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Sociologia Jurídica

Book · January 2018

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Andrea Martins

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Sociologia Jurídica

Andrea Cristina Martins

IESDE BRASIL S/A


2018
© 2018 – IESDE BRASIL S/A.
É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do detentor
dos direitos autorais.
Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: Gilmanshin/iStockPhoto

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
M341s Martins, Andrea Cristina
Sociologia jurídica / Andrea Cristina Martins. - 1. ed. -
Curitiba, PR : IESDE Brasil, 2018.
118 p. : il. ; 21 cm.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-6389-5

1. Sociologia jurídica. I. Título.


17-46198 CDU: 34:316.334.4

Todos os direitos reservados.

IESDE BRASIL S/A.


Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200
Batel – Curitiba – PR
0800 708 88 88 – www.iesde.com.br
Andrea Cristina Martins
Doutora e mestre em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta
Grossa (UEPG) e graduada em Direito pela mesma universidade. Atualmente, é professora do
ensino superior, coordenadora de projetos de extensão e orientadora de projetos de iniciação
científica. É advogada com atuação na área de consultoria e assessoria ao Terceiro Setor.
Sumário

Apresentação 7

1 As relações entre a sociedade e o Direito 9


1.1 O estudo da sociedade: a sociologia 9
1.2 O Direito como fato social 12
1.3 A sociologia jurídica 14

2 Os clássicos da sociologia 21
2.1 A sociologia de Émile Durkheim: a divisão social do trabalho e a
solidariedade 21
2.2 A sociologia de Max Weber: a busca do sentido da ação 25
2.3 A sociologia de Marx: a importância do trabalho na sociedade capitalista 27

3 Entendendo as transformações da sociedade contemporânea 35


3.1 O que é a modernidade? 35
3.2 A existência da pós-modernidade 38
3.3 A pós-modernidade e o Direito 43

4 Grupos sociais e hegemonia 47


4.1 O que são grupos sociais? 47
4.2 Hegemonia e Estado ampliado 51
4.3 A contra-hegemonia 55

5 Direito e ideologia 59
5.1 Ideologia como falseamento da realidade 59
5.2 As várias perspectivas da ideologia 63
5.3 O papel dos intelectuais e a ideologia 66

6 Controle social, violência e política 73


6.1 O controle social e o Direito 73
6.2 As várias faces da violência 76
6.3 A relação da política com a violência 82
7 Democracia e globalização 87
7.1 A importância da democracia no Estado de Direito 87
7.2 O papel do cidadão 92
7.3 Os impactos da globalização na democracia 95

8 Mudança social e justiça 101


8.1 O que são movimentos sociais? 101
8.2 Relação entre movimentos sociais e as mudanças sociais 104
8.3 A justiça como valor social 107

Gabarito 113
7

Apresentação

Ao longo da formação jurídica, os estudantes do curso de Direito dedicam-se intensivamen-


te nas disciplinas denominadas dogmáticas, as quais estudam as normas jurídicas, seu processo
legislativo, as possibilidades de interpretação, sua aplicação prática. Mas, além dessas, há também
as disciplinas não dogmáticas, assim denominadas porque não tratam apenas das normas jurídicas,
e subsidiam o estudante com conhecimentos de outras ciências que são afins do Direito.

O quão importantes são as disciplinas não dogmáticas para a compreensão do Direito?


Pode-se aqui utilizar a analogia criada pelo professor Manuel Hespanha, ao afirmar que é possível
comparar o estudo do Direito a uma floresta. As disciplinas dogmáticas estudam as árvores que
compõem essa floresta, e, por isso, é preciso estudar cada ramo do Direito em disciplinas especí-
ficas, individualmente, para compreender suas particularidades. Mas, também, é preciso estudar
as relações entre essas árvores, para que se possa compreender o conjunto formado por elas, posto
que uma floresta não é apenas a reunião de várias árvores, mas a interação existente entre elas.
No entanto, destaca o professor, para compreender esse complexo inter-relacionamento, é preciso
olhá-lo de fora, sair da floresta para conhecer seu tamanho, suas relações com outros ecossistemas,
seus rios que a cortam, seu clima, e todo seu entorno. Em sua analogia, explica o professor, são as
disciplinas não dogmáticas que fazem essa função. Ao estudar Sociologia, Antropologia, Economia,
Política, Psicologia, o estudante de Direito tem a possibilidade de compreender o Direito de forma
mais ampla, entender sua complexidade e, dessa forma, melhor entender como o Direito se forma,
se transforma e se relaciona com a sociedade e com os indivíduos.

Nesta obra, o objetivo é apresentar a relação do Direito com a sociedade da qual faz parte,
buscando autores, teorias e explicações sobre como ocorre essa relação. Assim, esta obra busca
trazer um olhar mais crítico sobre o estudo do Direito, mostrando suas complexas relações com a
sociedade, compreendendo-a por uma pluralidade de interesses diversos, e o Direito como fruto
dessa tensa disputa existente na sociedade.
1
As relações entre a sociedade e o Direito

Neste capítulo serão analisadas as relações existentes entre a sociedade e o Direito. Para tanto,
estes são os questionamentos que irão nortear este estudo: há interferência do Direito na constitui-
ção da sociedade? Existem relações entre os fenômenos sociais e a construção das normas jurídicas?
Tais questões permitirão identificar a existência de uma relação dialética de interferências
recíprocas entre as relações sociais e as normas jurídicas. O entendimento dessas interferências per-
mitirá compreender que a sociedade se constitui a partir das influências que sofre do seu processo
histórico, cultural, político, econômico, religioso, entre outras. Este estudo também possibilitará o
entendimento do Direito como sendo constituído por diversos fatores específicos de cada sociedade.
Para promover reflexão, análise e pesquisa sobre essas relações existentes entre a sociedade e
o Direito, serão também analisados o conceito e os objetivos da sociologia jurídica.

1.1 O estudo da sociedade: a sociologia


Para tratar da relação entre a sociedade e o Direito, faz-se necessário, primeiramente, enten-
der o que constitui uma sociedade. Pode-se dizer que ela é compreendida como um agrupamento
social que desenvolve relações sociais, compartilha valores, conhecimentos, tradições, constrói ins-
tituições econômicas, políticas, religiosas e jurídicas com o intuito de atender às necessidades do
grupo e promover uma convivência social civilizada. Em essência, uma sociedade é formada por
indivíduos que produzem cultura, orientando-se por valores e regras e se agrupando de diferentes
formas. Uma sociedade também se estratifica, cria instituições e mecanismos de controle e estabe-
lece diferenciações entre seus integrantes.
No seu mais importante sentido, entendemos por ‘sociedade’ uma espécie de
contextura formada entre todos os homens e na qual uns dependem dos ou-
tros, sem exceção; na qual o todo só pode subsistir em virtude da unidade
das funções assumidas pelos coparticipantes, a cada um dos quais se atribui,
em princípio, uma tarefa funcional; e onde todos os indivíduos, por seu turno,
estão condicionados, em grande parte, pela sua participação no contexto ge-
ral. Assim, o conceito de sociedade define mais as relações entre os elementos
componentes e as leis subjacentes nessas relações do que, propriamente, os ele-
mentos e suas descrições comuns. (HORKHEIMER; ADORNO, 1977, p. 263)

De acordo com o conceito citado, verifica-se a complexidade que envolve o estudo da socie-
dade, sendo importante destacar o elemento de interdependência entre os seus membros. A vida
em sociedade envolve uma coparticipação entre os indivíduos, que dividem e partilham as tarefas
comuns, e é esse um dos elementos centrais na caracterização de uma sociedade. A sociologia é a
ciência que estuda a complexidade de uma organização social, como comenta Giddens: “a socio-
logia é o estudo científico da vida humana, de grupos sociais, de sociedades inteiras e do mundo
10 Sociologia Jurídica

humano. É uma atividade fascinante e instigante, pois seu tema de estudo é o nosso próprio com-
portamento como seres sociais” (GIDDENS, 2012, p. 19).
Assim, a sociedade, objeto da sociologia, deve ser entendida de forma ampla e diversificada,
com sua complexidade, em que os indivíduos desenvolvem relações sociais, afetivas, econômicas,
religiosas, entre outras.
Para Giddens (2012), os estudos sociológicos permitem identificar uma riqueza das relações
sociais e verificar aquelas mais profundas existentes na sociedade, demonstrando a dinâmica des-
sas relações, interpretando fatos e instituições e demonstrando as tensões existentes no interior da
sociedade. Ainda segundo o autor, a sociologia também tem outras funções, ela “nos ensina que
aquilo que consideramos natural, inevitável, bom ou verdadeiro pode não ser, e que as coisas que
consideramos como normais são profundamente influenciadas por fatos históricos e processos so-
ciais” (GIDDENS, 2012, p. 19). A sociologia também permite compreender a sociedade com base
na produção do conhecimento científico, e não de opiniões pessoais ou de experiências individuais.
Mas quais são os objetos que podem ser estudados pela sociologia? Giddens (2012) traz um
exemplo sobre as possibilidades de estudo da sociologia a partir de um fato do cotidiano: tomar
café. A Figura 1 retrata uma cena com pessoas tomando café. O que cada um de nós pode refletir
com base nela? É possível uma pesquisa sociológica sobre o uso do café?
Figura 1 – Indivíduos bebendo café

AntonioGuillem/ iStockphoto

Giddens (2012) aponta cinco possibilidades de investigação sociológica a partir do consumo


do café na sociedade contemporânea.
1. O café, além de uma bebida, representa também um valor simbólico. Para muitas pes-
soas, o dia começa com o consumo de uma xícara de café. Isso também pode estar rela-
cionado a um processo de socialização, em que pessoas querem se conhecer, ou trocar
As relações entre a sociedade e o Direito 11

ideias, constituindo um processo de interação social, que pode ser objeto sociológico
de pesquisa.
2. Como bebida, o café contém substâncias estimulantes para o cérebro, como a cafeína,
que proporciona a muitas pessoas uma dose extra de energia no seu dia. O uso conti-
nuado do café pode gerar um hábito que corresponde a um vício. Apesar de ser uma
droga socialmente aceita, pode também ser um objeto de estudo para a sociologia, pelas
razões do uso e difusão dessa bebida e pelas consequências que essa droga pode causar
nas pessoas.
3. Ao beber uma xícara de café, um indivíduo contribui para um longo processo produti-
vo e econômico. Produção, transporte e distribuição do café fazem parte de uma grande
cadeia econômica, geradora de riquezas que impactam as sociedades envolvidas nesse
ciclo econômico, também podendo ser objeto da sociologia, pois essas relações são
locais e globais.
4. O consumo do café, apesar de globalizado atualmente, não foi sempre assim. Sua origem
vem do Oriente Médio, mas foi com a expansão para o Ocidente, mais ou menos há 200
anos, que o produto foi sendo amplamente difundido. A maior parte do café produzido
hoje no mundo vem de regiões como América do Sul e África, que foram colonizadas
pelos europeus. Assim, também é possível analisar sociologicamente o café pelas rela-
ções econômicas, produtivas, históricas e culturais envolvendo diferentes povos.
5. E, finalmente, o consumo do café na sociedade globalizada em que vivemos pode ser
estudado por meio de temas atuais, como os direitos humanos, a sustentabilidade,
a produção orgânica e o comércio justo. A sociologia pode estudar as relações entre o
processo de globalização e o aumento da consciência de problemas globais.
Esses exemplos demonstram que a sociologia, como ciência, pode estudar e pesquisar por
meio de muitos enfoques diferentes um mesmo fenômeno ou fato social. No entanto, para que real-
mente produza ao final de uma pesquisa um conhecimento científico, faz-se necessário o uso de
métodos sistemáticos de pesquisa, com adoção de critérios, definição de formas de coleta e análise
dos dados, para então poder chegar a um resultado válido.
Uma pesquisa científica deve seguir etapas. Inicialmente, é necessário definir o tema para
que se possa delinear com maior precisão o objeto a ser pesquisado. Depois define-se o problema,
isto é, qual é a pergunta-chave que se procura responder com a realização da pesquisa. A seguir,
o investigador deve estudar sua pergunta de partida com leituras e entrevistas exploratórias. Após
essa fase, é possível definir a problemática da pesquisa e assim construir um modelo de análise, que
será composto de uma fase de observação, incluindo a coleta de dados. Só então é possível seguir
para a próxima etapa, que constitui a análise das informações, e chegar à fase final, que é a conclu-
são da pesquisa (QUIVY; CAMPENHOUDT, 1998).
Realizar pesquisas sociológicas permite, em primeiro lugar, conhecer as diferenças culturais
existentes no mundo e uma ampliação das perspectivas de como olhar o mundo. Também pos-
sibilita uma maior autocompreensão, pois, quanto mais os indivíduos se conhecerem, souberem
como e por que agem na sociedade, mais poderão contribuir e influenciar nas mudanças sociais
(GIDDENS, 2012).
12 Sociologia Jurídica

O dinamismo e a transitoriedade das relações sociais existentes na contemporaneidade con-


tribuem para a ampliação dos estudos sociológicos, pois a sociedade transforma-se cada vez mais
rapidamente, exigindo mais estudos sobre as causas e consequências dessas transformações.

1.2 O Direito como fato social


Após a análise sobre como se constitui uma sociedade e como ela pode ser estudada pela
sociologia, é preciso questionar como se constitui o Direito.
É possível entender o Direito apenas como um conjunto de normas e regras que organizam
a sociedade. No entanto, essa visão sobre o Direito é muito restrita, pois não responde questões
fundamentais, como: por que cada sociedade tem normas jurídicas próprias que podem diferir de
outras sociedades? Por que as normas jurídicas mudam com o transcorrer do tempo?
Para responder essas questões, é preciso compreender o Direito como fruto das relações de
uma sociedade. De acordo com Bobbio (2008, p. 3), a sociedade e o Direito estão relacionados,
porque é possível compreender a vida social envolta em uma densa rede de regras de conduta,
que se tornam parte da vida, são naturalizadas nas relações sociais. O autor compara a vida em
sociedade com a trajetória de um pedestre no trânsito: há placas proibindo certas condutas, ou-
tras prescrevendo comportamentos. Também é possível fazer uma comparação entre as placas de
trânsito com as normas jurídicas ao indicar comportamentos e orientar as condutas.
Ainda de acordo com Bobbio (2008), o conceito de Direito deve conter três elementos essen-
ciais: a) remeter-se ao conceito de sociedade; b) conter a ideia de ordem social; e c) abranger a ideia
de estrutura, de algo distinto da sociedade, mesmo fazendo parte da unidade social.
Assim, fica claro que há uma relação intrínseca entre a sociedade e o Direito, conforme afir-
ma Rosa (2001, p. 57): “a norma jurídica, portanto, é um resultado da realidade social. Ela emana
da sociedade, por seus instrumentos e instituições destinados a formular o Direito, refletindo o
que a sociedade tem como objetivos, bem como suas crenças e valorações, o complexo de seus
conceitos éticos e finalísticos”.
Grossi (2005) também entende o Direito como decorrente da sociedade. O autor afirma que
essa compreensão desmistifica a imagem do Direito como um instrumento do poder, como sendo
apenas organizador ou ordenador da sociedade; ela desloca o sujeito produtor das normas jurídicas
do Estado para a sociedade. Outra ideia que decorre desse resgate à formação do Direito com base
nas relações sociais é a de que, na sociedade, há coexistência de sujeitos diferentes, com interesses
e necessidades diversas, o que enriquece a compreensão do Direito.
Dessa forma, é possível entender que o Direito foi criado como fruto das relações existentes
em uma sociedade, a partir de valores. Assim, verifica-se que os fatos e as relações sociais surgem
antes na sociedade e só posteriormente podem se constituir em normas jurídicas.
Um exemplo dessa relação entre os fatos sociais e a produção das normas jurídicas é a Lei
n. 11.705 (BRASIL, 2008), que fez alterações no Código de Trânsito Brasileiro e na Constituição
Federal, tornando mais severas as punições àqueles que dirigem sob o uso de bebidas alcoólicas – e
incluindo restrições às propagandas sobre elas. Na época da criação dessa lei, podia-se identificar
As relações entre a sociedade e o Direito 13

na sociedade a necessidade de regras como essa, pois os dados sobre as mortes no trânsito decor-
rentes do uso de bebidas alcóolicas eram muito altos. Na própria exposição de motivos que seguiu a
aprovação da lei, a Organização Mundial da Saúde (OMS) revela o número dessas mortes, além do
aumento do consumo de bebidas alcoólicas entre os jovens e o volume de recursos públicos gastos
com acidentes de trânsito em virtude desse problema.
Assim, é possível verificar que havia fatos concretos na sociedade que justificaram mudan-
ças legislativas. Após a aprovação da lei, houve alterações positivas, como a diminuição desses aci-
dentes, o aumento do uso de táxis por pessoas que ingeriram bebida alcoólica e precisavam voltar
para casa, a contratação de veículos pelos estabelecimentos comerciais para levar seus clientes para
casa e até a criação do que ficou conhecido como “motorista da rodada”, em que uma pessoa do
grupo de amigos não ingeria bebida alcóolica para poder dirigir ao final do evento.
No ano passado, 5,5% da população dessas cidades declararam que dirigiam
após o consumo de qualquer quantidade de álcool, contra os 7% do ano de 2012.
Os homens (9,8%) continuam assumindo mais a infração do que as mulheres
(1,8%). Apesar disso, desde o endurecimento da lei seca, menos homens têm
assumido os riscos da mistura álcool/direção: a queda foi de 22,2%, entre 2012
e 2015, na população masculina. (BRASIL, 2016)

Esses exemplos permitem verificar o movimento dialético de interferência entre os fatos


sociais na formação da legislação e a influência das normas jurídicas na organização social. No en-
tanto, é preciso agregar mais um elemento para essa análise. O Direito decorre das relações sociais
e se transforma em norma jurídica por meio de um processo legislativo estatal que ocorre de forma
tensa e disputada pela diversidade de interesses de pessoas e grupos no processo legislativo, para
que se aprovem, ou não, as normas jurídicas.
Um exemplo sobre essas disputas existentes na sociedade por interesses divergentes e
que se reproduzem no processo legislativo pode ser analisado na Lei n. 12.546 (BRASIL, 2011),
que estabeleceu novas regras para comercialização, publicidade e consumo do cigarro. A al-
teração que ficou mais conhecida foi a proibição de fumar em espaços fechados, exigindo
que estabelecimentos fizessem alterações para não permitir o consumo do cigarro em seus
espaços internos e também que as pessoas alterassem seu comportamento. Cabe destacar que
esse movimento de proibição já vinha acontecendo no país e diversos municípios e estados da
federação brasileira tinham leis próprias antes da criação da lei federal.
Como consequência dessa lei, há pesquisas que apontam uma correlação entre a proibição
do consumo em lugares fechados e a diminuição do uso do cigarro, conforme dados do Portal
Planalto (BRASIL, 2015):
A pesquisa Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas
por Inquérito Telefônico (Vigitel 2014), apresentada nesta quinta-feira (28) pelo
Ministério da Saúde, revela queda de 30,7% no número de fumantes no Brasil
nos últimos nove anos. A regulamentação da Lei Antifumo, a política de preço
mínimo de cigarros e a proibição de fumódromos e de propagandas de produtos
derivados do tabaco em todo o território nacional estão entre as ações do gover-
no federal de controle do tabagismo.
14 Sociologia Jurídica

É importante destacar que a aprovação dessa lei não aconteceu sem disputas, mas como
identificar no processo legislativo essas tensões existentes? É possível inferir que a indústria do
cigarro não tinha interesse na restrição do consumo e da publicidade do seu produto, porém isso
era algo que existia na sociedade, e foram esses interesses que predominaram, havendo, então,
a aprovação da lei.
É interessante observar que, no exemplo de lei citado primeiramente, não houve a proibição
por completo da propaganda de bebidas alcoólicas na televisão; o que a lei estabeleceu foram horá-
rios diferenciados para sua inserção. No entanto, no caso do cigarro, a proibição das propagandas
na televisão foi completa, o que demonstra as tensões e a forma de disputa dos interesses de cada
grupo e a definição do conteúdo das normas jurídicas.
Dessa forma, é possível compreender que as normas jurídicas não decorrem automaticamente
a partir de necessidades ou valores contidos na sociedade, pois eles podem ser conflitantes. Há dis-
putas e tensões para a incorporação desses interesses de cada grupo social no Direito. Para que isso
aconteça, é preciso haver um processo de organização desses grupos e a movimentação no sentido
de novas propostas legislativas e de convencimento da importância e necessidade dessas alterações.
Um exemplo disso pode ser a ausência de lei no Brasil que regulamente o casamento entre
pessoas do mesmo sexo. Pode-se questionar por que ela não existe. Apesar do movimento LGBT
no Brasil ter se organizado nos últimos anos e de ter propostas legislativas sobre a possibilidade do
casamento entre pessoas do mesmo sexo há muitos anos, verifica-se que também há uma organiza-
ção de algumas representações religiosas que são contrárias a essa regulamentação legal. Cabe des-
tacar que, no ano de 2011, o Supremo Tribunal Federal, em uma decisão progressista, reconheceu
a união estável entre casais homossexuais, assegurando direitos como pensão e herança.
Por fim, é possível identificar outra função para o Direito: o papel emancipador e trans-
formador da sociedade, pois as normas jurídicas, ao serem criadas a partir das demandas sociais
e serem eficazes no contexto societário, podem gerar mudanças que contribuem para ampliar o
patamar civilizador.

1.3 A sociologia jurídica


Após a identificação da correlação entre a sociedade e o Direito, cabe questionar: há uma
ciência que estude essas relações sob a ótica do Direito?
Inicialmente, a sociologia jurídica foi entendida por muitos autores como uma subdivisão da
sociologia. Para Cavalieri Filho (2009),
a sociologia jurídica tem se firmado como uma ciência autônoma, posto que
tem objeto de análise próprio e inconfundível: o estudo do Direito como um
fato social concreto, integrante de uma superestrutura social. [...] A finalidade
da sociologia jurídica é estabelecer uma relação funcional entre a realidade
social e as diferentes manifestações jurídicas, sob forma de regulamentação
da vida social, fornecendo subsídios para suas transformações, no tempo e no
espaço. (CAVALIERI FILHO, 2009, p. 58)
As relações entre a sociedade e o Direito 15

É também necessário diferenciar a sociologia jurídica de outras ciências jurídicas (Quadro 1).
Muitas vezes, há confusão entre os objetos de estudo da sociologia jurídica com a filosofia do Direito
e a própria ciência do Direito. No entanto, há distinções importantes entre essas várias ciências, pois
cada uma tem seu objeto próprio de análise, mesmo tendo o Direito como base para seus estudos.
Quadro 1 – Diferenças entre sociologia jurídica, ciência do Direito e filosofia do Direito
Sociologia jurídica Fato Eficácia Ser

Ciência do Direito Norma Vigência Dever ser

Filosofia do Direito Valor Fundamento Poder ser


Fonte: Cavalieri Filho, 2009, p. 65.

A partir dessa comparação, verifica-se que a sociologia jurídica tem por objeto de estudo o
Direito como um fato social e analisa o Direito formado por normas jurídicas decorrentes da orga-
nização social e investigando sua eficácia. A esfera de análise da sociologia jurídica se dá no campo
da realidade concreta: o que são as normas, como se formaram, quais suas influências e tensões,
quais seus objetivos, o que transformaram.
Diferindo da sociologia jurídica, a ciência do Direito tem suas pecualiaridades. Para os
cientistas jurídicos, o objeto de estudo é a constituição das normas – em seus trâmites e regula-
mentações legais – e a dimensão de análise delas se dá pela sua vigência a partir da qual o estudo
se dá pelo dever ser. As normas jurídicas, como uma abstração que organiza e regulamenta fatos,
instituições e pessoas, têm uma proposição, são criadas para atingir um objetivo.
No entendimento de Sabadell (2010, p. 61), a “sociologia jurídica examina a influência dos
fatores sociais sobre o Direito e a incidência deste na sociedade, ou seja, os elementos de interde-
pendência entre o social e o jurídico, realizando uma leitura externa do sistema jurídico”.
O objeto de análise da sociologia jurídica busca responder três questões centrais
(SABADELL, 2010):
1. Por que se cria uma norma ou um inteiro sistema jurídico?
2. Quais são as consequências do Direito na vida social?
3. Quais são as causas da decadência do Direito, que se manifesta por meio do desuso e
da abolição de certas normas ou mesmo mediante a extinção de determinado sistema
jurídico?
Dessa forma, é possível representar o objeto de estudo da sociologia jurídica conforme a
Figura 2.
Figura 2 – Objeto da sociologia jurídica

Sociedade Direito

Fonte: Elaborada pela autora.


16 Sociologia Jurídica

Já a filosofia do Direito tem como objeto de estudo o Direito como valor e sua dimensão de
análise é o fundamento que constitui o Direito.
[...] a Filosofia do Direito preocupa-se também com os fundamentos do Direito,
queremos dizer que constituem igualmente objeto dessa disciplina os problemas
relacionados com o ideal do direito, a natureza do que é jurídico, suas causas e
seus princípios últimos, seu conteúdo ético a seu mundo axiológico, investigan-
do ainda as ideologias ou correntes de pensamento que acabaram prevalecen-
do e servindo de fundamento aos principais institutos jurídicos. (CAVALIERI
FILHO, 2009, p. 63)
No Brasil, a teoria tridimensional do Direito, criada por Miguel Reale1, foi um marco de opo-
sição à teoria dominante da época, a teoria pura do Direito, elaborada pelo alemão Hans Kelsen2,
que entendia o Direito formado apenas pela norma, tendo essa a sua única fonte de formação.
Para Reale (2002), o Direito pode ser apreciado a partir de três perspectivas diferentes: valor,
norma e fato social.
1) o Direito como valor do justo, estudado pela Filosofia do Direito na parte
denominada Deontologia Jurídica, ou, no plano empírico e pragmático, pela
Política do Direito;
2) o Direito como norma ordenadora de conduta, objeto da Ciência do Direito
ou Jurisprudência; e na Filosofia do Direito no plano epistemológico;
3) o Direito como fato social e histórico, objeto da História, da Sociologia e
da Etnologia do Direito; e da Filosofia do Direito, na parte da Culturologia
Jurídica. (REALE, 2002, p. 509)
A teoria tridimensional do Direito faz uma crítica à abordagem positivista do Direito, que o
entende como sendo formado apenas pela norma jurídica. Para a teoria tridimensional do Direito,
a norma é formada pela influência que sofre dos valores, perpassada pelos fatos sociais, conforme
representação da Figura 3:
Figura 3 – Processo de formação da norma jurídica

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Fonte: Reale, 2002, p. 553.

A partir da compreensão da Figura 3, verifica-se que a norma jurídica (N) é uma agregação
do complexo de valores (complexo axiológico) contidos na sociedade, que se refletem no conjunto
dos fatos sociais (F) gerando novas proposições legais, e ao percorrerem um processo legislativo,

1 Miguel Reale (1910-2006) foi um jurista, filósofo, poeta e professor universitário, com grande e importante produ-
ção científica e filosófica sobre o Direito. Suas principais obras foram: Filosofia do Direito (1953). Pluralismo e liberdade
(1963); Teoria tridimensional do Direito (1968) e Paradigmas da cultura contemporânea (1996). Foi ainda supervisor da
comissão que elaborou o novo Código Civil (2002).
2 Hans Kelsen (1881-1973) foi um jurista austríaco, um dos mais influentes da filosofia do Direito. Suas principais
obras foram: A democracia; Jurisdição constitucional; Teoria geral das normas; Teoria geral do estado e, sua obra mais
famosa, Teoria pura do Direito.
As relações entre a sociedade e o Direito 17

(P) transformam-se em norma jurídica (N). Portanto, para Reale (2002, p. 569), “a norma jurídica
é uma forma de integração fático-axiológica, dependendo dos fatos e valores de que se origina e
dos fatos e valores supervenientes”.
Esse processo de integração entre valor e fato, na produção das normas jurídicas pode ser re-
presentado na Figura 4, que demonstra o processo e formação de uma norma jurídica. Importante
destacar que a formação da norma jurídica deixa claro que o Direito não é algo estanque, dado,
concluído, mas sim, fruto de uma integração e de uma dinâmica com a sociedade, ficando nítidas
as causas das mudanças legislativas que passa cada sociedade e também por que cada sociedade
possui um ordenamento jurídico diferente. Há uma tensão entre os valores e fatos presentes na
sociedade, e é a partir dessas tensões que as normas vão se constituindo.
Figura 4 – Processo do normativismo concreto
v1 V2 V3 vn
N1 N2 N3 Nn
F1 F2 F3 Fn
Fonte: Reale, 2002, p. 569.

Existe um dinamismo na produção das normas, em que se incidem valores (V1) e fatos (F1)
que se transformam em outros valores (V2, V3, Vn) e outros fatos (F2, F3, Fn) e assim sucessivamente
em outras normas (N1 N2, N3, Nn). Tem-se um modelo explicativo para as transformações que ocor-
rem no ordenamento jurídico, fruto das alterações sociais. Alguns exemplos dessas transformações
recentes são as normas de Direito de família que tratam da fertilização in vitro; as normas de Direito
contratual que disciplinam as compras realizadas via internet; as normas de Direito do trabalho que
regulamentam o teletrabalho etc.

Considerações finais
Neste capítulo, foram analisadas as relações entre a sociedade e o Direito. Foi possível identi-
ficar que as ciências da sociologia e do Direito têm objetos de pesquisa diferentes e que a sociologia
jurídica tem por campo de análise a relação entre os fatos sociais e a formação do Direito, tendo,
dessa forma, um objeto de pesquisa diferente das outras ciências.
Também ficou claro que o Direito é um fato social e que sua formação é decorrente das
reivindicações e das necessidades oriundas da sociedade. Mas essa transformação das demandas
sociais em norma jurídica não acontece de forma neutra e impassível, mas o processo legislativo é
fruto de tensa e disputada luta por interesses.

Ampliando seus conhecimentos


No texto a seguir, Bauman e May (2010) tratam sobre a importância da sociologia como
forma de compreensão da sociedade e do papel de cada indivíduo no contexto social.
18 Sociologia Jurídica

Aprendendo a pensar com a sociologia


(BAUMAN; MAY, 2010, p. 11-12)

A sociologia engloba um conjunto disciplinado de práticas, mas também representa con-


siderável corpo de conhecimento acumulado ao longo da história. Percorrer com o olhar a
seção de sociologia das bibliotecas revela um conjunto de livros que representa essa área de
conhecimento como uma tradição de publicação. Essas obras fornecem considerável volume
de informação para novatos na área, queiram eles se tornar sociólogos ou apenas ampliar seu
conhecimento a respeito do mundo em que vivem. São espaços em que os leitores podem se
servir de tudo aquilo que a sociologia é capaz de oferecer e, com isso, consumir, digerir, dela se
apropriar e nela se expandir. Essa ciência configura-se, assim, uma via de constante fluxo, e os
novatos acrescentam ideias e estudos da vida social às estantes originais.
A sociologia, nesse sentido, é um espaço de atividade contínua que compara o aprendizado
com novas experiências e amplia o conhecimento, mudando, nesse processo, a forma e o con-
teúdo da própria disciplina.
Isso parece fazer sentido. Afinal, quando nos perguntamos “o que é a sociologia?”, podemos
nos referir a uma coleção de livros em uma biblioteca, que dão conta do conteúdo da disciplina
– esse é um modo aparentemente óbvio de pensar sobre a matéria, posto que, se alguém nos
perguntar “o que é um leão?”, podemos pegar um livro sobre animais e indicar uma imagem
específica. Nesse sentido, estamos apontando para a ligação entre palavras e objetos. Assim,
portanto, palavras referem-se a objetos, que se tornam referentes para essas palavras, e, então,
estabelecemos conexões entre uns e outras em condições específicas. Sem essa capacidade
comum de compreensão, seria impossível a comunicação mais banal, aquela que não costu-
mamos sequer questionar. Isso, entretanto, não é sufi ciente para um entendimento de maior
profundidade, mais sociológico, dessas conexões.
Esse processo, contudo, não nos possibilita conhecer o objeto em si. Temos então de acrescen-
tar algumas perguntas, por exemplo: de que maneira esse objeto é peculiar? De que forma ele
se diferencia de outros, para que se justifique o fato de podermos a ele nos referir por um nome
diferente? Se chamar um animal de leão é correto mas chamá-lo de tigre não, deve haver algo
que leões tenham e tigres não, deve haver distinções entre eles. Só descobrindo essas diferen-
ças podemos saber o que caracteriza um leão – o que é bem diferente de apenas saber a que
objeto corresponde a palavra “leão”. É o que acontece com a tentativa de caracterizar a maneira
de pensar que podemos chamar de sociológica. Satisfaz-nos o fato de a palavra “sociologia”
representar certo corpo de conhecimentos e certas práticas que utilizam esse conhecimento
acumulado. Entretanto, o que faz esses conteúdos e essas práticas serem exatamente “socioló-
gicos”? O que os torna diferentes de outros corpos de conhecimento e de outras disciplinas que
têm seus próprios procedimentos?

Atividades
1. A sociologia foi concebida como ciência diante da necessidade de se analisar a forma como
se constitui e se organiza a sociedade. Explique quais as funções dos estudos sociológicos
para os indivíduos e para a sociedade.

2. De que modo as normas jurídicas interferem na sociedade?


As relações entre a sociedade e o Direito 19

3. Foi estudado neste capítulo que o Direito é um fato social. Explique o porquê.

4. Qual o objeto de estudo da sociologia jurídica?

Referências
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BAUMAN, Zygmunt; MAY, Tim. Aprendendo a pensar com a Sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.
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em: 16 out. 2017.
______. Lei n. 12.546, de 14 de dezembro de 2011.Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 15
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2015. Disponível em: <http://www2.planalto.gov.br/noticias/2015/05/politicas-de-combate-ao-tabagismo-
reduzem-em-mais-de-30-por-cento-numero-de-fumantes-no-brasil>. Acesso em: 16 out. 2017.
______. Portal Brasil. Número de brasileiros que bebem e dirigem cai em 21,5%. Disponível em:
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Acesso em: 16 out. 2017.
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Sociologia Jurídica. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
GIDDENS, Anthony. Sociologia. Porto Alegre: Penso, 2012.
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HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. Sociedade. In: FORACCHI, Marialice Mencarini; MARTINS,
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QUIVY, Raymond; CAMPENHOUDT, Luc Van. Manual de investigação em Ciências Sociais. Lisboa: Gradiva,
1998.
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 2002.
ROSA, Felippe Augusto de Miranda. Sociologia do Direito: o fenômeno jurídico como fato social. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
SABADELL, Ana Lucia. Manual de Sociologia Jurídica: introdução a uma leitura externa do Direito. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2010.
SACADURA ROCHA, José Manuel de. Sociologia Jurídica: fundamentos e fronteiras. Rio de Janeiro: Elsevier,
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Disponível em: <http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,lei-seca-reduz-em-6-2-acidentes-no-transito-diz-
ministerio-da-saude,568699>. Acesso em: 19 dez. 2017.
2
Os clássicos da sociologia

Este capítulo tem por objetivo analisar o pensamento dos três principais sociólogos clássicos:
Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx, no que tange às relações da sociedade com o Direito.
Estudar esses três pensadores contribuirá para a percepção da sociedade a partir de enfoques
diferentes, permitindo uma ampliação das formas de interpretar os fatos sociais e o Direito.
Compreender como esses autores analisaram a sociedade, cada um em seu tempo histórico,
também possibilitará o entendimento das alterações sociais ao longo do tempo e da forma como
a sociologia avançou para poder analisar tais transformações. Estudar os conceitos e categorias
criadas por esses autores será fundamental para o estudo da sociologia jurídica que se utiliza desses
conhecimentos para o estudo do Direito como um fato social.

