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Ordo Nyx

Arcana

Índice
1 – Fugindo

Empurrei com ambas as mãos a porta dupla e ogival da antiga igreja do centro da
cidade, olhei para a noite que se derramava em água, a chuva criava uma névoa
branca abaixo das luzes dos postes públicos, esperava ao menos ver quem estava
me seguindo.
Estava assustada, tão assustada ao ponto de saltar com o barulho do carro que
virou pegando a rua ao lado da igreja, o seguia com os olhos, com seus faróis a
iluminar as gotas grossas que caíam impiedosas. Parecia não haver nada,
contudo estava com medo.
Com mãos trêmulas fechei a porta atrás de mim, para ter uma visão melhor do
interior da igreja antes de me mover. Sentia estar em terrível perigo, o que fazia
com que o ar me escapasse e me tornava ofegante. Questionava minha sanidade
naquele momento, não tinha visto nada.
Ainda assim sentia que tinha alguma coisa lá, em algum lugar, me encarando de
modo estranho e assustador, uma besta selvagem pronta para me devorar, soprei
o ar, mas não senti alívio.
A igreja me parecia mais assustadora do que o que fosse que estivesse do lado de
fora. Seu teto arqueado era preenchido por afrescos e iluminado pela quantidade
enorme de velas acesas por toda a igreja, a dança das chamas criavam sombras
fugidiças nas paredes e nos rostos das milhares de estátuas de santos espelhadas
pelo longo pátio.
Naquele momento percebi que, como uma criança, ainda não tinha certeza se
tinha mais medo do céu do que do inferno. Não fazia nenhum sentido me manter
ali dentro, entretanto meu corpo não queria deixar aquele lugar por nada. E até
aquele momento meus instintos estavam ganhando.
Se fosse uma crise ansiosa saberia quando acabasse. Foi com esse pensamento
que cruzei toda a igreja, com seus bancos escuros ladeando o tapete vinho que
cobria o chão xadrez e quem sabe algumas criptas. O que chamou minha
atenção, porque normalmente não tinham tapetes nas igrejas, não fosse quando
tinham cerimônias especiais e mais elaboradas.
Quer dizer, ao menos achava que era assim que funcionava, não ia a igreja, não
era religiosa, nunca me senti muito bem dentro de igrejas, por algum motivo
inconsciente eram me aterrorizantes. Vivia numa cidade que toda a população
cresceu em torno de uma igreja. Hoje em dia crescem em torno das indústrias.
Alguém mudou de time.
E ali continuava a aventurar-me igreja adentro, olhando todos seus ornamentos,
suas pinturas e estátuas, como quem visita um museu. Contudo, ainda me
questionava quem deixara aquele lugar naquele estado àquela hora da noite. E
esse questionamento me atordoava mais do que o medo que sentia do que quer
que fosse que estivesse lá fora.
Então, ouvi passos do que parecia ser alguma escada em algum lugar do chão
que não me era visível de onde estava e por instinto, escondi-me atrás de uma
estátua próxima a mim. Fiquei olhando, escondida na sombra do enorme santo
ao meu lado e tudo o que meus olhos captaram foram três encapuzados, os
capuzes cobriam os rostos e era de um tecido preto e brilhante, sem muito
ornamento.
Começaram a cantar algo em latim, sabia que era latim, qualquer um que tenha
uma língua com raiz no latim como a minha, é fácil de reconhecer, porque o latim
é terrivelmente familiar.
Olhei outra vez, eles se moviam, estavam com incensos nas mãos e defumavam a
igreja com aquele cheiro tão peculiar. Olíbano? Não sabia precisar, talvez fossem
apenas padres realizando uma missa na madrugada. Agarrada nesse pensamento
otimista, deixei meu esconderijo.
Os três pararam abruptos e se viraram para mim. Isso me encheu de terror,
sentia que tinha tomado uma péssima ideia e meus olhos correram rapidamente
para a porta da igreja para calcular se a fuga era possível. Sabia que não era
momento para pensar e sim para agir.
Corri até a porta e quando alcancei as maçanetas, olhando para trás e vendo-os
vir em minha direção, meu olhar se voltou para o ferro escuro das duas
maçanetas que preenchiam as palmas de minhas mãos com um frio que me
lembrava do que vinha correndo. Sair também era perigoso.
O que era aquilo? O que estava acontecendo? Essas perguntas enchiam minha
mente, enquanto inutilmente tentava abrir as portas para me ver livre daquele
lugar. Olhei para trás outra vez, os três estavam parados a um braço de distância
de mim.
— Não vamos te machucar. - Ouvi a voz de um deles. — Se está aqui é porque
necessitamos de você.
