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FACULDADE DE DIREITO
COORDENAÇÃO DE ATIVIDADES COMPLEMENTARES E ELABORAÇÃO DE
MONOGRAFIA JURÍDICA
FORTALEZA
2016
MARÍLIA IZA NOGUEIRA NUNES
FORTALEZA/CE
2016
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Federal do Ceará
Biblioteca Universitária
Gerada automaticamente pelo módulo Catalog, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
Aprovada em ___/___/_____.
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________
Prof. Dr. Gustavo César Machado Cabral (Orientador)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
__________________________________________________________
Prof.ª. Drª. Raquel Coelho de Freitas
Universidade Federal do Ceará (UFC)
__________________________________________________________
Vanessa de Lima Marques Santiago
Universidade Federal do Ceará (UFC)
Aos meus pais e ao meu irmão.
À todas as mulheres.
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer, primeiramente, aos meus pais, pelo esforço diário em dar a
melhor educação para mim e para o meu irmão. Que mesmo com o trabalho exaustivo nunca
deixaram de oferecer carinho e apoio. Mãe e pai, obrigada por tudo, sem vocês eu jamais teria
conseguido cursar e nem concluir esta faculdade. A minha formatura é uma vitória nossa.
Saibam disso.
Agradeço também ao meu orientador, Gustavo Cabral, pela solicitude e pelo
incentivo. Ser monitora da sua disciplina foi uma das coisas mais legais que eu fiz na faculdade.
O seu modo de agir em sala de aula e a sua gentileza com os alunos são, sem dúvida, uma
inspiração, não só para mim, mas para todos os discentes da Faculdade de Direito. Espero que
a nossa amizade perdure e que nossos caminhos acadêmicos se cruzem novamente.
Do mesmo modo, agradeço aos membros da banca por terem aceitado o convite,
obrigada à professora Raquel Coelho e à mestranda Vanessa Marques. Obrigada ao NUDI-JUS,
por meio do qual eu conheci a justiça restaurativa, e pude sonhar com um mundo menos violento
onde as pessoas são compreensivas e empáticas umas com as outras. Obrigada a todos do
Núcleo de Gênero Pró-mulher, do Ministério Público do Estado do Ceará, pois estagiar nesse
local foi uma experiência essencial para compor este trabalho. Gostaria de agradecer à Renata
Giongo, que foi muito gentil e solícita ao me enviar um livro que foi muito importante para
minha pesquisa.
Obrigada a todos os meus amigos de faculdade, vocês fizeram os meus dias
melhores. Obrigada Marjorie, Cícero, Ivna, Ivina, Mariana, Alícia, Rebeca, Andressa, Gabriel
e Bruno. Agradecimento especial à Camila por me alertar na vida e por me emprestar um livro
que me ajudou muito na monografia. Agradeço também à Pryscila pelas nossas conversas sobre
feminismo e por ter fornecido vários materiais legais que foram muito úteis na pesquisa.
Precisamos retomar nosso grupo de estudos.
Agradeço ainda à Débora pela amizade e pelos livros que você me emprestou ao
longo da faculdade. Amanda, obriga pela amizade e pela ajuda prestada na formatação desta
monografia, eu não teria conseguido sem você. Obrigada ainda a Fabi, Estela, Luana e Bia pelo
apoio e pela amizade. Renato, obrigada pelo carinho e pelo apoio emocional. Sempre acho que
tenho muita sorte em ter te conhecido. Ah, e obrigada por me ajudar com o abstract!
Por fim, agradeço a todos que, de alguma forma, me ajudaram a chegar até aqui.
RESUMO
A violência doméstica contra a mulher constitui um dos maiores problemas de ordem social e
penal enfrentados pelo Brasil. Mesmo com a sanção da Lei nº 11.340/06, também conhecida
como Lei Maria da Penha, os índices de violência continuam elevados. Os motivos são diversos:
má aplicação da lei, falta de estrutura física para um atendimento adequado, despreparo dos
operadores do direito em lidar com o caso. Outro fator relevante é a inadequação do sistema
criminal tradicional em resolver crimes dessa natureza, em razão da resposta penal pouco
variada, resumindo-se ao cárcere. Diante desse quadro, a justiça restaurativa apresenta-se como
alternativa ao atual paradigma retributivo. Este novo método propõe que o crime, antes de ser
uma violação estatal, é um problema entre dois indivíduos, sendo necessário que estes se tornem
protagonistas do processo. Assim, a vítima é chamada a integrar o procedimento, ajudando-a a
superar a vitimização e restaurando a sua autonomia; enquanto o ofensor é incentivado a assumir
a responsabilidade pelo delito e reparar a vítima, de forma material ou simbólica. O processo
restaurativo não possui forma hermética, mas é basilar que se dialogue a respeito do delito,
idealmente estando a vítima e o ofensor frente a frente. Por meio de pesquisa bibliográfica e
estudos de caso, buscou-se traçar um modelo teórico condizente com o ordenamento jurídico
brasileiro em que a justiça restaurativa fosse utilizada nos casos de violência doméstica contra
a mulher. O processo restaurativo escolhido foi a mediação vítima-ofensor, aplicada no
momento pós-acusação e pré-instrução. Caso esta seja exitosa, aplicar-se-ia a suspensão
condicional do processo, estando condicionada ao cumprimento do que foi acordado no
processo de mediação. Conclui-se que, em tese, a justiça restaurativa pode ser um meio eficaz
no combate violência doméstica contra a mulher por apresentar respostas mais eficazes e
específicas para esses casos. Porém, ante a ausência de experiências nesse sentido, a
implementação desse novo paradigma deve ser pensada a longo prazo, visto que requer estudos
prévios, instauração de projetos-pilotos, aferição da satisfação das vítimas e dos ofensores em
participar dessa experiência, além da difusão da justiça restaurativa, esclarecendo para a
população os preceitos inerentes a esta, para que o público compreenda a importância e as
finalidades de um processo restaurativo.