2.1 A sociologia de Émile Durkheim: a divisão


social do trabalho e a solidariedade
Émile Durkheim (1858-1917) é considerado o pai da sociologia francesa, em virtude da im-
portância de sua obra. Foi professor de Ciências Sociais no curso criado por ele na Universidade de
Bordeaux e, posteriormente, foi nomeado professor da primeira cadeira de sociologia na França,
na Universidade de Sorbonne.
Figura 1 – Retrato de Émile Durkheim

Suas principais obras são: Da divisão social do trabalho (1893), em que o autor estabelece
o objeto de estudo da sociologia; As regras do método sociológico (1895), em que o autor lança as
bases metodológicas da nova ciência e; O suicídio (1987), obra em que ele aplicou o método em
uma monografia considerada modelo de pesquisa social, utilizando a estatística para estudo do
suicídio como um fato social.
22 Sociologia Jurídica

Conceitos como fato social, solidariedade, crime, anomia, que são muito importantes para o
estudo da sociologia e do Direito, foram amplamente estudados por Durkheim.
Sua obra tem dois grandes traços fundamentais: a preocupação com a autonomia da socio-
logia e a dicotomia entre o indivíduo e a sociedade, buscando explicar o condicionamento social
dos indivíduos.
Um dos grandes objetivos de Durkheim foi a consolidação da sociologia como uma ciência
autônoma, definindo um objeto de estudo específico, diferente das demais ciências. Em sua obra
As regras do método sociológico, dedicou-se a determinar o objeto de estudo para a sociologia,
isso é, o fato social.
Para Durkheim (2002, p. 11), “é fato social toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de
exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou então ainda, uma existência própria, indepen-
dente das manifestações individuais que possa ter”. O fato social é todo fenômeno social coerci-
tivo, exterior aos indivíduos e que representa uma generalidade no grupo social. Desse conceito,
extraem-se os três elementos essenciais que compõem essa categoria:
• coerção;
• exterioridade; e
• generalidade.
O primeiro elemento que compõe o fato social é a coerção. Sacadura Rocha (2009, p. 67)
explica que “todo ser humano é obrigado a seguir um conjunto de regras e normas que o grupo
social ao qual pertence lhe impõe”. Essas regras definidas pelo grupo são importantes para que o
indivíduo tenha parâmetros de convivência social, servindo, também, como critérios definidores
sobre o comportamento aceito pelo grupo, pois por meio dessas normas, o grupo perpetua valores
que ajudam no processo de socialização do indivíduo no grupo social.
O segundo elemento do fato social é a exterioridade. Para Durkheim, os fatos sociais são
anteriores e exteriores ao indivíduo. Um indivíduo, ao nascer em uma sociedade, encontra já de-
finidos os valores, as regras e as instituições que servirão como indicadores de conduta. Mesmo
entendendo que o mundo exterior influencia o comportamento do indivíduo com um caráter con-
servador de valores, ideias e instituições, Durkheim não deixa de acreditar na possibilidade de
mudança na sociedade, sendo que essas mudanças devem ser fruto da ação de grupos sociais e não
de indivíduos isolados.
O terceiro elemento que compõe o fato social é a generalidade. Para que um fato seja um ob-
jeto para o estudo da sociologia, deve ter uma representação quantitativa na sociedade, isto é, não
pode ser um fato ocasional ou isolado, mas estar presente na sociedade anterior e, posteriormente,
aos indivíduos.
Sendo o fato social o objeto da sociologia, Durkheim também se dedica à forma como se
deve estudar esse objeto. O estudo do fato social deve ser analisado com neutralidade pelo investi-
gador, resguardando a objetividade na análise, isto é, os fatos sociais devem ser estudados como um
objeto exterior, distinto do investigador. Afirma Durkheim (2002) que o primeiro corolário de um
investigador é afastar sistematicamente todas as suas pré-noções do objeto pesquisado.
Os clássicos da sociologia 23

Dessa forma, a pesquisa sociológica, para Durkheim (2002), deve seguir três princípios:
1. a compreensão de que a sociedade é regida por leis naturais;
2. o entendimento de que a sociedade pode ser estudada pelos mesmos métodos das ciên-
cias da natureza; e
3. a percepção de que a análise da sociedade deve limitar-se à análise e observação dos
fenômenos de forma neutra, objetiva, livre de julgamentos de valor.
A segunda frente de estudos de Durkheim foi a oposição entre o indivíduo e a sociedade a
qual pertence, pois o autor tinha uma preocupação com a integração da sociedade. Ele viveu um
momento de grande instabilidade na França e isso gerou nele a preocupação com a continuidade
e manutenção das relações sociais. Para tanto, o autor se dedicou a responder uma questão funda-
mental: o que mantém a integração dos indivíduos em uma sociedade?
Para responder a esse questionamento, temos o conceito de solidariedade, entendido como:
acreditar que todos em uma comunidade devem exercer uma determinada ati-
vidade importante e útil para o grupo, a partir da qual a relação de confiança se
estabelece e o respeito ao trabalho exercido por determinado indivíduo o insere
de forma eficiente na sociedade, permitindo-lhe estabelecer relações humanas
efetivas que, por outro lado e ao mesmo tempo, acaba dando morfologia ao
grupo, vale dizer, a solidariedade dá o caráter social ao indivíduo, por sua vez,
pela sua atividade útil e aceita como tal, influencia a própria forma da sociedade
a que pertence. (ROCHA, 2009, p. 73)

Assim, a solidariedade – que é essa relação de confiança entre os indivíduos de um grupo,


essa importância dada pelos indivíduos à atividade produtiva de outro agente social, o reconheci-
mento da necessidade desse trabalho para o grupo – é o elemento vinculador entre os indivíduos e
a causa da manutenção desses vínculos sociais.
Para Durkheim, a solidariedade é impactada pela divisão social do trabalho. Uma sociedade,
para ser considerada como tal, nasce a partir do momento que ocorre uma divisão social do tra-
balho. O fenômeno da divisão do trabalho em uma sociedade marca um momento de transição da
barbárie para a civilização e do estabelecimento do conceito de solidariedade.
Dessa forma, a solidariedade será diferente conforme se dá a divisão social do trabalho. Para
Durkheim, em uma sociedade pré-capitalista, em que há pouca divisão social do trabalho, há uma
vinculação entre os indivíduos denominada solidariedade mecânica, marcada pela semelhança en-
tre seus indivíduos e por uma maior influência dos valores e regras sociais no comportamento de
cada um, pois nessas sociedades há maior identificação dos indivíduos com a família, a tradição,
os costumes.
Já nas sociedades mais complexas, em especial nas sociedades capitalistas de cunho indus-
trial, em que há maior divisão social do trabalho, há uma outra forma de vinculação entre os indi-
víduos, denominada por Durkheim de solidariedade orgânica. De acordo com Rocha (2009), nesse
tipo de sociedade as características são profundamente alteradas. Ele destaca as principais:
• O conhecimento é repartido por inúmeros trabalhadores fabris, enquanto os meios de
produção são propriedade do dono do capital.
24 Sociologia Jurídica

• A educação é deslocada da família e da Igreja para o Estado.


• Os valores tradicionais e religiosos são trocados por valores laicos.
• A especialização é a marca na divisão social do trabalho, gerando maior interdependência
entre as pessoas.
Esse tipo de sociedade, marcada pela solidariedade orgânica, tem por característica princi-
pal a diferenciação entre os indivíduos e uma maior valorização das mercadorias, mais do que o
próprio trabalho em si.
Para Rocha (2009), nas sociedades capitalistas, de solidariedade orgânica, há um risco de
desintegração da solidariedade, pois ela passa a ser desvalorizada em função de uma maior va-
lorização das mercadorias produzidas. “O problema social se agrava sempre que a comunidade
valoriza mais a riqueza material do que o trabalho humano: a verdadeira riqueza de uma comu-
nidade, aquela que mantém o grupo sobrevivendo em paz e respeito mútuos, é a que privilegia o
trabalho material e intelectual de todos os seus membros” (ROCHA, 2009, p. 75).
Durkheim também associa as sociedades com tipos diferentes de solidariedade à existência
de diferentes tipos de Direito. Nas sociedades em que o estágio da divisão social do trabalho é a
solidariedade mecânica, há o predomínio de um tipo específico de Direito: o Direito repressivo, em
que prevalece o Direito público, e a justiça tem por função principal a retribuição.
A Justiça Retributiva caracteriza-se por se restringir a uma visão de indeni-
zação à vítima; a vítima é indenizada materialmente, e como parte dessa in-
denização, no âmbito social mais abrangente, a sociedade se sente indenizada
se o infrator for severamente punido e pagar seu delito com exclusão social,
que vai da reclusão e isolamento social, inclusive da família, até a perda de
bens materiais, e, em muitos casos, a perda da própria vida. (ROCHA, 2009,
p. 87-88)

Já nas sociedades capitalistas, com divisão social do trabalho, marcada pela solidariedade
orgânica, há um outro tipo de Direito: no de tipo restitutivo predomina o Direito privado e a justi-
ça presente nessa outra ordem social é a justiça restaurativa, caracterizada não apenas por punir o
delituoso, mas em compreender as causas do fato social. Nesse tipo de justiça, o Poder Judiciário e
o próprio sistema penal têm um papel importante de inclusão do infrator à sociedade.
Essas conclusões são importantes para o estudo do Direito, como por exemplo, o estudo da
anomia. Para Durkheim, a anomia é a ausência de regulação social decorrente do desregramen-
to dos indivíduos pela perda da influência dos valores morais da sociedade sobre os indivíduos.
O autor identifica uma crise moral na sociedade, decorrente da fragilidade da coesão social, e que
pode ser recuperada pela capacidade do Estado de fiscalizar e participar ativamente no estímulo da
regulamentação das profissões e na organização da educação.
Esse diagnóstico de Durkheim é muito importante para o estudo da sociologia jurídica, ao
relacionar o papel do Estado com uma crise moral na sociedade.
Os clássicos da sociologia 25

2.2 A sociologia de Max Weber: a busca do sentido da ação


Maximillian Carl Emil Weber (1864-1920) foi um intelectual alemão, jurista, economista
e considerado um dos fundadores da sociologia. Suas principais obras são: A ética protestante e o
espírito do capitalismo (1904-1905) e Economia e sociedade (1922).
Figura 2 – Retrato de Max Weber

Para Max Weber, o estudo da sociedade deve ser feito levando em consideração que as socie-
dades, a cada período histórico, resultam de uma diversificação de fatores. Diverge de Durkheim,
que entendia ser possível para as ciências sociais identificar constância e leis deterministas para a
compreensão da formação e manutenção das sociedades, o que para Weber não é possível.
A investigação da sociedade, para Weber, deve orientar-se pela conduta dos indivíduos. Para
tanto, o método utilizado por Weber (2000) foi o método compreensivo, no qual buscava com-
preender e capturar o sentido das ações sociais realizadas individualmente. Para Weber (2000, p.
6), compreensão significa “apreensão interpretativa do sentido ou da conexão de sentido”. Dessa
forma, o autor em seu método busca compreender o sentido das ações, mas também explicá-las,
pois “sentido” é algo subjetivamente pretendido pelo indivíduo.
Para o uso do método compreensivo, Weber utilizar o conceito de ação social. Mas, o que é
uma ação social? Para Weber (2000, p. 3), a ação social significa uma ação que, em elação a seu sen-
tido visado pelo agente, ou os agentes, refere-se ao comportamento de outros, orientando-se por
estar em seu curso. Isto é, uma ação social é a conduta humana dotada de sentido, uma ação com
uma justificativa subjetivamente elaborada. A expressão “os outros”, contida no conceito de ação
social, significa um indivíduo ou uma multiplicidade de indivíduos, mesmo que indeterminada.
Weber (2000) identifica quatro tipos de ação social:
1. De modo racional referente a fins – nesse tipo de ação, há uma racionalidade do in-
divíduo na escolha dos melhores meios para atingir um fim, isso é, há uma elaboração
racional dos meios e das possíveis consequências dessas ações. É possível identificar esse
26 Sociologia Jurídica

tipo de ação quando o indivíduo pensa da seguinte forma: “vou estudar durante o curso
de Direito porque quero ser um advogado”.
2. De modo racional referente a valores – quando a ação é orientada por valores éticos,
estéticos ou religiosos, o indivíduo elabora racionalmente sua ação, mas o objetivo al-
mejado não é apenas alcançar um fim, mas quais os meios que serão utilizados para
obter o que se pretende. Na escolha desses meios, estão os valores éticos defendidos pelo
indivíduo que quer atingir um objetivo, mas que não desrespeita seus valores. Esse tipo
de ação é possível ser identificado, quando o indivíduo pensa, por exemplo, da seguinte
forma: “Vou separar os resíduos sólidos que produzo, porque acredito na necessidade de
um planeta sustentável”.
3. De modo afetivo – na ação movida pelas emoções, o indivíduo tem por base seus sen-
timentos. Pode-se identificar esse tipo de ação quando o indivíduo pensa, por exemplo:
“Vou comprar um presente para minha namorada porque a amo”.
4. De modo tradicional – nesse tipo de ação, o indivíduo age movido pelas tradições,
costumes, valores e cultura arraigados. Nessa ação, o indivíduo age devido a padrões de
comportamento já inseridos em seus hábitos. Esse tipo de ação é possível de ser identi-
ficado quando o indivíduo pensa, por exemplo: “Na minha família, todos os domingos,
almoçamos juntos”.
A ação social gera efeitos no meio social, e esses efeitos podem fugir ao controle ou à previ-
são daquele que a realiza, pois, apesar de o agente ter um sentido para sua ação, não é possível ter
um prognóstico das consequências dessas ações.
Assim, não há uma classificação rígida das ações, mas apenas da intenção que está contida
na ação. Uma mesma ação social pode ser direcionada por sentidos diferentes, quando realizada
por indivíduos diferentes. Por exemplo, quando o indivíduo vai escolher sua profissão, ele pode
decidir cursar a faculdade de Direito porque quer exercer a profissão de advogado (o sentido de
sua ação está racionalmente direcionado a um fim), ou pode fazer o mesmo curso com a inten-
cionalidade de aprender sobre a sociedade e seu ordenamento jurídico para depois optar por uma
das carreiras jurídicas (o sentido de sua ação está relacionado racionalmente ao valor do estudo),
também pode fazer o curso de Direito porque gosta muito da área e entende que essa é sua aptidão
(o sentido de sua ação está relacionado aos seus sentimentos), ou ainda pode cursar a faculdade de
Direito porque seus pais e avós cursaram a faculdade de Direito (o sentido de sua ação está ligado
à tradição da sua família).
Weber (2000) também estuda as relações sociais, que acontecem quando dois indivíduos
orientam suas ações pelas perspectivas que têm um do outro, mas não necessariamente colocam o
mesmo sentido em suas ações. “Por relação social entendemos o comportamento reciprocamente
referido quanto a seu conteúdo de sentido por uma pluralidade de agentes e que se orienta por essa
referência” (WEBER, 2000, p. 16).
Um exemplo de relação social é a relação entre professor e aluno, em que o professor quer
ensinar e o aluno quer aprender. Mas, também, pode ocorrer de o professor querer ensinar, mas o
Os clássicos da sociologia 27

aluno querer apenas o título ao final do curso. Mesmo havendo essa inadequação das expectativas
das ações de um indivíduo em relação ao outro, ainda há uma relação social.
Assim, é possível entender que uma relação social é apenas uma probabilidade de que a res-
posta esperada venha a acontecer entre os indivíduos envolvidos. Para Weber, essa relação também
acontece na relação entre o indivíduo e a lei. Para o autor, essa é uma relação subjetiva, pois cada
indivíduo pode fazer uma interpretação diversa e ter um sentido para sua ação com base nas nor-
mas jurídicas. Isso possibilita uma análise do Direito como um conjunto organizado e sistemático
de normas, de forma subjetiva e não objetiva. Rocha (2009, p. 110) explica em outras palavras: “se
a base desse ordenamento jurídico é o conjunto de leis que pretendem ordenar um determinado
grupo social, e se a relação entre a lei e o indivíduo é desse tipo probabilístico, o Direito deve ser
considerado ‘subjetivo’ e não ‘objetivo’”.
Mas se o Direito é compreendido como subjetivo, então como garantir a aplicação das nor-
mas jurídicas? Para Weber, é o Estado que exerce o domínio sobre os cidadãos pelo uso da violência
controlada em troca de favores e interesses. Esse tipo de dominação foi denominada por Weber
como dominação racional legal, e é caracterizada pela relação entre Estado e cidadão pelo exercício
do poder racional pelo Estado, entendido como útil e necessário aos cidadãos com base nas leis.
Weber identifica também dois outros tipos de dominação, a dominação tradicional e a domi-
nação carismática. A primeira é caracterizada pela presença de um líder que domina a sociedade
com base na tradição e nos costumes dessa sociedade. Já na dominação carismática, a dominação
se dá pela presença de uma liderança personalíssima. Esse líder se utiliza desse poder influenciador
para controlar a sociedade.
Assim, percebe-se a importância do estudo de Max Weber para a sociologia jurídica, pois
esse autor enfrentou o estudo das relações entre o indivíduo, o Direito e o Estado, de forma que
até os dias presentes esses modelos explicativos são utilizados para a análise do Direito. Categorias
como burocracia, empresa, poder e dominação também foram estudadas por Weber e mantêm sua
relevância na atualidade.

2.3 A sociologia de Marx: a importância do trabalho


na sociedade capitalista
Karl Heinrich Marx (1818-1883) foi um filósofo e intelectual alemão, considerado um dos
fundadores da sociologia devido a sua profunda e complexa obra. Sua análise sobre a sociedade
capitalista tem ainda nos dias atuais repercussões em pesquisas nas áreas da sociologia, do Direito,
da economia, da filosofia, da teologia e da política.
Marx teve uma intensa produção de textos e livros, sendo suas principais obras: Manuscritos
econômicos-filosóficos (1844, publicados apenas em 1930); A crítica da filosofia do direito de Hegel
(1844); A ideologia alemã (1845-46); Manifesto do Partido Comunista (1848); Trabalho assalariado
e capital (1849); Contribuição à crítica da economia política (1859); Salário, preço e lucro (1865) e
O capital (1867).
28 Sociologia Jurídica

Figura 3 – Retrato de Karl Marx

Em sua investigação, Marx entende que o real é o guia fundamental para se pensar na his-
tória e acontece a partir de contradições. Essas contradições históricas não ocorrem naturalmente,
elas são provocadas pelas diferenças econômicas de classes.
Marx dedicou grande parte de sua vida na busca da compreensão das particularidades do
sistema produtivo capitalista. Ele entendia que a humanidade construiu diversos sistemas pro-
dutivos por meio da luta de classes, e que o capitalismo é uma dessas etapas de desenvolvimento
histórico da humanidade.
Na realização de sua pesquisa, Marx utilizou o método dialético e produziu um denso e
complexo modelo explicativo, que completou as múltiplas determinações que incidem sobre o
capitalismo, suas origens e suas consequências.
O método dialético propicia ao pesquisador ir além da aparência e buscar a essência do ob-
jeto pesquisado pela captura da sua estrutura e dinâmica. Realizando uma síntese, o pesquisador
reproduz no plano ideal a essência do objeto pesquisado (PAULO NETTO, 2011, p. 22). No que diz
respeito à epistemologia1, de acordo com Faria (2015), Marx se utiliza do materialismo histórico,
cuja realidade deve ser analisada dentro de seu processo de formação histórica que, na verdade,
não é estática, mas um movimento no qual devem ser encadeadas as relações.
[...] Marx elabora uma obra multi e interdisciplinar, complexa e substancial,
onde disciplinas como Sociologia, Filosofia, Economia, Política, Antropologia,
Psicologia, Religião, Ética, e mesmo ciências naturais como a Biologia, se apre-
sentam imbrincadas contribuindo de forma sistêmica para a defesa de suas
teses. (ROCHA, 2009, p. 120)

1 Cabe esclarecer que epistemologia é entendida “[...] como o estudo crítico do conhecimento científico, técnico e
filosófico”, buscando “responder como o conhecimento é produzido (construído, obtido, desenvolvido), organizado,
sistematizado e transmitido (explicitado, divulgado, exposto)” (FARIA, 2015, p. 60).
Os clássicos da sociologia 29

Ao analisar a sociedade, Marx identifica duas estruturas: infraestrutura e superestrutura.


1. A infraestrutura é a realidade material, em que ocorrem as relações entre os indivíduos.
Essa estrutura subdivide-se em:
a. forças produtivas que são formadas das relações dos indivíduos com a natureza na
busca pela sobrevivência;
b. relações sociais de produção que são formadas pelos vínculos estabelecidos entre
os indivíduos proprietários e os não proprietários; e entre os não proprietários e os
meios de produção.
2. A superestrutura é a realidade imaterial, refere-se ao nível ideológico e político da socie-
dade. O nível ideológico é formado pelas ideias e pensamentos advindos da educação,
filosofia, religião, moral, artes e ciências. O nível jurídico-político é formado pelo Estado
e pelo Direito e tem uma função de controle e dominação.
Para detalhar essa síntese da organização social, faz-se necessário explorar alguns conceitos-
-chaves. Ao tratar sobre as forças produtivas, Marx está analisando a importância do trabalho em
uma organização social. Para ele, o trabalho é uma necessidade, é a ação humana que transforma
a natureza e que tem a finalidade de suprir as necessidades materiais. Partindo do conceito de
práxis2, Marx analisa a centralidade do trabalho no processo de humanização. Na sociedade capi-
talista, o trabalho assume a forma assalariada, marcado pela divisão de classes e pela legitimidade
da propriedade privada. Assim, o trabalho assalariado assume a característica de um processo de
dominação de classe e de subordinação do trabalho ao capital.
Com base na análise das relações sociais de produção, pode-se identificar as duas principais
classes que compõem o modo de produção capitalista. Marx produziu diversos textos em que trata
das classes sociais, mas não conclui sua teoria de classes. Para a presente obra, interessa destacar
que as classes são definidas pelo lugar que ocupam no processo produtivo. Há duas principais
classes sociais no capitalismo porque há duas grandes posições a serem ocupadas no processo pro-
dutivo: quem é dono dos meios de produção é considerado parte da classe burguesa; quem vende
sua força de trabalho é considerado parte da classe proletária.
A relação estabelecida entre os burgueses proprietários dos meios de produção e o pro-
letariado dono apenas da sua força de trabalho se dá de forma desigual, gerando o conflito
entre classes.
A partir dessa relação conflituosa, há o surgimento de uma taxa de exploração, denomina-
da por Marx de mais-valia, que é o valor apropriado pelo capitalista na produção das mercadorias.
Essa apropriação acontece porque o capitalista, ao contratar o proletário, paga-lhe a esse uma
remuneração mínima, com vistas apenas à sua sobrevivência, mas esse valor é inferior ao lucro
gerado pelo capitalista na produção das mercadorias. Esse excedente não pago ao proletário é
apropriado pelo burguês na forma de mais-valia.

2 “A práxis na sua essência e universalidade é a revelação do segredo do homem como ser ontocriativo, como ser que
cria a realidade (humano-social) e que, portanto, compreende a realidade humana e não humana, a realidade na sua to-
talidade. A práxis do homem não é a atividade prática contraposta à teoria; é determinação da existência humana como
elaboração da realidade” (KOSIK, 1976, p. 202).
30 Sociologia Jurídica

A produção da mais-valia está associada à produção das mercadorias, base para a comercia-
lização, tendo como principal objetivo a obtenção do lucro.
Mas o que é o lucro? Para Marx (2013), o estudo da origem do lucro está associado ao pro-
cesso de produção e não ao processo de troca ou circulação das mercadorias.
É no processo de produção que se cria a mais-valia, pois ela acontece a partir do tempo de
trabalho executado pelo proletário, mas que não lhe é pago. Por isso, para Marx, o capital é fruto
de uma relação social, pois o acréscimo do valor utilizado na produção só aumenta por meio dessa
relação de exploração da força de trabalho proletária.
Assim, é importante diferenciar o lucro da mais-valia. O lucro é o excedente do capital inves-
tido inicialmente no processo de produção; no entanto, a mais-valia se dá apenas pela exploração
da força de trabalho não paga ao trabalhador.
[...] o mais-valor efetivo é determinado pela relação entre o trabalho excedente
e o trabalho necessário, ou entre a porção do capital – a porção do trabalho
objetivado – que se troca por trabalho vivo e a porção do trabalho objetivado
pela qual ela é substituída. Mas o mais-valor na forma do lucro é medido em
relação ao valor total do capital pressuposto no processo de produção. (MARX,
2011, p. 624)
Assim, o lucro depende da relação entre trabalho necessário e seu excedente não pago ao
trabalhador (mais-valor).
A geração da mais-valia, para Marx (2013), pode acontecer de duas formas: mais-valia abso-
luta e mais-valia relativa. A primeira acontece pelo aumento da jornada de trabalho.
O capitalista empregador aumenta o tempo que o trabalhador proletário fica à sua disposi-
ção produzindo, mas não aumenta o valor de seu salário. A mais-valia relativa acontece quando o
capitalista empregador intensifica a produção sem aumentar a jornada de trabalho; dessa forma,
o trabalhador proletário trabalha mais e produz mais, mas não há aumento no valor do salário.
A existência das mercadorias é parte fundamental dos estudos de Marx, pois a mercadoria é
um dos elementos básicos da economia capitalista.
Para Marx (2013), uma mercadoria pode ter um valor de uso e um valor de troca. A diferença
é que o valor de uso da mercadoria está relacionado ao seu conteúdo, como aquela mercadoria pode
satisfazer necessidades humanas; já o valor de troca da mercadoria está associado à capacidade que
uma mercadoria tem de poder ser trocada por outra mercadoria. É a partir da possibilidade de trocar
mercadorias por outras que o sistema econômico vai se tornando mais complexo, pois como é possí-
vel medir a grandeza do valor de cada mercadoria? Para o presente estudo, o importante é saber que,
para que essas trocas entre mercadorias aconteçam, é necessária uma outra mercadoria: o dinheiro.
Assim, pode-se entender a origem do valor, de acordo com Marx (2013), pela análise de
duas formas:
a. Forma de valor relativa – uma mercadoria trocada por outra mercadoria, ou uma merca-
doria sendo trocada por várias mercadorias.
b. Forma de valor equivalente – todas as mercadorias podem ser trocadas por dinheiro.
Os clássicos da sociologia 31

Assim, as mercadorias funcionam como medida de valor, seja em seu próprio elemento
material, seja na forma de dinheiro. Na sociedade capitalista, o dinheiro passa a ser uma mer-
cadoria amplamente desejada, pois assim pode-se adquirir qualquer outra mercadoria posta no
mercado, já que no mercando mundial a mercadoria dinheiro passa a funcionar como uma forma
de pagamento.
A complexidade da análise de Marx sobre a sociedade capitalista está presente no estudo
da mercadoria, pois a mercadoria, além de ser a base da economia capitalista, serve também para
o estudo da alienação do trabalhador. Para Marx (2013, p. 146), “uma mercadoria aparenta ser, à
primeira vista, uma coisa óbvia, trivial. Sua análise resulta em que ela é uma coisa muito intrinca-
da, plena de sutilezas metafísicas e melindres teológicos”. Explorando um pouco mais essas ideias:
O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no
fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho
como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como proprieda-
des sociais que são naturais a essas coisas e, por isso reflete também a relação
social dos produtos com o trabalho total como uma relação social entre os obje-
tos, existente à margem dos produtores. (MARX, 2013, p. 147)

Dessa forma, o autor explica que a mercadoria, apesar de ser produzida pelo trabalhador,
assume uma característica misteriosa que parece ganhar vida própria: assim, a mercadoria torna-se
desejo de aquisição pelo próprio trabalhador, criando um ciclo que se autoalimenta. O trabalhador
produz as mercadorias, cujo valor é fruto do seu trabalho somado ao mais-valor do empregador
capitalista, e o trabalhador, ao adquirir essas mercadorias, contribui para o retorno do lucro ao
capitalista. Esse processo que o autor denominou de fetichismo da mercadoria, envolve os indiví-
duos na sociedade capitalista fazendo parte da própria formação da subjetividade do indivíduo e
marcando profundamente o indivíduo em seu psiquismo.
Marx e Engels (2005) apontam que a divisão do trabalho leva o trabalhador à alienação que
pode acontecer de várias formas no sistema capitalista:
1. Alienação dos meios de produção – o trabalhador não possui os meios de produção e
não tem recursos para comprá-los; possui apenas sua força de trabalho.
2. Alienação do processo produtivo – o trabalhador não sabe fazer o produto completa-
mente. Ele conhece apenas uma parcela do processo produtivo, pois a produção passa a
ser intensivamente dividida, parcelada. Cada trabalhador domina apenas uma parte da
produção de determinado produto.
3. Alienação da compreensão – o trabalhador está direcionado a sua sobrevivência, pois
precisa trabalhar para sobreviver e assim se aliena na compreensão do funcionamento
do sistema capitalista.
Marx, ao estudar sobre a alienação, faz uma crítica sobre a posição dos proletários em so-
ciedade, pois, apesar de serem fundantes para o sistema capitalista funcionar, não percebem essa
essencialidade e, assim, sofrem um processo de exploração. A partir da análise da superestrutura, é
possível explorar os conceitos de Estado, Direito e ideologia na teoria marxista.
32 Sociologia Jurídica

Para Marx, o Estado e o Direito representam os interesses da classe dominante, isso é, a clas-
se burguesa, que, na sociedade capitalista, além de ter o domínio econômico, tem também o domí-
nio político, e dessa forma, incorpora no Estado e no Direito seus interesses, buscando controlar as
contradições e divergências inerentes a uma sociedade conflituosa como a capitalista.
A sociedade do modo de produção capitalista sofre a dominação econômica da
classe dominante, a burguesia. Esta não pode manter e conter as contradições
sociais senão recorrendo a um aparelho repressivo, o Estado. A classe econo-
micamente dominante é pois também a classe politicamente dominante; ela
investe o aparelho de Estado (administração, exército, política, justiça, etc.) e
fá-lo funcionar no sentido dos seus interesses. (MIAILLE, 1994, p. 134)

Mas a classe burguesa utilizará também de outros meios para a manutenção de sua domina-
ção, a ideologia. Para Marx, de acordo com Chaui3 (1989, p. 94), a ideologia “consiste precisamente
na transformação das ideias da classe dominante em ideias dominantes para a sociedade como um
todo, de modo que a classe que domina no plano material (econômico, social e político) também
domina o plano espiritual (das ideias)”.
Assim, a ideologia é um processo de inversão da realidade, ou dito de outra forma, é um
falseamento da realidade, é a criação de uma situação, em que as aparências da realidade são en-
ganadoras: “em toda ideologia, a humanidade e suas relações aparecem de ponta-cabeça, como
ocorre em uma câmara escura, tal fenômeno resulta de seu processo histórico de vida, da mesma
maneira pela qual a inversão dos objetos na retina decorre de seu processo de vida diretamente
físico” (MARX; ENGELS, 2005, p. 51).
Como todas as relações sociais são fruto da realidade concreta, a consciência dos indivíduos
também se forma nesse processo. Para Marx e Engels (2005, p. 52), “[...] os homens ao desenvolve-
rem sua produção material e relações materiais, transformam, a partir de sua realidade, também o
seu pensar e os produtos de seu pensar”.
Isso significa que a forma de pensar dos indivíduos está relacionada diretamente com a
sociedade a qual pertencem, e que para mudar a forma de pensar, é necessário alterar a realidade
concreta. Por isso, Marx acreditava que a revolução da classe proletária era a única forma de rom-
pimento com o modo de produção capitalista, pois o capital é gerado pela relação entre proletários
e burgueses, e assim, se os proletários rompessem com essa relação, poderia ser criada uma nova
forma de organização social, menos desigual e sem exploração.
Os estudos de Marx são fundamentais para a análise da sociedade capitalista, por isso sua
relevância na disciplina de Sociologia Jurídica. Categorias centrais da sociologia e do Direito,
como trabalho, classes sociais, consciência de classe, estrutura social, Estado e Direito foram

3 Marilena Chaui é uma filósofa brasileira, que tem uma ampla produção acadêmica e que estuda o tema do poder,
da violência e da estrutura da sociedade brasileira, além dos temas clássicos da filosofia. É professora da Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Suas principais obras são: A ideologia da competência;
A nervura do Real; Brasil: mito fundador e sociedade autoritária; Boas-vindas à Filosofia; Desejo, paixão e ação na ética de
Espinosa; Espinosa: uma filosofia da liberdade; Introdução à História da Filosofia (Vol. I e II); Manifestações ideológicas do
autoritarismo brasileiro; O convite à filosofia; O que é ideologia; O ser humano é um ser social; Política em Espinosa.
Os clássicos da sociologia 33

estudadas por Marx. No estudo do Direito, em especial do Direito do trabalho, as categorias


estudas por Marx são imprescindíveis para uma análise e compreensão mais aprofundada da
sociedade e do próprio Direito.

Considerações finais
Neste capítulo, foram estudadas as principais ideias de três autores clássicos da sociologia:
Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx. O objetivo foi identificar as categorias centrais estuda-
das por cada autor e fazer uma relação com temas do Direito.
Importante destacar que o estudo desses três autores possibilita uma diversificação na aná-
lise de temas centrais para a sociologia jurídica, como: o Direito, a justiça e o Estado, pois cada um
desses autores apresenta uma análise diferente sobre esses temas.

Ampliando seus conhecimentos


O texto a seguir procura demostrar uma conexão entre os três pensadores estudados neste
capítulo: Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx, fazendo uma breve correlação entre as ideias
centrais desses três autores.

O livro da sociologia
(THORPE at al., 2015, p. 31)

A análise de Marx sobre como o capitalismo criou as classes socioeconômicas no mundo


industrial baseada em algo mais que pura teorização e, como tal, foi um dos primeiros estudos
“científicos” da sociedade a oferecer uma explicação completa da sociedade moderna em ter-
mos econômicos, políticos e sociais. No processo, ele apresentou vários conceitos que se tor-
naram centrais no pensamento sociológico posterior, especialmente na área das classes sociais,
como o conflito e a consciência de classe e as noções de exploração e alienação.
Na geração que sucedeu a de Marx, tanto Émile Durkheim quanto Max Weber frequente-
mente considerados junto com Marx, os “fundadores” da sociologia moderna, ofereceram
uma visão alternativa à dele.
Durkheim reconheceu que a indústria moldou a sociedade moderna, porém defendeu
que era a própria industrialização, em vez do capitalismo, que estava na raiz de todos os
problemas sociais.
Weber, por outro lado, aceitou o argumento de Marx de que existem razões econômicas por
trás do conflito de classes, mas achava que a divisão de Marx da sociedade entre burgue-
sia e proletariado, puramente baseada na economia, era simples demais. Ele acreditava que
havia causas culturais e religiosas, assim como econômicas, para o crescimento do capitalismo,
e que elas se refletiam nas classes com base no prestígio e no poder, além do status econômico.
34 Sociologia Jurídica

Atividades
1. Ao estudar o pensamento de Émile Durkheim, qual a relação que é possível fazer entre a
divisão social do trabalho e o Estado?

