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Sociologia Jurídica
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Andrea Martins
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Apresentação 7
2 Os clássicos da sociologia 21
2.1 A sociologia de Émile Durkheim: a divisão social do trabalho e a
solidariedade 21
2.2 A sociologia de Max Weber: a busca do sentido da ação 25
2.3 A sociologia de Marx: a importância do trabalho na sociedade capitalista 27
5 Direito e ideologia 59
5.1 Ideologia como falseamento da realidade 59
5.2 As várias perspectivas da ideologia 63
5.3 O papel dos intelectuais e a ideologia 66
Gabarito 113
7
Apresentação
Nesta obra, o objetivo é apresentar a relação do Direito com a sociedade da qual faz parte,
buscando autores, teorias e explicações sobre como ocorre essa relação. Assim, esta obra busca
trazer um olhar mais crítico sobre o estudo do Direito, mostrando suas complexas relações com a
sociedade, compreendendo-a por uma pluralidade de interesses diversos, e o Direito como fruto
dessa tensa disputa existente na sociedade.
1
As relações entre a sociedade e o Direito
Neste capítulo serão analisadas as relações existentes entre a sociedade e o Direito. Para tanto,
estes são os questionamentos que irão nortear este estudo: há interferência do Direito na constitui-
ção da sociedade? Existem relações entre os fenômenos sociais e a construção das normas jurídicas?
Tais questões permitirão identificar a existência de uma relação dialética de interferências
recíprocas entre as relações sociais e as normas jurídicas. O entendimento dessas interferências per-
mitirá compreender que a sociedade se constitui a partir das influências que sofre do seu processo
histórico, cultural, político, econômico, religioso, entre outras. Este estudo também possibilitará o
entendimento do Direito como sendo constituído por diversos fatores específicos de cada sociedade.
Para promover reflexão, análise e pesquisa sobre essas relações existentes entre a sociedade e
o Direito, serão também analisados o conceito e os objetivos da sociologia jurídica.
De acordo com o conceito citado, verifica-se a complexidade que envolve o estudo da socie-
dade, sendo importante destacar o elemento de interdependência entre os seus membros. A vida
em sociedade envolve uma coparticipação entre os indivíduos, que dividem e partilham as tarefas
comuns, e é esse um dos elementos centrais na caracterização de uma sociedade. A sociologia é a
ciência que estuda a complexidade de uma organização social, como comenta Giddens: “a socio-
logia é o estudo científico da vida humana, de grupos sociais, de sociedades inteiras e do mundo
10 Sociologia Jurídica
humano. É uma atividade fascinante e instigante, pois seu tema de estudo é o nosso próprio com-
portamento como seres sociais” (GIDDENS, 2012, p. 19).
Assim, a sociedade, objeto da sociologia, deve ser entendida de forma ampla e diversificada,
com sua complexidade, em que os indivíduos desenvolvem relações sociais, afetivas, econômicas,
religiosas, entre outras.
Para Giddens (2012), os estudos sociológicos permitem identificar uma riqueza das relações
sociais e verificar aquelas mais profundas existentes na sociedade, demonstrando a dinâmica des-
sas relações, interpretando fatos e instituições e demonstrando as tensões existentes no interior da
sociedade. Ainda segundo o autor, a sociologia também tem outras funções, ela “nos ensina que
aquilo que consideramos natural, inevitável, bom ou verdadeiro pode não ser, e que as coisas que
consideramos como normais são profundamente influenciadas por fatos históricos e processos so-
ciais” (GIDDENS, 2012, p. 19). A sociologia também permite compreender a sociedade com base
na produção do conhecimento científico, e não de opiniões pessoais ou de experiências individuais.
Mas quais são os objetos que podem ser estudados pela sociologia? Giddens (2012) traz um
exemplo sobre as possibilidades de estudo da sociologia a partir de um fato do cotidiano: tomar
café. A Figura 1 retrata uma cena com pessoas tomando café. O que cada um de nós pode refletir
com base nela? É possível uma pesquisa sociológica sobre o uso do café?
Figura 1 – Indivíduos bebendo café
AntonioGuillem/ iStockphoto
ideias, constituindo um processo de interação social, que pode ser objeto sociológico
de pesquisa.
2. Como bebida, o café contém substâncias estimulantes para o cérebro, como a cafeína,
que proporciona a muitas pessoas uma dose extra de energia no seu dia. O uso conti-
nuado do café pode gerar um hábito que corresponde a um vício. Apesar de ser uma
droga socialmente aceita, pode também ser um objeto de estudo para a sociologia, pelas
razões do uso e difusão dessa bebida e pelas consequências que essa droga pode causar
nas pessoas.
3. Ao beber uma xícara de café, um indivíduo contribui para um longo processo produti-
vo e econômico. Produção, transporte e distribuição do café fazem parte de uma grande
cadeia econômica, geradora de riquezas que impactam as sociedades envolvidas nesse
ciclo econômico, também podendo ser objeto da sociologia, pois essas relações são
locais e globais.
4. O consumo do café, apesar de globalizado atualmente, não foi sempre assim. Sua origem
vem do Oriente Médio, mas foi com a expansão para o Ocidente, mais ou menos há 200
anos, que o produto foi sendo amplamente difundido. A maior parte do café produzido
hoje no mundo vem de regiões como América do Sul e África, que foram colonizadas
pelos europeus. Assim, também é possível analisar sociologicamente o café pelas rela-
ções econômicas, produtivas, históricas e culturais envolvendo diferentes povos.
5. E, finalmente, o consumo do café na sociedade globalizada em que vivemos pode ser
estudado por meio de temas atuais, como os direitos humanos, a sustentabilidade,
a produção orgânica e o comércio justo. A sociologia pode estudar as relações entre o
processo de globalização e o aumento da consciência de problemas globais.
Esses exemplos demonstram que a sociologia, como ciência, pode estudar e pesquisar por
meio de muitos enfoques diferentes um mesmo fenômeno ou fato social. No entanto, para que real-
mente produza ao final de uma pesquisa um conhecimento científico, faz-se necessário o uso de
métodos sistemáticos de pesquisa, com adoção de critérios, definição de formas de coleta e análise
dos dados, para então poder chegar a um resultado válido.
Uma pesquisa científica deve seguir etapas. Inicialmente, é necessário definir o tema para
que se possa delinear com maior precisão o objeto a ser pesquisado. Depois define-se o problema,
isto é, qual é a pergunta-chave que se procura responder com a realização da pesquisa. A seguir,
o investigador deve estudar sua pergunta de partida com leituras e entrevistas exploratórias. Após
essa fase, é possível definir a problemática da pesquisa e assim construir um modelo de análise, que
será composto de uma fase de observação, incluindo a coleta de dados. Só então é possível seguir
para a próxima etapa, que constitui a análise das informações, e chegar à fase final, que é a conclu-
são da pesquisa (QUIVY; CAMPENHOUDT, 1998).
Realizar pesquisas sociológicas permite, em primeiro lugar, conhecer as diferenças culturais
existentes no mundo e uma ampliação das perspectivas de como olhar o mundo. Também pos-
sibilita uma maior autocompreensão, pois, quanto mais os indivíduos se conhecerem, souberem
como e por que agem na sociedade, mais poderão contribuir e influenciar nas mudanças sociais
(GIDDENS, 2012).
12 Sociologia Jurídica
na sociedade a necessidade de regras como essa, pois os dados sobre as mortes no trânsito decor-
rentes do uso de bebidas alcóolicas eram muito altos. Na própria exposição de motivos que seguiu a
aprovação da lei, a Organização Mundial da Saúde (OMS) revela o número dessas mortes, além do
aumento do consumo de bebidas alcoólicas entre os jovens e o volume de recursos públicos gastos
com acidentes de trânsito em virtude desse problema.
Assim, é possível verificar que havia fatos concretos na sociedade que justificaram mudan-
ças legislativas. Após a aprovação da lei, houve alterações positivas, como a diminuição desses aci-
dentes, o aumento do uso de táxis por pessoas que ingeriram bebida alcoólica e precisavam voltar
para casa, a contratação de veículos pelos estabelecimentos comerciais para levar seus clientes para
casa e até a criação do que ficou conhecido como “motorista da rodada”, em que uma pessoa do
grupo de amigos não ingeria bebida alcóolica para poder dirigir ao final do evento.
No ano passado, 5,5% da população dessas cidades declararam que dirigiam
após o consumo de qualquer quantidade de álcool, contra os 7% do ano de 2012.
Os homens (9,8%) continuam assumindo mais a infração do que as mulheres
(1,8%). Apesar disso, desde o endurecimento da lei seca, menos homens têm
assumido os riscos da mistura álcool/direção: a queda foi de 22,2%, entre 2012
e 2015, na população masculina. (BRASIL, 2016)
É importante destacar que a aprovação dessa lei não aconteceu sem disputas, mas como
identificar no processo legislativo essas tensões existentes? É possível inferir que a indústria do
cigarro não tinha interesse na restrição do consumo e da publicidade do seu produto, porém isso
era algo que existia na sociedade, e foram esses interesses que predominaram, havendo, então,
a aprovação da lei.
É interessante observar que, no exemplo de lei citado primeiramente, não houve a proibição
por completo da propaganda de bebidas alcoólicas na televisão; o que a lei estabeleceu foram horá-
rios diferenciados para sua inserção. No entanto, no caso do cigarro, a proibição das propagandas
na televisão foi completa, o que demonstra as tensões e a forma de disputa dos interesses de cada
grupo e a definição do conteúdo das normas jurídicas.
Dessa forma, é possível compreender que as normas jurídicas não decorrem automaticamente
a partir de necessidades ou valores contidos na sociedade, pois eles podem ser conflitantes. Há dis-
putas e tensões para a incorporação desses interesses de cada grupo social no Direito. Para que isso
aconteça, é preciso haver um processo de organização desses grupos e a movimentação no sentido
de novas propostas legislativas e de convencimento da importância e necessidade dessas alterações.
Um exemplo disso pode ser a ausência de lei no Brasil que regulamente o casamento entre
pessoas do mesmo sexo. Pode-se questionar por que ela não existe. Apesar do movimento LGBT
no Brasil ter se organizado nos últimos anos e de ter propostas legislativas sobre a possibilidade do
casamento entre pessoas do mesmo sexo há muitos anos, verifica-se que também há uma organiza-
ção de algumas representações religiosas que são contrárias a essa regulamentação legal. Cabe des-
tacar que, no ano de 2011, o Supremo Tribunal Federal, em uma decisão progressista, reconheceu
a união estável entre casais homossexuais, assegurando direitos como pensão e herança.
Por fim, é possível identificar outra função para o Direito: o papel emancipador e trans-
formador da sociedade, pois as normas jurídicas, ao serem criadas a partir das demandas sociais
e serem eficazes no contexto societário, podem gerar mudanças que contribuem para ampliar o
patamar civilizador.
É também necessário diferenciar a sociologia jurídica de outras ciências jurídicas (Quadro 1).
Muitas vezes, há confusão entre os objetos de estudo da sociologia jurídica com a filosofia do Direito
e a própria ciência do Direito. No entanto, há distinções importantes entre essas várias ciências, pois
cada uma tem seu objeto próprio de análise, mesmo tendo o Direito como base para seus estudos.
Quadro 1 – Diferenças entre sociologia jurídica, ciência do Direito e filosofia do Direito
Sociologia jurídica Fato Eficácia Ser
A partir dessa comparação, verifica-se que a sociologia jurídica tem por objeto de estudo o
Direito como um fato social e analisa o Direito formado por normas jurídicas decorrentes da orga-
nização social e investigando sua eficácia. A esfera de análise da sociologia jurídica se dá no campo
da realidade concreta: o que são as normas, como se formaram, quais suas influências e tensões,
quais seus objetivos, o que transformaram.
Diferindo da sociologia jurídica, a ciência do Direito tem suas pecualiaridades. Para os
cientistas jurídicos, o objeto de estudo é a constituição das normas – em seus trâmites e regula-
mentações legais – e a dimensão de análise delas se dá pela sua vigência a partir da qual o estudo
se dá pelo dever ser. As normas jurídicas, como uma abstração que organiza e regulamenta fatos,
instituições e pessoas, têm uma proposição, são criadas para atingir um objetivo.
No entendimento de Sabadell (2010, p. 61), a “sociologia jurídica examina a influência dos
fatores sociais sobre o Direito e a incidência deste na sociedade, ou seja, os elementos de interde-
pendência entre o social e o jurídico, realizando uma leitura externa do sistema jurídico”.
O objeto de análise da sociologia jurídica busca responder três questões centrais
(SABADELL, 2010):
1. Por que se cria uma norma ou um inteiro sistema jurídico?
2. Quais são as consequências do Direito na vida social?
3. Quais são as causas da decadência do Direito, que se manifesta por meio do desuso e
da abolição de certas normas ou mesmo mediante a extinção de determinado sistema
jurídico?
Dessa forma, é possível representar o objeto de estudo da sociologia jurídica conforme a
Figura 2.
Figura 2 – Objeto da sociologia jurídica
Sociedade Direito
Já a filosofia do Direito tem como objeto de estudo o Direito como valor e sua dimensão de
análise é o fundamento que constitui o Direito.
[...] a Filosofia do Direito preocupa-se também com os fundamentos do Direito,
queremos dizer que constituem igualmente objeto dessa disciplina os problemas
relacionados com o ideal do direito, a natureza do que é jurídico, suas causas e
seus princípios últimos, seu conteúdo ético a seu mundo axiológico, investigan-
do ainda as ideologias ou correntes de pensamento que acabaram prevalecen-
do e servindo de fundamento aos principais institutos jurídicos. (CAVALIERI
FILHO, 2009, p. 63)
No Brasil, a teoria tridimensional do Direito, criada por Miguel Reale1, foi um marco de opo-
sição à teoria dominante da época, a teoria pura do Direito, elaborada pelo alemão Hans Kelsen2,
que entendia o Direito formado apenas pela norma, tendo essa a sua única fonte de formação.
Para Reale (2002), o Direito pode ser apreciado a partir de três perspectivas diferentes: valor,
norma e fato social.
1) o Direito como valor do justo, estudado pela Filosofia do Direito na parte
denominada Deontologia Jurídica, ou, no plano empírico e pragmático, pela
Política do Direito;
2) o Direito como norma ordenadora de conduta, objeto da Ciência do Direito
ou Jurisprudência; e na Filosofia do Direito no plano epistemológico;
3) o Direito como fato social e histórico, objeto da História, da Sociologia e
da Etnologia do Direito; e da Filosofia do Direito, na parte da Culturologia
Jurídica. (REALE, 2002, p. 509)
A teoria tridimensional do Direito faz uma crítica à abordagem positivista do Direito, que o
entende como sendo formado apenas pela norma jurídica. Para a teoria tridimensional do Direito,
a norma é formada pela influência que sofre dos valores, perpassada pelos fatos sociais, conforme
representação da Figura 3:
Figura 3 – Processo de formação da norma jurídica
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A partir da compreensão da Figura 3, verifica-se que a norma jurídica (N) é uma agregação
do complexo de valores (complexo axiológico) contidos na sociedade, que se refletem no conjunto
dos fatos sociais (F) gerando novas proposições legais, e ao percorrerem um processo legislativo,
1 Miguel Reale (1910-2006) foi um jurista, filósofo, poeta e professor universitário, com grande e importante produ-
ção científica e filosófica sobre o Direito. Suas principais obras foram: Filosofia do Direito (1953). Pluralismo e liberdade
(1963); Teoria tridimensional do Direito (1968) e Paradigmas da cultura contemporânea (1996). Foi ainda supervisor da
comissão que elaborou o novo Código Civil (2002).
2 Hans Kelsen (1881-1973) foi um jurista austríaco, um dos mais influentes da filosofia do Direito. Suas principais
obras foram: A democracia; Jurisdição constitucional; Teoria geral das normas; Teoria geral do estado e, sua obra mais
famosa, Teoria pura do Direito.
As relações entre a sociedade e o Direito 17
(P) transformam-se em norma jurídica (N). Portanto, para Reale (2002, p. 569), “a norma jurídica
é uma forma de integração fático-axiológica, dependendo dos fatos e valores de que se origina e
dos fatos e valores supervenientes”.
Esse processo de integração entre valor e fato, na produção das normas jurídicas pode ser re-
presentado na Figura 4, que demonstra o processo e formação de uma norma jurídica. Importante
destacar que a formação da norma jurídica deixa claro que o Direito não é algo estanque, dado,
concluído, mas sim, fruto de uma integração e de uma dinâmica com a sociedade, ficando nítidas
as causas das mudanças legislativas que passa cada sociedade e também por que cada sociedade
possui um ordenamento jurídico diferente. Há uma tensão entre os valores e fatos presentes na
sociedade, e é a partir dessas tensões que as normas vão se constituindo.
Figura 4 – Processo do normativismo concreto
v1 V2 V3 vn
N1 N2 N3 Nn
F1 F2 F3 Fn
Fonte: Reale, 2002, p. 569.
Existe um dinamismo na produção das normas, em que se incidem valores (V1) e fatos (F1)
que se transformam em outros valores (V2, V3, Vn) e outros fatos (F2, F3, Fn) e assim sucessivamente
em outras normas (N1 N2, N3, Nn). Tem-se um modelo explicativo para as transformações que ocor-
rem no ordenamento jurídico, fruto das alterações sociais. Alguns exemplos dessas transformações
recentes são as normas de Direito de família que tratam da fertilização in vitro; as normas de Direito
contratual que disciplinam as compras realizadas via internet; as normas de Direito do trabalho que
regulamentam o teletrabalho etc.
Considerações finais
Neste capítulo, foram analisadas as relações entre a sociedade e o Direito. Foi possível identi-
ficar que as ciências da sociologia e do Direito têm objetos de pesquisa diferentes e que a sociologia
jurídica tem por campo de análise a relação entre os fatos sociais e a formação do Direito, tendo,
dessa forma, um objeto de pesquisa diferente das outras ciências.
Também ficou claro que o Direito é um fato social e que sua formação é decorrente das
reivindicações e das necessidades oriundas da sociedade. Mas essa transformação das demandas
sociais em norma jurídica não acontece de forma neutra e impassível, mas o processo legislativo é
fruto de tensa e disputada luta por interesses.
Atividades
1. A sociologia foi concebida como ciência diante da necessidade de se analisar a forma como
se constitui e se organiza a sociedade. Explique quais as funções dos estudos sociológicos
para os indivíduos e para a sociedade.
3. Foi estudado neste capítulo que o Direito é um fato social. Explique o porquê.
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CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Sociologia Jurídica. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
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2
Os clássicos da sociologia
Este capítulo tem por objetivo analisar o pensamento dos três principais sociólogos clássicos:
Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx, no que tange às relações da sociedade com o Direito.
Estudar esses três pensadores contribuirá para a percepção da sociedade a partir de enfoques
diferentes, permitindo uma ampliação das formas de interpretar os fatos sociais e o Direito.
Compreender como esses autores analisaram a sociedade, cada um em seu tempo histórico,
também possibilitará o entendimento das alterações sociais ao longo do tempo e da forma como
a sociologia avançou para poder analisar tais transformações. Estudar os conceitos e categorias
criadas por esses autores será fundamental para o estudo da sociologia jurídica que se utiliza desses
conhecimentos para o estudo do Direito como um fato social.
Suas principais obras são: Da divisão social do trabalho (1893), em que o autor estabelece
o objeto de estudo da sociologia; As regras do método sociológico (1895), em que o autor lança as
bases metodológicas da nova ciência e; O suicídio (1987), obra em que ele aplicou o método em
uma monografia considerada modelo de pesquisa social, utilizando a estatística para estudo do
suicídio como um fato social.
22 Sociologia Jurídica
Conceitos como fato social, solidariedade, crime, anomia, que são muito importantes para o
estudo da sociologia e do Direito, foram amplamente estudados por Durkheim.
Sua obra tem dois grandes traços fundamentais: a preocupação com a autonomia da socio-
logia e a dicotomia entre o indivíduo e a sociedade, buscando explicar o condicionamento social
dos indivíduos.
