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CONSIDERAÇÕES SOBRE O CÂNTICO DO IRMÃO SOL: A LÍNGUA

VERNÁCULA NA POESIA FRANCISCANA


UNIVERSIDADE
FEDERAL DE
RONDÔNIA Veronica Aparecida Silveira Aguiari
Professora Adjunta do Departamento de História na
Universidade Federal de Rondônia (UNIR)

CENTRO
INTERDISCIPLINAR DE RESUMO
ESTUDO E PESQUISA
Este artigo busca fazer um exercício de análise da historiografia sobre o Cântico
DO IMAGINÁRIO
SOCIAL do Irmão Sol do manuscrito assisiano 338, testemunho mais antigo do Cântico,
transcrito nos anos 40 do século XIII. Este manuscrito do Cântico do Irmão Sol
ou das Criaturas é atribuído a Francisco de Assis que teria ditado para Frei Leão
entre os anos de 1225 e 1226. Por meio de uma linguagem popular, os elementos
presentes neste Cântico expressariam a simplicidade do Pobre de Assis e o
rompimento com a tradição das orações escritas em latim. Nesta discussão do
manuscrito, partiremos das propostas teóricas-metodológicas de Jacques Dalarun,
onde Francisco aparece como um personagem ‘transgressor’ do tempo em que
viveu. Além disso, também seguiremos os postulados de Éloi Leclerc e Carlo
Paolazzi como referenciais para a análise do poema.
Palavras-chave: Ordem franciscana; pobreza; Igreja; O Cântico das Criaturas;
São Francisco.

ABSTRACT
This paper aims to make an analysis of historiography exercise on the Song of
REVISTA LABIRINTO Brother Sun of assisiano 338 manuscript, oldest testimony of the Song,
ANO XVIII transcribed in the 40s of the thirteenth century. This manuscript of the Canticle of
VOLUME 28
Sun Brother or Creatures is attributed to Francis of Assisi would have dictated to
(JAN-JUN)
2018 Brother Leo between the years 1225 and 1226. Through a popular language, the
P. 324-341. elements present in this Song would express the simplicity of the Poor of Assisi
and breaking with the tradition of the Latin prayers written. However, to discuss
the manuscript, we leave the theoretical and methodological proposals of Jacques
Dalarun, where Francis appears as an 'transgressor' character of the time in which
he lived. We also will follow the postulates of Éloi Leclerc and Carlo Paolazzi as
reference for the analysis of the poem.
Keywords: franciscan Order; poverty; Church; The Canticle of the Creatures; Saint Francis.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O CÂNTICO DO IRMÃO SOL: A LÍNGUA VERNÁCULA NA POESIA FRANCISCANA,
VERONICA APARECIDA SILVEIRA AGUIAR

ressignificação do movimento Franciscano da


Introdução primeira geração minorítica do seguinte
trecho “Se queres ser perfeito, vai, vende o
Francisco de Assis foi o primogênito que possuis e dá aos pobres, e terás um
do casal Bernardone e nasceu em 1181 ou tesouro nos céus. Depois, vem e segue-me.”
1182, em Assis. Em relação à infância e (Mt 19, 21).
juventude de Francisco, as informações são Ainda segundo Boaventura, à Igreja
bastante escassas. Os historiadores tiram as de São Damião (URIBE, 1990, p. 91-93) foi
informações basicamente das hagiografias atribuída uma experiência mística de
(MICCOLI, 2004, p. 203-204). Francisco Francisco, que teria ouvido uma voz vinda do
Bernardone teria sido educado na “cultura” e crucifixo da igreja dizendo: “Francisco, não
no idioma francês, porque talvez fosse falado vês que minha casa está destruída? Vai e
em família como nos aponta Sabatier repara-a”, entendida no sentido literal porque
(SABATIER, 2006, p. 96). Do latim, ele tinha o edifício estava em ruínas. Provavelmente
um conhecimento parco em nível de cultura tratou-se de reparações pequenas. No ano de
de um comerciante, mas diante da preparação 1212, esta igreja foi dada a Clara e as suas 325
de um clérigo de boa formação, era irmãs pelo bispo Guido. À Praça de São
considerado muito modesto. Do mesmo nível Rufino é atribuído o episódio em que Pedro
devia ser o seu francês; seria um Bernardone recorreu ao bispo da cidade,
conhecimento não escolar, mas prático, ligado admoestou Francisco a devolver o dinheiro do
ao mundo dos negócios e ao mundo dos pai e Francisco teria se despojado de suas
divertimentos (MANSELLI, 1997, p. 41). vestes.
A partir dos vinte e cinco anos, Apesar de ter “ganhado novos
Francisco decidiu seguir o exemplo de Cristo, companheiros”, Francisco afirmou a sua
serviu os marginalizados daquela sociedade, autonomia (ninguém mostrou o que ele
os leprosos. De acordo com as hagiografias de deveria fazer), não houve sugestão ou
Celano e Boaventura, o momento mais conselho de ninguém, foi através do “desígnio
importante da conversão teria ocorrido divino” espelhado na fórmula “vivere
durante a realização de uma missa na igreja da secundum formam sancti evangelii” (viver
Porciúncula, Francisco e companheiros segundo a forma do Santo Evangelho) que
ouviram as palavras do Evangelho de São surgiu a fraternidade, sem a complicação de
Mateus sobre viver sem provisões. Este viver particulares elaborações intelectuais e
sem nada de próprio tem origem bíblica, uma jurídicas (MANSELLI, 1997). No ano de