Domestic violence against women constitutes one of the greatest social problems faced
throughout Brazil. Despite the sanction of the Maria da Penha Law, violence rates remain high.
There are several reasons: misapplication of law, lack of proper supporting infrastructure,
underpreparedness of the responsible law operators. Another significant factor is the traditional
criminal system's inadequacy to solve crimes of this nature, given its low diversity of penal
response, limited to imprisonment. From this standpoint, restaurative justice presents itself as
an alternative to the current retributive paradigm. This new method poses that crime, prior to
constituting state violation, is a problem between two individuals, demanding these to become
protagonists in the proceedings. Thus, the victim is called upon to integrate the proceeding, in
turn helping him or her to overcome victimization and to regain autonomy; whereas the offender
is incentivised to admit responsibility for the offense and to compensate the victim, in a material
or symbolic manner. The restaurative process does not possess hermetic form, although it is
indispensable to talk about the offense, ideally in a face-to-face scenario among victim and
offender. Through bibliographical research and case studies, a theoretical model coherent with
the Brazilian judicial system was devised in which restaurative justice is utilized in cases of
domestic violence against women. The victim offender mediation was the restaurative process
of choice, applied between accusation and instruction. In a successful application, the process
would be conditionally suspended, being conditioned to terms accorded to during the mediation
process. It is in thesis concluded that restaurative justice can be an efficient means to fight
domestic violence against women for it presents more efficient and specific answers to these
cases. Nevertheless, in the abscence of experience with this paradigm, its implementation
should be conceived into the long term, since it requires previous studies, establishment of pilot
projects, surveying the satisfaction of both victim and offender in integrating the experience, in
addition to disseminating restaurative justice, explaining its inherent precepts to the population
in order for the public to understand the importance and ends of a restaurative process.
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 9
2 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: ASPECTOS CONCEITUAIS E
CRIMINOLÓGICOS ............................................................................................................ 11
2.1 Violência contra a mulher e violência doméstica contra a mulher: necessária
diferenciação e classificação ................................................................................................. 11
2.2 Lei Maria da Penha: reflexões sobre os 10 anos de vigência ....................................... 15
2.3 Abordagem criminológica da violência doméstica e familiar contra a mulher ......... 20
3 JUSTIÇA RESTAURATIVA: CONCEITOS FUNDAMENTAIS E SUA
APLICABILIDADE .............................................................................................................. 25
3.1 Fundamentos teóricos e conceitos básicos ..................................................................... 25
3.2 Princípios da Justiça Restaurativa ................................................................................. 28
3.3. Principais processos restaurativos e seu momento de aplicação ................................ 30
3.4. Lei nº 9.099/95 e violência doméstica contra a mulher: houve a aplicação de métodos
restaurativos? ......................................................................................................................... 34
4 A APLICAÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA NOS CASOS DE VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: LIMITES E POSSIBILIDADES. ..................... 39
4.1. Por que utilizar a Justiça Restaurativa nos casos de violência doméstica contra a
mulher? ................................................................................................................................... 40
4.2 Mediação: método prático escolhido.............................................................................. 42
4.2.1 Justiça Restaurativa e Mediação Penal ........................................................................ 43
4.2.2 A Lei 13.140/15 como instrumento das práticas restaurativas no Brasil .................... 48
4.3 Racionalização teórica: aplicação da Justiça Restaurativa aos casos de violência
doméstica contra a mulher no direito brasileiro................................................................. 50
4.3.1 A Justiça restaurativa aliada ao direito processual penal brasileiro ........................... 50
4.3.2 Momento processual adequado para a mediação......................................................... 54
4.3.3 Possíveis formas de reparação por parte do ofensor: a experiência de grupos reflexivos
para homens autores de violência doméstica contra a mulher ............................................. 56
5 CONCLUSÃO ..................................................................................................................... 59
REFERÊNCIAS..................................................................................................................... 61
9
1 INTRODUÇÃO
substituir o modelo vigente, já que tornar o processo restaurativo obrigatório vai contra o
princípio da voluntariedade, essencial para o sucesso dessas práticas. Por fim, apresenta-se a
experiência de grupo de homens autores de violência doméstica, como uma das possíveis
respostas penais a esses casos. Assim, a justiça restaurativa apresenta-se como uma alternativa,
como mais uma opção para que a vítima decida qual caminho melhor atende os seus interesses,
ajudando-a a superar a situação de violência.
À primeira vista, tais termos parecem ter o mesmo significado, e por vezes são
usados como sinônimos. Porém, com um olhar mais acurado, verificamos serem duas
expressões distintas, na qual a segunda está contida na primeira, sendo esta, gênero, e a aquela
espécie (SAFFIOTI, 2002, p. 322).
Segundo Piovesan (2012, p. 289), a violência contra a mulher constitui qualquer
conduta, seja ação ou omissão, que discrimine, agrida ou coaja a vítima pelo simples fato de
ela ser mulher, causando-lhe “dano, morte, constrangimento, limitação, sofrimento físico,
sexual, moral, psicológico, social, político ou econômico ou perda patrimonial”, podendo a
violência acontecer tanto em espaços públicos, quanto privados.
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a
Mulher, também conhecida como Convenção de Belém do Pará (1994), em seu artigo 1º define
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violência contra a mulher como “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte,
dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na
esfera privada”.