Um dos grandes objetivos de Durkheim foi a consolidação da sociologia como uma ciência
autônoma, definindo um objeto de estudo específico, diferente das demais ciências. Em sua obra
As regras do método sociológico, dedicou-se a determinar o objeto de estudo para a sociologia,
isso é, o fato social.
Para Durkheim (2002, p. 11), “é fato social toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de
exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou então ainda, uma existência própria, indepen-
dente das manifestações individuais que possa ter”. O fato social é todo fenômeno social coerci-
tivo, exterior aos indivíduos e que representa uma generalidade no grupo social. Desse conceito,
extraem-se os três elementos essenciais que compõem essa categoria:
• coerção;
• exterioridade; e
• generalidade.
O primeiro elemento que compõe o fato social é a coerção. Sacadura Rocha (2009, p. 67)
explica que “todo ser humano é obrigado a seguir um conjunto de regras e normas que o grupo
social ao qual pertence lhe impõe”. Essas regras definidas pelo grupo são importantes para que o
indivíduo tenha parâmetros de convivência social, servindo, também, como critérios definidores
sobre o comportamento aceito pelo grupo, pois por meio dessas normas, o grupo perpetua valores
que ajudam no processo de socialização do indivíduo no grupo social.
O segundo elemento do fato social é a exterioridade. Para Durkheim, os fatos sociais são
anteriores e exteriores ao indivíduo. Um indivíduo, ao nascer em uma sociedade, encontra já de-
finidos os valores, as regras e as instituições que servirão como indicadores de conduta. Mesmo
entendendo que o mundo exterior influencia o comportamento do indivíduo com um caráter con-
servador de valores, ideias e instituições, Durkheim não deixa de acreditar na possibilidade de
mudança na sociedade, sendo que essas mudanças devem ser fruto da ação de grupos sociais e não
de indivíduos isolados.
O terceiro elemento que compõe o fato social é a generalidade. Para que um fato seja um ob-
jeto para o estudo da sociologia, deve ter uma representação quantitativa na sociedade, isto é, não
pode ser um fato ocasional ou isolado, mas estar presente na sociedade anterior e, posteriormente,
aos indivíduos.
Sendo o fato social o objeto da sociologia, Durkheim também se dedica à forma como se
deve estudar esse objeto. O estudo do fato social deve ser analisado com neutralidade pelo investi-
gador, resguardando a objetividade na análise, isto é, os fatos sociais devem ser estudados como um
objeto exterior, distinto do investigador. Afirma Durkheim (2002) que o primeiro corolário de um
investigador é afastar sistematicamente todas as suas pré-noções do objeto pesquisado.
Os clássicos da sociologia 23
Dessa forma, a pesquisa sociológica, para Durkheim (2002), deve seguir três princípios:
1. a compreensão de que a sociedade é regida por leis naturais;
2. o entendimento de que a sociedade pode ser estudada pelos mesmos métodos das ciên-
cias da natureza; e
3. a percepção de que a análise da sociedade deve limitar-se à análise e observação dos
fenômenos de forma neutra, objetiva, livre de julgamentos de valor.
A segunda frente de estudos de Durkheim foi a oposição entre o indivíduo e a sociedade a
qual pertence, pois o autor tinha uma preocupação com a integração da sociedade. Ele viveu um
momento de grande instabilidade na França e isso gerou nele a preocupação com a continuidade
e manutenção das relações sociais. Para tanto, o autor se dedicou a responder uma questão funda-
mental: o que mantém a integração dos indivíduos em uma sociedade?
Para responder a esse questionamento, temos o conceito de solidariedade, entendido como:
acreditar que todos em uma comunidade devem exercer uma determinada ati-
vidade importante e útil para o grupo, a partir da qual a relação de confiança se
estabelece e o respeito ao trabalho exercido por determinado indivíduo o insere
de forma eficiente na sociedade, permitindo-lhe estabelecer relações humanas
efetivas que, por outro lado e ao mesmo tempo, acaba dando morfologia ao
grupo, vale dizer, a solidariedade dá o caráter social ao indivíduo, por sua vez,
pela sua atividade útil e aceita como tal, influencia a própria forma da sociedade
a que pertence. (ROCHA, 2009, p. 73)
Já nas sociedades capitalistas, com divisão social do trabalho, marcada pela solidariedade
orgânica, há um outro tipo de Direito: no de tipo restitutivo predomina o Direito privado e a justi-
ça presente nessa outra ordem social é a justiça restaurativa, caracterizada não apenas por punir o
delituoso, mas em compreender as causas do fato social. Nesse tipo de justiça, o Poder Judiciário e
o próprio sistema penal têm um papel importante de inclusão do infrator à sociedade.
Essas conclusões são importantes para o estudo do Direito, como por exemplo, o estudo da
anomia. Para Durkheim, a anomia é a ausência de regulação social decorrente do desregramen-
to dos indivíduos pela perda da influência dos valores morais da sociedade sobre os indivíduos.
O autor identifica uma crise moral na sociedade, decorrente da fragilidade da coesão social, e que
pode ser recuperada pela capacidade do Estado de fiscalizar e participar ativamente no estímulo da
regulamentação das profissões e na organização da educação.
Esse diagnóstico de Durkheim é muito importante para o estudo da sociologia jurídica, ao
relacionar o papel do Estado com uma crise moral na sociedade.
Os clássicos da sociologia 25
Para Max Weber, o estudo da sociedade deve ser feito levando em consideração que as socie-
dades, a cada período histórico, resultam de uma diversificação de fatores. Diverge de Durkheim,
que entendia ser possível para as ciências sociais identificar constância e leis deterministas para a
compreensão da formação e manutenção das sociedades, o que para Weber não é possível.
A investigação da sociedade, para Weber, deve orientar-se pela conduta dos indivíduos. Para
tanto, o método utilizado por Weber (2000) foi o método compreensivo, no qual buscava com-
preender e capturar o sentido das ações sociais realizadas individualmente. Para Weber (2000, p.
6), compreensão significa “apreensão interpretativa do sentido ou da conexão de sentido”. Dessa
forma, o autor em seu método busca compreender o sentido das ações, mas também explicá-las,
pois “sentido” é algo subjetivamente pretendido pelo indivíduo.
Para o uso do método compreensivo, Weber utilizar o conceito de ação social. Mas, o que é
uma ação social? Para Weber (2000, p. 3), a ação social significa uma ação que, em elação a seu sen-
tido visado pelo agente, ou os agentes, refere-se ao comportamento de outros, orientando-se por
estar em seu curso. Isto é, uma ação social é a conduta humana dotada de sentido, uma ação com
uma justificativa subjetivamente elaborada. A expressão “os outros”, contida no conceito de ação
social, significa um indivíduo ou uma multiplicidade de indivíduos, mesmo que indeterminada.
Weber (2000) identifica quatro tipos de ação social:
1. De modo racional referente a fins – nesse tipo de ação, há uma racionalidade do in-
divíduo na escolha dos melhores meios para atingir um fim, isso é, há uma elaboração
racional dos meios e das possíveis consequências dessas ações. É possível identificar esse
26 Sociologia Jurídica
tipo de ação quando o indivíduo pensa da seguinte forma: “vou estudar durante o curso
de Direito porque quero ser um advogado”.
2. De modo racional referente a valores – quando a ação é orientada por valores éticos,
estéticos ou religiosos, o indivíduo elabora racionalmente sua ação, mas o objetivo al-
mejado não é apenas alcançar um fim, mas quais os meios que serão utilizados para
obter o que se pretende. Na escolha desses meios, estão os valores éticos defendidos pelo
indivíduo que quer atingir um objetivo, mas que não desrespeita seus valores. Esse tipo
de ação é possível ser identificado, quando o indivíduo pensa, por exemplo, da seguinte
forma: “Vou separar os resíduos sólidos que produzo, porque acredito na necessidade de
um planeta sustentável”.
3. De modo afetivo – na ação movida pelas emoções, o indivíduo tem por base seus sen-
timentos. Pode-se identificar esse tipo de ação quando o indivíduo pensa, por exemplo:
“Vou comprar um presente para minha namorada porque a amo”.
4. De modo tradicional – nesse tipo de ação, o indivíduo age movido pelas tradições,
costumes, valores e cultura arraigados. Nessa ação, o indivíduo age devido a padrões de
comportamento já inseridos em seus hábitos. Esse tipo de ação é possível de ser identi-
ficado quando o indivíduo pensa, por exemplo: “Na minha família, todos os domingos,
almoçamos juntos”.
A ação social gera efeitos no meio social, e esses efeitos podem fugir ao controle ou à previ-
são daquele que a realiza, pois, apesar de o agente ter um sentido para sua ação, não é possível ter
um prognóstico das consequências dessas ações.
Assim, não há uma classificação rígida das ações, mas apenas da intenção que está contida
na ação. Uma mesma ação social pode ser direcionada por sentidos diferentes, quando realizada
por indivíduos diferentes. Por exemplo, quando o indivíduo vai escolher sua profissão, ele pode
decidir cursar a faculdade de Direito porque quer exercer a profissão de advogado (o sentido de
sua ação está racionalmente direcionado a um fim), ou pode fazer o mesmo curso com a inten-
cionalidade de aprender sobre a sociedade e seu ordenamento jurídico para depois optar por uma
das carreiras jurídicas (o sentido de sua ação está relacionado racionalmente ao valor do estudo),
também pode fazer o curso de Direito porque gosta muito da área e entende que essa é sua aptidão
(o sentido de sua ação está relacionado aos seus sentimentos), ou ainda pode cursar a faculdade de
Direito porque seus pais e avós cursaram a faculdade de Direito (o sentido de sua ação está ligado
à tradição da sua família).
Weber (2000) também estuda as relações sociais, que acontecem quando dois indivíduos
orientam suas ações pelas perspectivas que têm um do outro, mas não necessariamente colocam o
mesmo sentido em suas ações. “Por relação social entendemos o comportamento reciprocamente
referido quanto a seu conteúdo de sentido por uma pluralidade de agentes e que se orienta por essa
referência” (WEBER, 2000, p. 16).
Um exemplo de relação social é a relação entre professor e aluno, em que o professor quer
ensinar e o aluno quer aprender. Mas, também, pode ocorrer de o professor querer ensinar, mas o
Os clássicos da sociologia 27
aluno querer apenas o título ao final do curso. Mesmo havendo essa inadequação das expectativas
das ações de um indivíduo em relação ao outro, ainda há uma relação social.
Assim, é possível entender que uma relação social é apenas uma probabilidade de que a res-
posta esperada venha a acontecer entre os indivíduos envolvidos. Para Weber, essa relação também
acontece na relação entre o indivíduo e a lei. Para o autor, essa é uma relação subjetiva, pois cada
indivíduo pode fazer uma interpretação diversa e ter um sentido para sua ação com base nas nor-
mas jurídicas. Isso possibilita uma análise do Direito como um conjunto organizado e sistemático
de normas, de forma subjetiva e não objetiva. Rocha (2009, p. 110) explica em outras palavras: “se
a base desse ordenamento jurídico é o conjunto de leis que pretendem ordenar um determinado
grupo social, e se a relação entre a lei e o indivíduo é desse tipo probabilístico, o Direito deve ser
considerado ‘subjetivo’ e não ‘objetivo’”.
Mas se o Direito é compreendido como subjetivo, então como garantir a aplicação das nor-
mas jurídicas? Para Weber, é o Estado que exerce o domínio sobre os cidadãos pelo uso da violência
controlada em troca de favores e interesses. Esse tipo de dominação foi denominada por Weber
como dominação racional legal, e é caracterizada pela relação entre Estado e cidadão pelo exercício
do poder racional pelo Estado, entendido como útil e necessário aos cidadãos com base nas leis.
Weber identifica também dois outros tipos de dominação, a dominação tradicional e a domi-
nação carismática. A primeira é caracterizada pela presença de um líder que domina a sociedade
com base na tradição e nos costumes dessa sociedade. Já na dominação carismática, a dominação
se dá pela presença de uma liderança personalíssima. Esse líder se utiliza desse poder influenciador
para controlar a sociedade.
Assim, percebe-se a importância do estudo de Max Weber para a sociologia jurídica, pois
esse autor enfrentou o estudo das relações entre o indivíduo, o Direito e o Estado, de forma que
até os dias presentes esses modelos explicativos são utilizados para a análise do Direito. Categorias
como burocracia, empresa, poder e dominação também foram estudadas por Weber e mantêm sua
relevância na atualidade.
Em sua investigação, Marx entende que o real é o guia fundamental para se pensar na his-
tória e acontece a partir de contradições. Essas contradições históricas não ocorrem naturalmente,
elas são provocadas pelas diferenças econômicas de classes.
Marx dedicou grande parte de sua vida na busca da compreensão das particularidades do
sistema produtivo capitalista. Ele entendia que a humanidade construiu diversos sistemas pro-
dutivos por meio da luta de classes, e que o capitalismo é uma dessas etapas de desenvolvimento
histórico da humanidade.
Na realização de sua pesquisa, Marx utilizou o método dialético e produziu um denso e
complexo modelo explicativo, que completou as múltiplas determinações que incidem sobre o
capitalismo, suas origens e suas consequências.
O método dialético propicia ao pesquisador ir além da aparência e buscar a essência do ob-
jeto pesquisado pela captura da sua estrutura e dinâmica. Realizando uma síntese, o pesquisador
reproduz no plano ideal a essência do objeto pesquisado (PAULO NETTO, 2011, p. 22). No que diz
respeito à epistemologia1, de acordo com Faria (2015), Marx se utiliza do materialismo histórico,
cuja realidade deve ser analisada dentro de seu processo de formação histórica que, na verdade,
não é estática, mas um movimento no qual devem ser encadeadas as relações.
[...] Marx elabora uma obra multi e interdisciplinar, complexa e substancial,
onde disciplinas como Sociologia, Filosofia, Economia, Política, Antropologia,
Psicologia, Religião, Ética, e mesmo ciências naturais como a Biologia, se apre-
sentam imbrincadas contribuindo de forma sistêmica para a defesa de suas
teses. (ROCHA, 2009, p. 120)
1 Cabe esclarecer que epistemologia é entendida “[...] como o estudo crítico do conhecimento científico, técnico e
filosófico”, buscando “responder como o conhecimento é produzido (construído, obtido, desenvolvido), organizado,
sistematizado e transmitido (explicitado, divulgado, exposto)” (FARIA, 2015, p. 60).
Os clássicos da sociologia 29
2 “A práxis na sua essência e universalidade é a revelação do segredo do homem como ser ontocriativo, como ser que
cria a realidade (humano-social) e que, portanto, compreende a realidade humana e não humana, a realidade na sua to-
talidade. A práxis do homem não é a atividade prática contraposta à teoria; é determinação da existência humana como
elaboração da realidade” (KOSIK, 1976, p. 202).
30 Sociologia Jurídica
A produção da mais-valia está associada à produção das mercadorias, base para a comercia-
lização, tendo como principal objetivo a obtenção do lucro.
Mas o que é o lucro? Para Marx (2013), o estudo da origem do lucro está associado ao pro-
cesso de produção e não ao processo de troca ou circulação das mercadorias.
É no processo de produção que se cria a mais-valia, pois ela acontece a partir do tempo de
trabalho executado pelo proletário, mas que não lhe é pago. Por isso, para Marx, o capital é fruto
de uma relação social, pois o acréscimo do valor utilizado na produção só aumenta por meio dessa
relação de exploração da força de trabalho proletária.
Assim, é importante diferenciar o lucro da mais-valia. O lucro é o excedente do capital inves-
tido inicialmente no processo de produção; no entanto, a mais-valia se dá apenas pela exploração
da força de trabalho não paga ao trabalhador.
[...] o mais-valor efetivo é determinado pela relação entre o trabalho excedente
e o trabalho necessário, ou entre a porção do capital – a porção do trabalho
objetivado – que se troca por trabalho vivo e a porção do trabalho objetivado
pela qual ela é substituída. Mas o mais-valor na forma do lucro é medido em
relação ao valor total do capital pressuposto no processo de produção. (MARX,
2011, p. 624)
Assim, o lucro depende da relação entre trabalho necessário e seu excedente não pago ao
trabalhador (mais-valor).
A geração da mais-valia, para Marx (2013), pode acontecer de duas formas: mais-valia abso-
luta e mais-valia relativa. A primeira acontece pelo aumento da jornada de trabalho.
O capitalista empregador aumenta o tempo que o trabalhador proletário fica à sua disposi-
ção produzindo, mas não aumenta o valor de seu salário. A mais-valia relativa acontece quando o
capitalista empregador intensifica a produção sem aumentar a jornada de trabalho; dessa forma,
o trabalhador proletário trabalha mais e produz mais, mas não há aumento no valor do salário.
A existência das mercadorias é parte fundamental dos estudos de Marx, pois a mercadoria é
um dos elementos básicos da economia capitalista.
Para Marx (2013), uma mercadoria pode ter um valor de uso e um valor de troca. A diferença
é que o valor de uso da mercadoria está relacionado ao seu conteúdo, como aquela mercadoria pode
satisfazer necessidades humanas; já o valor de troca da mercadoria está associado à capacidade que
uma mercadoria tem de poder ser trocada por outra mercadoria. É a partir da possibilidade de trocar
mercadorias por outras que o sistema econômico vai se tornando mais complexo, pois como é possí-
vel medir a grandeza do valor de cada mercadoria? Para o presente estudo, o importante é saber que,
para que essas trocas entre mercadorias aconteçam, é necessária uma outra mercadoria: o dinheiro.
Assim, pode-se entender a origem do valor, de acordo com Marx (2013), pela análise de
duas formas:
a. Forma de valor relativa – uma mercadoria trocada por outra mercadoria, ou uma merca-
doria sendo trocada por várias mercadorias.
b. Forma de valor equivalente – todas as mercadorias podem ser trocadas por dinheiro.
Os clássicos da sociologia 31
Assim, as mercadorias funcionam como medida de valor, seja em seu próprio elemento
material, seja na forma de dinheiro. Na sociedade capitalista, o dinheiro passa a ser uma mer-
cadoria amplamente desejada, pois assim pode-se adquirir qualquer outra mercadoria posta no
mercado, já que no mercando mundial a mercadoria dinheiro passa a funcionar como uma forma
de pagamento.
A complexidade da análise de Marx sobre a sociedade capitalista está presente no estudo
da mercadoria, pois a mercadoria, além de ser a base da economia capitalista, serve também para
o estudo da alienação do trabalhador. Para Marx (2013, p. 146), “uma mercadoria aparenta ser, à
primeira vista, uma coisa óbvia, trivial. Sua análise resulta em que ela é uma coisa muito intrinca-
da, plena de sutilezas metafísicas e melindres teológicos”. Explorando um pouco mais essas ideias:
O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no
fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho
como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como proprieda-
des sociais que são naturais a essas coisas e, por isso reflete também a relação
social dos produtos com o trabalho total como uma relação social entre os obje-
tos, existente à margem dos produtores. (MARX, 2013, p. 147)
Dessa forma, o autor explica que a mercadoria, apesar de ser produzida pelo trabalhador,
assume uma característica misteriosa que parece ganhar vida própria: assim, a mercadoria torna-se
desejo de aquisição pelo próprio trabalhador, criando um ciclo que se autoalimenta. O trabalhador
produz as mercadorias, cujo valor é fruto do seu trabalho somado ao mais-valor do empregador
capitalista, e o trabalhador, ao adquirir essas mercadorias, contribui para o retorno do lucro ao
capitalista. Esse processo que o autor denominou de fetichismo da mercadoria, envolve os indiví-
duos na sociedade capitalista fazendo parte da própria formação da subjetividade do indivíduo e
marcando profundamente o indivíduo em seu psiquismo.
Marx e Engels (2005) apontam que a divisão do trabalho leva o trabalhador à alienação que
pode acontecer de várias formas no sistema capitalista:
1. Alienação dos meios de produção – o trabalhador não possui os meios de produção e
não tem recursos para comprá-los; possui apenas sua força de trabalho.