REVISTA LABIRINTO, PORTO VELHO (RO), ANO XVIII, VOL. 28 (JAN-JUN), N. 1, 2018, P. 324-341.
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1209, Francisco decidiu ir para Roma, para italiano vernáculo. Essa poesia franciscana foi
explicar o seu ideal de vida ao papa, escrita em língua italiana, na região da
inspirados no evangelho. Em 1210, o papa Úmbria entre 1225 e 1226, na introdução do
Inocêncio III (1198-1216) concedeu apenas texto lê-se: "Iniciam os Louvores das criaturas
aprovação verbal. que o bem-aventurado Francisco compôs em
Francisco estava decidido em sua louvor e honra a Deus quando estava enfermo
penitência e, tendo chegado ao Evangelho, em São Damião". Nos primeiros meses de
optando pela pobreza voluntária, embora sem 1225, Francisco ditou as Laudes enquanto
perder nada da sua qualidade e tipicidade estava doente, num momento de sofrimento, à
originárias da escolha da experiência entre os Frei Leão. Na verdade, Francisco teria
marginalizados. Ele vestiu o hábito de eremita composto em diferentes momentos da vida,
que logo abandonou para assumir outro, ainda foi aperfeiçoado ao longo da sua trajetória e
mais pobre, um pano rude com o qual se terminada no fim de sua vida.
cobria e, no lugar de uma correia, uma corda, Visto como um documento
abandonando o bastão e os calçados, fundamental para a compreensão do ideal de
conforme um literalismo que era vida de Francisco de Assis, este Cântico 326
característico dos movimentos leigos permite conhecer a relação de Francisco com
populares penitenciais da Úmbria a paz, um ideal de vida em harmonia com o
(MANSELLI, 1997, p. 75-76). Francisco ambiente que o cercava. Nesta composição a
tornou-se o fundador da Ordem dos frades referência ao Criador e as suas Criaturas
menores, uma das Ordens mais importantes mostra uma contemplação que o Poverello
da Igreja romana e a mais popular. A vivenciou ao longo da sua trajetória, talvez
obtenção da aprovação da sua regra foi no dia um vestígio do movimento Franciscano da
29 de novembro de 1223, dada pelo papa sua primeira fase, do momento da fraternitas.
Honório III (1216-1227). Antes disso, Ao escrever o Cântico, Frei Francisco estava
Francisco havia renunciado a ser o guia da sua num momento de saúde frágil, quase cego,
Ordem em 29 de setembro de 1220. numa angústia profunda, doente e no final da
O canto era importante para a vida.
pregação franciscana, foi um meio de Neste artigo analisaremos os trechos
irradiação do cristianismo e de evangelização do poema umbro do manuscrito 338 da
(LECLERC, 2002, p. 138). O Cântico do Biblioteca comunal de Assis, situada no Sacro
Irmão Sol ou das Criaturas configura-se numa Convento. São eles, a saber, os fólios 33
das primeiras obras literárias escritas no frente e verso e o 34 frente, publicados no

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livro “Le cantique de frère soleil” de Jacques collezioni digitali dele biblioteche italiane
Dalarun de 2014 (DALARUN, 2014), disponível pela internet conforme indicação a
também digitalizados pelo Cataloghi e seguirii.

327

I. Fólio 33 frente do manuscrito 338


Fonte: disponível em:
http://www.internetculturale.it/jmms/iccuviewer/iccu.jsp?id=oai%3Awww.internetculturale.sbn.it%
2FTeca%3A20%3ANT0000%3APG0213_ms.338&mode=all&teca=MagTeca+-+ICCU Acesso: 30
jan. 2018.

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II. Fólio 33 verso do manuscrito 338


Fonte: disponível em:
http://www.internetculturale.it/jmms/iccuviewer/iccu.jsp?id=oai%3Awww.internetculturale.sbn.it%
2FTeca%3A20%3ANT0000%3APG0213_ms.338&mode=all&teca=MagTeca+-+ICCU Acesso: 30
jan. 2018.

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III. Fólio 34 frente do manuscrito 338.


Fonte: disponível em:
http://www.internetculturale.it/jmms/iccuviewer/iccu.jsp?id=oai%3Awww.internetculturale.sbn.it%
2FTeca%3A20%3ANT0000%3APG0213_ms.338&mode=all&teca=MagTeca+-+ICCU Acesso: 30
jan. 2018.

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Conforme as imagens apresentadas, as fornalha do livro de Daniel (3, 57-88 e 56).


letras maiúsculas indicariam os inícios dos Além disso, podemos iniciar a nossa análise a
versos, enquanto os pontos serviriam para partir de alguns temas mencionados na poesia
assinalar não só o fim, mas também as como a astronomia e a física, herança da
subdivisões internas de cada um e a antiguidade, mesmo com o sentido diferente
respiração para leitura (DALARUN, 2015, p. dos antigos, deve ser lido sob a ótica da
22-23). Os espaços em branco da primeira interpretação bíblica do medievo.
página foram deixados para serem
acrescentadas as notas musicais que, como Laudato sie, mi’ Signore, cum tutte le
Tue creature,
pode ser visto, não foram colocadas. spezialmente messor lo frate Sole,
lo qual è iorno et allumini noi per lui.
Et ellu è bellu e radiante cum grande
splendore:
O manuscrito assisiano 338 da biblioteca de Te, Altissimo, porta significazione.
do Sacro Convento
Laudato si’, mi’ Signore, per sora Luna e
le stelle:
in celu l’ài formate clarite e preziose e
Para melhor compreender o belle3.