2. No estudo sobre Max Weber, explique por que o autor entende que o Direito tem um caráter
subjetivo.

3. Karl Marx analisa a sociedade capitalista tendo o trabalho como seu elemento central. Expli-
que como o autor entende o papel do Direito e do Estado na sociedade capitalista burguesa.

4. Os três autores estudados tratam sobre o papel do Estado na sociedade, no entanto, cada um
faz essa análise a partir de perspectivas diferentes. Explique quais são essas diferenças.

Referências
CHAUI, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989.

DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2002.

FARIA. Epistemologia, metodologia e teoria em estudos organizacionais. Texto para discussão na disciplina de
Epistemologia, Metodologia e Teoria em Estudos Organizacionais do Curso de Doutorado em Administração
do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal do Paraná, 2015.

KOSIK, Karel. A dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política.
São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011.

______. O capital: crítica da economia política. v. 1. São Paulo: Boitempo, 2013.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia alemã. São Paulo: Editora Martin Claret, 2005.

MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao Direito. Lisboa: Editorial Estampa, 1994.

PAULO NETTO, José. Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

ROCHA, José Manuel de Sacadura. Sociologia Jurídica: fundamentos e fronteiras. Rio de Janeiro: Elsevier,
2009.

THORPE, Christopher et al. O livro da sociologia. Coleção as grandes ideias de todos os tempos. v. 8. São
Paulo: Globo Livros, 2015.

WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 2000.
3
Entendendo as transformações da
sociedade contemporânea

Você já parou para pensar sobre por que tudo está se transformando tão rápido na sociedade
contemporânea? Já pensou se essas transformações impactam as relações sociais e o Direito?
Este capítulo tem por objetivo abordar o tema da modernidade, explicando suas origens e
consequências. Nele será analisada a discussão sobre a existência da pós-modernidade, trazendo os
principais pensadores sobre o tema. Por fim, será analisada a existência de uma relação do Direito
com a pós-modernidade.

3.1 O que é a modernidade?


Para o estudo da modernidade, faz-se necessário inicialmente entender a diferença entre a
modernidade e o período histórico denominado período moderno ou Idade Moderna.
O período histórico intitulado Moderno é o período da história ocidental que teve início em
1453, com a tomada de Constantinopla pelo Império Otomano e teve seu término em 1789 com
a Revolução Francesa. Já a modernidade é o projeto de mundo que foi criado com base em três
princípios: racionalidade, liberdade e felicidade. Essa concepção de mundo foi sendo desenvolvida
a partir da alteração na forma de pensar do ser humano com base nas grandes transformações na
área social, econômica, política e cultural.
Para Giddens (1991, p. 11), a “modernidade refere-se a estilo, costume de vida ou organi-
zação social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que se tornaram mais ou menos
mundiais em sua influência”.
O que isso significa? Que a partir do século XVII, na Europa, começou uma série de mudan-
ças na sociedade que deram origem a uma nova forma de organização da sociedade, baseada em
novos tipos de relação social, diferindo do período histórico anterior ligado às tradições e às crenças.
É importante destacar que no século XVII a Europa foi marcada por uma multiplicação de
várias ideias, pensamentos e anseios associados à noção de progresso e racionalidade e que pro-
piciaram o surgimento da modernidade. Destaca Bittar (2005) que a modernidade está associada
a ideias como: ciência, saber, razão, ordem, técnica, sujeito, soberania, Estado, indústria, negócio,
individualismo, competição, liberalismo entre outras. Essas ideias representam uma ruptura com
as ideias presentes no período medieval da história, marcado por ideias como religião, fé, crença
em divindades e obediência.
Mas como ocorreu essa transformação nos ideais presentes na Europa nesse período?
Como ocorreu essa passagem de um grupo de ideias existentes para um novo conjunto de ideias?
Bittar (2005) aponta uma série de fatores que envolvem aspectos sociais, econômicos, culturais e
36 Sociologia Jurídica

políticos, que foram importantes para essa transformação da sociedade antiga e o surgimento da
modernidade. São eles:
• Intensificação do comércio com o Oriente, com a criação de rotas de comércio e de bur-
gos em que aconteciam essas trocas. Abertura de contato com povos que possuíam conhe-
cimentos e formas de viver diferentes do modelo medieval europeu. Descoberta de novas
terras nas Américas, com o contato de novas culturas e povos.
• A crescente diminuição da interferência da Igreja na determinação dos costumes.
• Surgimento de uma nova classe social urbana, que posteriormente iria se afirmar como a
burguesia mercantil. Surgimento de novos artistas, intelectuais, pintores, escultores sub-
vencionados pelos mecenas que não tinham vinculação com o pensamento religioso.
• Retorno das ideias clássicas gregas nas artes e no conhecimento. O crescente papel das
ciências e sua interferência na vida social e política. Abertura das primeiras universidades
europeias como Bologna e Paris, que difundiram o pensamento dialético e escolástico.
Desenvolvimento da ciência e da medicina, que contribuíram para o aprimoramento de
novas técnicas de tratamento das doenças e epidemias. Surgimento de uma preocupação
metodológica-racionalista para a demonstração das evidências científicas, tendo como
maior representante Descartes.
Assim, verificou-se que houve intensa transformação social, marcada por uma expansão
do comércio que permitiu o contato com novos povos e culturas e possibilitou uma mudança de
ordem econômica e produtiva, que posteriormente deu origem a um novo modo de produção,
o capitalismo.
Dentre os elementos apontados por Bittar (2005), deve-se destacar a importância do surgi-
mento de uma nova classe social, a burguesia, que teve seu poder econômico ampliado, acarretan-
do em impactos na organização política da sociedade da época. A burguesia pressionou pelo fim
da monarquia e pela criação de um Estado-nação, baseado em um sistema republicano em que
fosse possível agir com mais liberdade. Ela também teve um papel importante como incentivadora
e financiadora da produção cultural, subvencionando artistas e pensadores que contribuíram para
a mudança na esfera cultural e intelectual da época.
Em conjunto com essas transformações, também houve o aumento da produção do conhe-
cimento, com a criação das primeiras universidades europeias, a expansão da ciência, com bases
metodológicas para sua criação e o resgate das ideias gregas clássicas. Todos esses elementos são
causa da diminuição da interferência da Igreja na sociedade e na política, possibilitando a constru-
ção de uma nova forma de viver e de pensar.
Assim, o surgimento da modernidade possibilitou uma desconexão entre o período medie-
val, marcado pela dualidade entre a fé e a razão, e uma nova ordem social, tendo como marca o uso
da razão, o avanço da ciência e do progresso. “Se tudo está para a razão, com a razão e em função
da razão, a ordenação racional é o sistema que tudo penetra, determinando as condições para a
preeminência do projeto moderno” (BITTAR, 2005, p. 53).
Entendendo as transformações da sociedade contemporânea 37

Giddens (1991), ao tratar sobre a modernidade, traz um novo conceito: a descontinuidade.


Esse termo serve para explicar que a história humana não é homogênea em seu desenvolvimento.
No transcorrer da história há descontinuidades, e a modernidade é uma forma de desprendimento
das formas tradicionais anteriores.
Para Giddens (1991), há três fatores principais que vão contribuir para a construção da mo-
dernidade com base no conceito das descontinuidades.
1. O ritmo das mudanças – na modernidade a rapidez das mudanças acontece em con-
dições extremas e está relacionada diretamente com o desenvolvimento da tecnologia.
Cabe lembrar que as mudanças em outros períodos históricos aconteciam em ritmo
muito mais lento.
2. O escopo das mudanças – com a modernidade as mudanças passam a acontecer em di-
ferentes áreas do planeta, são colocadas em interconexão, ocorrendo em todas elas. Essa
descontinuidade está relacionada ao processo de globalização.
3. As características das instituições modernas – algumas formas sociais só passaram a
existir na modernidade como o Estado-nação, dependência por atacado de fontes de
energia, transformação dos produtos em mercadorias e o trabalho assalariado. Cabe re-
lembrar que o Estado-nação surge no período moderno da história. Nos períodos his-
tóricos anteriores não existia uma instituição com as configurações do Estado-nação,
ou Estado moderno. É também nesse período histórico que o sistema produtivo se
transforma radicalmente: a produção de bens, que em outros momentos históricos era
voltada para a subsistência dos indivíduos ou do grupo social, passa a ser realizada para
ser vendida no mercado. Para isso, os bens se transformam em mercadorias, a produção
passa a depender por atacado de fontes energéticas. No campo do trabalho, passa a se
constituir o trabalho na modalidade assalariado, baseado na criação do sujeito de direito
livre para contratar.
Esses elementos de descontinuidade, apontados por Giddens (1991), marcam uma nova for-
ma de viver, pois viver na modernidade é viver em um ritmo mais intenso de mudanças e com
maior liberdade em um contexto mais amplo de atuação. Além disso, o surgimento de novas ins-
tituições como o Estado-nação, as mercadorias e a forma de trabalho assalariado serão fatores de
grande impacto nessa nova organização social e que terão reflexos diretos no sistema jurídico.
O aparecimento do Estado, a configuração do direito, a criação do espírito das
leis do mercado, a ideologização da ordem liberal, a afirmação do modelo capi-
talista, o surgimento da nação como fonte de segurança e estabilidade territo-
riais, a crença na ideia de progresso são características marcantes daquilo que se
chama de modernidade. (BITTAR, 2005, p. 56-57)

Tratando dessa separação ou descontinuidade entre momentos históricos, Bauman (2001)


relacionou a cultura tradicional pré-moderna com a cultura da modernidade, denominando a pri-
meira de cultura selvagem e a segunda de cultura jardim. Nessa comparação, o autor explica que
a cultura selvagem, tradicional tinha por característica ser autogerida e autorreprodutora, tendo
38 Sociologia Jurídica

como figura o guarda-caça1. Na análise do autor, a classe dominante pré-moderna tinha uma fun-
ção de guarda-caça em relação às classes inferiores. No entanto, com a passagem para a moderni-
dade surge uma nova figura: o jardineiro. Ele tinha a função de supervisão, vigilância e cuidado,
pois um jardim precisa de atenção para que não volte ao estado selvagem. Mesmo um bom projeto
de jardim precisa de dedicação, visto que não é um projeto que se autorreproduz, pois está em
constante ameaça. Na modernidade, o Estado faz o papel do jardineiro em uma cultura jardim,
mantendo o controle e a supervisão da sociedade, para que essa não volte à cultura selvagem.
Para o autor, foi a incapacidade do guarda-caça de acreditar na capacidade humana (pois a classe
dominante pré-moderna entendia que as pessoas eram naturalmente religiosas, não precisando de
qualquer tipo de padronização ou de ajuste), que possibilitou a transformação da cultura selvagem
em cultura jardim.
Figura 1 – Natureza selvagem Figura 2 – Jardim

photonaj/iStockphoto

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Percebe-se nas figuras que um jardim precisa de cuidados e manutenção periódicos e cons-
tantes, diferindo da natureza selvagem, na qual não há necessidade de dedicação e diligência. Para
que um jardim permaneça com seus contornos definidos e planejados pelo seu criador, e para que
mantenha seu aspecto de harmonia, é preciso um jardineiro que faça o trabalho de cuidar e manter
esse espaço. Essa analogia feita por Bauman (2001) serve para compreender a figura do Estado
nessa nova organização social.

3.2 A existência da pós-modernidade


A sociedade atual vive uma crise? A percepção de uma crise vem alcançando diversos as-
pectos na vida social, em especial a partir da década de 1960, e leva ao questionamento sobre a
realização das ideias da modernidade. Será que todos os ideais contidos no projeto civilizatório da
modernidade foram efetivados? Houve a superação da modernidade? Há uma pós-modernidade?
Há divergência entre os autores sobre a existência da pós-modernidade. No entanto,
há uma convergência entre os que concordam sobre existir um período de mudanças e insta-
bilidade, tendo como característica central o desaparecimento das grandes marcas culturais da
modernidade (BITTAR, 2005).

1 O guarda-caça era o servo que existia nas grandes propriedades rurais e que tinha a função de manter os locais e os
animais de forma adequada para a utilização de seus senhores. Também tinha a importante função de vigiar e fiscalizar
as áreas para manter afastados caçadores clandestinos.
Entendendo as transformações da sociedade contemporânea 39

Para Rouanet (1993), as promessas feitas no projeto civilizatório da modernidade, de liber-


dade, progresso e racionalidade não se cumpriram e, dessa forma, não se pode falar em um novo
projeto, a pós-modernidade. Para o autor, esse processo de mudanças deveria levar a um convite à
revisão da racionalidade da modernidade.
Para Bittar (2005), as últimas décadas do século XX apresentaram questionamentos sobre as
crenças da modernidade, como exemplo podemos citar:
a. O forte abalo na supervalorização da ideia da ordem como garantidora do progresso
na falência do sistema carcerário, na presença de desvios políticos como em regimes
totalitários e ditatoriais; no uso da bomba atômica, no uso de recursos naturais, na má
distribuição de riquezas; no monopólio da produção por poucas empresas. Realmente,
na contemporaneidade foi possível criar uma sociedade em que a ordem está presente?
Pode-se questionar se há ordem no sistema prisional brasileiro? Há ordem em uma so-
ciedade, como a brasileira, que tem por característica a desigualdade social? Há ordem
no uso dos recursos naturais do planeta?
b. Existe uma crítica a partir do entendimento da ideia de razão instrumental baseada na for-
malidade, isso é, interessa para a racionalidade instrumental como as ideias e princípios
podem ser utilizados para a obtenção de um fim. Essa forma de racionalidade não tem
um fim em si mesma, mas é meio para algum fim, o que pode gerar alienação e não re-
flexão. Quais são essas necessidades que a sociedade contemporânea tem buscado saciar?
Não está havendo um incentivo ao consumismo de bens descartáveis? Não está havendo
uma forma de uso do poder e de manipulação dos indivíduos pela razão instrumental?
c. Há também a discordância da crença na justiça do mercado, pois a ideia da meritocracia
baseada no conceito de que o mercado se autorregula e que é capaz de justiça e igualdade,
não tem sido verificada na realidade concreta. Dessa forma, a crítica serve para mostrar a
ideia de justiça social que aos poucos vem substituindo a ideia de livre mercado. A ideia
do liberalismo econômico conseguiu gerar uma sociedade mais justa? Todos os indiví-
duos em uma sociedade têm acesso aos bens de mercado? Como está acontecendo essa
distribuição dos bens em uma sociedade?
d. O critério de aposta no investimento da indústria, com um perfil de trabalhadores de baixa
qualificação, má remuneração, excesso de horas de trabalho, baixa interação nas políticas
empresariais, vem sendo criticada e substituída por um investimento em serviços, em que
há uma mão de obra mais intelectual, bem qualificada, com maior interação nas políticas
empresariais. Essa alteração na forma de trabalho gera mudanças no quadro societal, com
o surgimento de novas formas de trabalho, como o teletrabalho, trabalho à distância etc.
As novas formas de trabalho estão possibilitando melhorias nas condições de vida e traba-
lho dos indivíduos? Ou essas novas formas de trabalho estão precarizando as relações de
trabalho? Quem está sendo beneficiado com essas novas formas de trabalho?
e. O Estado passa a ser questionado sobre sua insuficiência em relação à prestação das
atividades sociais e no progressivo desaparecimento da dicotomia entre sociedade ci-
vil – Estado para uma nova realidade, com o surgimento da tripartição sociedade civil
40 Sociologia Jurídica

– Estado – Terceiro Setor. Desse modo está ocorrendo uma expansão dos poderes da
sociedade e está havendo uma colaboração mais intensa entre essas três instituições.
O papel do Estado seria o de protetor e cuidador da sociedade? Está o Estado cumprindo
com seu papel? Quem o Estado está protegendo? Está gerando uma sociedade mais igua-
litária, justa e livre?
Esses questionamentos trazidos por Bittar (2005) sobre a realização dos ideais da moderni-
dade possibilitam uma profunda reflexão sobre a continuidade da existência da modernidade, ou o
surgimento de uma nova forma de viver e pensar, denominada pós-modernidade.
Sobre a existência da pós-modernidade, a seguir serão apresentadas as ideias de alguns pen-
sadores sobre o tema.
Cornelius Castoriardis (1922-1997), de origem grega, teve sua formação intelectual na
França, em filosofia, economia e psicanálise. Suas principais obras foram: instituição imaginária da
sociedade, Encruzilhadas do labirinto, Socialismo ou barbárie.
Para Castoriardis, a pós-modernidade se caracteriza pela decadência das crenças da mo-
dernidade. Ele a define como “pós-qualquer-coisa”, pois, na sua compreensão, a pós-modernidade
não traz um novo projeto de mundo e nem traz consigo o gérmen dessa mudança, mas apenas
um incômodo às pessoas que se sentem inertes e estáticas. Dessa forma, o que caracteriza a pós-
-modernidade é estar no mundo sem qualquer pretensão de sentido. A fragmentação que não per-
mite identificação e personificação é o que alimenta o homem pós-moderno. Para um novo projeto
de autonomia são necessários objetivos políticos e atitudes humanas, os quais o autor entende que
são raros nesse momento histórico.
Ulrich Beck (1944-2015), sociólogo alemão, tem por principais obras: Modernização reflexi-
va, O que é globalização? e Sociedade de risco.
Para Beck, Guiddens e Lasch (1997), a mudança que está acontecendo na sociedade con-
temporânea é marcada pela transição de uma sociedade industrial para uma sociedade pós-indus-
trial, em que predomina o processo de destradicionalização2. Esse período é denominado pelos
autores como modernização reflexiva. A expressão reflexiva não significa que a modernidade se
tornou autocompreensiva, mas sim refratária, instaurando uma nova fase da própria modernidade.
Esse movimento é marcado por um processo de desincorporação seguido por uma reincorporação
de formas sociais industriais. “‘Modernização reflexiva’ significa a possibilidade de uma (auto)
destruição criativa para toda uma era [...]” (BECK; GUIDDENS; LASH; 1997, p. 12).
Dessa forma, a modernização reflexiva é marcada por um dinamismo social que está aca-
bando com as formações de classe, ocupação, papéis dos sexos, família nuclear, setores empre-
sariais, gerando um processo de autodestruição, em que um tipo de modernização destrói outro
e o modifica. Assim, nesse processo pós-moderno há movimentos creacionistas e também de
decomposição (BECK; GUIDDENS; LASH; 1997).

2 Independentemente da sua doutrina (católica, protestante, evangélica ou qualquer outra que mantenha uma estru-
tura organizada), a Igreja, como forma de controle formal, refere-se à entidade institucional, com a sua hierarquia, regras
e modos de agir com seus seguidores. Já a religião, como forma de controle informal, direciona-se aos indivíduos por
meio dos valores, das crenças, dos dogmas, mas é desvinculada do formalismo institucional da Igreja.
Entendendo as transformações da sociedade contemporânea 41

Nesse processo de modernização reflexiva há dois fenômenos que acontecem ao mesmo


tempo: o processo de individualização e de globalização. Para Beck, Guiddens e Lash (1997, p. 15),
o processo de modernização decorre da obsolescência da sociedade industrial, mas o outro lado dessa
obsolescência é a sociedade de risco. O conceito de sociedade de risco designa “uma fase no desenvol-
vimento da sociedade moderna, em que os riscos sociais, políticos, econômicos e individuais tendem
cada vez mais a escapar das instituições para o controle e a proteção da sociedade industrial”. Assim,
para o autor, o desenvolvimento da tecnologia gera maior bem-estar à sociedade, mas também riscos
que não havia em outras épocas da história e que são imprevisíveis e incontroláveis.
Nessa sociedade de risco, o reconhecimento da eventualidade das ameaças geradas pelo de-
senvolvimento técnico e industrial gera a necessidade de autorreflexão sobre a coesão social e a
análise sobre os fundamentos da racionalidade. Assim, a sociedade se torna reflexiva, o que gera
também um problema e um tema para ela própria analisar (BECK; GUIDDENS; LACH; 1997).
Zygmunt Bauman (1925-2017), sociólogo polonês, tem como principais obras: Modernidade
líquida, Sociedade líquida, Modernidade e ambivalência, O mal-estar da pós-modernidade, Vidas
desperdiçadas, Globalização: as consequências humanas e Vida em fragmentos – sobre a ética
pós-moderna.
Bauman é o grande pensador contemporâneo da modernidade, e crítico da pós-moder-
nidade pela forma como explica o contexto atual da humanidade. É o criador da denominação
modernidade líquida, mas por que líquida?
Bauman se utiliza de uma metáfora para explicar a transitoriedade da sociedade. Dessa for-
ma, esse conceito é assim denominado por assimilar-se aos aspectos físicos do líquido, que sofre
constantemente mudanças a partir das tensões a que é exposto, além de não ter uma forma definida;
já o conceito de sociedade sólida se relaciona à ideia desse estado físico, que tem como característica
a estabilidade em virtude das ligas de seus átomos. Nesse sentido, tem uma forma definida e perdura
por muito tempo. Nesta, o tempo é irrelevante, enquanto naquela, é primordial.
Assim, Bauman (2001) se utiliza dessa metáfora para explicar a natureza dessa nova fase
da história da modernidade, em que as coisas e as relações são passageiras e flexíveis. A fluidez
da modernidade acarreta uma profunda alteração na relação entre tempo e espaço. Enquanto na
modernidade o tempo era projetado a longo prazo, em que havia maior certeza na forma do uso
do tempo, na modernidade líquida o tempo também se torna “líquido”, é o momento da instanta-
neidade, as programações são feitas a curto prazo. A mesma coisa ocorre com o espaço: enquanto
na modernidade havia um espaço fixo, rígido, definido, na modernidade líquida o espaço é macro,
podendo ser qualquer espaço; as barreiras devem ser abertas, as pessoas podem ser nômades e
extraterritoriais, havendo inclusive os espaços virtuais que perdem a materialidade.
O famoso quadro A persistência da memória3, de Salvador Dali, pode ser utilizado como
uma representação da modernidade líquida, em que tudo está derretendo, o tempo e espaço são
fluídos e sem forma. Bauman (2001), ao tratar dessa dicotonia entre o tempo e o espaço estabeleceu

3 A tela pode ser visualizada no site do MoMA (Museum of Modern Art). Disponível em: <https://www.moma.org/
collection/works/79018>. Acesso em: 19 dez. 2017.
42 Sociologia Jurídica

uma relação que denominou de modernidade pesada ou era do hardware, e modernidade leve ou era
do software. É possível elencar algumas características de cada uma dessas eras para que se possa
compreender melhor a ideia do autor.
Quadro 1 – Era da modernidade pesada ou era do hardware x era da modernidade leve ou era do software
Modernidade pesada ou Modernidade leve ou
era do hardware era do software
Obsessão pelo volume. Viagem à velocidade da luz.

Máquinas pesadas. Espaço pode ser atravessado.

Grandes muros nas fábricas. Cancelamento da diferença entre “longe” e “perto”.

Equipes cada vez maiores. Equipes enxutas.

Conservação da mão de obra e manutenção Manter afastada a mão de obra humana, forçar
da subordinação. sua saída.

Conquista do espaço, do território como valor Irrelevância do espaço disfarçada de aniquilação


supremo. do tempo.

Espaço não impõe mais limites à ação e


Importância das fronteiras.
seus efeitos.

Riqueza e poder estavam enraizados no território. O capital viaja rápido e leve.

Instantaneidade como desvalorização


Os impérios preenchiam os espaços do globo.
do espaço.

Lógica do poder e do controle fundada na separa-


Volume e tamanho passam a ser riscos.
ção do “dentro” e “fora”.

Progresso relacionado ao crescimento do


Downsizing (diminuição de tamanho).
tamanho e expansão espacial.
Fonte: Elaborado pela autora com base em Bauman, 2001.

Esses elementos trazidos pelo autor demonstram a mudança que aconteceu na relação entre
o tempo e o espaço, entre a rigidez da era pesada da modernidade para a liquidez da era leve da
pós-modernidade. Importante notar que na era pesada da modernidade, os elementos centrais
são a delimitação, o controle e o uso do espaço; enquanto que na era da modernidade leve o que
prevalece é a expansão do território, sem a preocupação com as fronteiras e a instantaneidade das
relações e do uso do tempo.
Essas alterações se refletem no campo da produção, da formação da sociedade, do trabalho,
da política e até nas relações afetivas4, ou seja, no campo da produção das mercadorias a rapidez
das transformações é intensa e contínua e cada vez mais essas mudanças acontecem em menor pe-
ríodo de tempo; na organização da família é possível identificar o quanto foram alteradas as formas
de constituição familiar; no campo laboral também as mudanças têm acontecido de forma signifi-
cativa, novas formas de trabalho têm surgido e novas profissões têm sido criadas para adequar-se
às novas necessidades sociais.
Por fim, todas essas características da modernidade leve acarretam muita incerteza e instabi-
lidade na sociedade e na vida dos indivíduos. Nesse período da modernidade líquida, os principais
referenciais humanos como família, classe, nacionalidade, política estão derretendo e, dessa forma,

4 Bauman é também autor de um livro intitulado Amor líquido, em que discute o conceito de liquidez nas relações afetivas.
Entendendo as transformações da sociedade contemporânea 43

o indivíduo vai ficando isolado, tornando-se responsável por seus atos e pelo seu destino. Essa ra-
pidez e liquidez da pós-modernidade exacerba a individualidade, gerando consequências como a
incerteza e a insegurança nos indivíduos, pois ele vive em um mundo líquido, no qual o consumo
é incentivado, mas também é volátil e passageiro, em que até as relações pessoais se tornam frágeis.
Cabe questionar agora se essa leveza e liquidez presente na sociedade contemporânea se
reflete também no sistema jurídico.

3.3 A pós-modernidade e o Direito


Inicialmente faz-se necessário relembrar que a modernidade tinha em seu projeto a ideia de
ordem, que na esfera jurídica se refletia na ideia de um direito positivo, uma lei forte, um Estado
centralizador e uma exegese literal da lei.
Nesse contexto histórico, Hans Kelsen (1881-1973) criou a Teoria Pura do Direito como
uma forma de explicar o sistema jurídico a partir da norma jurídica. Kelsen foi um retrato de sua
época. Para Bittar (2005, p. 182), ele “é uma espécie de síntese do espírito jurídico-ideológico da
modernidade, que vê na ambiguidade o perigo da desestruturação no caos”. Bittar (2005) afir-
ma que o sistema jurídico para Kelsen tinha por características: ser unitário, orgânico, fechado,
completo e autossuficiente.
No entanto, a teoria kelseniana passará a ter problema para responder questões sobre a so-
ciedade contemporânea atual, marcada por maior flexibilidade e diversidade das normas jurídicas
e pela existência de outras formas de realização da justiça. O fluxo de mudanças que acontece na
sociedade contemporânea (de forma cada vez mais rápida) vai impactar a necessidade de altera-
ções no Direito. Dessa forma, cabe questionar: a pós-modernidade impacta o Direito?
É possível identificar no sistema jurídico algumas alterações decorrentes desse processo de
pós-modernidade, marcado pela rapidez das mudanças e pela diminuição do poder do Estado
como organizador e controlador da sociedade.
Para Bittar (2005), é possível identificar algumas identidades que passam a compor uma
perspectiva de ação de um Direito pós-moderno que:
1. valoriza a liberdade e inclusão na vida das pessoas, sobrepondo-se à ideia antiga do
Direito como instrumento do poder do Estado e como regulador da vida das pessoas; o
conceito é de um Direito defensor de ideais sociais;
2. coloca-se como espaço de uma ética plural, de construção permanente da sociedade, e
não como um espaço de centralização e unificador de valores morais majoritários. Nesse
espaço, abre-se mais o campo da diversidade, o respeito às diferenças, à heterogeneida-
de, à responsabilidade difusa e microssistêmica de comunidades autossustentadas;
3. amplia e incorpora a concepção de direitos humanos a todos os indivíduos, defende o
valor do multiculturalismo, respeita as diferenças culturais, conjuga ideias como a tole-
rância, o respeito e a autodeterminação dos povos;
44 Sociologia Jurídica

4. considera a existência de consenso do valor da dignidade da pessoa humana, como uma


espécie de ética mínima entre os povos, sendo esse valor um definidor das ações políti-
cas e jurídicas nos ordenamentos nacionais e na legislação internacional;
5. acredita mais no poder da tutela dos casos concretos e menos na generalidade da lei,
representante de uma abstração e universalidade. O arcabouço jurídico passa a ser mais
aberto e facultado à livre interpretação dos atores do sistema jurídico;
6. coloca-se ao lado das reivindicações de justiça social, marcado por processos de acessi-
bilidade, participação, corresponsabilidade decisória, por meio de instrumentos que fa-
cilitem o acesso aos conhecimentos e à informação como os processos de transparência;
7. aposta no flexível, como forma de tratar a complexidade dos fenômenos sociais, diferen-
ciando-se do Direito moderno, que era fruto de uma cultura da rigidez;
8. prioriza a eficiência de um número reduzido de normas, evitando a ampliação e banali-
zação de normas de Direito positivo na concepção de um sistema jurídico concentrador
e sistematizador;
9. coloca-se na oposição de grandes categorias modernas que orientam a conduta, como
ideias dicotômicas público/privado, empregado/empregador, Estado/sociedade civil,
mas trabalha com ideias de complementação de ações, baseadas em parcerias, convênio,
coordenação de interesses convergentes;
10. adota uma linguagem jurídica incentivadora e motivadora e não mais utiliza uma lin-
guagem coercitiva, proibitiva, limitadora. Dessa forma, o Direito passa a ter um caráter
de agente de transformação social;
11. alinha-se com uma conduta engajada e transformadora e não mais com as condutas
passivas, ou relacionadas à cidadania reduzida à sua esfera eleitoral, ou ao Estado como
mero gestor das relações econômicas, ou ainda, com a jurisdição exercida apenas após a
provocação das partes;
12. integra a pluralidade das fontes jurídicas, não se limitando à lei, como defendido pelo
Direito moderno.
A partir dessas possibilidades de ação de um Direito pós-moderno trazidas por Bittar (2005),
pode-se identificar grandes mudanças que implicaram em um Direito mais ágil e colaborativo, em
que há mais presença da participação social de forma plural e diversificada e menos interferência
do Estado como uma entidade repressora e controladora. Esse Direito pós-moderno poderá de-
senvolver formas de conciliar interesses divergentes, de construir novas análises mais interdiscipli-
nares dos fatos concretos, de maior participação cidadã, de utilização mais abrangente de outras
fontes do Direito, além da lei, e de decisões que busquem ampliar o conceito de justiça social.
Entendendo as transformações da sociedade contemporânea 45

Considerações finais
Neste capítulo identificamos o processo de formação da modernidade, com base em diver-
sos fatores que alteraram a sociedade, a política, a ciência, a cultura e o Direito, criando um projeto
civilizatório baseado em ideias como a individualidade, a autonomia e a universalidade.
No entanto, verificamos que esse projeto está em discussão pelo fato de estarem ocorrendo
mudanças significativas na sociedade contemporânea, marcada pelas alterações nas relações de
espaço e tempo, acarretando efeitos nas várias áreas da sociedade.
Também identificamos que esse processo de mudança da modernidade para a pós-moderni-
dade influencia a formação do Direito, tornando-o mais flexível e mais adaptativo às necessidades
de participação e colaboração da sociedade.

Ampliando seus conhecimentos


Este breve texto abaixo é um trecho da obra Modernidade líquida, de Zygmunt Bauman,
que trata sobre as transformações dessa nova era da modernidade.

Modernidade líquida
(BAUMAN, 2001, p. 9-11)

[...] Lembremos, no entanto, que tudo isso seria feito não para acabar de uma vez por todas
com os sólidos e construir um admirável mundo novo livre deles para sempre, mas para lim-
par a área para novos e aperfeiçoados sólidos; para substituir o conjunto herdado de sólidos
deficientes e defeituosos por outro conjunto, aperfeiçoado e preferivelmente perfeito, e por
isso não mais alterável. Ao ler o Ancien Régime de Tocqueville, podemos nos perguntar até
que ponto os “sólidos encontrados” não teriam sido desprezados, condenados e destinados à
liquefação por já estarem enferrujados, esfarelados, com as costuras abrindo; por não se poder
confiar neles. Os tempos modernos encontraram os sólidos pré-modernos em estado avan-
çado de desintegração; e um dos motivos mais fortes por trás da urgência em derretê-los era
o desejo de, por uma vez, descobrir ou inventar sólidos de solidez duradoura, solidez em que
se pudesse confiar e que tornaria o mundo previsível e, portanto, administrável. Os primeiros
sólidos a derreter e os primeiros sagrados a profanar eram as lealdades tradicionais, os direitos
costumeiros e as obrigações que atavam pés e mãos, impediam os movimentos e restringiam
as iniciativas. Para poder construir seriamente uma nova ordem (verdadeiramente sólida!) era
necessário primeiro livrar-se do entulho com que a velha ordem sobrecarregava os constru-
tores. “Derreter os sólidos” significava, antes e acima de tudo, eliminar as obrigações “irrele-
vantes” que impediam a via do cálculo racional dos efeitos; como dizia Max Weber, libertar a
empresa de negócios dos grilhões dos deveres para com a família e o lar e da densa trama das
obrigações éticas; ou, como preferiria Thomas Carlyle, dentre os vários laços subjacentes às
responsabilidades humanas mútuas, deixar restar somente o “nexo dinheiro”. Por isso mesmo,
essa forma de “derreter os sólidos” deixava toda a complexa rede de relações sociais no ar –
nua, desprotegida, desarmada e exposta, impotente para resistir às regras de ação e aos crité-
rios de racionalidade inspirados pelos negócios, quanto mais para competir efetivamente com
eles. Esse desvio fatal deixou o campo aberto para a invasão e dominação (como dizia Weber)
da racionalidade instrumental, ou (na formulação de Karl Marx) para o papel determinante
46 Sociologia Jurídica

da economia: agora a “base” da vida social outorgava a todos os outros domínios o estatuto
de “superestrutura” – isto é, um artefato da “base”, cuja única função era auxiliar sua operação
suave e contínua.
O derretimento dos sólidos levou à progressiva libertação da economia de seus tradicionais
embaraços políticos, éticos e culturais. Sedimentou uma nova ordem, definida principalmente
em termos econômicos. Essa nova ordem deveria ser mais “sólida” que as ordens que subs-
tituía, porque, diferentemente delas, era imune a desafios por qualquer ação que não fosse
econômica. A maioria das alavancas políticas ou morais capazes de mudar ou reformar a nova
ordem foram quebradas ou feitas curtas ou fracas demais, ou de alguma outra forma ina-
dequadas para a tarefa. Não que a ordem econômica, uma vez instalada, tivesse colonizado,
reeducado e convertido a seus fins o restante da vida social; essa ordem veio a dominar a
totalidade da vida humana porque o que quer que pudesse ter acontecido nessa vida tornou-se
irrelevante e ineficaz no que diz respeito à implacável e contínua reprodução dessa ordem. [...].

Atividades
1. O que é a modernidade? Defina-a incorporando algumas de suas características centrais.

2. Explique o que define a pós-modernidade, para Bauman.

3. De acordo com as ideias de Ulrich Beck, qual a relação entre o conceito de modernidade
reflexiva e a sociedade de risco?