2. Alienação do processo produtivo – o trabalhador não sabe fazer o produto completa-
mente. Ele conhece apenas uma parcela do processo produtivo, pois a produção passa a
ser intensivamente dividida, parcelada. Cada trabalhador domina apenas uma parte da
produção de determinado produto.
3. Alienação da compreensão – o trabalhador está direcionado a sua sobrevivência, pois
precisa trabalhar para sobreviver e assim se aliena na compreensão do funcionamento
do sistema capitalista.
Marx, ao estudar sobre a alienação, faz uma crítica sobre a posição dos proletários em so-
ciedade, pois, apesar de serem fundantes para o sistema capitalista funcionar, não percebem essa
essencialidade e, assim, sofrem um processo de exploração. A partir da análise da superestrutura, é
possível explorar os conceitos de Estado, Direito e ideologia na teoria marxista.
32 Sociologia Jurídica
Para Marx, o Estado e o Direito representam os interesses da classe dominante, isso é, a clas-
se burguesa, que, na sociedade capitalista, além de ter o domínio econômico, tem também o domí-
nio político, e dessa forma, incorpora no Estado e no Direito seus interesses, buscando controlar as
contradições e divergências inerentes a uma sociedade conflituosa como a capitalista.
A sociedade do modo de produção capitalista sofre a dominação econômica da
classe dominante, a burguesia. Esta não pode manter e conter as contradições
sociais senão recorrendo a um aparelho repressivo, o Estado. A classe econo-
micamente dominante é pois também a classe politicamente dominante; ela
investe o aparelho de Estado (administração, exército, política, justiça, etc.) e
fá-lo funcionar no sentido dos seus interesses. (MIAILLE, 1994, p. 134)
Mas a classe burguesa utilizará também de outros meios para a manutenção de sua domina-
ção, a ideologia. Para Marx, de acordo com Chaui3 (1989, p. 94), a ideologia “consiste precisamente
na transformação das ideias da classe dominante em ideias dominantes para a sociedade como um
todo, de modo que a classe que domina no plano material (econômico, social e político) também
domina o plano espiritual (das ideias)”.
Assim, a ideologia é um processo de inversão da realidade, ou dito de outra forma, é um
falseamento da realidade, é a criação de uma situação, em que as aparências da realidade são en-
ganadoras: “em toda ideologia, a humanidade e suas relações aparecem de ponta-cabeça, como
ocorre em uma câmara escura, tal fenômeno resulta de seu processo histórico de vida, da mesma
maneira pela qual a inversão dos objetos na retina decorre de seu processo de vida diretamente
físico” (MARX; ENGELS, 2005, p. 51).
Como todas as relações sociais são fruto da realidade concreta, a consciência dos indivíduos
também se forma nesse processo. Para Marx e Engels (2005, p. 52), “[...] os homens ao desenvolve-
rem sua produção material e relações materiais, transformam, a partir de sua realidade, também o
seu pensar e os produtos de seu pensar”.
Isso significa que a forma de pensar dos indivíduos está relacionada diretamente com a
sociedade a qual pertencem, e que para mudar a forma de pensar, é necessário alterar a realidade
concreta. Por isso, Marx acreditava que a revolução da classe proletária era a única forma de rom-
pimento com o modo de produção capitalista, pois o capital é gerado pela relação entre proletários
e burgueses, e assim, se os proletários rompessem com essa relação, poderia ser criada uma nova
forma de organização social, menos desigual e sem exploração.
Os estudos de Marx são fundamentais para a análise da sociedade capitalista, por isso sua
relevância na disciplina de Sociologia Jurídica. Categorias centrais da sociologia e do Direito,
como trabalho, classes sociais, consciência de classe, estrutura social, Estado e Direito foram
3 Marilena Chaui é uma filósofa brasileira, que tem uma ampla produção acadêmica e que estuda o tema do poder,
da violência e da estrutura da sociedade brasileira, além dos temas clássicos da filosofia. É professora da Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Suas principais obras são: A ideologia da competência;
A nervura do Real; Brasil: mito fundador e sociedade autoritária; Boas-vindas à Filosofia; Desejo, paixão e ação na ética de
Espinosa; Espinosa: uma filosofia da liberdade; Introdução à História da Filosofia (Vol. I e II); Manifestações ideológicas do
autoritarismo brasileiro; O convite à filosofia; O que é ideologia; O ser humano é um ser social; Política em Espinosa.
Os clássicos da sociologia 33
Considerações finais
Neste capítulo, foram estudadas as principais ideias de três autores clássicos da sociologia:
Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx. O objetivo foi identificar as categorias centrais estuda-
das por cada autor e fazer uma relação com temas do Direito.
Importante destacar que o estudo desses três autores possibilita uma diversificação na aná-
lise de temas centrais para a sociologia jurídica, como: o Direito, a justiça e o Estado, pois cada um
desses autores apresenta uma análise diferente sobre esses temas.
O livro da sociologia
(THORPE at al., 2015, p. 31)
Atividades
1. Ao estudar o pensamento de Émile Durkheim, qual a relação que é possível fazer entre a
divisão social do trabalho e o Estado?
2. No estudo sobre Max Weber, explique por que o autor entende que o Direito tem um caráter
subjetivo.
3. Karl Marx analisa a sociedade capitalista tendo o trabalho como seu elemento central. Expli-
que como o autor entende o papel do Direito e do Estado na sociedade capitalista burguesa.
4. Os três autores estudados tratam sobre o papel do Estado na sociedade, no entanto, cada um
faz essa análise a partir de perspectivas diferentes. Explique quais são essas diferenças.
Referências
CHAUI, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989.
DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2002.
FARIA. Epistemologia, metodologia e teoria em estudos organizacionais. Texto para discussão na disciplina de
Epistemologia, Metodologia e Teoria em Estudos Organizacionais do Curso de Doutorado em Administração
do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal do Paraná, 2015.
MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política.
São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia alemã. São Paulo: Editora Martin Claret, 2005.
PAULO NETTO, José. Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
ROCHA, José Manuel de Sacadura. Sociologia Jurídica: fundamentos e fronteiras. Rio de Janeiro: Elsevier,
2009.
THORPE, Christopher et al. O livro da sociologia. Coleção as grandes ideias de todos os tempos. v. 8. São
Paulo: Globo Livros, 2015.
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 2000.
3
Entendendo as transformações da
sociedade contemporânea
Você já parou para pensar sobre por que tudo está se transformando tão rápido na sociedade
contemporânea? Já pensou se essas transformações impactam as relações sociais e o Direito?
Este capítulo tem por objetivo abordar o tema da modernidade, explicando suas origens e
consequências. Nele será analisada a discussão sobre a existência da pós-modernidade, trazendo os
principais pensadores sobre o tema. Por fim, será analisada a existência de uma relação do Direito
com a pós-modernidade.
políticos, que foram importantes para essa transformação da sociedade antiga e o surgimento da
modernidade. São eles:
• Intensificação do comércio com o Oriente, com a criação de rotas de comércio e de bur-
gos em que aconteciam essas trocas. Abertura de contato com povos que possuíam conhe-
cimentos e formas de viver diferentes do modelo medieval europeu. Descoberta de novas
terras nas Américas, com o contato de novas culturas e povos.
• A crescente diminuição da interferência da Igreja na determinação dos costumes.
• Surgimento de uma nova classe social urbana, que posteriormente iria se afirmar como a
burguesia mercantil. Surgimento de novos artistas, intelectuais, pintores, escultores sub-
vencionados pelos mecenas que não tinham vinculação com o pensamento religioso.
• Retorno das ideias clássicas gregas nas artes e no conhecimento. O crescente papel das
ciências e sua interferência na vida social e política. Abertura das primeiras universidades
europeias como Bologna e Paris, que difundiram o pensamento dialético e escolástico.
Desenvolvimento da ciência e da medicina, que contribuíram para o aprimoramento de
novas técnicas de tratamento das doenças e epidemias. Surgimento de uma preocupação
metodológica-racionalista para a demonstração das evidências científicas, tendo como
maior representante Descartes.
Assim, verificou-se que houve intensa transformação social, marcada por uma expansão
do comércio que permitiu o contato com novos povos e culturas e possibilitou uma mudança de
ordem econômica e produtiva, que posteriormente deu origem a um novo modo de produção,
o capitalismo.
Dentre os elementos apontados por Bittar (2005), deve-se destacar a importância do surgi-
mento de uma nova classe social, a burguesia, que teve seu poder econômico ampliado, acarretan-
do em impactos na organização política da sociedade da época. A burguesia pressionou pelo fim
da monarquia e pela criação de um Estado-nação, baseado em um sistema republicano em que
fosse possível agir com mais liberdade. Ela também teve um papel importante como incentivadora
e financiadora da produção cultural, subvencionando artistas e pensadores que contribuíram para
a mudança na esfera cultural e intelectual da época.
Em conjunto com essas transformações, também houve o aumento da produção do conhe-
cimento, com a criação das primeiras universidades europeias, a expansão da ciência, com bases
metodológicas para sua criação e o resgate das ideias gregas clássicas. Todos esses elementos são
causa da diminuição da interferência da Igreja na sociedade e na política, possibilitando a constru-
ção de uma nova forma de viver e de pensar.
Assim, o surgimento da modernidade possibilitou uma desconexão entre o período medie-
val, marcado pela dualidade entre a fé e a razão, e uma nova ordem social, tendo como marca o uso
da razão, o avanço da ciência e do progresso. “Se tudo está para a razão, com a razão e em função
da razão, a ordenação racional é o sistema que tudo penetra, determinando as condições para a
preeminência do projeto moderno” (BITTAR, 2005, p. 53).
Entendendo as transformações da sociedade contemporânea 37
como figura o guarda-caça1. Na análise do autor, a classe dominante pré-moderna tinha uma fun-
ção de guarda-caça em relação às classes inferiores. No entanto, com a passagem para a moderni-
dade surge uma nova figura: o jardineiro. Ele tinha a função de supervisão, vigilância e cuidado,
pois um jardim precisa de atenção para que não volte ao estado selvagem. Mesmo um bom projeto
de jardim precisa de dedicação, visto que não é um projeto que se autorreproduz, pois está em
constante ameaça. Na modernidade, o Estado faz o papel do jardineiro em uma cultura jardim,
mantendo o controle e a supervisão da sociedade, para que essa não volte à cultura selvagem.
Para o autor, foi a incapacidade do guarda-caça de acreditar na capacidade humana (pois a classe
dominante pré-moderna entendia que as pessoas eram naturalmente religiosas, não precisando de
qualquer tipo de padronização ou de ajuste), que possibilitou a transformação da cultura selvagem
em cultura jardim.
Figura 1 – Natureza selvagem Figura 2 – Jardim
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Percebe-se nas figuras que um jardim precisa de cuidados e manutenção periódicos e cons-
tantes, diferindo da natureza selvagem, na qual não há necessidade de dedicação e diligência. Para
que um jardim permaneça com seus contornos definidos e planejados pelo seu criador, e para que
mantenha seu aspecto de harmonia, é preciso um jardineiro que faça o trabalho de cuidar e manter
esse espaço. Essa analogia feita por Bauman (2001) serve para compreender a figura do Estado
nessa nova organização social.
1 O guarda-caça era o servo que existia nas grandes propriedades rurais e que tinha a função de manter os locais e os
animais de forma adequada para a utilização de seus senhores. Também tinha a importante função de vigiar e fiscalizar
as áreas para manter afastados caçadores clandestinos.
Entendendo as transformações da sociedade contemporânea 39
– Estado – Terceiro Setor. Desse modo está ocorrendo uma expansão dos poderes da
sociedade e está havendo uma colaboração mais intensa entre essas três instituições.
O papel do Estado seria o de protetor e cuidador da sociedade? Está o Estado cumprindo
com seu papel? Quem o Estado está protegendo? Está gerando uma sociedade mais igua-
litária, justa e livre?
Esses questionamentos trazidos por Bittar (2005) sobre a realização dos ideais da moderni-
dade possibilitam uma profunda reflexão sobre a continuidade da existência da modernidade, ou o
surgimento de uma nova forma de viver e pensar, denominada pós-modernidade.
Sobre a existência da pós-modernidade, a seguir serão apresentadas as ideias de alguns pen-
sadores sobre o tema.
Cornelius Castoriardis (1922-1997), de origem grega, teve sua formação intelectual na
França, em filosofia, economia e psicanálise. Suas principais obras foram: instituição imaginária da
sociedade, Encruzilhadas do labirinto, Socialismo ou barbárie.
Para Castoriardis, a pós-modernidade se caracteriza pela decadência das crenças da mo-
dernidade. Ele a define como “pós-qualquer-coisa”, pois, na sua compreensão, a pós-modernidade
não traz um novo projeto de mundo e nem traz consigo o gérmen dessa mudança, mas apenas
um incômodo às pessoas que se sentem inertes e estáticas. Dessa forma, o que caracteriza a pós-
-modernidade é estar no mundo sem qualquer pretensão de sentido. A fragmentação que não per-
mite identificação e personificação é o que alimenta o homem pós-moderno. Para um novo projeto
de autonomia são necessários objetivos políticos e atitudes humanas, os quais o autor entende que
são raros nesse momento histórico.
Ulrich Beck (1944-2015), sociólogo alemão, tem por principais obras: Modernização reflexi-
va, O que é globalização? e Sociedade de risco.
Para Beck, Guiddens e Lasch (1997), a mudança que está acontecendo na sociedade con-
temporânea é marcada pela transição de uma sociedade industrial para uma sociedade pós-indus-
trial, em que predomina o processo de destradicionalização2. Esse período é denominado pelos
autores como modernização reflexiva. A expressão reflexiva não significa que a modernidade se
tornou autocompreensiva, mas sim refratária, instaurando uma nova fase da própria modernidade.
Esse movimento é marcado por um processo de desincorporação seguido por uma reincorporação
de formas sociais industriais. “‘Modernização reflexiva’ significa a possibilidade de uma (auto)
destruição criativa para toda uma era [...]” (BECK; GUIDDENS; LASH; 1997, p. 12).
Dessa forma, a modernização reflexiva é marcada por um dinamismo social que está aca-
bando com as formações de classe, ocupação, papéis dos sexos, família nuclear, setores empre-
sariais, gerando um processo de autodestruição, em que um tipo de modernização destrói outro
e o modifica. Assim, nesse processo pós-moderno há movimentos creacionistas e também de
decomposição (BECK; GUIDDENS; LASH; 1997).
2 Independentemente da sua doutrina (católica, protestante, evangélica ou qualquer outra que mantenha uma estru-
tura organizada), a Igreja, como forma de controle formal, refere-se à entidade institucional, com a sua hierarquia, regras
e modos de agir com seus seguidores. Já a religião, como forma de controle informal, direciona-se aos indivíduos por
meio dos valores, das crenças, dos dogmas, mas é desvinculada do formalismo institucional da Igreja.
Entendendo as transformações da sociedade contemporânea 41
3 A tela pode ser visualizada no site do MoMA (Museum of Modern Art). Disponível em: <https://www.moma.org/
collection/works/79018>. Acesso em: 19 dez. 2017.
42 Sociologia Jurídica
uma relação que denominou de modernidade pesada ou era do hardware, e modernidade leve ou era
do software. É possível elencar algumas características de cada uma dessas eras para que se possa
compreender melhor a ideia do autor.
Quadro 1 – Era da modernidade pesada ou era do hardware x era da modernidade leve ou era do software
Modernidade pesada ou Modernidade leve ou
era do hardware era do software
Obsessão pelo volume. Viagem à velocidade da luz.
Conservação da mão de obra e manutenção Manter afastada a mão de obra humana, forçar
da subordinação. sua saída.
Esses elementos trazidos pelo autor demonstram a mudança que aconteceu na relação entre
o tempo e o espaço, entre a rigidez da era pesada da modernidade para a liquidez da era leve da
pós-modernidade. Importante notar que na era pesada da modernidade, os elementos centrais
são a delimitação, o controle e o uso do espaço; enquanto que na era da modernidade leve o que
prevalece é a expansão do território, sem a preocupação com as fronteiras e a instantaneidade das
relações e do uso do tempo.
Essas alterações se refletem no campo da produção, da formação da sociedade, do trabalho,
da política e até nas relações afetivas4, ou seja, no campo da produção das mercadorias a rapidez
das transformações é intensa e contínua e cada vez mais essas mudanças acontecem em menor pe-
ríodo de tempo; na organização da família é possível identificar o quanto foram alteradas as formas
de constituição familiar; no campo laboral também as mudanças têm acontecido de forma signifi-
cativa, novas formas de trabalho têm surgido e novas profissões têm sido criadas para adequar-se
às novas necessidades sociais.
Por fim, todas essas características da modernidade leve acarretam muita incerteza e instabi-
lidade na sociedade e na vida dos indivíduos. Nesse período da modernidade líquida, os principais
referenciais humanos como família, classe, nacionalidade, política estão derretendo e, dessa forma,
4 Bauman é também autor de um livro intitulado Amor líquido, em que discute o conceito de liquidez nas relações afetivas.
Entendendo as transformações da sociedade contemporânea 43
o indivíduo vai ficando isolado, tornando-se responsável por seus atos e pelo seu destino. Essa ra-
pidez e liquidez da pós-modernidade exacerba a individualidade, gerando consequências como a
incerteza e a insegurança nos indivíduos, pois ele vive em um mundo líquido, no qual o consumo
é incentivado, mas também é volátil e passageiro, em que até as relações pessoais se tornam frágeis.
Cabe questionar agora se essa leveza e liquidez presente na sociedade contemporânea se
reflete também no sistema jurídico.
Considerações finais
Neste capítulo identificamos o processo de formação da modernidade, com base em diver-
sos fatores que alteraram a sociedade, a política, a ciência, a cultura e o Direito, criando um projeto
civilizatório baseado em ideias como a individualidade, a autonomia e a universalidade.
No entanto, verificamos que esse projeto está em discussão pelo fato de estarem ocorrendo
mudanças significativas na sociedade contemporânea, marcada pelas alterações nas relações de
espaço e tempo, acarretando efeitos nas várias áreas da sociedade.
Também identificamos que esse processo de mudança da modernidade para a pós-moderni-
dade influencia a formação do Direito, tornando-o mais flexível e mais adaptativo às necessidades
de participação e colaboração da sociedade.
Modernidade líquida
(BAUMAN, 2001, p. 9-11)
[...] Lembremos, no entanto, que tudo isso seria feito não para acabar de uma vez por todas
com os sólidos e construir um admirável mundo novo livre deles para sempre, mas para lim-
par a área para novos e aperfeiçoados sólidos; para substituir o conjunto herdado de sólidos
deficientes e defeituosos por outro conjunto, aperfeiçoado e preferivelmente perfeito, e por
isso não mais alterável. Ao ler o Ancien Régime de Tocqueville, podemos nos perguntar até
que ponto os “sólidos encontrados” não teriam sido desprezados, condenados e destinados à
liquefação por já estarem enferrujados, esfarelados, com as costuras abrindo; por não se poder
confiar neles. Os tempos modernos encontraram os sólidos pré-modernos em estado avan-
çado de desintegração; e um dos motivos mais fortes por trás da urgência em derretê-los era
o desejo de, por uma vez, descobrir ou inventar sólidos de solidez duradoura, solidez em que
se pudesse confiar e que tornaria o mundo previsível e, portanto, administrável. Os primeiros
sólidos a derreter e os primeiros sagrados a profanar eram as lealdades tradicionais, os direitos
costumeiros e as obrigações que atavam pés e mãos, impediam os movimentos e restringiam
as iniciativas. Para poder construir seriamente uma nova ordem (verdadeiramente sólida!) era
necessário primeiro livrar-se do entulho com que a velha ordem sobrecarregava os constru-
tores. “Derreter os sólidos” significava, antes e acima de tudo, eliminar as obrigações “irrele-
vantes” que impediam a via do cálculo racional dos efeitos; como dizia Max Weber, libertar a
empresa de negócios dos grilhões dos deveres para com a família e o lar e da densa trama das
obrigações éticas; ou, como preferiria Thomas Carlyle, dentre os vários laços subjacentes às
responsabilidades humanas mútuas, deixar restar somente o “nexo dinheiro”. Por isso mesmo,
essa forma de “derreter os sólidos” deixava toda a complexa rede de relações sociais no ar –
nua, desprotegida, desarmada e exposta, impotente para resistir às regras de ação e aos crité-
rios de racionalidade inspirados pelos negócios, quanto mais para competir efetivamente com
eles. Esse desvio fatal deixou o campo aberto para a invasão e dominação (como dizia Weber)
da racionalidade instrumental, ou (na formulação de Karl Marx) para o papel determinante
46 Sociologia Jurídica
da economia: agora a “base” da vida social outorgava a todos os outros domínios o estatuto
de “superestrutura” – isto é, um artefato da “base”, cuja única função era auxiliar sua operação
suave e contínua.