documento faz-se necessário entender a 330


Tanto o sol, como a lua e as estrelas
diferença do sentido das palavras “canto” e
brilham no firmamento, assim, a disposição
“cântico”. A palavra Canto vem do latim
dos astros revela uma suntuosidade e o sol
Cantus, cantum, no sentido de canere
irradia com “grande esplendor”, entre a lua e
“cantar”. Para o franciscanismo, significa o
as estrelas que são claras. Como vimos, o
ato de cantar, cantoria, já a palavra Cântico do
referimento é sempre bíblico e não
latim canticum, significa canção, no sentido
astronômico. As criaturas celestes são três, o
de melodia, um poema lírico de caráter
sol que é “belo e radiante com grande
religioso, um cântico devocional, associado a
esplendor”, a lua e as estrelas que são “claras,
composição poética de versos curtos, dividida
preciosas e belas” (DALARUN, 2015, P. 47-
em estrofes, para ser cantada por trovadores
49).
(SILVA, 2010, p. 170).
Para Jacques Dalarun (2015, p. 58),
O Cântico é composto de sintaxes e
Francisco não amava a natureza e não venera
léxicos, trazidos para a linguagem vernácula
a natureza neste Cântico, mas celebra a
italiana a partir da Bíblia. As principais fontes
criação. Além disso, Francisco é tão pouco
bíblicas que são referências para o Cântico,
vegetariano quanto pouco ecologista
concentram-se nas seguintes passagens: o
(DALARUN, 2015, P. 75), não é um
salmo 148 e o Cântico dos três jovens na

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admirador extasiado da natureza 1246/1247 no Memoriale nel Desiderio


(DALARUN, 2015, p. 90) e, por fim, dell’anima, contam como teria surgido o
Francisco não é um sonhador (DALARUN, poema, não vamos adentrar em detalhes, mas
2015, p. 103) como se supõe atualmente. nas Compilações de Assis, Leão conta que
Confrontar essas ideias e imagens de Francisco tinha uma extraordinária veneração
Francisco são tão necessárias quanto positivas pelo fogo, tanto que uma vez não extinguiu o
para analisar o manuscrito e melhor incêndio em sua cela, privando o Irmão Fogo.
compreender o seu sentido no período. Já na vida de São Francisco escrita por Tomás
Primeiramente, o manuscrito de Celano, o Cântico do Irmão Sol não é
Assisiano 338 do Sacro Convento foi escrito citato explicitamente (DALARUN, 2015, p.
entre 1240-1250 sob guia de Frei Leão 29).
conforme a memória dos primeiros
companheiros. Podemos ver a rubrica de Frei Uma proposta de análise da composição do
Leão no início do manuscrito, se os textos Cântico
foram “transcritos” ou não por ele, não
sabemos ao certo, contudo as rubricas são Não existe um consenso na 331
dele. O poema está escrito em umbro, porém historiografia em relação ao local e a data
a rubrica está em latim: “Incipiuntur laudes exata da composição do Cântico das
creaturarum quas fecit beatus Franciscus ad Criaturas, porém sabe-se que foi nos últimos
laudem et honorem Dei cum esset infirmus anos de vida de Francisco. Estima-se que foi
apud Sanctum Damianum”4. escrito entre setembro de 1224 e 03 de
Em segundo lugar, o problema de outubro de 1226. O poema não tem uma
Francisco enquanto autor é debatido por estrutura rítmica rígida, tem uma simplicidade
muitos especialistas nos seus Escritos. Se ele de estrutura e de imagens (PAOLAZZI, 2010,
é o autor ou não, o poema umbro é atribuído à p. 9). Basicamente dividida em dez “estrofes”,
sua autoria. Geralmente, classificam os de tamanhos diferentes, poderíamos dividi-la
documentos de sua autoria da seguinte forma: em: a primeira como estrofe do Altíssimo ou
pregações, regras, admoestações e cartas. o prólogo, a segunda como as seis estrofes da
Entre as pregações, distinguimos por critério Criatura, a terceira parte como as duas
linguístico “O Cântico do Irmão Sol”, escrito estrofes do Perdão e da Morte, e a última
em umbro. As Legendas dos Três como uma estrofe final ou epílogo.
Companheiros e as Compilações de Assis A primeira estrofe consiste no
foram utilizadas por Tomás de Celano em prólogo, a estrofe do Altíssimo, mostrando

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um abismo insuperável entre Deus e o robusto e forte”, a terra “sustenta e governa”,


homem, claramente um paradoxo, “uma ela produz “flores e verduras”.
teologia negativa” que parte da constatação
que a grandeza de Deus foge da nossa medida Laudato si’, mi’ Signore, per frate Vento
e per aere, e nubilo e sereno, et omne
ordinária porque Deus não pode ser nomeado tempo,
per lo quale a le Tue creature dài
ou qualificado, portanto Ele é indizível sustentamento.
(DALARUN, 2015, p. 41). Laudato si’, mi’ Signore, per sor’Acqua,
la quale è multo utile et humile e
preziosa e casta.
Altissimu, omnipotente, bon Signore,
Tue so’ le laude, la gloria e l’honore et Laudato si’, mi’ Signore, per frate Focu,
omne benedizione. per lo quale ennallumini la notte:
Ad Te solo, Altissimo, se konfane, et ello è bello et iocundo e robustoso e
e nullu homo ène dignu Te mentovare 5. forte.