A IV Conferência Mundial da Mulher, evento ocorrido em 1995, sediada em
Pequim e promovido pela Organização das Nações Unidas (ONU), estabelece que violência
contra a mulher é “qualquer ato de violência que tem por base o gênero e que resulta ou pode
resultar em dano ou sofrimento de natureza física, sexual ou psicológica, inclusive ameaças, a
coerção ou a privação arbitrária da liberdade quer se produzem na vida pública ou privada”
(CAVALCANTI, 2007, p.38).
De posse dessas definições, podemos concluir que violência contra a mulher é
qualquer conduta baseada no gênero que cause sofrimento físico, sexual, psicológico, moral e
patrimonial à mulher, seja no âmbito público ou privado.
Quanto aos tipos de violência, existem muitas classificações possíveis. A
Convenção de Belém do Pará (1994), em seu art. 2º, determina que a violência contra a mulher
abrange a violência física, sexual e psicológica, classificando ainda em quais locais ela ocorre
e quem são os agentes que praticam os referidos tipos de violência. Neste momento, vale
destacar o inteiro teor do artigo, vejamos:
violência doméstica um tipo de violência e sim caracteriza o lugar em que ela ocorre e quem a
perpetra.
Conforme preleciona a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar
a Violência contra a Mulher, entendemos que existem duas classificações para a violência
contra a mulher, uma quanto a tipologia e outra quanto ao âmbito de incidência. Quanto ao tipo
de violência empregada, podemos classificá-lo como violência física, sexual, psicológica, e
ainda incluir a violência moral e patrimonial. Quanto ao âmbito de incidência, este pode ocorrer
na esfera doméstica, na qual o agressor é alguém de convivência da mulher, com a qual ela
estabelece uma relação de intimidade; na esfera social ou comunitária, qual seja aquela
perpetrada por terceiros, desconhecido das mulheres, mas também motivados pela
discriminação de gênero, pelo patriarcalismo e pela misoginia; e, por fim, aquela que ocorre na
esfera estatal, sendo esta perpetrada ou tolerada pelo Estado.
Esta classificação compila o que se deseja demonstrar nesse tópico inicial: a
diferença entre violência contra a mulher e a violência doméstica contra a mulher, bem como
que a primeira é gênero, da qual a segunda é espécie. Com essa distribuição, ao observarmos
um caso concreto, podemos aferir qual o tipo de violência empregada e em que âmbito ocorreu
essa violação de direitos.
Assim, o legislador, quando da criação da Lei nº 11.340/06, mais conhecida como
Lei Maria da Penha1, fez uma escolha acertada ao dizer, em seu art. 7º, que são formas de
violência doméstica e familiar contra a mulher a violência física, sexual, psicológica,
patrimonial e moral, posto que esses quatro tipos de violência são passíveis de ocorrer na esfera
familiar.
Feita essas análises, é imprescindível definirmos, mesmo que brevemente, cada um
dos tipos de violência. Como uma das temáticas desse trabalho é especificamente a violência
doméstica contra a mulher, ao discorrer sobre as formas de violência, destacaremos a sua
incidência no ambiente doméstico e familiar.
Assim, por violência física cabe destacar conceito proposto por Casique e Furegato
(2006, p.140)
1 Em 1983, a biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, sofreu duas tentativas de homicídio por parte
de seu então marido dentro de sua casa, em Fortaleza, Ceará. O agressor, Marco Antonio Heredia Viveiros,
colombiano naturalizado brasileiro, economista e professor universitário, atirou contra suas costas enquanto
ela dormia, causando-lhe paraplegia irreversível. Posteriormente, tentou eletrocutá-la no banho. Passados 15
anos, apesar de haver duas condenações no Tribunal do Júri, o acusado continuava em liberdade. Diante disso,
o caso foi levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos, na qual o Brasil foi condenado a implementar
políticas públicas voltadas para coibir a violência contra as mulheres, dentre as quais a própria Lei Maria da
Penha, bem como a investigar os motivos da demora injustificada na prestação jurisdicional
(ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2001).
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A violência física é entendida como toda ação que implica o uso da força contra a
mulher em qualquer idade e circunstância, podendo manifestar-se por pancadas,
chutes, beliscões, mordidas, lançamento de objetos, empurrões, bofetadas, surras,
lesões com arma branca, arranhões, socos na cabeça, feridas, queimaduras, fraturas,
lesões abdominais e qualquer outro ato que atente contra a integridade física,
produzindo marcas ou não no corpo.
De acordo com a pesquisa realizada pelo DataSenado (2015, p. 08) com vítimas de
violência doméstica, observa-se o predomínio das agressões físicas, ocorrendo em 66% dos
casos. Em sua forma mais grave, a violência física pode levar à morte da mulher. Segundo Blay
(2008, p. 82), a separação, o ciúme e as suspeitas de adultério foram a segunda maior causa de
assassinato de mulheres em 2000, no estado de São Paulo. Assim, grande parte dos casos de
feminicídio já advém de um histórico de violência doméstica, sendo o momento da separação,
o mais propício para que o agressor atente contra a vida da vítima.
A violência psicológica, é entendida como uma agressão emocional que atinge
diretamente o íntimo da mulher, é aquela que menospreza, diminui e humilha, deixando
sequelas mais graves que própria agressão física. É aquela que ocorre através de ameaças,
insultos, chantagens que buscam abalar o psicológico da vítima, que por vezes acaba sendo
acometida de síndromes de ordem psicológica, como depressão, ansiedade, distúrbios do sono,
síndrome do pânico, baixa auto-estima, entre outros. Esse tipo de violência é o mais difícil de
identificar, já que não deixa marcas visíveis, e é visto pela própria sociedade como uma forma
menos grave do que a violência física, sendo a conduta muita das vezes menosprezada quando
a vítima comparece às delegacias para relatar situações desse tipo. (CASIQUE; FUREGATO,
2006, p. 140).