O derretimento dos sólidos levou à progressiva libertação da economia de seus tradicionais
embaraços políticos, éticos e culturais. Sedimentou uma nova ordem, definida principalmente
em termos econômicos. Essa nova ordem deveria ser mais “sólida” que as ordens que subs-
tituía, porque, diferentemente delas, era imune a desafios por qualquer ação que não fosse
econômica. A maioria das alavancas políticas ou morais capazes de mudar ou reformar a nova
ordem foram quebradas ou feitas curtas ou fracas demais, ou de alguma outra forma ina-
dequadas para a tarefa. Não que a ordem econômica, uma vez instalada, tivesse colonizado,
reeducado e convertido a seus fins o restante da vida social; essa ordem veio a dominar a
totalidade da vida humana porque o que quer que pudesse ter acontecido nessa vida tornou-se
irrelevante e ineficaz no que diz respeito à implacável e contínua reprodução dessa ordem. [...].
Atividades
1. O que é a modernidade? Defina-a incorporando algumas de suas características centrais.
3. De acordo com as ideias de Ulrich Beck, qual a relação entre o conceito de modernidade
reflexiva e a sociedade de risco?
4. O Direito tem sofrido os impactos da pós-modernidade? Justifique sua resposta com base
nos autores estudados neste capítulo.
Referências
BAUMAN, Zigmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na
ordem social moderna. São Paulo: Editora da UNESP, 1997.
BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O direito na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2005.
ROUANET, Sergio. P. Mal-estar da humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
4
Grupos sociais e hegemonia
Você já parou para pensar como as pessoas se organizam em uma sociedade? Já pensou se
essas organizações impactam na formação do Direito?
O objetivo deste capítulo é compreender o que são grupos sociais, como se formam e como
se organizam na sociedade. Serão estudadas as diferenças entre os diversos grupos sociais e sua
relação com a construção do Direito.
Também será analisado o conceito de hegemonia. Você conhece esse conceito? Neste ca-
pítulo, terá a oportunidade de explorá-lo e relacioná-lo com os grupos sociais e a formação das
normas jurídicas.
pretendido. Embora haja uma diversidade nas posições, cada uma está relacionada a uma ativi-
dade específica. No conjunto, elas estão associadas às habilidades de cada jogador, que pode ser
substituído por outro jogador, e mesmo com todas essas relações e possibilidades de mudanças, a
estrutura da equipe permanece. Assim também acontece na sociedade.
Figura 1 – Exemplo de relações e estruturas sociais
block37/iStockphoto
Nesse processo constante de interação social que vivem os indivíduos dentro de uma socie-
dade, há a formação dos grupos sociais. Mas como é possível conceituar grupo social?
Segundo Pérsio Santos Oliveira (2003, p. 67), “é toda reunião de duas ou mais pessoas asso-
ciadas pela interação. Devido à interação social, os grupos mantêm uma organização e são capazes
de ações conjuntas para alcançar objetivos comuns a todos os seus membros”.
A partir desse conceito, é possível identificar os principais elementos caracterizadores de um
grupo social:
• Pluralidade de indivíduos – ser formado por mais de um indivíduo.
• Interação social – possuir uma reciprocidade entre os indivíduos. O grupo social é basea-
do nas relações e influências entre seus integrantes, além das relações estabelecidas por
meio da comunicação.
• Organização – constituir uma estrutura, criando regras e normas para seu funcionamento
que não precisam ser necessariamente formais, mas compreendidas por todos.
• Objetividade e exterioridade – existir fora do indivíduo, de froma que o grupo se mante-
nha independentemente de o indivíduo estar nele ou não.
• Objetivo comum – existir um interesse em comum entre seus integrantes. Essa é a causa
ou motivo que move os indivíduos a unirem-se em um grupo.
• Consciência grupal – adquirir um sentimento de compartilhamento, de pertencimento
ao grupo.
Grupos sociais e hegemonia 49
UberImages/iStockphoto
Diante da observação dos elementos caracterizadores de um grupo social, percebeu-se a im-
portância da continuidade no tempo, visto que as formações sociais que não têm esse elemento de
perpetuidade não podem ser consideradas como grupos sociais, podendo citar as agregações, que
se constituem de “qualquer conjunto físico de pessoas que estão ao mesmo tempo no mesmo lugar,
que interagem pouco ou nada e que não se sentem pertencer a um grupo” (DIAS, 2010, p. 163).
As agregações ou agregados sociais podem ser divididos em três tipos: multidão, massa e
público. Sendo:
• Multidão – é caracterizada pela ausência de organização, pelo anonimato de seus inte-
grantes, pela presença de um objetivo em comum e pela proximidade física. Exemplos:
indivíduos que se reúnem em um protesto político.
• Massa – é formada por um agrupamento de indivíduos relativamente separados e desco-
nhecidos um do outro e que têm em comum a formação de opiniões. Exemplo: telespec-
tadores de um mesmo programa televisivo.
• Público – é um agrupamento de pessoas que pode ser físico ou virtual e que tem como
caraterística a resposta espontânea a um mesmo estímulo. Exemplo: plateia em uma
peça teatral.
Dentre as diversas possibilidades de classificar os grupos sociais, a mais utilizada pelos au-
tores é a divisão em grupos primários e secundários. Os grupos primários são aqueles em que os
indivíduos têm uma relação de intimidade, em número restrito de integrantes com um interesse
em comum, o principal exemplo é a família. Já os grupos secundários se caracterizam por um
50 Sociologia Jurídica
número ilimitado de pessoas, as relações entre seus integrantes são impessoais e suas reuniões não
são permanentes, um exemplo é um grupo de estudo.
Quadro 1 – Características dos grupos primários e secundários
Grupos primários Grupos secundários
Não há necessariamente um conhecimento profundo entre
Membros se conhecem intimamente.
seus integrantes.
Em geral, seus membros são insubstituíveis. Em geral, seus membros são substituíveis.
Embora haja diferenças entre os grupos, eles são fundamentais no processo de socialização
de um indivíduo. É por meio das vivências e das experiências de cada um desses grupos que o in-
divíduo definirá sua autoidentidade e identidade social.
Uma forma de relacionar os grupos sociais com a formação do Direito é compreendê-los a
partir de outra classificação que eles podem ter e que está relacionada aos interesses existentes na
sociedade. Os grupos podem ser categorizados como convergentes ou divergentes.
Os grupos convergentes se caracterizam pela existência de um comportamento
intragrupal, isto é, pela presença de vários grupos que interagem devido ao compartilha-
mento de pelo menos um interesse em comum.
Já os grupos divergentes têm por características a existência de dois grupos convergentes,
mas divergentes entre si.
Figura 3 – Representação de um grupo convergente
Grupo 1
Grupo 6 Grupo 4
Interesse
A
Grupo 5 Grupo 3
Grupo 2
A Figura 3 representa vários grupos, com diferentes formações, convergindo para um único
interesse. Cada um deles pode ter interesses distintos, mas pelo menos um deve estar correla-
cionado ao dos demais grupos. Por exemplo, para a aprovação de uma lei, vários grupos podem
convergir para um interesse único. Existe uma lei que aprovou o feminicídio como um crime,
Lei n. 13.104/2015 (BRASIL, 2015), que inclui uma qualificadora no homicídio, se ele for cometido
“contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”. Para aprovação dessa lei, vários grupos
convergiram seus interesses como grupos de feministas, de defensores dos direitos humanos, de
defesa dos direitos da mulher, de combate à violência doméstica e familiar, do Ministério Público,
dentre outros em prol do objetivo comum, a aprovação da lei.
Figura 4 – Representação de dois grupos divergentes entre si
Grupo 1 Grupo 7
Interesse Interesse
A B
Grupo 2 Grupo 10
A Figura 4 demonstra dois grupos convergentes, mas que entre si são divergentes em seus
interesses. Um exemplo desse tipo de divergência no plano da aprovação de uma lei pôde ser visto
na votação do projeto de lei do Código Florestal, que acabou sendo aprovado. A Lei n. 12.651/2012
(BRASIL, 2012) refletiu uma grande disputa entre dois grandes grupos de interesses divergentes,
ambos formados por grupos divergentes, mas que em prol de um objetivo comum, uniram-se, um
grupo ficou conhecido como ambientalistas e defendia a maior proteção das florestas brasileiras e
o outro denominado ruralistas, que defendia o uso do solo também para outras finalidades como
a agricultura e a pecuária.
O pesquisador Benedetto Fontana (2003, p. 120), afirma que “Gramsci usa a hegemonia para
indicar um sistema de alianças entre vários grupos, em que o grupo dominante exerce o poder gra-
ças à sua capacidade de transformar os interesses particulares em gerais e universais.”
Assim, um grupo dominante utiliza-se da sua capacidade de persuasão e influência para
fazer com que seu interesse se torne o do grupo. Dessa forma, o grupo que influencia acaba se
tornando superior aos outros grupos.
Explica Fontana (2003, p. 114) que, no entendimento de Gramsci, a hegemonia se caracteri-
zava por essa supremacia de um grupo ou classe sobre outros grupos ou classes e explica que essa
relação se dá por meios diferentes da violência ou coerção.
Cabe então um questionamento: se a hegemonia se estabelece por outros meios que não a
violência e a coerção, como ela se estabelece?
Pela capacidade de formação de alianças e pactos, criando um sistema de relações consen-
suais entre esses diversos grupos, em que um grupo é o líder desse processo. Esse sistema prmite
que diversos grupos formem um único interesse, a partir de um acordo entre o líder e os demais
(GRAMSCI, 2000).
Para Fontana (2003), três elementos constituem o conceito gramsciano de hegemonia:
poder, conhecimento e transformação dos interesses.
Grupos sociais e hegemonia 53
Poder
Transformação dos
interesses Conhecimento
Dito de outra forma, o Estado é formado por uma disputa constante entre interesses do
grupo hegemônico e dos grupos subalternos, mas nessa disputa há um “certo equilíbrio de com-
promisso”. Por exemplo, no campo legislativo há um equilíbrio, mas não é constante, é variável
conforme forem essas disputas entre os interesses desses grupos.
Assim, pode-se entender o Estado a partir dessa disputa por interesses, em que o grupo do-
minante quer permanecer no controle, nem que para isso seja preciso fazer concessões às pressões
dos grupos subordinados, construindo uma relação de equilíbrio, mas também de disputa.
[...] a hegemonia é uma relação ativa, cambiante, evidenciando os conflitos
sociais, os modos de pensar e agir que se expressam na vivência política; con-
forme se desenvolvem e se inter-relacionam as forças em luta, tem-se o for-
talecimento das relações e domínio, o equilíbrio entre coerção e consenso
ou ampliação da participação política e da organização da sociedade civil.
(SCHLESENER, 2001, p. 19)
54 Sociologia Jurídica
Mas o entendimento de Gramsci sobre o Estado é uma ideia diversa do conceito tradicional
de Estado. Para o autor (2000, p. 254-255), “por ‘Estado’ deve-se entender, além do aparelho de
governo, também o aparelho ‘privado’ de hegemonia ou sociedade civil”.
Assim, o Estado tem um conceito ampliado, formado pela sociedade política mais a socie-
dade civil.
Figura 7 – Estado ampliado
Sociedade
política
Estado
ampliado
Sociedade
civil
Agora, faz-se necessário compreender o que Gramsci entende por sociedade civil. Ela é
formada pelo conjunto de organismos denominados aparelhos privados de hegemonia, pois são
compostos por indivíduos particulares, que nascem da organização política dos cidadãos, a partir
das disputas de interesses diversos na sociedade, por exemplo, os sindicatos, as escolas, partidos
políticos, meios de comunicação, igrejas. Assim, é na sociedade civil que ocorrem as disputas,
contradições e lutas, mas também é onde ocorrem os consensos.
Esses aparelhos privados são responsáveis por elaborar as diferentes concepções de mundo
pelas quais a sociedade se representa e se organiza em grupos. Já a sociedade política é composta
pelos aparelhos administrativo-burocrático e político-militar. “A sociedade política tem a função
de controlar, de assegurar legalmente a disciplina dos grupos que não consentem, nem ativa, nem
passivamente aos objetivos dominantes; a coerção é exercida principalmente pelos momentos de
crise, quando fracassa o consenso espontâneo” (SCHLESENER, 2001, p. 19).
Dessa forma, fica mais claro porque Gramsci utiliza a expressão Estado ampliado, pois vai
além do conceito liberal de Estado enquanto apenas uma esfera política. Para o autor, no Estado
estão presentes as instituições administrativas, burocráticas, militares e políticas, jutamente com os
aparelhos privados de hegemonia, ou seja, a sociedade civil organizada.
O processo hegemônico pode acontecer em âmbito nacional, e/ou internacional. Da mesma
forma que ocorre uma disputa de transformação de interesses particulares em interesse geral den-
tro de uma nação, pode ocorrer entre nações diferentes.
Gramsci (2000) aponta os elementos caracterizadores de uma nação hegemônica:
• Extensão do território – nesse elemento, deve-se considerar também a posição geográfica.
• Força econômica – nesse elemento, há que se distinguir a capacidade industrial e agrícola
(força produtiva) e a capacidade financeira.
Grupos sociais e hegemonia 55
• Força militar – esse elemento sintetiza o valor da extensão territorial (e sua população) e
do potencial econômico.
Há também um elemento imponderável, que trata de sua posição ideológica no mundo em
um determinado momento histórico. Esses elementos, para Gramsci (2000), são calculados em
uma perspectiva de guerra, pois dispor de todos eles dão segurança de uma vitória, além da dis-
ponibilidade para realizar de pressão diplomática, que pode potencializar a capacidade de uma
grande potência obter uma vitória, sem precisar necessariamente combater em uma guerra.
Essa hegemonia obtida por uma nação é muito importante, de acordo com Fontana (2003,
p. 21), a nação hegemônica pode “conseguir os próprios fins num conflito sem recorrer à guerra
– ou seja através de métodos diplomáticos, econômicos, ideológicos ou morais/intelectuais – é a
marca distinta de uma potência hegemônica”.
O próprio Gramsci afirma que essa superioridade de uma nação hegemônica pode ser um
diferencial para a realização, ou não, de um conflito “[...] dispor de todos os elementos que dão
segurança de uma vitória (numa guerra) significa dispor de um potencial de pressão diplomática
de grande potência, isto é, significa obter uma parte dos resultados de uma guerra vitoriosa sem
necessidade de combater” (GRAMSCI, 2000, p. 55).
Dessa forma, percebe-se a importância da compreensão do conceito de hegemonia para
entender a formação do poder e das normas jurídicas dentro de um Estado, assim como para en-
tender que essas disputas por interesse também acontecem no plano internacional.
4.3 A contra-hegemonia
Após o estudo do conceito de hegemonia e sua importância na compreensão do conceito de
Estado e na formação das normas jurídicas, é possível questionar: os grupos subalternos aceitam a
superioridade do grupo hegemônico sem questionamentos?
É possível relacionar o conceito de hegemonia com o processo de globalização. Ao tratar
sobre a hegemonia entre nações, conclui-se que as nações hegemônicas determinam seus interes-
ses particulares como interesses globais. Sobre esse tema, o professor e sociólogo Boaventura de
Souza Santos (2002) irá trabalhar ideias que reúnem esse questionamento inicial da existência de
uma passividade dos grupos subalternos perante o grupo hegemônico e a relação desse tema com
a democracia.
Santos (2002) utiliza do conceito de hegemonia de Gramsci para tratar sobre a democracia
na sociedade contemporânea. Para ele, as doutrinas que tratam sobre a democracia podem ser
divididas em hegemônicas e contra-hegemônicas.
Os processos hegemônicos, segundo ele, são orientados para a acumulação e
apropriação capitalistas, e a sua hegemonia assenta-se na identificação dos in-
teresses do bloco no poder com interesses gerais, ou seja, em um consenso que
favorece os grupos dominantes. Os processos contra-hegemônicos, por sua vez,
agrupam os diversos movimentos locais, por vezes articulados globalmente, que
lutam contra os efeitos perversos da globalização hegemônica e são orientados
para a solidariedade e o bem comum. (MIRANDA; MERLADET, 2012, p. 12)
56 Sociologia Jurídica
Considerações finais
Neste capítulo, foi analisado como os grupos se formam e se organizam em uma sociedade.
Também foi estudado como esses grupos sociais podem influenciar na formação das normas jurídicas.
O conceito de hegemonia foi estudado e relacionado com o Estado, a sociedade e os gru-
pos sociais. Verificou-se a abrangência hegemonia no âmbito nacional e no âmbito internacional.
Também foi possível estudar a existência de processo de contra-hegemonia.
Grupos sociais e hegemonia 57
O conceito de hegemonia “vulgarizou-se” com grande frequência, dando lugar a uma dupla
simplificação. Por um lado, estabeleceu-se uma contraposição binária entre hegemonia e
ditadura, pela qual uma não existiria se existisse a outra. Por outro lado, a partir do reco-
nhecimento bem mais que metafórico do par base-estrutura, passou-se a tratar a hegemonia
como uma categoria referida exclusivamente à “superestrutura” e, no interior dela, à esfera
ideológico-cultural, ou à “sociedade civil” (por sua vez interpretada equivocadamente como
contraposta ao estatal). Uma releitura minimamente atenta do pensamento gramsciano per-
mite desbaratar esse esquema.
Os componentes de hegemonia e de coerção coexistem no tempo e no espaço, como compo-
nentes da “supremacia” de uma classe que passa a ser dirigente sem deixar de ser “dominante”
(isto é, dotada de poder coercitivo) e exerce seu poder sobre um espaço social mais amplo que
o dos aparatos estatais formalmente reconhecidos como tais, dando lugar à configuração de
uma sociedade em que, como disse o próprio Gramsci, há democracia na relação com alguns
setores sociais e ditadura em face de outros.
A distinção que Gramsci efetua entre sociedade civil e sociedade política tem uma finalidade
heurística, como caminho para analisar os diferentes mecanismos de um campo e de outro,
mas não assimila, como o faz a teoria liberal, sociedade política a Estado e sociedade civil a não
Estado: “deve-se notar que na noção geral de Estado entram elementos que devem ser reme-
tidos à noção de sociedade civil (no sentido, seria possível dizer, de que Estado + sociedade
política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção)” (CC, 3,24).
Em Gramsci, a hegemonia tem múltiplas dimensões. Está claro, porém, em primeiro lugar, que
a “direção intelectual e moral” parte de grupos sociais com papel determinado na vida econô-
mica, para “hegemonizar” outros grupos que desempenham papéis igualmente determinados.
Em segundo lugar, é igualmente claro que a catarse – que eleva a classe ao plano ético-político
– se assenta no campo econômico-corporativo, o que supõe uma série de sacrifícios e compro-
missos, por sua vez instáveis, dinâmicos, que não podem desconhecer o papel fundamental,
originado no mundo da produção, da classe que aspira a ser “dirigente”.
Outro arco de complexidades é proporcionado pela possibilidade de que se produza uma hege-
monia alternativa, ou contra hegemonia. O grupo subalterno só pode se converter em hegemô-
nico passando do plano econômico-corporativo ao plano ético-político (combinação na qual
o termo “ético” indica bem mais a dimensão intelectual e moral, e “político” indica o controle
do aparato do Estado). Desse modo, ele pode apresentar seus interesses num plano “universal”,
mas não tem como excluir aquele necessário embasamento econômico-corporativo.