4. O Direito tem sofrido os impactos da pós-modernidade? Justifique sua resposta com base
nos autores estudados neste capítulo.

Referências
BAUMAN, Zigmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

______. Legisladores e intérpretes: sobre modernidade, pós-modernidade e intelectuais. Rio de Janeiro:


Zahar, 2010.

BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott.  Modernização reflexiva:  política, tradição e estética na
ordem social moderna. São Paulo: Editora da UNESP, 1997.

BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O direito na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2005.

GIDDENS, Antony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora da Unesp, 1991.

ROUANET, Sergio. P. Mal-estar da humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
4
Grupos sociais e hegemonia

Você já parou para pensar como as pessoas se organizam em uma sociedade? Já pensou se
essas organizações impactam na formação do Direito?
O objetivo deste capítulo é compreender o que são grupos sociais, como se formam e como
se organizam na sociedade. Serão estudadas as diferenças entre os diversos grupos sociais e sua
relação com a construção do Direito.
Também será analisado o conceito de hegemonia. Você conhece esse conceito? Neste ca-
pítulo, terá a oportunidade de explorá-lo e relacioná-lo com os grupos sociais e a formação das
normas jurídicas.

4.1 O que são grupos sociais?


A sociedade se compõe por indivíduos que compartilham ideias, valores, sentimentos afins
e que se organizam em grupos de acordo com seus interesses.
No convívio social, os indivíduos podem interagir tanto entre si quanto com um grupo so-
cial, podendo ainda, haver a interação entre os grupos sociais, esses processos são denominados
interação social.
Interação social é “a ação recíproca de ideias, atos ou sentimentos entre pessoas, entre grupos
e entre grupos e pessoas” (DIAS, 2010, p. 109). Nessa interação social, os indivíduos são ao mesmo
tempo sujeito e objeto na relação social, portanto, as ações acontecem entre ambos, há uma reciproci-
dade. É nessa interação com outros indivíduos que cada um avalia, modifica e define suas condutas.
A interação social é um dos processos mais elementares da vida em sociedade, pois é uma
fonte de socialização, que se refere à “aquisição das maneiras de agir, pensar e sentir próprias dos
grupos, da sociedade e da civilização em que o indivíduo vive” (DIAS, 2010, p. 116).
O indivíduo, a partir das interações sociais que estabelece ao longo da vida, define seus va-
lores, crenças, comportamentos e também sua identidade e sua posição no grupo e na sociedade.
Assim, pode-se afirmar que a interação social é a base da estrutura social. Apesar de a com-
plexidade do estudo e da conceituação de estrutura, esse conceito se relaciona à ideia de posição
e sustentação. Logo, a estrutura social pode ser definida como um conjunto de “padrões relativa-
mente estáveis e duradouros em que estão organizadas as relações sociais e que formam a estrutura
básica daquilo que denominamos ‘sociedade’” (DIAS, 2010, p. 148). Assim, pode-se dizer que essas
posições formam uma rede, não podendo, portanto, ser identificadas como unidades isoladas.
Para ilustrar este conceito, basta compará-lo a uma equipe de futebol (Figura 1), em que
há uma estrutura que se fundamenta nas relações que estabelece. Dessa forma, cada jogador tem
uma posição dentro da equipe, e existem várias posições para que se possa alcançar o objetivo
48 Sociologia Jurídica

pretendido. Embora haja uma diversidade nas posições, cada uma está relacionada a uma ativi-
dade específica. No conjunto, elas estão associadas às habilidades de cada jogador, que pode ser
substituído por outro jogador, e mesmo com todas essas relações e possibilidades de mudanças, a
estrutura da equipe permanece. Assim também acontece na sociedade.
Figura 1 – Exemplo de relações e estruturas sociais

block37/iStockphoto
Nesse processo constante de interação social que vivem os indivíduos dentro de uma socie-
dade, há a formação dos grupos sociais. Mas como é possível conceituar grupo social?
Segundo Pérsio Santos Oliveira (2003, p. 67), “é toda reunião de duas ou mais pessoas asso-
ciadas pela interação. Devido à interação social, os grupos mantêm uma organização e são capazes
de ações conjuntas para alcançar objetivos comuns a todos os seus membros”.
A partir desse conceito, é possível identificar os principais elementos caracterizadores de um
grupo social:
• Pluralidade de indivíduos – ser formado por mais de um indivíduo.
• Interação social – possuir uma reciprocidade entre os indivíduos. O grupo social é basea-
do nas relações e influências entre seus integrantes, além das relações estabelecidas por
meio da comunicação.
• Organização – constituir uma estrutura, criando regras e normas para seu funcionamento
que não precisam ser necessariamente formais, mas compreendidas por todos.
• Objetividade e exterioridade – existir fora do indivíduo, de froma que o grupo se mante-
nha independentemente de o indivíduo estar nele ou não.
• Objetivo comum – existir um interesse em comum entre seus integrantes. Essa é a causa
ou motivo que move os indivíduos a unirem-se em um grupo.
• Consciência grupal – adquirir um sentimento de compartilhamento, de pertencimento
ao grupo.
Grupos sociais e hegemonia 49

• Continuidade – permanecer no tempo, não é um fenômeno momentâneo, efêmero,


há uma perpetuidade dentre as ações de um grupo social.
São exemplos de grupos sociais: a família, grupos de amigos, grupos religiosos, equipes de
trabalho, sindicatos, clubes recreativos.
Figura 2 – Grupo de trabalho

UberImages/iStockphoto
Diante da observação dos elementos caracterizadores de um grupo social, percebeu-se a im-
portância da continuidade no tempo, visto que as formações sociais que não têm esse elemento de
perpetuidade não podem ser consideradas como grupos sociais, podendo citar as agregações, que
se constituem de “qualquer conjunto físico de pessoas que estão ao mesmo tempo no mesmo lugar,
que interagem pouco ou nada e que não se sentem pertencer a um grupo” (DIAS, 2010, p. 163).
As agregações ou agregados sociais podem ser divididos em três tipos: multidão, massa e
público. Sendo:
• Multidão – é caracterizada pela ausência de organização, pelo anonimato de seus inte-
grantes, pela presença de um objetivo em comum e pela proximidade física. Exemplos:
indivíduos que se reúnem em um protesto político.
• Massa – é formada por um agrupamento de indivíduos relativamente separados e desco-
nhecidos um do outro e que têm em comum a formação de opiniões. Exemplo: telespec-
tadores de um mesmo programa televisivo.
• Público – é um agrupamento de pessoas que pode ser físico ou virtual e que tem como
caraterística a resposta espontânea a um mesmo estímulo. Exemplo: plateia em uma
peça teatral.
Dentre as diversas possibilidades de classificar os grupos sociais, a mais utilizada pelos au-
tores é a divisão em grupos primários e secundários. Os grupos primários são aqueles em que os
indivíduos têm uma relação de intimidade, em número restrito de integrantes com um interesse
em comum, o principal exemplo é a família. Já os grupos secundários se caracterizam por um
50 Sociologia Jurídica

número ilimitado de pessoas, as relações entre seus integrantes são impessoais e suas reuniões não
são permanentes, um exemplo é um grupo de estudo.
Quadro 1 – Características dos grupos primários e secundários
Grupos primários Grupos secundários
Não há necessariamente um conhecimento profundo entre
Membros se conhecem intimamente.
seus integrantes.

Contatos sociais são impessoais, limitados e não perma-


Contatos sociais são íntimos e pessoais.
nentes.

Grupos pequenos. Grupos com tamanho flexível.

Relacionamentos informais e descontraídos. Suas reuniões têm um objetivo prático e determinado.

Em geral, seus membros são insubstituíveis. Em geral, seus membros são substituíveis.

Fonte: Dias, 2010, p. 168-169.

Embora haja diferenças entre os grupos, eles são fundamentais no processo de socialização
de um indivíduo. É por meio das vivências e das experiências de cada um desses grupos que o in-
divíduo definirá sua autoidentidade e identidade social.
Uma forma de relacionar os grupos sociais com a formação do Direito é compreendê-los a
partir de outra classificação que eles podem ter e que está relacionada aos interesses existentes na
sociedade. Os grupos podem ser categorizados como convergentes ou divergentes.
Os grupos convergentes se caracterizam pela existência de um comportamento
intragrupal, isto é, pela presença de vários grupos que interagem devido ao compartilha-
mento de pelo menos um interesse em comum.
Já os grupos divergentes têm por características a existência de dois grupos convergentes,
mas divergentes entre si.
Figura 3 – Representação de um grupo convergente

Grupo 1

Grupo 6 Grupo 4

Interesse
A

Grupo 5 Grupo 3

Grupo 2

Fonte: Elaborada pela autora.


Grupos sociais e hegemonia 51

A Figura 3 representa vários grupos, com diferentes formações, convergindo para um único
interesse. Cada um deles pode ter interesses distintos, mas pelo menos um deve estar correla-
cionado ao dos demais grupos. Por exemplo, para a aprovação de uma lei, vários grupos podem
convergir para um interesse único. Existe uma lei que aprovou o feminicídio como um crime,
Lei n. 13.104/2015 (BRASIL, 2015), que inclui uma qualificadora no homicídio, se ele for cometido
“contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”. Para aprovação dessa lei, vários grupos
convergiram seus interesses como grupos de feministas, de defensores dos direitos humanos, de
defesa dos direitos da mulher, de combate à violência doméstica e familiar, do Ministério Público,
dentre outros em prol do objetivo comum, a aprovação da lei.
Figura 4 – Representação de dois grupos divergentes entre si

Grupo 1 Grupo 7

Grupo 6 Grupo 4 Grupo 12 Grupo 8

Interesse Interesse
A B

Grupo 5 Grupo 3 Grupo 11 Grupo 9

Grupo 2 Grupo 10

Fonte: Elaborada pela autora.

A Figura 4 demonstra dois grupos convergentes, mas que entre si são divergentes em seus
interesses. Um exemplo desse tipo de divergência no plano da aprovação de uma lei pôde ser visto
na votação do projeto de lei do Código Florestal, que acabou sendo aprovado. A Lei n. 12.651/2012
(BRASIL, 2012) refletiu uma grande disputa entre dois grandes grupos de interesses divergentes,
ambos formados por grupos divergentes, mas que em prol de um objetivo comum, uniram-se, um
grupo ficou conhecido como ambientalistas e defendia a maior proteção das florestas brasileiras e
o outro denominado ruralistas, que defendia o uso do solo também para outras finalidades como
a agricultura e a pecuária.

4.2 Hegemonia e Estado ampliado


A partir da análise dos grupos sociais dentro de uma sociedade e sua importância no proces-
so de disputa legislativa, nesta parte do capítulo estudaremos o conceito de hegemonia.
Você sabe o que é hegemonia?
O autor mais conhecido no estudo sobre esse conceito é Antonio Gramsci, um italiano que
viveu entre os anos de 1891 a 1937 e que por 20 anos foi preso político do regime fascista italia-
no, quando escreveu grande parte de suas obras. Suas principais obras são: Cadernos do Cárcere,
Concepção dialética da história, Escritos políticos e Os intelectuais e a organização da cultura.
52 Sociologia Jurídica

Figura 5 – Retrato de Antonio Gramsci

O pesquisador Benedetto Fontana (2003, p. 120), afirma que “Gramsci usa a hegemonia para
indicar um sistema de alianças entre vários grupos, em que o grupo dominante exerce o poder gra-
ças à sua capacidade de transformar os interesses particulares em gerais e universais.”
Assim, um grupo dominante utiliza-se da sua capacidade de persuasão e influência para
fazer com que seu interesse se torne o do grupo. Dessa forma, o grupo que influencia acaba se
tornando superior aos outros grupos.
Explica Fontana (2003, p. 114) que, no entendimento de Gramsci, a hegemonia se caracteri-
zava por essa supremacia de um grupo ou classe sobre outros grupos ou classes e explica que essa
relação se dá por meios diferentes da violência ou coerção.
Cabe então um questionamento: se a hegemonia se estabelece por outros meios que não a
violência e a coerção, como ela se estabelece?
Pela capacidade de formação de alianças e pactos, criando um sistema de relações consen-
suais entre esses diversos grupos, em que um grupo é o líder desse processo. Esse sistema prmite
que diversos grupos formem um único interesse, a partir de um acordo entre o líder e os demais
(GRAMSCI, 2000).
Para Fontana (2003), três elementos constituem o conceito gramsciano de hegemonia:
poder, conhecimento e transformação dos interesses.
Grupos sociais e hegemonia 53

Figura 6 – Elementos caracterizadores do conceito de hegemonia

Poder

Transformação dos
interesses Conhecimento

Fonte: Elaborada pela autora.

A capacidade de transformar interesses particulares em interesses gerais pressupõe conhe-


cimento das características dos grupos que se almeja fazer alianças e do que se pretende alcançar,
gerando poder para o grupo líder. Para Anita Helena Schlesener (2001, p. 19), “o exercício do po-
der ocorre pela combinação de domínio e direção [...].” Essa capacidade de controle e de comando
é que vai caracterizar o conceito de hegemonia.
Essa relação entre o conceito de hegemonia e os demais grupos está associada à ideia de
Estado que Gramsci explica ao afirmar que:
O Estado é certamente concebido como um organismo próprio de um grupo,
destinado a criar as condições favoráveis à expansão máxima desse grupo, mas
este desenvolvimento e esta expansão são concebidos e apresentados como a
força motriz de uma expansão universal, de um desenvolvimento de todas as
energias ‘nacionais’, isto é, um grupo dominante é coordenado concretamente
com os interesses gerais dos grupos subordinados e a vida estatal é concebida
como uma contínua formação e superação de equilíbrios instáveis (no âmbito
da lei) entre os interesses do grupo fundamental e os interesses dos grupos
subordinados, equilíbrios em que os interesses do grupo fundamental e os inte-
resses dos grupos subordinados, equilíbrios em que os interesses do grupo do-
minante prevalecem, mas até um determinado ponto, ou seja, não até o estreito
interesse econômico-corporativo. (GRAMSCI, 2000, p. 42)

Dito de outra forma, o Estado é formado por uma disputa constante entre interesses do
grupo hegemônico e dos grupos subalternos, mas nessa disputa há um “certo equilíbrio de com-
promisso”. Por exemplo, no campo legislativo há um equilíbrio, mas não é constante, é variável
conforme forem essas disputas entre os interesses desses grupos.
Assim, pode-se entender o Estado a partir dessa disputa por interesses, em que o grupo do-
minante quer permanecer no controle, nem que para isso seja preciso fazer concessões às pressões
dos grupos subordinados, construindo uma relação de equilíbrio, mas também de disputa.
[...] a hegemonia é uma relação ativa, cambiante, evidenciando os conflitos
sociais, os modos de pensar e agir que se expressam na vivência política; con-
forme se desenvolvem e se inter-relacionam as forças em luta, tem-se o for-
talecimento das relações e domínio, o equilíbrio entre coerção e consenso
ou ampliação da participação política e da organização da sociedade civil.
(SCHLESENER, 2001, p. 19)
54 Sociologia Jurídica

Mas o entendimento de Gramsci sobre o Estado é uma ideia diversa do conceito tradicional
de Estado. Para o autor (2000, p. 254-255), “por ‘Estado’ deve-se entender, além do aparelho de
governo, também o aparelho ‘privado’ de hegemonia ou sociedade civil”.
Assim, o Estado tem um conceito ampliado, formado pela sociedade política mais a socie-
dade civil.
Figura 7 – Estado ampliado

Sociedade
política

Estado
ampliado

Sociedade
civil

Fonte: Elaborada pela autora.

Agora, faz-se necessário compreender o que Gramsci entende por sociedade civil. Ela é
formada pelo conjunto de organismos denominados aparelhos privados de hegemonia, pois são
compostos por indivíduos particulares, que nascem da organização política dos cidadãos, a partir
das disputas de interesses diversos na sociedade, por exemplo, os sindicatos, as escolas, partidos
políticos, meios de comunicação, igrejas. Assim, é na sociedade civil que ocorrem as disputas,
contradições e lutas, mas também é onde ocorrem os consensos.
Esses aparelhos privados são responsáveis por elaborar as diferentes concepções de mundo
pelas quais a sociedade se representa e se organiza em grupos. Já a sociedade política é composta
pelos aparelhos administrativo-burocrático e político-militar. “A sociedade política tem a função
de controlar, de assegurar legalmente a disciplina dos grupos que não consentem, nem ativa, nem
passivamente aos objetivos dominantes; a coerção é exercida principalmente pelos momentos de
crise, quando fracassa o consenso espontâneo” (SCHLESENER, 2001, p. 19).
Dessa forma, fica mais claro porque Gramsci utiliza a expressão Estado ampliado, pois vai
além do conceito liberal de Estado enquanto apenas uma esfera política. Para o autor, no Estado
estão presentes as instituições administrativas, burocráticas, militares e políticas, jutamente com os
aparelhos privados de hegemonia, ou seja, a sociedade civil organizada.
O processo hegemônico pode acontecer em âmbito nacional, e/ou internacional. Da mesma
forma que ocorre uma disputa de transformação de interesses particulares em interesse geral den-
tro de uma nação, pode ocorrer entre nações diferentes.
Gramsci (2000) aponta os elementos caracterizadores de uma nação hegemônica:
• Extensão do território – nesse elemento, deve-se considerar também a posição geográfica.
• Força econômica – nesse elemento, há que se distinguir a capacidade industrial e agrícola
(força produtiva) e a capacidade financeira.
Grupos sociais e hegemonia 55

• Força militar – esse elemento sintetiza o valor da extensão territorial (e sua população) e
do potencial econômico.
Há também um elemento imponderável, que trata de sua posição ideológica no mundo em
um determinado momento histórico. Esses elementos, para Gramsci (2000), são calculados em
uma perspectiva de guerra, pois dispor de todos eles dão segurança de uma vitória, além da dis-
ponibilidade para realizar de pressão diplomática, que pode potencializar a capacidade de uma
grande potência obter uma vitória, sem precisar necessariamente combater em uma guerra.
Essa hegemonia obtida por uma nação é muito importante, de acordo com Fontana (2003,
p. 21), a nação hegemônica pode “conseguir os próprios fins num conflito sem recorrer à guerra
– ou seja através de métodos diplomáticos, econômicos, ideológicos ou morais/intelectuais – é a
marca distinta de uma potência hegemônica”.
O próprio Gramsci afirma que essa superioridade de uma nação hegemônica pode ser um
diferencial para a realização, ou não, de um conflito “[...] dispor de todos os elementos que dão
segurança de uma vitória (numa guerra) significa dispor de um potencial de pressão diplomática
de grande potência, isto é, significa obter uma parte dos resultados de uma guerra vitoriosa sem
necessidade de combater” (GRAMSCI, 2000, p. 55).
Dessa forma, percebe-se a importância da compreensão do conceito de hegemonia para
entender a formação do poder e das normas jurídicas dentro de um Estado, assim como para en-
tender que essas disputas por interesse também acontecem no plano internacional.

4.3 A contra-hegemonia
Após o estudo do conceito de hegemonia e sua importância na compreensão do conceito de
Estado e na formação das normas jurídicas, é possível questionar: os grupos subalternos aceitam a
superioridade do grupo hegemônico sem questionamentos?
É possível relacionar o conceito de hegemonia com o processo de globalização. Ao tratar
sobre a hegemonia entre nações, conclui-se que as nações hegemônicas determinam seus interes-
ses particulares como interesses globais. Sobre esse tema, o professor e sociólogo Boaventura de
Souza Santos (2002) irá trabalhar ideias que reúnem esse questionamento inicial da existência de
uma passividade dos grupos subalternos perante o grupo hegemônico e a relação desse tema com
a democracia.
Santos (2002) utiliza do conceito de hegemonia de Gramsci para tratar sobre a democracia
na sociedade contemporânea. Para ele, as doutrinas que tratam sobre a democracia podem ser
divididas em hegemônicas e contra-hegemônicas.
Os processos hegemônicos, segundo ele, são orientados para a acumulação e
apropriação capitalistas, e a sua hegemonia assenta-se na identificação dos in-
teresses do bloco no poder com interesses gerais, ou seja, em um consenso que
favorece os grupos dominantes. Os processos contra-hegemônicos, por sua vez,
agrupam os diversos movimentos locais, por vezes articulados globalmente, que
lutam contra os efeitos perversos da globalização hegemônica e são orientados
para a solidariedade e o bem comum. (MIRANDA; MERLADET, 2012, p. 12)
56 Sociologia Jurídica

Assim, os processos contra-hegemônicos organizam-se porque entendem que o Estado não


conseguiu construir sociedades baseadas na liberdade e igualdade, pois ignoraram o ideal de so-
berania do povo.
Para Santos (2002) de acordo com Miranda e Merladet (2012), esses processos contra-
-hegemônicos possuem algumas características centrais:
• a expansão do conceito de opressão, sendo que a exclusão social diz respeito não apenas a
uma classe e sim a toda a humanidade, e por isso, as lutas emancipatórias devem ser plurais;
• a exigência de equivalência entre a igualdade e a diferença, os indivíduos têm o direito
de expressar a sua pluralidade em condições iguais de direitos e dignidade e têm de ser
tratados como diferentes quando a igualdade os oprime;
• a valorização da via democrática, participativa, de todos os grupos e indivíduos, mesmo
os que se encontram mais baixos na hierarquia social, visando a conquista do poder e para
a realização de inovações no Estado, como a construção de vias mais diretas;
• a construção de um novo conceito, baseado da participação do cidadão pertencente aos
grupos subalternos, em todo o mundo, que busquem ações de combate à opressão em
todas as estruturas de desigualdade de poder.
Esses processos contra-hegemônicos buscam discutir e (re)significar a democracia com base
em maior participação social, dando maior legitimidade a uma democracia participativa. A demo-
cracia passa a ser vista como uma forma de exercício do poder popular, mesmo dos grupos subalter-
nos.“Significa também criar novas formas de representação, que sejam capazes de incluir agendas
de identidades específicas, de minorias na nação como, por exemplo, o reconhecimento de movi-
mentos sociais como novos e legítimos atores políticos” (MIRANDA; MERLADET, 2012, p. 18).
E para finalizar, as palavras de Estanque (2006):
uma das contribuições dos movimentos sociais novos ou renovados da atuali-
dade tem sido a de ampliar os espaços onde se dão relações horizontais e dialó-
gicas entre as pessoas, espaços onde se desenvolve uma cultura cívica, ou uma
cidadania social para o século XXI, mais ativa, participativa, politizada e crítica,
capaz de interpelar os poderes instalados.
Assim, os grupos podem se organizar para a busca pela hegemonia, mas os grupos subal-
ternos, que não são hegemônicos, também podem se organizar para um processo de luta contra a
hegemonia, isso é, formar um processo contra hegemônico.

Considerações finais
Neste capítulo, foi analisado como os grupos se formam e se organizam em uma sociedade.
Também foi estudado como esses grupos sociais podem influenciar na formação das normas jurídicas.
O conceito de hegemonia foi estudado e relacionado com o Estado, a sociedade e os gru-
pos sociais. Verificou-se a abrangência hegemonia no âmbito nacional e no âmbito internacional.
Também foi possível estudar a existência de processo de contra-hegemonia.
Grupos sociais e hegemonia 57

Ampliando seus conhecimentos


O texto abaixo é um trecho do capitulo intitulado “Hegemonia e contra hegemonia na
América Latina” de autoria de Daniel Campione, que faz parte do livro intitulado Ler Gramsci,
entender a realidade, organizado por Carlos Nelson Coutinho e Andrea de Paula Teixeira, publi-
cado pela Editora Civilização Brasileira em 2003.

Hegemonia e contra-hegemonia na América Latina


(CAMPIONE, 2003, p. 113-125)

O conceito de hegemonia “vulgarizou-se” com grande frequência, dando lugar a uma dupla
simplificação. Por um lado, estabeleceu-se uma contraposição binária entre hegemonia e
ditadura, pela qual uma não existiria se existisse a outra. Por outro lado, a partir do reco-
nhecimento bem mais que metafórico do par base-estrutura, passou-se a tratar a hegemonia
como uma categoria referida exclusivamente à “superestrutura” e, no interior dela, à esfera
ideológico-cultural, ou à “sociedade civil” (por sua vez interpretada equivocadamente como
contraposta ao estatal). Uma releitura minimamente atenta do pensamento gramsciano per-
mite desbaratar esse esquema.
Os componentes de hegemonia e de coerção coexistem no tempo e no espaço, como compo-
nentes da “supremacia” de uma classe que passa a ser dirigente sem deixar de ser “dominante”
(isto é, dotada de poder coercitivo) e exerce seu poder sobre um espaço social mais amplo que
o dos aparatos estatais formalmente reconhecidos como tais, dando lugar à configuração de
uma sociedade em que, como disse o próprio Gramsci, há democracia na relação com alguns
setores sociais e ditadura em face de outros.
A distinção que Gramsci efetua entre sociedade civil e sociedade política tem uma finalidade
heurística, como caminho para analisar os diferentes mecanismos de um campo e de outro,
mas não assimila, como o faz a teoria liberal, sociedade política a Estado e sociedade civil a não
Estado: “deve-se notar que na noção geral de Estado entram elementos que devem ser reme-
tidos à noção de sociedade civil (no sentido, seria possível dizer, de que Estado + sociedade
política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção)” (CC, 3,24).
Em Gramsci, a hegemonia tem múltiplas dimensões. Está claro, porém, em primeiro lugar, que
a “direção intelectual e moral” parte de grupos sociais com papel determinado na vida econô-
mica, para “hegemonizar” outros grupos que desempenham papéis igualmente determinados.
Em segundo lugar, é igualmente claro que a catarse – que eleva a classe ao plano ético-político
– se assenta no campo econômico-corporativo, o que supõe uma série de sacrifícios e compro-
missos, por sua vez instáveis, dinâmicos, que não podem desconhecer o papel fundamental,
originado no mundo da produção, da classe que aspira a ser “dirigente”.
Outro arco de complexidades é proporcionado pela possibilidade de que se produza uma hege-
monia alternativa, ou contra hegemonia. O grupo subalterno só pode se converter em hegemô-
nico passando do plano econômico-corporativo ao plano ético-político (combinação na qual
o termo “ético” indica bem mais a dimensão intelectual e moral, e “político” indica o controle
do aparato do Estado). Desse modo, ele pode apresentar seus interesses num plano “universal”,
mas não tem como excluir aquele necessário embasamento econômico-corporativo.
58 Sociologia Jurídica

Atividades
1. Explique a correlação existente entre um grupo convergente e um grupo divergente.

2. Para Gramsci, o que é a hegemonia? Como esse conceito pode ser utilizado na análise da
formação das normas jurídicas?

3. Explique o que é o Estado ampliado no entendimento de Gramsci.

4. Para Santos, qual a relação entre a contra-hegemonia e a democracia?

Referências
BRASIL. Lei n. 12.651, de 25 de maio de 2012. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF,
28 maio 2012. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12651.htm>.
Acesso em: 19 dez. 2017.

______. Lei n. 13.104, de 9 de março de 2015. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 10 mar.
2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/lei/L13104.htm>. Acesso
em: 19 dez. 2017.

CAMPIONE, Daniel. Hegemonia e contra hegemonia na América Latina. In: COUTINHO, Carlos Nelson;
TEIXEIRA, Andréa de Paula. Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

DIAS, Reinaldo. Introdução à Sociologia. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2010.

ESTANQUE, Elísio. A questão social e a democracia no século XXI. Participação cívica, desigualdades so-
ciais e sindicalismo. Revista Finisterra, Lisboa, v. 55-56-57, 2006.

FONTANA, Benedetto. Hegemonia e nova ordem mundial. In: COUTINHO, Carlos Nelson; TEIXEIRA,
Andréa de Paula. Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. v. 3. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2000.

MIRANDA, Isabella Gonçalves; MERLADET, Fábio André Diniz. Uma apresentação crítica dos conceitos
de globalização hegemônica e contra hegemônica à luz das novas manifestações populares internacionais.
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 3, p. 7-24, 2012.

OLIVEIRA, Pérsio Santos de. Introdução à Sociologia. São Paulo: Ática, 2003.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Fórum Social Mundial: manual de uso. São Paulo: Cortez, 2002.

SCHLESENER, Anita Helena. Hegemonia e cultura: Gramsci. Curitiba: Editora UFPR, 2001.
5
Direito e ideologia

Este capítulo tem por objetivo possibilitar a discussão sobre a ideologia. Esse tema permite
um espaço de debate sobre questões como: o que é ideologia? Existe ideologia na sociedade atual?
Como se forma uma ideologia? Há relação entre a ideologia e o Direito?
Dessa forma, essas e outras questões serão estudadas em conformidade com importantes
autores, permitindo a obtenção de respostas e aprofundamento sobre o tema.

5.1 Ideologia como falseamento da realidade


Antes de começar este estudo, deve-se questionar, o que é ideologia?
De acordo com Marilena Chaui (2008, p. 25), a ideologia é um termo inventado por Destutt
de Tracy, em 1801, na obra Elementos de ideologia, com o bjetivo de entendê-la como a ciência da
gênese das ideias, “tratando-as como fenômenos naturais que exprimem a relação do corpo huma-
no, enquanto organismo vivo, com o meio ambiente” e junto com o médico Cabanis elaboram um
modelo explicativo para a formação das ideias por meio das faculdades sensíveis: querer (vontade),
julgar (razão), sentir (percepção) e recordar (memória).
Esses autores ficaram conhecidos como ideólogos, mas eram pensadores críticos que que-
riam explicar a formação de todas as ideias humanas a partir de estudos materialistas, concretos e
não com explicações invisíveis ou espirituais.
O objetivo do instituto era realizar a ambição do Iluminismo: assessorar os
governantes na tarefa de legislar uma nova ordem social, uma ordem racional.
E o método proposto para isso era recorrer a um conhecimento científico
preciso da maneira como se formam as ideias na mente humana de modo a
garantir que apenas ideias corretas surgissem, ideias com a chancela da razão.
(BAUMAN, 2000, p. 114)

Chaui (2008) faz uma síntese histórica da origem da ideologia, mostrando que os pensado-
res ideólogos apoiaram Napoleão Bonaparte em sua tomada do poder francês, porque acreditavam
que ele seria um governante liberal e que daria continuidade aos ideais da Revolução Francesa.
Enquanto Cônsul, ele nomeou diversos ideólogos como senadores ou tribunos que, ao perceberam
que ele estava restituindo o poder monárquico, o que era criticado por eles, passaram a se opor ao
governante. Diante da perda do apoio deles, Bonaparte excluiu-os do senado e fechou a Academia
que coordenavam e decretou a fundação da nova Universidade Francesa, na qual nomeou para
os cargos somente pensadores que eram opositores àqueles. Em 1812, num discurso de Napoleão
ao Conselho de Estado declarou: “Todas as desgraças que afligem nossa bela França devem ser
atribuídas à ideologia, essa tenebrosa metafísica que, buscando com sutilezas as causas primeiras,
quer fundar sobre suas bases a legislação dos povos, em vez de adaptar as leis ao conhecimento do
coração humano e às lições da história”. A partir desses fatos, o termo ideologia e ideólogo passam
a ter um caráter pejorativo.
60 Sociologia Jurídica

Na obra Curso de Filosofia Positiva, Augusto Comte (1798-1857) utilizou a palavra ideolo-
gia com dois significados diferentes: o primeiro retomando o conceito original, isto é, a ideologia
como uma atividade filosófica-científica que busca a formação das ideias na relação entre o corpo
humano e a natureza, tendo por base as sensações; e o segundo significado passa a entender a ideo-
logia como o conjunto das ideias de uma época, como uma “opinião geral” (CHAUI, 2008).
Na obra As regras do método sociológico, Émile Durkheim se refere à ideologia como os co-
nhecimentos da sociedade que não estavam de acordo com os critérios da objetividade. Lembrando
que, para o autor, no estudo da Sociologia deveria haver uma separação entre as pré-noções do pes-
quisador em relação ao objeto pesquisado, pois esses preconceitos são conhecimentos subjetivos,
individuais e que não podem interferir em uma pesquisa científica.
Foi na obra A ideologia alemã, de Karl Marx e Friedrich Engels, que a palavra ideologia foi
utilizada com um significado diferente e mais abrangente para se referir ao processo pelo qual as
ideias da classe dominante tornam-se ideias dominantes de todas as classes sociais, ou seja, a classe
que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante”
(MARX; ENGELS, 2005, p. 78).
Para os autores, a produção das ideias dominantes em uma sociedade deriva da classe que é
dominante, ou seja, daquela que é a proprietária dos meios de produção.
De acordo com Chaui (2008), é possível detalhar o pensamento dos autores para que fique
mais claro:
• Em uma sociedade capitalista, há uma divisão de classes. Para Marx, essa divisão acontece
em duas classes centrais: burguesia e proletariado. Nessa sociedade, o predomínio é da
classe burguesa, que define as ideias que serão dominantes na sociedade.
• Para que as ideias da classe dominante se tornem dominantes, é preciso que a divisão en-
tre as classes não esteja clara na sociedade. Para tanto, faz-se necessário que todos sejam
vistos com características humanas comuns.
• Para que essas características supostamente comuns sejam percebidas dessa forma, é
preciso que sejam transformadas em ideias comuns. Assim, a classe dominante, além
de criar as ideias dominantes, precisa disseminá-las na sociedade, o que pode acontecer
por meio de instituições como a escola, a Igreja, os costumes, os meios de comunicação,
dentre outros.
• Como tais ideias não expressam a realidade concreta, mas apenas a aparência das coisas, é pos-
sível que essas ideias sejam consideradas apenas em sua abstração, independente da realidade,
e dessa forma, é possível inverter a realidade, considerando esta como fruto da construção das
ideias abstratas.
Esse é o processo de produção de ideologias, pois a classe dominante consegue produzir
ideias e dissimilá-las para que se tornem comuns a todos, isto é, se tornem universais e abstratas.
Nesse ponto, é possível questionar: como essas ideias comuns se transformam em ideias
dominantes e quais os objetivos desse processo?
Direito e ideologia 61

Para entender melhor, Chaui (2008) relaciona as principais determinações no processo de


formação da ideologia, entendendo determinações como as características intrínsecas de uma rea-
lidade que foram sendo produzidas pelo processo de criação dessa mesma realidade.
Vejamos como a autora estabelece essas relações:

As principais determinações que constituem o fenômeno da ideologia são:

1. A ideologia é resultado da divisão social do trabalho e, em par-


ticular, da separação entre trabalho material/manual e trabalho
espiritual/intelectual.
2. Essa separação dos trabalhos estabelece a aparente autonomia do tra-
balho intelectual face ao trabalho material.
3. Essa autonomia aparente do trabalho intelectual aparece como auto-
nomia dos produtores desse trabalho, isto é, dos pensadores.
4. Essa autonomia dos produtores do trabalho intelectual aparece como
autonomia dos produtos desse trabalho, isto é, das ideias.
5. Essas ideias autonomizadas são as ideias da classe dominante de uma
época e tal autonomia é produzida no momento em que se faz uma
separação entre os indivíduos que dominam e as ideias que domi-
nam, de tal modo que a dominação de homens sobre homens não seja
percebida porque aparece como dominação das ideias sobre todos
os homens.
6. A ideologia é, pois, um instrumento de dominação de classe e, como
tal, sua origem é a existência da divisão da sociedade em classes con-
traditórias e em luta.
7. A divisão da sociedade em classes realiza-se como separação entre
proprietários e não proprietários das condições e dos produtos do
trabalho, como divisão entre exploradores e explorados, dominantes
e dominados e, portanto, realiza-se como luta de classes. Esta não
deve ser entendida apenas como os momentos de confronto armado
entre as classes, mas como o conjunto de procedimentos institucio-
nais, jurídicos, políticos, policiais, pedagógicos, morais, psicológicos,
culturais, religiosos, artísticos, usados pela classe dominante para
manter a dominação. E como todos os procedimentos dos domina-
dos para diminuir ou destruir essa dominação. A ideologia é um ins-
trumento de dominação de classe.
8. Se a dominação e a exploração de uma classe for perceptível como vio-
lência, isto é, como poder injusto e ilegítimo, os explorados e domina-
dos se sentem no justo e legítimo direito de recusá-la, revoltando-se.
62 Sociologia Jurídica

Por este motivo, [...] é função da ideologia dissimular e ocultar a exis-


tência das divisões sociais como divisões de classes, escondendo, assim,
sua própria origem. [...].
9. Por ser o instrumento encarregado de ocultar as divisões sociais,
a ideologia deve transformar as ideias particulares da classe domi-
nante em ideias universais, válidas igualmente para toda a sociedade.
10. A universalidade dessas ideias é abstrata, pois no concreto existem
ideias particulares de cada classe. Por ser uma abstração, a ideologia
constrói uma rede imaginária de ideias e de valores que possuem base
real (a divisão social), mas de tal modo que essa base seja reconstruí-
da de modo invertido e imaginário.
11. A ideologia é uma ilusão, necessária à dominação de classe. [...]
Assim, por exemplo, quando os homens admitem que são desiguais
porque Deus ou a Natureza os fez desiguais, estão tomando a desi-
gualdade como causa de sua situação social e não como tendo sido
produzida pelas relações sociais e, portanto, por eles próprios, sem
que o desejassem e sem que o soubessem.
12. Porque a ideologia é ilusão, isto é, abstração e inversão da realidade, ela
permanece sempre no plano imediato do aparecer social. [...] A apa-
rência social não é algo falso e errado, mas é o modo como o processo
social aparece para a consciência direta dos homens. Isto significa que
uma ideologia sempre possui uma base real, só que essa base está de
ponta-cabeça: é a aparência social. Assim, por exemplo, a sociedade
burguesa aparece em nossa experiência imediata como estando forma-
da por três tipos diferentes de proprietários: o capitalista, proprietário
do capital; o dono da terra, proprietário da renda da terra; e o traba-
lhador, proprietário do salário. Se todos são proprietários, embora de
coisas diferentes, então todos os homens dessa sociedade são iguais e
possuem iguais direitos. Enquanto não ultrapassarmos essa aparência e
procurarmos o modo como realmente e concretamente são produzidos
esses proprietários pelo sistema capitalista, não poderemos compreen-
der que o salário não é a propriedade do trabalhador, mas é o trabalho
não pago pelo capitalista, que a renda não vem da terra, mas de sua
transformação em capital pelo trabalho não pago do camponês ou dos
mineiros, e que, finalmente, só o capital é efetivamente propriedade.
Enquanto não tivermos essa compreensão histórica do processo real,
a ideia de igualdade não só parecerá verdadeira, mas ainda possuirá
base real, ou seja, a maneira pela qual os homens aparecem no modo de
produção capitalista. É neste sentido que se deve entender a ideologia
como ilusão, abstração e inversão.
Direito e ideologia 63

13. A ideologia não é um “reflexo” do real na cabeça dos homens, mas o


modo ilusório (isto é, abstrato e invertido) pelo qual representam o
aparecer social como se tal aparecer fosse a realidade social. Se a ideo-
logia fosse um simples “reflexo invertido” da realidade na consciência
dos homens, a relação entre o mundo e a consciência não seria dialé-
tica (isto é, contraditória ou de negação interna), mas seria mecânica
ou de causa e efeito [...]. (CHAUI, 2008, p. 92-97).

