo Instituto
Nacional de Propriedade Industrial (INPI) com o selo de Indicação Geográfica, na
modalidade Indicação de Procedência. O proponente do pedido foi a associação Areja,
que reúne as associações dos diversos municípios do Jalapão e ficou responsável pela
gestão da indicação geográfica.

A Indicação Geográfica, na modalidade Indicação de Procedência, também foi


concedida, pelo INPI, a Goiabeiras, no Espírito Santo, cujo Ofício das Paneleiras foi
registrado pelo IPHAN, no Livro dos Saberes, em 2002. O Modo de Fazer Renda Irlandesa
de Divina Pastora, em Sergipe, registrado no Livro dos Saberes em 2009, foi igualmente
certificado pelo INPI, como Indicação de Procedência, em 2012.

Os estudos sobre o manejo do capim dourado na região do Jalapão, no leste do Estado


de Tocantins, surgiram em decorrência de demandas das próprias comunidades que
pediram apoio aos órgãos ambientais do Estado, com o intuito de evitar a retirada do
capim in natura e, assim, garantir a sustentabilidade das espécies nativas. O Instituto
Natureza do Tocantins (Naturatins), instituição responsável pela administração do

74
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

Parque Estadual do Jalapão, regulamentou a atividade de coleta do capim dourado,


por meio da Portaria n° 362, de 25 de maio de 2007, que limita a coleta ao período de 20
de setembro a 30 de novembro, desde que as hastes estejam completamente secas e/
ou maduras. Determina também que a coleta ocorra de forma seletiva ou falhada, isto
é, deixando-se alguns exemplares intocados, em uma relação de 5 para 1. As flores, nas
quais se armazenam as sementes, devem ser retiradas e lançadas ao solo, no mesmo
local.

O conhecimento das comunidades sobre as práticas de manejo do capim dourado


contou com a efetiva colaboração dos órgãos responsáveis pela preservação ambiental,
e há marcos legais adequados para a manutenção dessa prática. A preocupação dos
artesãos, hoje, diz mais respeito à fiscalização, pois eles alegam que a matéria-prima
é transportada para outras regiões onde a confecção de peças em capim dourado é
submetida a processos semi-industrializados, em dissonância com o modo de fazer
cuja reputação proporcionou a Indicação de Procedência.

Para além do trato com a matéria-prima, a gestão da Indicação Geográfica acarreta


dificuldades adicionais. As 11 associações envolvidas no artesanato em capim
dourado se distribuem por diversos municípios situados a grande distância uns dos
outros (entre eles, São Félix, Mateiros, Mumbuca, Ponte Alta e Novo Acordo). O acesso
a esses municípios é difícil, por estradas não pavimentadas, transitáveis apenas por
veículos de tração e sem linhas de transporte regular. A comunicação entre os artesãos
é bastante prejudicada, e a mobilização social em torno da certificação ficou aquém do
necessário. São muitas as dúvidas e questões que os afligem, e um relativo consenso
sobre as ações adequadas a serem tomadas pelo grupo sofre muitos tropeços. Um termo
de cooperação entre o Programa de Apoio ao Artesanato de Tradição (Promoart) e a
Universidade Federal do Tocantins (UFT) disponibilizou o apoio de um agente local, sob
a orientação do Núcleo de Economia Solidária da Universidade, que percorre o Jalapão
e trabalha junto com as comunidades no sentido de fortalecer soluções coletivas para
problemas comuns.

Todas as políticas voltadas para fomento, salvaguarda e gestão do Patrimônio Imaterial


devem reconhecer a existência de problemas que, de maneira geral, são comuns às mais
variadas regiões. Em cada contexto, porém, há questões específicas que demandam
ações pontuais. As intervenções nesse campo demandam um conhecimento da
realidade, para que as soluções se mostrem adequadas caso a caso.

Por outro lado, o modo de fazer renda irlandesa em Divina Pastora emprega a linha de
algodão industrializada e o cordão lacê, fabricado pela Ypu, para o contorno dos moldes.
O repasse de saber, porém, anteriormente transmitido informalmente como parte de
um modo de vida compartilhado pelas mulheres, envolvendo relações de parentesco
e vizinhança, o que conferia relações mais duradouras entre mestras e aprendizes, hoje
se difunde por meio de cursos institucionais e se expande por outras localidades. Os
municípios de Laranjeiras, Estância, Barra dos Coqueiros e Aracaju sediaram cursos de

75
PATRIMÔNIO IMATERIAL

transmissão das técnicas artesanais, fomentados pela inclusão da renda em circuitos


comerciais que demandam trabalhos de grande extensão (toalhas e colchas) com
prazos curtos para entrega, o que implica partilhar a execução.

A cautela, no caso, se impõe na medida em que a intervenção pode influir diretamente


na técnica artesanal ou na expressão cultural. Os bens culturais não são produzidos
simplesmente para o consumo. Se tratarmos da produção e da circulação de bens
exclusivamente a partir do seu valor de uso ou do seu valor de troca, deixaremos de
lado o código cultural que rege o sentido e o significado daquilo que é produzido de
uma forma específica, segundo técnicas e materiais específicos, para sujeitos sociais
específicos e que assim se tornam referências culturais de um determinado grupo
social.

A valorização do domínio e do exercício do saber dos mestres e mestras pressupõe a


inclusão destes em ações educativas, formais e informais.

O município de Cocos, no oeste baiano, a quase mil quilômetros de Salvador, nas


vizinhanças do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, não dispõe de uma única
rodovia pavimentada. Afastadas cerca de 150 quilômetros da sede do município, o que
significa uma viagem de quatro horas e meia em veículo de tração, encontram-se duas
comunidades artesanais – Canguçu e Porcos – que praticam a tecelagem com folhas
de buriti. O olho do buriti, a folha nova que ainda não se abriu em leque, é extraído com
extremo cuidado, para não danificar a palmeira. Depois, separa-se a seda e a palha. A
seda é uma película fina que reveste a folha. Retirada a seda, a folha se transforma em
palha. Essa distinção é responsável pela diferença de preço do produto final. Uma esteira
ou um tapete de palha tem valor inferior a um feito de seda, considerado um material
mais delicado. A decoração das peças segue dois processos. O primeiro é o tingimento
das fibras, com produtos da flora local: o urucum, o alecrim, cascas do pequizeiro, do
cajueiro e do muçambé. O segundo processo, que resulta em produtos plasticamente
atraentes e tornou-se muito apreciado, consiste em revestir a palha do buriti com
o papel laminado das embalagens de produtos industrializados, principalmente
embalagens de café e biscoitos de diversas marcas. Uma esteira recoberta com esse
material, um refugo industrial nos centros urbanos, triplica de valor. Com o passar do
tempo, o conhecimento sobre as técnicas do tingimento natural da seda do buriti foi
se perdendo, principalmente no que diz respeito à fixação das cores. As artesãs mais
jovens artesãs sentiam dificuldade em se recordar do processo de tratamento das fibras
para prevenir manchas nos produtos. Em uma parceria entre o CNFCP e o Instituto de
Artesanato Visconde de Mauá, órgão do Estado da Bahia, promoveu-se um intercâmbio
entre artesãs que trabalham com a palha do buriti. Duas artesãs de Barreirinhas,
nos Lençóis Maranhenses, foram convidadas a passar uma semana em Cocos, em
novembro de 2012, ministrando uma oficina sobre tingimento natural e fixação de
cores. A experiência foi duplamente proveitosa. As artesãs de Cocos aprenderam a
cozinhar a fibra, para deixá-la mais macia, logo, mais fácil de ser manuseada, e a tingi-

76
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

la de forma adequada. Por sua vez, as artesãs de Barreirinhas aprenderam uma forma
diferente de retirar a fibra do olho de buriti e um novo ponto de crochê, com o qual
prometeram desenvolver uma bolsa e chamá-la de bolsa Canguçu.

A produção de conhecimento sobre o Patrimônio Cultural de uma localidade constitui


um dos vetores do campo de forças para que a noção de diversidade cultural seja
percebida como recurso na reivindicação de respeito, inclusão, participação e cidadania.

Os bancos de madeira em formato de animais da região amazônica, confeccionados


por sete comunidades artesanais em Arapiuns, no Pará, já fizeram parte do catálogo
de produtos de uma cadeia de lojas na Região Sudeste do país. As encomendas
foram descontinuadas depois de dois atrasos na entrega das peças, o que contrariava
os padrões de atendimento ao consumidor que a loja adota. No entanto, essas
comunidades, situadas nas duas margens do Rio Tapajós, não estão ligadas por
transporte público e distam cerca de sete horas de barco sobre o Rio Tapajós, partindo
de Santarém. A associação, que reúne cerca de 50 artesãos, conseguiu adquirir um
barco que, por medida econômica, somente pode realizar o transporte quando o
número de passageiros pagantes cobrir pelo menos o custo do combustível. Assim
não há transporte todos os dias, o que não apenas dificulta o envio das peças para
comercialização, como também prejudica a comunicação entre os artesãos. A
região não dispõe de luz elétrica nem de serviço telefônico, e conta com um único
aparelho celular, que pertence a um dos moradores da comunidade do Surucuá. Uma
encomenda que chegua ao ponto de comercialização mantido na cidade de Santarém
pode levar de três a quatro dias para alcançar os artesãos. A entrega das peças está
sujeita aos mesmos entraves.

O incremento da comercialização, que promove a geração de emprego e renda,


muitas vezes requer uma transversalidade de programas ministeriais, para além da
atuação do Ministério da Cultura (MinC). Transporte público, energia elétrica e serviços
de telefonia, para citar as demandas mais mencionadas pelos grupos, dependem de
políticas públicas que ainda estão longe de beneficiar as comunidades mais afastadas
dos centros urbanos.

Cabe salientar que a valorização da identidade cultural para reivindicações de direitos


sociais pode, por um lado, ficar impregnada de um senso de compensação por
processos históricos de exclusão econômica e social ou, por outro lado, ser agregada
como valor econômico.

O peso das desigualdades sociais se faz sentir em várias instâncias, e não poderia deixar
de afetar os mecanismos de acesso aos recursos para fomento. O desenvolvimento
de uma política pública para a cultura deve levar em conta a inadequação do sistema
administrativo e jurídico para a seleção de projetos, celebração de convênios, repasse
de recursos e prestação de contas. Tal sistema é incapaz de incorporar segmentos
sociais que não dominam esses códigos, muitas vezes iletrados ou que não dispõem
da documentação mínima para o acesso a recursos e oportunidades. A cautela previne

77
PATRIMÔNIO IMATERIAL

que políticas de inclusão social acabem, inadvertidamente, reproduzindo e reforçando


processos de exclusão.

A transformação social ampla e efetiva pela qual nos empenhamos terá que se
beneficiar de ações de educação patrimonial que disseminem o conhecimento sobre
nossos bens culturais, para que a própria sociedade queira preservá-los.

As cuias de Santarém (PA) são confeccionadas a partir dos frutos da árvore Crescentia
cujete, conhecida localmente como cuieira, que, seguindo tecnologias tradicionais de
matrizes indígenas, são cortados ao meio, lixados, tratados, tingidos por pigmentos
naturais e ornamentados com desenhos e incisos. As cuias são utilizadas como
recipientes para água, chá, café, cachaça, açaí, mingaus e, sobretudo, para o tacacá, um
dos pratos de referência cultural nos estados da Região Norte do Brasil, que é servido
em cuias pelas tacacazeira. No município de Santarém, a produção de cuias ocorre
principalmente nas comunidades das várzeas do Rio Amazonas, mais especificamente
na região do Aritapera, distante de Santarém de três a seis horas de viagem de barco,
abarcando cinco comunidades – Centro do Aritapera, Carapanatuba, Enseada do
Aritapera, Surubim-Açu e Cabeça d’Onça –, que distam entre si cerca de duas horas de
viagem de barco.
Em 2005, a Associação das Artesãs Ribeirinhas de Santarém (Asarisan)
captou recursos junto ao Ministério da Cultura, via edital público, para
um projeto de implantação do Ponto de Cultura do Aritapera, no
Centro do Aritapera. O projeto previu, além de uma ação educativa,
uma sala de leitura com biblioteca comunitária, além de espaços
de reunião, produção, exposição e comercialização de cuias, com
o objetivo de contribuir para o aprimoramento das condições de
trabalho, divulgação e comercialização da produção.

Em 2012, o CNFCP e a Associção de Amigos do Museu de Folclore Edison Carneiro


(Acamufec), em cooperação com a Secretaria de Educação de Santarém e a Universi-
dade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), promoveram um encontro dos professores da
rede pública em torno de uma ação educativa voltada diretamente para aquela locali-
dade: um projeto De Mala e Cuia Ribeirinho e o Almanaque Pitinga. O projeto De Mala
e Cuia oferece uma seleção de recortes de jornais e revistas, fotografias, xilogravuras,
músicas e vídeos sobre diversos temas da cultura popular, reunidos em duas malas,
que circulam pelas escolas em apoio ao trabalho do professor. Foi montado um De
Mala e Cuia Ribeirinho especificamente para as comunidades de várzea do Aritapera.
Na ocasião, foi também entregue às comunidades o Almanaque Pitinga, elaborado a
partir do material de pesquisas realizadas, no âmbito daquela ação educativa, por estu-
dantes de Santarém sobre a cultura e a memória da região, no curso Cultura e Educa-
ção Patrimonial (2005-2006), realizado pela Asarisan, com recursos obtidos por meio de
edital do Programa Cultura Viva. O nome do Almanaque, Pitinga, faz alusão à cuia ainda
não tingida, ainda não trabalhada. Preparado pelo CNFCP, em parceria com a Ufopa e
a Asarisan, no âmbito do Programa de Apoio ao Artesanato de Tradição (Promoart), o

78
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

rico material coletado entre os jovens estudantes foi completado com conteúdos que
trazem diversos traços culturais, trabalhando a familiaridade e o estranhamento para
um pensar sempre renovado.

A produção e a divulgação de conhecimento sobre os bens culturais que incorporem


os valores e os referenciais dos segmentos sociais envolvidos podem ajudar a desfazer
percepções cristalizadas e formar novos públicos, mais afeitos ao fluxo contemporâneo
entre o local e o global.

Boas práticas de fomento e salvaguarda demandam respeito ao conhecimento


acumulado dos próprios protagonistas dos bens culturais; pedem discrição nas
intervenções, para que as expressões e as manifestações culturais não percam seus
sentidos e significados e, com isso se desfigurem; exigem uma ampla articulação
entre as instituições e os atores sociais, para que as diversas facetas desse
empreendimento possam ser contempladas; e, finalmente, requerem um forte
apoio dos poderes locais, onde os bens culturais se enraízam e a partir de onde
migram e circulam pelo nosso país.

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PATRIMÔNIO IMATERIAL

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Fórum de Discussão

O texto a seguir é a compilação dos debates realizados entre professor e alunos nos
fóruns de discussões da plataforma de educação a distância, tendo como base o texto
autoral do professor, publicado acima, e as seguintes perguntas orientadoras:

1. De acordo com as questões discutidas até aqui, quais poderiam ser os


indicadores para a avaliação de uma ação de fomento ou salvaguarda bem-
-sucedida?

2. No contexto brasileiro, de grande diversidade cultural e desigualdades sociais,


como poderíamos promover a autonomia dos grupos produtores de bens
culturais no acesso a recursos e oportunidades?

3. Até que ponto as expectativas dos mediadores culturais e a dos grupos estão
em sintonia, e como essa interlocução pode ser afinada?

Uma das discussões desenvolvidas nesta disciplina foi sobre como promover
a autonomia dos grupos produtores de bens culturais no acesso a recursos e
oportunidades, no contexto brasileiro, marcado por grande diversidade cultural e
desigualdades sociais. De acordo com o debatido, não há uma receita única sobre
como possibilitar maior autonomia para o grupo, já que essa autonomia não é algo
dado pelo poder público, mas um caminho que deve ser construído conjuntamente.

Entretanto, alguns aspectos foram mencionados como fundamentais para a construção


desse processo de autonomia: sensibilizar os grupos, para que eles próprios tenham
consciência da importância do que produzem para a cultura da comunidade e da

80
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

região em que vivem; não compartimentar as ações culturais; fornecer informações


técnicas sobre legislação cultural, para que esses produtores possam acessar recursos
disponíveis; promover a educação patrimonial; minimizar a burocracia; incentivar a
organização formal de núcleos e associações de detentores; ampliar a interlocução entre
os grupos, para troca de experiências; desenvolver um plano efetivo de salvaguarda, já
que o registro de bens não assegura a transmissão dos saberes e das tradições; capacitar
os grupos para gerenciar seus próprios trabalhos; estabelecer maior conectividade
entre instituições de ensino, pesquisadores, agentes culturais e instituições públicas.

Nota-se que essas ações dizem respeito a políticas de inclusão social. É por isso
que o fomento ao Patrimônio Cultural deve ser encarado como um vetor para o
desenvolvimento econômico e social. Assim, nota-se que muitas vezes, os problemas
enfrentados pelos grupos dependem de outras políticas e da atuação de outros
ministérios. Fomento e salvaguarda do Patrimônio Cultural, podem vir a nos solicitar
a capacidade de formar parcerias, de dialogar com outros poderes, de articular ações
para além daquilo que nos compete.

Outro aspecto discutido foi até que ponto as expectativas dos mediadores culturais
e dos grupos estão em sintonia, e como essa interlocução pode ser afinada. A
sintonia entre mediadores culturais e grupos somente acontece quando: o diálogo
está presente; é possível estabelecer metas, propostas e projetos de salvaguarda, que
tenham critérios definidos em conjunto para avaliação do bem cultural; está de acordo
com mecanismos legais constantes no Plano Nacional de Cultura; há valorização,
por parte dos mediadores, dos aspectos sociais, econômicos, espirituais e materiais
dos detentores; há processos efetivos de educação patrimonial; há respeito ao
conhecimento acumulado pelos grupos; há compreensão por parte do mediador e
entendimento por parte dos grupos sobre o que seja salvaguarda. Esta última, então,
é muito mais importante do que se pode imaginar. Outras vezes, os grupos nutrem
expectativas bastante elevadas com relação ao alcance de um plano de salvaguarda.
E às vezes, pelo contrário, deixam de usufruir de parcerias que poderiam lhes ser
benéficas. Essa pequena lista acima parece simples e óbvia, mas é bom tê-la sempre
em mente porque as relações interpessoais, como todos nós já experienciamos, são
campo fértil para mal-entendidos.

Uma questão importante é que a rotatividade dos mediadores, por questões de


trocas de mandatos tem, sem dúvida, um impacto nesse diálogo; interesses locais e
despreparo para levar as iniciativas a cabo sem atropelar os grupos, também. Outro
aspecto importante é o duplo papel que alguns exercem: são parte de um grupo ligado
a um Patrimônio Cultural e são também mediadores culturais. Nesse caso, foi discutido
em que medida a sintonia é perfeita, e quais podem ser os desafios a serem vencidos.

Outro ponto de debate foi sobre quais poderiam ser os indicadores para a avaliação de
uma ação de fomento ou salvaguarda bem-sucedida. Alguns indicadores de avaliação
das ações bem-sucedidas de fomento ou salvaguarda do PCI seriam, entre outras, as

81
PATRIMÔNIO IMATERIAL

seguintes: grau de envolvimento e participação das comunidades detentoras; nível


de satisfação da comunidade detentora; número de anciãos e jovens participantes;
existência de uma política pública consistente para o PCI; quantidade de ações de
educação patrimonial sistemática nas instituições sociais, públicas e privadas; sintonia
com a Convenção de 2003; acesso a políticas públicas de estímulo fiscal e financeiro ao
PCI; nível de envolvimento de segmentos culturais marginalizados da sociedade; grau
de articulação entre as diferentes esferas institucionais e destas com os atores sociais
locais; qualidade dos estudos/pesquisas de identificação e documentação; tipo de
reconhecimento público e multiplicação de oportunidades para a prática da respectiva
manifestação cultural.

2.4 Convenção da UNESCO de 2003

Ementa: Estrutura geral da UNESCO e da Convenção, objetivos e órgãos; Convenções


da UNESCO relacionadas com a cultura – 1972, 2003 e 2005 – e suas diferenças; defini-
ções de PCI de acordo com a Convenção de 2003; definições de papéis no processo de
salvaguarda, de acordo com a Convenção de 2003; obrigações e benefícios da ratifica-
ção da Convenção pelos Estados-partes; Listas da Convenção e critérios para inclusão
nas Listas.

Professor: Lucas dos Santos Roque

Mestre em Antropologia. Atualmente trabalha como consultor autônomo. Tem experi-


ência na área de Antropologia, atuando principalmente em meio ambiente, patrimônio
imaterial e desenvolvimento sustentável. É consultor da UNESCO para fortalecimento
das capacidades para a implementação da Convenção de 2003.

Introdução

Esta disciplina tem como objetivo apresentar os principais aspectos referentes à


Convenção da UNESCO de 200366, em função de sua importância em âmbitos global
e nacional. Essa Convenção, que completa 10 anos em 2013, consolidou uma série de
discussões travadas ao longo dos últimos 60 anos sobre a salvaguarda da diversidade
cultural, em um período em que se assistiu a um crescente processo de globalização
e homogeneização cultural. Sua aprovação significou um marco para as políticas
internacionais de promoção cultural, na medida em que reconheceu, em primeiro
lugar, a importância da noção de diversidade cultural e, em segundo, a necessidade de
prestar apoio, posto que, até então, não havia um marco jurídico e programático dessa
envergadura que orientasse o registro e a salvaguarda desses tipos de manifestações e
expressões culturais.

É interessante notar que esse arcabouço jurídico internacional foi responsável,


também, por certa universalização do conceito de Patrimônio Cultural, ainda que os

66. UNESCO, 2003.

82
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

Estados-partes tenham a liberdade de elaborar seus próprios conceitos a partir de sua


realidade local. Esse processo de universalização dos conceitos foi carregado de tensões
e discussões, na medida em que estabelecer conceitos implica necessariamente a
adoção de uma perspectiva simbólica a partir da qual será construído o processo de
conhecimento.

Outra característica das Convenções da UNESCO, além da universalização de conceitos,


é que elas respondem a demandas apresentadas pelo contexto mundial específico
em que são elaboradas. Nessa medida, refletem o status em que as discussões
encontravam-se quando da sua aprovação. Assim, analisar o processo de elaboração e
aprovação da Convenção de 2003 permite compreender os avanços referentes à noção
de patrimônio e o papel desempenhado por diferentes protagonistas governamentais
e não governamentais. Por exemplo, conceitos como bem cultural, patrimônio da
humanidade, desenvolvimento cultural e dimensão cultural do desenvolvimento são
alguns dos estabelecidos nas Convenções da UNESCO desde a década de 1940.
A Convenção de 2003 tem desempenhado o papel de norteadora da implementação
de instrumentos de gestão do Patrimônio Imaterial em âmbito global e permitido que
os seus diversos Estados-partes tenham a possibilidade de troca de experiências e
fortalecimento conjunto. Veja-se um texto de Elder Patrick Maia Alves sobre o papel da
UNESCO no processo de universalização de conceitos, o qual indiquei como texto de
suporte para a disciplina.

Outro aspecto que nos interessa nesta disciplina é o da ratificação da Convenção de


2003, que implica o estabelecimento de obrigações que orientam determinadas ações
dos Estados-partes e a concessão de benefícios que funcionam como elementos de
salvaguarda das manifestações culturais, conforme trataremos mais adiante.

Compreendendo o papel da Unesco

A UNESCO, fundada em 16 de novembro de 1945, é a agência especializada das Nações


Unidas que se ocupa de temas relacionados com a educação, as ciências sociais e
naturais, a cultura, a comunicação e a informação, visando a promover a cooperação
internacional nessas esferas. A UNESCO é a única organização especializada das Nações
Unidas com um mandato expresso no âmbito da cultura.

Assim, a missão da UNESCO é contribuir para a construção da paz, a erradicação da


pobreza, o desenvolvimento sustentável e o diálogo intercultural por meio da educação,
das ciências, da cultura, da comunicação e da informação. A Organização concentra-se,
em particular, em duas prioridades globais, a saber: África e igualdade de gênero.

Além destes, pode-se elencar outros grandes objetivos:

• Alcançar educação de qualidade para a aprendizagem ao longo da vida;

• Mobilizar conhecimentos da ciência e da política para o desenvolvimento


sustentável;

83
PATRIMÔNIO IMATERIAL

• Enfrentar os novos desafios sociais e éticos;

• Promover a diversidade cultural, o diálogo intercultural e a cultura de paz;

• Construir sociedades do conhecimento inclusivas por meio da informação e


da comunicação.

Todas as estratégias e atividades da UNESCO têm como base as metas e os


objetivos concretos da comunidade internacional, que se refletem nos Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio (ODMs).

Tal como já dito, a UNESCO desenvolveu uma série de instrumentos jurídicos para
ajudar os Estados a oferecer uma melhor proteção à cultura, em todas suas formas. Esses
instrumentos são apresentados como declarações, recomendações ou convenções,
assim definidos:

• Declaração – é um compromisso puramente moral ou político, que


compromete os Estados em virtude do princípio da boa-fé;

• Recomendação – trata-se de um texto da Organização dirigido a um ou vários


Estados, convidando-os a adotar um comportamento determinado ou a agir
de determinada maneira em um âmbito cultural específico;

• Convenção – designa todos os acordos concluídos entre dois ou mais Estados.


Supõe-se vontade comum das partes e, portanto, gera compromissos jurídicos
obrigatórios.

Atualmente, a UNESCO conta, no campo da cultura, com um arcabouço normativo


integrado por sete Convenções sobre:

• Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (2005);

• Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (2003);

• Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático (2001);

• Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural (1972);

• Proibir e Impedir a Importação, a Exportação e a Transferência de Propriedade


Ilícitas de Bens Culturais (1970);

• Proteção do Patrimônio Cultural em Caso de Conflito Armado (1954);

• Convenção Universal sobre Direitos Autorais (1952, 1971).

Destas, chamo a atenção para três, as quais contribuem para a promoção da diversidade
cultural e apresentam-se, em alguns aspectos, de forma complementar. São elas: as
Convenções de Proteção ao Patrimônio Mundial Cultural e Natural (1972), de Proteção e
Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (2005) e a Salvaguarda do Patrimônio
Cultural Imaterial (2003). Se se consultar o material de suporte ao desenvolvimento

84
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

desta disciplina, pode-se encontrar a Convenção de 2003 e suas diretrizes operacionais,


a Convenção de 1972 e a de 2005.

A Convenção de 197267 visa à preservação dos sítios (propriedades) culturais e naturais


de valor universal relevante. A maior parte dos Estados-membros da UNESCO (187
dos 193) ratificou essa Convenção. É a mais conhecida das Convenções da UNESCO,
particularmente por conta da Lista do Patrimônio da Humanidade. Ainda que nessa
época ocorressem discussões relacionadas à diversidade cultural, o folclore e
questões de propriedade intelectual coletiva, estas não foram incluídas nessa
Convenção. Dessa maneira, sua elaboração acabou por consolidar a ideia de Patrimônio
Cultural como Patrimônio Material, na medida em que se centrou nos monumentos,
conjuntos de edifícios e sítios. Podemos assinalar algumas diferenças básicas entre essa
e a Convenção do Patrimônio Imaterial:

• A Convenção de 1972 trabalha com a perspectiva de preservação de um


patrimônio tal como no passado, enquanto a de 2003 trata da salvaguarda de
um patrimônio vivo e em constante modificação;

• Na Convenção de 1972, o valor do patrimônio é definido a partir de uma


análise realizada por especialistas, os quais utilizam critérios de autenticidade
e integridade (embora em vários países as abordagens de gestão da
preservação do Patrimônio Material tenham começado a levar em conta os
valores e interesses das comunidades associadas). Na de 2003, o valor de uma
manifestação é conferido pela comunidade, de modo que não cabe falar a
partir da noção de autenticidade. Além disso, essa noção de autenticidade
não é encorajada, tendo em vista que poderia levar ao “congelamento” das
manifestações, enquanto sua natureza é essencialmente dinâmica, mutável.

• O principal critério para a inclusão na Lista de Patrimônio da Humanidade68 é o


valor universal relevante do bem, enquanto a inscrição nas Listas do Patrimônio
Imaterial se justifica pelo valor do PCI para as comunidades, grupos e indivíduos
que praticam e transmitem esse patrimônio, conforme definido por eles.

A Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais


(2005)69 visa à promoção da diversidade cultural, ao fortalecer a cadeia das iniciativas
criativas, da produção à distribuição/disseminação, acesso e usufruto da expressão cul-
tural. Até agosto de 2011, 117 países se tornaram Estados-partes dessa Convenção. A
Convenção sobre a Diversidade das Expressões Culturais confere ênfase às expressões
culturais contemporâneas e individuais, as quais podem incluir música, filme, artesa-
nato, pintura, drama e outras. Na maior parte dos casos, essas expressões culturais
representam novas criações – elas não são necessariamente transmitidas de geração
para geração (como o Patrimônio Imaterial é), nem estão necessária e constantemente

67. UNESCO, 2004.


68. Disponível em: <http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/culture/world-heritage/list-of-world-heritage-in-portuguese/>.
69. UNESCO, 2007.

85
PATRIMÔNIO IMATERIAL

sendo modificadas. A Convenção de 2005 pretende promover as produções culturais e


as indústrias, bem como a regular a disseminação de bens e serviços culturais. Também
busca promover o desenvolvimento ao fortalecer a cadeia de iniciativas criativas, da
produção à distribuição/disseminação, o acesso e o usufruto das expressões culturais.

A Convenção do Patrimônio Imaterial tem num objetivo bem diferente: encorajar


a prática sustentável e a transmissão do PCI pelas comunidades e dentro delas. Isso
quer dizer que a Convenção de 2003 tem um enfoque coletivo e nas habilidades e
conhecimentos que contribuem para a sustentação desses grupos.