Laudato si’, mi’ Signore, per sora nostra


Como vimos, o caráter infalível, matre Terra,
la quale ne sustenta e governa
incompreensível, indizível de Deus, não se e produce diversi frutti com coloriti flori
et herba6.
trata de um problema teológico, mas moral,
na qual a indignidade do homem o impede de
As setes entidades – três celestes e 332
nomear a Deus que deve ser louvado
quatro sublunares – são alegorias, assim como
(DALARUN, 2015, p. 43), o homem é
os sete dias da criação do Gênesis. Em gênero
indigno de glorificar Deus. Esse abismo só se
gramatical, o sol é masculino, assim como o
resolve na última estrofe, quando é
vento e o fogo. Já a lua, a água e a terra são
apresentada a separação em harmonia
alegorias femininas. Essa alternância do
“Laudate e benedicite mi’ Signore e
masculino e feminino entre a água e o fogo,
rengraziate e serviateLi cum grande
entre o vento e a terra. Todos são irmãos e
humilitate”.
irmãs, mas é uma personificação, o sol é
Os quatros elementos: ar, água, fogo e
potência, o fogo é “robusto e forte”, enquanto
terra constituem a base de todas as
a lua e as estrelas são “preciosas”, a água é
construções, neste aspecto Francisco articulou
“muito útil e humilde, preciosa e casta”
a astronomia com a física que, como pode ser
(DALARUN, 2015, p. 49-51). E Jacques
observado nas estrofes seguintes, caminham
Dalarun conclui desta parte que as
de dois em dois, de quatro em quatro. O vento
características das criaturas são como um
é “nuvem e sereno”, a água é “útil e humilde,
reflexo das características do Criador, a
preciosa e casta”, fogo é “belo e jocundo,
criação é o espelho do Criador, do espelho
emana a luz, Deus é o espelho de sua obra. O

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sol é o “meu senhor Irmão Sol”, enquanto a homem está reduzido ao silêncio, se as outras
terra é “minha irmã mãe Terra”, ao mesmo criaturas não são agentes, mas instrumentos
tempo irmã e mãe. Assim, o único Pai está das laudas, por meio da preposição per, então
nos céus e a mãe está na terra, a mãe-terra que as laudas não são destinadas ao Senhor, no
nutre e governa. sentido de dirigido a ele “A te sono...”,
No poema, Francisco celebra a criação continuando “Da te sono...” e ao Senhor
e não a natureza, a dúvida gravita em torno do retorna “Tue sono...” (DALARUN, 2015, p.
destinatário da Lauda: “Laudato sie, 62).
mi’Signore”, seria o Criador? Se é ele, quem Outra observação importante, refere-se
o Louva? Para responder essas questões é a “cum” na estrofe dedicada ao sol: “Laudato
necessário indagar a preposição per, muito sie, mi’Signore, cum tutte le tue creature”.
debatido pelos estudiosos, é possível pensar Esta palavra “cum” no sentido de “por meio
na hipótese de polissemia para essa de” teria o mesmo denominador comum de
preposição. A primeira tradução seria no “per” em italiano, por exemplo, comer com as
sentido de causalidade “a causa de”; em mãos, sentido “por meio” e não no sentido de
segundo lugar, seria possível pensar de forma companhia. Enfim, a Lauda é o canto de 333
ocasional “a propósito de”; a terceira seria Deus, que cria o mundo numa circularidade
correspondente ao agir “da parte de” e por que atravessa e arrasta consigo as criaturas.
último de maneira estrutural, “por meio de”. Como observamos, a tradução do poema é
Se o poema fosse originalmente em latim, a complexa, entender o significado das palavras
causalidade seria excluída, mas no italiano utilizadas implica mais do que um
umbro não. (DALARUN, 2015, p. 61). contextualização e conhecimento do italiano
Deste modo, a criatura seria o vernáculo. Com isso, uma forma mais segura
propósito da Lauda enquanto os homens de interpretação dos dados está na
seriam os agentes. Essa dúvida, não é da confrontação deste Cântico com os outros
historiografia atual, as pluralidades de escritos de Francisco e, sobretudo, com as
significados possíveis são muitas, porque a hagiografias do período que demonstram uma
preposição possibilita vários sentidos. Sendo herança das duas primeiras fases do
assim, poderíamos pensar a seguinte movimento Franciscano.
interpretação: se o homem é incapaz de As últimas estrofes do “Cântico do
oferecer uma Lauda adequada a Deus, então Irmão Sol” têm como tema o perdão e a
as outras criaturas assumiriam este papel. morte, num período em que a guerra era uma
Giovanni Pozzi interpreta em outro sentido, o realidade constante, tanto por parte do papado

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quanto do império, a reflexão destas últimas Com a morte de Henrique VI em 1196


estrofes necessitam relembrar o contexto do e da sua esposa Constança pouco tempo
período. depois, o papa Inocêncio III ficou como tutor
do príncipe Frederico Rogério (futuro
Laudato si’, mi’ Signore, Frederico II), herdeiro do trono, que era neste
per quelli ke perdonano per lo Tuo amore
e sostengo infirmitate e tribulazione. momento menor de idade. O papa aproveitou
Beati quelli ke ‘l sosterrano in pace,
ka da Te, Altissimo, sirano incoronati. a ocasião para um ajuste de contas político,