Você já parou para pensar em algum exemplo de ideologia presente na sociedade atual? Já
pensou que a ideia de empreendedorismo pode ser uma ideologia?
Por exemplo, o caso de um trabalhador que nos dias atuais se torna um empreendedor vi-
sando a sua colocação e sobrevivência no mercado de trabalho, precavendo-se das profundas alte-
rações que vêm sofrendo e que têm afetado diretamente o assalariado.
Conforme visto, a ideologia tem a função de encobrir a divisão de classes e evitar o conflito
existente entre elas. Ao difundir a ideia do empreendedorismo, há a propagação de um sentimento
de autonomia e liberdade, que deve ser incorporado nas relações de trabalho, transmitindo a ideia
de flexibilidade dessas relações. Assim, o trabalhador ao internalizá-las, e ao se tornar um em-
preendedor, não compreende que está ocultando a divisão de classes, pois ser empreendedor pode
dar a aparência de ele ser um membro da classe burguesa. Mas na realidade, ele é um trabalhador
em uma outra forma de trabalho, que não a assalariada.
No entanto, a ideia repassada à sociedade é que todos podem ser empreendedores e obter
sucesso em suas atividades, mas isso interessa à classe dominante como uma forma de controle da
classe trabalhadora, que então, ao se tornar empreendedor e não trabalhador, o indivíduo deixa de
reivindicar como classe trabalhadora, não luta por melhores salários, jornada de trabalho, melho-
res condições de trabalho, pois ele não se entende mais trabalhador, entende-se como empreende-
dor. Mas, se o trabalhador fizer uma análise mais profunda do mundo do trabalho e se questionar
sobre a ideia de empreendedorismo, pode romper com essa aparência e chegar à percepção de que
é uma ideologia, pois estava vendo apenas uma aparência da realidade, é uma realidade invertida.

5.2 As várias perspectivas da ideologia


Além da concepção originária e marxista da ideologia, há também outros pensadores que se
dedicaram a esse estudo.
Louis Althusser (1918-1990) foi um pensador que nasceu na Argélia, quando ainda era uma
colônia francesa. Ainda jovem, foi morar na França, onde se formou em Filosofia. Suas principais
obras são: Os aparelhos ideológicos do Estado, Para Marx, Ler o Capital, O futuro dura muito tempo.
Esse autor foi um pensador que associou o conceito de ideologia ao Estado. Para Althusser
(1970), é preciso distinguir o poder do Estado e os aparelhos do Estado. Os aparelhos do Estado
compreendem dois corpos: o corpo das instituições que formam os aparelhos repressivos do
64 Sociologia Jurídica

Estado e o corpo das instituições que representam os aparelhos ideológicos do Estado. Esses apa-
relhos têm a função de reprodução da força de trabalho, não apenas no aspecto da qualificação,
mas também na sujeição ao sistema produtivo existente.
a. Aparelhos Repressivos de Estado (ARE): são constituídos pelo governo, administração,
polícia, exército, tribunais, prisões, dentre outros. Esses aparelhos são denominados de
repressivos, porque atuam com base na violência.
b. Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE): são constituídos por instituições distintas e
especializadas:
• AIE religioso – o sistema das diferentes igrejas;
• AIE escolar – o sistema das diferentes escolas públicas e privadas;
• AIE familiar – além de ser considerado um aparelho ideológico do Estado, a famí-
lia também é importante na reprodução da força de trabalho e como uma unidade
de consumo;
• AIE jurídico – o Direito faz parte tanto dos aparelhos repressivos como dos apare-
lhos ideológicos do Estado;
• AIE político – o sistema político que fazem parte os diferentes partidos;
• AIE sindical;
• AIE da informação – imprensa, rádio-televisão, etc.;
• AIE cultural – Letras, Belas Artes e desportos.
Conforme a relação citada, percebe-se a pluralidade dos aparelhos ideológicos do Estado, e
o conjunto deles forma uma unidade.
No que tange às diferenças entre os dois tipos de aparelhos do Estado, pode-se verificar que
na primeira diferença os aparelhos repressivos podem ter caráter público, enquanto que a maioria
dos aparelhos ideológicos têm caráter privado. A diferença fundante está em que os aparelhos re-
pressivos funcionam pela violência e os aparelhos ideológicos pela ideologia (ALTHUSSER, 1970).
Para Althusser (1970), os aparelhos repressivos funcionam massivamente pela violência,
mas têm também um caráter ideológico; enquanto que os aparelhos ideológicos funcionam de
forma predominante pela ideologia, mas também podem ter um caráter de violência. Assim, há um
duplo funcionamento, um prevalecente e um secundário.
Pode-se exemplificar esse duplo funcionamento dos aparelhos ideológicos do Estado. O pri-
meiro exemplo é a polícia. A polícia atua de forma preponderante pelo uso da violência, mas atua
também pelos valores que projeta na sociedade, assegurando sua coesão e reprodução. A escola,
por sua vez, atua de forma prioritária pelo uso da ideologia, mas também faz uso da repressão com
métodos de punição e exclusão como forma de preparar seus alunos.
Esse autor afirma que a ideologia deve ser entendida como um sistema de lógica e de repre-
sentações (ideias, conceitos, imagens etc.) que possuem existência e papel histórico, devendo ser
pensada a partir de instituições reais.
Em sua teoria geral, seria na ideologia que os homens representam o mundo
para si mesmos, porém este nunca é tal como ele existe efetivamente, mas sim
um mundo marcado pela intervenção humana. O que é nele representado é
Direito e ideologia 65

sua relação com as condições reais de existência, e não as condições reais de


existência efetivamente. É esta relação que está no centro de toda representação
ideológica. Os indivíduos pouco compreendem o quão material é a relação deles
com o real. (CÉSAR, 2013)

Desta forma, para Althusser (1970) fica evidente a relação entre o Direito e a ideologia, pois
o autor inclui o sistema jurídico como aparelho ideológico e repressivo do Estado Desta forma,
cabe se questionar como é possível verificar o papel ideológico do Direito na sociedade?
Partindo da premissa que o Direito tem por papel a organização da sociedade e o disciplina-
mento do comportamento dos indivíduos, e se no Direito, são incorporados os interesses da classe
dominante, então, pode-se concluir que as normas jurídicas vão organizar e disciplinar comporta-
mentos a partir dos interesses da classe dominante.
Portanto, para o autor, o Direito não é neutro, mas tem em sua essência uma função dentro
da superestrutura da sociedade que é de repasse e sedimentação de determinadas formas de pensar
e agir.
Outro autor que estudou o tema da ideologia foi o filósofo, jornalista, crítico literário e po-
lítico italiano Antonio Gramsci (1891-1937). Suas principais obras foram: Cadernos do Cárcere,
Concepção dialética da história, Escritos políticos, Os intelectuais e a organização da cultura.
No estudo da ideologia, Gramsci teve como ponto de partida a realidade concreta, na qual,
além das condições materiais, devem ser levadas em consideração as tensões menos visíveis e exis-
tentes nas diversas organizações políticas.
Gamsci afirma que a ideologia é socialmente coletiva, porque os indivíduos necessitam de
um mecanismo balizador de conduta e ela é “o terreno sobre o qual os homens se movimentam,
adquirem consciência de sua posição, lutam etc.” (GRAMSCI, 1978, p. 377).
De acordo com Semeraro (2001, p. 101), “Gramsci não consegue imaginar uma população
inteira mergulhada em uma névoa ideológica homogênea e paralisante”. Logo, difere da concep-
ção marxista e da althusseriana, pois entende a ideologia como as ideias presentes na sociedade,
podendo estar presente nas mais diversas áreas da vida social. Esse estudo ainda afirma que a
ideologia para Gramsci é a manifestação concreta de como as pessoas entendem o mundo, essas
ideologias podem se tornar tanto instrumento de dominação, quanto instrumento de promoção
dos grupos subalternos. Partindo das reflexões de Marx, Gramsci aponta que a ideologia da classe
dominante se torna vulgar no senso comum do cidadão médio. Sendo assim, o poder não é exerci-
do necessariamente pela força física ou violência, mas pela aceitação dessas ideias pelos indivíduos
por meio da internalização da concepção de mundo da classe dominante.
Assim, as ideologias podem se tornar tanto instrumento de dominação como de promoção
dos grupos subalternos, pois Gramsci (1978) rejeitou explicitamente uma noção negativa de ideo-
logia (dominação, alienação).
O autor propõe uma distinção entre as ideologias, podendo ser:
1. Ideologias arbitrárias, desejadas, planejadas – é necessário deixar a ideologia clara e
combatê-la, pois ”é expressão direta de uma hegemonia que visa naturalizar o sistema
66 Sociologia Jurídica

e universalizar a crença na sua inevitabilidade” (SEMERARO, 2001, p. 101).Essas ideo-


logias por serem representação de grupos hegemônicos que buscam a perpetuação no
poder, criam de forma dissimulada ideias que vão se perpetuar na sociedade, sem no
entanto, representar uma imposição.
2. Ideologias historicamente orgânicas – são aquelas reconhecidas pelos indivíduos e que
independem de um ponto de vista particular de um grupo. Essas ideologias constituem
o campo em que se realizam os avanços da ciência. Este é um conhecimento que é cons-
truído e se amplia a partir de uma crítica, assim, ela se corrige de forma continuada, por
isso a ciência é também uma ideologia histórica (KONDER, 2002). Para Gramsci (1978,
p. 328), as ideologias historicamente orgânicas são “uma concepção do mundo implici-
tamente manifesta na arte, no Direito, na atividade econômica e em todas as manifesta-
ções da vida individual e coletiva”.
Assim, para Gramsci (1978, p. 377), é por meio da ideologia que uma classe pode exercer sua
hegemonia sobre outras, assegurando a aprovação da maioria dos indivíduos em uma sociedade.
A ideologia “organiza a ação pelo modo segundo o qual se materializa nas relações, instituições e
práticas sociais e informa todas as atividades individuais e coletivas”. No entanto, para o autor, é
possível alterar esse quadro de domínio ideológico de uma classe sobre outra. Para tanto, é neces-
sário que haja um movimento intelectual de transformação.

5.3 O papel dos intelectuais e a ideologia


Para Gramsci, os intelectuais têm um papel fundante na formação da ideologia e na constru-
ção das ideias que serão predominantes ou não na sociedade, mas acima de tudo, na possibilidade
de transformação e de mudanças, pois
é necessário aprender a criar um distanciamento crítico do saber “acumulado” e
“repassado” oficialmente, visto não como óbvio e natural, mas descoberto como
organizado e administrado por uma classe que visa precisos objetivos políticos.
A partir desta consciência, as classes populares e seus intelectuais, passam a de-
marcar os elementos de ruptura e de superação em relação às concepções domi-
nantes, a operar uma nova síntese na medida em que adquirem “uma progressiva
consciência da própria personalidade histórica”. (SEMERARO, 2001, p. 96)

Dessa forma, cada um tem a possibilidade de criar novas ideias e produzir conhecimentos
que podem se tornar hegemônicos, ou não, em uma sociedade.
Compreendendo que todos podem ser intelectuais, Gramsci (2000a) faz uma distinção entre
duas categorias:
1. Intelectual tradicional – acredita estar desvinculado das classes sociais, pois se entende
como pensador autônomo e independente. “Os intelectuais são os ‘prepostos’ do grupo
dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo
político [...]” (GRAMSCI, 2001, p. 21). Por exemplo: os filósofos, os cientistas e os teóricos.
2. Intelectual orgânico – é proveniente da classe social que o gerou, tornando-se seu espe-
cialista, organizador e homogeneizador. Pode pertencer à classe dominante ou às classes
Direito e ideologia 67

subalternas. Podendo citar como exemplos: os intelectuais políticos e os dirigentes de


organizações sindicais e de movimentos sociais.
Sobre os intelectuais tradicionais, Gramsci (2001) irá afirmar a sua necessidade através da
sua relação com as classes dominantes, ao reconhecer sua importância no desenvolvimento do
conhecimento e de técnicas voltadas para a manutenção dessas classes no poder.
Formam-se assim, historicamente, categorias especializadas para o exercício da
função intelectual; formam-se em conexão com todos os grupos sociais, mas
sobretudo em conexão com os grupos sociais mais importantes, e sofrem ela-
borações mais amplas e complexas em ligações com o grupo social dominante.
Uma das características mais marcantes de todo grupo que se desenvolve no
sentido do domínio é sua luta pela assimilação e pela conquista “ideológica” dos
intelectuais tradicionais, assimilação e conquista que são tão mais rápidas e efi-
cazes quanto mais o grupo em questão for capaz de elaborar simultaneamente
seus próprios intelectuais orgânicos. (GRAMSCI, 2001, p. 18-19)
Gramsci reconhece a importância dos intelectuais nas classes subalternas, pois acredita
que a intelectualidade presente nessa classe pode ser a forma de organização e luta de seus inte-
resses particulares.
A partir desta consciência, as classes populares e seus intelectuais passam a de-
marcar os elementos de ruptura e de superação em relação às concepções domi-
nantes, a operar uma nova síntese, na medida em que adquirem “uma progressiva
consciência da própria personalidade histórica”. O “novo intelectual” (que nunca é
um indivíduo isolado, mas um inteiro grupo social), enquanto trabalha para ana-
lisar criticamente e “desorganiza” os projetos dominantes, se dedica a promover
uma “nova inteligência social” capaz de pensar a produção, a ciência, a cultura, a
sociedade na ótica das classes trabalhadoras. (SEMERARO, 2001, p. 97)
Para Schlesener (2001, p. 3), a presença de ideias hegemônicas em uma sociedade, seja na
esfera política ou cultural, se dá nos meios intelectuais. Em cada grupo social, a partir de seu nas-
cimento dentro das estruturas econômicas de uma sociedade, também são criadas uma ou mais
camadas de intelectuais que “dão à classe homogeneidade ideológica e política, unificando e dando
coerência à ação econômica, social e política”.
Tal atuação se desenvolve no seio da sociedade civil e da sociedade política;
como elaboradores das ideologias, ao mesmo tempo que dão ao grupo que
representam consciência de sua função histórica, conseguem o consentimento
“espontâneo” das massas pela formação de uma concepção de mundo vivida no
cotidiano e veiculada nas instituições da sociedade civil; como “comissionários”
da classe dominante, exercem uma atividade coercitiva e disciplinar através dos
mecanismos da sociedade política.” (SCHLESENER, 2001, p. 3)

Assim, Gramsci (2001) afirma que caberia aos intelectuais orgânicos homogeneizar a classe
e elevá-la à consciência de sua própria função histórica, por meio da investigação de sua inserção
no modo de produção, isto é, caberia aos intelectuais orgânicos realizar a passagem de uma con-
cepção de senso comum acrítico para um senso comum renovado, composto por um pensamento
crítico e transformador.
O intelectual orgânico do proletariado é um persuasor permanente, pois é a partir da
sua atuação política que poderá mostrar as contradições que existem na sociedade e agir para
68 Sociologia Jurídica

desmistificar o poder e as relações de dominação, despertando a consciência crítica e autônoma,


criando uma nova concepção de mundo (SCHLESENER, 2001, p. 3).
Gramsci reconhece que o proletariado, como classe, é pobre de elementos or-
ganizativos e quando forma seus intelectuais orgânicos, o faz árdua e lentamen-
te; suas possibilidades de organização política são reduzidas e, muitas vezes,
não consegue superar o nível econômico-corporativo; enfrentar a formidável e
bem organizada estrutura ideológica da classe dominante é tarefa difícil e nem
sempre fadada ao sucesso. As perspectivas de mudança se colocam a partir de
próprio esforço das classes dominadas em criar meios de organização política
e cultural, em romper a influência da classe dominante tomando progressiva-
mente “consciência da sua própria personalidade histórica”, em buscar o apoio
de classes politicamente aliadas”. (SCHLESENER, 2001, p. 3)

Dessa forma, para que uma sociedade se construa de uma maneira realmente democráti-
ca, deve existir não apenas o operário manual, qualificado, especialista para o trabalho, mas deve
se construir uma nova forma de pensar a sociedade, para isso, é necessário que esse especialista
esteja inserido na vida prática como um organizador e disseminador dessas novas ideias e assim
tornar-se um dirigente. Esse novo intelectual será formado em um esforço da sociedade de criar
uma nova escola que propicie a compreensão dialética da sociedade e sua história, pois ao invés
de se formar apenas operários, como nas escolas tradicionais, as novas escolas formarão operários
qualificados, cidadãos que serão os governantes da sociedade (GRAMSCI, 2001).
O modo de ser do novo intelectual não pode mais consistir na eloquência, mo-
tor exterior e momentâneo dos afetos e das paixões, mas numa inserção ativa na
ida prática, como construtor, organizador, “persuasor permanente”, já que não
apenas orador puro – mas superior ao espírito matemático abstrato; da técnica-
-trabalho, chega à técnica-ciência e à concepção humanista histórica, sem a
qual permanece “especialista” e não se torna “dirigente” (especialista + político).
(GRAMSCI, 2001, p. 53).

Desta forma, o dirigente é entendido por Gramsci como uma forma mais abrangente de
cidadania, pois se cada indivíduo pode ser um dirigente, é porque ele tem a possibilidade de con-
cretamente se tornar um autodirigente, e conjuntamente com os demais indivíduos construir uma
sociedade realmente democrática, na ação e no pensar, tendo nesse processo, um papel fundamen-
tal, a construção de uma nova educação, mais crítica e mais participativa.

Considerações finais
Neste capítulo, foi analisada a ideologia, e como ela é formada em uma sociedade. Esse tema
foi abordado a partir de vários autores que se dedicaram ao seu estudo.
Cabe destacar a formação de ideias que não correspondem à realidade concreta, mas mos-
tram uma realidade invertida, tendo como propósitos o controle e a dominação. E o Direito como
sendo um fenômeno que se origina da sociedade também é impactado por essas ideologias. Essas
influências podem acontecer no âmbito jurídico desde a sua formação, nos projetos de elaboração
das normas jurídicas, como também em seu processo interpretativo.
Direito e ideologia 69

Ampliando seus conhecimentos


O texto abaixo é parte do capítulo intitulado Crítica e ideologia da obra denominada Cultura
e democracia: o discurso competente e outras falas de autoria de Marilena Chaui.

Crítica e ideologia
(CHAUI, 2006, p. 30-31)

Nesse primeiro nível de conceituação podemos dizer que a ideologia faz com que as ideias
(as representações sobre o homem, a nação, o saber, o poder, o progresso, etc.) expliquem as
relações sociais e políticas, tornando impossível perceber que tais ideias só são explicáveis
pela própria forma da sociedade a da política. Na ideologia, o modo imediato do aparecer (o
fenômeno) social é considerado como o próprio ser (a realidade social). O aparecer social é
constituído pelas imagens que a sociedade e a política possuem para seus membros, imagens
consideradas como a realidade concreta do social e do político. O campo da ideologia é o
campo do imaginário, não no sentido da irrealidade ou da fantasia, mas no sentido de con-
junto coerente e sistemático de imagens e representações tidas como capazes de explicar e
justificar a realidade concreta. Em suma: o aparecer social é tomado como o ser do social. Esse
parecer não é uma “aparência” no sentido de que seria falso, mas é uma aparência no sentido
de que é a maneira pela qual o processo oculto, que produz e conserva a sociedade, se mani-
festa para os homens.
O passo seguinte é dado pela ideologia no momento em que ultrapassa a região em que é
pura e simplesmente a representação imediata da vida e da prática sociais para tornar-se um
discurso sobre o social e um discurso sobre a política. É o momento no qual pretende fazer
coincidir as representações elaboradas sobre o social e o político com aquilo que o social e
o político seriam em sua realidade. Nesse passo, realiza seu passe de mágica: a elaboração
do imaginário (o corpo das representações sociais e políticas) será vinculada à justificação
do poder separado, isto é, à legitimação do Estado moderno. Somente se levarmos em conta
o advento e a natureza do Estado moderno, poderemos compreender a função implícita ou
explícita da ideologia ou, para usar os termos clássicos, a tentativa de fazer com que o ponto
de vista particular da classe que exerce a dominação apareça para todos os sujeitos sociais e
políticos como universal e não como interesse particular de uma classe determinada. Para
entendermos a ideologia, que fala sobre as coisas, sobre a sociedade e sobre a política, pre-
tendendo dizer o que são em si e pretendendo coincidir com elas, precisamos vinculá-las ao
advento da figura moderna do Estado, enquanto um poder que se representa a si mesmo como
instância separada do social e, na qualidade de separado, proporciona à sociedade aquilo que
lhe falta primordialmente.
O que falta primordialmente à sociedade? Falta-lhe unidade, identidade e homogeneidade.
O social histórico é o social constituído pela divisão em classes e fundado pela luta de classes.
Essa divisão, que faz, portanto, com que a sociedade seja, em todas as suas esferas, atravessada
por conflitos e por antagonismos que exprimem a existência de contradições constituídas do
próprio social, é o que a figura do Estado tem como função ocultar. Aparecendo como um
poder uno, indiviso, localizado e visível, o Estado moderno pode ocultar a realidade social,
na medida em que o poder estatal oferece a representação de uma sociedade, de direito,
homogênea, indivisa, idêntica a si mesma, ainda que, de fato, esteja dividida. A operação
ideológica fundamental consiste em provocar uma inversão entre o “de direito” e o “de fato”.
70 Sociologia Jurídica

Isto é, no real, de direito e de fato, a sociedade está internamente dividida e o próprio Estado é
uma das expressões dessa divisão. No entanto, a operação ideológica consiste em afirmar que
“de direito” a sociedade é indivisa, sendo prova da indivisão a existência de um só e mesmo
poder estatal que dirige toda a sociedade e lhe dá homogeneidade. Por outro lado, a ideologia
afirma que “de fato” (e infelizmente) há divisões e conflitos sociais, mas a causa desse “fato
injusto” deve ser encontrada em “homens injustos” (o mau patrão, o mau trabalhador, o mau
governante, as más alianças internacionais etc.). Assim, a divisão constitutiva da sociedade de
classe reduz-se a um dado empírico e moral.

Atividades
1. No entendimento de Chaui, como se dá o processo de formação de uma ideologia e quais são
principais aspectos de sua formação?

2. Para Althusser, como é possível entender a relação entre o Direito e a ideologia?

3. De acordo com o pensamento de Gramsci, quais as diferenças entre a ideologia arbitrária e


a ideologia historicamente orgânica?

4. No pensamento de Gramsci, os intelectuais têm um papel relevante no que se refere à ideo-


logia. Explique qual o papel dos intelectuais orgânicos em uma sociedade.

Referências
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1970.

BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

CESAR. Guillermo Rojas de Cerqueira. O conceito de ideologia e a ideologia do direito em Althusser. RCD
- Revista Crítica do Direito, n. 2, v. 47, abril/maio de 2013. Disponível em: <https://sites.google.com/a/criti-
cadodireito.com.br/revista-critica-do-direito/todas-as-edicoes/numero-2---volume-47/o-conceito-de-ideo-
logia-e-a-ideologia-do-direito-em-althusser>. Acesso em: 07 de dez. 2017.

CHAUI, Marilena. O que é ideologia. 2. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 2008.

______. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 2006.

DURIGUETTO, Maria Lúcia. A questão dos intelectuais em Gramsci. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n.
118, p. 265-293, jun. 2014. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext

&pid=S0101-66282014000200004&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 23 out. 17.

GRAMSCI, Antônio. Concepção Dialética da História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

______. Cadernos do cárcere, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000a. v. 1.

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______. Cadernos do cárcere, Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2001. v. 3.

______. Cadernos do cárcere, Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2000c. v. 4.


Direito e ideologia 71

MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Trad. Frank Müller. 3. ed. São Paulo: Martin Claret, 2005.

SEMERARO, Giovanni. Anotações para uma teoria do conhecimento em Gramsci. Revista Brasileira de


Educação.  Rio de Janeiro,  n. 16,  p. 95-104,  abr. 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S1413-24782001000100010&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 23 out. 17.

SCHLESENER, Anita Helena. Hegemonia e cultura: Gramsci. Curitiba: Editora UFPR, 2001.

VIDAL, Marcelo Furtado. Ideologia e interpretação na teoria pura do direito de Hans Kelsen. Revista do
Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, Belo Horizonte,v. 32, n. 62, p.: 129-144, jul./dez. 2000.
6
Controle social, violência e política

Temas como o controle social e a violência estão constantemente nas mídias. Por isso, com-
preender a relação entre o controle social e a violência é fundamental para uma melhor análise
do Direito.
Você já pensou sobre o que é controle social? Quais os mecanismos que existem na socie-
dade para o exercício do controle social? O que é a violência? A violência é a mesma coisa que o
poder? Quais as formas de violência?
Este capítulo tem como objetivos possibilitar a reflexão e o estudo sobre o que é o controle
social e como acontece na sociedade, e levantar algumas considerações acerca da violência
Por fim, será realizada uma análise sobre as possíveis relações entre a política e a violência.

6.1 O controle social e o Direito


Ao estudar o Direito, é comum encontrar a afirmação de que é uma forma de controle
social. Tal ideia pode ser verificada em diversas obras de Sociologia Jurídica – como Dias (2009)
e Brandão (2003). Mas você já parou para pensar o que é controle social?
Pode-se chamar de controle social “qualquer estrutura ou processo que sirva para impedir ou
reduzir a transgressão das normas, padrões e conduta ou desvios do comportamento social conside-
rado normal, isto é, desejável pelo grupo” (BRANDÃO, 2003, p. 170). Dessa forma, verifica-se que
em uma sociedade composta por indivíduos com interesses diferentes, a possibilidade de conflitos
e de desacordos é grande, portanto, faz-se necessário, para a própria manutenção e ordem da so-
ciedade, criar formas de controle para a permanência da sociedade em um patamar de harmonia e
convivência social.
Adelino Brandão (2003, p. 170) também afirma que o controle social pode ser entendido
como “um conjunto de valores e normas por meio das quais as tensões e conflitos entre indi-
víduos e grupos são minorados ou resolvidos, a fim de manter a solidariedade e integração do
grupo considerado”.
Nesse sentido, o controle social pode se dar pelas normas, em especial as jurídicas, que têm
entre suas características a coercitividade. Ao serem elaboradas pelo Estado, elas podem ser im-
postas à sociedade e, diante de seu descumprimento, são passíveis de aplicação de penalidades que,
se for necessário, permitem a utilização da força estatal.
O controle social também pode acontecer por via dos valores existentes em uma sociedade,
como, por exemplo: pela moral, educação, religião, opinião pública ou por meio de costumes, tabus
e superstições.
Logo, é possível classificar as formas de controle social em formais e informais, sendo:
74 Sociologia Jurídica

• Formais – institucionalizadas, acontecem de maneira sistemática, organizada, por meio


de instituições formais como o Estado, o Poder Judiciário, a polícia, a Igreja1 e o Direito.
• Informais – acontecem sem uma sistematização ou vinculação a uma instituição formal,
são acordados de maneira espontânea pelos indivíduos, se efetivam na família, na crítica
da comunidade, nas regras de boas maneiras, nos grupos profissionais ou estudantis.

6.1.1 Controle social formal


Em todas as sociedades, as normas exercem uma função importante de organização e
controle social. Nas sociedades modernas, as normas jurídicas assumem um papel de relevância,
pois são emanadas de uma instituição forte, o Estado. Ser emanado de uma instituição demons-
tra uma característica do Direito moderno, ser codificado e possuir uma autonomia individual.
Esses traços têm como finalidade facilitar o conhecimento e a aplicação das normas jurídicas.
Essa unificação do Direito adquiriu o caráter de reação contra a multiplicidade, obscuridade e
dubiedade das normas.
Dessa forma, a codificação do Direito tornou-o mais rígido e menos permeável às mudan-
ças, institucionalizando-o e atribuindo como funções principais a integração e regulação. A função
integradora do Direito supervisiona o funcionamento das demais instituições sociais, resolvendo
possíveis conflitos. A função de regulação se dá porque o Direito serve como um modelo para as
condutas e comportamentos dentro de uma sociedade.
De acordo com Reinaldo Dias (2009), a função de controle social do Direito pode ocorrer
de diferentes formas:
a. Incentivar as condutas desejáveis – o Direito pode, por meio de suas normas, promo-
ver condutas e comportamentos desejados pelo Estado e que sejam predominantes na
sociedade.
b. Desencorajar (inibir) a manifestação de uma conduta indesejável – nesse caso, o
Direito tem uma função de prevenção, antecipando ou impedindo condutas na sociedade.
c. Repressão às condutas indesejáveis – o Direito, ao reprimir condutas consideradas inde-
sejáveis na sociedade, pune o indivíduo que as praticou.
Assim, o Direito exerce seu controle por meio de instrumentos como a persuasão e a
orientação, que impactam no comportamento dos indivíduos e na organização da sociedade,
representando o exercício do poder.
Cabe destacar que, nas sociedades modernas, com a criação do Estado de Direito, a legitimi-
dade do poder se fundamentou na submissão à legalidade: “[...] quem exerce o poder político deve
estar autorizado para tanto pelo ordenamento jurídico; trata-se da legitimidade baseada na origem
do poder; outro aspecto que deve ser considerado é que esse poder deve ser exercido de forma
arbitrária, trata-se assim da legalidade no exercício do poder” (DIAS, 2009, p. 219).

1 A Igreja como forma de controle formal refere-se à entidade institucional que funciona com a sua hierarquia, regras
e formas de agir com seus seguidos, e isso acontece independente da doutrina, seja Católica, Protestante, Evangélica ou
qualquer outra que mantenha uma estrutura organizada. No entanto, ao referir-se à religião enquanto forma de controle
informal tem-se o direcionamento dos indivíduos por meio dos valores, das crenças, dos dogmas, mas desvinculados do
formalismo institucional.
Controle social, violência e política 75

Destaca ainda Dias (2009) que não se pode confundir a legalidade com a legitimidade,
enquanto a primeira está relacionada a um determinado ordenamento jurídico, a segunda está ao
poder, com determinado sistema de valores.
Assim, pode-se relacionar a legitimidade com outra função básica do Direito, que é a possi-
bilidade de garantir a segurança jurídica dentro de uma sociedade. A lei é uma forma de controle
social, pois tem como função impedir ou diminuir a existência de conflitos dentro de uma socie-
dade. Para Brandão (2003), há duas formas de conciliar ou de resolver conflitos entre indivíduos e
grupos dentro de uma sociedade: pelo uso da força ou pela regulação legal. Dessa forma, se a opção
for pela primeira, o controle da sociedade se dará pela força, o que pode não corresponder a um
ideal de justiça, assim, a segunda opção está mais adequada às sociedades democrática e de Direito.