A possibilidade de geração de renda pode, em determinadas situações, ocasionar


confusões sobre se determinadas manifestações devem ser vistas como Patrimônio
Imaterial ou como produção cultural, no âmbito da Convenção de 2005. A Convenção
de 2003 não faz distinção entre os elementos do PCI que geram renda e aqueles que
não (veja o Artigo 2.1). Elementos geradores de renda não são desconsiderados nessa
Convenção – ao contrário de elementos que não são, por exemplo, compatíveis com
os direitos humanos ou com o desenvolvimento sustentável.

Grande parte do PCI não seria viável, se não houvesse remuneração direta ou indireta
pelo tempo e outros investimentos associados à sua prática e transmissão. Cada vez
mais, e de formas diferentes, as pessoas desejam beneficiar-se financeiramente do
conhecimento e das habilidades associadas ao PCI – por meio do acesso a novos
mercados, por exemplo, geralmente fora da comunidade. A promoção do PCI ou a
conscientização a respeito dele podem gerar novos benefícios financeiros ou de outra
natureza para as comunidades envolvidas.

As Diretrizes Operacionais (DOs) da Convenção reconhecem isso e sublinham a


importância dos benefícios para as comunidades envolvidas como um subproduto da
implementação da Convenção (DO 81), e especificamente de quaisquer atividades de
conscientização sobre ela (DO 101(d)). Ao garantir que as comunidades se beneficiem
economicamente – ou de outras formas – da salvaguarda e de outras ações, pode-se
motivá-las a continuar a praticar seu PCI. Por outro lado, as DOs também recomendam
formas de mitigar os efeitos indesejáveis da comercialização, que poderiam levar à
perda do sentido da manifestação, estandardizando suas práticas.

Benefícios da implementação da Convenção

No âmbito nacional, a implementação da Convenção pode beneficiar os Estados-


partes, as comunidades envolvidas (e seu PCI), organizações relevantes, bem como o
público em geral. Entre os benefícios, estão incluídos:

• Aperfeiçoamento da promulgação e da transmissão do PCI;

• Melhoria do bem-estar das comunidades;

• Maior respeito e compreensão entre as comunidades;

86
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

• Aperfeiçoamento da diversidade cultural, tanto no âmbito nacional como no


internacional; e

• Progresso no desenvolvimento sustentável das comunidades envolvidas e no


seu ambiente social e natural.

No âmbito internacional, os Estados-partes e outros atores também podem se beneficiar


da cooperação e da assistência internacional, das seguintes formas:

• Associação a uma rede mundial ativa no domínio do patrimônio para


compartilhar internacionalmente conhecimento especializado e informações
sobre o PCI;

• Promover e compartilhar boas práticas de salvaguarda por meio do Registro


das melhores práticas de salvaguarda;

• Ter acesso à assistência internacional a partir do Fundo do PCI;

• Indicar elementos para as Listas e – em sendo aceitos – vê-los inscritos e


compartilhar mundialmente informações sobre eles;

• Estabelecer ou consolidar boas relações de trabalho sobre questões de


patrimônio com outros Estados-partes e organizações em outros Estados, por
meio de cooperação nos âmbitos regional e internacional, i.e., por meio do
inventário e salvaguarda conjunta de elementos do PCI compartilhados de
forma transnacional e/ou pela indicação desse patrimônio para as Listas da
Convenção; e

• Participar nos Órgãos da Convenção.

Introdução à Convenção

Objetivos

O Artigo 1 da Convenção do Patrimônio Imaterial apresenta seus objetivos:

• Salvaguardar o Patrimônio Cultural Imaterial;

• Garantir o respeito pelo Patrimônio Cultural Imaterial das comunidades,


grupos e indivíduos envolvidos;

• Promover a conscientização nos âmbitos local, nacional e internacional a


respeito da importância do Patrimônio Cultural Imaterial e da necessidade de
se garantir o seu reconhecimento recíproco;

• Providenciar cooperação e assistência internacional.

Para alcançar esses objetivos, duas listas e um registro de melhores práticas de salvaguarda
foram estabelecidos pela Convenção. Os Estados-partes poderão indicar elementos

87
PATRIMÔNIO IMATERIAL

para inscrição nas listas, assim como indicar, para inscrição no registro das melhores
práticas de salvaguarda e outras experiências na implementação da Convenção.

Órgãos da Convenção

As Convenções da UNESCO são acordos intergovernamentais (entre Estados)


administrados por órgãos constituídos por representantes oficiais dos Estados que as
tenham ratificado. A Convenção do PCI tem dois órgãos dessa natureza: a Assembleia
Geral e o Comitê Intergovernamental.

A Assembleia Geral, estabelecida no Artigo 4 da Convenção, é o organismo soberano da


Convenção do Patrimônio Imaterial. Não está subordinada a qualquer outro organismo
ou organização. Todos os Estados-partes da Convenção são membros da Assembleia
Geral, a qual se reúne de dois em dois anos.

O Comitê Intergovernamental é composto por representantes de 24 Estados-partes da


Convenção (Artigos 5-8). Eles são eleitos pela Assembleia Geral por dois anos. O Comitê
tem como mandato supervisionar a implementação da Convenção, incluindo a inscrição
do PCI nas Listas da Convenção e a inclusão das melhores práticas de salvaguarda no
Registro. O Comitê Intergovernamental também prepara as diretrizes operacionais para
discussão e aprovação final pela Assembleia Geral e, dentre outras tarefas, administra o
Fundo do PCI (ver Artigo 7). O Comitê Intergovernamental se reúne em sessão ordinária
uma vez por ano e reporta suas atividades à Assembleia Geral.

Diretrizes Operacionais

A Convenção é um instrumento flexível, pois seu texto apresenta poucas obrigações,


poucas definições que são abertas e não exaustivas. Isto ocorre em função de sua
natureza jurídica e de sua forma de constituição e aprovação, a qual oferece dificuldades
para alterações textuais.

Assim, as DOs desempenham o papel de diretivas que fornecem regulamentos ao


Comitê e aos Estados-partes, e que servem para auxiliar os últimos na implementação
da Convenção nos âmbitos nacional e internacional. Elas incluem critérios,
regulamentos e procedimentos utilizados na indicação de elementos para as Listas e
de boas práticas para o Registro, bem como para solicitar assistência ao Fundo. As DOs
também recomendam formas por meio das quais os Estados-partes podem organizar
a salvaguarda do PCI presente em seus territórios em termos gerais, baseando-
se nos Artigos 11 a 15 da Convenção, e como podem empreender ou promover a
conscientização em torno do PCI, outro objetivo importante da Convenção:

• O Capítulo 1 (DOs 1 - 66) inclui a implementação da Convenção no âmbito


internacional, contendo regulamentos e procedimentos para apresentar,
examinar e avaliar candidaturas para as Listas e para o Registro, e solicitações
de assistência internacional:

88
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

• O Fundo do PCI (Capítulo II, 66 a 78): as DOs 66 e 67 contêm orientações para


a utilização do Fundo e são complementares ao Artigo 20 (“Propósitos da
assistência internacional”) da Convenção.

• A participação de vários atores (como as comunidades, grupos, indivíduos,


especialistas, centros, institutos e ONGs) na implementação da Convenção
(Capítulo III, DOs 77 a 99): essas Diretrizes fornecem recomendações detalhadas
sobre como implementar os Artigos 11 a 15 da Convenção.

• Conscientização em torno do PCI e utilização do emblema da Convenção


(Capítulo VI, DOs 100 a 150): as DOs neste Capítulo também incluem o
desenvolvimento de códigos de ética, direitos de propriedade intelectual das
comunidades sobre seu PCI e os riscos da comercialização exagerada e da
descontextualização do PCI.

• Encaminhamento de relatórios ao Comitê (Capítulo V, DOs 151 a 169):


orientações acerca do Artigo 29 da Convenção, o qual indica que os “Estados-
-partes devem apresentar ao Comitê relatórios sobre medidas tomadas para a
implementação da Convenção”.

O Fundo do PCI e a Cooperação e Assistência Internacional

A cooperação e a assistência internacional são importantes objetivos da Convenção.


A cooperação internacional é particularmente recomendada quando se trata de PCI
compartilhado internacionalmente, e da troca de experiências e melhores práticas de
salvaguarda (Artigo 19; DOs 13 e 15 e 86 a 88).

A Assistência internacional é a assistência financeira concedida pelo Comitê, utilizando


o Fundo do PCI (por extenso: Fundo para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial)
estabelecido pelo Artigo 25 da Convenção. Em princípio, todos os Estados-partes
contribuem para o Fundo uma proporção de sua contribuição à UNESCO (atualmente,
essa proporção é de 1 por cento), de acordo com o Artigo 26.

O Fundo do PCI financia, essencialmente, cooperação e assistência internacional


conforme descrito no Capítulo V da Convenção. As finalidades para as quais essa
assistência pode ser concedida estão enumeradas no Artigo 20 da Convenção, e são
resumidas abaixo:

• Salvaguarda do patrimônio inscrito na Lista de Salvaguarda Urgente;

• Preparação de inventários;

• Apoio a outras atividades de salvaguarda; e

• Outros fins que o Comitê considere importantes (tais como capacitação e


conscientização, ver DO 67).

As diretrizes para a utilização do Fundo são dadas nas DOs 66 e 67.

89
PATRIMÔNIO IMATERIAL

Listas

O Artigo 16 estabelece a Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da


Humanidade. O objetivo dessa lista é ilustrar a diversidade do PCI da humanidade em
todos os seus domínios e por meio de todas as comunidades e grupos.

O Artigo 17 da Convenção estabelece a Lista do Patrimônio Cultural Imaterial que


Requer Medidas Urgentes de Salvaguarda, a qual visa à salvaguarda dos elementos do
PCI cuja viabilidade esteja ameaçada.

Entretanto, nos primeiros anos de sua implementação, houve uma leitura por parte dos
Estados-partes no sentido de encarar a Lista de Salvaguarda Urgente como um tipo
de punição ou de maneira negativa. Esse tipo de interpretação fez com que houvesse
uma grande demanda pela inclusão de manifestações na Lista Representativa, vista
como um prêmio, e nenhuma na de Salvaguarda Urgente. Esse tipo de interpretação
consistiu em um equívoco, uma vez que esta última serve unicamente como um
processo de estabelecimento de prioridades quando da destinação de recursos do
Fundo do PCI. Assim, aqueles bens inscritos na Lista de Salvaguarda Urgente têm
prioridade no recebimento de recursos, em detrimento daqueles que estão na Lista
Representativa. Além disso, os bens inscritos na Lista de Salvaguarda Urgente podem
ser retirados e enviados para a Lista Representativa assim que o Estado-parte avaliar
como pertinente para tal – quando as medidas de salvaguarda tenham surtido efeito e
a manifestação não esteja mais sob ameaça.

O Brasil possui três elementos inscritos na Lista Representativa, sendo: em 2008, o


Samba de Roda do Recôncavo Baiano e a Arte Kusiwa – pintura corporal e arte gráfica
Wajãpi, e, em 2012, o Frevo. Além destes, há um elemento inscrito, em 2011, na Lista de
Salvaguarda Urgente, a saber: Ritual Yaokwa do povo indígena Enawenê Nawê.

Conceitos estabelecidos pela Convenção

Patrimônio Cultural Imaterial

A Convenção apresenta apenas algumas definições, a maior parte delas no Artigo 2,


no qual Patrimônio Cultural Imaterial e salvaguarda são definidos. Como esses são dois
conceitos-chave da Convenção, retomo aqui essa discussão, ainda que ela tenha sido
tratada na Disciplina 2 deste curso.

O Artigo 2.1 da Convenção apresenta a seguinte definição abrangente e inclusiva do


PCI:
O ‘patrimônio cultural imaterial’ significa as práticas, representações,
expressões, conhecimento, habilidades – assim como os instrumentos,
objetos, artefatos e espaços culturais a eles associados – que as
comunidades, grupos e, em alguns casos, indivíduos reconhecem
como parte de seu patrimônio cultural. Esse patrimônio cultural
imaterial, transmitido de geração a geração, é constantemente

90
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

recriado pelas comunidades e grupos em resposta a seu ambiente,


sua interação com a natureza e sua história, e lhes dá um senso
de identidade e continuidade, promovendo, dessa forma, respeito
pela diversidade cultural e pela criatividade humana. Para fins da
Convenção, será unicamente levado em consideração o patrimônio
cultural imaterial que seja compatível com os instrumentos de
direitos humanos existentes, bem como com os requerimentos de
respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos e com o
desenvolvimento sustentável.70

Alguns aspectos são particularmente importantes nessa definição dada pela Convenção
de 2003. O primeiro deles está relacionado com o caráter de “expressões vivas”, porque
fazem parte do cotidiano das comunidades, as quais consideram essas manifestações
partes importantes do seu sentimento de identidade e continuidade. “Vivas”, ainda,
porque estão sujeitas a mudanças constantes, em função dos novos significados
conferidos por seus detentores, no caminho da construção de sua realidade.

Uma segunda abordagem importante em relação à definição de PCI, de acordo


com a Convenção, é que não há hierarquia alguma entre as manifestações. Todas as
expressões são valorizadas por igual, uma vez que desempenham o mesmo papel de
conferir identidade a um determinado grupo.

Por fim, considero importante chamar a atenção, neste tópico, para o fato de que
as expressões reconhecidas do Patrimônio Imaterial devem ser compatíveis com os
instrumentos jurídicos internacionais existentes em matéria de direitos humanos e
com os imperativos de respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos. Essa
é uma questão importante quando se trata de determinadas culturas que envolvem,
em suas práticas tradicionais, formas de submissão e agressão aos direitos humanos.
Geralmente, esse tipo de prática envolve mulheres, crianças e disputas com outros
grupos, e não podem ser consideradas como PCI no âmbito da Convenção.

A Convenção propõe cinco “âmbitos” gerais nos quais se manifesta o PCI:


• As tradições e expressões orais, tendo o idioma como veículo
do Patrimônio Cultural Imaterial, as quais abarcam uma imensa
variedade de formas faladas, como provérbios, adivinhanças, contos,
canções infantis, lendas, mitos, cantos e poemas épicos, sortilégios,
pregarias, salmodias, canções, representações dramáticas etc. As
tradições e expressões orais servem para transmitir conhecimentos,
valores culturais e sociais, e uma memória coletiva;
• As artes do espetáculo, que vão desde a música vocal ou instrumental,
a dança e o teatro até a pantomima, a poesia cantada e outras formas
de expressão. Abarcam numerosas expressões culturais que refletem
a criatividade humana e que se encontram também, em certo grau,
em muitos outros âmbitos do Patrimônio Cultural Imaterial;

70. UNESCO, 2003.

91
PATRIMÔNIO IMATERIAL

• Os usos sociais, rituais e eventos festivos constituem costumes que


estruturam a vida de comunidades e grupos, sendo compartilhados
e estimados por muitos de seus membros. Sua importância radica
em que reafirmam a identidade dos que os praticam na condição de
grupo ou sociedade e, sejam praticados em público como em privado,
estão intimamente vinculados com acontecimentos significativos;
• Os conhecimentos e usos relacionados com a natureza e o universo
abarcam uma série de saberes, técnicas, competências, práticas e
representações que as comunidades criaram em sua interação com
o meio natural; e
• As técnicas artesanais tradicionais. As expressões do artesanato tra-
dicional são muito numerosas: ferramentas, prendas de vestir, joias,
indumentárias e acessórios para festividades e artes do espetáculo,
recipientes e elementos empregados para o armazenamento, obje-
tos usados para o transporte ou a proteção contra intempérie, artes
decorativas e objetos rituais, instrumentos musicais e apetrechos do-
mésticos, e brinquedos lúdicos ou didáticos.71

Neste ponto, é possível fazer uma comparação entre os âmbitos estabelecidos na


Convenção da UNESCO e a forma de registro de bens de natureza imaterial, tal como
definida pelo IPHAN, o qual estabelece quatro Livros de Registros:
• Livro de Registro dos Saberes – para a inscrição de conhecimentos e
modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades;

• Livro de Registro das Celebrações – para rituais e festas que marcam


a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento
e de outras práticas da vida social;

• Livro de Registro das Formas de Expressão – para o registro das mani-


festações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas; e

• Livro de Registro dos Lugares – destinado à inscrição de espaços


como mercados, feiras, praças e santuários, onde se concentram e
reproduzem práticas culturais coletivas.72

O caso do Brasil, que tem a data de promulgação de sua legislação de Patrimônio


Imaterial anterior à da Convenção, é um bom exemplo de como os Estados-partes
podem trabalhar com liberdade no sentido de instituir a gestão do PCI existente em seu
território. Entretanto, deve-se ressaltar que, para fins de inclusão nas Listas da UNESCO
e de solicitação de assistência internacional, os bens de natureza imaterial devem ser
apresentados obedecendo à categorização em um dos âmbitos da Convenção.

71. UNESCO, 2003.


72. BRAYNER, 2007.

92
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

A Convenção e o conceito de salvaguarda

O Artigo 2.3 da Convenção define salvaguardar como “garantir a viabilidade do PCI”, o


que é frequentemente entendido como garantir a prática continuada e a transmissão
do PCI, ao mesmo tempo em que se mantém seu valor e função para as pessoas
envolvidas. As medidas para salvaguardar podem ter o objetivo de criar condições
gerais favoráveis, nas quais o PCI presente em um país possa sobreviver e prosperar.
As medidas de salvaguarda podem também enfocar elementos específicos do PCI ou
grupos de elementos que enfrentem ameaças ou riscos para sua viabilidade continuada.

Esta definição ampla nos permite compreender que as ações de salvaguarda do PCI
são tantas quanto são os grupos e as manifestações. Assim, não há uma receita pré-
estabelecida que garanta o sucesso de um processo de salvaguarda. Em alguns casos,
garantir a salvaguarda pode ser garantir a disponibilidade de matéria-prima para a
realização de determinada atividade. Em outros, pode ser cuidar da saúde infantil – em
uma comunidade em que há elevado índice de mortalidade nos primeiros anos de vida
– e, em outros ainda, pode ser intermediar um processo de transmissão geracional, em
função da perda de interesse dos mais jovens pelas práticas tradicionais.

Entretanto, algumas linhas norteadoras dos processos de salvaguarda são claras, de


acordo com a Convenção, e devem ser consideradas, a saber:

• Devem ser concebidas e aplicadas sempre com o consentimento e a


participação da comunidade;

• Devem respeitar os usos consuetudinários que regulam o acesso a


determinados aspectos do patrimônio, como, por exemplo, as manifestações
relacionadas com o Patrimônio Cultural Imaterial que sejam sagradas, ou que
forem consideradas secretas.

A Convenção e suas DOs propõem algumas medidas-chave de salvaguarda que devem


ser desenvolvidas pelos Estados-partes, no âmbito de suas responsabilidades em
função da ratificação da Convenção, a saber: documentação, investigação, preservação,
promoção, proteção, valorização, transmissão – essencialmente por meio da educação
formal e não formal – e revitalização.

A primeira delas consiste em promover a conscientização para a importância do PCI, ou


seja, estimular as pessoas de maneira geral a compreenderem e valorizarem o Patrimônio
Imaterial presente no território, por meio da realização de campanhas educativas em
diferentes níveis e compreendendo públicos diferenciados, e levá-las a refletir acerca
dos riscos aos quais as manifestações do PCI estão submetidas. Esse processo de
promoção e valorização do PCI pode estimular as pessoas a salvaguardarem esses
elementos em termos gerais, e também a empreenderem ações para a salvaguarda de
seus elementos específicos.

93
PATRIMÔNIO IMATERIAL

A própria realização de Inventários deve ser concebida como um instrumento


de salvaguarda. Entretanto, para que a realização de Inventários seja, de fato, um
mecanismo de salvaguarda, e não somente de documentação das manifestações, é
primordial garantir a aplicação das duas linhas norteadoras citadas: a participação das
comunidades e o respeito aos usos consuetudinários.

Todos os processos de salvaguarda devem se iniciar com uma avaliação dos fatores
que ameaçam a representação e/ou a transmissão. A partir dessa análise, devem--se
dimensionar os riscos a que o elemento do PCI está submetido, as medidas adequadas
para garantir sua salvaguarda e a urgência com que essas ações devem ser empreendidas,
bem como os parceiros ou potenciais parceiros a serem envolvidos nesse processo.

Participação de acordo com a Convenção

Tal como já mencionado, a participação comunitária na identificação, no inventário,


na administração e na salvaguarda do PCI é um princípio central da Convenção do
Patrimônio Imaterial.

Para garantir a participação comunitária nas atividades relativas ao seu PCI e dar-lhes
assistência na sua salvaguarda, faz-se necessária uma discussão informada entre os
membros da comunidade sobre os vários interesses e perspectivas da comunidade
envolvida e os de outros atores. Em seguida, pode haver discussões com esses outros
atores, incluindo especialistas e agências governamentais.

Nesse processo, deve-se atenção especial às seguintes questões:

• como as comunidades envolvidas são identificadas;

• quem representa essas comunidades e com que mandato;

• como as comunidades podem ser informadas e envolvidas nas atividades


relacionadas ao seu PCI;

• como as comunidades podem informar outros atores sobre essas atividades;

• como as comunidades podem ser assistidas na preparação de medidas de


salvaguarda, ou como essas medidas podem ser preparadas com o pleno
envolvimento dessas comunidades;

• quem tem as capacidades e os mandatos para implementar as medidas de


salvaguarda, e como as tarefas devem ser distribuídas entre os vários membros
da comunidade e entre os diferentes atores;

• quem monitora a implementação das medidas de salvaguarda;

• quem garante que as comunidades envolvidas e os outros atores continuem


adequadamente informados do progresso das medidas de salvaguarda;

94
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

• como garantir que o processo de patrimonialização não tenha como efeito


perverso a perda do sentido por parte da comunidade e a estandardização
das manifestações.

Implementando a Convenção no âmbito nacional: quem pode fazer o quê?

De acordo com a Convenção, há várias partes interessadas (stakeholders) na gestão do


PCI no âmbito nacional, como por exemplo, os Estados, as comunidades envolvidas e
outros. Abordaremos aqui como a Convenção delineia os diferentes papéis no tocante às
diferentes responsabilidades no processo de salvaguarda dos bens de natureza imaterial,
bem como em relação aos procedimentos técnicos e burocráticos com a UNESCO.

Estados

Ao ratificarem a Convenção, os Estados aceitam várias obrigações e concordam em


realizar (ou fazer um esforço para realizar) várias tarefas visando a atingir as metas
estabelecidas. Os Estados-partes assumem a obrigação, por exemplo, de adotar “as
medidas necessárias” para garantir a permanente promulgação, desenvolvimento
e transmissão do PCI presente em seus territórios. Cabe também ao Estado, por
meio de suas agências apropriadas, comunicar-se com os órgãos que administram
a Convenção do PCI, encaminhar relatórios sobre a implementação da Convenção
no âmbito nacional e assumir a responsabilidade final, no marco de implementação
da Convenção no âmbito internacional, por todas as ações empreendidas, tais como
solicitações de assistência financeira e indicações para as Listas e para o Registro da
Convenção.

Há quatro categorias principais de atividades às quais os Estados-partes da Convenção


do Patrimônio Imaterial são encorajados, ou em alguns casos, requeridos a empreender
no âmbito nacional:

• Adoção das medidas (gerais) necessárias para salvaguardar o PCI presente


em seus territórios (Artigo 11(a)), com a participação ativa das comunidades
envolvidas, quando as medidas se referirem a elementos específicos do PCI
(Artigo 15);

• Conscientização (recomendação nos Artigos 1(b) e 14, DO 81, 100 a 107) –


tornar o PCI mais conhecido no âmbito geral, garantindo o acesso adequado
a ele (Artigo 13(d)(ii)), estimular sua valorização e respeito geral do mesmo e
informar o público sobre a função do PCI na sociedade e a importância de
salvaguardá-lo. Também inclui a conscientização sobre a Convenção e seu
papel na salvaguarda do PCI;

• Identificação, definição e inventário dos elementos do PCI (obrigação nos Artigos


11 e 12) em seus respectivos territórios, com a participação das comunidades,
grupos e ONGs relevantes, para auxiliar na salvaguarda e na conscientização; e

95
PATRIMÔNIO IMATERIAL

• Criação de um contexto jurídico e administrativo para apoiar a salvaguarda do


PCI (recomendação presente no Artigo 13 e com referências em muitas DOs).

No âmbito internacional, os Estados-partes são obrigados a encaminhar relatórios


periódicos ao Comitê sobre seu progresso na implementação da Convenção nos
âmbitos nacional e internacional. Esses relatórios gerais periódicos deverão ser
entregues a cada seis anos. A cada quatro anos, os Estados-partes deverão encaminhar
relatórios sobre elementos inscritos na Lista de Salvaguarda Urgente. As DOs indicam
os tipos de informação que os Estados-partes devem fornecer nesses relatórios. Além
disso, os Estados-partes devem contribuir com o Fundo do PCI, de acordo com o Artigo
26 e já mencionado neste texto.

Três DOs (DO 23, 81 e 82) também impõem obrigações aos Estados-partes por meio da
utilização do termo deverão:

• Para apresentar propostas (para as Listas ou assistência internacional), os


Estados-partes deverão envolver as comunidades, os grupos e, se for o caso,
os indivíduos interessados na preparação de seus formulários.

• Os Estados-partes deverão adotar as medidas necessárias para sensibilizar as


comunidades, os grupos e, quando for o caso, os indivíduos para a importância
e o valor do seu Patrimônio Cultural Imaterial, assim como da Convenção, para
que os detentores desse patrimônio possam se beneficiar plenamente desse
instrumento normativo.

• Com relação ao disposto nos Artigos 11 a 15 da Convenção, os Estados-partes


deverão adotar medidas apropriadas para que sejam ampliadas as capacidades
dos grupos, comunidades e, se for o caso, dos indivíduos.

Os Estados-partes também têm vários direitos. Em primeiro lugar, eles constituem a


Assembleia Geral, o órgão supremo da Convenção. Os Estados-partes, reunidos na
Assembleia Geral, elegem o Comitê Intergovernamental e podem ser para ele eleitos.

Os Estados-partes podem solicitar assistência internacional, e podem apresentar


arquivos com indicações para as Listas e para o Registro da Convenção. Os Estados-
partes são estimulados a cooperar sempre que possível – por exemplo, compartilhando
informações e conhecimento especializado com outros Estados-partes e apresentando
projetos de salvaguarda multinacionais e indicações para as Listas da Convenção.

Comunidades envolvidas

As comunidades não são signatárias da Convenção, e os Estados não necessitam


do seu consentimento para ratificá-la. Contudo, a Convenção trata do patrimônio
vivo criado, promulgado, adaptado e transmitido pelas pessoas, ou seja, sem elas
não há PCI. Nenhuma salvaguarda dos elementos do seu PCI pode ocorrer sem o
seu envolvimento e comprometimento, especialmente o dos profissionais e outros

96
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

portadores de tradições ativos. É por isso que a Convenção solicita que eles participem
da identificação e da definição do seu PCI, assim como da sua gestão. Também por isso,
as DOs insistem na participação das comunidades envolvidas, bem como em ter seu
consentimento, em qualquer atividade de salvaguarda e em outras que envolvam seu
PCI, executadas nos Estados-partes.

A Convenção não impõe obrigações às comunidades, grupos ou indivíduos, mas


apenas aos Estados-partes. Entretanto, ao se analisar o texto da Convenção e suas DOs,
podemos dizer que as comunidades envolvidas podem ou devem participar do(a):

• administração do seu PCI (Artigo 15);

• identificação e definição do seu PCI (Artigo 11(b));

• inventário do seu PCI (Artigo 12.1) – um workshop em separado está sendo


preparado para apresentar métodos e abordagens para o inventário comunitário;

• desenvolvimento e implementação de planos de salvaguarda para seu PCI


(Artigo 15; DO 23);

• preparo de arquivos com indicações de seu PCI para as Listas e o Registro da


Convenção para apresentação pelo Estado-parte (DO 23); e

• elaboração de solicitações de assistência internacional sob a Convenção para


apresentação pelo Estado-parte (DO 12(A.1)).

Um aspecto importante a destacar é que, embora as pessoas não possam fazer uso
da Convenção para estabelecer direitos de propriedade intelectual sobre o seu PCI,
ou para substanciar reivindicações territoriais ou históricas, a Convenção reconhece a
tutela que as comunidades envolvidas exercem sobre seu próprio PCI.

Outras partes interessadas

Embora o Estado e as comunidades sejam as principais partes interessadas envolvidas


na implementação da Convenção, outros atores também podem desempenhar um
papel importante. Entre eles, podemos citar as ONGs, os especialistas, os organismos
consultivos, os mecanismos de coordenação, os centros especializados, os centros de
documentação, os museus e os arquivos.

Diversas tarefas possíveis são indicadas para as ONGs, especialistas e vários tipos de
instituições e organizações na implementação da Convenção, tanto no âmbito nacional
como no internacional (Artigos 8, 9 e 11(b); DOs 79-96).