Por mais suave que soava sua voz, não conseguia acreditar naquilo enquanto as
maçanetas insistiam em me manter presa naquele lugar. Quem tinha fechado a
porta? Eu teria visto de onde estava escondida. A ideia de que eles e a coisa lá
fora estivessem ligados me deixou terrificada.
Deixei as maçanetas para me debater contra a porta, com chutes e ombradas,
que ficavam mais fortes na medida em que meu medo crescia. Percebendo que as
portas não cederiam, corri até um candelabro de chão, mas alto o suficiente para
me servir como arma, como o tridente de Poseidon ou algo do tipo.
Foram se afastando na medida em que tentava acertá-los com minha mais nova
arma. Eu gritava para que abrissem a porta, enquanto o tridente-candelabro
zunia ao cortar o vento diante de mim, os mantendo assim relativamente
afastados.
Mas, eles riam de mim. E aquelas gargalhadas me deixavam ainda mais irritada
ao mesmo tempo em que me questionava quem era aquela gente. Foi então que
meu corpo paralisou de repente, tão abrupto que senti que estava vencida. Não
conseguia mover um músculo sequer, logo as lágrimas molharam meu rosto,
meus olhos estavam secos, abertos e não piscavam.
Foi então que ouvi a mesma voz masculina que falara anteriormente, falando
dentro de minha cabeça, dando ordens para me mover e entregar a arma para os
outros. E mesmo contra a minha vontade foi o que fiz. Meu corpo era conduzido
por outra pessoa e aquilo me assustou ainda mais.
— Agora você dá o braço para meu amigo te aplicar um calmante. - Ouvi a voz
dentro de minha cabeça e meu corpo reagindo ao comando dela sem questionar.
Senti quando fiquei livre da possessão daquele homem ou coisa que estava em
minha frente, minha visão estava ficando embaçada, percebia que a dose era
altíssima, não sabia porque quereriam que dormisse tanto, à parte a estranheza
da situação, sabia que morreria no final daquela jornada.
Pensei na morte quando me vi de joelhos, sustentando o tronco com as mãos, os
santos ficaram ainda mais horríveis do que já os achava a princípio. Estava me
sentindo tão mal que não engolia sequer saliva. Foi então que percebi-me frágil
diante da dificuldade de manter meu corpo ereto e deitei no chão. Aí apaguei.

2 – Escuridão
Acordei com a cortina leve e branca a balançar diante das duas janelas
arqueadas do quarto, a cama tinha um dossel branco e dourado e o ar era tão
fresco que certamente não estava numa zona urbana. Mas onde então eu estaria?
Saltei da cama para tentar responder essa pergunta.
Abri as janelas e só havia vegetação. Não era uma plantação, parecia se tratar de
uma floresta selvagem e intocada. Olhei-me no espelho, lembrava-me da igreja e
estava ainda com a mesma roupa. Um vestido que mais parecia um casaco de
moletom e tênis.
Arrumei meu cabelo dourado num coque frouxo no topo da cabeça, joguei um
pouco de água fria no rosto para lavar os olhos e a boca. Abri o armário do
banheiro daquele quarto e vi que todas as coisas ali eram normalmente as que
comprava para minha higiene pessoal.
Meu corpo saltou de susto quando no silêncio do canto dos pássaros, uma
guitarra começou a soar alto com um solo bastante triste. Sem pensar muito,
sequei o rosto e corri para fora do quarto que estava com a porta destrancada.
Dei num corredor estreito, de piso de madeira escura, que combinava com a
escada em cascata.
Sim, o som vinha de baixo e foi necessário descer apenas dois lances de escada
para estar no andar abaixo do meu e o ver tocando guitarra. Dei alguns passos
em direção ao quarto, sabia que tinha que falar com ele se eu quisesse algum tipo
de resposta.
Seu olhar finalmente caiu sobre mim e os dedos pararam de escorregar pelas
cordas metalizadas, fazendo o instrumento resmungar num longo ruído para
então os pássaros tomarem seu lugar de direito naquela manhã. Os olhos azuis
pareciam incrédulos diante de mim.
— Então, é verdade mesmo?
— O que é verdade? - Perguntei curiosa, quando sua pergunta soava mais como
um comentário do que uma pergunta em si.
— Eles te encontraram.
— Quem me encontrou? Do que está falando?
— A Ordem. - Disse severo, com um olhar aborrecido e virando a cabeça,
fazendo-me sentir estranhamente rejeitada.
Era bonito como o cabelo comprido dele caia sedoso por cima da guitarra
enquanto só a segurava, importando-o mais o silêncio, do que qualquer palavra
que pudéssemos trocar. Senti-me inadequada e inoportuna. Virei-me para deixá-
lo, sem dar-lhe adeus, sentindo-me pior a cada minuto, estava adoecendo.