6.1.2 Controle social informal


Para Brandão (2003), nas sociedades modernas, o controle social informal pode acontecer
por meio de instrumentos como:
• Crenças religiosas: a religião sempre teve um papel importante nas sociedades como for-
ma de controle social. Na sociedade moderna, admite-se que as religiões criam uma certa
ética de valores pela qual se institui um sistema de prêmios e castigos como uma forma
de controle do comportamento individual e grupal. Assim, se houver descumprimento
dessas normas instituídas, os indivíduos serão punidos não só neste mundo, mas também
em uma esfera extraterrena.
• Sugestão: no início do processo de socialização, os indivíduos, em suas famílias, passam
pelo processo de imitação dos comportamentos de seus familiares. Portanto, vão consti-
tuindo seus costumes, hábitos, afinidades e valores.
• Persuasão: consiste em um esforço de convencimento de outros indivíduos por meio da
pressão e dos argumentos lógicos racionais. É uma forma de controle direto sobre indi-
víduos e grupos. Na sociedade atual, está muito presente nas propagandas publicitárias
e políticas.
• Apelo emocional: é uma forma de controle social que pode ser instrumentalizada por
meio das artes. Música, escultura, cinema, teatro, esportes que influenciam a imaginação
coletiva e suas formas de agir e pensar. Os discursos de lideranças sociais também podem
ser usados como uma forma de controle social, especialmente, de lideranças políticas em
sociedades autoritárias.
• Cerimônia, ritual, liturgia: são formas de controle social que existem há muito tempo, têm
a função de integrar o indivíduo ao grupo, à organização e à sociedade. São exemplos des-
ses grupos a Maçonaria, o conclave do Papa, o tribunal do júri, as assembleias legislativas.
• Recompensa: essa forma de controle está associada a um desejo fundamental básico: o re-
conhecimento. Os indivíduos têm essa necessidade de serem reconhecidos e dessa forma
se integrarem em um grupo social. Como exemplo, pode-se citar: aplausos, premiações,
promoções e atribuições de status.
76 Sociologia Jurídica

• Humor, sátira, ridículo: essas formas de controle assumem feições diferentes dependendo
da situação. São formas de conservação dos valores sociais, tanto quanto forma de com-
bate àqueles considerados como indesejáveis. Os indivíduos têm medo de serem expostos
à situação de humor, serem satirizados ou passarem por situações que os exponham ao
ridículo. É também uma forma de alívio da tensão coletiva.
• Ameaça e advertência: podem funcionar aos fins que objetivam, mas podem gerar uma
outra consequência não prevista, por exemplo, um Estado pode punir um indivíduo que
comete alguma irregularidade, mas se não houver a punição, gera como consequência a
impunidade que acarretará em outras consequências não desejadas, como a repetição do
ato por outros indivíduos ou a desorganização do grupo.
Logo, sabe-se que o controle social pode acontecer de diversas maneiras informais, cabe agora
compreender como ele é classificado. O controle social informal externo é aquele que emana da orga-
nização de grupos sociais existentes na sociedade, por exemplo, a família; o controle social informal
interno é aquele que emana do próprio indivíduo, de sua organização mental. Essa forma de controle
social é a mais eficiente, pois o indivíduo internalizou as normas e valores sociais e ele mesmo exige
seu cumprimento; isto é, o controle e o domínio é exercido pelo indivíduo sobre si mesmo.

6.2 As várias faces da violência


É possível relacionar a violência ao poder do Estado? Você já pensou sobre esse tema?
Para Chaui (2006), existe uma relação entre a violência e o Estado.
Etimologicamente, a palavra violência deriva da palavra latina vis, que significa força, vigor,
potência, emprego da força física em intensidade. Para os clássicos greco-romanos, a palavra violên-
cia significava desvio, isto é, o desvio do curso natural das coisas pelo uso da força externa.
Para Chaui (2006), a palavra violência pode ter vários significados: a) uso da força para ir
contra a natureza de alguém, desnaturar; b) força contra a espontaneidade, coagir, constranger;
c) violação da natureza, violar; d) transgressão contra ações definidas como justas; e) ato de bru-
talidade, abuso físico ou psíquico.
Dessa forma, percebe-se que a violência é compreendida como o uso da força contra al-
guém, forçando-o a fazer algo que não faria se não fosse forçado a fazer. Para Chaui (2006, p. 342),
“a violência se opõe à ética, porque trata seres racionais e sensíveis, dotados de linguagem e liber-
dade, como se fossem coisas, irracionais, insensíveis mudos, inertes ou passivos”.
Para a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2002), a violência significa: “Uso intencional
da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa ou contra um
grupo ou uma comunidade, que resulta ou tenha grande possibilidade resultar em lesão, morte,
dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação”.
Assim, pode-se inferir dos conceitos citados que a violência é uma força externa que obriga
alguém a fazer algo que não gostaria, acarretando danos de várias ordens.
A violência, como visto, é algo abrangente e complexo, podendo-se afirmar que pode acon-
tecer de diversas formas, podendo ser física, moral, psíquica, patrimonial, sexual. No Brasil, a Lei
Controle social, violência e política 77

n. 11.340 (BRASIL, 2006), que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra
a mulher, em seu artigo 7º, define que são formas de violência doméstica e familiar contra a mu-
lher, entre outras:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integri-
dade ou saúde corporal;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause
dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o
pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, compor-
tamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação,
manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto,
chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qual-
quer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a
presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante
intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou
a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer
método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou
à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que
limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure
retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de
trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos,
incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calú-
nia, difamação ou injúria. (BRASIL, 2006)
As diversas formas de violência acontecem muitas vezes concomitantemente, não apenas
contra a mulher, mas também contra a criança, o adolescente, o idoso, os homossexuais e os de-
mais grupos. Para Sacramento e Rezende (2006), a violência é um fenômeno multideterminado,
por isso, um fenômeno complexo e de natureza polissêmica, isto é, está presente em muitos con-
textos sociais.
E na sociedade brasileira? Como acontece a violência? Como é possível estudar a violência
na sociedade brasileira?
Para Chaui (2006), na sociedade brasileira, mesmo com a presença constante dos altos níveis
de violência, há um mito de que o brasileiro não é violento. É criada uma imagem de um povo
generoso, alegre, solidário, que respeita a diversidade e que não é racista, sexista ou machista. Isso
acontece por meios da criação de uma narrativa que se aplica de forma reiterada na sociedade,
operando com base em antinomias, isto é, as contradições sociais não se transformam com base em
mudanças na sociedade, mas são transferidas para uma solução imaginária, que nega a realidade
concreta. Também faz parte do mito, porque se incorpora ao imaginário das pessoas como se fosse
verdade, como a própria realidade, produzindo comportamentos, ideias, ações e valores que se rei-
teram na sociedade. Por fim, é um mito, pois tem a função apaziguadora e repetidora, assegurando
à sociedade uma conversação histórica.
Essas imagens têm a função de oferecer uma imagem unificada da violência,
que seria como que o núcleo delas. Chacina, massacre, guerra civil tácita e in-
distinção entre crime e polícia pretendem ser o lugar onde a violência se situa
78 Sociologia Jurídica

e se realiza; fraqueza da sociedade civil, debilidade das instituições e crise ética


são apresentadas como impotentes para coibir a violência, que, portanto, estaria
situada noutro lugar. As imagens indicam a divisão em dois grupos: de um lado,
estão os grupos portadores de violência, e, de outro, os grupos impotentes para
combatê-la. (CHAUI, 2006, p. 347, grifo da autora)
A autora ainda afirma que é preciso questionar: como é possível, na sociedade brasileira,
a manutenção desse mito da não violência, mesmo em uma realidade na qual ela é parte estrutural
da sociedade? Ela que acredita que, são criados mecanismos na sociedade para a manutenção desses
mitos. Quais são esses mecanismos?
• Mecanismo da exclusão – é criada a ideia de que se há violência na sociedade brasileira,
ela é praticada por indivíduos que não fazem parte da nação brasileira, criando uma divi-
são entre os nós-brasileiros-não-violentos e eles-não-brasileiros-violentos.
• Mecanismo da distinção – cria-se a ideia da separação entre o essencial e o acidental, isto
é, a violência, quando ocorre no Brasil, é um acidente, deve ser vista como um fenômeno
efêmero, passageiro, que se localiza em um determinado tempo e lugar e que assim pode
ser superado.
• Mecanismo jurídico – nesse mecanismo, a violência fica restrita à criminalidade, ao cam-
po da delinquência, sendo o crime, a violação à propriedade privada. Esse mecanismo
cria a possibilidade de distinção entre os violentos e não violentos, posto que, os violentos
são aqueles que cometem os crimes, legitimando a ação policial contra pessoas e grupos
estereotipados pela sociedade como praticantes de crimes.
• Mecanismo sociológico – esse meio permite explicar a violência pelo deslocamento den-
tro do Brasil, com a migração, de diferentes indivíduos, isto é, os migrantes tendem a
praticar atos de violência, pois perderam suas antigas formas de sociabilidade, e, assim
que incorporados na sociedade, esses atos de violência deixarão de existir. Dessa forma,
esse mecanismo gera a exclusão dos pobres e desadaptados e reforça a ideia da violência
como transitória e temporária.
• Mecanismo da inversão do real – esse mecanismo é gerado a partir da produção de
ideias que permitem dissimular comportamentos e valores violentos como sendo não vio-
lentos. Como o caso do machismo, que, em vez de ser tratado como um ato de violência,
é visto por uma inversão do real, como um ato de proteção à natural fragilidade feminina.
Sendo assim, para Chaui (2006), esses mecanismos têm a função de demonstrar à sociedade
a violência como algo temporário e circunstancial e não como um problema estrutural da socie-
dade. No entanto, esses mecanismos que são conservados por ideologias das classes dominantes
têm por base um elemento real da sociedade brasileira, que é o autoritarismo social. Para a autora,
é possível identificar, de forma sintética, os principais traços do autoritarismo estrutural da socie-
dade brasileira:
• Estruturada no modelo do núcleo familiar, em que se impõe o repúdio ao princípio liberal
da igualdade formal e a dificuldade de lidar pelo princípio socialista da igualdade real,
gerando a ideia da diferença como desigualdade e ideia da inferioridade natural.
Controle social, violência e política 79

• A partir da estrutura das relações familiares de mando e obediência, há a dificuldade de


estabelecer e efetivar o princípio jurídico da igualdade e de lutar contra a opressão social
e econômica. Há, no plano jurídico, reflexos, a partir dessas características, de mando e
obediência, na forma da constituição das normas jurídicas, que em vez de estabelecer
direitos iguais para todos, estabelece situações de privilégio e de conservação do poderio
político e econômico presentes na sociedade brasileira.
• A não distinção entre o público e o privado. Essa característica é muito presente na reali-
zação da política brasileira, em que seus representantes utilizam-se dos bens públicos (in-
cluindo recursos públicos em geral) como se fossem seus bens particulares. “Do ponto de
vista dos direitos sociais, há um encolhimento do público; do ponto de vista dos interesses
econômicos, uma ampliação do privado [...]” (CHAUI, 2006, p. 354).
• Há uma forma peculiar de evitar as contradições sociais e políticas, criando uma imagem
de uma sociedade pacífica e ordeira. As contradições e os conflitos são vistos como peri-
go, crise, desordem e devem assim ser reprimidos.
• Bloquear as discordâncias entre grupos antagônicos na esfera pública. Assim, ações são
efetivadas para que os meios de comunicação de massa monopolizem as informações,
colocando a discordância como uma forma de ignorância ou atraso.
• Naturalização das desigualdades econômicas e sociais. Na sociedade brasileira, as formas
de desigualdade são vistas como algo natural, que fazem parte da sociedade, gerando
grande dificuldade de alteração.
• Fascínio pelos signos de prestígio e poder, uso de títulos honoríficos são aceitos e difun-
didos na sociedade brasileira sem qualquer relação de pertinência de sua atribuição, mas
como uma forma de poder e de manutenção de um status social. O exemplo mais comum
é a expressão doutor, utilizada larga e comumente na sociedade ao se referir a uma pessoa
considerada de uma classe social superior.
Dessa forma, é possível perceber que a sociedade brasileira é marcada por uma violência es-
trutural, isto é, na estrutura da organização administrativa e política há mecanismos que reforçam
e contribuem para a existência e manutenção da violência.
Um autor que também debruçou-se sobre a temática e precedeu os estudos de Chaui foi o filó-
sofo francês Michel Foucault (1926-1984). Suas principais obras são: O Nascimento da clínica (1963);
As palavras e as coisas (1966); Arqueologia do saber (1969); A ordem do discurso (1970); História da
sexualidade (primeira parte publicada em 1976); Nascimento da biopolítica (1978-1979); Microfísica
do poder (1979).
A obra que utilizaremos para a análise da violência é intitulada Vigiar e punir, publicada
originalmente em 1975. Nessa obra, Foucault busca uma resposta para a seguinte questão: por que
a sociedade ocidental considera a troca das execuções públicas e torturas pela prisão como uma
forma de ressocialização do indivíduo criminoso?
Foucault (2000) fez uma análise histórica, investigando as mudanças que ocorreram nas
sociedades. A alteração do regime monárquico absolutista para um regime republicano, foi um
80 Sociologia Jurídica

dos elementos analisados no qual o governo passa a controlar a vida dos cidadãos e “o nascimento
da prisão”. Para o autor, sistemas punitivos muito severos e violentos tornam o sistema instável e
imprevisível, além de pouco eficiente. Ao longo dos séculos XVII e XIV, a ideia de eficiência foi
ganhando força com a expansão das indústrias na Europa. Dessa forma, o Estado, além de punir,
deveria vigiar seus cidadãos, inclusive os que se encontravam presos, buscando alcançar o máxi-
mo de eficiência. “Vigiar favorece o processo produtivo: o modo como o operário trabalha, sua
prontidão, zelo, aptidão, conduta, fica tudo facilmente controlável” (ARAÚJO, 2001, p. 77). Assim,
Foucault (2000) denomina essa sociedade de sociedade disciplinar, em que se fabricam indivíduos
dóceis e úteis à sociedade.
O modelo de vigilância utilizado por Foucault é uma obra arquitetônica denominada panóptico
– ou pan-óptico – (Figuras 1 e 2) criada por Jeremy Benthan, em 1875, mas nunca executada na prática.
O termo panóptico deriva do grego, significa “tudo que se vê”, pois as celas dos presídios eram dispostas
todas para uma torre de controle, na qual apenas um guarda poderia controlar e vigiar todos os deten-
tos. Essa obra inspirou a construção posterior de diversos presídios.
Figura 1 – Planta da estrutura do Panóptico idealizado por Bentham
Controle social, violência e política 81

Figura 2 – Presídio modelo abandonado em Cuba

Para Foucault (2000), a disciplina não acontece apenas nos presídios, mas também nas
escolas, nas Forças Armadas, nas indústrias e outras instituições como forma de criar sujeitos
obedientes e voltados à sociedade moderna.
Para Araújo (2001, p. 71-72), os pressupostos teóricos que guiam Foucault são:
• a punição não é só uma sanção derivada da repressão, mas tem uma função social;
• a punição não deriva só das regras do Direito, mas é um entre outros procedimentos de
poder existentes em táticas políticas;
• o surgimento das ciências humanas pode ser buscado nos saberes que se fizeram necessá-
rios para conhecer a alma do criminoso;
• o corpo passou a ser sujeitado a espaços e técnicas disciplinares que permitiram dar
origem a um indivíduo como objeto de saber para um discurso com estatuto científico;
• o poder que existe na normalização, na punição, no adestramento dos corpos não é de
natureza jurídica e nem pertence às instâncias institucionais.
Logo, para o autor, a punição não deriva apenas do Direito, mas está presente na sociedade
de outras formas e tem por finalidade a docilização dos corpos e o seu aproveitamento para uma
determinada constituição social, em que são necessários indivíduos submissos a regras para que
possa haver a manutenção de determinado modelo produtivo.
A obra Vigiar e punir (FOUCAULT, 2000) é dividida em quatro partes:
1. O suplício – forma de espetáculo punitivo, no qual o cerimonial da pena tinha tam-
bém por finalidade não somente a exposição dos crimes e dos criminosos como for-
ma de constrangimento e amedrontamento da população, mas também como uma
forma de ritual político.
2. A punição – o direito de punição desloca-se da figura do soberano e da sua capacidade
de vingança à defesa da sociedade. Para tanto, há um processo de mitigação da pena, com
base em determinados princípios como da moderação, proporção e não arbitrariedade.
82 Sociologia Jurídica

3. A disciplina – controla as atividades do corpo, aumentando as forças para que sejam


mais úteis em termos econômicos e diminuindo no que diz respeito aos atos políticos
e obediência. Para tanto, faz-se necessário criar mecanismos de vigilância e sanções
aos indivíduos.
4. A prisão – a prisão incorpora-se no sistema da justiça com base em alguns princípios,
como o isolamento, trabalho como forma de requalificação, ajustamento e docilização
do preso e também como uma forma de modulação da pena
Por fim, cabe questionar: há relação entre as várias formas de violência e o exercício da
política?

6.3 A relação da política com a violência


Para Chaui (2006, p. 356), na sociedade brasileira, “o autoritarismo e a violência transpare-
cem, por fim, na política”. Os partidos políticos, por exemplo, são uma das representações dessa
relação de violência, pois são grupos privilegiados da sociedade que mantêm com seus correligio-
nários quatro formas de relação: cooptação, favor e clientelismo, tutela e promessa salvacionista.
No entanto, essa autora entende a possibilidade de exercício ético da política como forma de
poder alterar esse cenário e alerta para a dificuldade de alteração dos quadros de violência na socie-
dade brasileira devido a sua complexidade nas relações que envolvem os valores éticos, o sistema
econômico e a realidade social e política.
Essa realidade, associada às ideias de autoritarismo, privilégio e indistinção entre o público e
o privado, geram uma grande dificuldade de criar uma sociedade realmente democrática, em que a
ideia de cidadania é baseada na criação de direitos como fruto de uma criação social e da atividade
participativa e democrática de todos os indivíduos e grupos sociais.
Para aprofundar esse estudo da relação entre violência e política, faz-se importante a análise
do pensamento de Hannah Arendt2 sobre o tema em que elabora o conceito de violência em con-
junto com o conceito de poder.
Para a autora, o poder corresponde “à habilidade humana de não apenas agir, mas de agir
em uníssono, em comum acordo. O poder jamais é propriedade de um indivíduo, pois pertence a
um grupo e existe apenas enquanto o grupo se mantiver unido” (1985, p. 24). Essa é a essência do
conceito de poder, pois esse existe apenas quando há a legitimação de um grupo e, por meio dela,
há o exercício do poder por aquele que foi legitimado.
Perissinotto (2004), ao tratar do conceito de poder de Hannah Arendt, afirma que para a
existência deste em uma sociedade, são necessárias quatro condições:
1. ser um fenômeno do campo da ação humana;
2. ser um fenômeno do campo da ação coletiva;

2 Hannah Arendt (1906-1975) foi uma filósofa judia alemã que, em virtude das perseguições durante a Segunda
Guerra Mundial (foi presa em um campo de concentração), buscou refúgio nos Estados Unidos, lecionando em diversas
universidades até se mudar para Nova York, onde morreu aos 69 anos de idade. Suas principais obras são: As origens do
totalitarismo (1951); A condição humana (1958); Eichmann em Jerusalém (1963).
Controle social, violência e política 83

3. surgir na medida da existência de um grupo e;


4. ter o poder de legitimar alguém a falar pelo grupo.
Assim, o poder é um elemento construído por um grupo, sem o qual não existiria, pois este
produz aquele e define quem irá exercê-lo.
E qual a relação do poder com a violência? Para Arendt, (1985, p. 33) poder e violência se
opõem: “onde um domina de forma absoluta, o outro está ausente. A violência aparece onde o
poder esteja em perigo, mas se deixar que percorra o seu curso natural, o resultado será o desa-
parecimento do poder”. Assim, para Arendt a violência é um instrumento que pode ser utilizado
quando o poder está em risco.
Assim, o poder é o exercício de uma ação política do grupo e dos indivíduos, e para a cons-
tituição ou desconstituição do poder se faz necessário o exercício da política.
Por fim, fica clara a relação feita pela autora, se o poder é uma ação coletiva de legitimação
para alguém agir em nome do grupo, e esse grupo não legitima mais esse seu representante, isto
é, o grupo não quer mais ser representado por essa pessoa, não há mais poder. No entanto, esse
representante pode não querer respeitar a vontade do grupo e, para se manter no poder, pode usar
da violência como um instrumento de manutenção nessa função que lhe foi delegada pelo grupo,
mas que a partir do uso da violência, não é mais poder. Para Arendt (1985), quando um desses
elementos existe de forma absoluta o outro não existirá.

Considerações finais
Neste capítulo foi possível analisar os conceitos de controle social, estudando-o nas formas
formal e informal, verificando o quanto estão presentes na sociedade e a sua relação com o Direito.
Também foi estudado o conceito de violência e sua relação com a política. Foi analisado o
conceito de poder e violência para duas filósofas, Marilena Chaui e Hannah Arendt. Para Chaui a
sociedade brasileira é estruturalmente violenta por não possibilitar o exercício da autonomia dos
seus cidadãos e que para alterar esse quadro se faz necessário o exercício da política; para Arendt,
o poder é concedido pelo grupo a alguém que lhe representa e a violência é um instrumento que
esse representante pode se utilizar quando não houver mais o poder legitimado pelo grupo.

Ampliando seus conhecimentos


O trecho a seguir foi extraído do livro intitulado Vigiar e punir de autoria de Michel Foucault.

Vigiar e punir
(FOUCAULT, 2000, p. 166)

O panóptico de Benthan é a figura arquitetural dessa composição. O princípio é conhecido:


na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas
que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica e dividida em celas, cada
uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior,
84 Sociologia Jurídica

correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse
a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar
um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz,
pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas
cativas na cela da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozi-
nho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O dispositivo panóptico orga-
niza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. Em suma,
o princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções – trancar, privar de luz e
esconder – só se conserva a primeira e suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar de
um vigia captam melhor a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha.
O que permite em primeiro lugar – como efeito negativo – evitar aquelas massas compactas,
fervilhantes, pululantes, que eram colocadas nos locais de encarceramento, os pintados por
Goya ou descritos por Howard. Cada um em seu lugar, está bem trancado em sua cela de onde
é visto de frente pelo vigia; mas os muros laterais impedem que entre em contato com seus
companheiros. É visto, mas não vê; objeto de uma informação, nunca sujeito em uma comuni-
cação. A disposição de seu quarto, em frente da torre central, impõe-lhe uma visibilidade axial;
mas as divisões do anel, essas celas bem separadas, implicam uma invisibilidade lateral. E esta
é a garantia da ordem. Se os detentos são condenados não há perigo de complô, de tentativa
de evasão coletiva, projetos de novos crimes para o futuro, más influências recíprocas; se são
doentes, não há perigo de contágio; loucos, não há risco de violências recíprocas; crianças, não
há “cola”, nem barulho, nem conversa, nem dissipação. Se são operários, não há roubos, nem
conluios, nada dessas distrações que atrasam o trabalho, tornam-no menos perfeito ou provo-
cam acidentes. A multidão, massa compacta, local de múltiplas trocas, individualidades que se
fundem, efeito coletivo, é abolida em proveito de uma coleção de individualidades separadas.
Do ponto de vista do guardião, é substituída por uma multiplicidade enumerável e controlável;
do ponto de vista dos detentos, por uma solidão sequestrada e olhada.

Atividades
1. O Direito é uma forma de controle social? Justifique sua resposta.

2. De acordo com o pensamento de Marilena Chaui, qual a relação entre a violência e socieda-
de brasileira?

3. No pensamento de Michel Foucault, qual a finalidade da vigilância na sociedade? Justifique


sua resposta.

4. No entendimento de Hannah Arendt, qual a relação entre poder, violência e política?

Referências
ARAÚJO, Inês Lacerda. Foucault e a crítica do sujeito. Curitiba: Editora da UFPR, 2001.

ARENDT, Hannah. Da violência. Trad. de Maria Cláudia D. Trindade. Brasília. DF: UnB., 1985.

BRANDÃO, Adelino. Iniciação à Sociologia do Direito: teoria e prática. São Paulo: Editora Juarez de
Oliveira, 2003.
Controle social, violência e política 85

BRASIL. Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 8 ago.
2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso
em: 19 dez. 2017.

CHAUI, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 2006.

DIAS, Reinaldo. Sociologia do Direito: abordagem do fenômeno jurídico como fato social. São Paulo:
Atlas, 2009.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2000.

OMS – ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Informe mundial sobre La violencia y salud. Genebra
(SWZ): OMS, 2002.

PERISSINOTTO, Renato M. Hannah Arendt, poder e a crítica da “tradição”.  Lua Nova, São Paulo, n. 61, 
p. 115-138, 2004. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-64452004000100007&script=sci
_abstract&tlng=pt>. Acesso em: 05 fev. 2018.

SACRAMENTO, Lívia de Tartari; REZENDE, Manuel Morgado. Violências: lembrando alguns conceitos. 
Aletheia, Canoas, n. 24, p. 95-104, dez. 2006. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=
sci_arttext&pid=S1413-03942006000300009&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 05 fev. 2018.
7
Democracia e globalização

Neste capítulo, será analisado o conceito de democracia e sua relação com o Estado de
Direito, buscando aprofundar a análise a partir das relações dos cidadãos na sociedade.
Também será abordada a relação entre a democracia e a globalização. Dessa forma, serão
buscadas respostas para questionamentos como: a globalização impacta na democracia? Vive-se na
sociedade contemporânea uma crise da democracia? Qual a importância da democracia?

7.1 A importância da democracia no Estado de Direito


Inicialmente, serão analisados alguns conceitos fundamentais. O que é Estado? O que é
o Estado de Direito? E o que é o Estado democrático de Direito? Quais as diferenças entre esses
conceitos? Veremos.
Cabe destacar que o Estado moderno ou Estado-nação pode ser definido como: “a reunião
de pessoas numa sociedade política e juridicamente organizada, dotada de soberania, dentro de
um território, sob um governo, para a realização do bem comum do povo” (MARTINS, 2009,
p. 48). Desse conceito, destacam-se os três elementos centrais de constituição do Estado: terri-
tório, povo, soberania.
De acordo com Mendes, Coelho e Branco (2008), pode-se elencar alguns desses aspectos
fundantes do Estado moderno:
• o Estado não é uma criação divina, é apenas uma comunidade a serviço do interesse
comum de todos os indivíduos;
• os objetivos e as tarefas do Estado limitam-se a garantir a liberdade e a segurança das
pessoas e da propriedade, possibilitando o autodesenvolvimento dos indivíduos;
• a organização do Estado e a regulação das suas atividades obedecem a princípios ra-
cionais: reconhecimento da cidadania, liberdade civil, igualdade jurídica, garantia da
propriedade, governo responsável, independência dos juízes, domínio da lei, represen-
tação popular.
Percebe-se, então, que o Estado é uma organização social, em que indivíduos se organizam,
buscando a obtenção de determinados fins, em especial, a proteção e a liberdade. De acordo com
Martins (2009, p. 51), as finalidades do Estado são:
• assegurar a vida humana em sociedade, pelo fato de que o homem não vive isoladamente
e necessita de normas que disciplinem comportamentos;
• assegurar o bem comum do povo;
• garantir a ordem interna, assegurar a soberania na ordem internacional, fazer as regras de
conduta, distribuir justiça.
88 Sociologia Jurídica

Essas ideias que norteiam as finalidades do Estado têm sua origem em uma concepção
liberal de Estado, que serviu de suporte para os direitos do homem, e na conversão dos súditos
em cidadãos. “O liberalismo deve ser compreendido como movimento econômico-político, tendo
como base a classe burguesa, ao propugnar, na esfera econômica, o princípio do abstencionismo
estatal, e, na esfera política, sufrágio, câmaras representativas, respeito à oposição e separação de
poderes” (SOARES, 2008, p. 80).
O liberalismo clássico deu forma ao Estado Liberal e aos seus princípios estruturais como a
concepção do individualismo e a construção do Estado de Direito. “A construção do Estado liberal de
direito deixou um legado: o império do princípio da legalidade, a despersonificação da soberania e a
luta pelos direitos e liberdade do homem” (SOARES, 2008, p. 83).
No Estado liberal, pretendia-se legitimar a vontade geral, a partir da participação do povo,
através do sufrágio. Assim, o direito que teria a função de vincular o cidadão ao Estado e regular
as instituições públicas, deveria advir também da vontade geral. No entanto, foi ocorrendo um
dualismo na sociedade, de um lado a sociedade civil, com cidadãos passivos e, de outro lado,
uma sociedade política, a qual decidia e tinha poder (SOARES, 2008).
No entanto, é preciso destacar que ser o Estado apenas um Estado de Direito pode levar a
deformações no sentido de que, ao entender que o Direito é o conjunto das normas jurídicas ela-
boradas pelo Poder Legislativo, então o Estado passaria a ser um Estado Legislativo, ou Estado da
Legalidade. Se se seguir uma concepção mais formalista do Direito – e o Estado rege-se pelas leis
– então pode-se também constituir um Estado de Direito, mas recair meramente em um Estado
formal de Direito, que pode servir também para regimes autoritários ou ditatoriais (SILVA, 2012).
[...] se o Direito acaba se confundindo com o mero enunciado formal da lei,
destituída de qualquer conteúdo, sem compromisso com a realidade políti-
ca, social, econômica, ideológica enfim (o que, no fundo esconde uma ideo-
logia reacionária), todo Estado acaba sendo Estado de Direito, ainda que seja
ditatorial. Essa doutrina converte o Estado de Direito em mero Estado legal.
Em verdade, destrói qualquer ideia de Estado de Direito. (SILVA, 1992, p. 104)

Dessa forma, não basta o Estado ser de Direito. É preciso questionar como alcançar os ob-
jetivos que um Estado se propõe? Quem serão os governantes? Como deverão ser elaboradas as
leis? Como reivindicar no caso desses objetivos não estarem sendo cumpridos? Essas questões são
essenciais para a compreensão de que um Estado pode ter essas finalidades, mas sem a partici-
pação popular. Por isso, a importância da criação do Estado democrático de Direito. Este não é o
somatório do Estado de Direito com o Estado Democrático, é mais do que isso, é a criação de um
novo conceito de Estado. O qualificador democrático torna o Estado democrático e não apenas o
Direito; dessa forma, sendo o Estado democrático, essa característica se irradia para toda a estru-
tura e instituições do Estado.
Para Canotilho (2002, p. 231), o Estado democrático de Direito é “o Estado limitado pelo
direito e o poder político estatal legitimado pelo povo. O direito é o direito interno do Estado;
o poder democrático é o poder do povo que reside no território ou pertence ao Estado”.
Democracia e globalização 89

Assim, constata-se a incorporação dentro do Estado do seu elemento humano, que é o


povo. Um Estado democrático de Direito precisa da participação do povo para ser efetivamente
democrático.
O Estado democrático de Direito, que significa a exigência de reger-se por nor-
mas democráticas, com eleições, periódicas e pelo povo, bem como o respeito
das autoridades públicas aos direitos e garantias fundamentais, proclamado no
caput do artigo, adotou, igualmente o parágrafo único, o denominado prin-
cípio democrático, ao afirmar que “todo poder emana do povo, que o exer-
ce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta
Constituição. (MORAES, 2008, p. 17)

No ordenamento jurídico brasileiro, o Estado democrático de Direito está previsto expres-


samente no art. 1o da Constituição Federal, conforme transcrição a seguir: “Art. 1o A República
Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos [...]” (BRASIL,
1988, grifos do autor).
Para Streck e Morais (2000, p. 90) e Silva (2012, p. 124), o Estado democrático de Direito é
norteado por alguns princípios, podendo citar:
• Constitucionalidade: o Estado deve estar respaldado na supremacia da Constituição
Federal, que vincula o legislador e os governantes e todos os atos estatais à Constituição.
• Organização democrática da sociedade: a sociedade deve organizar-se com base em
uma democracia participativa, representativa e pluralista a qual é a garantia da vigência e
da eficácia dos direitos fundamentais.
• Legalidade: por um meio de ordenação racional, vinculativamente prescrita, de regras,
formas e procedimentos que excluem o arbítrio e a prepotência dos governantes, sendo a
medida do próprio Direito. No ordenamento jurídico brasileiro, esse princípio está dis-
posto expressamente na Constituição Federal de 1988 em seu art. 5o, II.
• Sistema de direitos fundamentais: o qual compreende os direitos individuais, coleti-
vos, sociais e culturais. No sistema jurídico brasileiro, está previsto de forma ampla na
Constituição Federal de 1988 nos títulos II, VII e VIII.
• Justiça social: esse princípio visa a criação de mecanismos corretivos das desigualdades,
por meio das normas jurídicas e de políticas públicas sociais. No Brasil, está previsto na
Constituição Federal de 1988 como um princípio de ordem econômica (art. 170) e social
(art. 193).
• Igualdade: esse princípio articula-se com o ideal de uma sociedade justa. No ordenamen-
to jurídico brasileiro está disposto na Constituição Federal no caput e inciso I do art. 5o.
• Divisão dos poderes ou de funções: tendo por base a unidade do poder do Estado, mas
sua divisão em órgãos distintos e harmônicos com o propósito de evitar a concentra-
ção do poder e o seu uso indevido. No Brasil, está disposto expressamente no art. 2o da
Constituição Federal.
90 Sociologia Jurídica

• Segurança e certeza jurídicas: tem por objetivo a garantia da segurança jurídica para
os cidadãos e para as instituições para, assim, possibilitar a existência de uma sociedade
democrática de Direito.
Dessa forma, é possível verificar que esses princípios norteadores do Estado democrático de
Direito estão presentes no ordenamento jurídico brasileiro, mas também é necessário compreen-
der quais os fundamentos prescritos no artigo 1o da Constituição Federal brasileira dispõem sobre
os fundamentos desse Estado Democrático de Direito:
Art. 1o A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático
de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político. (BRASIL, 1988)