58 Sociologia Jurídica
Atividades
1. Explique a correlação existente entre um grupo convergente e um grupo divergente.
2. Para Gramsci, o que é a hegemonia? Como esse conceito pode ser utilizado na análise da
formação das normas jurídicas?
Referências
BRASIL. Lei n. 12.651, de 25 de maio de 2012. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF,
28 maio 2012. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12651.htm>.
Acesso em: 19 dez. 2017.
______. Lei n. 13.104, de 9 de março de 2015. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 10 mar.
2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/lei/L13104.htm>. Acesso
em: 19 dez. 2017.
CAMPIONE, Daniel. Hegemonia e contra hegemonia na América Latina. In: COUTINHO, Carlos Nelson;
TEIXEIRA, Andréa de Paula. Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
DIAS, Reinaldo. Introdução à Sociologia. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2010.
ESTANQUE, Elísio. A questão social e a democracia no século XXI. Participação cívica, desigualdades so-
ciais e sindicalismo. Revista Finisterra, Lisboa, v. 55-56-57, 2006.
FONTANA, Benedetto. Hegemonia e nova ordem mundial. In: COUTINHO, Carlos Nelson; TEIXEIRA,
Andréa de Paula. Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
MIRANDA, Isabella Gonçalves; MERLADET, Fábio André Diniz. Uma apresentação crítica dos conceitos
de globalização hegemônica e contra hegemônica à luz das novas manifestações populares internacionais.
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 3, p. 7-24, 2012.
OLIVEIRA, Pérsio Santos de. Introdução à Sociologia. São Paulo: Ática, 2003.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Fórum Social Mundial: manual de uso. São Paulo: Cortez, 2002.
SCHLESENER, Anita Helena. Hegemonia e cultura: Gramsci. Curitiba: Editora UFPR, 2001.
5
Direito e ideologia
Este capítulo tem por objetivo possibilitar a discussão sobre a ideologia. Esse tema permite
um espaço de debate sobre questões como: o que é ideologia? Existe ideologia na sociedade atual?
Como se forma uma ideologia? Há relação entre a ideologia e o Direito?
Dessa forma, essas e outras questões serão estudadas em conformidade com importantes
autores, permitindo a obtenção de respostas e aprofundamento sobre o tema.
Chaui (2008) faz uma síntese histórica da origem da ideologia, mostrando que os pensado-
res ideólogos apoiaram Napoleão Bonaparte em sua tomada do poder francês, porque acreditavam
que ele seria um governante liberal e que daria continuidade aos ideais da Revolução Francesa.
Enquanto Cônsul, ele nomeou diversos ideólogos como senadores ou tribunos que, ao perceberam
que ele estava restituindo o poder monárquico, o que era criticado por eles, passaram a se opor ao
governante. Diante da perda do apoio deles, Bonaparte excluiu-os do senado e fechou a Academia
que coordenavam e decretou a fundação da nova Universidade Francesa, na qual nomeou para
os cargos somente pensadores que eram opositores àqueles. Em 1812, num discurso de Napoleão
ao Conselho de Estado declarou: “Todas as desgraças que afligem nossa bela França devem ser
atribuídas à ideologia, essa tenebrosa metafísica que, buscando com sutilezas as causas primeiras,
quer fundar sobre suas bases a legislação dos povos, em vez de adaptar as leis ao conhecimento do
coração humano e às lições da história”. A partir desses fatos, o termo ideologia e ideólogo passam
a ter um caráter pejorativo.
60 Sociologia Jurídica
Na obra Curso de Filosofia Positiva, Augusto Comte (1798-1857) utilizou a palavra ideolo-
gia com dois significados diferentes: o primeiro retomando o conceito original, isto é, a ideologia
como uma atividade filosófica-científica que busca a formação das ideias na relação entre o corpo
humano e a natureza, tendo por base as sensações; e o segundo significado passa a entender a ideo-
logia como o conjunto das ideias de uma época, como uma “opinião geral” (CHAUI, 2008).
Na obra As regras do método sociológico, Émile Durkheim se refere à ideologia como os co-
nhecimentos da sociedade que não estavam de acordo com os critérios da objetividade. Lembrando
que, para o autor, no estudo da Sociologia deveria haver uma separação entre as pré-noções do pes-
quisador em relação ao objeto pesquisado, pois esses preconceitos são conhecimentos subjetivos,
individuais e que não podem interferir em uma pesquisa científica.
Foi na obra A ideologia alemã, de Karl Marx e Friedrich Engels, que a palavra ideologia foi
utilizada com um significado diferente e mais abrangente para se referir ao processo pelo qual as
ideias da classe dominante tornam-se ideias dominantes de todas as classes sociais, ou seja, a classe
que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante”
(MARX; ENGELS, 2005, p. 78).
Para os autores, a produção das ideias dominantes em uma sociedade deriva da classe que é
dominante, ou seja, daquela que é a proprietária dos meios de produção.
De acordo com Chaui (2008), é possível detalhar o pensamento dos autores para que fique
mais claro:
• Em uma sociedade capitalista, há uma divisão de classes. Para Marx, essa divisão acontece
em duas classes centrais: burguesia e proletariado. Nessa sociedade, o predomínio é da
classe burguesa, que define as ideias que serão dominantes na sociedade.
• Para que as ideias da classe dominante se tornem dominantes, é preciso que a divisão en-
tre as classes não esteja clara na sociedade. Para tanto, faz-se necessário que todos sejam
vistos com características humanas comuns.
• Para que essas características supostamente comuns sejam percebidas dessa forma, é
preciso que sejam transformadas em ideias comuns. Assim, a classe dominante, além
de criar as ideias dominantes, precisa disseminá-las na sociedade, o que pode acontecer
por meio de instituições como a escola, a Igreja, os costumes, os meios de comunicação,
dentre outros.
• Como tais ideias não expressam a realidade concreta, mas apenas a aparência das coisas, é pos-
sível que essas ideias sejam consideradas apenas em sua abstração, independente da realidade,
e dessa forma, é possível inverter a realidade, considerando esta como fruto da construção das
ideias abstratas.
Esse é o processo de produção de ideologias, pois a classe dominante consegue produzir
ideias e dissimilá-las para que se tornem comuns a todos, isto é, se tornem universais e abstratas.
Nesse ponto, é possível questionar: como essas ideias comuns se transformam em ideias
dominantes e quais os objetivos desse processo?
Direito e ideologia 61
Você já parou para pensar em algum exemplo de ideologia presente na sociedade atual? Já
pensou que a ideia de empreendedorismo pode ser uma ideologia?
Por exemplo, o caso de um trabalhador que nos dias atuais se torna um empreendedor vi-
sando a sua colocação e sobrevivência no mercado de trabalho, precavendo-se das profundas alte-
rações que vêm sofrendo e que têm afetado diretamente o assalariado.
Conforme visto, a ideologia tem a função de encobrir a divisão de classes e evitar o conflito
existente entre elas. Ao difundir a ideia do empreendedorismo, há a propagação de um sentimento
de autonomia e liberdade, que deve ser incorporado nas relações de trabalho, transmitindo a ideia
de flexibilidade dessas relações. Assim, o trabalhador ao internalizá-las, e ao se tornar um em-
preendedor, não compreende que está ocultando a divisão de classes, pois ser empreendedor pode
dar a aparência de ele ser um membro da classe burguesa. Mas na realidade, ele é um trabalhador
em uma outra forma de trabalho, que não a assalariada.
No entanto, a ideia repassada à sociedade é que todos podem ser empreendedores e obter
sucesso em suas atividades, mas isso interessa à classe dominante como uma forma de controle da
classe trabalhadora, que então, ao se tornar empreendedor e não trabalhador, o indivíduo deixa de
reivindicar como classe trabalhadora, não luta por melhores salários, jornada de trabalho, melho-
res condições de trabalho, pois ele não se entende mais trabalhador, entende-se como empreende-
dor. Mas, se o trabalhador fizer uma análise mais profunda do mundo do trabalho e se questionar
sobre a ideia de empreendedorismo, pode romper com essa aparência e chegar à percepção de que
é uma ideologia, pois estava vendo apenas uma aparência da realidade, é uma realidade invertida.
Estado e o corpo das instituições que representam os aparelhos ideológicos do Estado. Esses apa-
relhos têm a função de reprodução da força de trabalho, não apenas no aspecto da qualificação,
mas também na sujeição ao sistema produtivo existente.
a. Aparelhos Repressivos de Estado (ARE): são constituídos pelo governo, administração,
polícia, exército, tribunais, prisões, dentre outros. Esses aparelhos são denominados de
repressivos, porque atuam com base na violência.
b. Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE): são constituídos por instituições distintas e
especializadas:
• AIE religioso – o sistema das diferentes igrejas;
• AIE escolar – o sistema das diferentes escolas públicas e privadas;
• AIE familiar – além de ser considerado um aparelho ideológico do Estado, a famí-
lia também é importante na reprodução da força de trabalho e como uma unidade
de consumo;
• AIE jurídico – o Direito faz parte tanto dos aparelhos repressivos como dos apare-
lhos ideológicos do Estado;
• AIE político – o sistema político que fazem parte os diferentes partidos;
• AIE sindical;
• AIE da informação – imprensa, rádio-televisão, etc.;
• AIE cultural – Letras, Belas Artes e desportos.
Conforme a relação citada, percebe-se a pluralidade dos aparelhos ideológicos do Estado, e
o conjunto deles forma uma unidade.
No que tange às diferenças entre os dois tipos de aparelhos do Estado, pode-se verificar que
na primeira diferença os aparelhos repressivos podem ter caráter público, enquanto que a maioria
dos aparelhos ideológicos têm caráter privado. A diferença fundante está em que os aparelhos re-
pressivos funcionam pela violência e os aparelhos ideológicos pela ideologia (ALTHUSSER, 1970).
Para Althusser (1970), os aparelhos repressivos funcionam massivamente pela violência,
mas têm também um caráter ideológico; enquanto que os aparelhos ideológicos funcionam de
forma predominante pela ideologia, mas também podem ter um caráter de violência. Assim, há um
duplo funcionamento, um prevalecente e um secundário.
Pode-se exemplificar esse duplo funcionamento dos aparelhos ideológicos do Estado. O pri-
meiro exemplo é a polícia. A polícia atua de forma preponderante pelo uso da violência, mas atua
também pelos valores que projeta na sociedade, assegurando sua coesão e reprodução. A escola,
por sua vez, atua de forma prioritária pelo uso da ideologia, mas também faz uso da repressão com
métodos de punição e exclusão como forma de preparar seus alunos.
Esse autor afirma que a ideologia deve ser entendida como um sistema de lógica e de repre-
sentações (ideias, conceitos, imagens etc.) que possuem existência e papel histórico, devendo ser
pensada a partir de instituições reais.
Em sua teoria geral, seria na ideologia que os homens representam o mundo
para si mesmos, porém este nunca é tal como ele existe efetivamente, mas sim
um mundo marcado pela intervenção humana. O que é nele representado é
Direito e ideologia 65
Desta forma, para Althusser (1970) fica evidente a relação entre o Direito e a ideologia, pois
o autor inclui o sistema jurídico como aparelho ideológico e repressivo do Estado Desta forma,
cabe se questionar como é possível verificar o papel ideológico do Direito na sociedade?
Partindo da premissa que o Direito tem por papel a organização da sociedade e o disciplina-
mento do comportamento dos indivíduos, e se no Direito, são incorporados os interesses da classe
dominante, então, pode-se concluir que as normas jurídicas vão organizar e disciplinar comporta-
mentos a partir dos interesses da classe dominante.
Portanto, para o autor, o Direito não é neutro, mas tem em sua essência uma função dentro
da superestrutura da sociedade que é de repasse e sedimentação de determinadas formas de pensar
e agir.
Outro autor que estudou o tema da ideologia foi o filósofo, jornalista, crítico literário e po-
lítico italiano Antonio Gramsci (1891-1937). Suas principais obras foram: Cadernos do Cárcere,
Concepção dialética da história, Escritos políticos, Os intelectuais e a organização da cultura.
No estudo da ideologia, Gramsci teve como ponto de partida a realidade concreta, na qual,
além das condições materiais, devem ser levadas em consideração as tensões menos visíveis e exis-
tentes nas diversas organizações políticas.
Gamsci afirma que a ideologia é socialmente coletiva, porque os indivíduos necessitam de
um mecanismo balizador de conduta e ela é “o terreno sobre o qual os homens se movimentam,
adquirem consciência de sua posição, lutam etc.” (GRAMSCI, 1978, p. 377).
De acordo com Semeraro (2001, p. 101), “Gramsci não consegue imaginar uma população
inteira mergulhada em uma névoa ideológica homogênea e paralisante”. Logo, difere da concep-
ção marxista e da althusseriana, pois entende a ideologia como as ideias presentes na sociedade,
podendo estar presente nas mais diversas áreas da vida social. Esse estudo ainda afirma que a
ideologia para Gramsci é a manifestação concreta de como as pessoas entendem o mundo, essas
ideologias podem se tornar tanto instrumento de dominação, quanto instrumento de promoção
dos grupos subalternos. Partindo das reflexões de Marx, Gramsci aponta que a ideologia da classe
dominante se torna vulgar no senso comum do cidadão médio. Sendo assim, o poder não é exerci-
do necessariamente pela força física ou violência, mas pela aceitação dessas ideias pelos indivíduos
por meio da internalização da concepção de mundo da classe dominante.
Assim, as ideologias podem se tornar tanto instrumento de dominação como de promoção
dos grupos subalternos, pois Gramsci (1978) rejeitou explicitamente uma noção negativa de ideo-
logia (dominação, alienação).
O autor propõe uma distinção entre as ideologias, podendo ser:
1. Ideologias arbitrárias, desejadas, planejadas – é necessário deixar a ideologia clara e
combatê-la, pois ”é expressão direta de uma hegemonia que visa naturalizar o sistema
66 Sociologia Jurídica
Dessa forma, cada um tem a possibilidade de criar novas ideias e produzir conhecimentos
que podem se tornar hegemônicos, ou não, em uma sociedade.
Compreendendo que todos podem ser intelectuais, Gramsci (2000a) faz uma distinção entre
duas categorias:
1. Intelectual tradicional – acredita estar desvinculado das classes sociais, pois se entende
como pensador autônomo e independente. “Os intelectuais são os ‘prepostos’ do grupo
dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo
político [...]” (GRAMSCI, 2001, p. 21). Por exemplo: os filósofos, os cientistas e os teóricos.
2. Intelectual orgânico – é proveniente da classe social que o gerou, tornando-se seu espe-
cialista, organizador e homogeneizador. Pode pertencer à classe dominante ou às classes
Direito e ideologia 67
Assim, Gramsci (2001) afirma que caberia aos intelectuais orgânicos homogeneizar a classe
e elevá-la à consciência de sua própria função histórica, por meio da investigação de sua inserção
no modo de produção, isto é, caberia aos intelectuais orgânicos realizar a passagem de uma con-
cepção de senso comum acrítico para um senso comum renovado, composto por um pensamento
crítico e transformador.
O intelectual orgânico do proletariado é um persuasor permanente, pois é a partir da
sua atuação política que poderá mostrar as contradições que existem na sociedade e agir para
68 Sociologia Jurídica
Dessa forma, para que uma sociedade se construa de uma maneira realmente democráti-
ca, deve existir não apenas o operário manual, qualificado, especialista para o trabalho, mas deve
se construir uma nova forma de pensar a sociedade, para isso, é necessário que esse especialista
esteja inserido na vida prática como um organizador e disseminador dessas novas ideias e assim
tornar-se um dirigente. Esse novo intelectual será formado em um esforço da sociedade de criar
uma nova escola que propicie a compreensão dialética da sociedade e sua história, pois ao invés
de se formar apenas operários, como nas escolas tradicionais, as novas escolas formarão operários
qualificados, cidadãos que serão os governantes da sociedade (GRAMSCI, 2001).
O modo de ser do novo intelectual não pode mais consistir na eloquência, mo-
tor exterior e momentâneo dos afetos e das paixões, mas numa inserção ativa na
ida prática, como construtor, organizador, “persuasor permanente”, já que não
apenas orador puro – mas superior ao espírito matemático abstrato; da técnica-
-trabalho, chega à técnica-ciência e à concepção humanista histórica, sem a
qual permanece “especialista” e não se torna “dirigente” (especialista + político).
(GRAMSCI, 2001, p. 53).
Desta forma, o dirigente é entendido por Gramsci como uma forma mais abrangente de
cidadania, pois se cada indivíduo pode ser um dirigente, é porque ele tem a possibilidade de con-
cretamente se tornar um autodirigente, e conjuntamente com os demais indivíduos construir uma
sociedade realmente democrática, na ação e no pensar, tendo nesse processo, um papel fundamen-
tal, a construção de uma nova educação, mais crítica e mais participativa.
Considerações finais
Neste capítulo, foi analisada a ideologia, e como ela é formada em uma sociedade. Esse tema
foi abordado a partir de vários autores que se dedicaram ao seu estudo.
Cabe destacar a formação de ideias que não correspondem à realidade concreta, mas mos-
tram uma realidade invertida, tendo como propósitos o controle e a dominação. E o Direito como
sendo um fenômeno que se origina da sociedade também é impactado por essas ideologias. Essas
influências podem acontecer no âmbito jurídico desde a sua formação, nos projetos de elaboração
das normas jurídicas, como também em seu processo interpretativo.
Direito e ideologia 69
Crítica e ideologia
(CHAUI, 2006, p. 30-31)
Nesse primeiro nível de conceituação podemos dizer que a ideologia faz com que as ideias
(as representações sobre o homem, a nação, o saber, o poder, o progresso, etc.) expliquem as
relações sociais e políticas, tornando impossível perceber que tais ideias só são explicáveis
pela própria forma da sociedade a da política. Na ideologia, o modo imediato do aparecer (o
fenômeno) social é considerado como o próprio ser (a realidade social). O aparecer social é
constituído pelas imagens que a sociedade e a política possuem para seus membros, imagens
consideradas como a realidade concreta do social e do político. O campo da ideologia é o
campo do imaginário, não no sentido da irrealidade ou da fantasia, mas no sentido de con-
junto coerente e sistemático de imagens e representações tidas como capazes de explicar e
justificar a realidade concreta. Em suma: o aparecer social é tomado como o ser do social. Esse
parecer não é uma “aparência” no sentido de que seria falso, mas é uma aparência no sentido
de que é a maneira pela qual o processo oculto, que produz e conserva a sociedade, se mani-
festa para os homens.
O passo seguinte é dado pela ideologia no momento em que ultrapassa a região em que é
pura e simplesmente a representação imediata da vida e da prática sociais para tornar-se um
discurso sobre o social e um discurso sobre a política. É o momento no qual pretende fazer
coincidir as representações elaboradas sobre o social e o político com aquilo que o social e
o político seriam em sua realidade. Nesse passo, realiza seu passe de mágica: a elaboração
do imaginário (o corpo das representações sociais e políticas) será vinculada à justificação
do poder separado, isto é, à legitimação do Estado moderno. Somente se levarmos em conta
o advento e a natureza do Estado moderno, poderemos compreender a função implícita ou
explícita da ideologia ou, para usar os termos clássicos, a tentativa de fazer com que o ponto
de vista particular da classe que exerce a dominação apareça para todos os sujeitos sociais e
políticos como universal e não como interesse particular de uma classe determinada. Para
entendermos a ideologia, que fala sobre as coisas, sobre a sociedade e sobre a política, pre-
tendendo dizer o que são em si e pretendendo coincidir com elas, precisamos vinculá-las ao
advento da figura moderna do Estado, enquanto um poder que se representa a si mesmo como
instância separada do social e, na qualidade de separado, proporciona à sociedade aquilo que
lhe falta primordialmente.
O que falta primordialmente à sociedade? Falta-lhe unidade, identidade e homogeneidade.
O social histórico é o social constituído pela divisão em classes e fundado pela luta de classes.