Desci todos os outros lances de escada, parando de andar em andar e olhando se
havia mais alguém com a gente. Mas, todos os dormitórios, tediosamente iguais,
estavam vazios e alguns até empoeirados. Quando dei no térreo onde estava a
cozinha e a sala de jantar, vi que havia caixas em cima da mesa.
Avancei até a pesada e amadeirada mesa onde os pacotes estavam e percebi que
eram alimentos, produtos para higiene pessoal e tudo o mais o que precisávamos.
Havia no chão uma caixa maior, que assinalava meu nome, Aisha, acima dela.
Abri com zelo e vi que eram roupas para que pudesse usar ali.
Deixei a sala de jantar dividida por um balcão que era onde ficava o bar daquela
casa e dei noutra sala, essa certamente de estar, com poltronas amarelas
emolduradas de madeira escura, com pequenas mesas redondas e de vidro que
ficavam entre elas. Talvez o dono da casa gostasse de convidar os amigos para
conversar.
Ali estava a porta de entrada da casa, ao final de um pequeno corredor, que
afunilava a sala para a entrada. A porta era de madeira, com quadrados de vidro
e a madeira estava pintada de branco a óleo. Era um contraste com a delicadeza
de todos os móveis interiores.
Abri e o desespero foi alarmante. Por todo o lado que olhava, tinha como quintal
uma densa floresta, com arbustos e árvores, mas algumas me lembravam os
pinheiros de minha infância. A criança interior ainda reconhecia as árvores com
frutinhas, de fome não morreria. Reconhecer espécie não me seria difícil, o
problema era que sentia ansiedade em florestas.
Aquilo não fazia nenhum sentido, estava isolada no meio da floresta, com outro
cara esquisito, com caixas de provisões suficiente para um mês e sem ter
qualquer ideia do que era aquela situação. Se tinha sido raptada, ou se tratasse
de um assassino em série.
Sem tirar o negro do lapso que ficou entre igreja e floresta. Provável que estava
sonhando com aquilo. Só podia ser um sonho. Retornei, só tinha ao rapaz com
sua guitarra ali e dele queria respostas com urgência. Subi as escadas correndo
até o terceiro andar onde ele estava.
Tocava ao instrumento e tirava algumas notas numa folha de papel, talvez
estivesse compondo algo. Engoli meu orgulho como quem engole uma pedra
grande e quadrada, bati à porta para assinalar minha presença e olhei para as
tediosas cortinas brancas que esvoaçavam no quarto dele.
— Eu me chamo Aisha Badeaux. - Disse, dando-lhe a mão para um
cumprimento.
— Eu sou Mikael Olsson. - Disse, segurando minha mão.
— Você sabe por que estamos aqui?
— Não sei se sei. Parece que somos Adão e Eva no jardim do Eden, quer dizer,
Eva ou Lilith, depende de você, eu não tenho muita opção e sou sempre Adão.
Acho que isso já nos basta para começar a entender a história por trás do
absurdo de estarmos aqui.
Eu gargalhei e aquilo pareceu o deixar menos tenso abrindo-me um sorriso, ao
qual não consegui não retribuir e ficamos num estado estranho, nos olhando sob
o canto dos pássaros e do sol que subia céu acima. Não era o silêncio tão
assustador, não mais.
— Tropecei e me tornei cética no meio do caminho. É para onde todos nós
estamos caminhando agora, para o ceticismo porque percebemos o quão errada a
Igreja estava. Isso foi um processo mais lento no novo mundo. Como tem sido
difícil para todas as outras religiões. Game is over.
— E isso não te chateia?
— Sim, o suficiente para me fazer sentir doente.
— Meu irmão é formado e especializado em psiquiatria, estou familiarizado com
isso e sempre soube que ele tomou essa decisão por minha causa. Então,
também sei o que é se sentir chateado ao ponto de se sentir doente.
— O que elas são?
— As vozes?
Balancei a cabeça afirmativamente.
— Alucinações que podem ser controladas com medicação. Mas, parece que isso é
diferente com a gente, por alguma coisa em nosso DNA ou alguma superstição
idiota. Não estou muito certo também, como pode perceber.
— Faz tempo que está aqui?
— Tempo suficiente para querer sair daqui.
— Já tentou se embrenhar pela floresta e caminhar para algum lugar até
encontrar uma vila, ou rodovia, ou qualquer sinal de civilização?
— Já, mas dei num muro.
— Muro?
— Sim. Muro. E é tão alto que é impossível a ideia de saltá-lo sem equipamentos.
— E por que isso? Não faz nenhum sentido, nem de família rica eu sou, não
tenho absolutamente nada especial ou motivador para ser cobaia de alguém. Não
faz o menor sentido tudo que me aconteceu nas últimas horas. E acordo e tudo o
que tenho é você.