A partir dos incisos do art. 1o da Constituição Federal brasileira, é possível compreender quais
são os fundamentos do Estado brasileiro. Cabe destacar que, para Silva (2010, p. 37), fundamento
significa “aquilo sobre o qual repousa certa ordenação ou conjunto de conhecimento, aquilo que dá
a alguma coisa sua existência ou sua razão de ser, aquilo que legitima a existência de alguma coisa”.
Assim, os fundamentos contidos no art. 1o da Constituição Federal brasileira são as bases
para a legitimação da própria existência do Estado brasileiro.
Soberania – Representa o poder de autodeterminação de uma nação. No caso brasileiro,
o Estado é reconhecido internacionalmente como um país independente, devendo ter seu or-
denamento jurídico e sua estrutura política e social respeitados pelos demais países do mundo.
A soberania também está prevista na Constituição Federal brasileira no art. 3o, inciso I, como
objetivo do Estado e no art. 4o, inciso I, como base das relações internacionais.
Cidadania – De acordo com Silva (1992, p. 36), “a cidadania prevista constitucionalmente
é um valor cuja efetividade depende precipuamente dos respectivos titulares: trata-se de um valor
ínsito ao princípio democrático, mas cuja manutenção depende de permanente reafirmação por
parte daqueles”. Mas entender a cidadania apenas como a participação de todos nas decisões po-
lítico-governamentais pode ser uma visão incompleta sobre a cidadania. Destaca o autor que, no
Brasil, nem todos os direitos de cidadania são efetivos, pois há direitos que são apenas esporádica
e escassamente efetivados.
Dignidade da pessoa humana – Pressupõe a autonomia da pessoa, a sua autodeterminação,
isto é, a pessoa é um fim em si mesma, não podendo servir de meio para outras pessoas. Esse fun-
damento tem origem nas ideias de Kant que em sua obra Fundamentos da metafísica dos costumes
entendia que os seres racionais deveriam ser denominados de pessoas, porque sua natureza já os
designa como um fim em si mesmo, pois “[...] age de tal maneira que possas usar a Humanidade,
Democracia e globalização 91

tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e
nunca simplesmente como meio” (KANT, 2003, p. 59). Dessa forma, afirma Silva (2010, p. 39) que
“isso, em suma, quer dizer que só o ser humano, o ser racional, é pessoa. Todo ser humano, sem
distinção, é pessoa, ou seja, um ser espiritual, que é, ao mesmo tempo, fonte e imputação de todos
os valores, consciência e vivência de si próprio”.
Dessa forma, no ordenamento jurídico brasileiro, a dignidade da pessoa humana é um valor
organizativo, sendo o núcleo essencial dos direitos fundamentais. Para Miranda (2000, p. 166) a
dignidade da pessoa humana constitui “a fonte ética, que confere unidade de sentido, de valor e de
concordância prática ao sistema dos direitos fundamentais”.
Valores sociais do trabalho e da livre iniciativa – Esses valores estão relacionados à ordem
econômica do país, “estão precisamente na sua função de criar riquezas, de prover a sociedade de
bens e serviços e, enquanto atividade social, fornecer à pessoa humana bases de sua autonomia e
condição de vida digna” (SILVA, 2010, p. 41). Para que possa haver a reprodução e manutenção do
sistema econômico e produtivo, faz-se necessário assegurar como um dos fundamentos do Estado
a liberdade do trabalho, por isso deve ser um valor social, posto que o trabalho não é apenas um
direito, mas um dever do cidadão, de forma a garantir sua subsistência, e também contribuir para
a formação da sociedade. A livre iniciativa é um dos pressupostos de uma economia moderna,
baseada na produção voltada para o mercado e, assim, dependente de liberdade de ação por parte
daqueles que pretendem exercer alguma atividade econômica.
Pluralismo político – Esse princípio está diretamente relacionado com o princípio democrá-
tico e com a dignidade da pessoa humana, pois não há uma verdadeira democracia sem o respeito
à pluralidade de ideias, opiniões e interesses. Assim, o pluralismo político é fundamental para que
haja uma vida política livre e dinâmica em uma sociedade, pois de acordo com Silva (2010), é o lia-
me que vincula a liberdade dos indivíduos com a multiplicidade dos meios de vida, de pensar e com-
preender a sociedade. Cabe destacar que o pluralismo político também está contido no Preâmbulo
da Constituição Federal brasileira, ao dispor que o Estado democrático brasileiro é fundado em
“valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos” (BRASIL, 1988).
A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser um pro-
cesso de convivência social, numa sociedade livre, justa e solidária (art. 3o, II),
em que o poder emana do povo, que deve ser exercido em proveito do povo,
diretamente ou por representantes eleitos (art. 1o, parágrafo único); participati-
va, porque envolve a participação crescente do povo no processo decisório e na
formação dos atos de governo, pluralista porque respeita a pluralidade de ideias,
culturas e etnias e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos di-
vergentes e a possibilidade de convivência de formas de organização e interesses
diferentes da sociedade [...]. (SILVA, 1992, p. 109)

Logo pode-se constatar a importância da construção de uma sociedade baseada nos funda-
mentos democráticos de organização do Estado e do Direito, posto que incorpora no poder o povo,
que é seu fundamento e seu principal objeto de existência.
92 Sociologia Jurídica

7.2 O papel do cidadão


Conforme analisado no capítulo anterior, para que um Estado seja verdadeiramente de-
mocrático, é preciso que haja a participação do povo. No ordenamento jurídico brasileiro, esse
parâmetro balizador está expressamente disposto no parágrafo único do art. 1o da Constituição
Federal, que dispõe: “Art. 1o Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio
de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (BRASIL, 1988).
Mas afinal o que isso significa? O que se pode extrair desse texto legal? Diversos significados
estão contidos nesse importante dispositivo constitucional.
Todo o poder emana do povo – Isso significa que o poder vem de seu elemento humano:
o povo. De acordo com Silva (2010), esse dispositivo constitucional consagra o princípio da sobe-
rania popular, que é o próprio fundamento de um Estado democrático.
Um Estado é criado originalmente para proteger e garantir uma boa qualidade de vida para
seus integrantes, mas em um Estado democrático, o poder para a criação e estruturação desse
Estado deve vir de seu povo.
Que o exerce por meio de representantes eleitos – O povo exerce esse poder ao eleger seus
representantes para esse fim. Essa é a característica da sociedade em que a democracia é represen-
tativa, pois em sociedades mais complexas, como as modernas, há maior dificuldade de exercício
direto do poder pelo povo. Segundo Silva (2010), para a existência de uma democracia representa-
tiva se pressupõe um conjunto de instituições que possibilitem o exercício da soberania popular no
processo político, assim constituindo os direitos políticos, que qualificam os cidadãos em agentes
políticos. Essa participação popular, em uma democracia representativa, deve ser periódica, formal
e realizada por meio de suas instituições.
Ou diretamente – Mas também é possível o exercício do poder diretamente pelo povo,
é quando a democracia acontece de forma direta. “O princípio participativo caracteriza-se pela
participação direta e pessoal da cidadania na formação dos atos de governo” (SILVA, 2010, p. 43).
O sistema jurídico brasileiro prevê formas de participação direta do povo, como por exemplo os
casos de realização de plebiscito e referendo.
Nos termos desta Constituição – Essa especificação contida nesse dispositivo legal signi-
fica que mesmo o poder sendo do povo, deve ser exercido, de acordo com o que está contido na
Constituição Federal, assim, o “poder do povo também se submete à Constituição” (SILVA, 2010,
p. 44).
Nesse ponto da análise, surgem alguns questionamentos: povo é a mesma coisa que cidadão?
Quem é o povo? Quem é o cidadão?
Cidadão, de acordo com Silva (1992, p. 37), “é todo membro da sociedade nacional, indepen-
dentemente de raça, credo religioso, convicções políticas, condição econômica ou social, e do pró-
prio gozo dos direitos políticos: a todos assistem iguais (art. 5o, caput da CF) direitos de cidadania”.
Há diferença entre cidadão e povo? Qual é essa distinção?
Para Silva (2010), a ideia essencial da cidadania está relacionada ao princípio democrático.
Mas a democracia é um conceito histórico que vai se constituindo ao longo do tempo. Ao analisar
Democracia e globalização 93

a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 pode-se verificar que há uma distinção
entre direitos do homem (podendo se entender como os direitos individuais) e dos direitos do
cidadão (como os direitos políticos). Dessa forma, o cidadão surge como o nacional protegido por
uma ordem jurídica específica. No entanto, esse entendimento foi sofrendo alterações, e passou-se
a compreender que a expressão cidadão inclui o homem como seu elemento, posto que, na socie-
dade atual, praticamente todos os homens são cidadãos também. Assim, o povo que é a base do
regime democrático: “compreende a totalidade dos que possuem status da nacionalidade, os quais
devem agir, conscientes de sua cidadania ativa, segundo ideias, interesses e representações de na-
tureza política” (SOARES, 2008, p. 154).
A partir dessa compreensão, verifica-se que o exercício da cidadania é feito pelo povo,
que é a soma de todos aqueles que possuem o status de cidadão de um país, sendo aqueles que
têm direitos relativos àquela ordem jurídica, mas são também aqueles que, pelo exercício de seus
direitos políticos, podem construir e reconstruir novos direitos e a própria organização social.
Na sociedade brasileira, como pode ser exercida a cidadania? Vários são os mecanismos de
exercício da cidadania, podendo citar dentre eles:
• Mecanismos jurídicos – dentro do ordenamento jurídico brasileiro, existem vários tipos
de ações judiciais que podem ser utilizadas pela população para o exercício da cidadania,
podendo citar: a) ação popular, prevista no art. 5o, LXXIII da Constituição Federal, que
serve para anular ato lesivo ao patrimônio público, ao meio ambiente ou ao patrimônio
histórico ou cultural; b) projeto de lei de iniciativa popular, prevista no art. 14, III da
Constituição Federal, e que serve para a população poder apresentar projetos de lei de
seu interesse por meio da mobilização popular; c) ação civil pública, responsabilidade
por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico,
estético, histórico, turístico e paisagístico, regulamentada na Lei n. 7.347 (BRASIL, 1985).
Também há as previsões constitucionais de exercício direto da cidadania com o referendo
e plebiscito.
• Mecanismos judiciais – a cidadania pode ser exercida por meio do Poder Judiciário.
Os cidadãos que entenderem que seus direitos estão sendo violados podem mover ações
judiciais buscando o cumprimento das leis e a efetivação de seus direitos. Existem no Brasil
os Juizados Especiais, em que o cidadão pode registrar diretamente reclamações, sem a pre-
sença de advogados, para isso o valor da ação não pode ultrapassar 20 salários-mínimos.
Essa é uma forma simplificada e direta de exercício dos direitos pelo próprio cidadão.
• Mecanismos extrajudiciais – há também previsões legais no sistema jurídico brasileiro
de resolução de conflitos extrajudiciais, podendo citar como exemplo a mediação e a arbi-
tragem. Na primeira, as partes em conflito escolhem um mediador que auxiliará a chegar
a um acordo sobre o assunto; na segunda, as partes envolvidas em um conflito escolhem
um árbitro que decidirá sobre o assunto. A arbitragem está regulamentada na Lei n. 9.307
(BRASIL, 1996), alterada pela Lei n. 13.129 (BRASIL, 2015); e a mediação está regula-
mentada pela Lei n. 13.140 (BRASIL, 2015).
• Mecanismos sociais e políticos – também existem possibilidades de exercício da cida-
dania por meio de denúncias, repasse de informações, mobilizações da mídia, das redes
94 Sociologia Jurídica

sociais, rádios comunitárias e passeatas. Os cidadãos também podem se organizar formal-


mente em organizações não governamentais e em partidos políticos para o exercício de
seus direitos e para a conquista de novos direitos.
• Mecanismos institucionais – nas sociedades democráticas, existem instituições que têm
por finalidade a defesa dos cidadãos, como, por exemplo, o Ministério Público (cabe des-
tacar que uma das finalidades constitucionais do Ministério Público é a defesa do regime
democrático e dos direitos individuais e sociais indisponíveis, art. 127 da Constituição
Federal), os Conselhos de Direitos, os órgãos de classe, como a Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB), os Sindicatos, os partidos políticos, as universidades e o Sistema
Interamericano de Direitos Humanos. Os cidadãos podem procurar essas instituições
para esclarecimentos, denúncias ou exercício de seus direitos.

Apesar da grande variedade de mecanismos disponíveis para o exercício da cidadania, você


já parou para pensar quantos desses mecanismos você já conhecia? Desses mecanismos, quantos
você já acessou? Por que muitas pessoas não acessam esses mecanismos? Será que verdadeiramente
somos cidadãos? Qual nosso papel na sociedade?
A cidadania deve ser entendida como um exercício realizado pelos cidadãos, e não como
um conceito estático. Para Bauman (2001), o indivíduo, ao exercer seu papel na sociedade, realiza
a verdadeira política, isso é, participa da pólis, da cidade, contribuindo com sua construção e pos-
sibilitando mudanças.
Existe um abismo entre o indivíduo de direito e o indivíduo de fato que busca
ganhar controle sobre suas decisões e seu destino. Sendo que esse abismo não
pode ser transposto por esforços individuais, para que ocorra essa transposição
é necessário o exercício da política, com P maiúsculo. Esse abismo cresceu em
virtude do esvaziamento do espaço público. (BAUMAN, 2001, p. 48-49)

O que Bauman (2001) alerta é que está havendo na sociedade atual um esvaziamento da es-
fera pública de atuação da política pelo cidadão, e esse fenômeno tem contribuído para uma menor
participação cidadã. Esse fato decorre do esvaziamento da esfera pública e da expansão da esfera
individual de cada pessoa na sociedade. Mas por que isso acontece? Porque na sociedade moderna,
líquida, há um processo de individualização, em que as pessoas passam a se preocupar e a se identi-
ficar na sociedade a partir de seus interesses particulares, perdendo o interesse pelas lutas coletivas.
Se o indivíduo é o pior inimigo do cidadão, e se a individualização anuncia
problemas para a cidadania e para a política fundada na cidadania, é porque os
cuidados e preocupação dos indivíduos enquanto indivíduos enchem o espaço
público até o topo, afirmando-se como os únicos ocupantes legítimos e expul-
sando tudo mais do discurso público. (BAUMAN, 2001, p. 46)

Logo, afirma Bauman (2002), o poder é a capacidade de fazer e a política é a capacidade


de decidir o que fazer. Dessa afirmação cabe um questionamento chave para pensar o papel do
cidadão: o que o cidadão na sociedade atual está fazendo com seu poder? Está utilizando essa ca-
pacidade para fazer? Pode-se afirmar que os cidadãos estão fazendo política? Estão utilizando sua
capacidade de decidir o que fazer?
Democracia e globalização 95

7.3 Os impactos da globalização na democracia


É possível que a intensificação do processo de globalização na sociedade tenha afetado o
exercício da democracia?
Inicialmente é preciso entender o que é a globalização. Para Giddens (2012, p. 102), a globa-
lização “refere-se ao fato de que estamos vivendo em um mesmo mundo, de modo que os indiví-
duos, grupos e nações se tornam cada vez mais interdependentes”.
De acordo com Ianni (2002, p. 36), o mundo passou por grandes transformações após a
Segunda Guerra Mundial, quando se iniciou “um amplo processo de mundialização das relações,
dos processos e estruturas de dominação e apropriação, antagonismos e integração”. Desta forma,
verifica-se que o mundo vem passando por transformações que se refletem nesses processos dialé-
ticos de integração e desintegração, de aproximação e distanciamento, ao mesmo tempo em que os
países e os indivíduos se tornam cada vez interdependentes, também há processo de individualiza-
ção. Assim, além das questões individuais, inclusive no que tange ao exercício da política, pode-se
perceber questões estruturais que vão impactar na democracia.
No entendimento de Santos (2002), a globalização na atualidade acontece em várias esferas:
há uma globalização econômica, uma social, uma política e outra cultural. É um fenômeno multi-
facetado com várias dimensões que o torna mais complexo. As principais características delas são:
• Globalização econômica – tem por característica central a economia, que passa a ser
dominada por um sistema financeiro e pelo investimento em escala global. Mas também
há processos de produção flexível e multilocal; baixos custos de transporte; preeminência
de agências financeiras multinacionais; revolução das tecnologias de informação e de co-
municação e desregulação das economias nacionais. Todos esses fatores contribuem para
que ocorra um processo de globalização da economia, que acarretará consequências em
outras esferas, como a social e a política.
• Globalização social – a grande novidade no processo de globalização social é a presença
das empresas multinacionais que, ao concentrarem capital e o processo produtivo, con-
tribuem de forma categórica para a geração de grandes desigualdades em esfera mundial.
Ao mesmo tempo em que há concentração de riquezas em uma pequena parcela da po-
pulação, há também um acentuado número de falta de recursos para grande parcela da
população mundial.
• Globalização política – o sistema mundial moderno é formado por Estados hegemôni-
cos ou por instituições internacionais que exercem influência sobre a autonomia política;
e a soberania dos Estados periféricos ou semiperiféricos. Assim, no campo político, há
o surgimento de organizações supranacionais que deverão se relacionar com os Estados
e isso irá gerar conflitos e impactos na ordem interna dos Estados, inclusive afetando o
processo democrático.
• Globalização cultural – foi facilitada pela intensificação e ampliação dos meios de comu-
nicação e disseminação cultural, é preciso destacar que essa globalização da cultura está
96 Sociologia Jurídica

ligada a sua capacidade de mercadorização, isto é, a cultura se expande no mundo a partir


da capacidade de se transformar em mercadoria.
O processo de globalização, então, é um processo em expansão, que não ocorre em apenas
uma dimensão, mas é plural e diversificado, atingindo a economia, a política, a sociedade e a cultu-
ra. “A verdade é que a globalização não é jamais um processo histórico-social de homogeneização”
(IANNI, 2002, p. 128).
A partir dessa análise, é possível indagar: quais são as consequências da globalização? No en-
tendimento de Faria (2002), a globalização gera diversas consequências, inclusive na esfera jurídica.
• Caráter paradoxal das inovações científico-tecnológicas – quanto maiores forem as
inovações tecnológicas e a velocidade de sua expansão, maior será a ampliação da diver-
sidade de bens e serviços ofertados no mercado, gerando grandes mudanças produtivas,
econômicas e sociais. Assim, quanto maior for a imprevisibilidade das consequências
dessas mudanças, maior será a geração das dúvidas, incerteza e perigos, em especial, no
que trata do bem-estar social, da segurança econômica e do meio ambiente. No âmbito
jurídico, as consequências desse avanço da internacionalização da produção e do capital
estão ligadas a essas forças transnacionais que são difíceis de serem identificadas e dessa
forma responsabilizadas, indo contra a ideia de cidadania, que está relacionada a ideia
de Estado-nação, colocando em xeque normas e mecanismos jurídicos e imputação da
culpabilidade e de punição, inclusive as formas indenizatórias pelos danos causados.
• Crescente redução da margem de autonomia das políticas macroeconômicas nacionais
– à medida que o comércio mundial cresce e a produção vai se tornando global, há um
maior acirramento da concorrência, também ocorrendo processos de maior oferta de cré-
dito internacional, gerando também maior risco sistêmico. Há uma tendência de dolari-
zação da economia, que acarreta um aparente processo de harmonização internacional.
Dessa forma, um dos símbolos do Estado-nação, que é a moeda, também sofre impactos.
As economias internas vão se tornando dependentes de ajustes estruturais e de políticas
cambiais e fiscais recessivas, forçando que essas decisões não sejam mais realizadas na
esfera político-democrática, mas no campo econômico.
• Aumento em progressão geométrica de diferenciação socioeconômica – os sistemas
administrativo, técnico, científico, produtivo, comercial e financeiro vão se tornando cada
vez mais especializados, promovendo um processo de intensa diferenciação em todas es-
sas áreas. Na esfera jurídica, essa ampla especialização gera uma alta complexidade do
sistema jurídico, o que dificulta sua atuação e efetivação.
• Fragmentação da produção – a nova divisão social do trabalho, caracterizada pela ampla
flexibilidade da gestão e da automação, provoca a substituição das grandes plantas fabris
de caráter taylorista/fordista, por fábricas flexíveis e enxutas, multifuncionais e fragmen-
tadas. A flexibilidade produtiva facilita a relocalização das plantas produtivas, gerando
inclusive impactos nos governos locais, que acontecem principalmente em termos de re-
núncia fiscal, quando os governos locais abdicam de parte de recursos fiscais para favore-
cer a exploração do trabalho ao capital. E é possível questionar por que os governos locais
Democracia e globalização 97

não se recusam a fazer esse tipo de negociação? Porque não querem perder a oportunida-
de de ter essas grandes organizações em seus territórios e também temem o isolamento
comercial, tecnológico e financeiro.
Diante do policentrismo decisório que hoje caracteriza a economia globalizada,
com suas hierarquias altamente flexíveis, entidades nacionais e supranacionais
híbridas e estruturas de comando diferenciadas e diversificadas, e do crescente
predomínio da lógica financeira sobre a economia real, o Estado-nação [...]
vem sendo progressivamente substituído pelo ‘mercado’, enquanto instância de
coordenação da vida social. (FARIA, 2002, p. 69)

Para finalizar, percebe-se que essa ingerência do mercado na organização dos Estados tem
afetado os processos democráticos e políticos e acarretado alterações individuais, podendo afirmar
que os cidadãos vão se tornando consumidores e, dessa forma, as lidas coletivas exercidas pelo
poder político dos cidadãos na busca de construir uma sociedade mais justa e igualitária vão sendo
substituídas por demandas individuais, voltadas para o consumo de bens e serviços.

Considerações finais
Dessa forma, após estudar os avanços na construção de um Estado Democrático de Direito,
com a participação dos cidadãos na construção da sociedade, discutiu-se sobre o processo de glo-
balização que vem impactando a ordem interna dos Estados, afetando os processos democráticos e
tornando o sistema jurídico mais complexo e com mais dificuldades de efetivação de suas normas
pelas instituições estabelecidas para esse fim.
Cabe destacar que Wood (2010) faz uma análise crítica sobre a relação entre o capitalismo e
democracia. Segundo a autora, nas sociedades capitalistas há uma divisão estrutural entre a esfera
política e a esfera econômica. Em virtude dessa separação, o Estado cria mecanismos que reduzem
a democracia a uma dimensão formal, jurídico-política, para que não haja repercussão na esfera
econômica. Dessa forma, na democracia liberal há um resguardo da esfera econômica que não fica
sujeita às decisões democráticas.

Ampliando seus conhecimentos


O texto a seguir é um trecho do livro de autoria de Ellen Meiksins Wood intitulado
Democracia contra capitalismo, em que a autora faz uma análise crítica sobre a relação entre a de-
mocracia e o capitalismo.

Democracia contra capitalismo


(WOOD, 2010, p. 27 - 28)

Ficamos então com mais perguntas que respostas. Como poderia a cidadania, nas condições
atuais e com um corpo inclusivo de cidadãos, recuperar a importância que já teve? Qual o
significado, numa democracia capitalista moderna, de não apenas preservar os ganhos do libe-
ralismo, das liberdades civis e da proteção da “sociedade civil”, não apenas para inventar con-
cepções mais democráticas de representação e novos modos de autonomia, mas também para
98 Sociologia Jurídica

recuperar os poderes perdido da “economia”? O que seria necessário para recuperar a demo-
cracia da separação formal entre o “político” e o “econômico”, quando o privilégio político foi
substituído pela coerção econômica, qual o significado da extensão da cidadania – e isso quer
dizer não somente maior igualdade de “oportunidades”, ou direitos passivos de bem-estar, mas
também a responsabilidade democrática ou independência ativa – na esfera econômica?
Seria possível imaginar uma forma de cidadania democrática que penetrasse o domínio
lacrado pelo capitalismo moderno? Seria possível que o capitalismo sobrevivesse a essa exten-
são da democracia? O capitalismo é compatível com a democracia em seu sentido literal? Se
persistirem as suas dificuldades atuais, continuará o capitalismo sendo compatível com o libe-
ralismo? Poderá o capitalismo se apoiar na sua capacidade de garantir a prosperidade material,
e será ele capaz de triunfar junto com a democracia liberal, ou sua sobrevivência em tempos
difíceis vai depender da redução dos direitos democráticos?
Seria a democracia liberal, na teoria e na prática, adequada para enfrentar as condições do
capitalismo moderno, para não falar do que existe fora e além dele? A democracia liberal
parece o fim da história por haver ultrapassado todas as alternativas imagináveis ou por ter
exaurido sua própria capacidade, enquanto esconde outras possibilidades? Ela realmente
superou todos os rivais ou apenas ocultou da vista temporariamente?
A tarefa que o liberalismo estabelece para si mesmo é, e continuará a ser, indispensável.
Enquanto houver Estados, haverá a necessidade de controlar seu poder e proteger os poderes
e as organizações independentes que existem fora do Estado. Quanto a isso, qualquer tipo de
poder social precisa ser cercado pela proteção da liberdade de associação, de comunicação,
de diversidade de opiniões, de uma esfera privada inviolável etc. Qualquer futura democra-
cia continuará a receber lições sobre esses temas da tradição liberal, tanto na teoria como na
prática. Mas o liberalismo – até mesmo como ideal, para não falar de sua realidade carregada
de imperfeições – não está equipado para enfrentar as realidades do poder numa sociedade
capitalista, muito menos para abranger um tipo mais inclusivo de democracia do que o que
existe hoje.

Atividades
1. Qual a importância social da constituição de um Estado democrático de Direito?

2. Qual relação entre o Estado democrático de Direito e o exercício da cidadania?

3. De acordo com Santos (2002), como acontece o fenômeno da globalização?

4. Estabeleça uma relação entre o processo de globalização, o Estado democrático de Direito e


o ordenamento jurídico nacional.

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_______. Lei n. 13.140, de 26 de junho de 2015. Dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de
solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública; e altera
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8
Mudança social e justiça

Você já parou para pensar se uma sociedade pode ser alterada? Como essas mudanças
podem acontecer?
Neste capítulo, será estudado o conceito de mudança social e como podem acontecer essas
alterações em uma sociedade. Também será analisado o conceito de movimentos sociais, seus ele-
mentos principais e seus reflexos na sociedade.
Para finalizar, será analisado o conceito de justiça social como um valor presente na socie-
dade, importante para possibilitar as transformações sociais.

8.1 O que são movimentos sociais?


Estudar os movimentos sociais possibilita alguns questionamentos: Como é possível definir
movimentos sociais? Por que eles surgem? Quais suas características? O que os diferencia de outras
ações coletivas?
Primeiramente, é preciso lembrar que as sociedades não são estáticas, elas estão em constante
processo de mudança. Para Antonio Carlos Gil (2011), as mudanças sociais são tão importantes para
o estudo das sociedades quanto o estudo da ordem, mas algumas mudanças vão acarretar alterações
significativas na sociedade, enquanto outras são mais particulares. Joel M. Charon (2000, p. 198)
afirma que “falamos em mudança social quando um padrão social (estrutura, cultura, instituições)
é significativamente diferente do que foi no passado”. No Brasil, podemos citar como uma grande
mudança social a publicação da Lei Áurea (BRASIL, 1988a), que libertou os escravos, gerando uma
nova forma de organização social com base no trabalho livre que se intensificou no país.
Pode-se citar diversos fatores que contribuem para que as mudanças ocorram no seio de
uma sociedade:
• Cultura – a cultura é fruto do conhecimento acumulado da humanidade, e, dessa forma,
é construída e modificada ao longo dos tempos, criando padrões que irão orientar com-
portamentos dentro de uma sociedade.
• Conflito – as sociedades mantêm um padrão de ordem em suas estruturas, mas também
há tensões entre indivíduos e instituições que podem gerar conflitos. Esses criam pressões
que podem acarretar mudanças.
• Ideias – novas formas de pensar podem gerar novos comportamentos.
• Demografia – Assim como a alteração populacional, os movimentos migratórios tam-
bém possibilitam grandes mudanças sociais.
• Sistema econômico – a economia é um fator importante que gera influência na orga-
nização e desenvolvimento da sociedade, logo as crises e os momentos de desenvolvi-
mento também.
102 Sociologia Jurídica

• Tecnologia – as inovações tecnológicas estão acontecendo de forma cada vez mais acele-
rada, possibilitando mudanças dentro da sociedade.
• Direito – o sistema normativo de uma sociedade também sofre as influências advindas
da sociedade, mas uma vez constituídas as normas jurídicas, essas também são fatores de
influência na ocorrência de mudanças sociais.
• Forças políticas – as sociedades são organizadas por indivíduos e grupos diferentes que
se organizam na busca de diversos interesses. Dessa forma, essa diversidade de forças po-
líticas dentro de uma sociedade transforma a sua estrutura e organização.

Assim sendo, verifica-se que as mudanças são parte de uma sociedade e os fatores que irão
contribuir para sua existência podem ser muito variados, e impactar de formas diferentes uma
determinada sociedade. Uma das formas de gerar mudanças dentro de uma sociedade são os mo-
vimentos sociais.
O sociólogo britânico Anthony Giddens (2012, p. 713) afirma que os movimentos sociais
são “tentativas coletivas de promover um interesse comum ou garantir um objetivo comum fora
das instituições estabelecidas”. O autor destaca a esfera de atuação dos movimentos sociais que
acontecem no âmbito da sociedade civil. Já a professora Maria da Glória Gohn (2000) esclarece
que é preciso não generalizar e considerar como movimentos sociais todas as ações que ocorrem
na esfera não institucional; mas os movimentos sociais atuam na esfera pública não governamental,
onde podem dar visibilidade as suas ações.
De acordo com Alain Touraine (1996), as ações coletivas surgem por não encontrarem res-
postas no sistema político existente, seja por sua limitação ou por sua paralização; mas, também,
podem surgir devido a interesses e objetivos de transformar a ordem política existente. “Por um
lado, as mobilizações coletivas aparecem como um resíduo que não pode ser tratado pelas institui-
ções; por outro, manifestam uma progressão radical ou revolucionária dirigidas contra instituições
que protegem interesses dominantes que só podem ser derrubados pela violência” (TOURAINE,
1996, p. 83-84).
No entanto, alerta Touraine (1996) que há diferenças entre os movimentos sociais e as ações
coletivas. As ações coletivas podem ter origem não democrática, enquanto os movimentos sociais
e a democracia são indissociáveis, posto que, apenas em uma sociedade democrática os indivíduos
podem formar movimentos sociais a partir da liberdade de escolha política de cada um e da pos-
sibilidade de buscar um bem comum junto à defesa de interesses particulares. Assim, para o autor,
a ideia de movimentos sociais deve ser oposta à ideia de violência, mesmo porque a própria de-
mocracia deve se opor à violência e possibilitar a ação plural dos indivíduos na sociedade, criando
espaços de respeito à diversidade.
Desta forma, Gohn (2000) acredita que para a análise dos movimentos sociais é preciso di-
ferenciá-los de outros conceitos. Os grupos de interesses caracterizam-se por terem uma vivência
anterior a sua organização, que os identifica em suas demandas, mas um movimento social pres-
supõe a existência de uma identidade posterior à reunião dos indivíduos para uma luta coletiva.
Por exemplo, um grupo de indivíduos que não têm moradia possui uma realidade comum, mas
para serem parte de um movimento social, precisam criar uma identidade a partir da demanda em
Mudança social e justiça 103

comum, criando e renovando suas ideias, ações e valores. As formas de atuação realizadas por um
grupo, como uma passeata, não caracterizam um movimento social, posto ser algo esporádico e
momentâneo; os movimentos sociais são mais amplos, pois têm uma continuidade na organização
e na elaboração de demandas que perduram no tempo.
Assim, de acordo com Gohn (2000, p. 13), os movimentos sociais podem ser definidos como:
[...] ações coletivas de caráter sociopolítico, construídas por atores sociais per-
tencentes a diferentes classes e camadas sociais. Eles politizam suas demandas
e criam um campo político de força social na sociedade civil. Suas ações estru-
turam-se a partir de repertórios criados sobre temas e problemas em situações
de conflitos, litígios e disputas. As ações desenvolvem um processo social e
político-cultural que cria uma identidade coletiva ao movimento, a partir de
interesses em comum. Esta identidade decorre da força do princípio da solida-
riedade e é construída a partir da base referencial.

A partir desse conceito, pode-se extrair os elementos que compõem um movimento social.
• Ação coletiva – os movimentos sociais são formações coletivas nas quais indivíduos com
interesses e identidade sobre um determinado assunto unem-se, de forma organizada,
com o propósito de alcançar seus objetivos.
• Caráter sociopolítico – os movimentos sociais decorrem de interesses e conflitos perten-
centes à determinada sociedade, que organizados adquirem um caráter político, pois têm
a intenção de transformar ou alterar um determinado quadro social.
• Diversidade de atores – um movimento social tem uma pluralidade de atores que o cons-
titui, pois, se houvesse apenas interesses de um grupo ou classe social, o movimento esta-
ria vinculado apenas a interesses particulares e o movimento social é mais amplo em seus
interesses e reivindicações.
• Politização das demandas – entendendo a política como organização e exercício do po-
der em uma pólis (cidade), as demandas advindas dos movimentos sociais são politizadas,
pois passam a ser o exercício do poder por seus integrantes que dispõem de maior cons-
ciência de sua cidadania.
• Identidade – a partir da organização do movimento social, de seus interesses e demandas,
há a formação de uma identidade social, pois seus integrantes passam a criar uma unida-
de e ser reconhecidos pelo discurso e práticas que desenvolvem.
• Princípio da solidariedade – a solidariedade é um elemento importante dentro de um
movimento social, não significando que os movimentos sociais são homogêneos e har-
mônicos, pois mesmo dentro dos movimentos sociais há disputas e divergências. É justa-
mente a solidariedade que cria a unidade e possibilita a ligação entre os diversos atores e
as possíveis divergências existentes.

Assim, “os movimentos geram uma série de inovações nas esferas pública e privada, partici-
pando direta ou indiretamente da luta política de um país e contribuindo para o desenvolvimento
e transformação da sociedade civil e política” (GOHN, 2000, p. 13). Mas cabe questionar: quais são
as etapas de constituição de um movimento social? Veremos.
104 Sociologia Jurídica

Para Gohn (1997), um movimento social segue as etapas descritas na Figura 1.


Figura 1 – Etapas de surgimento de um movimento social

situação de carências ou ideias e conjunto de metas a atingir

formulação das demandas por um pequeno número de pessoas

aglutinação de pessoas em torno das demandas

transformação das demandas em reinvindicações

organização elementar do movimento

formulação de estratégias

práticas coletivas, como reuniões e assembleias

encaminhamento das reivindicações

práticas de difusão

negociação com os opositores ou intermediários

consolidação e/ou institucionalização do movimento

Fonte: Elaborada pela autora com base nos estudos de Gohn (1997).

Assim sendo, pode-se verificar que os movimentos sociais são decorrentes das necessidades
de alteração dentro de uma sociedade. Os indivíduos organizam-se a partir dessas necessidades e a
reivindicam seus objetivos conjuntamente, podendo alcançá-los.