Laudato si’, mi’ Signore, per sora nostra


dentre os quais aproveitou para recuperar o
Morte corporale, ducado de Espoleto. Em 1200, na ausência do
da la quale nullu homo vivente pò
skampare. duque de Espoleto, Conrado de Irslingen, os
Guai a quelli ke morrano ne le peccata
mortali; assisenses atacaram a fortaleza germânica de
beati quelli ke trovarà ne le Tue
santissime voluntati, Rocca Maggiore e a destruíram; foi
ka la morte secunda no ‘l farrà male 7.
aprisionada a guarnição alemã e os assisenses
recusaram a entregá-los ao papa Inocêncio III.
Durante a juventude de Francisco, na
Assim, é provável que Francisco tenha
cidade de Assis, havia a luta entre os
partidários do papa e os partidários do
participado destes conflitos, ainda mais 334
porque o ideal cavalheiresco da época com
imperador (o chefe do Sacro Império
grande probabilidade atingia a juventude
Romano-Germânico) entre os guelfos e
assisense (LE GOFF, 2001, p. 60).
gibelinos; também continuava o conflito entre
Em resumo, os habitantes de Assis
a nobreza das velhas famílias feudais e a nova
aproveitaram a conjuntura política para se
burguesia mercadora; as comunas urbanas
livrarem do jugo do imperador e realizarem a
procuravam autonomia a fim de se livrarem
ambição de chegar a ser uma comuna
da tutela da nobreza latifundiária. Em 1198,
independente. Por isso, tomaram a Rocca,
Lotário di Segni (1160/1161?-1216) subiu ao
destruíram-na e fortificaram os muros da
trono papal como Inocêncio III (1198-1216),
cidade de Assis. A partir destas informações,
um ano após a morte de Henrique VI. Este
deduzimos que em nenhum momento a cidade
papa iniciou uma política de reconquista de
de Assis precisava tanto de um Santo para
territórios perdidos ao império e um dos
adquirir a sua autonomia em relação à Perúgia
aspectos desta política foi a proteção das
e Espoleto, já que Assis se localizava no meio
cidades italianas. Na Alemanha havia dois
da passagem de ambas as cidades que viviam
candidatos ao trono imperial: o gibelino Filipe
em guerra.
de Suábia, filho de Barba-Ruiva e irmão de
Henrique VI, e o guelfo Otto de Brunswick.

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Com isso, os nobres de Assis que se E a última parte, “Laudate e


identificavam com os interesses alemães benedicete mi’Signore e rengratiate e servateli
foram expulsos e muitos fugiram para cum grande humilitate”8, remeteria ao homem
Perúgia, onde se encontrava o centro do poder reconciliado com a criação e finalmente
imperial. Nesta ocasião, Perúgia e Assis adquiria o direito de nomear o Altíssimo.
declararam guerra entre si e sucederam Assim, o verso do perdão poderia ser
batalhas na Ponte San Giovanni sobre o Tibre, interpretado como a reconciliação entre o
mas a cidade de Perúgia venceu o conflito. A bispo e o poder, entre a igreja e o poder local,
paz entre as duas cidades só foi concluída no entre o império e o papado. Reconciliação do
ano de 1203. homem com Deus, a mais indigna criatura
Como filho de mercador, Francisco com o seu Criador, um poema que é próprio
pertencia ao partido do povo, a parte não- da poesia, exerce um fascínio e suprime o
nobre que aspirava a glória cavalheiresca. Ele raciocínio lógico argumentativo, porque a
teria participado da batalha de Collestrada em metáfora é complexa, as hipóteses são
1202, na qual foi prisioneiro. Em 1205, no inúmeras. É uma Lauda sem polêmica, poesia
caminho para Puglia teria feito parte do com um vocábulo em harmonia, um cântico 335
exército papal na guerra contra o imperador para ser cantado em voz alta, por isso o
(DALARUN, 2015, p. 70). De qualquer espaço em branco na primeira folha do
forma, as últimas estrofes do poema reportam manuscrito 338. A execução do Canto era
a questão da paz. coletiva e se pensarmos nas sutilezas e
É possível pensar que a estrofe do aliterações de uma música, a maior parte das
perdão, fosse originariamente a estrofe das estrofes possuem rimas (DALARUN, 2015, p.
tormentas. Para Carlo Paolazzi (2010) 100-101).
entender esses trechos não pode ser no sentido Ao ler o “Cântico” não podemos
literal, além disso, precisa separar os trechos, deixar de pensar nas expressões que fazem
deve ser interpretada como um eco da paz, parte do universo franciscano, são elas, a
por isso se faz necessário retirar o trecho do pobreza, a humildade, frade menor, que na
perdão, para compreender o trecho da paz, opinião dos autores citados são “contra
levantando a hipótese de que a estrofe da valores” daquela sociedade, o modo de seguir
morte foi acrescentada posteriormente. Desse Cristo e a escolha de seguir Cristo pobre.
modo, a leitura separada é fundamental, pois Para pensar o conceito de pobreza,
os trechos foram escritos em diferentes partimos dos postulados de Lothar Hardick
épocas. (1995, p. 1551), “a pobreza não é um conceito

REVISTA LABIRINTO, PORTO VELHO (RO), ANO XVIII, VOL. 28 (JAN-JUN), N. 1, 2018, P. 324-341.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O CÂNTICO DO IRMÃO SOL: A LÍNGUA VERNÁCULA NA POESIA FRANCISCANA,
VERONICA APARECIDA SILVEIRA AGUIAR

