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CENTRO
INTERDISCIPLINAR DE RESUMO
ESTUDO E PESQUISA
Este artigo busca fazer um exercício de análise da historiografia sobre o Cântico
DO IMAGINÁRIO
SOCIAL do Irmão Sol do manuscrito assisiano 338, testemunho mais antigo do Cântico,
transcrito nos anos 40 do século XIII. Este manuscrito do Cântico do Irmão Sol
ou das Criaturas é atribuído a Francisco de Assis que teria ditado para Frei Leão
entre os anos de 1225 e 1226. Por meio de uma linguagem popular, os elementos
presentes neste Cântico expressariam a simplicidade do Pobre de Assis e o
rompimento com a tradição das orações escritas em latim. Nesta discussão do
manuscrito, partiremos das propostas teóricas-metodológicas de Jacques Dalarun,
onde Francisco aparece como um personagem ‘transgressor’ do tempo em que
viveu. Além disso, também seguiremos os postulados de Éloi Leclerc e Carlo
Paolazzi como referenciais para a análise do poema.
Palavras-chave: Ordem franciscana; pobreza; Igreja; O Cântico das Criaturas;
São Francisco.
ABSTRACT
This paper aims to make an analysis of historiography exercise on the Song of
REVISTA LABIRINTO Brother Sun of assisiano 338 manuscript, oldest testimony of the Song,
ANO XVIII transcribed in the 40s of the thirteenth century. This manuscript of the Canticle of
VOLUME 28
Sun Brother or Creatures is attributed to Francis of Assisi would have dictated to
(JAN-JUN)
2018 Brother Leo between the years 1225 and 1226. Through a popular language, the
P. 324-341. elements present in this Song would express the simplicity of the Poor of Assisi
and breaking with the tradition of the Latin prayers written. However, to discuss
the manuscript, we leave the theoretical and methodological proposals of Jacques
Dalarun, where Francis appears as an 'transgressor' character of the time in which
he lived. We also will follow the postulates of Éloi Leclerc and Carlo Paolazzi as
reference for the analysis of the poem.
Keywords: franciscan Order; poverty; Church; The Canticle of the Creatures; Saint Francis.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O CÂNTICO DO IRMÃO SOL: A LÍNGUA VERNÁCULA NA POESIA FRANCISCANA,
VERONICA APARECIDA SILVEIRA AGUIAR
REVISTA LABIRINTO, PORTO VELHO (RO), ANO XVIII, VOL. 28 (JAN-JUN), N. 1, 2018, P. 324-341.
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1209, Francisco decidiu ir para Roma, para italiano vernáculo. Essa poesia franciscana foi
explicar o seu ideal de vida ao papa, escrita em língua italiana, na região da
inspirados no evangelho. Em 1210, o papa Úmbria entre 1225 e 1226, na introdução do
Inocêncio III (1198-1216) concedeu apenas texto lê-se: "Iniciam os Louvores das criaturas
aprovação verbal. que o bem-aventurado Francisco compôs em
Francisco estava decidido em sua louvor e honra a Deus quando estava enfermo
penitência e, tendo chegado ao Evangelho, em São Damião". Nos primeiros meses de
optando pela pobreza voluntária, embora sem 1225, Francisco ditou as Laudes enquanto
perder nada da sua qualidade e tipicidade estava doente, num momento de sofrimento, à
originárias da escolha da experiência entre os Frei Leão. Na verdade, Francisco teria
marginalizados. Ele vestiu o hábito de eremita composto em diferentes momentos da vida,
que logo abandonou para assumir outro, ainda foi aperfeiçoado ao longo da sua trajetória e
mais pobre, um pano rude com o qual se terminada no fim de sua vida.