Quanto à violência sexual, esta é entendida como toda ação que obriga a mulher
praticar qualquer ato sexual contra a sua vontade, seja por meio de ameaça, coação ou uso da
força. Essa é uma das formas mais graves de violência contra as mulheres, pois machuca e
humilha a tal ponto que retira da vítima a coragem de denunciar o agressor. Esta é recorrente
mesmo em relações interpessoais, por conta ideia de que o ato sexual é um dever matrimonial
da mulher para com o homem, devendo ela satisfazê-lo sexualmente, sempre que este o desejar.
Tal pensamento caracteriza a opressão de gênero, advinda do poder patriarcal, no qual a mulher
é um mero objeto de satisfação masculina (BORIN, 2007, p. 53).
Já a violência patrimonial caracteriza-se pela retenção, subtração, destruição de
bens, de valores, de documentos, de instrumentos de trabalho que tragam prejuízos financeiros
à vítima. Exemplos recorrentes desse tipo de violência é a conduta do agressor de destruir os
bens que guarnecem a residência, danificar o celular da vítima, entre outras (GUTIERRIZ,
15
2012, p. 118).
Por fim, a violência moral, conforme o art. 7º da Lei Maria da Penha, constitui as
condutas caracterizadas pelos crimes de calúnia, injúria e difamação, ou seja, são atos que
atingem diretamente a honra interna da vítima e a sua honra perante a sociedade. Utilizar
palavras de baixo calão contra a vítima, espalhar boatos sobre a conduta sexual desta, são as
principais formas desse tipo de violência.
Dito isso, o presente trabalho se propõe a refletir sobre a aplicação da justiça
restaurativa aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, como forma de
complementar e melhorar os dispositivos já instituídos pela Lei Maria da Penha, com o intuito
de coibir e diminuir a ocorrência desses crimes do Brasil.
Assim, cabe esclarecer que a proposta de utilização da justiça restaurativa aplica-se
aos delitos considerados leves, tais como lesão corporal leve, ameaça, crimes contra a honra
(calúnia, injúria e difamação), contravenções penais, entre outros. O modelo proposto não
comporta aplicação a crimes de lesões corporais graves ou gravíssimas, tentativas de
feminicídio e crimes sexuais devido à gravidade desses atos e às penas elevadas, assim estes
não serão objetos de estudo deste trabalho.
A sanção da Lei nº 11.340/06 foi fruto dos esforços dos movimentos feministas
brasileiros, que desde os anos 70 vêm lutando por reformas políticas e jurídicas em relação a
violência doméstica e buscavam uma legislação que sistematizasse todas essas conquistas, tais
como a criação de Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulheres (DEAMs), a previsão
de novas agravantes ou qualificadoras de crimes cometidos no âmbito doméstica e familiar, a
revogação de dispositivos como os crimes de adultério e de sedução, entre outras (CAMPOS;
CARVALHO, 2011, p. 143).
A Lei Maria da Penha teve seu texto legislativo inspirado na Lei Orgânica nº
1/2004, legislação espanhola que foi uma das pioneiras em compilar medidas de combate da
violência doméstica contra a mulher (MACHADO, 2014, p. 60). Nos moldes desta, a Lei nº
11.340/06, trouxe várias inovações, tanto de caráter penal, quanto extrapenal, buscando uma
articulação entre as áreas cível e penal do Direito, com setores da saúde e assistência social,
trabalho e previdência social, criando assim uma rede de atendimento à mulher, permitindo-a
sair da situação de violência (PASINATO, 2015, p. 534). Dentre todas, cabe destacar:
a) a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher com
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competência cível e penal, no qual em um só lugar e de maneira mais célere a mulher poderia
resolver os problemas de natureza cível decorrentes da violência (divórcio, alimentos, guarda)
sem ter que ser encaminhada para uma Vara de Família onde passaria por mais processos
burocráticos, causando um maior desgaste emocional na mulher que se vê nessa situação devido
à violência sofrida (CAMPOS; CARVALHO, 2011, p. 148);
b) a instituição de medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor, previstas
no art. 22 da Lei, como a manutenção de determinada distância da ofendida, afastamento do
lar, proibição de se aproximar de familiares e de frequentar determinados lugares, restrição ou
suspensão de visitas à dependentes menores. Tais medidas visam resguardar a integridade física
da vítima e impedir a continuidade delitiva sem encarcerar o infrator, a menos que este as
descumpra, estando sujeito à prisão preventiva (art. 22, §1º). O art. 23 prevê também medidas
voltadas ao encaminhamento de mulheres em situação de violência para programas de proteção
e atendimento, como recondução ao lar, acolhimento em casa-abrigo, separação de corpos
(CAMPOS; CARVALHO, 2011, p. 148);
c) a retirada dos atos de violência doméstica do rol dos crimes de menor potencial
ofensivo constituiu um dos maiores ganhos com advento da Lei Maria da Penha. Apesar da
maioria dos delitos serem considerados leves nos moldes penais, as consequências deste são
muito graves, como traumas psicológicos e desestruturação do núcleo familiar. Assim, a
exclusão da adjetivação desse tipo de agressão como de menor potencial ofensivo, trouxe maior
reprovabilidade social à conduta e a tornou penalmente mais relevante (CAMPOS;
CARVALHO, 2011, p. 147).
Quanto ao último item, a Lei Maria da Penha fez mais do que retirar a violência
doméstica do rol dos delitos de menor potencial ofensivo, ela proibiu a utilização de qualquer
dispositivo despenalizador da Lei nº 9.099/95 (art. 17 e 41), o que causou um embate entre a
criminologia crítica e a criminologia feminista que será melhor tratado no próximo tópico.