8.2 Relação entre movimentos sociais e as mudanças sociais


No Brasil, na década de 1980, os movimentos sociais foram importantes na contribuição
para a transformação da sociedade em um país democrático.
Por um lado, a constituição dos espaços públicos representa o saldo positivo
das décadas de luta pela democratização, expresso especialmente – mas não
só – pela Constituição de 1988, que foi fundamental na implementação destes
Mudança social e justiça 105

espaços de participação da sociedade civil na gestão da sociedade. Por outro


lado, o processo de encolhimento do Estado e da progressiva transferência de
suas responsabilidades sociais para a sociedade civil, que tem caracterizado os
últimos anos, estaria conferindo uma dimensão perversa a essas jovens expe-
riências. (DAGNINO, 2004, p. 97)

Já a década de 1990, em virtude dos ideários neoliberais incorporados na estrutura do gover-


no nacional, a concepção de um Estado mínimo ganha força e esse esvaziamento do Estado deixa
um espaço livre na sociedade que passa a ser ocupado por indivíduos especializados em determi-
nadas áreas sociais, posteriormente denominado Terceiro Setor.
No entanto, cabe esclarecer que essa nova forma de associativismo, não são movimentos
sociais, mas articulam-se com diversos movimentos sociais, conforme sejam convergentes os inte-
resses e objetivos das organizações não governamentais e dos movimentos sociais.
As organizações não governamentais, a partir da década de 1990, perdem parte de sua au-
tonomia devido à ligação com o Estado, criando uma outra forma de atuação da sociedade civil
organizada. Inclusive o Estado vai regulamentar essas organizações, em especial, com a Lei n. 9.790
(BRASIL, 1999), que vai regular as Organizações Sociais de Interesse Público.
Como o tema deste capítulo são os movimentos sociais e sua relação com as mudanças so-
ciais, importante destacar que “os movimentos sociais surgem com o objetivo de trazer mudanças
em uma questão pública, como a expansão dos direitos civis para um segmento da população”
(GIDDENS, 2012, p. 714).
Ao mesmo tempo que na sociedade surgem os movimentos sociais que buscam mudanças
na esfera pública, também surgem os movimentos que são contrários a esses interesses e que bus-
cam a conservação da sociedade. Um exemplo desse tipo de ação e reação existente na sociedade
brasileira é a divergência existente sobre a ampliação do direito ao aborto. Enquanto há movimen-
tos sociais que buscam a expansão do direito de realizá-lo, há outros movimentos que não querem
tal ampliação e, muitas vezes, inclusive, querem uma diminuição das regras já existentes na socie-
dade, propondo e defendendo um fluxo de restrição de direitos.
A disputa política entre projetos políticos distintos assume então o caráter de
uma disputa de significados para referências aparentemente comuns: participa-
ção, sociedade civil, cidadania, democracia. Nessa disputa, onde os deslizamen-
tos semânticos, os deslocamentos de sentido, são as armas principais, o terreno
da prática política se constitui num terreno minado, onde qualquer passo em
falso nos leva ao campo adversário. Aí a perversidade e o dilema que ela coloca,
instaurando uma tensão que atravessa hoje a dinâmica do avanço democrático
no Brasil. (DAGNINO, 2004, p. 97)

No entendimento de Giddens (2012, p. 715), “os movimentos sociais estão entre as formas
mais poderosas de ação coletiva. Campanhas persistentes e bem organizadas podem trazer resul-
tados dramáticos”.
Remo Mutzenberg (2011) explica que os movimentos sociais podem ser classificados em
três grandes grupos:
106 Sociologia Jurídica

1. Diversidade e direitos – nesses movimentos sociais estão os grupos que têm por objeti-
vos a luta por respeito à diversidade e a conquista de direitos relacionados à pluralidade
em seus diversos aspectos, como a questão da saúde, direitos reprodutivos, violência,
trabalho. Incluem-se os movimentos pelo respeito à diversidade de gênero como o mo-
vimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais), os movimentos de di-
reitos da mulher, que são compostos por uma diversidade de mulheres (trabalhadoras,
camponesas, afro-descentes, indígenas, dentre outras), os movimentos identitários e
culturais, em especial, o movimento negro, que ativamente se organizam para a con-
quista de direitos e respeito à cultura, podendo citar a aprovação de diversas normas ju-
rídicas relacionadas às cotas raciais para acesso às universidades públicas, por exemplo.
Figura 2 – Movimento feminista

jentakespictures/iStockphoto

2. Lutas por habitabilidade, trabalho e equipamentos e serviços coletivos – nesse grupo


de movimentos sociais estão incluídos os movimentos que lutam por conquista de mo-
radia, trabalho, saúde, equipamentos públicos eficientes e propriedade da terra. Exercem
esse movimento as associações de moradores, associações de pais e professores, conse-
lhos comunitários e sindicatos.
3. Globalização e antiglobalização – os movimentos sociais que estão incluídos nesse
grupo são aqueles relacionados à expansão do sistema neoliberal no mundo, incorpo-
rando em seus debates a questão do capitalismo, o processo de globalização e seus efeitos
como o aumento da desigualdade social e a desproteção ao meio ambiente. Estão nesse
grupo os movimentos conhecidos como o Fórum Social Mundial e o Occupy.
Mudança social e justiça 107

Figura 3 – Movimento Occupy

Merkuri2/iStockphoto
Assim, verifica-se a importância desses movimentos sociais, como formas de reivindicação
e mudança social a partir de interesses advindos da sociedade e da organização de indivíduos que
exercem sua cidadania de forma ativa.

8.3 A justiça como valor social


Após o estudo sobre os movimentos e as mudanças sociais, faz-se necessário analisar o valor
da justiça, pois está presente nos movimentos que buscam uma sociedade mais justa.
Mas o que é uma sociedade justa? É possível construir uma sociedade justa? Quais as carac-
terísticas dessa sociedade justa?
Jonh Kenneth Galbraith (1996) afirma que uma sociedade justa é aquela que é alcançável,
isto é, aquela que é possível de ser construída por seus integrantes, pois em todas as sociedades há
barreiras que estão postas, muitas vezes pela própria natureza, mas ao mesmo tempo, uma socie-
dade não pode abrir mão de determinados objetivos. “Na sociedade justa, todos os cidadãos devem
desfrutar de liberdade pessoal, de bem-estar básico, de igualdade racial e étnica, da oportunidade
de uma vida gratificante” (1996, p. 4).
Da análise do autor, pode-se identificar alguns elementos necessários ao desdobramento de
uma maior reflexão.
• Uma sociedade alcançável – essa característica permite a reflexão sobre o atributo da
sociedade ser dinâmica. Se uma sociedade for justa, pode-se inferir que seja algo pron-
to, estático. Mas ao caracterizá-la como alcançável, permite entendê-la em movimento,
em processo de construção. Também permite compreender as limitações que cada so-
ciedade possui, podendo analisar a justiça pela ótica das possibilidades, das potências
existentes dentro da sociedade.
108 Sociologia Jurídica

• Valores – mesmo uma sociedade sendo dinâmica e em processo de construção e aperfei-


çoamento, os valores estão relacionados à ética – que pode ser considerada um conjun-
to de valores que têm por finalidade orientar as ações dos indivíduos e possibilitar um
aperfeiçoamento das relações sociais, visando uma convivência harmoniosa entre seus
integrantes. Assim, uma sociedade com base em valores éticos é uma sociedade ética. No
conceito trazido pelo autor, estão inclusos alguns valores, como a liberdade e a igualdade.
No ordenamento jurídico brasileiro, em especial na Constituição Federal (BRASIL, 1988),
esses dois valores são postos na categoria de direitos fundamentais (art. 5º, caput e inciso I).
• Vida gratificante – mas o que seria uma vida gratificante? Uma vida gratificante poderia
ser considerada uma vida boa para ser vivida, isto é, uma vida digna, em que cada indiví-
duo tenha oportunidades de exercitar suas potencialidades e viver com qualidade de vida
e segurança. No ordenamento jurídico brasileiro, a dignidade da pessoa humana assume
a natureza de fundamento da República Federativa Brasileira (art. 1° CF).

A autora Agnes Heller (1998) explica que para a construção de uma vida boa, esta deve estar
relacionada à ideia de justiça, pois a justiça é a base para uma vida boa que, por sua vez, é consti-
tuída de três elementos:
a. certeza/retidão/honestidade – a condição para uma vida boa é uma condição moral, a
retidão. Assim, o ponto de partida é o conceito de pessoa correta. A escolha existencial
pela retidão/honestidade é uma escolha racional e moral. “A escolha constitui uma resolu-
ção de ser o que somos”. Dessa forma, as escolhas boas, com base naquilo que é o bem, são
aquelas escolhas que refletem em uma vida boa. As pessoas honestas e boas (certas) são
aquelas que agem buscando a criação do melhor mundo moral possível, que é o melhor
mundo sociopolítico possível.
Quadro 1 – Máximas proibitivas e máximas imperativas
Máximas proibitivas Máximas imperativas

Não escolha normas que não podem ser tornadas Reconheça igualmente todas as pessoas como
públicas. livres e racionais.

Reconheça todas as necessidades humanas,


Não escolha normas cuja observância envolve, exceto aquelas cuja satisfação envolve o uso de
em princípio, o uso de pessoas como simples meio. outras pessoas como simples meios, por razão
de princípio.

Não escolha normas em que nem todo mundo é Respeite pessoas igualmente segundo as virtu-
livre para escolher. des e méritos (morais).

Não escolha normas como normas morais, as


Mantenha a dignidade humana em todas as suas
observâncias das quais não é um objetivo por
ações.
si mesmo.

Fonte: Elaborado pela autora com base em Heller (1998, p. 400).

b. desenvolvimento de dons e talentos e exercício daqueles talentos – para a construção


de uma sociedade justa, é preciso que haja o desenvolvimento e o exercício dos talentos de
seus integrantes. De acordo com Heller (1998), esse processo é o processo de construção
Mudança social e justiça 109

do próprio “eu”, cada um se autocompõe a partir das possibilidades, da sociedade e das


escolhas que faz. Para Heller (1998, p. 420), o melhor mundo sociopolítico possível é
aquele que oferece a possibilidade ótima para que os indivíduos possam desenvolver seus
talentos, de acordo com três argumentos:
1. diferentes modos de vida permitem diferentes talentos, a pessoa é livre para abando-
nar um caminho e tomar outro, dependendo de suas necessidades;
2. uma vez que nesse universo nenhum modo de vida envolve dominação, e o intercur-
so social entre os caminhos de vida também não envolve dominação, não pode exis-
tir qualquer dom cujo desenvolvimento em predicado não seja permitido. A pessoa
honesta pode desenvolver, e praticar, qualquer talento que tenha;
3. cada ambiente permite o desenvolvimento de virtudes intelectuais, e, simultanea-
mente, o elemento intelectual de “observar honestidade” será menos exigente e,
principalmente, será restrito pela certeza de discurso prático e boa phronesis. Phronesis: sabe-
doria prática.
c. profunda ligação em emoções pessoais – para a autora, a expressão ligação profunda é
aquela que transcende a determinação social. As pessoas honestas são unidas por ligação
de solidariedade universal, sob a égide da bondade. “Ser honesto é oferecer a mão cada ser
humano [...]” (HELLER, 1998, p. 428).
Heller (1998) conclui que a bondade está para além da justiça, pois entende que encerra em
si a virtude da justiça e o seu exercício. Mas é possível questionar: como pode se dar esse exercício
da justiça?
Otfried Hoffe (2005) explica que para que se possa constituir uma sociedade boa para se vi-
ver, esta deve ter por base uma democracia qualificada, em que os cidadãos não são apenas objetos
do Direito e do Estado, mas também são seus sujeitos, assim é preciso que os indivíduos deixem a
posição de súditos para exercer a condição de cidadão. “Na sociedade cívica, o Estado deixa de se
apresentar como uma unidade entre detentores de cargos públicos e seus súditos, para formar uma
unidade entre indivíduos livres e iguais” (2005, p. 226).
Em uma sociedade cívica, quatro virtudes são necessárias, podendo ser apresentada confor-
me o quadro a seguir:
Quadro 2 – Virtudes cívicas em uma democracia qualificada

Virtudes cívicas Descrição

Baseado em uma tríade jurídica: viver honestamente, não ferir ninguém e deixar
Senso de direito e coragem civil
ou atribuir a cada um o que é seu.

O senso de justiça pode ser identificado em três campos de atividade: 1) instituir


um Estado justo (sem privilégios e com o reconhecimento dos indivíduos como li-
vres e iguais); 2) desenvolvimento de instituições do Estado e organização de uma
legislação que conduza aos princípios constitucionais; 3) aplicação do Direito e
Senso de justiça e tolerância da Justiça em casos individuais.
O senso de tolerância é a base para o reconhecimento da equidade, haja visto, que
nas sociedades existem realidades antagônicas e paralelas, isto é, há um pluralis-
mo na sociedade que precisa ser respeitado. A tolerância deve ser ativa buscando
a alteridade.

(Continua)
110 Sociologia Jurídica

Virtudes cívicas Descrição

Refere-se ao engajamento do indivíduo em prol da existência e do bem-estar do


Estado em benefício da democracia. Para tanto, há quatro critérios universais:
1) nenhum indivíduo será capaz de eliminar todas as necessidades existentes
na face da terra (senso cívico democrático formal e mínimo); 2) aquele que não
Senso cívico
ajudar, quando chegar a sua vez, passará por um oportunista (senso cívico parti-
cipativo); 3) cortejar a menor necessidade de um indivíduo próximo com a maior
necessidade de um indivíduo distante de nós (senso cívico nacionalista e seu
efeito externo); 4) nenhuma obrigação jurídica deverá ser violada.

Resistir a estatização da sociedade, limitar a burocratização, ampliando a mar-


Senso comunitário
gem de ação dos cidadãos.

Fonte: Elaborado pela autora com base em Heller (1998, p. 217-252).

Dessa forma, para se alcançar uma sociedade em que a justiça social seja um de seus va-
lores centrais, é preciso a intensificação de valores entre seus integrantes. Nas palavras de Hoffe
(2009), deve-se desenvolver as virtudes cívicas que possibilitem o exercício da solidariedade entre
os integrantes de uma sociedade. Também se faz fundamental a participação desses indivíduos no
exercício dessas virtudes de forma coletiva e democrática, pois, assim, haverá o envolvimento de
um número maior de indivíduos, uma maior contribuição de ideias e uma maior propagação de
novas ideias e comportamentos.

Considerações finais
Por fim, é possível questionar: e o Brasil, conseguirá ser uma sociedade justa?
Sim, será possível construir uma sociedade justa, mas para isso, será necessária uma trans-
formação nos valores dos indivíduos para que possam identificar a importância da solidariedade
entre seus integrantes. Olhar além dos interesses particulares e verificar que todos os integrantes
de uma sociedade são importantes e devem ser respeitadas em sua dignidade. Alterar a forma
de pensar e incorporar virtudes cívicas nas decisões de cada um pode possibilitar uma profunda
transformação na sociedade brasileira. Basta começar.

Ampliando seus conhecimentos


O trecho a seguir foi extraído do livro intitulado Fórum Social Mundial: manual de uso, de
autoria de Boaventura de Sousa Santos, sociólogo e professor titular da Universidade de Coimbra
em Portugal e um dos idealizadores e realizadores do Fórum Social Mundial que ocorre há mais
de 15 anos.

A novidade do Fórum Social Mundial


(SANTOS, 2004, p. 6)

O Fórum Social Mundial (FSM) é um fenômeno social e político novo. O fato de ter ante-
cedentes não diminui a sua novidade, antes pelo contrário. O FSM não é um evento. Nem
Mudança social e justiça 111

é uma mera sucessão de eventos, embora procure dramatizar as reuniões formais que pro-
move. Não é uma conferência acadêmica, embora para ele convirjam os contributos de muitos
investigadores. Não é um partido ou uma internacional de partidos, apesar de nele participa-
rem militantes e activistas de muitos partidos de todo o mundo. Não é uma organização não
governamental ou uma confederação de organizações não governamentais, muito embora a
sua concepção e organização devam bastante às organizações não governamentais. Não é um
movimento social, apesar de muitas vezes se autodesignar como o movimento dos movimen-
tos. Embora se apresente enquanto agente da transformação social, o FSM rejeita a noção
de um sujeito histórico e não atribui prioridade a qualquer ator social específico nesse pro-
cesso de transformação social. Não assume uma ideologia claramente definida, tanto naquilo
que rejeita como naquilo que defende. Considerando que o FSM se autoconcebe enquanto
luta contra a globalização neoliberal, será essa uma luta contra uma forma de capitalismo ou
contra o capitalismo em geral? Tendo em conta que o FSM se encara como sendo uma luta
contra a discriminação, a exclusão e a opressão, será que o sucesso dessa luta pressupõe um
horizonte pós-capitalista, socialista e anarquista, ou, pelo contrário, pressupõe que nenhum
horizonte seja especificamente definido? Atendendo a que a ampla maioria das pessoas que
participam no FSM se identifica como apoiante de uma política de esquerda, quantas defini-
ções de “esquerda” cabem no FSM? E o que pensar daqueles que recusam ser definidos como
de esquerda ou de direita por considerarem que esta dicotomia é um particularismo nortecên-
trico ou ocidental-cêntrico, e procuram definições políticas alternativas? As lutas sociais que
encontram expressão no FSM não se ajustam adequadamente a nenhuma das vias de trans-
formação social sancionadas pela modernidade ocidental: reforma e revolução. Para além do
consenso sobre a não-violência, as suas formas de luta são extremamente diversas e estão
distribuídas num contínuo entre o polo da institucionalidade e o polo da insurreição. Mesmo
o conceito de não violência está aberto às interpretações mais díspares. Finalmente, o FSM
não está estruturado de acordo com qualquer dos modelos de organização política moderna,
seja ele o do centralismo democrático, o da democracia representativa ou o da democracia
participativa. Ninguém o representa ou está autorizado a falar e, muito menos, a tomar deci-
sões em seu nome, ainda que ele seja concebido como um fórum que facilita as decisões dos
movimentos e das organizações que nele participam.

Atividades
1. Quais as principais características de um movimento social? Explique-as com suas palavras.

2. Pode-se afirmar que o surgimento do Terceiro Setor no Brasil suprimiu os movimentos


sociais? Justifique sua resposta.

3. Qual a relação entre os movimentos sociais e as mudanças sociais?

4. Para Gailbraith (1996), o que é preciso para a construção de uma sociedade justa?
112 Sociologia Jurídica

Referências
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TOURAINE, Alain. O que é a democracia? Petrópolis: Vozes, 1996.


Gabarito

1 As relações entre a sociedade e o Direito


1. O objeto de estudo da sociologia é a sociedade compreendida como um grupo social, diver-
sificado, complexo, dinâmico e com objetivos próprios. As pesquisas sociológicas permitem
uma ampliação do conhecimento sobre as relações sociais, possibilitando sair da esfera do
senso comum, permitindo explicações diferentes sobre um mesmo fenômeno social, o que
possibilita uma ampliação das visões sobre uma mesma sociedade. Ao ampliar esse conhe-
cimento os indivíduos podem adquirir uma maior compreensaão sobre si mesmos, propor-
cionando uma oportunidade de transformação pessoal e social.

2. A norma jurídica é criada pela relação estabelecida entre o Direito as relações sociais. Con-
sequentemente, a norma obedece a esse mesmo processo alterando comportamento, mu-
dando instituições, suprindo necessidades sociais.

3. Neste capítulo o Direito foi estudado como um fato social, visto que as normas jurídicas são
fruto das necessidades e transformações que ocorrem na sociedade. Portanto, entender o
Direito apenas como o conjunto de normas imperativas que a organizam, não explica por
que as normas jurídicas são diferentes para cada uma delas e que em uma mesma sociedade
as normas jurídicas são alteradas ao longo do tempo. Assim, pode-se compreender que há
interferência na formação das normas jurídicas da cultura, do conhecimento, dos valores,
das instituições de cada sociedade e quando há mudanças nesse contexto social surgem no-
vas demandas na ordem jurídica. Dessa forma, é possível afirmar que o Direito é fruto da
sociedade e por isso é um fato social.

4. O campo de estudo da sociologia jurídica é a constituição da norma, em seus trâmites e re-


gulamentações legais, e a dimensão de análise dessas normas, se dá pela sua vigência.

2 Os clássicos da sociologia
1. Ao estudar o pensamento de Émile Durkheim, ficou claro que, para o autor, a divisão social
do trabalho interfere na organização da sociedade. Portanto, quanto maior for a divisão so-
cial do trabalho, há maior especialização e maior individualização das pessoas, interferindo
na coesão social, pois os indivíduos passam a agir movidos mais pelos interesses pessoais,
havendo uma crise da solidariedade entre as pessoas. Dessa forma, o papel do Estado se
torna fundamental para a manutenção da coesão social, fiscalizando e participando na regu-
lamentação das profissões e na organização da educação.
114 Sociologia Jurídica

2. No estudo de Max Weber há uma preocupação de compreender o sentido dado pelos indiví-
duos às suas ações. Para tanto, o autor define ação social como a ação humana dotada de sen-
tido, tendo uma justificativa subjetivamente elaborada. Para o autor, há grande importância
na busca da compreensão de como as ações têm um sentido no âmbito social. Para tanto, a
relação social estabelecida pelos indivíduos na sociedade é explicada por Weber como ações
orientadas em função das perspectivas que um indivíduo tem em relação ao outro, mas que
não tem necessariamente o mesmo sentido em suas ações. Assim, o Direito também deve
ser analisado por essa perspectiva, e deve-se compreender a relação do indivíduo com a lei,
pois cada indivíduo pode fazer uma interpretação e ter um sentido para sua ação com base
nas normas do Direito.

3. Karl Marx analisa a sociedade capitalista tendo o trabalho como seu elemento central, por-
que o autor entende que nessa etapa do desenvolvimento histórico a sociedade divide-se em
duas grandes classes: a burguesa e a proletária, em que a primeira é proprietária dos meios
de produção e a segunda é proprietária da força de trabalho. É por meio dessa relação de
exploração que se estabelece entre as duas classes que há a produção das mercadorias e a
geração da mais-valia para a classe burguesa. A classe burguesa, para manter essa infraestru-
tura social, precisa também de uma superestrutura que tem a finalidade de controle. Nessa
superestrutura da sociedade estão o Direito e o Estado como elementos de poder e domina-
ção, pois o Estado e o Direito passam a representar os interesses da classe burguesa, que tem
além do poder econômico, o poder político também.

4. Para os três autores, o Estado tem um papel central de controle. No entanto, para cada um
dos autores, Durkheim, Weber e Marx, há um entendimento diferente para essa função. Para
Durkheim, o papel de controle do Estado serve para a manutenção da coesão social. Para
Weber, o Estado tem a função de controle, exercendo uma dominação por meio da raciona-
lidade legal, pois, se o Direito pode ser interpretado de diversas formas, é o Estado que deve
ter esse domínio e também o monopólio da violência. Para Marx, o Estado representa os
interesses da classe burguesa, e tem a finalidade de controle social, pois é necessário à classe
dominante manter uma infraestrutura social que represente seus interesses econômicos.

3 Entendendo as transformações da sociedade contemporânea


1. De acordo com Giddens, a modernidade é um novo estilo de vida e de organização social
que surge na Europa a partir do século XVII. Essa nova forma de organização social carac-
teriza-se pela incorporação e desenvolvimento de ideias relacionadas à razão, progresso,
ciência sujeito, Estado. Importante destacar que a modernidade está relacionada a um
momento histórico de ruptura com a sociedade tradicional, com maior liberdade de pen-
samento e ação e a superação de limitações territoriais e econômicas. É na modernidade
que instituições importantes como o Estado, a produção de mercadorias, o trabalho na
forma assalariada vão começar a ter sua existência.
Gabarito 115

2. Para Bauman, a pós-modernidade é marcada pela ideia de fluidez, liquidez, incerteza, inse-
gurança. Entende o autor que a modernidade líquida se refere ao tempo atual que a sociedade
contemporânea está vivendo. É um período em que as marcas da denominada modernidade
pesada, isso é, a ideia de solidez, segurança, certeza, estão sendo retiradas. É no período da
modernidade líquida que os principais referenciais humanos como família, classe, naciona-
lidade, política estão derretendo e dessa forma, o indivíduo vai ficando isolado, tornando-se
responsável por seus atos e seu destino, gerando consequências como a incerteza e a insegu-
rança nos indivíduos, pois ele vive em mundo líquido, onde o consumo é incentivado, mas
também é volátil, passageiro, até as relações pessoais se tornam frágeis.

3. Para Ulrich Beck, a modernização reflexiva é caracterizada pela obsolescência da sociedade


industrial e pela sociedade de risco. Entende o autor que a modernização é reflexiva porque
é uma fase de destruição e ao mesmo tempo de criação de uma nova modernidade. No en-
tanto, esse processo de destruição gera riscos que podem fugir ao controle das instituições
como o Estado.

4. Sim, o Direito tem sofrido os impactos da pós-modernidade. Esses impactos acontecem


porque a sociedade está em processo de transformação cada vez mais acelerado e, como o
Direito é fruto dessa sociedade, precisará também ser alterado para não perder sua função
na sociedade, tornando-se mais diversificado, participativo, cidadão, interdisciplinar e vol-
tado para a realização da justiça social.

4 Grupos sociais e hegemonia


1. Um grupo convergente é aquele que reúne diversos grupos com interesses particulares,
mas que têm pelo um interesse em comum, por isso, são convergentes, isto é, têm um
interesse que está concetando todos esses grupos. Forma-se uma relação intragrupal entre
esses diversos grupos. Já os grupos divergentes são formados por diversos grupos conver-
gentes, mas que são divergentes entre si, isso significa que há interesses em comum dentro
dos grupos convergentes, mas que entre os grupos há interesses distintos, formando uma
relação intergrupal.

2. Para Gramsci, a hegemonia é um processo que se forma quando um grupo ou classe consegue
transformar um interesse particular em um interesse geral. Nesse processo, o grupo líder for-
ma pactos e alianças utilizando-se de meios diferentes da coerção e da violência. Esse conceito
de hegemonia pode ser utilizado para a análise da formação das normas jurídicas, pois dentro
das casas legislativas e dentro da sociedade há disputas por interesses diversos que apresentam
na construção e aprovação de um projeto de lei. No entanto, é o grupo hegenômico que conse-
gue obter um resultado favorávell, conseguindio que seu interesse prevaleça.

3. Para Gramsci, o Estado deve ser entendido de forma mais ampla que o conceito liberal de
Estado, criando o conceito de Estado ampliado. Esse Estado ampliado é formado pela socie-
116 Sociologia Jurídica

dade política e pela sociedade civil. A primeira é composta pelos aparelhos administrativo-
-burocrático e político-militar; e a segunda é formada por aparelhos privados de hegemonia.

4. Para Santos, na sociedade contemporânea, o Estado não conseguiu produzir uma sociedade
mais justa, igualitária e participativa, pois os grupos hegemônicos produziram uma socie-
dade voltada para os interesses econômicos e corporativos. Desta forma, o autor faz uma
crítica, ao afirmar que a própria sociedade se organiza em processos contra-hegemônicos
para buscar a construção de uma nova forma de organização social baseada em princípios
democráticos de participação social, incluindo só grupos subaltermos para que haja uma
ampliação dos processos participativos e da cidadania.

5 Direito e ideologia
1. Para Chaui, a ideologia é formada por um processo que tem origem na divisão do trabalho den-
tro de uma sociedade. Dessa divisão do trabalho há, em especial, a divisão entre o trabalho inte-
lectual e material. O trabalho intelectual, desta forma, adquire uma aparente autonomia, que irá
se refletir na suposta autonomia dos produtores do trabalho intelectual. Assim, o produto do tra-
balho intelectual adquire na sociedade uma certa autonomia, apresentam-se na sociedade como
ideias abstratas, que explicam a sociedade, mas a explicam de forma invertida, pois essas ideias
têm base na realidade concreta, mas são demonstradas a partir de uma ótica invertida. Assim, a
autora afirma que a ideologia é fruto das ideias da classe dominante, sendo um instrumento de
dominação entre classe, que tem como função ocultar a divisão entre as classes e possibilitar a
perpetuação da classe dominante sem a necessidade da força física.

2. Althusser entende que não é possível estudar a ideologia sem sua vinculação com o Esta-
do. Para o autor, o Estado é composto por dois corpos: os aparelhos repressivos do Estado
e os aparelhos ideológicos do Estado. O Direito pertence às instituições que compõem os
aparelhos ideológicos do Estado, tendo por função reprodução da força de trabalho, não
apenas no aspecto da qualificação, mas também na sujeição ao sistema produtivo existente.
No entanto, o Direito também pertence aos aparelhos repressivos do Estado, pois faz parte
da superestrutura do Estado.

3. Para Gramsci, as ideologias fazem parte das sociedades, não apenas como uma forma de
controle e de dominação da classe dominante sobre as demais classes, mas como as ideias
que existem em uma sociedade. A partir dessa compreensão, o autor afirma existirem duas
formas de ideologia na sociedade: as ideologias arbitrárias e as ideologias historicamente or-
gânicas. A diferença entre elas é que a primeira, a arbitrária, tem a função de criação de uma
hegemonia da classe dominante sobre as demais classes, dessa forma, devendo haver uma
luta contra esse tipo de ideologia. Já as ideologias historicamente orgânicas, são as ideias
existentes em uma sociedade, independentes de grupos e classes, assim possibilitando que
dentro dessas ideologias historicamente orgânicas surjam novas ideias e novas formas de
pensar e agir, o que permite um dinamismo na sociedade e a possibilidade de mudanças.
Gabarito 117

4. Para Gramsci, os intelectuais são fundamentais no processo de mudanças sociais. Para o


autor, todos os indivíduos são intelectuais, mesmo que nem todos assumam esse papel na
sociedade. Para ele, é possível dividir os intelectuais em dois tipos: os intelectuais tradicio-
nais e os intelectuais orgânicos. Os primeiros acreditam estar desvinculados das classes que
pertencem, mas nem sempre estão. Os segundos são provenientes das classes de origem,
por isso, são orgânicos. Esses intelectuais orgânicos têm a função de pensar a sua classe.
A importância apontada a esses intelectuais, pelo autor, refere-se, em especial, aos intelec-
tuais orgânicos da classe proletária, pois poderiam romper com o senso comum e gerar
novas ideias que possibilitem a mudança dentro da sociedade. Desta forma, esses intelec-
tuais, a partir de uma prática política, poderiam desmistificar ideias presentes na sociedade
e criar ao mesmo tempo uma consciência crítica e transformadora na sociedade.

6 Controle social, violência e política


1. Sim, o Direito faz parte de uma das formas formais de controle social dentro de uma socie-
dade. Entendendo o controle social como estruturas para impedir ou reduzir transgressões
às normas de uma sociedade, pode-se afirmar que o Direito é uma forma de controle social.

2. Para Marilena Chaui, a violência é todo ato que se opõe à liberdade de agir dos indivíduos,
tratando-os como se fossem coisas em vez de tratá-los como seres racionais e autônomos.
Para a autora, a sociedade brasileira tem uma pluralidade de mecanismos que impendem
ou dificultam o exercício da autonomia e da liberdade dos seus integrantes, desta forma,
constituindo-se como uma sociedade violenta.

3. Para Michel Foucault, a vigilância na sociedade gera uma sociedade disciplinar que tem por
finalidade criar sujeitos mais dóceis e úteis à sociedade. Dessa forma, a disciplina tem por obje-
tivo o controle das atividades dos indivíduos e de seus corpos para um ajustamento às normas
da sociedade.

4. Para Hannah Arendt, o poder é a habilidade de agir em uníssono, isto é, agir em um gru-
po. Assim, o poder não pertence a uma pessoa, mas ao grupo que o concede, legitimando
alguém a exercê-lo em nome dos demais. A violência, por sua vez, é um instrumento que
pode ser utilizado por aquele indivíduo que não tem mais legitimidade de seu grupo, isto
é, não tem mais poder. Por fim, a política relaciona-se com esses conceitos, pois se o poder
é um agir em grupo, logo é um ato de política, isto é, a forma de constituição do poder e
de escolha de seus representantes efetivam-se pelo exercício da política.

7 Democracia e globalização
1. Quando uma sociedade constitui um Estado democrático de Direito, significa que houve a
compreensão da necessidade de democratizar a estrutura do Estado, isto é, que as institui-
ções estatais devem se constituir com base no princípio democrático. Dessa forma, o Estado
passa a incorporar em sua estrutura e funcionamento o processo democrático e assim o
118 Sociologia Jurídica

povo pode estar presente no próprio Estado. Lembrando que um Estado democrático de Di-
reito é aquele que tem sua estrutura e seu sistema jurídico limitado pelo poder popular. Por
fim, a criação de um Estado democrático de Direito é ter em seu bojo a participação popular,
o que dá ao Estado maior legitimidade popular e maior controle da população, evitando os
excessos de seus governantes.

2. Compreendendo um Estado democrático de Direito como aquele que tem em suas institui-
ções e estrutura o princípio democrático e a democracia como o poder exercido pelo povo,
tem-se uma ligação entre esses dois conceitos, o povo. Se o poder é do povo, então para que
haja efetivamente o exercício desse poder, é preciso que o povo, enquanto o conjunto dos
cidadãos de um Estado, exerça seu poder, isto é, exerça sua cidadania. Por meio do exercício
da cidadania, o Estado e o Direito passam a ter sua constituição e efetividade ligados a essa
atuação dos cidadãos.

3. Para Boaventura de Souza Santos, a globalização é um fenômeno plural e complexo, pois


acontece em diversas dimensões, podendo citar: a) a globalização econômica, como aquela
relacionada a uma economia dominada por um sistema financeiro e pelo investimento em
escala global e por processo de transformação produtiva; b) a globalização social tendo por
característica de novidade a presença das empresas multinacionais que concentram capital e
o processo produtivo e que contribuem para a geração de grandes desigualdades em esfera
mundial; c) a globalização política, na qual há grande influência sobre a autonomia política
e a soberania dos Estados periféricos ou semiperiféricos; d) globalização cultural, caracte-
rizada pela intensificação e ampliação dos meios de comunicação a disseminação cultural
relacionada com a capacidade de transformação da cultura em mercadorias.

4. Conforme estudado, o processo de globalização não é uniforme nem homogêneo. Há um


movimento de processo de concentração. Tem havido uma grande concentração de capital
nas empresas transnacionais que impactam a produção de bens e a prestação de serviços no
mundo, afetando diretamente a organização dos Estados que perdem parte de sua autono-
mia. Contribui para essa diminuição do poder dos Estados, a criação de entidades supra-
nacionais que passam a regular e orientar políticas que anteriormente eram realizadas pelos
Estados. Dessa forma, o processo de globalização impacta a soberania dos Estados no que
tange sua forma de organização e de definição de políticas públicas, e assim, os processos
democráticos que deveriam ser a base para a constituição dos Estados e do Direito são im-
pactados pela ordem externa ao Estado.

8 Mudança social e justiça


1. Um movimento social é uma ação coletiva que tem caráter sociopolítico, formado por indi-
víduos diferentes, mas que possuem um interesse em comum, e se organizam para alcançar
objetivos afins. Assim, um movimento social tem por características: a) ser uma ação cole-
tiva, isto é, ser união de diversas pessoas que atuam de forma conjunta; b) ter um caráter
sociopolítico, visto que deriva de demandas sociais e tem sua atuação no seio da sociedade e
Gabarito 119

esse exercício conjunto é uma ação política que visa objetivos que são as mudanças sociais;
c) possuir diversidade de atores, um movimento social deve ser formado por diferentes pes-
soas; d) politizar das demandas, os interesses particulares passam a ser organizados com
finalidades coletivas; e) ter identidade, a participação de indivíduos diferentes em um mo-
vimento social, mas com um objetivo em comum, com uma demanda coletiva, forma uma
identidade entre seus membros; f) ter solidariedade, a união de indivíduos diferentes com
demandas em comuns em um movimento social, acontece pela incorporação do princípio
da solidariedade, pois quem não é solidário, dificilmente se mobilizará para a luta coletiva
na busca da transformação de uma sociedade.

2. Não, os movimentos sociais são diferentes do Terceiro Setor. O Terceiro Setor no Brasil
ganhou força na década de 1990 quando houve a incorporação das ideias neoliberais, em
especial, o entendimento do Estado como um Estado mínimo, isto é, um Estado que atue
apenas nas áreas essenciais e deixe ao mercado e à sociedade as demais áreas. Dessa forma,
o Terceiro Setor se expandiu e passou a desenvolver, em parceria com o Estado, ações que
antes eram desenvolvidas apenas pelo Estado. Ele atua em colaboração com os movimentos
sociais, mas não se equiparam e não têm a mesma finalidade na sociedade.

3. Os movimentos sociais têm relação com as mudanças sociais, pois os indivíduos ao se orga-
nizarem em torno de demandas coletivas e buscarem de diferentes formas as reivindicações
e a difusão de suas ideias e demandas, acabam por possibilitar mudanças sociais ou evitar
determinadas mudanças contrárias às suas demandas.

4. Para Galbraith (1996), uma sociedade justa é aquela que é possível ser construída por seus
integrantes, posto que todas as sociedades têm barreiras que dificultam ou impedem a cons-
trução de uma sociedade justa. Mas para que isso aconteça, é preciso a incorporação de
valores éticos, com base em princípios como o da solidariedade, da liberdade e da igualdade.
Também se faz necessária a busca por uma vida gratificante, isto é, por uma vida que seja
boa de ser vivida, que respeite princípios como o da dignidade da pessoa humana.
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