cobria e, no lugar de uma correia, uma corda, Visto como um documento
abandonando o bastão e os calçados, fundamental para a compreensão do ideal de
conforme um literalismo que era vida de Francisco de Assis, este Cântico 326
característico dos movimentos leigos permite conhecer a relação de Francisco com
populares penitenciais da Úmbria a paz, um ideal de vida em harmonia com o
(MANSELLI, 1997, p. 75-76). Francisco ambiente que o cercava. Nesta composição a
tornou-se o fundador da Ordem dos frades referência ao Criador e as suas Criaturas
menores, uma das Ordens mais importantes mostra uma contemplação que o Poverello
da Igreja romana e a mais popular. A vivenciou ao longo da sua trajetória, talvez
obtenção da aprovação da sua regra foi no dia um vestígio do movimento Franciscano da
29 de novembro de 1223, dada pelo papa sua primeira fase, do momento da fraternitas.
Honório III (1216-1227). Antes disso, Ao escrever o Cântico, Frei Francisco estava
Francisco havia renunciado a ser o guia da sua num momento de saúde frágil, quase cego,
Ordem em 29 de setembro de 1220. numa angústia profunda, doente e no final da
O canto era importante para a vida.
pregação franciscana, foi um meio de Neste artigo analisaremos os trechos
irradiação do cristianismo e de evangelização do poema umbro do manuscrito 338 da
(LECLERC, 2002, p. 138). O Cântico do Biblioteca comunal de Assis, situada no Sacro
Irmão Sol ou das Criaturas configura-se numa Convento. São eles, a saber, os fólios 33
das primeiras obras literárias escritas no frente e verso e o 34 frente, publicados no
REVISTA LABIRINTO, PORTO VELHO (RO), ANO XVIII, VOL. 28 (JAN-JUN), N. 1, 2018, P. 324-341.
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livro “Le cantique de frère soleil” de Jacques collezioni digitali dele biblioteche italiane
Dalarun de 2014 (DALARUN, 2014), disponível pela internet conforme indicação a
também digitalizados pelo Cataloghi e seguirii.
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sol é o “meu senhor Irmão Sol”, enquanto a homem está reduzido ao silêncio, se as outras
terra é “minha irmã mãe Terra”, ao mesmo criaturas não são agentes, mas instrumentos
tempo irmã e mãe. Assim, o único Pai está das laudas, por meio da preposição per, então
nos céus e a mãe está na terra, a mãe-terra que as laudas não são destinadas ao Senhor, no
nutre e governa. sentido de dirigido a ele “A te sono...”,
No poema, Francisco celebra a criação continuando “Da te sono...” e ao Senhor
e não a natureza, a dúvida gravita em torno do retorna “Tue sono...” (DALARUN, 2015, p.
destinatário da Lauda: “Laudato sie, 62).
mi’Signore”, seria o Criador? Se é ele, quem Outra observação importante, refere-se
o Louva? Para responder essas questões é a “cum” na estrofe dedicada ao sol: “Laudato
necessário indagar a preposição per, muito sie, mi’Signore, cum tutte le tue creature”.
debatido pelos estudiosos, é possível pensar Esta palavra “cum” no sentido de “por meio
na hipótese de polissemia para essa de” teria o mesmo denominador comum de
preposição. A primeira tradução seria no “per” em italiano, por exemplo, comer com as
sentido de causalidade “a causa de”; em mãos, sentido “por meio” e não no sentido de
segundo lugar, seria possível pensar de forma companhia. Enfim, a Lauda é o canto de 333
ocasional “a propósito de”; a terceira seria Deus, que cria o mundo numa circularidade
correspondente ao agir “da parte de” e por que atravessa e arrasta consigo as criaturas.