A Convenção faz referência explícita a possíveis tarefas para as ONGs (nos Artigos 9
e 11(b)), mas diz pouco sobre outros tipos de organizações. Ela apenas menciona
a conveniência de se ter organismos com competência no âmbito nacional para
salvaguardar o PCI, assim como instituições de treinamento e documentação (Artigo
13). As DOs, por outro lado, recomendam muitas atividades possíveis que podem ser

97
PATRIMÔNIO IMATERIAL

empreendidas por especialistas, centros especializados e instituições de pesquisa,


bem como ONGs, quando a implementação da Convenção for realizada nos âmbitos
nacional e regional:

• identificar, definir e inventariar o PCI (Artigos 11(b) e 12; DOs 80 e 90) (em
11(b), a Convenção menciona apenas as ONGs, então, na DO 90, elas são
novamente mencionadas);

• documentar o PCI (Artigo 13(d)(iii); DO 85);

• desenvolver e implementar atividades de salvaguarda (Artigo 13(b));

• conduzir treinamento para a gestão e transmissão adequadas do PCI (Artigo


13(d)(i); DO 83);

• empreender e/ou coordenar estudos científicos, técnicos, jurídicos, econô-


micos e outros (Artigo 13(c); DOs 105(b), 105(c) e 107(k));

• conscientizar sobre o valor e a diversidade do PCI no território e garantir


que ele seja respeitado, por exemplo, facilitando-se o acesso a informações
relacionadas ao PCI (Artigos 1(b), 1(c), 13(d)(ii) e 14(a); DOs 85, 105 e 107(b));

• contribuir para a cooperação e o intercâmbio internacionais (Artigo 8.4; DOs


26, 84, 86 a 88 e 123(b));

• preparar arquivos com indicações para as Listas e para o Registro da Convenção


(DO 80(d)); e

• garantir a participação e o consentimento da comunidade em todas as


atividades relacionadas a seu PCI, por exemplo:

• mantendo-os informados e envolvidos em todas as questões que se


relacionem a seu PCI (Artigo 15; DOs 79 a 89);

• garantindo sua capacitação (DO 82) quando necessário;

• facilitando sua participação nos organismos consultivos e mecanismos de


coordenação (DO 80); e

• garantindo que seus direitos sejam protegidos na conscientização (DO 104).

Desenvolvimento sustentável

No Artigo 2.1, a Convenção deixa claro que para efeito da Convenção, não será
levado em consideração o PCI que não for compatível com os requerimentos do
desenvolvimento sustentável.

O conceito de desenvolvimento sustentável adotado pela Convenção é aquele definido


em 1987 pela Comissão Brundtland: o “desenvolvimento que atende às necessidades

98
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

do presente sem comprometer a habilidade das futuras gerações de atenderem às


suas próprias necessidades”. O desenvolvimento sustentável não apenas significa
desenvolvimento econômico sustentável das pessoas envolvidas, trata-se da busca
simultânea de metas interligadas de prosperidade econômica, igualdade ambiental e
equidade social.

Há uma estreita relação recíproca entre o desenvolvimento sustentável e o PCI. A prática


de certos elementos do PCI pode contribuir para o desenvolvimento sustentável social
e econômico. O desenvolvimento sustentável em uma comunidade pode também
melhorar a viabilidade de práticas do PCI nessa comunidade.

O PCI é praticado e transmitido pelas comunidades envolvidas por razões que incluem
a manutenção de seu sentido de identidade e continuidade, o seu bem estar social,
o controle de seu ambiente natural e social e a geração de renda. Muito do que é
denominado conhecimento tradicional ou indígena é ou pode ser integrado em
assistência à saúde moderna, educação e gestão do ambiente natural e social. O
conhecimento e as práticas relativas à natureza e ao universo podem também ajudar a
garantir a disponibilidade sustentável de recursos naturais específicos necessários para
a prática de um elemento do PCI.

Uma vez que salvaguardar o Patrimônio Imaterial significa garantir que ele continue a
ser praticado nos dias atuais sem comprometer a habilidade das gerações futuras de
usufruírem do mesmo no futuro, o Patrimônio Imaterial pode contribuir e se beneficiar
das agendas de desenvolvimento sustentável.

Como um dos ganhos obtidos com o trabalho da UNESCO é a possibilidade de troca


de conhecimento e aprendizagem com outras experiências, indico no Anexo I deste
texto um estudo de caso do Quênia, onde a comunidade se uniu para a proteção da
floresta, onde há lugares tidos como sagrados e onde são realizadas várias cerimônias
tradicionais. Esse é um bom exemplo de como a salvaguarda do PCI pode viabilizar o
desenvolvimento sustentável e vice-versa.

Processo de fortalecimento de capacidades em âmbito global

Reconhecendo que a implementação efetiva da Convenção de 2003 depende de um


profundo conhecimento e compreensão da Convenção e seus conceitos, medidas e
mecanismos, a UNESCO criou uma estratégia de capacitação global, coordenada e
acompanhada pela Sessão de Património Cultural Imaterial, em estreita cooperação
com os escritórios de campo e com os Estados-partes.

O escopo deste processo de capacitação inclui apoiar a revisão das políticas e legislação,
o redesenho da infraestrutura institucional para atender às necessidades de salvaguarda
do PCI, o desenvolvimento de métodos e sistemas de inventário, o envolvimento de
todos os interessados e a valorização do conhecimento e habilidades necessárias para
solicitar assistência internacional ou apresentar candidaturas às Listas da Convenção.

99
PATRIMÔNIO IMATERIAL

Para tanto, foram elaborados materiais de treinamento, como power points, manuais,
exercícios e formulários de avaliação, e foram treinados 65 peritos regionais (25 deles
da África, sendo 40% destes, mulheres). Esta rede de facilitadores realizou, de 2010 até
o presente momento, mais de 60 atividades de capacitação em todo o mundo, tanto
no sentido de capacitar governos locais para a ratificação da Convenção quanto para a
realização de inventários e outras atividades de salvaguarda.

A UNESCO organizou uma primeira reunião de revisão de sua estratégia global de


reforço das capacidades nacionais para a salvaguarda do PCI entre 7 e 10 de novembro
de 2012. 14 especialistas de todo o mundo que foram treinados pela UNESCO em 2011
se reuniram com oito especialistas de Cultura da UNESCO de escritórios de campo e
avaliaram os avanços obtidos neste período de implementação de atividade.

No plano internacional, o Brasil tem desempenhado papel de referência em função


dos instrumentos de gestão e salvaguarda dos bens de natureza imaterial – por meio
da Política Nacional de Patrimônio Imaterial, de 2000 –, das contribuições voluntárias
(além daquela obrigatória ao Fundo do PCI) e de toda a experiência acumulada nestes
anos de implantação de sua política de ações de salvaguarda. Nesse sentido, cabe
mencionar que a chamada para apresentação de projetos na área de patrimônio
imaterial desenvolvida no Brasil foi reconhecida pela UNESCO com um exemplo
das melhores práticas de salvaguarda do PCI. Um passo decisivo a ser dado para a
continuidade desse papel de desenvolvimento de metodologias exemplares é o
fortalecimento do Sistema Nacional de Patrimônio Imaterial, do qual esse curso é
peça fundamental. O estabelecimento dessa rede em um país com tanta diversidade
cultural e administrativa seguramente criará novas formas de concepção do processo
de gestão do PCI e de garantia da participação.

Anexo I

Estudo de caso

Envolvimento da comunidade em uma indicação: as tradições e práticas associadas


aos Kayas das Florestas Sagradas dos Mijikenda no Quênia

Tradições e práticas associadas aos Kayas nas florestas sagradas dos Mijikenda foram
inscritas na LSU em 2009. Trata-se de música tradicional e danças, orações e canções,
a produção de objetos de rituais sagrados, assim como práticas de rituais e cerimônias
e uma consciência aguda e conhecimento do mundo natural, associado com Kayas
do Mijikenda. Kayas são lugares sagrados nas florestas, delineando o litoral do Quênia,
onde viviam os ancestrais do Mijikenda. Hoje, os Mijikenda já não vivem nos Kayas,
porém retornam a elas para práticas tradicionais. Alguns dos Kayas foram inscritos na
Lista de Patrimônio da Humanidade, que tem incentivado um número crescente de
turistas a visitá-los.

100
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

Consulta e envolvimento da comunidade

Os Museus Nacionais do Quênia e o Departamento de Cultura realizaram uma série


de reuniões de consulta com os Conselhos dos Anciãos e outros membros das
Comunidades Mijikenda na década de 1990 para discutir questões de salvaguarda e
conservação. Foi realizada uma reunião crucial em 9 de Março de 2009 para discutir
assuntos a serem incluídos no arquivo de indicação do PCI associado aos Kayas na
LSU. A Administração Provincial da área apoiou o processo de consultoria com as
comunidades Mijikenda e Kayas das Florestas Sagradas.

Formaram-se grupos de conservação e desenvolvimento comunitário nas comunidades


Mijikenda. Esses grupos conservam o Patrimônio Material e salvaguardam o Imaterial.
Os grupos e os conselhos de anciãos deram continuidade a práticas e tabus tradicionais
que ajudam na salvaguarda e respeito ao PCI. Eles também têm promovido atividades
apropriadas de desenvolvimento tais como a apicultura em torno da região dos Kayas.

Membros da comunidade contribuem com medidas de salvaguarda

Os Museus Nacionais do Quênia e a Secretaria de Cultura organizaram um workshop


voltado para a sensibilização, envolvendo os Conselhos de Anciãos, grupos de
conservação dos Kaya, grupos de mulheres e grupos de jovens. Os membros da
comunidade discutiram a função e a viabilidade das tradições e práticas e trouxeram
grandes questões em torno de salvaguarda que foram gravadas e incorporadas ao
processo de indicação:

• Eles tinham um forte desejo de manter as tradições e práticas relacionadas aos


Kayas e então salvaguardá-las junto aos ecossistemas da floresta dos Kayas.

• Eles desejaram começar atividades sustentáveis que gerassem renda tais


como apicultura, ecoturismo e artesanato para cada comunidade Mijikenda
para reforçar medidas de apropriação e salvaguarda.

• Pretendiam recrutar guardas da comunidade para trabalhar lado a lado com


grupos de jovens que agem como delatores, por meio do uso de apitos,
quando a floresta é invadida (provavelmente por pessoas que buscam
recursos como madeira e plantas).

Informações da comunidade sobre os guardas e atividades geradoras de renda foram


incorporadas ao plano de salvaguarda.

Consentimento da comunidade

As comunidades de Kaya, representadas por seus anciãos, deram o seu consentimento


para que suas práticas tradicionais fossem indicadas para a Lista de Salvaguarda
Urgente, em face ao estado crítico de sua viabilidade. Seu acordo foi gravado em um
clipe de vídeo e transcrito. O Comitê Intergovernamental em 2009 também aprovou,

101
PATRIMÔNIO IMATERIAL

condicionalmente, um pedido por assistência internacional apresentado pelo governo


do Quênia para financiar algumas das medidas de salvaguarda propostas.

Para quem quiser ter mais informações, pode acessar o link abaixo, onde encontrarão
textos, fotos e um vídeo sobre este processo. Esse material está em inglês, mas ainda assim,
vale a pena conferir: <http://www.UNESCO.org/culture/PCI/index.php? USL=00313>.

Referências Bibliográficas

BRAYNER, Natália Guerra. Patrimônio cultural imaterial: para saber mais. Brasília: IPHAN,
2007. Disponível em: <http://www.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=3172>.

IPHAN. Implementação da Convenção do Patrimônio Imaterial da UNESCO no Plano


Nacional: manual do workshop (IMP-MW). Brasília, mai. 2012. (mimeo).

SANT’ANNA, Márcia G. de (Org.). O registro do patrimônio imaterial: dossiê final da


Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. 5 ed. Brasília, DF: IPHAN, 2012.
(Edições do Patrimônio).

TEIXEIRA, João Gabriel L.C. et al (Org). Patrimônio imaterial, performance cultural e (re)
tradicionalização. Brasília: ICS-UNB, 2004.

UNESCO. Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, Paris,


21 de novembro de 1972. Brasília, 2004. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/
images/0013/001333/133369por.pdf>.

UNESCO. Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais,


Paris, 21 de outubro de 2005. Brasília, 2007. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/
images/0015/001502/150224por.pdf>.

UNESCO. Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, Paris, 17


de outubro de 2003. Brasília, 2003. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/
images/0013/001325/132540POR.pdf>.

UNESCO. Textos fundamentales de la Convención para la Salvaguardia del Património


Inmaterial de 2003. Paris, 2011.

VIANNA, Letícia C. R.; SALAMA, Morena R. L. Avaliação dos planos e ações de salvaguarda
de bens culturais registrados como patrimônio imaterial brasileiro. In: CALABRE, Lia
(Org.). Políticas culturais: pesquisa e formação. São Paulo: Itaú Cultural; Rio de Janeiro:
Fundação Casa de Rui Barbosa, 2012.

Fórum de Discussão

O texto a seguir é a compilação dos debates realizados entre professor e alunos nos
Fóruns de discussões da plataforma de educação a distância, tendo como base o texto
autoral do professor, publicado acima, e as seguintes perguntas orientadoras:

102
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

1. Pensando nas manifestações culturais de sua região, em que medida, a noção


de PCI pode contribuir para a noção de desenvolvimento sustentável e vice-
versa?

2. Como você relaciona os riscos e possibilidades que processos de geração


de renda, de patrimonialização e de inclusão nas Listas da UNESCO podem
trazer para as manifestações de natureza imaterial? Quais cuidados devem ser
tomados na condução destes processos?

3. Como identificar e categorizar os riscos e ameaças a que está submetida uma


manifestação de PCI?

Uma das discussões desenvolvidas nessa disciplina foi como identificar e categorizar
os riscos e ameaças a que está submetido uma manifestação de PCI. De acordo com
a Convenção de 2003, ameaças à viabilidade são problemas atuais que dificultam a
promulgação e a transmissão do elemento. Riscos são problemas previstos. Tendo
como base esta definição inicial, foi ressaltada a necessidade do envolvimento
da comunidade que detém o PCI, para a identificação das ameaças e riscos. Foram
debatidas algumas metodologias para se estruturar um trabalho de identificação de
riscos.

Podemos considerar duas situações de ameaça e risco em nível macro:

• Aquelas oriundas de fatores externos, como grandes projetos desenvolvi-


mentistas, que podem desarticular as relações sociais e ambientais dos gru-
pos tradicionais, ausências de políticas públicas de garantia de direitos, dentre
outras.

• Aquelas internas, intrínsecas às comunidades detentoras e ao próprio PCI, re-


fletindo sua dinâmica e trajetória, que às vezes pode levar ao seu desapareci-
mento e não a sua adaptação.

Alguns aspectos citados foram:

Fatores intrínsecos:
Ausência de mapeamento, identificação, inventário e registro do PCI; falta de
interligação entre as várias áreas do conhecimento (popular e científico) que podem
atuar como aliados na promoção, capacitação, mediação e divulgação do savoir faire;
perda (morte) dos mestres dos saberes sem haver passado seu conhecimento as novas
gerações; dificuldades econômicas; falta de matéria-prima; preconceito sobre algumas
expressões do PCI; a falta de interesse das gerações mais novas em dar continuidade à
manifestação do PCI; a questão da fragilidade social familiar e de grupos locais.

Fatores extrínsecos:
Desenvolvimento urbano descontrolado; modismo cultural; teatralização das
manifestações culturais; divulgação da cultura de massa; falta de financiamento e

103
PATRIMÔNIO IMATERIAL

incentivo fiscal; falta visibilidade (divulgação mídia); inexistência ou fragilidade de uma


política pública de salvaguarda; inexistência de uma educação patrimonial sistemática;
descumprimento da convenção 2003; burocracia nas ações compartilhadas entre
governo federal, estadual e municipal quanto ao PCI; biopirataria; a não repartição
de benefícios advindos do uso do recurso natural associado ao patrimônio genético;
implantação de um grande empreendimento próximo ou na própria área da
comunidade.

Essa forma de categorização possibilita nortear o planejamento das ações de salva-


guarda a serem empreendidas. Entretanto, foi ressaltado que nem todos os riscos e
ameaças podem ser eliminados. Em muitos casos, eles fazem parte da dinâmica das
manifestações do PCI e estão associados com o próprio contexto da comunidade, com
sua história, caminhos e descaminhos trilhados por ela e em relação a outras comuni-
dades e grupos. Nesse sentido, é importante, realizar uma adequada gestão de riscos
na medida em que este tipo de análise facilita o equilíbrio entre os riscos avaliados e a
mitigação viável dos mesmos.

Foi discutido que uma boa metodologia para este levantamento é a técnica da
FOFA (Fortalezas e Oportunidades, Fraquezas e Ameaças) ou análise de SWOT, como
também é chamada. Esse processo deve ser considerado como parte de um plano
de salvaguarda e a análise deve ser realizada em conjunto com a comunidade. Uma
sequencia de trabalho possível é elencar cada um dos problemas internos e analisá-los
por meio da utilização do marco lógico, baseado na árvore de problemas e soluções.
A partir da transformação da árvore de problemas em árvore de soluções, é possível
realizar a montagem de uma matriz com as metas e objetivos aí expressos. Esta matriz
é a base do Plano de Salvaguarda.

Outro ponto discutido foi acerca de quais os riscos e possibilidades que processos de
geração de renda, de patrimonialização e de inclusão nas Listas da UNESCO podem
trazer para as manifestações de natureza imaterial.

De acordo com as discussões, os riscos e possibilidades quanto à geração de renda, à


patrimonialização e à inclusão na Lista da UNESCO do PCI pode ser assim relacionados:

Riscos Possibilidades
Mercantilização do PCI Difusão do PCI
Padronização do PCI Visibilidade do PCI
Descontextualização do PCI Valorização do PCI
Hierarquização do PCI Universalização do PCI
Salvaguarda do PCI
Apropriação do PCI por outros grupos
Autossustentação do PCI

A Convenção de 2003 e suas DOs sugerem várias formas gerais de mitigar riscos
decorrentes da geração de renda. Além das apresentadas, as comunidades e outras

104
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

partes interessadas também podem desenvolver medidas de salvaguarda específicas


para lidar com ameaças e riscos que confrontem elementos particulares de seu PCI.

Entre os exemplos de ações de atenuação no contexto das novas atividades geradoras


de renda podemos citar: Utilização de direitos de propriedade intelectual, direitos
de privacidade e outras formas de proteção legal para proteger os direitos das
comunidades envolvidas (DO 104); encenação de apresentações especialmente
adaptadas para estrangeiros, tais como aquelas em festivais ou teatros, paralelamente
a apresentações tradicionais na comunidade; limitação do número de estrangeiros
que têm permissão para visitar áreas onde formas secretas ou sagradas do PCI são
praticadas e/ou limitar o acesso à documentação relativa a isso; utilização de guias de
treinamento comunitário para explicar às pessoas que vem de fora sobre o significado
do PCI que eles encontrarão e como interagir com o mesmo; e discussão na comunidade
envolvida sobre o que poderia constituir-se numa utilização aceitável dos elementos
do PCI para fins comerciais e o que não seria o caso, tentando manter o apoio coletivo
aos já acordos estabelecidos.

Assim, buscou-se chamar a atenção para o fato de que ações de salvaguarda e de


patrimonialização também podem ser elementos geradores de riscos para as
manifestações de PCI. Por exemplo, atividades geradoras de renda podem extrair o
caráter ritualístico de uma dada manifestação, fazendo com que ela caia no risco da
espetacularização. Desenvolver processos de envolvimento comunitário e desen-
volvimento de novos aprendizes pode levar a uma desestruturação das relações
estabelecidas na comunidade, ao surgimento de novos líderes e a um processo
de desagregação comunitária. Isso significa que o desenvolvimento das ações de
salvaguarda devem ser apoiados por uma equipe multidisciplinar que seja sensível a
todos esses pormenores que envolvem o processo de patrimonialização e de trabalho
conjunto com as comunidades. Todo cuidado é pouco quando se trata de trabalhar
com temas tão delicados quanto são esses do patrimônio imaterial.

2.5 Participação e Gestão do Patrimônio

Ementa: Apresentação e discussão acerca de metodologias de fomento à participação;


Novas tecnologias e saberes tradicionais; Envolvimento de jovens e adolescentes nas
práticas tradicionais, como conseguir?; Formação, atuação e importância de instâncias
de Cultura.

Professora: Letícia Vianna

Mestre em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (1993) e doutora em


Antropologia Social no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(1998). De 2001 a 2006 trabalhou no CNFCP/IPHAN coordenando projetos voltados para
o Patrimônio Imaterial e projetos voltados para comunidades produtoras de artesanato
tradicional. Desde 2007 é consultora no Departamento de Patrimônio Imaterial do

105
PATRIMÔNIO IMATERIAL

IPHAN e pesquisadora do Laboratório Transdisciplinar de  Estudos da Performance, o


qual é ligado ao Departamento de Sociologia  da UnB. Tem livro e artigos publicados
sobre culturas populares e Patrimônio Imaterial. 

Participação social e gestão do Patrimônio Imaterial

Do que se fala

Quando falamos em patrimônio, estamos nos referindo a uma porção de coisas


consagradas e que têm grande valor para indivíduos, comunidades ou nações. Remete
à riqueza construída e transmitida, herança ou legado que influencia o modo de ser e a
identidade das pessoas, comunidades e grupos sociais. As definições podem partir de
diferentes perspectivas, que podem ou não se sobrepor, como a afetiva, a econômica,
a ambiental, a cultural.

A noção exata do que seja patrimônio é relativa, depende de quem fala e de que
ponto de vista se fala. Mas geralmente remete à riqueza que é construída, reconhecida,
conservada e transmitida. Um legado no melhor sentido. Patrimônio é um conceito,
portanto, passível de conter múltiplos significados socialmente compartilhados ao
longo da história de cada sociedade. No âmbito do Estado Moderno73 e em termos
gerais, a noção de patrimônio é muito importante historicamente. Diz respeito ao
valor definido e declarado a certo bem e estabelece titularidade deste bem a alguém
que passa a ter o direito de transferência. Este valor é constituído e definido como
bem patrimonial em função de um rol de interesses, legislações e regulamentações
para a proteção de direitos de propriedade, de titularidade (individuais, familiares,
institucionais, coletivas, nacionais) jurisprudências para solução de conflitos, atribuições
cartoriais, procedimentos de reconhecimento e certificações, normas, impostos e taxas
para manutenção e transferências desses bens.

No mundo contemporâneo vão se criando os instrumentos de regulamentação dos


inúmeros tipos e instâncias de patrimônio individual e/ou coletivo juridicamente
cabíveis na história de cada sociedade. Mas há uma orquestração dos procedimentos,
conceitos e efeitos na medida em que estejam inseridas na engrenagem de um Estado
integrado à economia política mundial. Nesses processos seculares nos quais os Estados
Nacionais se constituem a partir da abrangência de grupos, comunidades e nações,
vem se dando a instituição, manutenção e circulação de patrimônios individuais e
coletivos de diferentes naturezas. A história dos Estados-nação no último século mostra
que o poder econômico e político tem se concentrado em determinados segmentos
dessas sociedades. Outros segmentos ficam excluídos, conforme a divisão de classe,
sexo e gênero, etnia, ethos; e não detêm, conhecem ou podem ter acesso aos códigos,
instrumentos e meios para constituírem e garantirem seus patrimônios individuais e
coletivos em todas as formas cabíveis. E tem sido alarmante que fatos e elementos

73. A forma de organização política e social que é bastante plástica, presente, abrangente e permeável a diversas culturas e
sociedades.

106
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

que transcendem à natureza humana e são fundamentais para sua manutenção, como
fauna, flora, águas e ar, já são nominados patrimônio na medida em que se percebe a
possibilidade de privação a partir da experiência concreta para alguns segmentos das
sociedades nacionais.

O universo do Patrimônio Cultural diz respeito aos conhecimentos e realizações de uma


sociedade que são acumulados ao longo de sua história e lhe conferem os traços de
sua singularidade em relação às outras sociedades. A maneira como cada comunidade,
grupo, segmento social ou nação define e constrói o seu Patrimônio Cultural é variável
no tempo e no espaço. Por muito tempo na maioria das representações das identidades
das sociedades nacionais privilegiou-se o patrimônio histórico e artístico, em sua
dimensão material: obras de arte, obras de arquitetura, sítios urbanos e arqueológicos,
documentos vão sendo identificados e reconhecidos como referencias da história e
das identidades locais e nacionais. E já faz algum tempo também que bens culturais de
natureza intangível, como conhecimentos, formas de expressão, celebrações, ofícios
tradicionais, vem sendo reconhecidos como Patrimônio Cultural por vários países e
por instâncias internacionais como a UNESCO – a qual estimula e viabiliza ações nesse
campo em âmbito internacional.

Mas um ponto muito importante precisa ficar bem entendido: todo grupo ou segmento
social, toda comunidade, nação ou etnia constrói, mantém transmite e reinventa
referências culturais baseadas em história e tradição. Essas referências balizam um
sistema simbólico compartilhado e a coesão interna do grupo. Referências culturais são,
por tanto, fundamentos de identidades perante outros coletivos humanos. O que se
pode acrescentar aos conceitos correntes para o Patrimônio Imaterial é a perspectiva
de certa tangência de referencia cultural com a ideia de communitas,74 no sentido mais
amplo de sentimento de pertencimento e participação dos indivíduos em um coletivo
(grupo, segmento, comunidade, nação); um estado de comunhão entre pessoas que
transcende as estruturas formais de regulação e coesão social externas aos grupos. Este
sentimento de pertencimento é, assim, expresso por determinadas referências culturais
- signos, símbolos, práticas, conhecimentos - potenciais objetos de patrimonialização.

Trago o conceito de communitas, não inadvertidamente, pois o sentido forjado por


Turnner (1974) é voltado para uma instância da experiência social humana que se
define em oposição a uma instância que o autor conceitua como estrutura – onde
predomina uma razão operativa para uma ordem social que é dada como norma,
a partir de outras tantas referências culturais – que é a instância do Estado; no nosso
caso, a política de patrimonialização. Quer dizer, creio ser necessário considerarmos
minimamente um ponto de tensão que vejo como fundamental como motivador do
desafio de compreensão do campo – a política para o Patrimônio Imaterial se faz na
contradição da incorporação na estrutura do Estado de referências culturais da ordem
das communitas específicas de grupos, segmentos, comunidades e nações abrangidas

74. TURNER, 1974, p. 116-159.

107
PATRIMÔNIO IMATERIAL

pela sociedade nacional. Então, como fazer? Ou como desfazer ou fazer diferente as
bases para esta relação contraditória, na perspectiva de um equilíbrio em relação a
direitos, deveres e benefícios entre as partes envolvidas. Será possível? A história dirá!
Por hora, podemos refletir sobre alguma experiência acumulada.

Referências culturais são, digamos assim, “naturais” em todos e quaisquer coletivos


humanos e neles funcionam como elementos de coesão e identidade. Entretanto não
são naturalmente Patrimônio Cultural. O Patrimônio Cultural é uma instituição, uma
construção que culmina com ato declaratório de reconhecimento oficial, a partir de uma
relação estabelecida entre o poder público e a sociedade. Isto é, o que é e o que não é
declarado Patrimônio Cultural é objeto de uma escolha. De uma escolha política.

Patrimônio Imaterial é um conceito complexo, mas um conceito. E os conceitos são


elásticos. Os significados são construídos social e historicamente pelos seres humanos;
e pelos seres humanos vão sendo reelaborados e adaptados a suas realidades e
necessidades pragmáticas da vida em sociedade. Conceitos não são camisas de força,
absolutos imutáveis. Temos que historicamente, desde a implementação da política
voltada para a área pelo Estado brasileiro, o conceito de Patrimônio Cultural não
abarcou um único e imutável significado, nem esteve apropriado da mesma maneira
pelos segmentos sociais interessados. Ainda bem!

A história da política para o Patrimônio Cultural no Brasil mostra que a política foi
excludente, por muitas décadas, na medida em que o reconhecimento foi feito
sobretudo das expressões da cultura de matriz europeia , branca, católica, “erudita”,
em detrimento das expressões das culturas populares historicamente presentes
na constituição da sociedade nacional. Entretanto, muitas experiências já realizadas
nas últimas décadas, sobretudo a partir do Decreto n° 3551/200075, apontam outras
possibilidades com base no relativismo cultural e a proposição de a política nacional
para o Patrimônio Cultural ser inclusiva a partir do reconhecimento da diversidade
cultural do país como o patrimônio a ser preservado. E nos últimos dez anos foram
realizadas experiências no IPHAN que atestam a viabilidade de diálogo profícuo entre
Estado e Sociedade no sentido da gestão compartilhada do patrimônio. É isso que
pretendo contextualizar historicamente: essa possibilidade concreta de participação
social na execução da política de salvaguarda do Patrimônio Imaterial implementada
pelo IPHAN na última década.

E a política se faz...

A política para o Patrimônio Cultural se estabelece a partir de uma relação do Estado por
meio do IPHAN com a Sociedade, por seus segmentos, grupos, comunidades arroladas
nos processos. Uma relação; e não necessariamente um diálogo.

No Brasil o primeiro marco legal que institui política para o Patrimônio Cultural tem
como base o conceito de patrimônio histórico e artístico nacional. Trata-se do Decreto 25
75. BRASIL, 2000.

108
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

de 1937; o qual organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, menciona


o instrumento tombamento e o SPHAN (Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional) – hoje IPHAN – instituição que implementa a política do Estado até hoje.

Não podemos esquecer que o contexto internacional era tenso… guerras e acirramento
de necessidade de afirmação de identidades e soberanias nacionais. O Brasil estava
na Era Vargas. A indústria cultural a todo o vapor, difundindo revistas, aparelhos de
rádio e entretenimento à massa de trabalhadores consumidores, conformando uma
cultura popular urbana hegemônica e supostamente homogeneizante, construída a
partir da estilização de expressões culturais tradicionais dos vários segmentos sociais
urbanos e rurais.

No anteprojeto que Mário de Andrade fez, em 1936 , para o estabelecimento das


funções do IPHAN, o valor etnográfico e a dimensão do registro documental das
culturas tradicionais rurais e urbanas – do chamado folclore – eram bastante destacados.
Entretanto, no âmbito da política de fato instituída, essa dimensão foi praticamente,
se não totalmente, desconsiderada. O universo das tradições culturais populares foi
definido como folclore – objeto de estudo de folcloristas; e não como patrimônio –
objeto da política do IPHAN. E o folclore não era passível como objeto de aplicação dos
instrumentos criados: tombamento direcionado para o reconhecimento, restauração,
conservação e fiscalização de bens móveis e imóveis, sítios históricos e arqueológicos.

Fato é que a política para o patrimônio histórico e artístico nacional até a década de 80
do século vinte foi fundamentalmente voltada para a patrimonialização de expressões
culturais de tradição europeia, católica, colonial, bem constituídas em sua materialidade.
Isto é, a política foi construída sob uma perspectiva que privilegiou expressões de
uma cultura de segmento social hegemônico no poder e privilegiado no processo de
concentração de riqueza. Essa tendência predominou na política do IPHAN até os anos
80 – década em que os primeiros e, até hoje, poucos bens expressivos da diáspora
africana no território foram tombados, por exemplo.