Essa divisão, que faz, portanto, com que a sociedade seja, em todas as suas esferas, atravessada
por conflitos e por antagonismos que exprimem a existência de contradições constituídas do
próprio social, é o que a figura do Estado tem como função ocultar. Aparecendo como um
poder uno, indiviso, localizado e visível, o Estado moderno pode ocultar a realidade social,
na medida em que o poder estatal oferece a representação de uma sociedade, de direito,
homogênea, indivisa, idêntica a si mesma, ainda que, de fato, esteja dividida. A operação
ideológica fundamental consiste em provocar uma inversão entre o “de direito” e o “de fato”.
70 Sociologia Jurídica
Isto é, no real, de direito e de fato, a sociedade está internamente dividida e o próprio Estado é
uma das expressões dessa divisão. No entanto, a operação ideológica consiste em afirmar que
“de direito” a sociedade é indivisa, sendo prova da indivisão a existência de um só e mesmo
poder estatal que dirige toda a sociedade e lhe dá homogeneidade. Por outro lado, a ideologia
afirma que “de fato” (e infelizmente) há divisões e conflitos sociais, mas a causa desse “fato
injusto” deve ser encontrada em “homens injustos” (o mau patrão, o mau trabalhador, o mau
governante, as más alianças internacionais etc.). Assim, a divisão constitutiva da sociedade de
classe reduz-se a um dado empírico e moral.
Atividades
1. No entendimento de Chaui, como se dá o processo de formação de uma ideologia e quais são
principais aspectos de sua formação?
Referências
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BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
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- Revista Crítica do Direito, n. 2, v. 47, abril/maio de 2013. Disponível em: <https://sites.google.com/a/criti-
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CHAUI, Marilena. O que é ideologia. 2. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 2008.
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DURIGUETTO, Maria Lúcia. A questão dos intelectuais em Gramsci. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n.
118, p. 265-293, jun. 2014. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext
GRAMSCI, Antônio. Concepção Dialética da História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Trad. Frank Müller. 3. ed. São Paulo: Martin Claret, 2005.
SCHLESENER, Anita Helena. Hegemonia e cultura: Gramsci. Curitiba: Editora UFPR, 2001.
VIDAL, Marcelo Furtado. Ideologia e interpretação na teoria pura do direito de Hans Kelsen. Revista do
Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, Belo Horizonte,v. 32, n. 62, p.: 129-144, jul./dez. 2000.
6
Controle social, violência e política
Temas como o controle social e a violência estão constantemente nas mídias. Por isso, com-
preender a relação entre o controle social e a violência é fundamental para uma melhor análise
do Direito.
Você já pensou sobre o que é controle social? Quais os mecanismos que existem na socie-
dade para o exercício do controle social? O que é a violência? A violência é a mesma coisa que o
poder? Quais as formas de violência?
Este capítulo tem como objetivos possibilitar a reflexão e o estudo sobre o que é o controle
social e como acontece na sociedade, e levantar algumas considerações acerca da violência
Por fim, será realizada uma análise sobre as possíveis relações entre a política e a violência.
1 A Igreja como forma de controle formal refere-se à entidade institucional que funciona com a sua hierarquia, regras
e formas de agir com seus seguidos, e isso acontece independente da doutrina, seja Católica, Protestante, Evangélica ou
qualquer outra que mantenha uma estrutura organizada. No entanto, ao referir-se à religião enquanto forma de controle
informal tem-se o direcionamento dos indivíduos por meio dos valores, das crenças, dos dogmas, mas desvinculados do
formalismo institucional.
Controle social, violência e política 75
Destaca ainda Dias (2009) que não se pode confundir a legalidade com a legitimidade,
enquanto a primeira está relacionada a um determinado ordenamento jurídico, a segunda está ao
poder, com determinado sistema de valores.
Assim, pode-se relacionar a legitimidade com outra função básica do Direito, que é a possi-
bilidade de garantir a segurança jurídica dentro de uma sociedade. A lei é uma forma de controle
social, pois tem como função impedir ou diminuir a existência de conflitos dentro de uma socie-
dade. Para Brandão (2003), há duas formas de conciliar ou de resolver conflitos entre indivíduos e
grupos dentro de uma sociedade: pelo uso da força ou pela regulação legal. Dessa forma, se a opção
for pela primeira, o controle da sociedade se dará pela força, o que pode não corresponder a um
ideal de justiça, assim, a segunda opção está mais adequada às sociedades democrática e de Direito.
• Humor, sátira, ridículo: essas formas de controle assumem feições diferentes dependendo
da situação. São formas de conservação dos valores sociais, tanto quanto forma de com-
bate àqueles considerados como indesejáveis. Os indivíduos têm medo de serem expostos
à situação de humor, serem satirizados ou passarem por situações que os exponham ao
ridículo. É também uma forma de alívio da tensão coletiva.
• Ameaça e advertência: podem funcionar aos fins que objetivam, mas podem gerar uma
outra consequência não prevista, por exemplo, um Estado pode punir um indivíduo que
comete alguma irregularidade, mas se não houver a punição, gera como consequência a
impunidade que acarretará em outras consequências não desejadas, como a repetição do
ato por outros indivíduos ou a desorganização do grupo.
Logo, sabe-se que o controle social pode acontecer de diversas maneiras informais, cabe agora
compreender como ele é classificado. O controle social informal externo é aquele que emana da orga-
nização de grupos sociais existentes na sociedade, por exemplo, a família; o controle social informal
interno é aquele que emana do próprio indivíduo, de sua organização mental. Essa forma de controle
social é a mais eficiente, pois o indivíduo internalizou as normas e valores sociais e ele mesmo exige
seu cumprimento; isto é, o controle e o domínio é exercido pelo indivíduo sobre si mesmo.
n. 11.340 (BRASIL, 2006), que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra
a mulher, em seu artigo 7º, define que são formas de violência doméstica e familiar contra a mu-
lher, entre outras:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integri-
dade ou saúde corporal;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause
dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o
pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, compor-
tamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação,
manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto,
chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qual-
quer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a
presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante
intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou
a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer
método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou
à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que
limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure
retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de
trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos,
incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calú-
nia, difamação ou injúria. (BRASIL, 2006)
As diversas formas de violência acontecem muitas vezes concomitantemente, não apenas
contra a mulher, mas também contra a criança, o adolescente, o idoso, os homossexuais e os de-
mais grupos. Para Sacramento e Rezende (2006), a violência é um fenômeno multideterminado,
por isso, um fenômeno complexo e de natureza polissêmica, isto é, está presente em muitos con-
textos sociais.
E na sociedade brasileira? Como acontece a violência? Como é possível estudar a violência
na sociedade brasileira?
Para Chaui (2006), na sociedade brasileira, mesmo com a presença constante dos altos níveis
de violência, há um mito de que o brasileiro não é violento. É criada uma imagem de um povo
generoso, alegre, solidário, que respeita a diversidade e que não é racista, sexista ou machista. Isso
acontece por meios da criação de uma narrativa que se aplica de forma reiterada na sociedade,
operando com base em antinomias, isto é, as contradições sociais não se transformam com base em
mudanças na sociedade, mas são transferidas para uma solução imaginária, que nega a realidade
concreta. Também faz parte do mito, porque se incorpora ao imaginário das pessoas como se fosse
verdade, como a própria realidade, produzindo comportamentos, ideias, ações e valores que se rei-
teram na sociedade. Por fim, é um mito, pois tem a função apaziguadora e repetidora, assegurando
à sociedade uma conversação histórica.
Essas imagens têm a função de oferecer uma imagem unificada da violência,
que seria como que o núcleo delas. Chacina, massacre, guerra civil tácita e in-
distinção entre crime e polícia pretendem ser o lugar onde a violência se situa
78 Sociologia Jurídica
dos elementos analisados no qual o governo passa a controlar a vida dos cidadãos e “o nascimento
da prisão”. Para o autor, sistemas punitivos muito severos e violentos tornam o sistema instável e
imprevisível, além de pouco eficiente. Ao longo dos séculos XVII e XIV, a ideia de eficiência foi
ganhando força com a expansão das indústrias na Europa. Dessa forma, o Estado, além de punir,
deveria vigiar seus cidadãos, inclusive os que se encontravam presos, buscando alcançar o máxi-
mo de eficiência. “Vigiar favorece o processo produtivo: o modo como o operário trabalha, sua
prontidão, zelo, aptidão, conduta, fica tudo facilmente controlável” (ARAÚJO, 2001, p. 77). Assim,
Foucault (2000) denomina essa sociedade de sociedade disciplinar, em que se fabricam indivíduos
dóceis e úteis à sociedade.
O modelo de vigilância utilizado por Foucault é uma obra arquitetônica denominada panóptico
– ou pan-óptico – (Figuras 1 e 2) criada por Jeremy Benthan, em 1875, mas nunca executada na prática.
O termo panóptico deriva do grego, significa “tudo que se vê”, pois as celas dos presídios eram dispostas
todas para uma torre de controle, na qual apenas um guarda poderia controlar e vigiar todos os deten-
tos. Essa obra inspirou a construção posterior de diversos presídios.
Figura 1 – Planta da estrutura do Panóptico idealizado por Bentham
Controle social, violência e política 81
Para Foucault (2000), a disciplina não acontece apenas nos presídios, mas também nas
escolas, nas Forças Armadas, nas indústrias e outras instituições como forma de criar sujeitos
obedientes e voltados à sociedade moderna.
Para Araújo (2001, p. 71-72), os pressupostos teóricos que guiam Foucault são:
• a punição não é só uma sanção derivada da repressão, mas tem uma função social;
• a punição não deriva só das regras do Direito, mas é um entre outros procedimentos de
poder existentes em táticas políticas;
• o surgimento das ciências humanas pode ser buscado nos saberes que se fizeram necessá-
rios para conhecer a alma do criminoso;
• o corpo passou a ser sujeitado a espaços e técnicas disciplinares que permitiram dar
origem a um indivíduo como objeto de saber para um discurso com estatuto científico;
• o poder que existe na normalização, na punição, no adestramento dos corpos não é de
natureza jurídica e nem pertence às instâncias institucionais.
Logo, para o autor, a punição não deriva apenas do Direito, mas está presente na sociedade
de outras formas e tem por finalidade a docilização dos corpos e o seu aproveitamento para uma
determinada constituição social, em que são necessários indivíduos submissos a regras para que
possa haver a manutenção de determinado modelo produtivo.
A obra Vigiar e punir (FOUCAULT, 2000) é dividida em quatro partes:
1. O suplício – forma de espetáculo punitivo, no qual o cerimonial da pena tinha tam-
bém por finalidade não somente a exposição dos crimes e dos criminosos como for-
ma de constrangimento e amedrontamento da população, mas também como uma
forma de ritual político.
2. A punição – o direito de punição desloca-se da figura do soberano e da sua capacidade
de vingança à defesa da sociedade. Para tanto, há um processo de mitigação da pena, com
base em determinados princípios como da moderação, proporção e não arbitrariedade.
82 Sociologia Jurídica
2 Hannah Arendt (1906-1975) foi uma filósofa judia alemã que, em virtude das perseguições durante a Segunda
Guerra Mundial (foi presa em um campo de concentração), buscou refúgio nos Estados Unidos, lecionando em diversas
universidades até se mudar para Nova York, onde morreu aos 69 anos de idade. Suas principais obras são: As origens do
totalitarismo (1951); A condição humana (1958); Eichmann em Jerusalém (1963).
Controle social, violência e política 83
Considerações finais
Neste capítulo foi possível analisar os conceitos de controle social, estudando-o nas formas
formal e informal, verificando o quanto estão presentes na sociedade e a sua relação com o Direito.
Também foi estudado o conceito de violência e sua relação com a política. Foi analisado o
conceito de poder e violência para duas filósofas, Marilena Chaui e Hannah Arendt. Para Chaui a
sociedade brasileira é estruturalmente violenta por não possibilitar o exercício da autonomia dos
seus cidadãos e que para alterar esse quadro se faz necessário o exercício da política; para Arendt,
o poder é concedido pelo grupo a alguém que lhe representa e a violência é um instrumento que
esse representante pode se utilizar quando não houver mais o poder legitimado pelo grupo.
Vigiar e punir
(FOUCAULT, 2000, p. 166)
correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse
a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar
um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz,
pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas
cativas na cela da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozi-
nho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O dispositivo panóptico orga-
niza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. Em suma,
o princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções – trancar, privar de luz e
esconder – só se conserva a primeira e suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar de
um vigia captam melhor a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha.
O que permite em primeiro lugar – como efeito negativo – evitar aquelas massas compactas,
fervilhantes, pululantes, que eram colocadas nos locais de encarceramento, os pintados por
Goya ou descritos por Howard. Cada um em seu lugar, está bem trancado em sua cela de onde
é visto de frente pelo vigia; mas os muros laterais impedem que entre em contato com seus
companheiros. É visto, mas não vê; objeto de uma informação, nunca sujeito em uma comuni-
cação. A disposição de seu quarto, em frente da torre central, impõe-lhe uma visibilidade axial;
mas as divisões do anel, essas celas bem separadas, implicam uma invisibilidade lateral. E esta
é a garantia da ordem. Se os detentos são condenados não há perigo de complô, de tentativa
de evasão coletiva, projetos de novos crimes para o futuro, más influências recíprocas; se são
doentes, não há perigo de contágio; loucos, não há risco de violências recíprocas; crianças, não
há “cola”, nem barulho, nem conversa, nem dissipação. Se são operários, não há roubos, nem
conluios, nada dessas distrações que atrasam o trabalho, tornam-no menos perfeito ou provo-
cam acidentes. A multidão, massa compacta, local de múltiplas trocas, individualidades que se
fundem, efeito coletivo, é abolida em proveito de uma coleção de individualidades separadas.
Do ponto de vista do guardião, é substituída por uma multiplicidade enumerável e controlável;
do ponto de vista dos detentos, por uma solidão sequestrada e olhada.
Atividades
1. O Direito é uma forma de controle social? Justifique sua resposta.
2. De acordo com o pensamento de Marilena Chaui, qual a relação entre a violência e socieda-
de brasileira?
Referências
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Controle social, violência e política 85
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CHAUI, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 2006.
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7
Democracia e globalização
Neste capítulo, será analisado o conceito de democracia e sua relação com o Estado de
Direito, buscando aprofundar a análise a partir das relações dos cidadãos na sociedade.
Também será abordada a relação entre a democracia e a globalização. Dessa forma, serão
buscadas respostas para questionamentos como: a globalização impacta na democracia? Vive-se na
sociedade contemporânea uma crise da democracia? Qual a importância da democracia?
Essas ideias que norteiam as finalidades do Estado têm sua origem em uma concepção
liberal de Estado, que serviu de suporte para os direitos do homem, e na conversão dos súditos
em cidadãos. “O liberalismo deve ser compreendido como movimento econômico-político, tendo
como base a classe burguesa, ao propugnar, na esfera econômica, o princípio do abstencionismo
estatal, e, na esfera política, sufrágio, câmaras representativas, respeito à oposição e separação de
poderes” (SOARES, 2008, p. 80).
O liberalismo clássico deu forma ao Estado Liberal e aos seus princípios estruturais como a
concepção do individualismo e a construção do Estado de Direito. “A construção do Estado liberal de
direito deixou um legado: o império do princípio da legalidade, a despersonificação da soberania e a
luta pelos direitos e liberdade do homem” (SOARES, 2008, p. 83).
No Estado liberal, pretendia-se legitimar a vontade geral, a partir da participação do povo,
através do sufrágio. Assim, o direito que teria a função de vincular o cidadão ao Estado e regular
as instituições públicas, deveria advir também da vontade geral. No entanto, foi ocorrendo um
dualismo na sociedade, de um lado a sociedade civil, com cidadãos passivos e, de outro lado,
uma sociedade política, a qual decidia e tinha poder (SOARES, 2008).
No entanto, é preciso destacar que ser o Estado apenas um Estado de Direito pode levar a
deformações no sentido de que, ao entender que o Direito é o conjunto das normas jurídicas ela-
boradas pelo Poder Legislativo, então o Estado passaria a ser um Estado Legislativo, ou Estado da
Legalidade. Se se seguir uma concepção mais formalista do Direito – e o Estado rege-se pelas leis
– então pode-se também constituir um Estado de Direito, mas recair meramente em um Estado
formal de Direito, que pode servir também para regimes autoritários ou ditatoriais (SILVA, 2012).
[...] se o Direito acaba se confundindo com o mero enunciado formal da lei,
destituída de qualquer conteúdo, sem compromisso com a realidade políti-
ca, social, econômica, ideológica enfim (o que, no fundo esconde uma ideo-
logia reacionária), todo Estado acaba sendo Estado de Direito, ainda que seja
ditatorial. Essa doutrina converte o Estado de Direito em mero Estado legal.
Em verdade, destrói qualquer ideia de Estado de Direito. (SILVA, 1992, p. 104)
Dessa forma, não basta o Estado ser de Direito. É preciso questionar como alcançar os ob-
jetivos que um Estado se propõe? Quem serão os governantes? Como deverão ser elaboradas as
leis? Como reivindicar no caso desses objetivos não estarem sendo cumpridos? Essas questões são
essenciais para a compreensão de que um Estado pode ter essas finalidades, mas sem a partici-
pação popular. Por isso, a importância da criação do Estado democrático de Direito. Este não é o
somatório do Estado de Direito com o Estado Democrático, é mais do que isso, é a criação de um
novo conceito de Estado. O qualificador democrático torna o Estado democrático e não apenas o
Direito; dessa forma, sendo o Estado democrático, essa característica se irradia para toda a estru-
tura e instituições do Estado.
Para Canotilho (2002, p. 231), o Estado democrático de Direito é “o Estado limitado pelo
direito e o poder político estatal legitimado pelo povo. O direito é o direito interno do Estado;
o poder democrático é o poder do povo que reside no território ou pertence ao Estado”.
Democracia e globalização 89
• Segurança e certeza jurídicas: tem por objetivo a garantia da segurança jurídica para
os cidadãos e para as instituições para, assim, possibilitar a existência de uma sociedade
democrática de Direito.
Dessa forma, é possível verificar que esses princípios norteadores do Estado democrático de
Direito estão presentes no ordenamento jurídico brasileiro, mas também é necessário compreen-
der quais os fundamentos prescritos no artigo 1o da Constituição Federal brasileira dispõem sobre
os fundamentos desse Estado Democrático de Direito:
Art. 1o A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático
de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político. (BRASIL, 1988)
A partir dos incisos do art. 1o da Constituição Federal brasileira, é possível compreender quais
são os fundamentos do Estado brasileiro. Cabe destacar que, para Silva (2010, p. 37), fundamento
significa “aquilo sobre o qual repousa certa ordenação ou conjunto de conhecimento, aquilo que dá
a alguma coisa sua existência ou sua razão de ser, aquilo que legitima a existência de alguma coisa”.
Assim, os fundamentos contidos no art. 1o da Constituição Federal brasileira são as bases
para a legitimação da própria existência do Estado brasileiro.
Soberania – Representa o poder de autodeterminação de uma nação. No caso brasileiro,
o Estado é reconhecido internacionalmente como um país independente, devendo ter seu or-
denamento jurídico e sua estrutura política e social respeitados pelos demais países do mundo.
A soberania também está prevista na Constituição Federal brasileira no art. 3o, inciso I, como
objetivo do Estado e no art. 4o, inciso I, como base das relações internacionais.
Cidadania – De acordo com Silva (1992, p. 36), “a cidadania prevista constitucionalmente
é um valor cuja efetividade depende precipuamente dos respectivos titulares: trata-se de um valor
ínsito ao princípio democrático, mas cuja manutenção depende de permanente reafirmação por
parte daqueles”. Mas entender a cidadania apenas como a participação de todos nas decisões po-
lítico-governamentais pode ser uma visão incompleta sobre a cidadania. Destaca o autor que, no
Brasil, nem todos os direitos de cidadania são efetivos, pois há direitos que são apenas esporádica
e escassamente efetivados.