— Eu tinha ficado feliz em te ver. Eles disseram que pelo meu bom
comportamento. - Riu-se quando enfatizou o “bom comportamento”. — Que eles
mandariam a mulher perfeita para ser minha companheira e você chegou. Por
isso que acho que pode ser por causa de genética.
— Pegaram-me numa igreja, onde estava me refugiando de uma alucinação que
me caçava na rua. Dessa forma achei se tratar de assassino em série ou algum
lunático religioso. - Tomei o pacote de biscoitos que estava ao lado da cama dele
sobre uma pequena mesa e sentei comendo sobre a cama dele.
— Você estava o quê?
— Alucinando. É o que acontece às vezes no relacionamento entre drogas e
transtorno afetivo bipolar. Passei minha vida alucinando sem saber que estava
alucinando, até o médico se certificar da minha condição. Continuo alucinando,
só que agora sei que é alucinação.
Rimos e demonstrei afeição quando me olhou, queria saber se tinha mesmo
entendido a dor do meu ceticismo. Não, a ciência ainda não estava certa de tudo,
como também a igreja estava ultrapassada para o nosso tempo. Estávamos sendo
sabotados o tempo todo.
Não sabia dizer se Mikael poderia entender tanta coisa assim, não em frases tão
pequenas, ainda que honestas. Mas, gostei do seu sorriso, ainda que tímido e
quase fugidiço.
— Exatamente no horário do pôr do sol essa casa se tranca automaticamente e é
preciso que esteja dentro dela antes disso, ou pode acabar tendo uma experiência
muito desagradável.
— Animais?
— Sim, dos mais variados. Às vezes chegam bem próximos à casa, estamos
seguros aqui dentro, mas pode ainda ser meio assustadora a experiência, não
importa o quão acostumado você esteja.
— O que quer dizer?
— Que quando a casa se fecha somente as portas dos nossos quartos ficarão
abertas para que tenhamos acesso à cozinha, as duas salas e ao salão de festas
onde podemos ouvir ou tocar musicas. Todas as outras portas ficam fechadas e
nossas janelas também. Pode ser que sinta medo em algum momento.
— Eu já estou com medo. Não sei como pode ficar nessa situação… compondo.
— Porque quando cheguei aqui fiz exatamente tudo o que você tem em mente em
fazer para sair daqui, senão mais coisas do que você tem em mente, até mesmo
tentar quebrar o muro eu tentei e posso te mostrar.
Senti uma pontada em meu estômago tal qual uma lança o tivesse perfurado ao
ouvir aquilo. Estava reclusa e isolada com um estranho. Contudo alguém tinha
acesso ao lugar, como as caixas sugeriram. Só não sabia dizer quando eles faziam
essa reposição de provisão.
— Quando repõem a comida?
— Não tem um dia fixo, pode ser qualquer dia, qualquer hora, não parece que
oferecemos muito perigo para eles.
— O que há de especial com você? Filho de algum milionário, ou rei europeu, ou
qualquer coisa do gênero?
Ele riu.
— Estou tão confuso e perdido quanto você, Aisha. Estou esperando o que for
que aconteça, porque tudo que tentei foi em vão.
— E se é um teste? Sim, podemos estar num teste, eu já me inscrevi em milhares
de testes.
Demorei-me em torno da carruagem negra dos pensamentos confusos, deixei o
quarto, numa corrida entre degraus e cozinha para sala de jantar onde as coisas
estavam. Os alimentos vinham em sacos plásticos sem indicação de marca, lugar
ou validade.
Não tínhamos como saber ou intuir onde podíamos estar porque nada indicava
uma língua ou uma cultura. Mas, ali tinha uma caixa de livros, todos em língua
inglesa e não precisava pensar muito para saber que esperavam que ambos
soubéssemos inglês além de nossa língua nativa.
Escolhi um aleatório e coloquei junto com as roupas da caixa que tinha meu
nome. A caixa era grande, mas permitia que eu a carregasse quatro andares
acima, parando para descansar milhares de vezes. Não quis pedir ajuda para
Mikael que continuava com sua guitarra e musica tristes.
Tive que admitir que estava exausta e me joguei na cama, agarrando-me aos
meus pensamentos que eram tão aleatórios que quase não conseguia seguir uma
linha de raciocínio e achei isso muito estranho. Talvez fosse por causa do
calmante que me deram. Eu e calmantes tínhamos uma relação muito delicada.
Quando consegui me livrar da preguiça que tomara meu corpo de meu controle
imediato, abri a caixa e comecei a organizar coisas. Vi que haviam outras caixas
menores dentro, numa dessas caixas havia várias caixas de calmantes e um
bilhete que dizia: “Você vai precisar”.