Mesmo com essas diversas inovações, a Lei Maria da Penha encontra dificuldades
em ter suas determinações legais concretizadas. Atualmente, a aplicação da lei encontra-se
restrita ao seu papel criminal, e ainda de forma deficitária, seja pela falta de estrutura do Poder
Judiciário em atender a demanda, seja pela baixa qualificação dos operadores em prestar um
atendimento humanizado às vítimas, seja pela ausência de investimentos em programas de
atenção à vítima, seja pela não responsabilização dos agressores; enfim diversos fatores estão
ameaçando o sucesso da Lei nº 11.340/06, já que muitas vezes, as mulheres acabam apenas
“com um boletim de ocorrência em uma das mãos e uma medida de proteção na outra, sem que,
para além desses papéis, existam políticas públicas que deem mais efetividade à sua proteção e
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uma casa com estrutura ruim, baixa iluminação, ventilação e espaço para receber os
assistidos, tinha uma média de setenta pessoas na espera para serem atendidas. A
Defensoria é tumultuada e barulhenta, um ambiente não muito agradável. Uma
senhora reclamava que “o lugar é muito sufocante” (SÉRIE PENSANDO O
DIREITO, 2015, p. 57).
(…) uma coisa péssima é o atendimento um do lado do outro, todo mundo, escutando
tudo, e de repente o caso que você tá passando ali vira o caso de todo mundo. Todo
mundo começa a comentar. Então assim, é uma coisa horrorosa isso! Em todo lugar
que fui é assim, é um do lado do outro. Com exceção da Delegacia da Mulher, que é
um pouco mais distante. (…) Então eu tô falando pra vocês por que sou uma pessoa
com doutorado e eu trabalho nessa área, sou assistente social. Trabalho nessa área.
Então o negócio tá péssimo. Inclusive já recebi a Maria da Penha na minha empresa
pra falar da lei, mas infelizmente quando a gente vai atender as pessoas pra orientar
que tem que buscar a delegacia da mulher, que tem que vir aqui, a gente… eu fico até
com pena da pessoa, fico com pena porque eu sei que o negócio não vai pra frente
(…) (SÉRIE PENSANDO O DIREITO, 2015, p. 57).
atendimentos ruins, eu também tive alguns atendimentos bons... e neles a gente até
percebe que a doutora quer ajudar, mas fica sem ter uma ação realmente efetiva,
eficaz. E aqui nesse Juizado parece que as coisas são empurradas pela barriga. O meu
caso foi em 2010! Já é 2014 e até agora nada! E agora que tá chegando perto da
prescrição, daqui a pouco eu não tenho mais o que fazer. As juízas desse juizado,
olha...! Elas empurram tudo com a barriga! (…). Essa é a minha sugestão! Que as
juízas tenham mais respeito com as vítimas porque são elas quem precisam de ajuda!
(SÉRIE PENSANDO O DIREITO, 2015, p. 52-53)
149).
Diante disso percebemos o quão grave é a situação da violência doméstica no Brasil.
Um contingente enorme de mulheres denuncia o caso às autoridades o que gera a quantidade
de procedimentos informados anteriormente, mas, por outro lado, um número de mulheres igual
ou ainda maior não denuncia o caso, o que faz com percebamos a magnitude desse fenômeno
em nossa sociedade e que as práticas adotadas atualmente não estão sendo eficazes para a
diminuição desse tipo de violência.
Desse modo, chegamos ao impasse entre a criminologia feminista e a criminologia
crítica no Brasil, no que se refere a adequação da resposta penal a esse tipo de violência. O
principal embate diz respeito às alterações dos tipos penais advindas com a Lei nº 11.340/06,
que instituiu agravantes e majorantes aos crimes cometidos contra as mulheres no âmbito
doméstico, bem como obstruiu a utilização de institutos diversificacionistas, tais quais a
composição civil, transação penal e suspensão condicional do processo (CAMPOS;
CARVALHO, 2013 p. 149). A temática será melhor discutida no próximo tópico.
Por outro lado, desde a década de setenta, feministas vêm desenvolvendo estudos
sobre a relação entre as mulheres e o sistema penal, analisando o papel feminino tanto na
qualidade de vítima, quanto na de autora de delitos. Com isso, constatou-se a existência de uma
dupla violência contra a mulher. A primeira corresponde a invisibilidade e a desvalorização dos
delitos cometidos contra as mulheres por motivos de gênero. Os crimes cometidos no âmbito
doméstico sempre foram desconsiderados na lógica penal; até pouco tempo, muitos nem eram
considerados crimes, estando restritos às relações privadas. No Brasil, diversos assassinos de
mulheres foram absolvidos sob os argumentos da “violenta emoção e legítima defesa da honra”
(BLAY, 2008, p. 44). Inserida nessa lógica perversa encontra-se ainda a revitimização da
mulher que procura as autoridades para relatar as agressões sofridas, mas é menosprezada e mal
atendida pelos operadores do direito, conforme exposto anteriormente.
A segunda corresponde ao agravamento das penas quando a mulher é o sujeito ativo
do delito. A esposa que mata o marido, a mãe que comete infanticídio, a mulher que abandona
o filho recém-nascido. Há sempre uma carga pejorativa sobre as mulheres que cometem crimes
violentos, devido ao rompimento do paradigma da submissão e docilidade feminina (BLAY,
2008, p. 73). Assim, a criminologia feminista busca não só a tipificação dos delitos cometidos
contra as mulheres, mas também busca romper com o pensamento machista arraigado no
sistema de justiça penal.