Dignidade da pessoa humana – Pressupõe a autonomia da pessoa, a sua autodeterminação,
isto é, a pessoa é um fim em si mesma, não podendo servir de meio para outras pessoas. Esse fun-
damento tem origem nas ideias de Kant que em sua obra Fundamentos da metafísica dos costumes
entendia que os seres racionais deveriam ser denominados de pessoas, porque sua natureza já os
designa como um fim em si mesmo, pois “[...] age de tal maneira que possas usar a Humanidade,
Democracia e globalização 91
tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e
nunca simplesmente como meio” (KANT, 2003, p. 59). Dessa forma, afirma Silva (2010, p. 39) que
“isso, em suma, quer dizer que só o ser humano, o ser racional, é pessoa. Todo ser humano, sem
distinção, é pessoa, ou seja, um ser espiritual, que é, ao mesmo tempo, fonte e imputação de todos
os valores, consciência e vivência de si próprio”.
Dessa forma, no ordenamento jurídico brasileiro, a dignidade da pessoa humana é um valor
organizativo, sendo o núcleo essencial dos direitos fundamentais. Para Miranda (2000, p. 166) a
dignidade da pessoa humana constitui “a fonte ética, que confere unidade de sentido, de valor e de
concordância prática ao sistema dos direitos fundamentais”.
Valores sociais do trabalho e da livre iniciativa – Esses valores estão relacionados à ordem
econômica do país, “estão precisamente na sua função de criar riquezas, de prover a sociedade de
bens e serviços e, enquanto atividade social, fornecer à pessoa humana bases de sua autonomia e
condição de vida digna” (SILVA, 2010, p. 41). Para que possa haver a reprodução e manutenção do
sistema econômico e produtivo, faz-se necessário assegurar como um dos fundamentos do Estado
a liberdade do trabalho, por isso deve ser um valor social, posto que o trabalho não é apenas um
direito, mas um dever do cidadão, de forma a garantir sua subsistência, e também contribuir para
a formação da sociedade. A livre iniciativa é um dos pressupostos de uma economia moderna,
baseada na produção voltada para o mercado e, assim, dependente de liberdade de ação por parte
daqueles que pretendem exercer alguma atividade econômica.
Pluralismo político – Esse princípio está diretamente relacionado com o princípio democrá-
tico e com a dignidade da pessoa humana, pois não há uma verdadeira democracia sem o respeito
à pluralidade de ideias, opiniões e interesses. Assim, o pluralismo político é fundamental para que
haja uma vida política livre e dinâmica em uma sociedade, pois de acordo com Silva (2010), é o lia-
me que vincula a liberdade dos indivíduos com a multiplicidade dos meios de vida, de pensar e com-
preender a sociedade. Cabe destacar que o pluralismo político também está contido no Preâmbulo
da Constituição Federal brasileira, ao dispor que o Estado democrático brasileiro é fundado em
“valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos” (BRASIL, 1988).
A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser um pro-
cesso de convivência social, numa sociedade livre, justa e solidária (art. 3o, II),
em que o poder emana do povo, que deve ser exercido em proveito do povo,
diretamente ou por representantes eleitos (art. 1o, parágrafo único); participati-
va, porque envolve a participação crescente do povo no processo decisório e na
formação dos atos de governo, pluralista porque respeita a pluralidade de ideias,
culturas e etnias e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos di-
vergentes e a possibilidade de convivência de formas de organização e interesses
diferentes da sociedade [...]. (SILVA, 1992, p. 109)
Logo pode-se constatar a importância da construção de uma sociedade baseada nos funda-
mentos democráticos de organização do Estado e do Direito, posto que incorpora no poder o povo,
que é seu fundamento e seu principal objeto de existência.
92 Sociologia Jurídica
a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 pode-se verificar que há uma distinção
entre direitos do homem (podendo se entender como os direitos individuais) e dos direitos do
cidadão (como os direitos políticos). Dessa forma, o cidadão surge como o nacional protegido por
uma ordem jurídica específica. No entanto, esse entendimento foi sofrendo alterações, e passou-se
a compreender que a expressão cidadão inclui o homem como seu elemento, posto que, na socie-
dade atual, praticamente todos os homens são cidadãos também. Assim, o povo que é a base do
regime democrático: “compreende a totalidade dos que possuem status da nacionalidade, os quais
devem agir, conscientes de sua cidadania ativa, segundo ideias, interesses e representações de na-
tureza política” (SOARES, 2008, p. 154).
A partir dessa compreensão, verifica-se que o exercício da cidadania é feito pelo povo,
que é a soma de todos aqueles que possuem o status de cidadão de um país, sendo aqueles que
têm direitos relativos àquela ordem jurídica, mas são também aqueles que, pelo exercício de seus
direitos políticos, podem construir e reconstruir novos direitos e a própria organização social.
Na sociedade brasileira, como pode ser exercida a cidadania? Vários são os mecanismos de
exercício da cidadania, podendo citar dentre eles:
• Mecanismos jurídicos – dentro do ordenamento jurídico brasileiro, existem vários tipos
de ações judiciais que podem ser utilizadas pela população para o exercício da cidadania,
podendo citar: a) ação popular, prevista no art. 5o, LXXIII da Constituição Federal, que
serve para anular ato lesivo ao patrimônio público, ao meio ambiente ou ao patrimônio
histórico ou cultural; b) projeto de lei de iniciativa popular, prevista no art. 14, III da
Constituição Federal, e que serve para a população poder apresentar projetos de lei de
seu interesse por meio da mobilização popular; c) ação civil pública, responsabilidade
por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico,
estético, histórico, turístico e paisagístico, regulamentada na Lei n. 7.347 (BRASIL, 1985).
Também há as previsões constitucionais de exercício direto da cidadania com o referendo
e plebiscito.
• Mecanismos judiciais – a cidadania pode ser exercida por meio do Poder Judiciário.
Os cidadãos que entenderem que seus direitos estão sendo violados podem mover ações
judiciais buscando o cumprimento das leis e a efetivação de seus direitos. Existem no Brasil
os Juizados Especiais, em que o cidadão pode registrar diretamente reclamações, sem a pre-
sença de advogados, para isso o valor da ação não pode ultrapassar 20 salários-mínimos.
Essa é uma forma simplificada e direta de exercício dos direitos pelo próprio cidadão.
• Mecanismos extrajudiciais – há também previsões legais no sistema jurídico brasileiro
de resolução de conflitos extrajudiciais, podendo citar como exemplo a mediação e a arbi-
tragem. Na primeira, as partes em conflito escolhem um mediador que auxiliará a chegar
a um acordo sobre o assunto; na segunda, as partes envolvidas em um conflito escolhem
um árbitro que decidirá sobre o assunto. A arbitragem está regulamentada na Lei n. 9.307
(BRASIL, 1996), alterada pela Lei n. 13.129 (BRASIL, 2015); e a mediação está regula-
mentada pela Lei n. 13.140 (BRASIL, 2015).
• Mecanismos sociais e políticos – também existem possibilidades de exercício da cida-
dania por meio de denúncias, repasse de informações, mobilizações da mídia, das redes
94 Sociologia Jurídica
O que Bauman (2001) alerta é que está havendo na sociedade atual um esvaziamento da es-
fera pública de atuação da política pelo cidadão, e esse fenômeno tem contribuído para uma menor
participação cidadã. Esse fato decorre do esvaziamento da esfera pública e da expansão da esfera
individual de cada pessoa na sociedade. Mas por que isso acontece? Porque na sociedade moderna,
líquida, há um processo de individualização, em que as pessoas passam a se preocupar e a se identi-
ficar na sociedade a partir de seus interesses particulares, perdendo o interesse pelas lutas coletivas.
Se o indivíduo é o pior inimigo do cidadão, e se a individualização anuncia
problemas para a cidadania e para a política fundada na cidadania, é porque os
cuidados e preocupação dos indivíduos enquanto indivíduos enchem o espaço
público até o topo, afirmando-se como os únicos ocupantes legítimos e expul-
sando tudo mais do discurso público. (BAUMAN, 2001, p. 46)
não se recusam a fazer esse tipo de negociação? Porque não querem perder a oportunida-
de de ter essas grandes organizações em seus territórios e também temem o isolamento
comercial, tecnológico e financeiro.
Diante do policentrismo decisório que hoje caracteriza a economia globalizada,
com suas hierarquias altamente flexíveis, entidades nacionais e supranacionais
híbridas e estruturas de comando diferenciadas e diversificadas, e do crescente
predomínio da lógica financeira sobre a economia real, o Estado-nação [...]
vem sendo progressivamente substituído pelo ‘mercado’, enquanto instância de
coordenação da vida social. (FARIA, 2002, p. 69)
Para finalizar, percebe-se que essa ingerência do mercado na organização dos Estados tem
afetado os processos democráticos e políticos e acarretado alterações individuais, podendo afirmar
que os cidadãos vão se tornando consumidores e, dessa forma, as lidas coletivas exercidas pelo
poder político dos cidadãos na busca de construir uma sociedade mais justa e igualitária vão sendo
substituídas por demandas individuais, voltadas para o consumo de bens e serviços.
Considerações finais
Dessa forma, após estudar os avanços na construção de um Estado Democrático de Direito,
com a participação dos cidadãos na construção da sociedade, discutiu-se sobre o processo de glo-
balização que vem impactando a ordem interna dos Estados, afetando os processos democráticos e
tornando o sistema jurídico mais complexo e com mais dificuldades de efetivação de suas normas
pelas instituições estabelecidas para esse fim.
Cabe destacar que Wood (2010) faz uma análise crítica sobre a relação entre o capitalismo e
democracia. Segundo a autora, nas sociedades capitalistas há uma divisão estrutural entre a esfera
política e a esfera econômica. Em virtude dessa separação, o Estado cria mecanismos que reduzem
a democracia a uma dimensão formal, jurídico-política, para que não haja repercussão na esfera
econômica. Dessa forma, na democracia liberal há um resguardo da esfera econômica que não fica
sujeita às decisões democráticas.
Ficamos então com mais perguntas que respostas. Como poderia a cidadania, nas condições
atuais e com um corpo inclusivo de cidadãos, recuperar a importância que já teve? Qual o
significado, numa democracia capitalista moderna, de não apenas preservar os ganhos do libe-
ralismo, das liberdades civis e da proteção da “sociedade civil”, não apenas para inventar con-
cepções mais democráticas de representação e novos modos de autonomia, mas também para
98 Sociologia Jurídica
recuperar os poderes perdido da “economia”? O que seria necessário para recuperar a demo-
cracia da separação formal entre o “político” e o “econômico”, quando o privilégio político foi
substituído pela coerção econômica, qual o significado da extensão da cidadania – e isso quer
dizer não somente maior igualdade de “oportunidades”, ou direitos passivos de bem-estar, mas
também a responsabilidade democrática ou independência ativa – na esfera econômica?
Seria possível imaginar uma forma de cidadania democrática que penetrasse o domínio
lacrado pelo capitalismo moderno? Seria possível que o capitalismo sobrevivesse a essa exten-
são da democracia? O capitalismo é compatível com a democracia em seu sentido literal? Se
persistirem as suas dificuldades atuais, continuará o capitalismo sendo compatível com o libe-
ralismo? Poderá o capitalismo se apoiar na sua capacidade de garantir a prosperidade material,
e será ele capaz de triunfar junto com a democracia liberal, ou sua sobrevivência em tempos
difíceis vai depender da redução dos direitos democráticos?
Seria a democracia liberal, na teoria e na prática, adequada para enfrentar as condições do
capitalismo moderno, para não falar do que existe fora e além dele? A democracia liberal
parece o fim da história por haver ultrapassado todas as alternativas imagináveis ou por ter
exaurido sua própria capacidade, enquanto esconde outras possibilidades? Ela realmente
superou todos os rivais ou apenas ocultou da vista temporariamente?
A tarefa que o liberalismo estabelece para si mesmo é, e continuará a ser, indispensável.
Enquanto houver Estados, haverá a necessidade de controlar seu poder e proteger os poderes
e as organizações independentes que existem fora do Estado. Quanto a isso, qualquer tipo de
poder social precisa ser cercado pela proteção da liberdade de associação, de comunicação,
de diversidade de opiniões, de uma esfera privada inviolável etc. Qualquer futura democra-
cia continuará a receber lições sobre esses temas da tradição liberal, tanto na teoria como na
prática. Mas o liberalismo – até mesmo como ideal, para não falar de sua realidade carregada
de imperfeições – não está equipado para enfrentar as realidades do poder numa sociedade
capitalista, muito menos para abranger um tipo mais inclusivo de democracia do que o que
existe hoje.
Atividades
1. Qual a importância social da constituição de um Estado democrático de Direito?
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8
Mudança social e justiça
Você já parou para pensar se uma sociedade pode ser alterada? Como essas mudanças
podem acontecer?
Neste capítulo, será estudado o conceito de mudança social e como podem acontecer essas
alterações em uma sociedade. Também será analisado o conceito de movimentos sociais, seus ele-
mentos principais e seus reflexos na sociedade.
Para finalizar, será analisado o conceito de justiça social como um valor presente na socie-
dade, importante para possibilitar as transformações sociais.
• Tecnologia – as inovações tecnológicas estão acontecendo de forma cada vez mais acele-
rada, possibilitando mudanças dentro da sociedade.
• Direito – o sistema normativo de uma sociedade também sofre as influências advindas
da sociedade, mas uma vez constituídas as normas jurídicas, essas também são fatores de
influência na ocorrência de mudanças sociais.
• Forças políticas – as sociedades são organizadas por indivíduos e grupos diferentes que
se organizam na busca de diversos interesses. Dessa forma, essa diversidade de forças po-
líticas dentro de uma sociedade transforma a sua estrutura e organização.
Assim sendo, verifica-se que as mudanças são parte de uma sociedade e os fatores que irão
contribuir para sua existência podem ser muito variados, e impactar de formas diferentes uma
determinada sociedade. Uma das formas de gerar mudanças dentro de uma sociedade são os mo-
vimentos sociais.
O sociólogo britânico Anthony Giddens (2012, p. 713) afirma que os movimentos sociais
são “tentativas coletivas de promover um interesse comum ou garantir um objetivo comum fora
das instituições estabelecidas”. O autor destaca a esfera de atuação dos movimentos sociais que
acontecem no âmbito da sociedade civil. Já a professora Maria da Glória Gohn (2000) esclarece
que é preciso não generalizar e considerar como movimentos sociais todas as ações que ocorrem
na esfera não institucional; mas os movimentos sociais atuam na esfera pública não governamental,
onde podem dar visibilidade as suas ações.
De acordo com Alain Touraine (1996), as ações coletivas surgem por não encontrarem res-
postas no sistema político existente, seja por sua limitação ou por sua paralização; mas, também,
podem surgir devido a interesses e objetivos de transformar a ordem política existente. “Por um
lado, as mobilizações coletivas aparecem como um resíduo que não pode ser tratado pelas institui-
ções; por outro, manifestam uma progressão radical ou revolucionária dirigidas contra instituições
que protegem interesses dominantes que só podem ser derrubados pela violência” (TOURAINE,
1996, p. 83-84).
No entanto, alerta Touraine (1996) que há diferenças entre os movimentos sociais e as ações
coletivas. As ações coletivas podem ter origem não democrática, enquanto os movimentos sociais
e a democracia são indissociáveis, posto que, apenas em uma sociedade democrática os indivíduos
podem formar movimentos sociais a partir da liberdade de escolha política de cada um e da pos-
sibilidade de buscar um bem comum junto à defesa de interesses particulares. Assim, para o autor,
a ideia de movimentos sociais deve ser oposta à ideia de violência, mesmo porque a própria de-
mocracia deve se opor à violência e possibilitar a ação plural dos indivíduos na sociedade, criando
espaços de respeito à diversidade.
Desta forma, Gohn (2000) acredita que para a análise dos movimentos sociais é preciso di-
ferenciá-los de outros conceitos. Os grupos de interesses caracterizam-se por terem uma vivência
anterior a sua organização, que os identifica em suas demandas, mas um movimento social pres-
supõe a existência de uma identidade posterior à reunião dos indivíduos para uma luta coletiva.
Por exemplo, um grupo de indivíduos que não têm moradia possui uma realidade comum, mas
para serem parte de um movimento social, precisam criar uma identidade a partir da demanda em
Mudança social e justiça 103
comum, criando e renovando suas ideias, ações e valores. As formas de atuação realizadas por um
grupo, como uma passeata, não caracterizam um movimento social, posto ser algo esporádico e
momentâneo; os movimentos sociais são mais amplos, pois têm uma continuidade na organização
e na elaboração de demandas que perduram no tempo.
Assim, de acordo com Gohn (2000, p. 13), os movimentos sociais podem ser definidos como:
[...] ações coletivas de caráter sociopolítico, construídas por atores sociais per-
tencentes a diferentes classes e camadas sociais. Eles politizam suas demandas
e criam um campo político de força social na sociedade civil. Suas ações estru-
turam-se a partir de repertórios criados sobre temas e problemas em situações
de conflitos, litígios e disputas. As ações desenvolvem um processo social e
político-cultural que cria uma identidade coletiva ao movimento, a partir de
interesses em comum. Esta identidade decorre da força do princípio da solida-
riedade e é construída a partir da base referencial.
A partir desse conceito, pode-se extrair os elementos que compõem um movimento social.
• Ação coletiva – os movimentos sociais são formações coletivas nas quais indivíduos com
interesses e identidade sobre um determinado assunto unem-se, de forma organizada,
com o propósito de alcançar seus objetivos.
• Caráter sociopolítico – os movimentos sociais decorrem de interesses e conflitos perten-
centes à determinada sociedade, que organizados adquirem um caráter político, pois têm
a intenção de transformar ou alterar um determinado quadro social.
• Diversidade de atores – um movimento social tem uma pluralidade de atores que o cons-
titui, pois, se houvesse apenas interesses de um grupo ou classe social, o movimento esta-
ria vinculado apenas a interesses particulares e o movimento social é mais amplo em seus
interesses e reivindicações.
• Politização das demandas – entendendo a política como organização e exercício do po-
der em uma pólis (cidade), as demandas advindas dos movimentos sociais são politizadas,
pois passam a ser o exercício do poder por seus integrantes que dispõem de maior cons-
ciência de sua cidadania.
• Identidade – a partir da organização do movimento social, de seus interesses e demandas,
há a formação de uma identidade social, pois seus integrantes passam a criar uma unida-
de e ser reconhecidos pelo discurso e práticas que desenvolvem.
• Princípio da solidariedade – a solidariedade é um elemento importante dentro de um
movimento social, não significando que os movimentos sociais são homogêneos e har-
mônicos, pois mesmo dentro dos movimentos sociais há disputas e divergências. É justa-
mente a solidariedade que cria a unidade e possibilita a ligação entre os diversos atores e
as possíveis divergências existentes.
Assim, “os movimentos geram uma série de inovações nas esferas pública e privada, partici-
pando direta ou indiretamente da luta política de um país e contribuindo para o desenvolvimento
e transformação da sociedade civil e política” (GOHN, 2000, p. 13). Mas cabe questionar: quais são
as etapas de constituição de um movimento social? Veremos.
104 Sociologia Jurídica
formulação de estratégias
práticas de difusão
Fonte: Elaborada pela autora com base nos estudos de Gohn (1997).
Assim sendo, pode-se verificar que os movimentos sociais são decorrentes das necessidades
de alteração dentro de uma sociedade. Os indivíduos organizam-se a partir dessas necessidades e a
reivindicam seus objetivos conjuntamente, podendo alcançá-los.
No entendimento de Giddens (2012, p. 715), “os movimentos sociais estão entre as formas
mais poderosas de ação coletiva. Campanhas persistentes e bem organizadas podem trazer resul-
tados dramáticos”.
Remo Mutzenberg (2011) explica que os movimentos sociais podem ser classificados em
três grandes grupos:
106 Sociologia Jurídica
1. Diversidade e direitos – nesses movimentos sociais estão os grupos que têm por objeti-
vos a luta por respeito à diversidade e a conquista de direitos relacionados à pluralidade
em seus diversos aspectos, como a questão da saúde, direitos reprodutivos, violência,
trabalho. Incluem-se os movimentos pelo respeito à diversidade de gênero como o mo-
vimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais), os movimentos de di-
reitos da mulher, que são compostos por uma diversidade de mulheres (trabalhadoras,
camponesas, afro-descentes, indígenas, dentre outras), os movimentos identitários e
culturais, em especial, o movimento negro, que ativamente se organizam para a con-
quista de direitos e respeito à cultura, podendo citar a aprovação de diversas normas ju-
rídicas relacionadas às cotas raciais para acesso às universidades públicas, por exemplo.