último de maneira estrutural, “por meio de”. Como observamos, a tradução do poema é
Se o poema fosse originalmente em latim, a complexa, entender o significado das palavras
causalidade seria excluída, mas no italiano utilizadas implica mais do que um
umbro não. (DALARUN, 2015, p. 61). contextualização e conhecimento do italiano
Deste modo, a criatura seria o vernáculo. Com isso, uma forma mais segura
propósito da Lauda enquanto os homens de interpretação dos dados está na
seriam os agentes. Essa dúvida, não é da confrontação deste Cântico com os outros
historiografia atual, as pluralidades de escritos de Francisco e, sobretudo, com as
significados possíveis são muitas, porque a hagiografias do período que demonstram uma
preposição possibilita vários sentidos. Sendo herança das duas primeiras fases do
assim, poderíamos pensar a seguinte movimento Franciscano.
interpretação: se o homem é incapaz de As últimas estrofes do “Cântico do
oferecer uma Lauda adequada a Deus, então Irmão Sol” têm como tema o perdão e a
as outras criaturas assumiriam este papel. morte, num período em que a guerra era uma
Giovanni Pozzi interpreta em outro sentido, o realidade constante, tanto por parte do papado
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abstrato cujo sentido permaneceria imutável materiais. Este modo de vida foi adaptando-se
em todos os tempos e lugares”. Dessa forma, ao crescimento da urbe medieval e da Ordem.
a pobreza depende das condições sociais Na Regra de 1221, a pobreza tinha a forma
assim como a riqueza, é um valor relativo que sobretudo da renúncia dos bens,
só pode ser determinado em função das principalmente com a proibição de receber, na
condições de vida econômico-sociais nos ocasião, “aliquam pecuniam, neque per se,
diversos povos e em diferentes tempos. neque per interpositam personam”. A
Segundo o autor existem muitos significados proibição de receber dinheiro era uma
na concretização da pobreza ao longo da constante no modo de viver pauperístico de
Idade Média. No entanto, a pobreza sempre Francisco e companheiros, sempre reportando
esteve ligada mais ou menos a uma notável a uma tipologia ideal e idealizada de Cristo e
falta dos bens que são colocados à disposição dos Apóstolos: Cristo que se “fez pobre por
de todos como propriedade, consumo ou meio nós neste mundo” e, segundo a Regra de
de trabalho. Hardick nos aponta que o 1221, o não receber dinheiro parecia ir de
movimento da pobreza voluntária não é acordo com a real utilidade prática que a
exclusividade do cristianismo e muito menos pecúnia representava no período: “Quia non 336
do franciscanismo, que não trouxe novidade, debemus maiorem utilitatem habere et
mas ressignificou algo já presente na doutrina reputare in pecunia et denariis quam in
cristã. E conclui, Francisco não foi o único lapidibus”, confirmada pela passagem em que
entusiasta da pobreza no seu tempo, tivemos se proibiu aos frades a intromissão nos
vários movimentos pauperísticos que foram “temporalibus negotiis” ou de receber
considerados heréticos segundo o ponto de dinheiro de postulantes no ato da
vista católico romano como os Pobres de expropriação dos seus bens. Os frades
Cristo, os cátaros, os Humilhados, os itinerantes que excerciam uma profissão
Valdenses, os Pobres Católicos e os Pobres artesanal podiam ter “ferramenta et
Reconciliados (HARDICK, 1995, p. 1551). instrumenta suis artibus necessari”, mas
Francisco propôs um ideal de vida ninguém podia “ubicumque sit et quocumque
caracterizado por uma existência pobre, que vadit, aliquo modo tollat, nec recipiat, nec
preconizava a ausência de propriedade, a recipi faciat pecuniam aut denarios, nec
recusa de provisões, do dinheiro, dos cargos e occasione vestimentorum, nec librorum, nec
do poder, bem como a disposição de viver de pro pretio alicuius laboris, immo nulla
esmolas em favor de uma fraternidade occasione, nisi propter manifestam
equânime, universalmente pobre em bens necessitatem infirmorum fratrum”9.
REVISTA LABIRINTO, PORTO VELHO (RO), ANO XVIII, VOL. 28 (JAN-JUN), N. 1, 2018, P. 324-341.
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