Abri outras caixas, estava ofegante, cada uma com uma surpresa diferente,
quando tomei a última onde tinha a droga a qual fui viciada outrora e o bilhete:
“Talvez ainda precise disso”. Engoli em seco, enquanto erguia o frasco conta-
gotas diante de meus olhos. Tão familiar, tão amigo, tão perfeito e tão devastador.
Dei um pulo quando Mikael bateu no batente da porta do quarto que estava
aberta, informando-me de sua presença, enfiei com mãos rápidas e ágeis a droga
dentro da caixa, virando-me para ele em seguida, que olhou prontamente para a
caixa que segurava, dizendo:
— Elas são as mais difíceis, não? As menores. - Apontou para a caixa que eu
segurava.
Sustentando um sorriso desbotado, respondi:
— Até que dá para encarar.
— Estaríamos sendo estudados e colocados numa situação que alguém
previamente decidiu nos colocar?
— Eles me pegaram numa igreja. Não descarto a possibilidade de ser algum
religioso psicopata.
— Pegaram me enquanto estava trabalhando. Não sei se posso dizer que estou
ressentido com isso, detestava aquele emprego. - De repente ele segurou a minha
mão, dizendo: — Se sentir algum medo e quiser ficar no meu quarto sinta-se à
vontade para isso.
Achei o gesto absurdo para o momento e repuxei minha mão rapidamente,
livrando-me dele. Deixei meus olhos chateados caírem sobre o belo rosto rosado
como se condenado fosse. Ainda era muito cedo para perceber que ele era tudo o
que tinha ali.

3 – Obsessão
Logo na primeira semana entendi o bilhete dos calmantes. Precisei deles, pois que
a floresta era muito barulhenta e alheia para o meu estilo de vida urbano.
Estranhei o lugar por mais de uma semana, os ruídos da casa da madeira que
rangia, os malditos insetos e a floresta me era aterrorizante mesmo durante o dia.
Mikael quase não falou comigo durante toda a semana, passava seu tempo
desenhando e pintando, quando não estava envolvido com algum instrumento
musical. Devia ter recebido alguns lápis e gizes com aquarela pra estar tão
envolvido com seus desenhos. Ou simplesmente se acostumou com a solidão.
Saí para o meu pequeno passeio ao redor da casa para tentar me adaptar àquele
ambiente, sempre me pegava apavorada com a ideia de adentrar a floresta e ver o
que tinha do outro lado, não importava que lado. Por isso me aventurava ao redor
da casa cada dia um círculo maior e mais distante do anterior. Sempre prestando
atenção na flora.
Depois do passeio invariavelmente me colocava para preparar nossa refeição para
o almoço, logo que Mikael claramente não sabia cozinhar e embora não gostasse,
tinha algum conhecimento, ainda que vulgar, de gastronomia. Então, preferira
cozinhar a ter de limpar toda a casa e fechamos nosso primeiro trato.
O caldo fervia fazendo pequenas bolhas de ar que estouravam, indicando sua
consistência cremosa, fazia-me salivar. Acreditei em Deus uma vez, acreditei
bastante ao ponto de ficar desapontada com Ele, acho que não ia muito com a
minha cara ou coisa do tipo, ainda adolescente me interessei pelo ocultismo.
Sempre tive perguntas que precisavam de respostas, perguntas que me causavam
angustia e que acredito que seja esse mesmo sentimento que motivam aqueles
que tentam descobrir a razão de estarmos aqui, se é que há alguma. O que é a
consciência se é que há alguma, já que remédios podem mudar completamente
nosso estado de espírito.
Eu e meus pensamentos tentando dar um sentido para um mundo absurdo logo
na hora do almoço nunca era um bom sinal. Nem o foi quando Mikael fez cara de
poucos amigos ao ver o que eu tinha preparado para o almoço. Talvez não
gostasse de bacalhau ao molho. Não sabia dizer.
Era uma pequenez que me tomava a cada gesto dele que comecei a me sentir
intimidada. Levei o pano à boca, para a livrar do molho pegajoso e pensando se
não era uma boa ideia deixar a mesa e me trancar no quarto. Sim, era uma ótima
ideia, mas precisava comer, não tinha tomado café da manhã.
Comemos em silêncio, até que me deixou sozinha junto à mesa, estava me
sentindo pequena, com um certo aperto no estômago, queria estar com ele e uma
dor crescente apertou-me o peito. Estava agoniada e conjecturei seriamente o uso
do calmante. O que sempre trazia lembranças ruins do meu vício.
Não queria ficar sozinha naquele momento, não estava preparada, subi correndo
alguns lances de escada, até parar diante da porta do quarto dele. O caderno
grande estava sobre a cama, de papel cartão ao que parecia, e seus desenhos
eram lindos e sinistros.