A Lei Maria da Penha proporcionou o embate entre essas duas visões
criminológicas de vanguarda, ao vedar a utilização de institutos despenalizadores previstos na
Lei 9.099/95, por meio de seu art. 41. Tal visão foi pautada na banalização da violência
doméstica decorrente da aplicação errônea desses institutos. Tal vedação não vem se mostrando
benéfica para diminuir os índices de violência contra a mulher, como veremos a seguir.
Entendemos que as ações extrapenais constantes na Lei Maria da Penha constituem
importantes mecanismos de combate à violência doméstica, já que preveem planejamento de
políticas públicas, controle de publicidade sexista, incentivos a realização de pesquisas, bem
como ao levantamento de dados estatísticos, que sempre se mostraram deficientes nessa área,
programas de proteção e atendimento à vítima, entre outros (CAMPOS; CARVALHO, 2013,
p. 144). Porém, a solução estritamente penal prevista pela Lei nº 11.340/06 para as denúncias
realizadas pelas mulheres não vêm se mostrando eficaz.
Aliás, como dito anteriormente, o próprio sistema penal encarcerador está em
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colapso desde o seu nascimento para a maioria das infrações penais, imagine para os casos de
violência doméstica, cuja vítima e o ofensor têm, ou em algum momento tiveram um
relacionamento afetivo, coabitaram, dessa relação adveio filhos, por exemplo. Diferentemente
dos crimes eventuais, a violência doméstica tem motivações completamente distintas. Se em
um furto o motivo é a simples obtenção de uma vantagem pecuniária, em um crime de lesão
corporal dolosa qualificada pela violência doméstica, por exemplo, as razões perpassam
diversos fatores, tais como o ciúme, o sentimento de posse, o próprio machismo e o
patriarcalismo difundidos na sociedade, que insistem em colocar a mulher em um papel inferior
ao homem (CAVALCANTI, 2007, p. 51). Some-se a isso o uso abusivo de álcool e drogas por
parte dos infratores, que é recorrente nos casos de violência doméstica contra a mulher.
Ao pensarmos no processo penal sob a égide da Lei Maria da Penha, verificamos
um predomínio da violência física (66%), seguida da violência psicológica (48%), segundo
pesquisa realizada pelo DataSenado (2015, p. 08). Em relatos de violência atendidos pela
Central de Atendimento à Mulher (LIGUE 180) nos anos de 2006 a 2015, verificou-se que
56,72% dos casos eram de violência física, seguidos por 27,14% dos casos de violência
psicológica (BRASÍLIA, 2015, p. 07).
Dos casos de violência física, os crimes mais recorrentes são de lesão corporal
dolosa (RIO DE JANEIRO, 2015, p. 11), mais precisamente os crimes de lesão corporal leve
(GARBIN et. al., 2006, p. 2570). Tanto o é que a Lei nº 11.340/06 estabeleceu a qualificadora
do §9º do art. 129 do Código Penal (CP) para os casos de lesão corporal leve cometidos no
âmbito doméstico, estabelecendo pena de 03 (três) meses a 03 (três) anos de detenção, na
tentativa de recrudescer a resposta penal a esse tipo de crime. No que tange a violência
psicológica, o delito predominante nesses casos é o de ameaça (RIO DE JANEIRO, 2015, p.
11), previsto no art. 147 do CP, cuja a pena é de 01 (um) a 06 (seis) meses de detenção.
Diante disso, verifica-se que na maioria dos casos, o agressor, ao ser condenado,
terá o regime aberto como regime inicial, posto que a pena geralmente não excede 04 (quatro)
anos (art. 33, §2º, “c” do CP) e mesmo que os delitos no âmbito da violência doméstica sejam
reiterados, é difícil aferir a reincidência nos moldes do CP. Assim, como o réu geralmente é
primário, elege-se a pena mínima como a mais adequada.
No fim das contas, no Brasil, o marido que bate na esposa só é efetivamente preso,
quando ocorre a prisão em flagrante, que é essencial para fazer cessar a violência de imediato
e preservar a integridade física da vítima. Porém, sem esse estado de flagrância, o agressor pode
passar o processo penal inteiro em liberdade e ao final, caso condenado, iniciar a pena em
regime aberto. O condenado deveria cumprir a pena na Casa do Albergado, conforme o art. 93
23
da Lei de Execução Penal, participar de cursos, não frequentar determinados lugares; porém,
devido falta de infraestrutura e de monitoramento, o réu acaba por somente ir à Vara de
Execução Penal assinar uma frequência e relatar as suas atividades.
Diante do exposto, verificamos um paradoxo no tratamento penal dos crimes
cometidos em situação de violência doméstica e familiar contra a mulher: o recrudescimento
penal proposto e esperado para esses tipos de caso não ocorre, já que o agressor não é
efetivamente encarcerado como alguns grupos feministas desejam e, por outro viés, a este não
é proposta outras formas de punição e ressocialização voltadas especificamente para a cessação
da violência doméstica. Assim, a pena prevista para esses crimes carece de caráter intimidatório
e deixa transparecer a ideia de impunidade. O agressor, em termos de execução penal, recebe o
mesmo tratamento que um indivíduo condenado por um crime de furto, por exemplo.
Carmen Hein Campos e Salo de Carvalho (2013, p. 150), consideram essa questão
como ponto de reflexão no embate entre criminologia feminista e criminologia crítica no âmbito
da Lei Maria da Penha, no sentido de retirar o rótulo de punitivista desta, já que a Lei nº
11.340/06 não é responsável pelo encarceramento massivo. Porém, essa visão faz com que o
tratamento penal proposto por ela entre em colapso: se a Lei não se caracteriza faticamente por
um viés punitivo e nem permite a utilização dos institutos diversificacionistas, o que ela é
afinal? Esse paradoxo mostrou-se prejudicial para o combate à violência doméstica contra a
mulher, posto que a resposta penal ao infrator ficou descoberta, não se aplicando de maneira
efetiva nem um, nem o outro método.