Por outro lado, ao longo da primeira metade do século XX, – os estudiosos do folclore
como Silvio Romero, Amadeu Amaral, o próprio Mário de Andrade, Edison Carneiro,
entre outros, traziam à luz um Brasil de tradições culturais várias – uma riqueza fadada
ao desaparecimento completo dado o anacronismo em relação ao mundo moderno.
No final dos anos 40 houve, em consonância com o contexto internacional pós-guerra e
movimentos na mesma direção, um movimento de intelectuais, pesquisadores, artistas,
diplomatas, professores que culminou em uma instituição denominada Campanha de
Defesa do Folclore Brasileiro. O trabalho, ou a política desenvolvida pela instituição não
era a de patrimonializar, isto é, ato jurídico no qual o poder público reconhece o fato
cultural como patrimônio do município, do estado ou da federação; e passa a qualificá-
lo como bem de interesse público. Havia, sim, ações para a salvaguarda do folclore e
dos conhecimentos por meio de pesquisas, documentação, do apoio e fomento das
práticas culturais identificadas como folclore. A constituição do campo dos estudos

109
PATRIMÔNIO IMATERIAL

e apoio ao folclore se deu a em uma tendência mais ou menos fatalista, paternalista


a partir de pesquisas superficiais e edições pouco criteriosas de resultados, sem a
identificação das pessoas pesquisadas, autorias de músicas e performances e alocando
tudo na figura jurídica do “domínio público”.

O gesto de documentar já era considerado um ato de salvaguarda, para ‘ao menos se


pode saber como era’ quando tudo se acabar; ou documentar para subsidiar as “novas
invenções e criações artísticas” sob o ponto de vista moderno. (Um ponto-chave é
esse… É preciso, na perspectiva do gestor, uma atenção para identificar as zonas de
perigo nas quais o feitiço pode virar contra o feiticeiro; isto é, a que e a quem servirá a
política?!). Não eram desenvolvidos programas gerais, mas eram atendidas demanda
imediatas como chinelo, chita, transporte para as celebrações e performances, com
base mais nas amizades pessoais que derramavam no clientelismo político, na maioria
das vezes. Havia um encantamento romântico por parte dos folcloristas com o que
eles definiam como “primitivo” no sentido de ingênuo, espontâneo, autêntico…
atrasado, mesmo, do ponto de vista da cultura moderna que despontava. Um resquício
a ser conservado… até sumir... definhar... para existir documentado em acervos… ou
reproduzidos pelos grupos para folclóricos… inspirar os artistas modernos, pops, pós-
modernos… enfim....

No final da década de 1970, décadas de 1980 e 1990, sobretudo a partir das diretrizes
apresentadas pelo então criado Centro Nacional de Referências Culturais no âmbito
do Ministério da Educação e Cultura, a política para o folclore tendeu mais ao
reconhecimento da diversidade cultural como valor a ser preservado e conhecido
por meio de pesquisas etnográficas detalhadas, ações de fomento com base em
diagnósticos, ações e projetos desenvolvidos por especialistas implementados em
grupos e comunidades, com vistas à geração de renda e continuidade das expressões
culturais por meio do mercado. As expressões tradicionais das culturas populares
não eram mais consideradas anacrônicas e descontextualizadas, mas expressões
da riqueza cultural do país… um potencial a ser tratado, adaptado e revitalizado…
incorporado como revitalizador da identidade nacional por meio de todo o aparato
moderno. A palavra folclore é praticamente banida do vocabulário das políticas
públicas, em detrimento de cultura popular. A tradição e a modernidade propulsoras
de desenvolvimento! Era um momento de “abertura política”… e os movimentos
sociais alargaram mesmo a identidade e as bases da cidadania no país.

Cabe observar que ambas as perspectivas de política cultural, a de patrimônio e a voltada


para o folclore e culturas populares, foram desenvolvidas a partir do ponto de vista
dos agentes dos poderes públicos. As ações eram mais voltadas para os bens culturais
(garantir uma apresentação de um bumba meu boi, ou a reforma da igreja) e menos
para os agentes detentores ou praticantes das expressões culturais (pouco importa se
a alma do boi tem comida para os filhos ao longo do ano; ou se as senhorinhas não
podem subir as escadas da igreja tombada sem rampa).

110
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

O marco legal para uma nova perspectiva é a Constituição Brasileira de 1988 – a Constituição
Cidadã – consolidada a partir de um processo de amplo debate dos parlamentares
com a sociedade civil que revelou a diversidade cultural brasileira como um valor a
ser reconhecido e enfatizado na identidade nacional. Em seus artigos 215 e 216 ficam
definidas duas dimensões – material e imaterial – para o Patrimônio Cultural nacional.

A Campanha de defesa do Folclore já se transformara, ao longo dessa história, no


Instituto Nacional de Folclore (INF) e, posteriormente no Centro Nacional de Folclore
e Cultura Popular (CNFCP), voltado para implementação da política para a área sob a
perspectiva do relativismo cultural. O IPHAN foi paulatinamente abrindo suas políticas
para a dimensão intangível do patrimônio, atento ao movimento internacional,
e atendendo às demandas e pressões da sociedade – que volta e meia se sentia e
se sente indisposta com as determinações e fiscalizações do órgão sobre os bens
materiais patrimonializados. Essa experiência acumulada serviu, de certa maneira, para
a identificação de um universo de questões no que tange a representatividade dos
bens patrimonializados como signos de um país diverso cultural e etnicamente, como a
sociedade já exigia de maneira bem exposta. Os interessados e designados envolvidos
com este campo se debruçaram a construir instrumentos que convergissem com a
política recomendada pela UNESCO voltada para o patrimônio intangível.

Até 2000 aconteceram estudos, debates, foi criado um grupo de trabalho, o GTPI, para
esboçar texto do Decreto n° 3.551 de 200076 e as linhas gerais do Programa Nacional
de Patrimônio Cultural (PNPI) – primeiros passos para a regulamentação dos artigos
constitucionais. Nesse processo há um claro reconhecimento de que a política
desenvolvida até então estava sendo excludente para com vários segmentos da
população de detentores de saberes tradicionais de matrizes não europeias, católicas,
eruditas; referências e expressões culturais significativas da imensa riqueza e diversidade
cultural – fundamentais para a identidade de país diverso culturalmente – interessante
de ser cultivada naquele momento.

É definido como um princípio fundamental do Programa Nacional do Patrimônio


Imaterial (PNPI) – a participação social – mais precisamente da base social ou detentores
diretos dos conhecimentos e práticas. E nenhuma ação no âmbito desta política é
aceitável- idealmente – sem o respaldo e consentimento das bases sociais diretamente
envolvidas. Um dos pressupostos da política é, então, a ideia de que a patrimonialização
só é viável efetivamente com o envolvimento dos segmentos sociais que cultivam o
bem cultural e o tem como referencia para sua identidade e organização social, já que
sem estes detentores o bem cultural não subsiste seja como prática ou referência.

A orientação é a de realização de ações voltadas para a valorização das pessoas e a


garantia de boas condições de produção e reprodução do bem cultural em seu
contexto. Não obstante as imperfeições nas primeiras experiências, a mobilização
social nas ações desenvolvidas é considerada uma condição sine qua non.

76. BRASIL, 2000.

111
PATRIMÔNIO IMATERIAL

Ficaram estabelecidas quatro dimensões para o Patrimônio Imaterial: celebrações,


saberes, lugares e formas de expressão. E três instrumentos básicos para a patrimoniali-
zação: inventários e pesquisas de identificação; Registro nos Livros do PCI (ato análogo
ao registro nos Livros de Tombo); salvaguarda apoio e fomento das referências consti-
tutivas dos universos culturais identificados e/ou registrados.

E, desde então, vão sendo criadas as balizas conceituais, algumas instruções normativas
e procedimentos. Um ponto fundamental a ser destacado é a centralidade do conceito
antropológico de cultura como base para o conceito de identidade e Patrimônio Cultural.
Isto é, transcende-se o histórico e artístico para abarcar um universo maior de fatos da
cultura. Trata-se assim da tentativa, desde o início, de constituir uma “política inclusiva”.
Inclusão do que estava excluído do rol de referencias da identidade nacional; até então
referências das belas artes, da história colonial, católica, branca de matriz europeia.
Voltava-se então para as expressões das culturas populares de múltiplas tradições de
ocorrência no território.

Então, podemos dizer que houve um esforço e um efetivo aperfeiçoamento no aparato


legal do Estado, na medida em que foram criados os instrumentos de inclusão paras
as referências culturais no rol do patrimônio nacional que estavam, então, excluídas. A
criação dos “novos instrumentos” foi balizada pela definição da natureza imaterial do
bem cultural – isto é conhecimentos e práticas tradicionais realizadas e transmitidas
em processos sociais dinâmicos de adaptação e reinvenções, reconhecidas como
referências culturais importantes para grupos e comunidades, localizados no tempo e
no espaço, cujos agentes e suportes são pessoas sobre as quais deve se incidir a política.

A diversidade cultural passa a ser uma espécie de dogma pelo qual se deve zelar. Ponto
passivo; embora tenha sido difícil quebrar, como por encanto, uma postura secular de
uma estrutura burocrática como a do Estado Brasileiro. Entretanto, chegamos até aqui.
E podemos seguir no esforço de abrir perspectivas diferentes das estabelecidas. Não
tão rápido como deveriam, as mudanças vão sendo feitas. Não por mágica, mas por
ação reflexiva e coordenada entre os interessados.

O campo de trabalho voltado para a dimensão imaterial do Patrimônio Cultural é


relativamente recente para o IPHAN (12 anos para uma instituição de 75 anos); e os
quadros do Estado que nele atuam, também são de alguma maneira, neófitos no
assunto e/ou na instituição. As rotinas e procedimentos estão sendo estabelecidos. Por
outro lado, os detentores dos saberes e práticas também vão conhecendo a proposição
e os códigos do Estado, se apropriando e entrando no campo, para que se estabeleça
uma base mínima para que o diálogo se estabeleça.

O início de cada processo de patrimonialização de um bem cultural de natureza


imaterial geralmente é marcado por uma mistura de interesse e curiosidade com
um sentimento de desconfiança, distância e desinformação por parte desses dois
atores (Estado e sociedade); desconfiança principalmente por parte dos detentores
acostumados com a falta de acesso aos serviços públicos, com as promessas nunca

112
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

cumpridas, com ingerências e atuações desconsideradas por parte órgãos estatais.


Muitas vezes, não é fácil mudar esse panorama construído durante décadas ou até
séculos de políticas públicas, em várias áreas, partidas “de cima para baixo”.

E este é o maior cuidado que o gestor dos poderes públicos deve ter, talvez. Uma coisa é
uma perspectiva de proporcionar o reconhecimento do diverso como valor patrimonial
e o Estado promover a inclusão de várias referências culturais no rol do patrimônio
nacional, sob sua própria perspectiva na tomada de decisão ao longo da execução da
política. Outra coisa é, além de reconhecer o valor patrimonial de expressões das culturas
populares, trazer os detentores desses conhecimentos e práticas para conversar com o
Estado; convidá-los a participar da produção de conhecimento sobre o bem cultural
em questão e participar das decisões sobre como será a política; e, ainda, participar
como gestor de recurso para execução dessas decisões. E para que isso ocorra, os
pontos de vista tanto dos detentores quanto do Estado, devem ser considerados e
deve ser estabelecida uma zona de consensos em torno do que patrimonializar e o que
fazer no processo de salvaguarda.

Não se trata de um processo fácil, pois o conflito é inerente a todos os processos sociais
humanos. E como já apontado, a patrimonialização de um bem cultural é um processo
social. Portanto, a elaboração e implantação de uma política participativa passam,
acima de tudo, pelo estabelecimento de uma nova relação entre as bases sociais e o
Estado: a constituição de um diálogo. Apesar dessa nova relação não estar pautada em
iguais condições de poder, é necessário que ambos os lados reformulem suas antigas
concepções um do outro para criar laços de confiança, consenso e cooperação entre
si. Sem eles, uma política baseada na responsabilidade compartilhada e na gestão
participava não terá as condições primordiais para funcionar.

No campo estabelecido a partir da política para o Patrimônio Imaterial, além do Estado


e detentores, existem outros atores e múltiplos e imprevisíveis interesses em disputa.
Todo o trabalho é, no fundo, um exercício (muitas vezes extenuante) no sentido de
superação dos conflitos em função de interesses comuns. O óbvio e o mais primitivo
sentido de política. A consolidação e a execução da política nesta perspectiva
dependem, é claro, de vontade política, comprometimento e empenho tanto dos
quadros do Estado quanto dos detentores do conhecimento e prática patrimonializado.
Esse, talvez, seja o ponto exato que determina o sucesso ou o insucesso de cada processo.

Por um lado é preciso que fique estabelecido o compromisso mínimo que o Estado
deve assumir: algum aporte financeiro e suporte técnico e operacional aos detentores
para gestão e desenvolvimento compartilhado de ações de patrimonialização;
transferência de recursos e empoderamento dos detentores, mediação de questões,
encaminhamento de demandas cabíveis à sustentabilidade do bem patrimonializado;
em contrapartida à incorporação das referências dos vários grupos, comunidades e
segmentos sociais ao rol de bens culturais reconhecidos como patrimônio e signos da
identidade nacional.

113
PATRIMÔNIO IMATERIAL

Por outro lado é fundamental o compromisso da base social de detentores em se


mobilizar, se capacitar e participar da execução da política. Nesse sentido, ao longo da
última década, é importante destacar também a importância de instituições parceiras na
operacionalização das ações voltadas para as bases sociais produtoras de cultura; como
mediadores, apoiadores, colaboradores, cooperadores, financiadores, fortalecedores
ou até gestores provisórios de planos de salvaguarda.

O texto “Avaliação dos planos e ações de salvaguarda de bens culturais registrados


como Patrimônio Imaterial brasileiro”77, publicado em 2012, expõe bem a variedade de
ações possíveis de serem desenvolvidas e de situações possíveis em relação à gestão
dos processos de salvaguarda dos primeiros oito bens registrados. Contem também
reflexão sobre os sucessos e os problemas encontrados, no sentido de balizar as diretrizes
futuras. Também é um documento da maior relevância a tese de doutoramento de
Rívia R. Bandeira de Alencar: O Samba de Roda na Gira do Patrimônio. Trata se de uma
etnografia primorosa de um processo de patrimonialização considerado, dentre outros,
bem sucedido e exemplar no que tange à participação dos sambadores e sambadeiras;
embora tenha sido um processo tenso, complexo, com muitas questões e problemas
de várias ordens.

A proposição de política participativa não é uma proposição utópica, mas possibilidade


concreta observada que desponta e pode ou não ser valorizada e de fato consolidada
como meio e meta da política. Tudo depende de governo, direção, empenho de técnicos
– por parte do Estado; e de conhecimento, entendimento, empenho e apropriação
da proposta, construção de demandas nesse sentido e ampliação da mobilização por
parte da sociedade.

Identificação, Registro, salvaguarda e participação social


A política para o patrimônio imaterial que vai se estruturando no IPHAN
tem sido a proposição de um diálogo, um movimento de interlocução
entre Estado e segmentos sociais no sentido de produzir e sistematizar
conhecimento sobre os universos culturais em questão; promover a
mobilização dos segmentos sociais no debate sobre aspectos e razões do
interesse em um processo de patrimonialização; identificar demandas
executar ações de salvaguarda. É muito importante a identificação
dos atores envolvidos – sejam eles pessoas, grupos, comunidades,
segmentos sociais e instituições e das tensões sociais mais evidentes em
relação ao bem cultural e o segmento social que o pratica. O esforço é no
sentido de construir um consenso em torno do que e como expressões
culturais devem ser patrimonializadas. Esse consenso não é natural, dado,
mas construído entre os segmentos ou atores da política.
Ao longo desta última década observou-se que para além da pesquisa,
aplicação de metodologia de inventários e produção de conhecimento
sobre as referencias culturais significativas a grupos e comunidades
77. VIANNA; SALAMA, 2012.

114
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

– uma forma clássica de salvaguarda, digamos assim –, o processo


de identificação, quando envolve os detentores no processo, tem
um enorme potencial para a ampliação e efetivação da mobilização
de mais detentores e parceiros, contribuindo para a formação de
“quadros” entre detentores e parceiros na implementação e no
acompanhamento dos projetos. A identificação é um procedimento
para produzir e sistematizar conhecimento, promover mobilização,
mediação e interlocução, fóruns de discussão, de modo a catalisar
a construção das políticas de salvaguarda de modo participativo,
sustentável e favorável aos grupos e comunidades envolvidas.
A pesquisa deve derivar em ações de salvaguarda, e assim, a imple-
mentação de políticas para o patrimônio imaterial, de modo ideal, é de
médio e longo prazos e só têm sentido se levada a cabo pelo Estado
e segmentos sociais incorporadas no modus vivendi dos grupos em
questão. Não impostas, mas propostas e incorporadas pelo coletivo.
Essas ações foram sistematizadas pelo IPHAN em treze tipos que
vão de oficinas para transmissão de saberes tradicionais no âmbito
dos grupos e comunidades; oficinas de capacitação para gestão de
projetos; solução de matérias-primas; adequação de espaço físico,
pesquisa e documentação feitas pelos próprios detentores; edição e
difusão de resultados de pesquisa e outros conteúdos etc.78 Assim, a
pesquisa e a documentação não são necessariamente suficientes, mas
idealmente servem de ponto de partida para ações de salvaguarda.
Um dos outros instrumentos organizadores e relevantes da política
para o patrimônio imaterial no Brasil é o Registro – ato análogo ao
tombamento dos bens materiais. Desde sua gênese o Registro não
cria direitos, como ocorre no tombamento. Mas idealmente pode
promover a mobilização da sociedade em torno do valor e da
salvaguarda de processos culturais. É ato declaratório do Estado de
reconhecimento da relevância patrimonial de expressões culturais.
Não cria direitos, mas pode subsidiar decisões e jurisprudências sobre
direitos relativos aos bens culturais registrados.
A instrução de um processo de Registro requer pesquisa documental
e de campo, mobilização e consenso social sobre motivações e propó-
sitos; argumentação do valor patrimonial de uma expressão cultural;
diagnósticos sobre a vulnerabilidade e recomendações para a salva-
guarda do bem cultural. Trata-se tanto de um processo administrativo
quanto de um verdadeiro processo social de mobilização; o qual cul-
mina com uma inscrição em um dos livros específicos do patrimônio
imaterial: Celebrações, Lugares, Saberes, Formas de Expressão.
O Registro é, assim, uma culminância de um processo jurídico-admi-
nistrativo e de um processo social que – espera-se – deve ter desdo-
bramentos e tantas outras culminâncias com a continuidade da do-

78 Ver texto citado, VIANNA; SALAMA, 2012.

115
PATRIMÔNIO IMATERIAL

tação orçamentária e mobilização institucional e social em torno da


salvaguarda do bem cultural em questão. É previsto uma reavaliação
do registro a cada dez anos.

Desde 2010, a construção de um plano de salvaguarda e instituição de um comitê


gestor com parceiros e base social representada tem sido recomendada como primeira
providencia para a salvaguarda após o registro de um bem cultural como patrimônio
imaterial. A experiência acumulada permite observar que um dos meios eficazes de
garantir a mobilização e a participação dos segmentos que cultivam um bem cultural
registrado e parceiros potenciais após o ato do registro é a criação de um plano de
salvaguarda. Este plano é idealmente implementado e acompanhado por um comitê
gestor composto por partes interessadas da sociedade civil e, em maioria, os detentores
dos saberes. Também são importantes os termos de cooperação técnica onde são
definidos os papéis e atribui ções dos parceiros neste comitê gestor. Tanto o plano
de salvaguarda e comitê gestor são instrumentos por excelência para fundar as bases
da gestão participativa da salvaguarda dos bens registrados. Esta recomendação é
fruto do amadurecimento sobre os procedimentos necessários para uma salvaguarda
minimamente estruturada e integrada aos parâmetros do PNPI e da burocracia estatal,
com base nas experiências em curso.
Hoje, então, nem todos os bens registrados possuem planos de salva-
guarda e comitê gestor, a maioria deles é objeto de ações pontuais ou
nenhuma ação por não haver mobilização ou consenso de ambas as
partes, detentores e IPHAN. Por outro lado, observam-se, claramente,
experiências extremamente bem sucedidas no sentido de mobiliza-
ção e encaminhamento de plano de salvaguarda e consolidação da
proposta de gestão participativa. Os casos são diversos, dependendo
da conjuntura de cada bem, encontramos uns com maiores dificulda-
des e entraves nos processos.
O fato desafiador é que nem o Estado e os poderes públicos, nem a
sociedade civil estavam e estão plenamente preparados para o diálogo
e a gestão compartilhada. A experiência tem demonstrado que há
muitos problemas no sentido de o Estado simplificar e esclarecer
procedimentos de modo a incluir a base social na gestão de seu
patrimônio. Por outro lado há muitas dificuldades da base social em
apreender os códigos e procedimentos normativos que condicionam
a política pública. Há um caminho nesse sentido a percorrer.

Os processos de conveniamento – necessários quando há transferência de recursos


públicos do estado para segmentos sociais gestores – tem sido exercícios extenuantes
para ambas as partes Estado e instituições gestoras (de detentores ou mediadoras),
um aprendizado e busca incessante por acordo e entendimento nos procedimentos
da burocracia. Obviamente que a política participativa se dá a partir de uma vontade
do Estado e dos segmentos culturais que desencadeia exercício mútuo de escuta,
compreensão e aprendizado e superação de conflitos e incomensurabilidades. Não

116
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

é um processo fácil, nem rápido. Cada caso é um caso. E o processo é difícil, pois o
Estado tem seus paradoxos e ao mesmo tempo em que propõe política participativa e
inclusiva, tem instrumentos e procedimentos excludentes. Por outro lado, a sociedade
civil organizada (detentores e mediadores) em instituições representativas de seus
segmentos não domina os códigos e procedimentos da burocracia estatal – o que
condiciona o desinteresse pelo assunto.

O processo que leva uma comunidade tradicional a organizar-se segundo os


moldes do Estado (institucionalização de grupos informais) para que ela esteja apta
a captar e executar recursos públicos é muito delicado. Além disso, deve-se levar em
consideração as formas de organização próprias dessas comunidades, seus processos
tensões, conflitos; os tempos e dinâmicas necessárias para apropriação da política por
parte dos detentores; e, principalmente, suas necessidades básicas de infraestrutura
e serviços públicos. A falta de cuidado pode gerar efeitos completamente contrários
aos objetivos da política. O processo de salvaguarda dos bens culturais imateriais pode
ser desastroso, quando não impotente ou inócuo (não gerando nenhuma espécie
de benefício para os bens e detentores dos bens patrimonializados), quando não se
observam esses limites inerentes à política participativa.

Conclusão

Alguns processos de salvaguarda de bens registrados apontam para a possibilidade


concreta de ampliação significativa para o conceito de salvaguarda em direção à ideia
de “política participativa” – quando a base social é chamada a participar da formulação,
gestão e execução das políticas de salvaguarda. Trata-se de uma possibilidade de
ampliação do papel dos segmentos que cultivam os bens registrados no processo
de salvaguarda – os produtores de cultura passam a ser considerados, além de objetos
e agentes da política, uma mobilidade da condição de objetos/pacientes – que são
escutados para orientar e consentir a política, para a condição de agentes – planejadores
e gestores em parceria direta com o Estado.

Nesse processo salvaguarda vai além do sentido primal da “defesa do folclore” e passa
a conter também a ideia de “protagonismo social”. Alguns processos de salvaguarda
apontam claramente para esta possibilidade tanto pela gestão direta da base social,
quanto pela gestão de instituição parceira com a participação da base social na definição
do plano de ação. Entretanto, o que se observa é que as instituições representativas das
“bases sociais dos bens registrados“ nem sempre estão dispõe dos recursos humanos,
técnicos, financeiros para a administração de projetos desta natureza. Nesse sentido
o papel dos mediadores tem sido fundamental, sobretudo no estabelecimento do
convênio. Mas também pela maior capacidade de proporcionar o envolvimento de outras
intuições parceiras e pela disponibilizarão de corpo técnico já capacitado e habituado com
os procedimentos de conveniamento. A presença de um gestor mediador indica que os
detentores não estão sozinhos com o IPHAN no desafio de executar a salvaguarda e que a
responsabilidade pela execução, contrapartida e prestação de contas, não estará recaída

117
PATRIMÔNIO IMATERIAL

somente na responsabilidade dos detentores. O cuidado de não criar problemas maiores


do que o que se possa administrar é fundamental no sentido de que as transformações
geradas nos grupos e comunidades, a partir da salvaguarda, não venham acompanhadas
de transtornos desnecessários nas rotinas e nas vidas das pessoas.

Assim, na lida com o Patrimônio Cultural, se há um lado fascinante de aproximação


com belezas imensuráveis, obras primas da expressão humana, signos bárbaros de
processos históricos e identidades sociais constituintes da diversa nação brasileira;
há também um lado árduo na pesquisa e na gestão de política para patrimônio
cultural no Brasil. Não se pode ignorar e passar ao largo de um universo denso de
desigualdades e exclusões, alguns direitos sociais instituídos, mas muito ainda por se
fazer; procedimentos burocráticos, conflitos de interesse, dificuldade de entendimento
e diálogo para a construção do consenso em torno das ações de patrimonialização de
expressões culturais.

Nem os gestores técnicos do Estado e parceiros institucionais, nem os detentores dos


saberes e produtores diretos das expressões culturais patrimonializadas estão isentos
de mergulhar neste universo. Hoje em dia trabalhar nesta área exige sim, tanto a
sensibilidade para a percepção e inclusão social, valorização da diversidade cultural
e sensibilidade para a apreciação e valorização de referências culturais; quanto à
disposição para procedimentos no âmbito da engrenagem burocrática do Estado para
trabalhar em prol do difícil diálogo entre o Estado e a sociedade em seus segmentos,
grupos, comunidades.

Referências Bibliográficas

ALENCAR, Rivia R.B O samba de roda na gira do patrimônio. 2010. Tese (Doutorado em
Filosofia e Ciências Humanas). – Universidade Estadual de Campinas.Disponível em:
<http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000783559>.

TURNER, Victor W. O processo ritual. Petrópolis: Ed. Vozes, 1974. p. 116-159.

VIANNA, Leticia C. R.; SALAMA, Morena R. L. Avaliação dos planos e ações de salvaguarda
de bens culturais registrados como patrimônio imaterial brasileiro. In: CALABRE, Lia (Org.).
Políticas culturais: pesquisa e formação. São Paulo: Itaú Cultural; Rio de Janeiro: Casa
Rui Barbosa, 2012. p. 65-87. Disponível em: <http://d3nv1jy4u7zmsc.cloudfront.net/
wp-content/uploads/2013/01/Politica-Culturais-Pesquisa-e-Forma%C3%A7%C3%A3o.
pdf>.

Fórum de Discussão

O texto a seguir é a compilação dos debates realizados entre professor e alunos nos
Fóruns de discussões da plataforma de educação a distância, tendo como base o texto
autoral do professor, publicado acima, e as seguintes perguntas orientadoras:

118
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

1. De acordo com o texto, descreva e problematize, com suas palavras, qual a


diferença da abordagem da política voltada para o folclore e a política voltada
para o Patrimônio Imaterial, no que tange a questão da participação social na
salvaguarda.

2. Escolha uma expressão cultural de sua cidade que seja passível de


reconhecimento como Patrimônio Imaterial e descreva o contexto socio
político em que se insere, tendo em vista a perspectiva da salvaguarda (não é
para descrever a expressão cultural, mas o lugar desta expressão no contexto
da cidade, quais são as condições em que existe, como a prefeitura e o governo
municipal, os cidadãos e a mídia, se comportam em relação aos detentores e a
expressão em si, qual o panorama político, enfim).

3. Escolha uma expressão cultural de sua cidade que seja passível de reconhe-
cimento como Patrimônio Imaterial e, em função do contexto sociopolítico
em que se insere, estabeleça, hipoteticamente, um comitê gestor ideal, e
recomendações de salvaguarda tendo como princípio a gestão participativa
do patrimônio.  

Uma das discussões desenvolvidas nessa disciplina foi a da participação no âmbito da


Política de Patrimônio Cultural Imaterial e nas ações desenvolvidas pelos folcloristas,
durante o início do século XX. As diferenças na abordagem de folclore e PCI são
resultantes de perspectivas bem diversas: para aquela, a salvaguarda se restringia em
pesquisa e ações pontuais e a participação social na salvaguarda começa a existir com
a política de Patrimônio Imaterial. Não houve um momento em que o folclore passou
a ser tratado como patrimônio. Na realidade os dois conceitos coexistem ainda hoje e
nem tudo que é tido como folclore é tratado como patrimônio. O Patrimônio Cultural
é um recorte político, jurídico, sobre expressões culturais. E nos dias de hoje vemos
que há muitas expressões do folclore que vão sendo reconhecidas e tratadas como
PCI, outras não.

O tratamento para o PCI é diferenciado, pois há uma participação dos detentores nos
processos de salvaguarda e existem instrumentos como inventários, Registro, e ações
específicas voltadas para a sustentabilidade do bem cultural. Para o folclore há mais
uma ação de apoio aos eventos que não é propriamente uma salvaguarda, como
entendida pelo IPHAN. Nesse sentido, a salvaguarda do PCI é uma proposição de política
complexa que, envolve várias instâncias de ações e articulações, visando uma ação
mais sistemática, programática de longo prazo. Além disso, implicam na participação
dos detentores e poderes públicos na identificação de pontos vulneráveis que sejam
estruturais, tais como os modos de transmissão dos saberes, infraestrutura física,
material, difusão, valorização dos indivíduos, mobilização permanente, capacitação
para gestão, pesquisa adensada sobre o bem cultural e seu contexto contemporâneo,
além de articulação interinstitucional para solução de problemas que fogem ao âmbito
e governabilidade dos órgãos de cultura.