Entre eles havia alguns que me retratavam caminhando em volta da casa. Então,
ele me observava. Dei alguns passos para trás deixando os desenhos onde
estavam – esperando que saísse do banheiro – batente da porta afora. E logo ali
ele estava, olhando de forma inquisitiva.
— Gostaria de ter companhia hoje. - Eu disse.
— Pode ficar comigo. - Sentou-se na cama, acomodando as costas na cabeceira e
esticando as pernas para fazer mais um desenho, no colo, daquele modo
desleixado.
Sentei-me ao seu lado sem saber o que fazer. Fiquei o observando enquanto
terminava outro desenho, pintando com lápis preto, brincando com luminosidade
e sombra. Dando vida a algo que estava dentro da cabeça dele somente,
permitindo-me ver ao fazer.
Sempre pensava que meu trabalho ou minha expressão não tinha nenhum
significado, mas percebi com aquele desenho que é essa expressão que nos
conecta, ou ao menos assim me sentia. E que talvez naquela altura já não fazia
mais sentido, não acreditava que sairíamos vivos dali, a não ser que pudéssemos
escapar.
Assim como toda a minha vida, nada daquilo fazia qualquer sentido, nem meus
pensamentos. Girei furiosa na cama e coloquei meus pés no chão, dando às
costas para Mikael. Ele tinha falado algo sobre a Ordem quando cheguei e
passara toda semana basicamente me ignorando.
Trocávamos algumas palavras no almoço normalmente e depois cada um fazia o
que queria com o seu tempo vago. Eu lia aos livros que foram enviados, alguns
eram até didáticos, passavam a ideia de haver uma espiritualidade, algo divino e
sagrado no mundo.
Os exercícios que alguns desses livros tinham, pediam para que fizesse contato
com alguma entidade ou deus através de símbolos e litanias exóticas, assim
matava meu tempo lendo aos livros e às vezes colocando algum exercício em
prática por saber ter um efeito bom para a saúde mental e física, como a
meditação e evitava os rituais mais elaborados.
Naquele mesmo dia percebi que os livros eram pra mim, já que Mikael não
parecia interessado neles. No meu quarto havia uma estante, onde colocava os
livros que tinha lido e deixava os que ainda não tinham sido lidos na caixa. Era
meu modo de me organizar. Preferiria uma lista, mas não tinha caneta ou bloco
de notas, nada que pudesse usar para escrever.
— Aisha. - Ouvi a voz dele. — Posso entrar?
— Claro. - Disse, virando-me para ele, ainda com o livro na mão.
— Não queria atrapalhar sua leitura.
— Não estava lendo, estava pensando. Gostaria de ter algo com o qual eu pudesse
escrever.
— E sobre o que escreveria?
— Meus pensamentos, talvez. Ia fazer alguns cálculos que tenho em mente.
— É formada em quê?
— Bioquímica. Resumidamente, tento inventar novas drogas.
— É uma cientista.
— Não gosto muito de como isso me faz sentir.
— Ser uma cientista é ruim pra você? - Disse, sentando-se ao meu lado.
— Não é ruim, gosto do que faço. É sobre como eu encarava as coisas. Não era
uma cientista ruim, mas também não estava no topo, poucos foram os artigos
meus que foram aprovados para ser repassado para a comunidade científica. No
geral ninguém dava muita bola.
Ele continuava em silêncio, esperando que eu continuasse com a história. Mas,
não havia muito o que dizer a esse respeito, talvez eu não quisesse.
— E você? É algum músico famoso?
— Ainda não sou famoso, não vou ficar e é bem provável que meu público seja
bem pequeno.
— E o dinheiro? Não se importa com isso?
— Trabalho para isso. O que também não acho que seja o modo mais sadio de se
viver. Sou professor de música na maior parte do meu tempo.
— Aqui somos apenas Aisha e Mikael, não? Não parece que o que fazemos tem
muita serventia aqui.
— Acho que na nossa situação você tem mais serventia do que eu, admito.
— Por que estamos aqui, Mika? - Perguntei uma vez mais.
Olhou-me antes de deixar o quarto, não demorou muito para retornar, então não
tive que levar minha irritação por aquela pausa a sério. Tirando-os de dentro do
grande caderno de desenhos, foi entregando-me alguns envelopes. Olhei para o
rosto dele, que me assinalava para que eu lesse e sentou-se ao meu lado
novamente se ocupando com seu desenho.
“Mikael Olsson, provável que nessa hora esteja questionando o que está fazendo
nessa casa e nesse lugar. Nosso projeto, ao qual você participa, se chama Jardim
do Éden, ao qual você se inclinará a fazer o que pedimos, de forma a tornar a
experiência mais agradável para você. Seja bem-vindo.”.