A própria Lei Maria da Penha traz apenas um dispositivo (art. 35, V) referente à um
tratamento diferenciado ao agressor, determinando que os entes federados poderão criar e
promover, no limite de suas competências, centros de educação e reabilitação para os
agressores. Pasmem para a palavra “poderão”, significando que tal política pública não é
obrigatória, podendo os estados simplesmente não cumpri-la.
Outra questão relevante diz respeito ao desejo das vítimas em relação à instauração
do procedimento penal. Na pesquisa realizada pelo IPEA, somente 20% das entrevistadas
disseram que a melhor solução seria aplicar a pena e prender o ofensor; os outros 80% diluem-
se em ofendidas que acham que a solução não está na persecução penal. Desses 80%, 40%
acreditam que o problema deve ser resolvido com a ajuda de psicólogos e assistentes sociais,
sem condenar; 30% pensam que a melhor solução é frequentar grupos de agressores para se
conscientizar; e 10% acreditam que a condenação de prestar serviços à comunidade seja a
melhor resposta para esses crimes (SÉRIE PENSANDO O DIREITO, 2015, p. 80).
Diante desses números tão expressivos de rejeição à persecução penal, por qual
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motivo essas mulheres procuram o poder público? Conforme dito anteriormente, muitas
mulheres só procuram as autoridades em último caso, funcionando o direito penal como ultima
ratio, muitas delas procuram a ajuda de familiares e amigos para resolver o problema, antes de
ir à delegacia (SÉRIE PENSANDO O DIREITO, 2015, p. 81).
É interessante ressaltar que a Espanha vem enfrentando problemas semelhantes, no
que tange a efetivação da Lei Orgânica nº 1/2004. Esta foi uma das legislações que mais gerou
expectativas, mas os resultados obtidos não foram satisfatórios. O Judiciário reclama que foi
responsabilizado pelo combate à violência doméstica, critica-se ainda a cumulação de
competências cíveis e criminais dos JVDFM, além da excessiva vitimização da mulher,
considerando-a sempre inocente e o homem como superior e agressor. Diante dessa série de
críticas, estudiosos afirmam que meios alternativos deveriam ser estimulados, tais como a
mediação penal, sempre visando atender os interesses da vítima (MACHADO, 2014, p. 70).
Um relatório elaborado por membros do Consejo Nacional del Poder Judicial,
aponta para a necessidade de reformas legislativas, visando maior assistência à vítima tanto no
processo criminal, quanto cível. Além disso, propõe-se a antecipação do programa de
reabilitação do autor para a fase instrutória, devido à demora na obtenção da sentença, sendo
este avaliado para fins de redução de pena. Frisa-se também o repasse de recursos por parte do
Executivo, para que os programas de atendimento à vítima e ao ofensor sejam efetivados
(MACHADO, 2014, p. 72).
Observa-se que o modelo espanhol de mudança está pautado na inserção de formas
de fortalecimento da vítima, por meio do devido acompanhamento processual, e pelo envio dos
agressores a programas de reabilitação conforme o caso concreto. No Brasil, necessita-se de
mudanças semelhantes, buscando-se implementar a Lei nº 11.340/06 como um todo, não apenas
o seu aspecto penal. Quanto a este, a necessidade de flexibilização do art. 41 da Lei Maria da
Penha é premente, posto que “a obsessão pelo castigo, independentemente do que pensam as
próprias vítimas teria efeito perverso, suprimindo de forma genérica a autonomia da mulher”
(MACHADO, 2014, p. 75).
Por fim, abre-se espaço para o questionamento: é possível compatibilizar as pautas
da criminologia crítica e feminista? Acreditamos que tal compatibilidade é possível e aceitável.
A criminologia feminista trouxe visibilidade à violência praticada pelos homens contra as
mulheres, mas também trouxe à tona a violência institucional sofrida por elas devido ao viés
sexista da elaboração, aplicação e execução das leis penais, sendo o sistema penal dotado de
caráter androcêntrico. Ocorre que tal fato passou décadas sendo ignorado pelos movimentos
críticos, mostrando-se, no mínimo, complacente com a situação vivida pelas mulheres. No
25
Diante do colapso do sistema que elegeu a prisão como a principal resposta aos
delitos, diversas correntes surgiram, buscando encontrar outros meios de coibir a incidência
criminal. Os Estados Unidos, nos anos 60 e 70, vivenciou a crise do modelo encarcerador, pois
constatou-se que o tratamento através da pena privativa de liberdade não atingia o ideal
ressocializador, ao contrário, ocorria um agravamento da situação do delinquente, que saía da
prisão mais propício a reincidência:
26
Somente nos anos 90 é que a justiça restaurativa ganha a atenção dos pesquisadores
como uma possível resolução aos problemas advindos do sistema de justiça tradicional. Antes,
já existiam valores e processos restaurativos, mas não estavam consolidados sob o mesmo
nome. Braithwaite foi o primeiro a difundir as ideias restaurativas nos Estados Unidos, que
rapidamente chegaram à Europa (PALLAMOLLA, 2009, p. 34).
O novo modelo aproxima-se do abolicionismo, movimento também surgido na
época, sendo uma ramificação da Criminologia Crítica. A justiça restaurativa e o abolicionismo
compartilham a tendência de superação do atual processo penal, concedendo à vítima e à
comunidade maior participação no processo (democratização do direito penal) com o fito de
que o infrator compreenda o dano causado por ele. Por outro lado, para Braithwaite, a justiça
restaurativa difere do abolicionismo por prevê ainda a utilização do cárcere para determinados
crimes, valendo-se do princípio da ultima ratio do Direito Penal, e a preservação de algumas
garantias processuais e penais. Já o abolicionismo prevê uma total substituição do processo
penal, e mais além, de todo o sistema penal (PALLAMOLLA, 2009, p. 35).