119
PATRIMÔNIO IMATERIAL

Interessante observar que enquanto as referências da cultura popular são tratadas


como folclore, os detentores são anônimos criadores, suas criações não tem autoria
e a titularidade é atribuída ao domínio público. As pesquisas não têm anuência e
as apropriações sequer comunicadas, sem repartição de benefícios. Além disso, os
atos de pesquisar e divulgar já são considerados reconhecimento e salvaguarda. Ao
passo que, quando se inaugura a política para o Patrimônio Imaterial, passa a ser da
maior relevância o reconhecimento nominal dos detentores, da autoria. Passa a ser
inadmissível a apropriação sem consentimento e a repartição de benefícios e lucros
por quem quer que seja.

É muito importante que a participação dos detentores se dê desde o início do


processo de instrução do Registro para que se consolide no processo de salvaguarda.
A participação é importante na definição ou recorte da expressão cultural a ser
patrimonializada; no diagnóstico da conjuntura e elaboração das recomendações de
salvaguarda; na elaboração do plano de salvaguarda; e participação ativa em comitê
gestor que implementa e monitora este plano.

A experiência mostra o quão difícil é ter esta mobilização desde o início e mantê-la depois
do Registro, na implementação de ações de salvaguarda. É muito comum a compreensão
de que o Registro é bastante, como ato de reconhecimento. Mas o fundamental é que
os detentores estejam imbuídos desta ideia de que são detentores de um patrimônio,
principalmente num contexto em que há falta de estrutura nas três esferas de poder
para implementar e dar sustentabilidade às ações desenvolvidas na área do Patrimônio
Cultural em geral e imaterial em particular. Nesse sentido, é importante um esforço de
integração e relação de complementaridade entre as esferas de poder, federal, estadual
e municipal, os detentores, as universidades e demais parceiros.

Por outro lado, há muitas fragilidades nas relações entre as esferas de poder e as
bases sociais e o desafio é consolidar as instâncias de atuação de modo que a política
não fique tão vulnerável e dependente da vontade política de uns ou de outros
governos. Claro que cada gestão tem que ter suas diretrizes, mas a estruturação da
política e a consolidação da relação com os detentores precisam ter continuidade não
obstante as mudanças que possam ocorrer na gestão dos governos. Para tanto, uma
das condições básicas é a socialização dos objetivos e instrumentos da política, dos
conceitos e procedimentos. Pois a política participativa tem base no diálogo entre os
detentores e os gestores. É preciso, então, que os gestores conheçam minimamente
o universo simbólico e a visão de mundo dos detentores e vice e versa. É um exercício
de entendimento, superação de conflitos e construção de consenso. Trata-se de
processo social que não tem fórmula pronta, mas princípios e objetivos gerais a serem
observados na especificidade de cada caso.

É importante que no processo de salvaguarda vá ficando claro, quais são os limites,


alcances e implicações da política. Que perspectivas de empoderamento dos
detentores ela trará, no que diz respeito à manutenção dos processos de produção e

120
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

reprodução das referências culturais em questão. E para isso não há resposta pronta,
tudo depende da situação.

Nesse sentido, uma questão séria é o conflito, a falta de comunicação e entendimento e


a desarticulação das esferas de poder. Além das dificuldades todas nos procedimentos
para a implementação da política, no que tange à dimensão administrativa, burocrática.
Por isso, no âmbito da salvaguarda do Patrimônio Imaterial registrado pelo IPHAN, é
recomendável que os comitês gestores sejam integrados em maioria pelos detentores,
somando-se as instâncias municipal, estadual e federal de política para o patrimônio
cultural e outros parceiros interessados ou necessários para o encaminhamento de
questões específicas ao bem cultural em questão.

Dessa forma, outra dimensão importante a ser considerada é a da pragmática social:


quem são os atores no contexto. Onde estão as zonas de conflito e convergência de
interesses. Aqui está o diferencial da política. Observando essa dimensão se pode
estabelecer o fórum de diálogo e debate entre as partes interessadas de maneira à
construção de consenso para política de interesse comum. A questão mais importante,
considero, é como se dá a mobilização e a divisão dos papeis entre os atores e agentes
da política nessa dimensão da pragmática social. Em outras palavras, como se define
a proporcionalidade de participação de detentores e demais parceiros em um comitê
gestor e a atribuição de cada membro.

2.6 Legislação Brasileira (PNPI, estados e municípios)

Ementa: A institucionalização do patrimônio como campo de estudos e ação política


no Brasil. Instrumentos e políticas públicas para o Patrimônio Cultural: os efeitos e
desafios das políticas de patrimônio a partir de seus instrumentos de ação. Legislação
vigente nos planos federal, estadual e municipal.

Professor: Mário Pragmácio

Advogado e professor do curso de graduação em Produção Cultural da Universidade


Federal Fluminense (UFF), da Pós-graduação em Produção Cultural e do MBA em Gestão
Cultural da Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro. Atua nas seguintes áreas:
direitos culturais, direito autoral, Patrimônio Cultural, políticas culturais e economia
criativa.

Direitos culturais, políticas culturais voltadas aos bens de natureza imaterial e os


desafios à construção do Sistema Nacional do Patrimônio Cultural

Ressalvas introdutórias

Antes de começarmos a tratar da legislação brasileira concernente ao patrimônio


imaterial, é necessário fazer algumas ressalvas. Primeiramente, é importante esclarecer
que a intenção desse texto é auferir subsídios para que os alunos – construtores do

121
PATRIMÔNIO IMATERIAL

Sistema Nacional de Patrimônio Cultural – possam, num futuro breve, dominar a


legislação preservacionista, evitando o contrário: que fiquem reféns dos ditames legais.

Para isso, iremos estimular o tempo inteiro, a capacidade reflexiva e crítica, a fim de
compreender que devemos nos beneficiar das inúmeras possibilidades de aplicação
da legislação vigente e não tê-la como desafeta ou como um empecilho às atividades
cotidianas de preservação.

Além disso, partiremos da ideia de que a lei, tal como o bem de natureza imaterial, é
mutável. E muda de acordo com a sociedade; na verdade, de acordo com os valores da
sociedade. Um exemplo claro e oportuno disso é o nosso Código Penal de 1890, que
reservava o Capítulo XIII – Dos vadios e Capoeiras – para determinar:
Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e
destreza corporal conhecida pela denominação Capoeiragem: andar
em carreiras, com armas ou instrumentos capazes de produzir lesão
corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa
certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal. Pena – de prisão
celular por dois a seis meses.79

Atualmente, como todos sabem, a capoeira não é mais crime. Muito pelo contrário. Os
valores mudaram de tal forma que esta manifestação cultural passou a ser reconhecida
oficialmente como integrante do Patrimônio Cultural brasileiro, ao ser registrada, em
2008, de acordo com o Decreto n° 3551/2000.80

Interessante que essa “questão de valor”81 ainda pode ser encontrada na atualidade.
No Rio de Janeiro, por exemplo, do ponto de vista político-ideológico, há um embate
recente que discute, sobretudo, se o funk carioca é cultura ou crime; se deve ser
repreendido dentro de um contexto de políticas de segurança pública ou reconhecido
como uma manifestação cultural legítima.

Alguma semelhança com a capoeira?

Ademais, esperamos debater, ao longo deste curso, algo que vai além do simples
conhecimento literal da lei ou da análise dos valores que estão nela entranhados; é
indispensável termos a noção de que estamos lidando, especialmente quando se fala
de bens de natureza imaterial, com o pleno exercício dos direitos culturais, os quais foram
expressamente previstos pelo art. 215 da Constituição Federal de 198882. Como veremos
a seguir, trata-se de direitos fundamentais reconhecidos por nossa Constituição, que são
tão importantes como o direito à saúde, à educação, à moradia etc.

79. BRASIL, 1890.


80. Na verdade, foram dois bens que foram registrados: a Roda de Capoeira, no Livro das Formas de Expressão e o Ofício dos
Mestres de Capoeira, no Livro dos Saberes. Sobre o assunto, do ponto de vista jurídico, vide: NETO; CUNHA FILHO, 2013, p. 6-21;
BRASIL, 2000.
81. FONSECA, 1997, p. 35-50.
82. BRASIL, 1988.

122
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

Entretanto, para falar em direitos culturais, principalmente para quem não é do direito83,
é necessário fazer algo que nós, juristas, não temos o costume de praticar: abrir a nossa
linguagem técnica, isto é, abolir o famoso “juridiquês”. Tarefa nada fácil, é bom lembrar.
Claro que, aqui ou acolá, pode escapar um termo em latim, um brocardo jurídico, uma
citação ipisis litteris, mas tenham certeza que evitaremos, ao máximo, esse jargão.

Data venia aos meus colegas jurisconsultos que participam deste curso, mas isso é
extremamente necessário.

Direito da cultura e direitos culturais

No direito, a grande maioria dos estudos jurídicos brasileiros sobre Patrimônio Cultural
é efetuada pelo direito ambiental. Alguns importantes autores deste campo84 – que
chamaremos de jusambientalistas – entendem que o Patrimônio Cultural é uma
subárea do direito ambiental.85
Por outro lado, algumas poucas vozes dissonantes defendem que o Patrimônio Cultural
é um tema a ser estudado pelo direito da cultura, ramo do direito que ainda está em
fase de solidificação no Brasil86. Não pretendemos, aqui, aprofundar essa discussão
epistemológica87, mas é importante saber que há, sim, essa peleja (por mais que
prevaleça a visão ambientalista).

Mas retomando: o que é o Direito da Cultura? O que são os direitos culturais?

Francisco Humberto Cunha Filho, um dos principais teóricos sobre o direito da cultura
no Brasil, explica o contexto de criação desse novo ramo da ciência jurídica:
A [...] expressão – direito da cultura – permite vislumbrar “o” direito
que rege relações específicas e tangíveis, com base em elementos
palpáveis do universo cultural observado. Pontier, Ricci e Bourdon [...]
sustentam que o desenvolvimento de políticas públicas específicas
forjou a criação do referido direito, que passou a ser evidentemente
necessário, por pelo menos três motivos: 1) tornou-se imperioso
regulamentar os serviços públicos de cultura, que passaram a ser
ofertados; 2) a ação estatal criou o respectivo poder de polícia
cultural, exercível sob disciplina e controle; e 3) o impulso das
políticas gerou mais fluxos e relações culturais, das quais decorreu
natural crescimento quantitativo e qualitativo de litígios culturais,
que passaram a exigir parâmetros para a solução. Monnier e Forey
[...] comungam com esse entendimento e precisam que o direito

83. O campo do patrimônio pode ser considerado MIT–disciplinar, ou seja, multi-inter-transdisciplinar. Não obstante essa
diversidade de olhares é importante esclarecer que o lugar de fala do autor deste trabalho é o direito. Como consequência
disso, pretendemos auxiliar a discussão não apenas de forma instrumental – como costumeiramente é compreendida a
participação de juristas nesse debate, mas também de forma conceitual. Por que não?
84. Não podemos deixar de destacar uma grande produção teórica advinda de membros do Ministério Público, tanto estadual
como federal, os quais capitaneiam as formulações teóricas sobre Patrimônio Cultural, sob o viés ambientalista, interferindo,
inclusive, no conjunto das decisões dos tribunais sobre este tema, isto é, na jurisprudência.
85. Subárea denominada de meio ambiente cultural.
86. Como será comentado a seguir, o direito da cultura se dedica, também, ao estudo dos direitos autorais, das leis de incentivo
à cultura, das liberdades de manifestação artístico-cultural, etc. Sobre essa nova área que está surgindo, vide o número 11 da
Revista Itaú Cultural. Disponível em: <http://droitsculturels.org/wp-content/uploads/2012/08/ObservatrioIta%C3%B9Cultural.
pdf>. Acesso em: 05 mar. 2013.
87. Sobre o assunto, vide o trabalho de Carla Amado Gomes (2001).

123
PATRIMÔNIO IMATERIAL

da cultura passou a receber tratamento de disciplina autônoma na


França somente a partir dos anos 1990. Mesmo reconhecendo a
heterogeneidade e a multiplicidade de objetos, mencionam alguns
como exemplo: os monumentos históricos, os arquivos, os vestígios
arqueológicos, as criações do espírito, a língua, os livros [...].88
Os direitos culturais, por sua vez, seriam aqueles direitos fundamentais que são
encontrados na nossa Constituição Federal e que se referem à cultura. De maneira
simplificada – e aparentemente óbvia – seria isso.

Na verdade, isso seria simples se não fosse a polissemia da palavra cultura. Sem adentrar
a este inglório trabalho – para não dizer “armadilha” – de identificar o que é cultura,
sobretudo o que é cultura para o direito89, utilizaremos a categorização proposta por
Humberto Cunha Filho (2000), a qual sugere que o universo dos direitos culturais
seriam aqueles referentes às artes, à memória e aos repasses de saberes.

Fazendo um paralelo com um ramo do direito bastante presente no nosso dia a dia
– o direito do trabalho –, podemos fazer a seguinte analogia: o direito do trabalho
é o ramo da Ciência Jurídica que estuda as relações de emprego, ao passo que os
direitos trabalhistas são aqueles garantidos pela nossa Constituição e assegurados
pela consolidação das leis do trabalho, como por exemplo, o FGTS, 13º salário, férias,
assinatura da carteira, hora extra etc. O direito da cultura, portanto, seria o ramo do
Direito que estuda as relações da cultura, enquanto que os direitos culturais são aqueles
direitos fundamentais culturais que podemos extrair da Constituição Federal, como,
por exemplo, o direito de livre manifestação artístico-cultural, o direito de acesso aos
bens culturais, o direito de fruição e preservação do Patrimônio Cultural etc.

Resumindo: o direito do trabalho está para os direitos trabalhistas (FGTS, férias, 13º
salário), assim como o direito da cultura está para os direitos culturais (acesso à cultura,
liberdade de manifestação artística, fruição do Patrimônio Cultural).

Os principais direitos culturais que iremos investigar neste curso são os que José Afonso
da Silva (2001) identificou ao analisar o conjunto de referências constitucionais ao tema,
quais sejam: direito de acesso às fontes da cultura nacional; direito de difusão da cultura;
liberdade de formas de expressão cultural; liberdade de manifestações culturais; direito-dever
estatal de formação do Patrimônio Cultural brasileiro e de proteção dos bens de cultura.

Por que compartilhar?

Todos já devem ter percebido que sempre que um jurista ou especialista em patrimônio
vai argumentar ou justificar um raciocínio com um viés mais pragmático, a Constituição
Federal é citada. Aqui mesmo, no início desse texto, quando fazíamos as ressalvas
iniciais, o artigo 215 da Constituição foi mencionado. Mas qual a razão disso? Por que
os juristas sempre utilizam a Constituição Federal para embasar seus argumentos?

88. CUNHA FILHO, 2011, p. 118.


89. Sobre esse assunto, vide o primeiro capítulo do livro de Rodrigo Vieira Costa (2011).

124
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

A nossa Constituição de 1988, que historicamente é denominada de Carta Cidadã,


mas nós, jusculturalistas, podemos, sem hesitar, chamá-la de Carta Cultural90, é a nossa
lei maior.

Isso significa dizer que dentro de uma hierarquização das normas jurídicas, não há
Lei mais importante que a Constituição. É ela que rege todo o ordenamento jurídico
brasileiro. Se pensarmos num sistema piramidal, a Constituição Federal de 1988 estaria
no topo. Abaixo dela, no meio da pirâmide, estariam as leis91 e, na base, estariam os
decretos e as portarias. A figura abaixo pode ajudar na visualização:

Esse escalonamento foi criado por Hans Kelsen, um importante jurista austríaco do século
XX e embasa, até os dias de hoje, todo o nosso sistema jurídico. Ele é muito importante para
nós, pois demonstra que uma norma hierarquicamente inferior, não pode contrariar uma
norma superior e nenhuma, repito, nenhuma norma pode ferir a Constituição Federal.

Quando isso acontece – uma norma ferir a Constituição Federal – é o que chamamos
de inconstitucionalidade!

Por exemplo, eu não posso criar uma lei – infraconstitucional, portanto – que diga que,
a partir de agora, no Brasil, só poderão ser compostas e executadas publicamente as
músicas já existentes relacionadas ao samba, pois essa lei fere, além do princípio da
diversidade cultural, o direito à liberdade de manifestação artístico-cultural, que está
disposto no inciso IX do art. 5º da CF/8892.

Por isso, é indispensável conhecermos os ditames constitucionais ou pelo menos os


princípios constitucionais culturais, pois tudo gira em torno do que a Constituição
permite ou faculta.

Além disso, é a nossa Constituição que vai estruturar o que cada ente federativo –
União, Estados, Distrito Federal e Municípios – pode fazer em relação ao patrimônio
cultural. Noutras palavras, é a CF/88 que vai estabelecer as chamadas competências93.
Afinal, quem tem competência para legislar sobre Patrimônio Cultural? Quem tem
competência para preservar o Patrimônio Cultural?

Rodrigo Vieira Costa explica:


A Constituição da República de 1988 rejeitou, em parte, a ideia do
federalismo clássico norte-americano, no qual a distribuição de poderes
e repartição de competências dar-se-ia apenas entre a União e os
Estados-membros, inovando com vistas a uma maior descentralização
do poder ao eleger o Município como ente federado. Todos os entes,
90. Em razão das previsões destinadas à seara da cultura, tal como aponta Humberto, “a Constituição brasileira é abundante no
tratamento da cultura. Isso fica evidente no fato de que em todos os seus títulos há alguma ou até mesmo farta disciplina
jurídica sobre o assunto” (CUNHA FILHO, 2011, p. 119).
91 Em sentido estrito.
92 “Art. 5º - [...]: [...] IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de
censura ou licença” (BRASIL, 1988).
93 Competência não tem nada a ver com o sentido coloquial de habilidade ou destreza para empreender algo. Competências
aqui, no sentido jurídico, nada mais são do que as atribuições de cada ente federativo, ou seja, o que eles podem ou não
podem fazer em relação à determinada matéria, no nosso caso, no que tange ao Patrimônio Cultural.

125
PATRIMÔNIO IMATERIAL

em virtude da forma do Estado Federal, cujas características basilares


são a pluralidade de Estados e a harmonia associativa dentro de uma
ausência hierárquica entre seus ordenamentos, são autônomos.
Essa autonomia deriva diretamente da Constituição, conforme as
limitações da repartição de competências por ela criada.94
A Constituição de 1988, portanto, aponta como se materializa essa competência, mais
especificamente nos artigos 23, 24 (e 30), consoante veremos a seguir. Entretanto,
é importante saber que existem, basicamente, dois tipos de competência: 1) a
competência legislativa, ou seja, a de criar leis sobre Patrimônio Cultural e 2) a competência
administrativa, isto é, a de aplicar as leis em prol da preservação do patrimônio cultural.

Comecemos pela competência legislativa: quem – dos entes federativos – pode criar
leis sobre Patrimônio Cultural? A CF/88 trata desse assunto no seu art. 24, o qual
transcrevemos a seguir:
Art. 24 – Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar,
concorrentemente sobre:
[...]
VII – Proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e
paisagístico;
[...] (grifo nosso)95

O leitor mais atento logo percebe que a CF/88, no citado art. 24, excluiu o Município do
rol dos legitimados para criar leis que versem sobre o Patrimônio Cultural, atribuindo
essa competência legislativa somente à União, aos Estados e ao Distrito Federal, o que
gera, inevitavelmente, a pergunta: o Município, então, não pode criar leis em matéria
de Patrimônio Cultural?

Pode sim!

Apesar de, durante muito tempo, ter ecoado esta dúvida, ocupando os teóricos do
Direito por longos anos, atualmente isso é matéria ultrapassada. Na verdade, o art. 30 da
CF/88 permite que o Município legisle sobre Patrimônio Cultural. É que a Constituição
Federal não pode ser interpretada isoladamente, artigo por artigo. Há de se utilizar o
que os juristas chamam de interpretação sistemática, como se a Constituição fosse
um conjunto de mecanismos que se integram de forma lógica e harmônica. Nesse
raciocínio, o referido art. 30 viria a preencher a lacuna que o art. 24 deixou, integrando,
desta forma, o Município no rol dos legitimados, quando se referir aos assuntos de
interesse local, a criarem leis sobre Patrimônio Cultural. Assim dispõe o art. 30 da CF/88:
Art. 30 – Compete aos Municípios:
I – legislar sobre assuntos de interesse local;
II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;
[...]

94 COSTA, 2011, p. 44-45.


95. BRASIL, 1988.

126
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

IX – promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local,


observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.96

E o art. 30, como pode ser vislumbrado, além de criar a possibilidade de o Município
legislar em matéria de interesse local, já vem trazendo a previsão de como compatibilizar
essa competência com a dos outros entes federativos, ou seja, considerando que a
competência legislativa é de todos os entes federativos – da União, dos Estados, do
Distrito Federal e também dos Municípios – como fazer essa compatibilização?
Humberto Cunha Filho (2010, p. 78) nos ensina:
Para evitar essa balbúrdia algumas regras são constitucionalmente
estabelecidas. Em termos de competência legislativa, a União edita
apenas as normas gerais, ou seja, aquelas que podem e devem ser
aplicadas em todo o país; Os Estados, normas no mesmo sentido,
mas limitadas ao seu território; os Municípios ficam com as normas
de aplicabilidade local.

Noutras palavras, a própria CF/88 define as regras de conciliação dessa competência


legislativa, ao estabelecer que essa competência é concorrente e deve ser compatibilizada
da seguinte forma:
Nº Estado Nenhuma Apenas Legislação de Legislação Legislação Legislação Legislação
Legislação Legislação de patrimônio de Regis- de Registro de Registro de Patri-
Tombamento que contém tro de Bens de Bens de Pessoas mônio
patrimônio Imateriais Imateriais Cultural
imaterial e Pessoas Imaterial
1 AC X X
2 AL X X
3 AP X
4 AM X
5 BA X X X
6 CE X X X X
7 DF X X
8 ES X X
9 GO X
10 MA X X
11 MT X
12 MS X
13 MG X X
14 PA X
15 PB X X
16 PR X
17 PE X X X
18 PI X X
21 RJ X
19 RN X
Fonte: CAVALCANTI; FONSECA, 2008, p. 93.

96. BRASIL, 1988.

127
PATRIMÔNIO IMATERIAL

Assim, os Estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba e Pernambuco valeram-se da


inexistência de norma geral sobre o tema – que caberia à União – para criar sua própria
legislação de forma inaugural.

Tendo analisado a competência legislativa, vejamos o que a Constituição versa


sobre a competência de preservar o Patrimônio Cultural. Quem é que deve preservar
o Patrimônio Cultural? É unicamente a União, através do seu órgão de preservação
ao Patrimônio Cultural, o septuagenário IPHAN? Como fica o papel dos estados e
municípios, por meio de seus órgãos específicos? E a sociedade civil?

Novamente, invocamos a Constituição Federal. O art. 23 da CF/88 vem regulamentar


essa competência; a de criar leis. Assim diz a nossa Carta Magna:
Art. 23 – É competência comum da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios:
[...]
III – Proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico,
artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e
os sítios arqueológicos;
IV – Impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras
de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural [...]
(Grifo nosso).97

A CF/88, portanto, determina que todos os entes federativos – União, Estados, Distrito
Federal e Municípios – são competentes, de forma comum, para aplicar as leis de
patrimônio.

E mais: não cabe somente aos referidos entes federativos esta competência, tal como
apontou o art. 23, III e IV da CF/88. O famigerado art. 216, §1º da Constituição Federal,
determina que “o Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá
o Patrimônio Cultural brasileiro [...]”, ou seja, essa competência, que já era comum entre os
entes federativos, agora também deverá ser compartilhada com os cidadãos.

Ora, se todos os entes têm o poder-dever de aplicar as leis de patrimônio, isto é, empre-
ender políticas voltadas à preservação do Patrimônio Cultural, além da colaboração da
própria população, como fica isso na prática? Como compatibilizar essa competência
que é comum, ou seja, de todos? Quem vai determinar como a União, Estados, Distrito
Federal e Municípios irão agir em prol do Patrimônio Cultural? Como a sociedade civil
será integrada nessas ações? Como isso será estruturado na prática?

Sistema Nacional do Patrimônio Cultural: erigir e fortalecer

Como vimos no item anterior, diante da possibilidade caótica da competência


administrativa comum, conforme previsto no art. 23 da CF/88, é imperioso criar regras
de compartilhamento desta competência. Tal como defende Humberto Cunha Filho,
97. BRASIL, 1988.

128
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

“toda esta distribuição de poderes visa promover a integração de órgãos, otimizar


recursos, propiciar eficiência e universalidade no atendimento à população, o que
significa a organização sistêmica do setor considerado” (CUNHA FILHO, 2010, p. 78).

É nesse contexto que surge a ideia do Sistema Nacional de Patrimônio Cultural –


SNPC, que ainda está em fase de consolidação, o qual seria um subsistema do Sistema
Nacional de Cultura (SNC) e seria guiado por essa estrutura maior (SNC), com liberdade
e autonomia de criar sua própria configuração, observados, é claro, os princípios
constitucionais do SNC.

O SNC congrega diversos subsistemas (de museus, de patrimônio, de artes etc.) e foi
recentemente promulgado pelo Congresso, por meio da Emenda Constitucional nº
71/2012, que acrescentou à CF/88 o art. 216-A, com o seguinte caput:
Art. 216-A. O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime
de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui
um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas
de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os
entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o
desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício
dos direitos culturais. (grifo nosso).98

Notemos a menção ao pleno exercício dos direitos culturais que se tornou uma condi-
cionante à consecução dos objetivos do SNC, ou seja, o desenvolvimento humano,
social e econômico só será alcançado mediante o pleno exercício dos direitos culturais.

O §1º do mencionado art. 216-A estabelece, ainda, os princípios que regem o SNC,
dentre os quais destacamos aqueles que se referem à setorial do Patrimônio Cultural:
§ 1º O Sistema Nacional de Cultura [...] rege-se pelos seguintes
princípios:
I – diversidade das expressões culturais;
II – universalização do acesso aos bens e serviços culturais;
III – fomento à produção, difusão e circulação de conhecimento e bens
culturais;
IV  – cooperação entre os entes federados, os agentes públicos e
privados atuantes na área cultural;
V  – integração e interação na execução das políticas, programas,
projetos e ações desenvolvidas;
VI – complementaridade nos papéis dos agentes culturais;
VII – transversalidade das políticas culturais;
VIII – autonomia dos entes federados e das instituições da sociedade
civil;
IX – transparência e compartilhamento das informações;

98. BRASIL, 2012.

129
PATRIMÔNIO IMATERIAL

X – democratização dos processos decisórios com participação e


controle social;
XI – descentralização articulada e pactuada da gestão, dos recursos
e das ações;
XII - ampliação progressiva dos recursos contidos nos orçamentos
públicos para a cultura (grifo nosso).99

Como já visto anteriormente, a necessidade jurídica de pactuação em torno da


construção de um Sistema Nacional se dá em virtude das competências constitucionais
em matéria de Patrimônio Cultural. Entretanto, para garantir esse mandamento
constitucional, é necessário empreender políticas culturais não só estratégicas, mas
eficazes. Alexandre Barbalho (2008, p. 22), teorizando sobre o conceito de políticas
culturais, a partir do pensamento de Teixeira Coelho, indica-nos que:
[...] podemos retirar da definição proposta por Coelho (...) a indicação de
que a política cultural é um “programa de intervenções realizadas pelo
Estado, entidades privadas ou grupos comunitários com o objetivo
de satisfazer as necessidades culturais da população e promover o
desenvolvimento de suas representações simbólicas”. Lembrando que,
a partir das considerações acima, tais ‘necessidades da população’ não
estão pré-fixadas, nem são neutras, mas resultam da compreensão e
do significado que os agentes atuantes nos campos político e cultural
têm dessas necessidades e dos interesses envolvidos.

Novamente Barbalho, dessa vez utilizando o pensamento de Michel de Certeau,


apresenta-nos a importância de se conceber políticas culturais dentro de um
pensamento estratégico, a fim de empreender intervenções eficazes:

Para usar outros termos, poderíamos dizer que a política cultural é o pensamento
da estratégia e a gestão cuida de sua execução, apesar de esta gestão também ser
pensada pela política. Recorrendo a Certeau [...] a política cultural lida com o “campo de
possibilidades estratégicas”; ela especifica objetivos “mediante a análise das situações”
e insere “alguns lugares cujos critérios sejam definíveis, onde intervenções possam
efetivamente corrigir ou modificar o processo em curso”. Por sua vez, as decisões
indicadas por uma estratégia de política cultural colocam em ação determinada
organização de poderes que só se manifesta por meio de uma análise política.100

É assim que se compreende a importância das políticas culturais para o presente


curso. Elas são indispensáveis para se efetivar os preceitos normativos concernentes à
proteção do Patrimônio Cultural e operar habilidosa e eficazmente os mecanismos de
proteção ao Patrimônio Cultural brasileiro.

Entendemos que, se for bem concebido, o SNPC pode intervir e auxiliar, sobremaneira,
a otimização das já existentes políticas culturais preservacionistas. Trata-se, na verdade,

99. Idem.
100. BARBALHO, 2008, p. 21-22.

130
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

de um necessário pacto de gestão em prol da preservação do Patrimônio Cultural. É o


que o constitucionalista José Afonso da Silva defende:
A partir dessa concepção é possível pensar na constituição de um
sistema nacional de proteção ao patrimônio cultural que propiciará
melhores condições para racionalizar a aplicação dos recursos
constantes de programas de apoio à cultura e integração de objetivos
e descentralização de tarefas.101

É, portanto, aí que o estudo jurídico deve se aliar aos estudos de políticas culturais,
pois em nada adianta leis criativas e bem elaboradas se não há políticas públicas
comprometidas para aplicá-las, no intuito de criar garantias aos direitos culturais.