Num cartão postal da Torre Eiffel estava escrito: “A visão e a voz”. Era um livro de
um homem que se dizia ser um mago ocultista inglês. Tive minha adolescência
para me ocupar com o tema, mas depois da minha formação o questionamento se
tornou mais importante do que as suposições e deixei aquilo de lado.
— Você leu A Visão e A Voz de Alesteir Crowley?
— Sim. Você é uma cientista devoradora de livros?
— Gostaria que fosse assim, mas sempre acabo usando o pouco tempo livre que
tenho com outras coisas ou com pessoas que precisam de minha presença, ou
que me convidam para um jantar e etc.
— Eu não sou o tipo de cara que adora ler, mas sempre li as coisas que me
interessavam.
— Toda essa situação é muito esquisita, a pessoa que me trouxe aqui já conhecia
meus hábitos e rotinas, conhecia as marcas que costumava usar, o aroma
preferido para sabonetes, sais de banho, meu creme hidratante favorito, as coisas
na minha cor favorita.
Assustamos dando um salto quando fomos abordados pelos encapuzados, os
mesmos que tinha visto na igreja. Talvez? Não saberia dizer. Controlaram-me a
mim e ao Mika através de nossa mente, fazendo nossos corpos seguirem para
uma direção na qual não tínhamos controles.
Deixaram-nos no porão, acenderam uma lâmpada que estava pendurada no cabo
elétrico balançando de um lado para o outro. Na parede aos fundos, havia um
pano que cobria toda a parede com um símbolo. Sempre fui amante de símbolos,
mesmo sendo uma cientista e tentei rebuscar aquilo nos grimórios que lia na
minha adolescência quando estava certa de que queria ser uma bruxa.
Eles nos amarraram, um de frente para o outro, tivera a piedade de nos deixar ao
menos sentados já que nossos braços estavam pendurados pelas algemas numa
corrente que deixava-os para cima. Não havia paredes próximas para o elo que
nos amarrava, então logo concluí que era um cabo que vinha do teto do porão.
Começaram a cantar num coral, novamente em latim, mas não era um canto
religioso qualquer, era uma blasfêmia, um protesto e dizia que o homem é deus.
Eu olhava curiosa a respeito do que faziam. Por puro instinto e cálculo olhei para
todo o ambiente, procurando algum tipo de saída se fosse necessário. Não
sabíamos o que aqueles caras queriam.
Em seguida um deles veio até nós com uma tesoura de jardinagem despiu-nos.
Meu desespero com a situação só começou quando vi um deles colocando dois
ferros na lareira, sabia que era ferro em brasa e intuía que seríamos queimados,
marcados como gado. E o grito de dor de Mika só confirmou que estava certa.
Colocaram o ferro em seu braço, sustentando um símbolo, ele parecia ter a
junção das letras “O”, “N” e “A”. ONA. Foi minha vez logo em seguida, gritei de dor
pela queimadura, mas logo os encapuzados fizeram um curativo em nós dois e
nos deixaram amarrados de frente um para o outro.
— O que é isso? - Perguntei.
— A Ordem. - Um dos encapuzados respondeu, segurando meu braço para que
não me mexesse ainda que estivesse suspensa pelo elo que me prendia as
algemas em minhas mãos, deixando numa altura razoável na qual daria para
sentarmos se fosse necessário.
Outro deles veio ao meu encontro e também deixou um símbolo no meu braço
com o ferro em brasa. Olhei para a marca, ela tinha um triângulo dentro de um
círculo, havia um olho acima do triângulo e outro embaixo. Dentro do triângulo
um coração com uma serpente enroscada. Mesmo sendo um símbolo bonito, a
queimadura fora terrível.
— Por que nós? - Perguntei, ávida por respostas.
— Porque não podia ser qualquer um. Não se preocupe, senhorita, logo você
começará a entender, especialmente se continuar lendo os livros como tem feito.

Num confuso estado místico ao ponto de não entender bem o que estava
acontecendo comigo. Foi então que me lembrei ter tomado duas gotas alguns
minutos atrás e estava sob o efeito da droga. A realidade é mais plástica neste
estado.
Com a visão borrada, quando dei por mim, estava sentada sobre os quadris dele,
movendo-me e sentindo o membro rijo sobre tantas camadas de pele e roupas.
Ele não se importou com que eu lhe invadisse a boca úmida com minha língua
sedenta.
Contudo, quando tentei despi-lo, ele não permitiu. Jogou-me do outro lado da
cama ficando sobre mim, com seus olhos tão azuis a ferir o frescor do meu olhar,
como o gelo que insiste em ser inverno quando já se é primavera. Beijou-me
novamente e depois construiu uma ponte de beijos de minha boca até meu
pescoço.
Tentei tirar a calça dele novamente, enquanto roçava em mim, mas uma vez mais
ele afastou-me desse propósito. Com as palmas contra seu peito o empurrei para
longe de meu corpo, porque estava me sentindo rejeitada e confusa com aquilo.