abstrato cujo sentido permaneceria imutável materiais. Este modo de vida foi adaptando-se
em todos os tempos e lugares”. Dessa forma, ao crescimento da urbe medieval e da Ordem.
a pobreza depende das condições sociais Na Regra de 1221, a pobreza tinha a forma
assim como a riqueza, é um valor relativo que sobretudo da renúncia dos bens,
só pode ser determinado em função das principalmente com a proibição de receber, na
condições de vida econômico-sociais nos ocasião, “aliquam pecuniam, neque per se,
diversos povos e em diferentes tempos. neque per interpositam personam”. A
Segundo o autor existem muitos significados proibição de receber dinheiro era uma
na concretização da pobreza ao longo da constante no modo de viver pauperístico de
Idade Média. No entanto, a pobreza sempre Francisco e companheiros, sempre reportando
esteve ligada mais ou menos a uma notável a uma tipologia ideal e idealizada de Cristo e
falta dos bens que são colocados à disposição dos Apóstolos: Cristo que se “fez pobre por
de todos como propriedade, consumo ou meio nós neste mundo” e, segundo a Regra de
de trabalho. Hardick nos aponta que o 1221, o não receber dinheiro parecia ir de
movimento da pobreza voluntária não é acordo com a real utilidade prática que a
exclusividade do cristianismo e muito menos pecúnia representava no período: “Quia non 336
do franciscanismo, que não trouxe novidade, debemus maiorem utilitatem habere et
mas ressignificou algo já presente na doutrina reputare in pecunia et denariis quam in
cristã. E conclui, Francisco não foi o único lapidibus”, confirmada pela passagem em que
entusiasta da pobreza no seu tempo, tivemos se proibiu aos frades a intromissão nos
vários movimentos pauperísticos que foram “temporalibus negotiis” ou de receber
considerados heréticos segundo o ponto de dinheiro de postulantes no ato da
vista católico romano como os Pobres de expropriação dos seus bens. Os frades
Cristo, os cátaros, os Humilhados, os itinerantes que excerciam uma profissão
Valdenses, os Pobres Católicos e os Pobres artesanal podiam ter “ferramenta et
Reconciliados (HARDICK, 1995, p. 1551). instrumenta suis artibus necessari”, mas
Francisco propôs um ideal de vida ninguém podia “ubicumque sit et quocumque
caracterizado por uma existência pobre, que vadit, aliquo modo tollat, nec recipiat, nec
preconizava a ausência de propriedade, a recipi faciat pecuniam aut denarios, nec
recusa de provisões, do dinheiro, dos cargos e occasione vestimentorum, nec librorum, nec
do poder, bem como a disposição de viver de pro pretio alicuius laboris, immo nulla
esmolas em favor de uma fraternidade occasione, nisi propter manifestam
equânime, universalmente pobre em bens necessitatem infirmorum fratrum”9.

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Na Regra bulada de 1223, no capítulo Francisco foi um ícone importante


seis, a ausência de bens foi fixada pelas para além do tempo em que ele vivia, não
seguintes frases “Fratres nihil sibi approprient somente porque teve uma popularidade
nec domum nec locum nec aliquam rem. Et estimulada pela Igreja romana, mas sobretudo
tanquam peregrini et advenae (cfr. 1Pet 2,11) porque a sua proposta de vida evangélica foi
in hoc saeculo in paupertate et humilitate um modelo apropriado por diversos
Domino famulantes vadant pro eleemosyna pensadores cristãos ou não, que elegeram o
confidenter, nec oportet eos verecundari, quia exemplum do pobre de Assis como um grito
Dominus pro nobis se fecit (cfr. 2Cor 8,9) aos excluídos ao longo dos séculos e que se
pauperem in hoc mundo” e no capítulo doze faz sentir nos dias atuais se pensarmos nos
“paupertatem et humilitatem et sanctum vários movimentos sociais da atualidade
evangelium Domini nostri Jesu Christi, quod (VAUCHEZ, 2009, p. 357) e na política da
firmiter promisimus, observemus.”. Ou seja, Igreja Romana.
os elementos básicos da pobreza franciscana Seja à luz da historiografia atual ou
configuram-se por meio das recomendações sob a ótica da interpretação franciscana, o
de vestuário vil, da privação de calçados, da Cântico do Irmão Sol apresenta uma visão do 337
ausência de domicílio fixo, da subsistência universo nova para o século XIII em relação
pelo trabalho manual cotidiano, da rejeição ao aos temas das estrofes, além de romper com a
dinheiro e do recurso humilhante à esmola, tradição em latim dos cantos.
podemos sintetizá-los na negação de toda
forma de apropriação. Conforme Doyle, Considerações finais
Francisco abraçou a pobreza e o que ele
chamava de Madonna Povertà, não era apenas Para concluir, lembramos que no
uma questão econômica, mas uma liberação início do livro “Le cantique de Frère soleil:
de todas as atitudes que esbarravam na união François d’Assise reconcilié”, Jacques
com Deus e a criação, “si spogliò di ogni Dalarun faz duas importantes observações
cosa, non solo dei beni material, ma anche di (DALARUN, 2014, p. 1). A primeira é que no
quell’orologio che giudica tutte le cose col ano de 2013 o cardeal argentino Jorge Mario
metro corto di ciò che è razionale, che Bergoglio eleito papa no dia 13 de março,
dissimula paure che hanno radici profonde, escolheu o nome Francisco – nome do santo
incomprensione e ignoranza...” (DOYLE, mais popular da Igreja Católica – sem um
1982, p. 69). número ordinal e na sua encíclica mencionou
“uma Igreja pobre para os pobres”10,

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reportando ao ideal de vida franciscano. A contudo sabemos que a problemática de