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em patrimônio cultural: notas sobre a experiência francesa de distinção do “Mestres
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de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa
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DF, 5 ago. 2000. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3551.
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101. SILVA, 2001, p. 102.

131
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SILVA, José Afonso da. Ordenação constitucional da cultura. São Paulo: Malheiros, 2001.

Fórum de Discussão

O texto a seguir é a compilação dos debates realizados entre professor e alunos nos
Fóruns de discussões da plataforma de educação a distância, tendo como base o texto
autoral do professor, publicado acima, e as seguintes perguntas orientadoras:

1. Que relação você estabelece entre a construção do Sistema Nacional de


Patrimônio Cultural (SNPC) e o pleno exercício dos direitos culturais?

2. De que maneira o município em que você atua/mora exerce a competência


administrativa referente ao Patrimônio Cultural, especificamente à preservação
dos bens de natureza imaterial? 

3. Como o Estado em que você atua/mora exerce a competência legislativa


em matéria de Patrimônio Cultural, notadamente à preservação dos bens de
natureza imaterial? Como a(s) lei(s) estadual(is) tutelam essa dimensão do
Patrimônio Cultural?

Uma das discussões realizadas na disciplina diz respeito à relação estabelecida entre
a construção do Sistema Nacional de Patrimônio Cultural (SNPC) e o pleno exercício
dos direitos culturais. Nesse sentido, acordou-se que mais importante que reconhecer
os direitos culturais, é efetivá-los. E essa efetivação se dá por meio das garantias. Nessa
medida, o SNPC vem contribuir para tirar do papel esses direitos culturais que já foram
identificados.

132
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

As políticas federais de preservação, sobretudo as voltadas aos bens de natureza


imaterial, a partir do ano 2000, tendem a observar o conceito da participação popular
ao privilegiar a referência cultural nos processos de patrimonialização. Dessa forma, o
exercício da cidadania cultural e dos direitos culturais passa a ser exigência constitucional.
Para o Sistema Nacional de Política Cultural, ligado ao Sistema Nacional de Cultura, o
pleno exercício dos direitos culturais tornou-se o alicerce para a sua efetivação. E esta
efetivação passa prioritariamente pelo desenvolvimento humano, social e econômico.
Isso significa que o cidadão é o princípio de tudo para o SNPC. E, em função disso, pode
se dizer que é no âmbito do Município que se exerce a cidadania cultural. Enquanto o
município não efetivar sua participação no SNPC não há como fazer relacionamento
com os Direitos Culturais.

O estabelecimento do SNPC possibilita, ainda, o aprimoramento e especialização


crescente no investimento público com o setor da cultura e sua relação intrínseca
com a compreensão de que este âmbito é de direito comum a todos os cidadãos
do país. Como direito, também implica deveres de colaboração no estabelecimento,
reconhecimento, fomento, conservação e difusão dos valores e/ou bens culturais de
maneira dinâmica e coparticipe, mais do que outras áreas, a cultura necessita de um
investimento comunitário e também dos poderes públicos em articulação.

O estabelecimento desse Sistema, bem como as deliberações que seu texto apresenta,
nos possibilita pensar e vivenciar os bens culturais de forma mais profissionalizada,
competente e cuidadosa. Nesse sentido, é essencial em tempos de investimento do
próprio Ministério da Cultura em organizar, conhecer, preservar e divulgar as matrizes
culturais brasileiras a partir de suas peculiaridades locais e regionais e, em especial, em
parceria com seus agentes.

O SNPC é importante, pois cria comprometimentos entre as diversas esferas admi-


nistrativas na preservação do Patrimônio Cultural. Dentro do sistema a participação da
sociedade civil interessada é imprescindível. A participação da sociedade interessada
no Sistema é uma maneira de garantir sua participação nas tomadas de decisões. Dessa
maneira, ao estimular a participação social, o Sistema torna-se um instrumento de
exercício dos direitos culturais.

Outro aspecto discutido foi acerca da necessidade ou não de criar direitos e


obrigações, sobretudo aos entes federativos, por meio de lei, estabelecendo regras
claras de compartilhamento de competências. Nesse sentido, foi mencionado que o
estabelecimento de leis e diretrizes claras é a melhor maneira de garantir a participação
dos entes federativos. A pactuação nem sempre é cumprida, e isso se torna mais
complicado no nível municipal, dando abertura para interpretações e níveis desiguais
de participação.

O exercício da cidadania cultural envolve a exigência de direitos, mas também o


cumprimento de deveres. A instituição do SNPC permite que os diferentes atores do
cenário cultural atuem na preservação patrimonial, efetivando a criação de uma rede

133
PATRIMÔNIO IMATERIAL

articuladora de diretrizes para a gestão cultural. A questão orçamentária é importante


para a consecução do SNPC, uma vez que cabe ao Estado fomentar as iniciativas que
permitam o acesso, difusão e preservação da cultura. Em relação às minorias, vejo que
o SNPC deve atender a diversidade cultural do país, observando as especificidades de
cada seguimento cultural. Acerca da criação de direitos e deveres estipulados pela
lei, acho importante que seja feita desta forma, em especial para os entes federativos,
uma vez que a administração pública deve observar o princípio da legalidade e a
estipulação de normas legais delineando a sua atuação facilita para que sua atuação
não seja arbitrária.

De acordo com os debates realizados, foi possível perceber que há, ainda, grande
disparidade entre Estados e entre Municípios com relação à implantação de um
arcabouço jurídico que promova a salvaguarda dos bens de natureza imaterial. Por um
lado, há aqueles que têm desenvolvido políticas bem estruturadas, enquanto outros
não ainda não estabeleceram. No caso dos municípios, essa situação é ainda mais
grave, isto porque ainda que o processo de constituição dos conselhos municipais de
cultura esteja acontecendo de maneira mais ou menos generalizada, este processo
administrativo não tem sido acompanhado da elaboração e promulgação de legislações
específicas.

Uma questão importante, diz respeito à sobreposição de legislações, o cidadão comum


tem dificuldade de entender que existem três esferas de poder e que cada uma tem
um órgão de preservação diferente, cada um com seus critérios e especificidades. Além
disso, estas ações são pautadas por interesses e visões específicas das administrações
municipais, estadual e federal, sem que haja necessariamente uma interlocução entre
elas. A dificuldade aumenta ainda mais quando se verifica que além da sobreposição de
legislações há a diferenciação na classificação da tutela governamental. Por exemplo:
uma determinada comunidade que possui uma prática cultural baseada em um tipo
de matéria-prima, cujo manejo está baseado na legislação ambiental, e desenvolvida
em um local protegido por lei de tombamento. Esta complexidade desnorteia até o
mais experiente técnico, quanto mais o cidadão comum, dificultando a adequada
gestão do Patrimônio Cultural.

2.7 Intersetorialidade, Patrimônio e Desenvolvimento

Ementa: Natureza dinâmica dos bens de natureza imaterial e ameaças; Como identi-
ficar e mensurar riscos/conflitos; Patrimônio Imaterial e desafios colocados pelo
desenvolvimento. Sociedade globalizada e patrimônios locais. Interfaces entre
ameaças “ambientais” e Patrimônio Imaterial.

Professora: Juliana Santilli

Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1987), mestre em


Direito e Estado pela Universidade de Brasília (2004), e doutora em Direito (área de

134
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

concentração: Direito Socioambiental) pela PUC-PR (2009). É promotora de justiça do


Ministério Público do Distrito Federal, já tendo atuado nas áreas de meio ambiente,
Patrimônio Cultural, criminal e direitos humanos.

Introdução

Neste texto, vamos tratar das múltiplas interfaces do Patrimônio Cultural com outras
políticas públicas, enfocando especialmente as relações entre Patrimônio Cultural,
meio ambiente, minorias étnicas, povos e comunidades tradicionais e desenvolvimento
sustentável. Na primeira parte, vamos tratar da proteção constitucional integrada ao
meio ambiente e à cultura, e das interfaces entre diversidade biológica e cultural, como
fundamentos para a adoção de políticas públicas integradas e complementares.

Em uma segunda parte, vamos discutir as avaliações de impactos ambientais, sociais e


culturais provocados por obras, empreendimentos e atividades econômicas, e como o
licenciamento ambiental pode e deve ser também um instrumento de acautelamento
e proteção do Patrimônio Cultural material e imaterial. Finalmente, vamos mostrar que a
transversalidade das políticas culturais tem sido desconsiderada em algumas iniciativas
e ações governamentais, e promovida em outras, a partir de exemplos concretos de
convergências e divergências, como o reconhecimento do ofício das paneleiras de
Goiabeiras (ES) e a implantação de estação de tratamento de esgoto no barreiro utilizado
pelas paneleiras; as ações de valorização do patrimônio naval brasileiro (projeto “Barcos
do Brasil”) e as apreensões de madeira utilizada na confecção de barcos tradicionais;
o Plano Nacional de Promoção das Cadeias de Produtos da Sociobiodiversidade; a
Farmacopeia Popular do Cerrado, o processo de registro (em andamento) do Ofício das
Raizeiras e Raizeiros do Cerrado como bem cultural imaterial e a Política Nacional de
Plantas Medicinas e Fitoterápicos.

Consideramos que as questões culturais devem permear a elaboração e execução de todo


o conjunto das políticas públicas (educação, comunicação, ciência e tecnologia, direitos
humanos, meio ambiente, turismo, planejamento urbano e cidades, desenvolvimento
econômico e social, indústria e comércio, relações exteriores etc.). Entre os princípios
do Plano Nacional de Cultura (estabelecido pela Lei n° 12.343/2010)102, estão as
valorizações da diversidade cultural e da cultura como vetores de desenvolvimento
sustentável, responsabilidade socioambiental, respeito aos direitos humanos, bem com
participação e controle social na formulação e implementação das políticas culturais.

Entretanto, escolhemos algumas interfaces específicas do Patrimônio Cultural para


orientar a compreensão de toda a sua transversalidade. Para que a cultura seja
promovida em toda a sua plenitude, as ações de fomento, salvaguarda e promoção
cultural não podem ser realizadas de forma fragmentada e compartimentalizada, ou
estar restritas aos órgãos públicos especificamente encarregados das políticas culturais

102. BRASIL, 2010.

135
PATRIMÔNIO IMATERIAL

(MINC, IPHAN etc.). As políticas e ações transversais da cultura devem estar presentes
em todos os planos e ações estratégicos do governo e do estado brasileiro.

Patrimônio Cultural, meio ambiente, minorias étnicas, povos e comunidades


tradicionais e desenvolvimento sustentável: proteção constitucional

Pretendemos desenvolver a nossa disciplina com base no entendimento de que a nova


Constituição Federal (adotada em 1988)103 adotou uma concepção unitária do meio
ambiente, que compreende tanto os bens naturais quanto os bens culturais. É o que se
deduz de uma interpretação sistêmica e integrada dos capítulos da Constituição que
se dedicam à proteção do meio ambiente e da cultura.

O capítulo sobre o meio ambiente (artigo 225 e seus diversos incisos e parágrafos) da
Constituição assegura a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo ao
Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes
e as futuras gerações. Foi a primeira vez, na história brasileira, que uma Constituição
brasileira dedicou todo um capítulo ao meio ambiente, fundamentado no princípio
do desenvolvimento sustentável – conceito desenvolvido a partir do relatório da
Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas, intitulado
“Nosso Futuro Comum”, coordenado pela então primeira-ministra da Noruega, Gro
Brundtland. Segundo tal conceito, o desenvolvimento sustentável é “aquele que
satisfaz as necessidades das gerações atuais sem comprometer a capacidade das
gerações futuras de satisfazer as suas próprias necessidades”. Tal conceito passou a
permear todo o texto constitucional e as leis brasileiras.

Importante destacar que o novo paradigma do desenvolvimento sustentável promove


não só a sustentabilidade estritamente ambiental – ou seja, a sustentabilidade de
espécies, ecossistemas e processos ecológicos – como também a sustentabilidade
cultural e social – ou seja, deve contribuir também para a redução da pobreza e
desigualdades sociais e promover valores como justiça social, equidade e respeito à
diversidade cultural e regional.

A Constituição brasileira reconheceu ainda o princípio da equidade intergeneracional,


fundamentado no direito intergeneracional – das presentes e das futuras gerações – ao
ambiente sadio. Pela primeira vez, foram assegurados direitos a gerações que ainda não
existiam, e tais direitos passaram a restringir e condicionar a utilização e o consumo dos
recursos naturais pelas presentes gerações, bem como as políticas públicas adotadas
pelo Estado, que deverão considerar sempre a sustentabilidade dos recursos naturais.

A nossa Constituição consagra ainda o princípio da obrigatoriedade da intervenção


do Poder Público, em seus diversos níveis e instâncias, impondo-se ao Poder Público a
obrigação constitucional de prevenir e reparar danos ambientais. O princípio da obri-

103. BRASIL, 1988.

136
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

gatoriedade da intervenção estatal é complementado pelo princípio da participação


democrática e da transparência na gestão dos recursos ambientais, por meio da publi-
cidade dos instrumentos de avaliação de impacto ambiental e do licenciamento am-
biental, da participação da sociedade civil em colegiados ambientais e em audiências
públicas e do efetivo controle social sobre as políticas públicas. Os acessos à informação
e à educação ambiental são também reconhecidos como fundamentais à formação e à
capacitação para a participação consciente e eficaz na gestão socioambiental.

O acesso aos bens ambientais, naturais e culturais, deve ser também equitativo, e
baseado nos princípios da inclusão e da justiça social. As políticas públicas socioambi-
entais devem incluir e envolver as comunidades locais.

Importante destacar que a questão ambiental não é tratada apenas no capítulo da


Constituição especificamente destinado ao meio ambiente, mas está presente em
diversos outros capítulos constitucionais, consagrando a orientação de que as políticas
públicas ambientais devem ser transversais, ou seja, perpassar o conjunto das políticas
públicas capazes de influenciar o campo socioambiental, tal como ocorre com as
questões culturais. Entre os princípios gerais da atividade econômica, elencados
no artigo 170 da Constituição, está a defesa do meio ambiente, ao lado da função
social da propriedade, da livre concorrência, da defesa do consumidor e da redução
das desigualdades regionais e sociais, entre outros. Da mesma forma, o capítulo
constitucional dedicado à política agrícola e fundiária e à reforma agrária (artigo 184
e seguintes), estabelece que a função social seja cumprida quando a propriedade
rural atende, simultaneamente, aos seguintes requisitos: utilização adequada dos
recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, aproveitamento racional
e adequado, observância das disposições que regulam as relações de trabalho e
exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Trata-se,
claramente, da consagração da função socioambiental da propriedade.

O capítulo constitucional dedicado à política urbana (artigos 182 e 183) também


consagra a função socioambiental da cidade, ao estabelecer que a política de
desenvolvimento urbano tenha por objetivo ordenar o desenvolvimento das funções
sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. A qualidade e o equilíbrio
do ambiente urbano são também tutelados constitucionalmente. Pela primeira vez na
história, a Constituição incluiu um capítulo específico para a política urbana, que prevê
uma série de instrumentos para a garantia, no âmbito de cada município, do direito
à cidade, da defesa da função social da cidade, da propriedade e da democratização
da gestão urbana. A regulamentação foi estabelecida pela Lei nº 10.257/2001, mais
conhecida como o “Estatuto da Cidade”. Já o capítulo dedicado à saúde estabelece,
entre as atribuições do Sistema Único de Saúde (SUS), a “colaboração na proteção do
meio ambiente, nele compreendido o do trabalho” (artigo 200, VIII), reconhecendo a
estreita conexão entre meio ambiente e saúde.104

104. BRASIL, 2001.

137
PATRIMÔNIO IMATERIAL

A Constituição também representou um grande avanço na proteção do patrimônio


cultural brasileiro, dedicando toda uma seção e vários dispositivos ao tratamento
da matéria, de forma inédita na história constitucional brasileira. A Constituição
consagrou uma nova e moderna concepção de Patrimônio Cultural, mais abrangente
e democrática. Avançou em relação ao conceito restritivo de “patrimônio histórico
e artístico nacional”, definido no Decreto-lei nº 25/1937 (conhecido como a “Lei do
Tombamento”). Verifica-se na Constituição uma clara ampliação da noção de patrimônio
cultural, e o novo conceito de Patrimônio Cultural engloba não só os bens culturais
materiais ou tangíveis como também os bens imateriais ou intangíveis. O artigo 215
é claro quando estabelece que constituem Patrimônio Cultural brasileiro os bens de
natureza material e imaterial, incluindo, entre estes, as formas de expressão, os modos
de criar, fazer e viver e as criações científicas, artísticas e tecnológicas, dos diferentes
grupos sociais brasileiros.105

Já o capítulo da Constituição que trata da cultura (artigo 215 e seguintes, que foram
parcialmente alterados pelas Emendas Constitucionais nº 42/2003, 48/2005 e 71/1912),
estabelece que o Sistema Nacional de Cultura deva reger-se pelos seguintes princípios:
diversidade das expressões culturais, transversalidade das políticas culturais, integração
e interação na execução das políticas, programas, projetos e ações desenvolvidas, e
democratização dos processos decisórios com participação e controle social.

Caminhou no mesmo sentido a Lei n° 12.343/2010, que instituiu o Plano Nacional de


Cultura (PNC) e o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC).
Entre os objetivos do Plano Nacional de Cultura, estão: estimular a sustentabilidade
socioambiental; reconhecer e valorizar a diversidade cultural, étnica e regional brasileira;
estimular a sustentabilidade socioambiental e reconhecer os saberes, conhecimentos
e expressões tradicionais e os direitos de seus detentores.

Importante compreender a interpenetração recíproca entre os capítulos constitucionais


dedicados ao meio ambiente, à cultura e às minorias étnicas. A Constituição revela a
compreensão de que não basta proteger a biodiversidade: a diversidade de espécies,
genética e de ecossistemas, sem assegurar a diversidade sociocultural que está
intimamente relacionada a esta. A diversidade socioambiental está presente nas
interfaces entre biodiversidade e sociodiversidade, permeadas pelo multiculturalismo,
pela plurietnicidade e pelo enfoque humanista.

Utilizando as palavras de Antônio Carlos Diegues, Geraldo Andrello e Márcia Nunes (2001):
“a diversidade de espécies, de ecossistemas e genética não é somente um fenômeno
natural, mas também cultural”. A biodiversidade, portanto, “não se traduz apenas em
longas listas de espécies de plantas e animais, descontextualizadas do domínio cultural”,
mas trata-se de um conceito “construído e apropriado material e simbolicamente pelas
populações humanas”. A biodiversidade resulta de contribuições culturais de povos e
comunidades que desenvolvem uma relação de estreita dependência do meio natural,

105 BRASIL, 1937.

138
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

formas culturais diferenciadas de interação e de apropriação dos recursos ambientais,


e um vasto conjunto de conhecimentos, inovações e práticas relacionadas ao uso
sustentável da biodiversidade.

O multiculturalismo permeia todos os dispositivos constitucionais dedicados à


proteção da cultura. Está presente na obrigação do Estado de proteger as manifestações
culturais dos diferentes grupos sociais e étnicos, incluindo indígenas e afro-brasileiros,
que formam a sociedade brasileira, e de fixar datas representativas para todos esses
grupos. Vislumbra-se a orientação pluralista e multicultural do texto constitucional
no conceito de Patrimônio Cultural, que consagra a ideia de que este abrange bens
culturais referenciadores dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, e
no tombamento constitucional dos documentos e sítios detentores de reminiscências
históricas dos antigos quilombos. É a valorização da rica sociodiversidade brasileira, e
o reconhecimento do papel das expressões culturais de diferentes grupos sociais na
formação da identidade cultural brasileira.

A orientação pluralista e multicultural da Constituição brasileira consagra a ideia de


que o nosso Patrimônio Cultural abrange bens culturais referenciadores dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira. É a valorização da rica sociobiodiversidade
brasileira, e o reconhecimento do papel das expressões culturais de diferentes grupos
sociais na formação da identidade cultural brasileira. A Constituição adota um espírito de
democratização das políticas culturais, em um contexto de busca da concretização da
cidadania e de direitos culturais. Os diferentes instrumentos de proteção e salvaguarda
do Patrimônio Cultural devem buscar sempre tais objetivos constitucionais.

A Constituição assegura ainda direitos territoriais especiais aos povos indígenas (artigos
231 e 232) e aos quilombolas (artigo 68 do ADCT). As demais populações tradicionais
(seringueiros, castanheiros, pescadores artesanais, agricultores locais etc.) não têm
direitos territoriais especiais assegurados pela Constituição, e algumas populações
tradicionais vivem em unidades de conservação ambiental (reservas extrativistas,
reservas de desenvolvimento sustentável etc.), e outras não. O decreto de 27 de
dezembro de 2004 criou a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das
Comunidades Tradicionais, e o decreto de 13 de julho de 2006 alterou a referida
denominação para Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais, fazendo também alterações em sua composição.

O Decreto n° 6.040/2007 instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável


dos Povos e Comunidades Tradicionais, que deve ser implementada pela referida
Comissão, e tem, entre seus princípios: o reconhecimento, a valorização e o respeito
à diversidade socioambiental e cultural dos povos e comunidades tradicionais; o
desenvolvimento sustentável como promoção da melhoria da qualidade de vida
dos povos e comunidades tradicionais nas gerações atuais, garantindo as mesmas
possibilidades para as gerações futuras e respeitando os seus modos de vida e as suas
tradições; e a pluralidade socioambiental, econômica e cultural das comunidades e

139
PATRIMÔNIO IMATERIAL

dos povos tradicionais que interagem nos diferentes biomas e ecossistemas, sejam em
áreas rurais ou urbanas.106

Os povos e comunidades tradicionais são definidos como


grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais,
que possuem formas próprias de organização social, que ocupam
e usam territórios e recursos naturais como condição para sua
reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando
conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela
tradição.107

Já os territórios tradicionais são definidos como “os espaços necessários à reprodução


cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados
de forma permanente ou temporária”.108

Em suma, as políticas públicas ambientais e culturais devem ser concebidas e


implementadas de forma integrada e articulada, considerando as interfaces e
interdependências que associam diversidade biológica e cultural. Afinal, o patrimônio
cultural, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas
comunidades e grupos em função de seu ambiente e de sua interação com a natureza.
A diversidade cultural e a criatividade humana se expressam nas mais diferentes formas
de utilização de recursos naturais e de interação do homem com o meio em que vive.
As ações de proteção e salvaguarda de cultura e meio ambiente devem ser integradas a
políticas de desenvolvimento territorial e local, que devem considerar os bens, produtos
e serviços que a sociobiodiversidade brasileira gera e produz. Mais adiante, veremos,
entretanto, que nem sempre isto ocorre, e que muitas vezes os impactos produzidos
por obras e empreendimentos econômicos sobre bens culturais são subavaliados e
pouco considerados nas decisões políticas.

Avaliações de impactos ambientais, sociais e culturais provocados por obras,


empreendimentos e atividades econômicas.

Entre os principais instrumentos da Política Nacional de Meio Ambiente, estão a


avaliação de impactos ambientais e o licenciamento ambiental de atividades efetiva
ou potencialmente poluidoras (art.9º, III e IV e 10º da Lei n° 6.938/1981). No mesmo
sentido, a Constituição Federal obriga o Poder Público a exigir, para instalação de obra
ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação ambiental, estudo
prévio de impacto ao meio ambiente, a que se dará publicidade (art. 225, § 1º, IV).

O licenciamento ambiental é atualmente definido pela Lei Complementar n°


140/2011 como “o procedimento administrativo destinado a licenciar atividades ou
empreendimentos utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente
106. BRASIL, 2007.
107. Idem.
108. Ibid.

140
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental”.109


Para subsidiar a decisão sobre a concessão ou não da licença ambiental, é necessária
a realização de diversos estudos ambientais (como relatório ambiental, diagnóstico
ambiental, análise preliminar de risco etc.), que podem variar de acordo com a
legislação de cada Estado. A Constituição Federal determina, entretanto, que para as
obras ou atividades potencialmente causadoras de significativa degradação ambiental,
é obrigatória a realização do estudo prévio de impacto ao meio ambiente (EIA).

O EIA é um estudo produzido por uma equipe multidisciplinar, sob a orientação da


autoridade ambiental, baseado em termo de referência específico e em determinados
pressupostos legais mínimos. O EIA deve indicar a abrangência e magnitude não só dos
impactos ambientais, mas também dos impactos sociais e sobre o Patrimônio Cultural,
material e imaterial. O EIA deve também indicar medidas preventivas, mitigadoras e
de compensação dos impactos ambientais, sociais e culturais. Os aspectos sociais e
culturais são frequentemente esquecidos ou subavaliados em estudos destinados a
subsidiar o licenciamento ambiental de obras e atividades.

Entretanto, a Resolução do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA) nº 01/1986


é suficientemente clara quando estabelece que o estudo de impacto ambiental deva
contemplar e abranger
o meio socioeconômico: o uso e ocupação do solo, os usos da
água e a socioeconomia, destacando os sítios e monumentos
arqueológicos, históricos e culturais da comunidade, as relações
de dependência entre a sociedade local, os recursos ambientais e a
potencial utilização futura desses recursos.110

A referida norma determina ainda que o estudo de impacto ambiental deverá apontar
ainda “a distribuição dos ônus e benefícios sociais” da obra, empreendimento ou atividade
que se pretende licenciar.

Conforme destaca o Promotor de Justiça Marcos Paulo Miranda, do Ministério Público


de MG, apesar das normas legais serem suficientemente claras, “na maioria das vezes os
estudos de impacto ambiental negligenciam a análise dos impactos negativos causados
aos bens culturais, relegando-os a uma condição de segunda importância”. Também se
verifica que muitas equipes técnicas responsáveis pelos estudos e levantamentos não
contam com profissionais capacitados para avaliar adequadamente esses impactos
(como arqueólogos, historiadores, antropólogos, arquitetos, geógrafos etc.), apesar da
expressa exigência legal da multidisciplinariedade técnica e da habilitação constante
do art. 7º da Res. CONAMA n° 01/1986 e art. 11 da Res. CONAMA n° 237/97.”

Miranda destaca ainda que:

109. BRASIL, 2011a.


110. BRASIL. CONAMA, 1986.

141
PATRIMÔNIO IMATERIAL

A destruição de ruínas históricas para a abertura de uma rodovia; a


alteração dos modos de vida tradicionais e das relações socioculturais
em decorrência do reassentamento de uma comunidade inteira
para a construção de uma hidrelétrica; os impactos paisagísticos e a
perda de referenciais geográficos e de memória da cultura popular
provocados em uma montanha por atividades minerárias; a supressão
de uma cachoeira que constitui importante atrativo turístico e ponto
de convivência social para a construção de um dique, são alguns
casos concretos em que restam evidentes os danos em detrimento
do chamado meio ambiente cultural. 111

O licenciamento ambiental deve ser também um instrumento de acautelamento e


proteção do Patrimônio Cultural Material e Imaterial. Em Minas Gerais, os procuradores
da República expediram, em 2011, uma recomendação ao IBAMA e à Secretaria de
Estado do Meio Ambiente, “para que observem as regras de licenciamento ambiental,
em especial as que tratam do patrimônio arqueológico”112

1. O objetivo é resguardar o patrimônio arqueológico existente em locais submetidos


a intervenções provocadas pela execução de obras públicas e privadas. Os órgãos
ambientais devem, portanto, incluir no licenciamento, efetiva participação do Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) no processo de tomada de decisões,
em cada uma das etapas do licenciamento ambiental. Em geral, o licenciamento
ambiental ocorre em três fases: licença prévia, de instalação e de operação. A cada
etapa desse procedimento corresponde outra no IPHAN: de diagnóstico da área, de
prospecção e de eventual resgate ou mesmo indicação de conservação dos achados
ou dos sítios arqueológicos encontrados. Tais etapas devem ser compatibilizadas
pelas instituições envolvidas no licenciamento ambiental, nos termos da Portaria n°
230/2002, do IPHAN113.

Com a finalidade de promover a regulamentação da atuação dos órgãos e entidades


da Administração Pública Federal “incumbidos da elaboração de parecer em processo
de licenciamento ambiental de competência federal a cargo do Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA)”, foi publicada em
28 de outubro de 2011, a Portaria Interministerial nº 419/2011114, entre os Ministérios
do Meio Ambiente, da Justiça, da Cultura e da Saúde, Fundação Nacional do Índio
(FUNAI), Fundação Cultural Palmares (FCP), Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN).

Em linhas gerais, a Portaria n° 419/2011 estabelece os prazos para que os órgãos e


entidades envolvidas no licenciamento ambiental se manifestem em relação ao termo

111. MIRANDA, s.d.


112. EM.COM.BR. Licenciamento ambiental terá foco na preservação do patrimônio em Minas. Disponível em: <http://www.
em.com.br/app/noticia/gerais/2011/08/23/interna_gerais,246556/licenciamento-ambiental-tera-foco-na-preservacao-do-
patrimonio-em-minas.shtml>. Acesso em: 20 fev. 2012.
113. IPHAN, 2002.
114. BRASIL, 2011b.

142
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

de referência (para elaboração dos estudos socioambientais), e apresentem a sua


manifestação conclusiva ao órgão licenciador. Este prazo será de até 90 dias quando
há necessidade de realização de EIA/RIMA, e de até 30 dias para os demais casos.
Incumbe ainda a estes órgãos acompanhar a implementação das recomendações e
medidas relacionadas às suas respectivas áreas de competência, informando ao IBAMA
eventuais descumprimentos e inconformidades em relação ao estabelecido durante as
análises prévias à concessão de cada licença ambiental.