Figura 2 – Movimento feminista
jentakespictures/iStockphoto
Merkuri2/iStockphoto
Assim, verifica-se a importância desses movimentos sociais, como formas de reivindicação
e mudança social a partir de interesses advindos da sociedade e da organização de indivíduos que
exercem sua cidadania de forma ativa.
A autora Agnes Heller (1998) explica que para a construção de uma vida boa, esta deve estar
relacionada à ideia de justiça, pois a justiça é a base para uma vida boa que, por sua vez, é consti-
tuída de três elementos:
a. certeza/retidão/honestidade – a condição para uma vida boa é uma condição moral, a
retidão. Assim, o ponto de partida é o conceito de pessoa correta. A escolha existencial
pela retidão/honestidade é uma escolha racional e moral. “A escolha constitui uma resolu-
ção de ser o que somos”. Dessa forma, as escolhas boas, com base naquilo que é o bem, são
aquelas escolhas que refletem em uma vida boa. As pessoas honestas e boas (certas) são
aquelas que agem buscando a criação do melhor mundo moral possível, que é o melhor
mundo sociopolítico possível.
Quadro 1 – Máximas proibitivas e máximas imperativas
Máximas proibitivas Máximas imperativas
Não escolha normas que não podem ser tornadas Reconheça igualmente todas as pessoas como
públicas. livres e racionais.
Não escolha normas em que nem todo mundo é Respeite pessoas igualmente segundo as virtu-
livre para escolher. des e méritos (morais).
Baseado em uma tríade jurídica: viver honestamente, não ferir ninguém e deixar
Senso de direito e coragem civil
ou atribuir a cada um o que é seu.
(Continua)
110 Sociologia Jurídica
Dessa forma, para se alcançar uma sociedade em que a justiça social seja um de seus va-
lores centrais, é preciso a intensificação de valores entre seus integrantes. Nas palavras de Hoffe
(2009), deve-se desenvolver as virtudes cívicas que possibilitem o exercício da solidariedade entre
os integrantes de uma sociedade. Também se faz fundamental a participação desses indivíduos no
exercício dessas virtudes de forma coletiva e democrática, pois, assim, haverá o envolvimento de
um número maior de indivíduos, uma maior contribuição de ideias e uma maior propagação de
novas ideias e comportamentos.
Considerações finais
Por fim, é possível questionar: e o Brasil, conseguirá ser uma sociedade justa?
Sim, será possível construir uma sociedade justa, mas para isso, será necessária uma trans-
formação nos valores dos indivíduos para que possam identificar a importância da solidariedade
entre seus integrantes. Olhar além dos interesses particulares e verificar que todos os integrantes
de uma sociedade são importantes e devem ser respeitadas em sua dignidade. Alterar a forma
de pensar e incorporar virtudes cívicas nas decisões de cada um pode possibilitar uma profunda
transformação na sociedade brasileira. Basta começar.
O Fórum Social Mundial (FSM) é um fenômeno social e político novo. O fato de ter ante-
cedentes não diminui a sua novidade, antes pelo contrário. O FSM não é um evento. Nem
Mudança social e justiça 111
é uma mera sucessão de eventos, embora procure dramatizar as reuniões formais que pro-
move. Não é uma conferência acadêmica, embora para ele convirjam os contributos de muitos
investigadores. Não é um partido ou uma internacional de partidos, apesar de nele participa-
rem militantes e activistas de muitos partidos de todo o mundo. Não é uma organização não
governamental ou uma confederação de organizações não governamentais, muito embora a
sua concepção e organização devam bastante às organizações não governamentais. Não é um
movimento social, apesar de muitas vezes se autodesignar como o movimento dos movimen-
tos. Embora se apresente enquanto agente da transformação social, o FSM rejeita a noção
de um sujeito histórico e não atribui prioridade a qualquer ator social específico nesse pro-
cesso de transformação social. Não assume uma ideologia claramente definida, tanto naquilo
que rejeita como naquilo que defende. Considerando que o FSM se autoconcebe enquanto
luta contra a globalização neoliberal, será essa uma luta contra uma forma de capitalismo ou
contra o capitalismo em geral? Tendo em conta que o FSM se encara como sendo uma luta
contra a discriminação, a exclusão e a opressão, será que o sucesso dessa luta pressupõe um
horizonte pós-capitalista, socialista e anarquista, ou, pelo contrário, pressupõe que nenhum
horizonte seja especificamente definido? Atendendo a que a ampla maioria das pessoas que
participam no FSM se identifica como apoiante de uma política de esquerda, quantas defini-
ções de “esquerda” cabem no FSM? E o que pensar daqueles que recusam ser definidos como
de esquerda ou de direita por considerarem que esta dicotomia é um particularismo nortecên-
trico ou ocidental-cêntrico, e procuram definições políticas alternativas? As lutas sociais que
encontram expressão no FSM não se ajustam adequadamente a nenhuma das vias de trans-
formação social sancionadas pela modernidade ocidental: reforma e revolução. Para além do
consenso sobre a não-violência, as suas formas de luta são extremamente diversas e estão
distribuídas num contínuo entre o polo da institucionalidade e o polo da insurreição. Mesmo
o conceito de não violência está aberto às interpretações mais díspares. Finalmente, o FSM
não está estruturado de acordo com qualquer dos modelos de organização política moderna,
seja ele o do centralismo democrático, o da democracia representativa ou o da democracia
participativa. Ninguém o representa ou está autorizado a falar e, muito menos, a tomar deci-
sões em seu nome, ainda que ele seja concebido como um fórum que facilita as decisões dos
movimentos e das organizações que nele participam.
Atividades
1. Quais as principais características de um movimento social? Explique-as com suas palavras.
4. Para Gailbraith (1996), o que é preciso para a construção de uma sociedade justa?
112 Sociologia Jurídica
Referências
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______. Lei n. 3.353, de 13 de maio de 1888. Declara extinta a escravidão no Brasil 1998a. Disponível em:
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______. Lei n. 9.790, de 23 de março de 1999. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 24
mar. 1999. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9790.htm>. Acesso em: 28 out. 2017.
DAGNINO, Evelina. Sociedade civil, participação e cidadania: de que estamos falando? In: MATO, Daniel
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GALBRAITH, John Kenneth. A sociedade justa: uma perspectiva humana. Rio de Janeiro: Campus, 1996.
GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo:
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HOFFE, Otfried. A democracia no mundo de hoje. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
MUTZENBERG, Remo. Movimentos sociais entre aderências, conflitos e antagonismos. SINAIS, Vitória, v.1,
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SANTOS, Boaventura de Sousa. O fórum social mundial: manual de uso. Disponível em: <http://www.ces.
uc.pt/bss/documentos/fsm.pdf>. Acesso em: 28 out. 2017.
2. A norma jurídica é criada pela relação estabelecida entre o Direito as relações sociais. Con-
sequentemente, a norma obedece a esse mesmo processo alterando comportamento, mu-
dando instituições, suprindo necessidades sociais.
3. Neste capítulo o Direito foi estudado como um fato social, visto que as normas jurídicas são
fruto das necessidades e transformações que ocorrem na sociedade. Portanto, entender o
Direito apenas como o conjunto de normas imperativas que a organizam, não explica por
que as normas jurídicas são diferentes para cada uma delas e que em uma mesma sociedade
as normas jurídicas são alteradas ao longo do tempo. Assim, pode-se compreender que há
interferência na formação das normas jurídicas da cultura, do conhecimento, dos valores,
das instituições de cada sociedade e quando há mudanças nesse contexto social surgem no-
vas demandas na ordem jurídica. Dessa forma, é possível afirmar que o Direito é fruto da
sociedade e por isso é um fato social.
2 Os clássicos da sociologia
1. Ao estudar o pensamento de Émile Durkheim, ficou claro que, para o autor, a divisão social
do trabalho interfere na organização da sociedade. Portanto, quanto maior for a divisão so-
cial do trabalho, há maior especialização e maior individualização das pessoas, interferindo
na coesão social, pois os indivíduos passam a agir movidos mais pelos interesses pessoais,
havendo uma crise da solidariedade entre as pessoas. Dessa forma, o papel do Estado se
torna fundamental para a manutenção da coesão social, fiscalizando e participando na regu-
lamentação das profissões e na organização da educação.
114 Sociologia Jurídica
2. No estudo de Max Weber há uma preocupação de compreender o sentido dado pelos indiví-
duos às suas ações. Para tanto, o autor define ação social como a ação humana dotada de sen-
tido, tendo uma justificativa subjetivamente elaborada. Para o autor, há grande importância
na busca da compreensão de como as ações têm um sentido no âmbito social. Para tanto, a
relação social estabelecida pelos indivíduos na sociedade é explicada por Weber como ações
orientadas em função das perspectivas que um indivíduo tem em relação ao outro, mas que
não tem necessariamente o mesmo sentido em suas ações. Assim, o Direito também deve
ser analisado por essa perspectiva, e deve-se compreender a relação do indivíduo com a lei,
pois cada indivíduo pode fazer uma interpretação e ter um sentido para sua ação com base
nas normas do Direito.
3. Karl Marx analisa a sociedade capitalista tendo o trabalho como seu elemento central, por-
que o autor entende que nessa etapa do desenvolvimento histórico a sociedade divide-se em
duas grandes classes: a burguesa e a proletária, em que a primeira é proprietária dos meios
de produção e a segunda é proprietária da força de trabalho. É por meio dessa relação de
exploração que se estabelece entre as duas classes que há a produção das mercadorias e a
geração da mais-valia para a classe burguesa. A classe burguesa, para manter essa infraestru-
tura social, precisa também de uma superestrutura que tem a finalidade de controle. Nessa
superestrutura da sociedade estão o Direito e o Estado como elementos de poder e domina-
ção, pois o Estado e o Direito passam a representar os interesses da classe burguesa, que tem
além do poder econômico, o poder político também.
4. Para os três autores, o Estado tem um papel central de controle. No entanto, para cada um
dos autores, Durkheim, Weber e Marx, há um entendimento diferente para essa função. Para
Durkheim, o papel de controle do Estado serve para a manutenção da coesão social. Para
Weber, o Estado tem a função de controle, exercendo uma dominação por meio da raciona-
lidade legal, pois, se o Direito pode ser interpretado de diversas formas, é o Estado que deve
ter esse domínio e também o monopólio da violência. Para Marx, o Estado representa os
interesses da classe burguesa, e tem a finalidade de controle social, pois é necessário à classe
dominante manter uma infraestrutura social que represente seus interesses econômicos.
2. Para Bauman, a pós-modernidade é marcada pela ideia de fluidez, liquidez, incerteza, inse-
gurança. Entende o autor que a modernidade líquida se refere ao tempo atual que a sociedade
contemporânea está vivendo. É um período em que as marcas da denominada modernidade
pesada, isso é, a ideia de solidez, segurança, certeza, estão sendo retiradas. É no período da
modernidade líquida que os principais referenciais humanos como família, classe, naciona-
lidade, política estão derretendo e dessa forma, o indivíduo vai ficando isolado, tornando-se
responsável por seus atos e seu destino, gerando consequências como a incerteza e a insegu-
rança nos indivíduos, pois ele vive em mundo líquido, onde o consumo é incentivado, mas
também é volátil, passageiro, até as relações pessoais se tornam frágeis.
2. Para Gramsci, a hegemonia é um processo que se forma quando um grupo ou classe consegue
transformar um interesse particular em um interesse geral. Nesse processo, o grupo líder for-
ma pactos e alianças utilizando-se de meios diferentes da coerção e da violência. Esse conceito
de hegemonia pode ser utilizado para a análise da formação das normas jurídicas, pois dentro
das casas legislativas e dentro da sociedade há disputas por interesses diversos que apresentam
na construção e aprovação de um projeto de lei. No entanto, é o grupo hegenômico que conse-
gue obter um resultado favorávell, conseguindio que seu interesse prevaleça.
3. Para Gramsci, o Estado deve ser entendido de forma mais ampla que o conceito liberal de
Estado, criando o conceito de Estado ampliado. Esse Estado ampliado é formado pela socie-
116 Sociologia Jurídica
dade política e pela sociedade civil. A primeira é composta pelos aparelhos administrativo-
-burocrático e político-militar; e a segunda é formada por aparelhos privados de hegemonia.
4. Para Santos, na sociedade contemporânea, o Estado não conseguiu produzir uma sociedade
mais justa, igualitária e participativa, pois os grupos hegemônicos produziram uma socie-
dade voltada para os interesses econômicos e corporativos. Desta forma, o autor faz uma
crítica, ao afirmar que a própria sociedade se organiza em processos contra-hegemônicos
para buscar a construção de uma nova forma de organização social baseada em princípios
democráticos de participação social, incluindo só grupos subaltermos para que haja uma
ampliação dos processos participativos e da cidadania.
5 Direito e ideologia
1. Para Chaui, a ideologia é formada por um processo que tem origem na divisão do trabalho den-
tro de uma sociedade. Dessa divisão do trabalho há, em especial, a divisão entre o trabalho inte-
lectual e material. O trabalho intelectual, desta forma, adquire uma aparente autonomia, que irá
se refletir na suposta autonomia dos produtores do trabalho intelectual. Assim, o produto do tra-
balho intelectual adquire na sociedade uma certa autonomia, apresentam-se na sociedade como
ideias abstratas, que explicam a sociedade, mas a explicam de forma invertida, pois essas ideias
têm base na realidade concreta, mas são demonstradas a partir de uma ótica invertida. Assim, a
autora afirma que a ideologia é fruto das ideias da classe dominante, sendo um instrumento de
dominação entre classe, que tem como função ocultar a divisão entre as classes e possibilitar a
perpetuação da classe dominante sem a necessidade da força física.
2. Althusser entende que não é possível estudar a ideologia sem sua vinculação com o Esta-
do. Para o autor, o Estado é composto por dois corpos: os aparelhos repressivos do Estado
e os aparelhos ideológicos do Estado. O Direito pertence às instituições que compõem os
aparelhos ideológicos do Estado, tendo por função reprodução da força de trabalho, não
apenas no aspecto da qualificação, mas também na sujeição ao sistema produtivo existente.
No entanto, o Direito também pertence aos aparelhos repressivos do Estado, pois faz parte
da superestrutura do Estado.
3. Para Gramsci, as ideologias fazem parte das sociedades, não apenas como uma forma de
controle e de dominação da classe dominante sobre as demais classes, mas como as ideias
que existem em uma sociedade. A partir dessa compreensão, o autor afirma existirem duas
formas de ideologia na sociedade: as ideologias arbitrárias e as ideologias historicamente or-
gânicas. A diferença entre elas é que a primeira, a arbitrária, tem a função de criação de uma
hegemonia da classe dominante sobre as demais classes, dessa forma, devendo haver uma
luta contra esse tipo de ideologia. Já as ideologias historicamente orgânicas, são as ideias
existentes em uma sociedade, independentes de grupos e classes, assim possibilitando que
dentro dessas ideologias historicamente orgânicas surjam novas ideias e novas formas de
pensar e agir, o que permite um dinamismo na sociedade e a possibilidade de mudanças.
Gabarito 117
2. Para Marilena Chaui, a violência é todo ato que se opõe à liberdade de agir dos indivíduos,
tratando-os como se fossem coisas em vez de tratá-los como seres racionais e autônomos.
Para a autora, a sociedade brasileira tem uma pluralidade de mecanismos que impendem
ou dificultam o exercício da autonomia e da liberdade dos seus integrantes, desta forma,
constituindo-se como uma sociedade violenta.
3. Para Michel Foucault, a vigilância na sociedade gera uma sociedade disciplinar que tem por
finalidade criar sujeitos mais dóceis e úteis à sociedade. Dessa forma, a disciplina tem por obje-
tivo o controle das atividades dos indivíduos e de seus corpos para um ajustamento às normas
da sociedade.
4. Para Hannah Arendt, o poder é a habilidade de agir em uníssono, isto é, agir em um gru-
po. Assim, o poder não pertence a uma pessoa, mas ao grupo que o concede, legitimando
alguém a exercê-lo em nome dos demais. A violência, por sua vez, é um instrumento que
pode ser utilizado por aquele indivíduo que não tem mais legitimidade de seu grupo, isto
é, não tem mais poder. Por fim, a política relaciona-se com esses conceitos, pois se o poder
é um agir em grupo, logo é um ato de política, isto é, a forma de constituição do poder e
de escolha de seus representantes efetivam-se pelo exercício da política.
7 Democracia e globalização
1. Quando uma sociedade constitui um Estado democrático de Direito, significa que houve a
compreensão da necessidade de democratizar a estrutura do Estado, isto é, que as institui-
ções estatais devem se constituir com base no princípio democrático. Dessa forma, o Estado
passa a incorporar em sua estrutura e funcionamento o processo democrático e assim o
118 Sociologia Jurídica
povo pode estar presente no próprio Estado. Lembrando que um Estado democrático de Di-
reito é aquele que tem sua estrutura e seu sistema jurídico limitado pelo poder popular. Por
fim, a criação de um Estado democrático de Direito é ter em seu bojo a participação popular,
o que dá ao Estado maior legitimidade popular e maior controle da população, evitando os
excessos de seus governantes.
2. Compreendendo um Estado democrático de Direito como aquele que tem em suas institui-
ções e estrutura o princípio democrático e a democracia como o poder exercido pelo povo,
tem-se uma ligação entre esses dois conceitos, o povo. Se o poder é do povo, então para que
haja efetivamente o exercício desse poder, é preciso que o povo, enquanto o conjunto dos
cidadãos de um Estado, exerça seu poder, isto é, exerça sua cidadania. Por meio do exercício
da cidadania, o Estado e o Direito passam a ter sua constituição e efetividade ligados a essa
atuação dos cidadãos.
esse exercício conjunto é uma ação política que visa objetivos que são as mudanças sociais;
c) possuir diversidade de atores, um movimento social deve ser formado por diferentes pes-
soas; d) politizar das demandas, os interesses particulares passam a ser organizados com
finalidades coletivas; e) ter identidade, a participação de indivíduos diferentes em um mo-
vimento social, mas com um objetivo em comum, com uma demanda coletiva, forma uma
identidade entre seus membros; f) ter solidariedade, a união de indivíduos diferentes com
demandas em comuns em um movimento social, acontece pela incorporação do princípio
da solidariedade, pois quem não é solidário, dificilmente se mobilizará para a luta coletiva
na busca da transformação de uma sociedade.
2. Não, os movimentos sociais são diferentes do Terceiro Setor. O Terceiro Setor no Brasil
ganhou força na década de 1990 quando houve a incorporação das ideias neoliberais, em
especial, o entendimento do Estado como um Estado mínimo, isto é, um Estado que atue
apenas nas áreas essenciais e deixe ao mercado e à sociedade as demais áreas. Dessa forma,
o Terceiro Setor se expandiu e passou a desenvolver, em parceria com o Estado, ações que
antes eram desenvolvidas apenas pelo Estado. Ele atua em colaboração com os movimentos
sociais, mas não se equiparam e não têm a mesma finalidade na sociedade.
3. Os movimentos sociais têm relação com as mudanças sociais, pois os indivíduos ao se orga-
nizarem em torno de demandas coletivas e buscarem de diferentes formas as reivindicações
e a difusão de suas ideias e demandas, acabam por possibilitar mudanças sociais ou evitar
determinadas mudanças contrárias às suas demandas.
4. Para Galbraith (1996), uma sociedade justa é aquela que é possível ser construída por seus
integrantes, posto que todas as sociedades têm barreiras que dificultam ou impedem a cons-
trução de uma sociedade justa. Mas para que isso aconteça, é preciso a incorporação de
valores éticos, com base em princípios como o da solidariedade, da liberdade e da igualdade.
Também se faz necessária a busca por uma vida gratificante, isto é, por uma vida que seja
boa de ser vivida, que respeite princípios como o da dignidade da pessoa humana.
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