segunda observação refere-se ao programa autoria na Idade Média é complexa, ele não
francês de agrégation de dezembro de 201411 escreveu, mas é atribuído a autoria ao Santo.
que institui “O Cântico do Irmão Sol” como De um lado, os estudos da
parte da bibliografia do concurso de espiritualidade de Francisco como Éloi
recrutamento de docentes para o ensino da Leclerc, Eric Doyle e Carlo Paolazzi, de outro
língua italiana nos liceus franceses. Ambos os biógrafos e historiadores, como André
classificados pelo autor como “transgressões” Vauchez, Chiara Frugoni, Jacques Le Goff,
pelo fato de “um idiota, um iletrado, um Raoul Manselli e Jacques Dalarun que
simples e popular” ser um ponto de indagaram o santo, a pessoa, o homem
referimento para um pontífice e para o Francisco. A importância deste manuscrito
exercício universitário francês nos dias atuais. não é somente na classificação de escritos
atribuídos ao Pobre de Assis, mas também no
Na verdade, o arquétipo São Francisco olhar dos especialistas para esses escritos
não age apenas entre seus ‘filhos’; exerce
uma fascinante atração difusa, como como fonte historiográfica, um ponto
santo e como Francisco de Assis. Aqui
não é preciso deter-se em razões e essencial para entender a complexidade do 338
mecanismos, institucionais e culturais
(antropologicamente culturais), através
movimento Franciscano no medievo. Como
dos quais o arquétipo se transforma em vimos ao longo deste artigo “O Cântico do
veículo de ideologia ou de ideologias e,
portanto, em agente de responsabilização Irmão Sol” é um documento que resumiria a
individual e coletiva. (MERLO, 2005, p.
17). vida e o ideal de espírito de Francisco
reconhecido pelos historiadores como uma
Attilio Bartoli Langelli (DALARUN,
fonte (DALARUN, 2010) fundamental para
2015, p. XII) na apresentação da tradução
entender o cristianismo do século XIII.
italiana do livro “Il Cantico di Frate Sole.
Poderíamos colocar este poema como
Francesco d’Assisi riconciliato” de Jacques
inaugurador da literatura italiana? Sem
Dalarun, coloca o Cântico como algo que de
dúvida, uma fonte que testemunha os
fato Francisco de Assis “fez” porque o poema
primeiros passos das línguas vernáculas no
não nasce escrito, nasce cantado, cantado na
medievo. Enfim, “O Cântico do Irmão Sol” é
memória dos frades, em particular Frei Leão.
um texto inédito escrito em umbro antes de
Por isso, não importa a distância em que foi
Dante Alighieri (1265-1321) pois nasce nos
transcrito, mas o significado do seu conteúdo,
primeiros decênios do século XIII. Além
especificamente da transcrição do 338, enfim
disso, a partir do seu conteúdo depreendemos
a autoria deste é atribuída a São Francisco,
temas como a paz, a harmonia do mundo, que

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poderia ser uma reflexão das lutas intestinas http://www.internetculturale.it/jmms/iccuview


de uma sociedade de comunas italianas em er/iccu.jsp?id=oai%3Awww.internetculturale.
franco crescimento marcada por contradições, sbn.it%2FTeca%3A20%3ANT0000%3APG0
intervenções papais ou do imperador, tensões 213_ms.338&mode=all&teca=MagTeca+-
entre bispos e o poder local, entre outros +ICCU Acesso: 30 jan. 2018.
aspectos. O Cântico seria uma forma de MENESTÒ, Enrico & BRUFANI, Stefano.
pacificar os conflitos se pensarmos na questão Fontes Franciscani. Assis: Edizioni
da paz social no medievo? Canticum fratris Porziuncola, 1995, pp. 169-181.
Solis foi objeto de tantas hipóteses. O Cântico
assegura a São Francisco um lugar entre os Bibliografia
místicos-poetas (DOYLE, 1982, p. 57). O
poema convida para o contemplar de um DALARUN, Jacques. Il Cantico di frate
mundo pacificado, de maneira simples e sole: Francesco d’Assisi riconciliato. Milano:
mútua, a partir do próprio homem como um Edizioni Biblioteca Francescana, 2015.
centro e equilíbrio funcional da criação, DALARUN, Jacques. Le cantique de Frère
portanto da sociedade do início do século soleil: François d’Assise réconcilié. Paris: 339
XIII. O “Cântico do Irmão Sol ou das Alma éditeur, 2014.
Criaturas” é uma poesia feita para disseminar DALARUN, Jacques (org.). François
o cristianismo naquele período que, embora d’Assise. Écrits, Vies, témoignages. Paris:
tenha sido pensada e escrita numa língua Sources franciscaines, 2010.
vernácula, revela uma erudição excepcional, DOYLE, Eric. Francesco e il cantico delle
antes dos escritos de Dante. creature. Inno dela fratellanza universale.
Assisi: cittadella, 1982.
REFERÊNCIAS HARDICK, Lothar. Povertà, povero. In:
CAROLI, Ernesto (org.). Dizionario
Fontes Francescano: Spiritualità. Padova:
Messaggero di S. Antonio, 1995, pp. 1551-
Cântico das Criaturas. Disponível em: 1588.
http://www.capuchinhos.org/franciscanismo/f LECLERC, Éloi. Canto, cantico. In:
ranciscanismo-escritos/635-cantico-das- CAROLI, Ernesto. Dizionario franciscano.
criaturas Acesso: 30 jan. 2018. Spiritualità. Padova: Edizioni Messaggero,
Manuscrito 338 da Biblioteca do Sacro 2002, p. 135-147.
Convento de Assis. Disponível em:

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LE GOFF, Jacques. São Francisco. Rio de