Segundo a Portaria n° 419/2011, cabe à FUNAI realizar a avaliação dos impactos


provocados pela atividade ou empreendimento em terras indígenas, bem como
apreciação da adequação das propostas de medidas de controle e de mitigação
decorrentes desses impactos. Compete à Fundação Cultural Palmares fazer a avaliação
dos impactos provocados pela atividade ou empreendimento em terra quilombola,
bem como apreciação da adequação das propostas de medidas de controle e de
mitigação decorrentes desses impactos. Compete ao Ministério da Saúde tratar
da avaliação e recomendação acerca dos impactos sobre os fatores de risco para a
ocorrência de casos de malária, no caso de atividade ou empreendimento localizado
em áreas endêmicas de malária. Finalmente, compete ao IPHAN a avaliação acerca da
existência de bens acautelados identificados na área de influência direta da atividade ou
empreendimento, bem como apreciação da adequação das propostas apresentadas
para o resgate.

Importante destacar, entretanto, que todos os bens culturais acautelados pelo IPHAN
devem ser avaliados (em relação aos possíveis impactos de obras e empreendimentos),
o que inclui os bens culturais materiais e imateriais. Isso quer dizer que não apenas
os sítios arqueológicos e bens culturais tombados pelo IPHAN devem ser objeto de
avaliação e de medidas de mitigação e de controle dos impactos, mas também os bens
culturais imateriais, que são objeto de ações de salvaguarda do IPHAN, por meio de
inventários, registros e outras formas de acautelamento e preservação.

Deve ser destacado ainda, que embora a Portaria n° 419/2011 só faça referência
expressa aos territórios indígenas e de quilombolas, é fundamental que seja feita
também a avaliação dos impactos de obras e empreendimentos sobre outros povos
e comunidades tradicionais (seringueiros, castanheiros, extrativistas, geraezeiros,
varzanteiros, pescadores etc.), no âmbito de procedimentos de licenciamento ambiental.
Afinal, o Decreto n° 6.040/2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (já citado acima) é muito claro
quando estabelece que um dos princípios desta política seja justamente promover
o desenvolvimento sustentável, como promoção da melhoria da
qualidade de vida dos povos e comunidades tradicionais nas gerações
atuais, garantindo às mesmas possibilidades para as gerações futuras
e respeitando os seus modos de vida e as suas tradições.115

115. BRASIL. 2007.

143
PATRIMÔNIO IMATERIAL

Também já se mencionou acima (e vale a pena repetir) que a avaliação de impacto


ambiental deve necessariamente contemplar e abranger “a distribuição dos ônus e
benefícios sociais” da obra ou empreendimento que se pretende licenciar.

Aline Salvador ressalta que


infelizmente, na prática, o que se vê são menosprezos a bens e
valores culturais, tratados no mais das vezes com descaso frente
às demandas políticas e econômicas, não somente por ocasião da
decisão final, mas já quando dos estudos, que em sua maioria se
dedicam a impactos nos meios bióticos e abióticos, e, quanto aos
antrópicos, limitam-se no mais das vezes aos aspectos urbanos
de pressão sobre os serviços públicos e promessas de geração de
empregos.116

Vale a pena destacar algumas conclusões do Relatório da Comissão Mundial de


Barragens (formada por representantes de governo, da sociedade civil, da indústria, da
academia e de agências de desenvolvimento), que se baseou em experiências de 1.000
barragens, em 79 países). Embora o relatório tenha sido produzido em 2000, as suas
conclusões sobre os impactos sociais provocados por barragens continuam bastante
atuais, e merecem ser destacadas: raramente os estudos de impacto ambiental são
claros quanto à repartição social dos impactos, mesmo que muitos empreendimentos
afetem de maneira mais significativa alguns grupos sociais em comparação a outros;
os pobres, grupos vulneráveis e as gerações futuras têm mais chances de arcar com
uma parte desproporcional dos custos sociais e ambientais das grandes barragens
sem que recebam uma parcela proporcional dos benefícios econômicos; entre as
comunidades afetadas, há claras disparidades de gênero, e as mulheres arcam com
uma parte desproporcional dos custos sociais e são frequentemente discriminadas
negativamente na repartição dos benefícios; comunidades indígenas e minorias
étnicas vulneráveis padecem de índices maiores de deslocamento forçado e sofrem
maiores impactos sobre sua sobrevivência, cultura e valores espirituais.

No mesmo sentido, o Ministério Público Federal, por meio de sua 4ª. Câmara de Coorde-
nação e Revisão (especializada em Meio Ambiente e Patrimônio Cultural) produziu, em
2004, um manual intitulado “Deficiências em estudos de impacto ambiental”, a fim de
subsidiar a atuação de seus membros e técnicos. Entre as principais falhas apontadas
em estudos de impacto ambiental, estão:

• Conhecimento insatisfatório dos modos de vida de coletividades socioculturais


singulares e de suas redes intercomunitárias. A maioria dos diagnósticos sobre
coletividades rurais locais não expressa o conhecimento dos seus modos
peculiares de organização sociocultural e econômica e de apropriação
territorial, deixando invisíveis justamente as importantes características que

116. SALVADOR, 2013.

144
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

poderiam iluminar as relações de dependência entre a comunidade e os


recursos ambientais. Não são devidamente considerados os saberes e os
códigos coletivos que regulam manejos e classificações ambientais, usos e
acessos a recursos naturais. Não se levam em conta devidamente os diversos
“sistemas de posse comunal”, relacionados aos modos como esses grupos ou
comunidades se estruturaram historicamente.

• Ausência de estudos orientados pela ampla acepção do conceito de patrimônio


cultural. O item “c” do art. 6º da Resolução CONAMA n° 001/1986 estabelece a
necessidade de se considerar os bens culturais das comunidades. Porém, em sua
maioria, os diagnósticos não trabalham com conceitos mais contemporâneos,
formulados no âmbito das políticas públicas de preservação cultural. Embora
nem sempre considerados, já são comuns os levantamentos do potencial
arqueológico. Ressaltamos a importância de que em todos os casos se realizem
estudos dos significados dos bens culturais para as populações locais, grupos
socioculturais e sociedades indígenas. Considerando os arts. 215 e 216 da
Constituição Federal, a clara valorização da diversidade cultural brasileira e a
amplitude dos bens culturais considerados no conceito de Patrimônio Cultural
permitem afirmar que esse conceito não encontra satisfatória correspondência
nos estudos, apesar das orientações do IPHAN.

• Não adoção de uma abordagem urbanística integrada em diagnósticos de áreas


e populações urbanas afetadas. Nos diagnósticos sobre os núcleos urbanos
afetados, o modo como são apresentados os dados de infraestrutura e serviços,
bem como aqueles que dizem respeito a Patrimônio Cultural, dificulta o
entendimento do ambiente urbano como uma malha de interações, como um
tecido único. Há caracterizações de bairros urbanos e segmentos populares
mais vulneráveis aos impactos que se apresentam superficiais. A cidade precisa
ser entendida como um todo, e não como uma simples associação de áreas
diversas que não interagem entre si.

• Caracterizações socioeconômicas regionais genéricas, não articuladas às pesquisas


diretas locais. As caracterizações regionais, baseadas em quadros estatísticos
de condições socioeconômicas, dificilmente são utilizadas em análises que
articulem dados estatísticos regionais com pesquisas qualitativas locais
mais detalhadas. São exemplos de questões superficialmente analisadas:
movimentos migratórios, situação fundiária e especulação imobiliária,
exploração predatória de recursos naturais, mobilidade da mão de obra,
expansão da fronteira agrícola e da economia do turismo.

• Quando o empreendimento envolve deslocamento compulsório de populações, os


estudos não costumam indicar o risco de pauperização. Não obstante a diversidade
dos processos e das condutas em face das obras e suas consequências, não são
suficientemente analisadas as possibilidades de corrosão ou perda de autonomia

145
PATRIMÔNIO IMATERIAL

das coletividades. Cabe observar que os estudos ainda não dispensam atenção
a todo um amplo debate contemporâneo sobre o valor dos “conhecimentos
tradicionais associados à biodiversidade”, tendo em vista os casos em que pode
ser possível a desestruturação das condições e dos processos sociais em que
são produzidos, recriados, ensinados, intercambiados.

• Falta de integração dos dados de estudos específicos. Como exemplo da deficiência


de interação entre os estudos do meio biótico e antrópico, podemos citar a
quase generalizada ausência de estudos etnobotânicos. É frequente a simples
apresentação de listagem de espécies da flora ocorrentes na área de influência
do empreendimento, dissociada de considerações sobre a utilização e o manejo
dessas espécies pelas comunidades humanas. Dessa forma, informações
importantes acerca da utilização medicinal, alimentar, artesanal e outras, de
espécies vegetais, bem como a manipulação dos ambientes pelas comunidades,
passam despercebidas, com consequências na avaliação dos impactos. Outro
caso que pode ser citado é o da atividade pesqueira, na área de reservatórios de
hidrelétricas, que às vezes é referida pela equipe responsável pelo meio biótico,
mas não recebe a caracterização da área cultural e de socioeconomia.

Patrimônio Cultural, intersetorialidade e desenvolvimento:


divergências e convergências

O que procuramos demonstrar acima foi que a avaliação de impactos ambientais e o


licenciamento ambiental poderiam ser instrumentos úteis para se promover a integração
e complementariedade das políticas públicas ambientais, culturais e sociais, mas que
isto frequentemente não tem ocorrido. A transversalidade das políticas culturais tem
sido desconsiderada em algumas iniciativas e ações governamentais, e promovida em
outras, conforme procuraremos demonstrar a partir de alguns exemplos concretos:

1. O ofício das paneleiras de Goiabeiras (ES) foi registrado como bem cultural
imaterial no Livro de Registro dos Saberes em 2002. O saber envolvido
na fabricação artesanal de panelas de barro no bairro de Goiabeiras, em
Vitória, no Espírito Santo, emprega técnicas tradicionais e matérias-primas
provenientes do meio natural. Fruto de um conjunto de saberes, a panela
de barro, constitui suporte indispensável para o preparo da típica moqueca
capixaba. O plano de salvaguarda prevê o apoio e o fomento a ações que
favorecem a valorização dessas trabalhadoras e a manutenção das condições
objetivas para a prática de sua atividade. O ofício das paneleiras constitui um
saber repassado de mãe para filha por sucessivas gerações, no âmbito familiar
e comunitário, em uma tradição de mais de 400 anos. A técnica cerâmica
utilizada é de origem indígena, caracterizada por modelagem manual, queima
a céu aberto e a aplicação de tintura de tanino. Hoje cerca de 250 pessoas
de Vitória (ES), em sua grande maioria mulheres, produzem panelas de barro
com essa técnica tradicional (IPHAN, 2002). Apesar do reconhecimento e

146
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

do plano de salvaguarda, as paneleiras correm o risco de ver a sua atividade


tradicional desaparecer, em virtude da concessão de licença ambiental para a
implantação de uma estação de tratamento de esgoto sobre o terreno onde
está localizado o barreiro de onde as paneleiras retiram o barro para fazer as
panelas. A associação de paneleiras autorizou a construção da estação no
terreno do barreiro, após fortes pressões políticas e econômicas. O risco de
contaminação do barro e a perda, ainda que parcial, da matéria-prima para a
confecção das panelas ameaçam esta atividade tradicional, e se tornam mais
graves em virtude da ampliação da referida estação. Trata-se de um exemplo
claro de divergência e incoerência entre políticas setoriais: enquanto o IPHAN
promove ações de salvaguarda, o órgão ambiental estadual licencia uma obra
com impacto direto sobre o barreiro utilizado pelas paneleiras.

2. O Modo artesanal de fazer queijo minas e as dificuldades com a legislação


sanitária. Registrado pelo IPHAN em 2008, como bem cultural imaterial,
o modo de produção artesanal de queijo a partir do leite cru é um traço
marcante da identidade cultural das regiões serranas de Minas Gerais (Serro e
Serras da Canastra e do Salitre). Cada região tem um modo de fazer próprio,
expresso na forma de manipulação do leite e no tempo de maturação (cura),
mas constituem aspectos comuns o uso de leite cru e a adição do “pingo”,
um fermento láctico natural, recolhido a partir do soro que drena do próprio
queijo. Em 2002, o Queijo do Serro foi reconhecido como Patrimônio Cultural
de Minas Gerais, e a lei estadual nº 14.185/2002 (alterada pela lei estadual
19.492/2011) passou a regular o processo de produção do queijo artesanal,
permitindo a comercialização de queijo artesanal feito a partir do leite cru
no Estado de Minas Gerais. Em dezembro de 2012, foi sancionada, pelo
governador de Minas Gerais, uma nova Lei (nº 20.459), que ainda precisa ser
regulamentada. Dentre outras novidades, ela atende antigas reivindicações de
produtores, comerciantes e consumidores como a comercialização do queijo
meia-cura (produto que passou há poucos dias pelo dessoramento). Outras
novidades da lei são: a comercialização por meio de Serviços de Inspeção
Municipal (SIM); a criação de um fundo para indenizar produtores que tenham
animais sacrificados por brucelose ou tuberculose; e, ainda, o cadastro dos
queijeiros (negociantes que transportam o produto da fazenda até os centros
urbanos). Apesar do duplo reconhecimento como Patrimônio Cultural
(federal e estadual), os produtores de Queijo Minas artesanal têm enfrentado
uma séria de dificuldades para comercializar o seu produto tradicional, feito
a partir de leite cru, fora dos limites do Estado de Minas Gerais. Os principais
empecilhos são impostos pela legislação sanitária federal, que obriga a adoção
de prazos de maturação, equipamentos e inovações (como a substituição das
bancas de madeira por ardósia) que alteram significativamente os modos
de produção do queijo, e consequentemente, sua consistência e sabor. Na
tentativa de solucionar a questão, o Ministério da Agricultura (Mapa) editou

147
PATRIMÔNIO IMATERIAL

uma Instrução Normativa (nº 57/2011) que, embora permita que os queijos
artesanais tradicionalmente elaborados a partir do leite cru sejam maturados
por um período inferior a 60 dias (como o são os queijos artesanais), exige
estudos técnico-científicos que comprovem que não há comprometimento
da qualidade e inocuidade do produto. Assim, a referida Instrução Normativa
não solucionou o problema dos produtores de queijo minas artesanal, que
têm sofrido, frequentemente, a imposição de multas e a apreensão de seus
produtos por fiscais do Mapa. O que ocorre com os queijos artesanais mineiros
é paradigmático das dificuldades enfrentadas por muitos outros produtos
agroalimentares locais e tradicionais, que não conseguem preencher os
requisitos de uma legislação desenvolvida para uma produção industrial e
de larga escala de alimentos. As normas sanitárias tendem a promover uma
excessiva homogeneização e industrialização dos produtos, em detrimento
de sua identidade e tipicidade. As normas sanitárias devem procurar um
equilíbrio entre a saúde e segurança dos alimentos e a valorização de práticas
locais e tradicionais relevantes à biodiversidade e à diversidade sociocultural,
o que não tem ocorrido até o momento.

3. Projeto Barcos do Brasil, do IPHAN, e as apreensões, pelo IBAMA, de madeira


utilizada na confecção de barcos tradicionais. O conceito de paisagem
cultural tem sido aplicado pelo IPHAN em ações voltadas para a preservação
e valorização do rico patrimônio naval brasileiro, que integram o projeto
Barcos do Brasil. O Brasil é considerado um dos países de maior riqueza e
diversidade de embarcações tradicionais do mundo. As embarcações são um
elemento importante nas vidas das comunidades ribeirinhas e litorâneas, e
são utilizadas, principalmente, para pesca e transporte, de mercadorias e de
pessoas. As diversas embarcações (canoas, jangadas e barcos de pequeno e
médio porte) são resultado do aperfeiçoamento da arte de construir, navegar
e pescar e sua adaptação a contextos históricos e geográficos específicos
(IPHAN, 2009 e 2011). Os primeiros estudos de paisagem cultural vinculadas
ao patrimônio naval foram desenvolvidos pelo IPHAN nos seguintes lugares:
Pitimbu (PB), Valença (BA), Elesbão (AP) e Camocim (CE). Segundo o IPHAN
(2011), Pitimbu (PB) é o único ponto do litoral brasileiro onde se verifica a
ocorrência da jangada de dois mastros. Em Valença (BA), o IPHAN identificou
uma forma peculiar de venda de pescado: realizada direto do pescador, que
o faz dentro da canoa e no momento do retorno da pescaria – no caso a
canoa de calão, típica da região. O porto de Valença é caso único no Brasil
onde, em um contexto já bastante urbanizado, as últimas canoas de calão
em atividade tentam sobreviver em meio a um processo de massificação do
comércio, de expulsão dos pescadores do centro da cidade e de higienização
dos processos de obtenção, armazenamento e comercialização de peixes,
moluscos e crustáceos. Já Elesbão (AP) é uma típica cidade sobre palafitas,
bastante comum em toda a região amazônica, que se singulariza pela alta

148
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

concentração de estaleiros navais, que abastecem parcela significativa da


construção naval de embarcações tradicionais da região. A carpintaria naval
confunde-se, assim, com a vida da vila que, por sua vez, convive em harmonia
com o ritmo da natureza, estabelecido pelas marés, pelo cultivo do açaí, pelo
convívio com a mata. Já Camocim (CE) singulariza-se pela presença dos botes
bastardos, no que é considerado o maior porto pesqueiro à vela do Brasil
– e, possivelmente, do ocidente, segundo o IPHAN (2011). Apesar de toda
a relevância do patrimônio naval brasileiro, a atividade de carpintaria naval
tradicional está sendo ameaçada não apenas pela concorrência da navegação
industrial e de grande escala, mas também pelas frequentes autuações do
IBAMA contra carpinteiros que utilizam pequenas quantidades de madeira
protegida para fabricar as suas embarcações tradicionais. Trata-se de um
exemplo claro de divergência e incoerência entre políticas setoriais: enquanto
o IPHAN promove ações de preservação do patrimônio naval brasileiro, o
órgão ambiental multa e apreende madeiras e instrumentos utilizados, em
pequena escala, para fabricação de barcos, desconsiderando a importância
desta atividade tradicional para as comunidades locais.

4. O Plano Nacional de Promoção das Cadeias de Produtos da Sociobiodiversidade


(PNPSB) foi lançado em 2009 pelo governo federal, sob a coordenação dos
Ministérios do Desenvolvimento Agrário (MDA), Meio Ambiente (MMA),
Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e Companhia Nacional
de Abastecimento (CONAB). Seu objetivo é fortalecer cadeias produtivas e
serviços gerados a partir da sociobiodiversidade brasileira, e visa beneficiar
principalmente povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares.
Para a elaboração do referido plano, foram realizados 7 seminários regionais
por biomas (Amazônia Oriental, Amazônia Ocidental, Cerrado, Mata Atlântica
e Zona Costeira da Mata Sul, Mata Atlântica e Zona Costeira da Mata Sudeste e
Nordeste, Pampa e Caatinga), e um seminário nacional, com a participação de
representantes de órgãos governamentais, de comunidades locais, de ONGs
e do setor empresarial. Entre principais ações do PNPSB estão: a promoção de
políticas públicas de crédito, assistência técnica e extensão rural, e de mercados
e instrumentos de comercialização; a agregação de valor socioambiental; a
geração de renda e segurança alimentar; o fortalecimento da organização
social e produtiva; e a gestão de empreendimentos. A Portaria Interministerial
n° 239/2009, que estabelece orientações para a implementação do referido
Plano Nacional, considera que o fortalecimento das cadeias produtivas
da sociobiodiversidade é meta fundamental para possibilitar a integração
do desenvolvimento econômico do Brasil, com a conservação do meio
ambiente, a inclusão social e produtiva de povos e comunidades tradicionais e
agricultores familiares com respeito às suas especificidades culturais e étnicas.

149
PATRIMÔNIO IMATERIAL

A referida Portaria define os produtos da sociobiodiversidade como


bens e serviços (produtos finais, matérias-primas ou benefícios)
gerados a partir de recursos da biodiversidade, voltados à formação
de cadeias produtivas de interesse dos povos e comunidades
tradicionais e de agricultores familiares, que promovam a
manutenção e valorização de suas práticas e saberes, e assegurem
os direitos decorrentes, gerando renda e promovendo a melhoria
de sua qualidade de vida e do ambiente em que vivem.117

Alguns produtos da sociobiodiversidade identificados durante as consultas regionais


foram: castanha do Brasil, babaçu, açaí, cupuaçu, umbu, açaí, pequi, buriti, jatobá, baru,
mangaba, andiroba, copaíba, licuri, pinhão, erva-mate, entre outros. Apesar das críticas
e eventuais falhas do PNPSB, ele merece ser destacado por promover a articulação
intersetorial e as interfaces entre diversidade biológica e sociocultural, assim como
por valorizar os produtos que a nossa sociobiodiversidade produz. Afinal, a produção
sustentável de produtos da sociobiodiversidade sempre foi realizada pelos povos e
comunidades tradicionais para autoconsumo, sendo o excedente escoado na forma
de produtos primários com baixa agregação de valor e grande dependência de
atravessadores (ISPN, 2011), e um dos objetivos do PNPSB é justamente reverter este
quadro. Entretanto, o PNPSB enfr enta as barreiras impostas por uma legislação (sanitária,
fiscal, ambiental, trabalhista etc.) que ainda não contempla o papel das comunidades
locais no sistema produtivo (ISPN, 2011). Apesar do IPHAN não participar diretamente
da coordenação do PNPSB, pode-se dizer que as iniciativas de apoio e fomento aos
arranjos produtivos locais e regionais tendem a favorecer a promoção da diversidade
étnica e cultural, ao valorizar produtos que estão relacionados a territórios específicos,
concebidos em sua dimensão natural e cultural, e promover o desenvolvimento
econômico e social de comunidades locais.
5. A Farmacopeia Popular do Cerrado, o processo de registro (em andamento)
do Ofício das Raizeiras e Raizeiros do Cerrado como bem cultural imaterial e a
Política Nacional de Plantas Medicinas e Fitoterápicos: promovendo interfaces
e convergências entre biodiversidade, diversidade sociocultural e saúde. A
Farmacopeia Popular do Cerrado, publicada em 2010 pela Articulação Pacari, é
resultado de uma pesquisa popular de plantas medicinais, de autoria de 262
autores sociais, entre raizeiros, raizeiras e representantes de farmácias caseiras
e/ou comunitárias. Esta pesquisa popular teve como objetivo incentivar a
prática da medicina tradicional e a salvaguarda dos saberes sobre o uso e o
manejo sustentável de plantas medicinais do cerrado. A rica biodiversidade
do cerrado oferece raízes, cascas, resinas, óleos, folhas, argilas, água e outros
diversos recursos naturais que são primorosamente manejados por suas
populações para a prática da medicina popular. A medicina popular é um
sistema de cura utilizado pelo povo para o tratamento de seus diversos
males. A sua prática é baseada no conhecimento tradicional, transmitido

117. BRASIL, 2009.

150
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

de geração em geração, e no uso de diversos recursos, como: remédios


caseiros, dietas alimentares, banhos, benzimentos, orações, aconselhamentos,
aplicação de argila, entre outros. A Farmacopeia Popular do Cerrado foi uma
iniciativa da Articulação Pacari, uma rede socioambiental formada por grupos
comunitários que praticam a medicina tradicional no bioma cerrado. Em
2009, a Articulação Pacari, com a anuência de raizeiras e raizeiros, apresentou
formalmente ao IPHAN o pedido de registro do Ofício das Raizeiras e Raizeiros
do Cerrado como bem cultural imaterial, e o processo está em andamento
no IPHAN. O Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, vinculado ao
IPHAN, também já realizou o Inventário Nacional de Referências Culturais
dos Saberes Tradicionais sobre Fitoterapia, com a participação da Rede
Fitovida, formada por grupos comunitários do Rio de Janeiro detentores
de conhecimentos tradicionais sobre as plantas medicinais. É importante
destacar que tais iniciativas, no campo do patrimônio, convergem para a
realização dos objetivos e diretrizes da Política Nacional de Plantas Medicinais
e Fitoterápicos, aprovada pelo Decreto n° 5.813/2006. Seu principal objetivo
é “garantir à população brasileira o acesso seguro e o uso racional de plantas
medicinais e fitoterápicos, promovendo o uso sustentável da biodiversidade,
o desenvolvimento da cadeia produtiva e da indústria nacional”. Em 2008,
o governo federal aprovou o Programa Nacional de Plantas Medicinais e
Fitoterápicos. Foram iniciativas importantes para reconhecer os benefícios das
plantas medicinais e de medicamentos fitoterápicos e a sua importância na
prevenção, promoção e recuperação da saúde. Para ampliar o acesso a esses
medicamentos, o Ministério da Saúde passou a disponibilizar a utilização
de fitoterápicos na rede pública. Entre os medicamentos oferecidos pelo
Sistema Único de Saúde, estão a aloe vera (babosa) para o tratamento de
psoríase e queimaduras, o salix alba (salgueiro) contra dores lombares e a
rhamnus purshiana (cáscara-sagrada) para prisão de ventre. O guaco (mikania
glomerata) também é oferecido por sua ação expectorante e broncodilatora, e
a isoflavona-de-soja (glycine max) auxilia no alívio dos sintomas do climatério,
entre outros fitoterápicos oferecidos pelo SUS em 14 estados: Acre, Amazonas,
Bahia, Espírito Santo, Goiás, Pará, Paraíba, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul,
Santa Catarina, Sergipe, São Paulo, Tocantins e Distrito Federal. Trata-se de
uma iniciativa que promove as interfaces entre biodiversidade, diversidade
sociocultural, saúde, desenvolvimento econômico e social, e procura valorizar
os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, detidos por povos
e comunidades tradicionais e comunidades locais.

Conclusão

O artigo procurou demonstrar a necessidade de que as políticas culturais sejam


efetivamente transversais e definitivamente incorporadas a todos os planos e ações
estratégicos do governo e do estado brasileiro. A partir da análise de alguns exemplos

151
PATRIMÔNIO IMATERIAL

concretos, o artigo procurou demonstrar que as ações de fomento, salvaguarda e


promoção do Patrimônio Cultural Material e Imaterial não podem ser realizadas de
forma fragmentada e compartimentalizada, ou estar restritas aos órgãos públicos
especificamente encarregados das políticas culturais (MINC, IPHAN etc.). Elas devem
permear todo o conjunto das políticas públicas brasileiras, nas mais diferentes áreas.

Referência Bibliográfica

ARTICULAÇÃO PACARI. Farmacopeia Popular do Cerrado, 2010. Disponível em: <http://


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dos incisos III, VI e VII do caput e do parágrafo único do art. 23 da Constituição Federal,
para a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios nas
ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à
proteção das paisagens naturais notáveis, à proteção do meio ambiente, ao combate à

152
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

poluição em qualquer de suas formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora;


e altera a Lei no 6.938, de 31 de agosto de 1981. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 9 dez.
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153
PATRIMÔNIO IMATERIAL

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154
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

Fórum de Discussão

O texto a seguir é a compilação dos debates realizados entre professor e alunos nos
Fóruns de discussões da plataforma de educação a distância, tendo como base o texto
autoral do professor, publicado acima, e as seguintes perguntas orientadoras:

1. De que forma as avaliações de impactos ambientais e o licenciamento


ambiental podem ser instrumentos úteis para proteger e salvaguardar o
Patrimônio Cultural Material e Imaterial?

2. Justifique a sua resposta e cite exemplos de casos concretos que você


conheça em que estes instrumentos foram utilizados para proteger e
salvaguardar o Patrimônio Cultural Material e Imaterial, ou casos concretos
em que os impactos sobre o Patrimônio Cultural (Material e Imaterial) foram
desconsiderados ou mal avaliados por tais instrumentos.

3. Você poderia citar outros exemplos de convergências e/ou divergências


entre as políticas e ações no campo do Patrimônio Cultural e outras políticas
setoriais, nas diferentes áreas (educação, comunicação, ciência e tecnologia,
direitos humanos, meio ambiente, turismo, planejamento urbano e cidades
desenvolvimento econômico e social, indústria e comércio, relações exteriores,
etc.)? De que forma estas convergências e/ou divergências ocorrem nos
exemplos citados por você? Justifique.

4. Na sua opinião, quais são os principais desafios e barreiras para que as políticas
culturais se tornem efetivamente transversais e sejam incorporadas a todos os
planos e ações estratégicos do governo e do estado brasileiro?

Um dos principais desafios discutidos neste fórum foi o estabelecimento de uma política
pública compartilhada, que seja capaz de garantir o envolvimento dos detentores dos
Patrimônios Cultural e Imaterial e que viabilize condições de formação e informação
educacional levando em conta toda a diversidade cultural existente no país. Esta
política deve promover o dialogo entre os três poderes, entre os gestores e entidades
que tratam de patrimônio, entre a comunidade, empresas privadas responsáveis
pela implantação de grandes empreendimentos. É preciso constituir planos e ações
estratégicas do governo e do estado brasileiro, ações estas que não podem ser
realizadas de forma fragmentada e compartimentalizada, ou estar restritas aos órgãos
públicos especificamente encarregados das políticas culturais (MINC, IPHAN etc.). Elas
devem permear todo o conjunto das políticas públicas brasileiras, nas mais diferentes
áreas. De fato, a construção de políticas culturais “de baixo para cima”, ou seja, com a
participação das comunidades locais na sua concepção, elaboração e implementação,
é uma questão essencial, pois diz respeito à legitimidade social destas políticas, que
não podem ser impostas. Por fim, o desafio é estabelecer uma práxis que começa com
os agentes técnicos, profissionais, que dominam esta discussão e compreendem estas
questões. A sua atuação deve ser irradiadora, deve contagiar as pessoas envolvidas,

155
PATRIMÔNIO IMATERIAL

no intuito de produzir uma nova “cultura de conhecimento” e ação política em que


participação seja o eixo condutor de um diálogo que permita uma igualdade, sem que
uma hierarquia rígida venha inibir a participação e a riqueza que se pode extrair de uma
ação transversal.

Nesse sentido, a implantação do Sistema Nacional de Cultura (SNC), que está em curso,
constitui uma poderosa ferramenta de integração das políticas culturais entre os entes
federativos, visto que os conflitos de interesses entre esses diferentes entes são um
grande empecilho, frequentemente, para que as políticas cheguem até a população.
Entretanto, as ferramentas legais do SNC precisam ser apropriadas pelos gestores
públicos, sociedade civil e setor privado. Ainda há uma grande distância entre a criação
“formal” de alguns instrumentos e a sua implementação prática.