— Não quero fazer amor com você nesse estado de consciência. Não sei se o faria
por livre vontade, sem drogas para mascará-la.
O que aquele cara sabia sobre isso? Como ele poderia saber o modo como me
sentia ou minha consciência. Um lapso de terror passou diante das lentes
mentais, se ele é a projeção do meu Animus, então tinha que ceder, teria que
ceder.
Levantei e me despi diante dele. Ele ficou afastado por um tempo, sequer me
olhava, para então colocar a mão entre minhas pernas e conferir até onde seus
dedos deslizariam na cavidade úmida e quente. Enquanto me masturbava beijava
os seios roliços e rijos.
Não contendo minha vontade o joguei contra o colchão macio, enrolando-o um
pouco no véu do dossel, rapidamente tirando as calças dele e sentir-me
compelida a beijar seu sexo e deixei com que brincasse com a minha boca pelo
tempo que quis. Como puta querendo satisfazer o cliente.
Teria morrido se tivesse que esperar mais um minuto para sentir seu sexo dentro
de mim. Era bom me esfregar nele e beijar a boca seca e expressiva. Juntou
nossas mãos cruzando nossos dedos e levando acima da cabeça dele, o que me
fez ficar mais esticada e com o corpo mais próximo ao dele, senão colado ao dele.
Sentia-me bem com o modo como os olhos cerúleos focavam na forma da minha
boca, nos beijamos tantas vezes que não saberia dizer precisamente quantas.
Estávamos estranhamente sedentos um do outro, ou afundados no lamaçal do
nosso estado isolados e sozinhos.
Estava muito carente, assim me sentia, talvez ele estivesse bem mais que eu, já
que parecia estar no local há mais tempo. Mudamos de posição tal qual fosse sua
sede pervertida em dominação, apertava-me contra o colchão e puxava meu
cabelo. Eu gostava de como aquilo me fazia sentir. Mas, não gostava de como
batia a cabeça na cabeceira da cama de tempo em tempo.
Outra posição e estou sentada em seu colo. Ele ajudava meus quadris em seu
movimento e ondulação, gostava da maneira que mexia em cima dele, seus
gemidos tornando-se mais altos o denunciavam. O pressionei com cada vez mais
força para dentro de mim.
Ele gemia tão alto que mesmo eu sentia-me preenchida de prazer. Jogou-me de
qualquer jeito sobre a cama, fazendo-me cair sobre minhas mãos e joelhos e de
anjo Mikael não tinha nada. A selvageria de seu sexo, o modo como fazia me
bater contra ele e logo me vi inundada em profundo êxtase. E ainda que tivesse
me dado o prazer, queria sua parte e manteve a penetração por mais um tempo,
para então se sentir satisfeito.
— Vai querer que eu te lembre sobre isso? - Ele perguntou, quase um murmúrio
com certo risinho, enquanto trazia minha cabeça para perto de seu peito.
— Não entendo a dúvida sobre a questão de me lembrar ou não disso. Não existe
a menor possibilidade de que eu vá me esquecer disso nalgum momento.
— Assim espero, logo que não há a possibilidade de falhar em todo o processo. A
Ordem é o processo.
— Você está se referindo a uma sociedade secreta?
— Acho que talvez você tenha algo de especial. - Disse, tocando meu rosto e o
olhando com esmero. — Talvez eu esteja aqui para você e não você para mim
como estava pensando.
— Está arrependido? - Perguntei, tentando camuflar minha irritação com o
comentário que ferira meu orgulho, de certo. Ainda assim soei agressiva.
— Não, claro que não. - Apertou-me contra o peito dele. — Você é maravilhosa,
você é ótima. Mas, pode me lembrar dessa noite para mim amanhã de manhã?
— De 1 a 100, o quanto isso é importante para você?
— 93. - Riu-se.
Não podia estar nessa corrente, não naquela altura onde a ciência fazia mais
sentido do que qualquer outra coisa no mundo. Precisava daquele mundo cheio
de perguntas e dúvidas, mas onde tudo era perfeitamente calculado, tudo era
mesurado, tudo tinha que ter várias teorias. Ou não estaria satisfeita.
Não queria continuar brincando o jogo científico e tampouco me ocupar do
religioso, experimentava um niilismo e a morte era tudo que eu desejava,
desejava tanto ao ponto de pensar nela como saída para aquela situação como
qualquer outra opção, já que no sentido filosófico, talvez, não precisasse mais do
outro ou da vida.
Tamborilei meus dedos em seu peito, quando o ouvi, quase num sussurro:
— Aqui é você que é a cientista. Não me obrigue a pensar de outra forma, não
nesse momento, não agora que eu sinto que você é todo o meu mundo.

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