i
É professora de História Antiga e Medieval do
Janeiro: Record, 2001. Departamento de História e docente do Programa de
Pós-graduação em História e Estudos culturais da
MANSELLI, Raoul. São Francisco. Universidade Federal de Rondônia, Campus José
Petrópolis: Vozes, 1997. Ribeiro Filho, em Porto Velho. Bacharel (2005) e
licenciada (2006) em História pela Universidade de
MERLO, Grado G. Em nome de São São Paulo, concluiu o Mestrado (2010) e o Doutorado
(2016) em História Social na Universidade de São
Francisco. História dos Frades Menores e do Paulo. Foi bolsista da École française de Rome (EFR)
numa estadia de pesquisa de seis meses.
franciscanismo até inícios do século XVI.
ii
O manuscrito completo 338 do Sacro Convento
Trad. Ary E. Pintarelli. Petrópolis: encontra-se disponível em:
http://www.internetculturale.it/jmms/iccuviewer/iccu.js
Vozes/FFB, 2005. p?id=oai%3Awww.internetculturale.sbn.it%2FTeca%3
A20%3ANT0000%3APG0213_ms.338&mode=all&te
MICCOLI, Giovanni. Francisco de Assis:
ca=MagTeca+-+ICCU Acesso: 30 jan. 2016.
Realidade e memória de uma experiência 3
Tradução: Louvado sejas, ó meu Senhor, com todas
cristã. Petrópolis: Vozes, 2004. as tuas criaturas, especialmente o meu senhor Irmão
Sol, o qual faz o dia e por ele nos alumias. E ele é belo
PAOLAZZI, C. Il Cantico di frate Sole. e radiante, com grande esplendor: de ti, Altíssimo, nos
dá ele a imagem. Louvado sejas, ó meu Senhor, pela
Assisi: Porziuncola, 2010. irmã Lua e as Estrelas: no céu as acendeste, claras, e
preciosas e belas. Disponível em:
SABATIER, Paul. Vida de São Francisco de
http://www.capuchinhos.org/franciscanismo/franciscan
Assis. Bragança Paulista: Editora universitária ismo-escritos/635-cantico-das-criaturas Acesso em: 30 340
jan. 2018.
de São Francisco, Instituto Franciscano de 4
Aqui começam os louvores das criaturas que o
Antropologia, 2006. abençoado Francisco fez para o louvor e glória de Deus
enquanto ele estava doente em São Damião. Tradução
SILVA, Brás José da. A fraternidade nossa.
5
cósmica na perspectiva do Cântico das Tradução: Altíssimo, omnipotente, bom Senhor, a ti o
louvor, a glória, a honra e toda a bênção. A ti só,
Criaturas. Uma contribuição de São Altíssimo, se hão-de prestar e nenhum homem é digno
de te nomear. Disponível em:
Francisco de Assis para a teologia mística.
http://www.capuchinhos.org/franciscanismo/franciscan
2010. Tese de Doutorado em Teologia. ismo-escritos/635-cantico-das-criaturas Acesso em: 30
jan. 2018.
Centro de Teologia e Ciências Humanas, 6
Tradução: Louvado sejas, ó meu Senhor, pelo irmão
Pontifícia Universidade Católica, Rio de Vento e pelo Ar, e Nuvens, e Sereno, e todo o tempo,
por quem dás às tuas criaturas o sustento. Louvado
Janeiro, 2010. sejas, ó meu Senhor, pela irmã Água, que é tão útil e
humilde, e preciosa e casta. Louvado sejas, ó meu
VAUCHEZ, A. François d’Assise. Entre Senhor, pelo irmão Fogo, pelo qual alumias anoite: e
histoire et mémoire. Paris: Fayard, 2009. ele é belo, e jucundo, e robusto e forte. Louvado sejas,
ó meu Senhor, pela nossa irmã a mãe Terra, que nos
URIBE, F. Por los caminos de Francisco de sustenta e governa, e produz variados frutos, com
flores coloridas, e verduras. Disponível em:
Asis. Oñate: Franciscana Aránzazu, 1990. http://www.capuchinhos.org/franciscanismo/franciscan
ismo-escritos/635-cantico-das-criaturas Acesso em: 30
jan. 2018.
NOTAS 7
Tradução: Louvado sejas, ó meu Senhor, por aqueles
que perdoam por teu amor e suportam enfermidades e
tribulações. Bem-aventurados aqueles que as suportam

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em paz, pois por ti, Altíssimo, serão coroados.


Louvado sejas, ó meu Senhor, por nossa irmã a Morte
corporal, à qual nenhum homem vivente pode escapar:
Ai daqueles que morrem em pecado mortal! Bem-
aventurados aqueles que cumpriram a tua santíssima
vontade, porque a segunda morte não lhes fará mal.
Disponível em:
http://www.capuchinhos.org/franciscanismo/franciscan
ismo-escritos/635-cantico-das-criaturas Acesso em: 30
jan. 2018.
8
Tradução: Louvai e bendizei a meu Senhor, e dai-lhe
graças e servi-o com grande humildade. Disponível
em:
http://www.capuchinhos.org/franciscanismo/franciscan
ismo-escritos/635-cantico-das-criaturas Acesso em: 30
jan. 2018.
9
Ver regula bullata: MENESTÒ, Enrico & BRUFANI,
Stefano. Fontes Franciscani. Assis: Edizioni
Porziuncola, 1995, pp. 169-181.
10
Carta encíclica “Laudato si” do Papa Francisco sobre
o cuidado da casa comum. Disponível em:
http://docplayer.com.br/424962-Carta-enciclica-
laudato-si-do-santo-padre-francisco-sobre-o-cuidado-
da-casa-comum.html Acesso em: 30 jan. 2018.
11
Pode ser conferido no seguinte sítio da Agregation
d”Italien de 2015 da Biblioteca Nacional da França do
341
Departamento de Literatura e Arte. A bibliografia
seletiva que traz na capa um afresco de Giotto da
Basílica de Assis na Itália, o papa Inocêncio III
aprovando a Regra franciscana em 1210, e um conjunto
de livros sobre a temática de São Francisco e do
Franciscanismo, incluindo o Cântico do Irmão Sol,
disponível em:
http://www.bnf.fr/documents/biblio_agreg_it_2015.pdf
Acesso em: 30 jan. 2018.

Recebido em: 13/07/2018.

Aprovado em: 30/07/2018.

Publicado em: 31/08/2018.

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