Outro aspecto fundamental é a garantia de implantação das convenções, tratados,


protocolos internacionais junto às comunidades. O não conhecimento de direitos já
adquiridos impede que os grupos monitorem o acesso e a repartição de benefícios,
que é o principal instrumento de desenvolvimento com o patrimônio imaterial. Além
disso, é importante adotar uma postura em que as convenções e tratados internacionais
sejam também transversais entre si, como a Convenção da Diversidade Biológica
(CDB), Convenção de 2003 da UNESCO, da Organização Mundial de Propriedade
Intelectual (OMPI) e que dialoguem não apenas entre si, mas também com convenções
internacionais de outras áreas, como educação, saúde, desenvolvimento econômico e
social etc.

Atualmente, estamos num contexto em que as políticas públicas ainda são muito
fragmentadas, setorializadas e se comunicam pouco entre si, o que dificulta a essencial
transversalidade das políticas culturais. Afinal, o componente cultural deve estar
presente em todos os planos e programas governamentais, em articulação com a
sociedade civil e com o setor privado. Nesse sentido, um dos desafios mais significativos
para a implantação de uma política pública no setor de Patrimônio Cultural está no
fato de que para que atinja maiores resultados efetivos é necessário que as principais
questões do setor – salvaguarda, fomento e promoção – façam parte de uma ação
única, dividindo responsabilidades, atuações e resultados com outras áreas da gestão
pública, tais como: ambientais, sociais ou econômicas. Acabar com a tendência de
isolamento dos setores fazendo-os entender que são parte de um todo e que a falta de
ação em um setor pode prejudicar o trabalho em outro.

De acordo com as discussões realizadas, ficou consensado que os impactos resultantes


da ação humana estão cada vez mais presentes nas atividades relacionadas a todas as
ocupações humanas de forma universalizada, global e localmente e que a legislação
brasileira é muito clara ao conceber a cultura como parte integrante e indissociável
do meio ambiente, devendo ser considerada em todas as esferas do Planejamento
Ambiental, seja em meio rural ou urbano. Nessa medida, sendo o Patrimônio Cultural
parte integrante e indissociável do meio-ambiente, deve também ser considerado,

156
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

no âmbito do Planejamento Ambiental, como um dos aspectos que precisam ser


protegidos de todos os atos potencial e efetivamente degradadores do meio ambiente.
Nesse sentido, há desafio de conciliar os diferentes interesses em relação às ações de
desenvolvimento econômico e as políticas de proteção ambiental e sociocultural.
A necessidade de criação de empregos, geração de renda, dentre outras questões,
muitas vezes, passam a ser priorizadas, em detrimento de ações de proteção ambiental
e sociocultural.

Entretanto, esta falsa dicotomia Patrimônio Cultural versus desenvolvimento econômico


precisa ser afastada, pois na verdade não há desenvolvimento efetivo e verdadeiro sem
a compreensão e incorporação das referências culturais dos grupos sociais envolvidos.
O que muitas vezes se chama de “desenvolvimento” são projetos e empreendimentos
que não trazem qualquer retorno e/ou benefícios para as comunidades locais, que
sofrem apenas os seus impactos negativos e desestruturantes. O principal desafio é,
portanto, colocar um fator primordial quando se analisa empreendimentos industriais
e viabilidade econômicas: o custo socioambiental.

Parece ser também uma constatação geral de que há uma grande distância entre a
legislação socioambiental avançada e a prática, motivada por interesses políticos
e econômicos contrários à preservação do Patrimônio Cultural. Como superar esta
situação, e fazer com que a legislação ambiental e de preservação do patrimônio
cultural sejam mais respeitadas não só por empreendedores, mas também pelos
órgãos públicos. O caminho correto seria investir mais em educação patrimonial, desde
a infância, para uma maior conscientização dos cidadãos, ou investir mais em punição
e repressão aos danos contra o nosso patrimônio, agravando as multas e sanções e
dando melhor estrutura aos órgãos de controle e fiscalização? Ou ambos?

A educação patrimonial é uma ferramenta essencial para uma maior conscientização


da importância de se proteger o Patrimônio Cultural, e para que este seja visto como
uma “carteira de identidade” da nação, como dizia Rodrigo Mello Franco, um dos
pioneiros e criadores do então SPHAN (atual IPHAN).

157
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

3. Avaliações e considerações
sobre o Curso

Considerando a natureza desta publicação, um aspecto importante é analisar o alcance


do curso de Patrimônio Imaterial: fortalecendo o Sistema Nacional, e o cumprimento
dos objetivos estabelecidos para sua realização, tal como apresentado na Introdução
desta publicação. Para os realizadores do curso, IPHAN e UNESCO, importava garantir,
sobretudo, que o processo formativo atingisse o maior número possível de pessoas
ligadas à gestão pública do Patrimônio Imaterial no âmbito dos estados e municípios,
bem como outras instituições envolvidas nesse processo de salvaguarda do PCI, como
forma de viabilizar o fortalecimento do Sistema Nacional de Patrimônio Cultural. Nesse
sentido, a ferramenta de EAD propiciava eficácia na oferta de capacitação em amplo
espectro, ainda que as condições de acesso à internet não sejam as mesmas em todo
o país.

Assim, para empreender a análise do cumprimento dos objetivos do curso, foi feito,
durante o curso, um levantamento de informações sobre os alunos, tais como:
profissão, área/instituição de atuação, local de residência, tipo de acesso à internet e
de suas avalições parciais e finais sobre o desenvolvimento e qualidade do curso. Estas
informações foram fundamentais para a avaliação do curso, tanto no que diz respeito
ao seu alcance quanto aos conteúdos e didáticas utilizados.

Com a finalidade de apresentar os resultados obtidos, apresenta-se a seguir a siste-


matização das informações de alguns elementos fundamentais acerca dos alunos, a
saber: o perfil, a abrangência territorial alcançada com esta modalidade de ensino e as
principais dificuldades no dia a dia do trabalho destes alunos. Além destas informações,
será apresentada uma síntese das avaliações e recomendações realizadas pelos alunos.
Por fim, são apresentadas algumas recomendações da equipe de coordenação do
curso, para as instituições realizadoras, como forma de continuidade do processo de
fortalecimento do Sistema Nacional de Patrimônio Cultural.

159
PATRIMÔNIO IMATERIAL

Perfil dos alunos

A fim de caracterizar os alunos do curso, para fins desta publicação foram escolhidos
os seguintes aspectos: local de residência, formação, nível de especialização e vínculo
institucional, uma vez que permitem analisar o cumprimento dos objetivos básicos do
curso. Estes resultados são apresentados por meio de gráficos, a seguir:

Distribuição geográfica

Para a compreensão do perfil dos alunos, um número de 418, um dos critérios que
nortearam a seleção dos candidatos foi relativa à proporcionalidade por região do
país (sendo Norte – 25%, Nordeste – 25%, Centro-Oeste – 20%, Sudeste – 15% e Sul
– 15%). Assim, mesmo havendo uma grande quantidade de inscrições da região
sudeste e nordeste (este último concentrado em alguns estados), foi possível manter
esta proporcionalidade nas duas turmas, que mantivesse o conceito original de
descentralizar ao máximo a oferta de vagas para o curso e garantir ampla participação
dos gestores culturais, conforme será tratado a seguir.

Alunos por região


Turma 1 Turma 2
27 15
29

49
60 Norte Norte
Nordeste Nordeste
75
Centro-Oeste Centro-Oeste
Sudeste Sudeste
58
33 52 Sul Sul
17

Alunos por Estado – Turma 1

40

35

30

25

20

15

10

0
Acre
Alagoas
Amapá
Amazonas
Bahia
Ceará
Distrito Federal
Espírito Santo
Goiás
Maranhão
Mato Grosso
Mato Grosso do Sul
Minas Gerais
Pará
Paraíba
Paraná
Pernambuco
Piauí
Rio de Janeiro
Rio Grande do Norte
Rio Grande do Sul
Rondônia
Roraima
Santa Catarina
São Paulo
Sergipe
Tocantins

160
Alunos por Estado – Turma 2
40
Mato Gros

Tocanti
Pernambu
Maranh

Para

Santa Catari
Distrito Fede
Ama

Paraí

Sergi
Rio de Jane
Minas Ger
Go

Rio Grande do No
A

Pi
Ba

Rondô
Ce

Rorai

São Pa
Espírito Sa
Alag

Amazo

Mato Grosso do

Rio Grande do
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

Alunos por Estado – Turma 2


40

35

30

25

20

15

10

0
Acre
Alagoas
Amapá
Amazonas
Bahia
Ceará
Distrito Federal
Espírito Santo
Goiás
Maranhão
Mato Grosso
Mato Grosso do Sul
Minas Gerais
Pará
Paraíba
Paraná
Pernambuco
Piauí
Rio de Janeiro
Rio Grande do Norte
Rio Grande do Sul
Rondônia
Roraima
Santa Catarina
São Paulo
Sergipe
Tocantins
A análise do número de inscritos na turma 1 e 2, permite observar que aqueles estados
em que houve maior número de alunos são aqueles em que a política de patrimônio
imaterial está mais desenvolvida, seja por ações dos órgãos estaduais de patrimônio,
seja em função da atuação do IPHAN nestas regiões.

A partir dos critérios expostos houve, de fato, um esforço pela garantia de uma
participação equitativa de cada um dos estados. E ao ver os dados desses gráficos que
nos trazem o mapeamento dos alunos por região e por estado, temos a convicção da
importância da educação a distância (EAD) na capacidade de abrangência formativa
diante da extensão territorial brasileira.

No caso da primeira turma, destaca-se a proporcionalidade entre 15 a 20 pessoas entre


cinco estados (Bahia, Goiás, Pará, Rio Grande do Sul e São Paulo), tendo como destaque
o Estado de Minas Gerais. E na segunda turma temos quatro estados que se destacam
entre 15 e 25 alunos: Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Com exceção do
Rio de Janeiro os outros três estados também já haviam sido bem contemplados na
primeira versão do curso.

Sexo

Também no que diz respeito à questão de gênero, foi possível manter certa equidade
entre homens e mulheres, tanto na primeira turma quanto na segunda. Este tipo de
equilíbrio foi importante para a fins de favorecer diferentes perfis e tipos de atuação.

161
PATRIMÔNIO IMATERIAL

Sexo – Turma 1 Sexo – Turma 2

58% 42% 53% 47%


Feminino Feminino
Masculino Masculino

Formação

Neste quadro, nos chamam a atenção três pontos que valem ser destacados: 42 pessoas
formadas em História pela turma 1 e 40 pessoas formadas pela turma 2, número
significativo que se justifica por ser a área de formação associada diretamente à própria
natureza do tema Patrimônio Cultural. No caso da turma 1, outro ponto é o número
quase equivalente de 41 pessoas agrupada em outros, que corresponde a cursos
diversos que aparecem uma única vez ou deixaram branco, a saber: Sustentabilidade
e Gestão da Inovação para o Terceiro Setor; Engenharia de produção; Técnico em
Logística; Produção Cultural; Educação Artística; Agroecologia; Tecnólogo em processos
gerências; Administração das Artes; Plantas Medicinais; Etnodesenvolvimento; Cultura
e Sociedade; Sustentabilidade e Gestão da Inovação para o Terceiro Setor; Gestão de
Turismo; Gestão Escolar; Antropologia; Ciências; Normal Superior. No caso da turma 2,
esse número caiu bastante, pois houve um maior número de pessoas com as mesmas
áreas de formação.

Turma 1

40

35

30

25

20

15

10

0
Arquitetura e urbanismo

Direito

História

Pedagogia

Artes

Não possui

Comunicação Social

Filosofia

Ciências Sociais

Geografia

Turismo

Serviço Social

Museologia

Administração

Publicidade e propaganda

Letras

Biblioteconomia

Teatro

Economia

Outros

162
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

Alunos por Estado – Turma 2


45

40

35

30

25

20

15

10

0
Administração de Empresas
Agronomia
Antropologia
Arquitetura e Urbanismo
Artes Cênicas
Artes Cênicas e Economia
Artes Visuais
Bens Culturais e Projetos Sociais
Biblioteconomia
Biologia
Ciência da Computação
Ciência da Religião
Ciências Contábeis
Ciências da Informação
Ciências Sociais
Comunicação Social
Comunicação, Linguagem e Cultura
Desenvolvimento Rural
Direito
Economia
Educação
Educação Física
Filosofia
Filosofia e Biologia
Formação de Professor
Geografia
Geologia
Gestão Ambiental
Gestão Cultural
Gestão Pública
História
História e Museologia
História/Turismo e Gestão Pública
Jornalismo
Jornalismo e Direito
Letras
Letras e Direito
Matemática
Museologia
Música e Jornalismo
Patrimônio Imaterial
Pedagogia
Perícia e Conservação
Produção Cultural
Psicologia
Química e Pedagogia
Relações Internacionais
Segurança no Trabalho
Serviço Social
Turismo
Não Respondeu
Por último, 17 pessoas que afirmaram, na turma 1, não possuir nenhuma formação de nível
superior, o que no campo de atuação profissional na área de patrimônio imaterial não
significa um impedimento, ao contrário, deixa clara a característica de participação social
e de envolvimento das comunidades no processo de salvaguarda desses bens, tendo em
vista que parte destes gestores são também os detentores das manifestações. No caso da
turma 2, 10 pessoas afirmam não possuir nenhuma formação de nível superior, diminui
o número de profissionais sem formação, justificado pelo próprio critério de seleção que
abre para a segunda turma a possibilidade de perfis de alunos mais diversificados com
relação aos segmentos de atuação em comparação à primeira turma.

Nível de especialização

Turma 1 Turma 2

11 8 1
4 8 10 23
23 Ensino fundamental completo 44 Ensino fundamental completo
28
Ensino médio completo Ensino médio completo
71 Superior incompleto Superior incompleto
54
Superior completo Superior completo
53
77 Especialização
Mestrado

Na Turma 1, observa-se que entre os alunos de curso superior, há um elevado índice


de alunos com pós-graduação – 49%, entre especialização, mestrado e doutorado. E
na Turma 2, também há um elevado índice de alunos com pós-graduação – 36%, entre
especialização, mestrado e doutorado.

Associando aos que têm somente curso de graduação, na Turma 1 temos um índice
elevado de 78% de alunos que têm nível superior atuando na área de Patrimônio
Imaterial, embora menor, mas ainda considerado alto, na Turma 2 temos um índice de
64% dos alunos.

163
PATRIMÔNIO IMATERIAL

Na Turma 1, considerando os 13% de superior incompleto, chegamos a um percentual


de 91% de profissionais que tiveram acesso, em níveis diferenciados, ao ensino superior.
E na turma 2, considerando os 12% de superior incompleto, chegamos a um percentual
de 76% de profissionais que também tiveram acesso ao ensino superior.

Desta forma, somando o percentual das duas turmas, temos um número significativo de
profissionais graduados e com especializações atuando na área de Patrimônio Imaterial.

Vinculação institucional

No caso da vinculação institucional dos alunos como critério de seleção deve ser
levado em consideração, inclusive na diferenciação do perfil dos alunos das duas
turmas, pois a proporcionalidade por segmento (Gestores Públicos – 25%, Gestores
Detentores – 25%, Professores – 15%, Pesquisadores – 15%, Gestores Privados – 10%,
Alunos – 5%, Outros interessados – 5%) foi muito mais evidente para a primeira turma.
Este fato deveu-se à definição de se fechar esta primeira turma somente com gestores
da área da cultura e detentores, com vistas a manter o enfoque na temática da
gestão e, sobretudo, da gestão pública daqueles locais em que a institucionalização
das políticas de Patrimônio Imaterial encontram-se mais fragilizadas, como forma de
fortalecer o Sistema Nacional.
Turma 1 Turma 2

34 15
133 39
4
18
Municipal Setor público
Estadual Setor privado

36
Federal 25 Terceiro setor
Sociedade civil organizada 2
Instituição de ensino
15
Sistema S

No caso da Turma 1, os dados desse gráfico torna-se evidente a municipalização dos


trabalhos voltados para o setor de Patrimônio Imaterial, equivalente a 61% dos alunos.
Chama-nos a atenção o número de 15% dos alunos associados à sociedade civil
organizada, índice aproximado aos profissionais ligados ao Estado (16%).

Ao analisar os dados da Turma 2, os resultados mostram que permanecem


prevalecendo, como na Turma 1, entre os servidores públicos, aqueles atuantes em
órgãos municipais. Eles totalizam 16%, seguidos pelos servidores estaduais, com 13%
e, abaixo, os federais, com 8%. Somando as três esferas de governo juntas, temos 37%,
portanto, 11 pontos percentuais acima dos representantes atuantes em instituições de
ensino, não contemplados na edição anterior.

O terceiro setor permanece, assim como na Turma 1, significativamente representado.


Considerando os trabalhadores das instituições do chamado Sistema S, o percentual
de 4% é destacado pela sua representatividade no item referente ao terceiro setor. A
representatividade das organizações não governamentais cresce, passando para 20%
em relação à turma anterior.

164
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

Na Turma 2, há ainda autônomos, pesquisadores sem vínculo empregatício e


trabalhadores de instituições culturais privadas, que compõem o percentual de 15%
do item identificado como outros.

Grau de dificuldade encontrado no trabalho com o Patrimônio Imaterial

Turma 1
Grau
Grau de
de dificuldade
dificuldade encontrado
encontrado no
no trabalho
trabalho com
com o
o Patrimônio
Patrimônio Imaterial
Imaterial
100 101 95
90

85
77 79 78
80 76 75
75 71 100 101 69
70 100 101 95
95 63
65
90 58 60 58
60
90
85
77 79
79 51 78
55
85
77 71 76
76 75 78
75
80
50
69
80
75
71 40 40 69 39
45
75
70 38 63
40
70

58 60 58 63
60
65
35
65
60 58 58
30
60
55
23 23 51
51
25
55
50 18 24
20
50
45 14 40 38 40 13 39
15
45
40
10
40 38 40 39 9
5
40
35
5
35 2 3 2 2 3
23 23
30

23 23
0
30
25
25 18
18 24
24
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Turma 2
82
90

85 81
80 76
75
68 69
70
63 64 64
65
60
82
90
60
90
81
81 51 82
76 52
85
55
85
49 48 76 48 46
80
50
69
80

68
75
45
41 68 69
35 64
75
70
63 64 64
63 31 64
40
70
65
35
65
60
60
60
30
60
49 48 52 51
51
52 48
55
25
55
50
17 49 48 19 48 46
46
20
50
45
41 14 21 18
15
45
10 35 41 8 6
40

3 35 31
10
40
35
5
35
30 2 31 2 2 2 2
0
30
25
17 19
19 21
25
17 18
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InIn

165
PATRIMÔNIO IMATERIAL

Destaca-se que em todos os itens, nas duas turmas, foi levantada a existência de um
grau elevado de dificuldades apontado pelos alunos.

O ponto relativo aos instrumentos de fomento e sustentabilidade, na primeira turma,


apresenta o maior grau de dificuldade, 95 pessoas o consideram muito difícil. Também
para a segunda turma esse item apresenta o maior grau de dificuldade, 82 pessoas o
consideram muito difícil.

Por outro lado, a gestão e a obtenção de informações gerais sobre o tema aparecem
como itens mais fáceis de serem trabalhados pelos profissionais do setor. Neste caso,
podemos considerar que a área de trabalho voltada para Patrimônio Imaterial tem sido,
de alguma forma contemplada em discussões públicas como maior possibilidade de
acesso.

No caso da segunda turma, a gestão continua sendo considerada um item fácil (60%),
seguido do item obtenção de informações gerais com 46%. Por outro lado, uma das
principais ferramentas de gestão, o planejamento, é considerada um item difícil por 64%
dos alunos e 49% muito difícil, ponto que deve ser considerado para análises futuras.
Chama também a atenção neste item, o grau difícil para o item comunicação, 81%.

Ao analisar os graus de dificuldades apresentados (difícil e muito difícil) em quase todos


os itens e, em sua maioria, de natureza institucional, nos leva a considerar a necessidade
de um programa contínuo de formação e capacitação de agentes, públicos e de
organizações da sociedade civil, sobre a gestão específica para a área de patrimônio.

Avaliação

Avaliação do curso pelos alunos

Como forma de análise dos resultados obtidos com a realização das duas turmas deste
curso, foi solicitado aos alunos que realizassem uma avaliação dos resultados, bem
como conteúdos e atuação de cada um dos professores e equipe de coordenação e
monitoria do curso. A seguir, é apresentada uma síntese dessas avaliações.

Turma 1

As avaliações dos alunos em relação aos módulos do curso foram bastante positivas,
sendo que a grande maioria considerou os aspectos constituintes do curso como ótimo
e bom. Foram avaliados os seguintes aspectos: texto base, materiais complementares,
participação dos professores, debates propostos e contribuições para a atuação
profissional. Um aspecto importante a ressaltar, no caso desta turma, é retorno dado por
vários alunos no sentido de que haviam formado grupos de estudo em seus locais com
os textos base do curso, uma vez que nem todos haviam sido aceitos para participarem
do curso. Isso implica dizer, que este material foi acessado por um número maior de
profissionais.

166
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

Chama a atenção os aspectos “texto-base” e “materiais complementares”, os quais


apresentaram uma significativa maioria de avaliações como “ótimo”. As avaliações
da “participação dos professores” e “debates propostos” obtiveram uma a avaliação
mais equilibrada entre “ótimo” e “bom”. Por fim, a avaliação do item “contribuições
para a atuação profissional”, obteve um significativo aumento de avaliação “ótimo” em
relação às categorias anteriores.

Considerando este último item de avaliação como um aglutinador de todos os aspectos


avaliados, tem-se que cerca de 70% dos respondentes avaliaram o curso como ótimo.
A seguir, são apresentados os gráficos que subsidiam esta análise.

Participação dos professores Texto-base


(números absolutos) (números absolutos)
4 1 2 2

Ótimo Ótimo
Bom Bom
40 33
Regular Regular

53
Ruim Ruim
65

Debates propostos Materiais complementares


(números absolutos) (números absolutos)
4 3 2 4
Ótimo Ótimo
35
38 Bom Bom
Regular Regular
Ruim Ruim
53 60

Contribuições para profissão

3% 2%
26% Ótimo
Bom
Regular
Ruim
69%

Participar de
Participar de um curso livre
um curso livre presencial
semipresencial com 2 meses
com 2 meses de duração
de duração 3%
8%
Outra
2%
Participar de um curso livre
totalmente a distância
com 2 meses de duração
19% 167
PATRIMÔNIO IMATERIAL 3% 2%
26% Ótimo
Bom
Regular
Ruim
Agora que você já 69%
tem a experiência de participar deste curso, se você fosse
participar de um curso com o mesmo conteúdo, qual seria sua opção:

Participar de
Participar de um curso livre
um curso livre presencial
semipresencial com 2 meses
com 2 meses de duração
de duração 3%
8%
Outra
2%
Participar de um curso livre
totalmente a distância
com 2 meses de duração
19%

Participar de
Participar de um curso de um curso livre
pós graduação presencial totalmente
7% a distância
Participar de 46%
um curso de
pós graduação
semi-presencial
15%

Turma 2

As avaliações dos alunos em relação aos módulos do curso foram bastante positivas,
sendo que a grande maioria considerou os aspectos constituintes do curso como ótimo
e bom. Foram avaliados os seguintes aspectos: texto base, materiais complementares,
participação dos professores, debates propostos e contribuições para a atuação
profissional.

Chama a atenção os aspectos “texto-base”, “materiais complementares” e “participação


dos professores”, os quais apresentaram uma significativa maioria de avaliações
como “ótimo”. As avaliações de “debates propostos” obtiveram uma a avaliação mais
equilibrada entre “ótimo” e “bom”. Por fim, a avaliação do item “contribuições para
a atuação profissional”, obteve um significativo aumento de avaliação “ótimo” em
relação às categorias anteriores.

Considerando este último item de avaliação como um aglutinador de todos os aspectos


avaliados, tem-se que 71% dos respondentes avaliaram o curso como ótimo. A seguir,
são apresentados os gráficos que subsidiam esta análise.

168
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

Participação dos professores Texto-base


5,5% 0,5% 2%

32% 28%
Ótimo Ótimo
Bom Bom
Regular Regular

62% Ruim 70% Ruim

Debates propostos Materiais complementares


8%
10% 0,5%
34% Ótimo 32% Ótimo
Bom Bom
Regular Regular
Ruim Ruim
55,5% 60%

Contribuições para profissão


5%
24% Ótimo
Bom
Regular
Ruim
71%

curso livre curso livre


semipresencial presencial
com 2 meses com 2 meses
de duração de duração
6% 3%

curso livre Outros


totalmente a distância 2%
com 2 meses de duração
8%
Participar de
um curso livre
curso de pós graduação presencial totalmente
9% a distância
37%

curso de
pós graduação
semi-presencial
35%

169
PATRIMÔNIO IMATERIAL

Recomendações

Após a avaliação de todos os pontos elencados neste documento que consolidou o


trabalho de sistematização das informações relativas ao curso na plataforma Inspire|EAD
Patrimônio Imaterial: fortalecendo o Sistema Nacional, além das experiências a partir do
acompanhamento do curso no dia a dia, considera-se pertinente apresentar algumas
recomendações para futuras iniciativas desta natureza:

1. Investir no desenvolvimento e fortalecimento das discussões e metodologias


ligadas aos instrumentos de fomento e sustentabilidade do Patrimônio Imaterial
devida as características próprias da natureza do tema;

2. Criar instrumentos de trabalho, considerando as especificidades do tema;


sistematizar metodologias, produzir relatos de casos de sucesso (ou não) e
divulgar experiências;

3. Produzir, publicar e distribuir (físico e virtual) informações, mapeamentos,


pesquisas sobre o tema Patrimônio Imaterial;

4. Com relação aos alunos:

a. Mantê-los em contato via redes sócias;

b. Divulgar ações e editais específicos sobre o tema, cadastrar o alunos


(com autorização) no site do IPHAN.

c. Grande parte dos alunos mencionou alguma forma de manutenção


do contato com o IPHAN com possibilidade de aprofundamento das
questões. Além disso, ao analisar os graus de dificuldades apresentados
na ficha de inscrição (difícil e muito difícil) em quase todos os itens
e, em sua maioria, de natureza institucional, nos leva a sugerir um
programa contínuo de formação e capacitação de agentes, públicos e
de organizações da sociedade civil, sobre a gestão específica para a área
de patrimônio;

d. Criar uma forma de colocar em contato as pessoas do mesmo município


e/ou região que participaram da Turma 1 e da Turma 2. Isso poderia
potencializar a criação de redes locais de desenvolvimento de atividades
de salvaguarda do Patrimônio Imaterial. Uma possibilidade é incentivá-
los a manterem-se em contato via redes sociais, já que a Turma 1 criou
um grupo no facebook.

170
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

Considerações Finais

Após a realização de duas turmas consecutivas, a apuração dos resultados dos


questionários (intermediário e final), bem como o acompanhamento das discussões
durante os fóruns e reunião coletiva entre coordenadores e realizadores, concluiu-se que
os objetivos iniciais do curso com relação ao número de pessoas capacitadas – o dobro
do previsto inicialmente –, a abrangência nacional e com significativa representação
daqueles Estados com políticas de Patrimônio Imaterial menos fortalecidas, foram
atingidos plenamente. Entretanto, foi consenso, entre equipe de coordenação e os
realizadores, que o fortalecimento do sistema será uma consequência futura e que
dependerá da manutenção dos contatos iniciados com o curso e que deverá ser
monitorado.

Nas duas turmas, o tema da continuidade de realização de cursos específicos para a área
de Patrimônio Cultural no Brasil foi uma demanda constante e, consequentemente,
essa publicação e outras de temas afins deverão ampliar a capacidade de abrangência
da produção teórica para um número maior de profissionais que, nem sempre, têm
acesso às grandes discussões de âmbito nacional e internacional.

Destacamos como uma das possibilidades de continuidade do processo de discussão


sobre Patrimônio Imaterial a criação de uma página no facebook, como ferramenta de
interação de grande importância para a continuidade da circulação de informações
sobre o tema. Esta página foi composta pelos alunos da primeira turma:

<https://www.facebook.com/groups/572209176122711/?fref=ts>.

Essa nova forma de mobilização e discussão de temas tem-se mostrado bastante


eficiente e deverá ser utilizada pelo IPHAN em seu trabalho de manutenção das relações
com estes profissionais capacitados.

171
FORTALECENDO O SISTEMA NACIONAL

4 Ficha técnica

Curso
Patrimônio Imaterial: Fortalecendo o Sistema Nacional – Turmas 1 e 2

Realização
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)
Representação da UNESCO no Brasil

Plataforma de educação a distância: Inspire EAD


Coordenação técnica e pedagógica: Maria Helena Cunha – Inspire Gestão Cultural
Coordenação de conteúdo: Lucas dos Santos Roque

Professores:
Juliana Santilli
Letícia Vianna
Lucas dos Santos Roque
Maria Elizabeth Costa
Mario Pragmácio
Márcia Sant’anna
Mônia Silvestrin
Patricia Faria
Rívia Bandeira

Produção: Bruno Oliveira – Inspire Gestão Cultural


Monitoria: Bruno Oliveira (Turma 1) e Ana Flávia Macedo (Turma 2)
Assessoria de comunicação: Thaís Almeida Maia – Inspire Gestão Cultural
Assessoria jurídica: Diana Gebrim – Inspire Gestão Cultural
Designer gráfico: Ana C. Bahia – Inspire Gestão Cultural

173
PATRIMÔNIO IMATERIAL

174
Pa t r i m ô n i o I m a t e r i a l

f o rta l e c e n d o o s i st e m a n a c i o n a l
S i st e m at i z a ç ã o d o c u r s o

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