No entanto, na visão de Howard Zehr (2014, p. 89) o paradigma retributivo está em
vias de modificação, visto que são inúmeros os epiciclos que o sustentam. Epiciclos são
espécies de “remendos” que visam manter o paradigma vigente. O modelo retributivo em si é
violento e estabelecia punições severas, os chamados suplícios (FOUCAULT, 2013, p. 13).
Para sustentá-lo criou-se a pena de prisão, que é mais racionalizada, já que o tempo de
permanência no cárcere é dosado conforme a gravidade do delito, trazendo ares de
razoabilidade e de cientificidade, condizentes com a época em que foi instaurada. Porém, logo
este epiciclo mostrou-se ineficiente, buscando-se, assim, outros meios de sustentar o paradigma.
São exemplos: as chamadas penas alternativas, a sentenças de serviço comunitário, o
monitoramento eletrônico, e até mesmo a indenização e assistência às vítimas.
Diante disso, Zehr propõe que essa mudança de paradigma está pautada na
modificação de como a sociedade enxerga o crime e a justiça. Nos moldes da justiça
restaurativa, o crime é
27
[…] uma violação nas relações entre o infrator, a vítima e a comunidade, cumprindo,
por isso, à Justiça identificar as necessidades e obrigações oriundas dessa violação e
do trauma causado e que deve ser restaurado. Incumbe, assim, à Justiça oportunizar e
encorajar as pessoas envolvidas a dialogarem e a chegarem a um acordo, como
sujeitos centrais do processo, sendo ela, a Justiça, avaliada segundo sua capacidade
de fazer com que as responsabilidades pelo cometimento do delito sejam assumidas,
as necessidades oriundas da ofensa sejam satisfatoriamente atendidas e a cura, ou seja,
um resultado individual e socialmente terapêutico seja alcançado (PINTO, 2005,
p. 21).
Assim, o crime antes de ser uma violação ao Estado, é uma violação do ofensor
contra a vítima e que, de maneira reflexa, atinge a comunidade. Com essa perspectiva, a justiça
restaurativa dialoga com a vitimologia, trazendo a vítima de volta às discussões do direito penal,
pois com a política de proteção dos bens jurídicos, negligenciou-se o dano causado à vítima e
a necessidade de reparação (PALLAMOLLA, 2009, p. 46).
Essa mitigação da proteção aos bens jurídicos para dar mais atenção aos desejos da
vítima, não representa um retorno à época da justiça privada e da vingança. Ao buscar o diálogo
e formas de reparação colocando a vítima como um agente capaz de decidir a respeito do delito,
não dará a ela a liberdade de escolher as mais duras penas ao ofensor sob o aval do Estado. Os
direitos humanos evoluíram bastante e um retrocesso desse tipo não seria tolerado. O que se
busca promover são formas de diálogo e reparação que ajudem a vítima a superar a vitimização.
Porém, não se pode falar, que a justiça restaurativa é um movimento restrito às vítimas, visto
que também se preocupa com o destino do ofensor e da comunidade envolvida no delito
(PALLAMOLLA, 2009, p. 46).
Diante disso, apesar da dificuldade em estabelecer as origens e os fundamentos da
justiça restaurativa, visto que ainda é uma teoria em formação, “é uma prática ou, mais
precisamente, um conjunto de práticas em busca de uma teoria” (SICA, 2007, p.10), a justiça
restaurativa
o termo "justiça restaurativa" refere-se a uma visão global do processo de justiça penal
em que as necessidades da vítima assumem a prioridade e a responsabilidade do
infractor é realçada de uma maneira positiva. A justiça restaurativa denota uma
abordagem lata em que a reparação material e imaterial da relação confundida entre a
28
A justiça restaurativa rege-se por vários princípios, que são determinantes para
construção de uprocesso condizente com as propostas restaurativas. Porém, inexiste consenso
na doutrina, que aponta diversos princípios diferentes, mas que não são divergentes entre si
(GUTIERREZ, 2012, p. 79). Para Francisco Amado Ferreira (2006, p. 29), a justiça restaurativa
orienta-se pelos princípios do voluntarismo, da consensualidade, da complementariedade, da
confidencialidade, da celeridade, da economia de custos, da mediação e da disciplina.
O voluntarismo diz respeito à vontade livre, esclarecida e atual das partes em
participar de um processo restaurativo, devendo serem informadas sobre seus direitos, sobre o
procedimento ao qual irão se submeter e, por fim, sobre as consequências deste. O caráter
voluntário da justiça restaurativa é benéfico para o ofensor, pois faz com que ele internalize
melhor as consequências de seus atos, tornando-o apto a assumir as responsabilidades pelo
delito, além de evitar que este se repita. A voluntariedade na justiça restaurativa é primordial,
pois do contrário,
sucedido, as partes chegarão a um acordo que seja benéfico para ambos, diferentemente da
justiça tradicional, em que o desfecho é contencioso, sendo estabelecido um ganhador e um
perdedor. De certa forma, o acordo celebrado não deixa de ser um negócio jurídico, já que as
partes estão obrigadas a cumpri-lo. Segundo Daniel Dana (2001, p. 77-79 apud FERREIRA,
2006, p. 34-35), o acordo deve ser:
Tais requisitos tornam o acordo exequível, dando a vítima mais segurança jurídica
no caso de um descumprimento. Assim, ao propor um diálogo entre as partes, este só produz
resultados efetivos se houver um mínimo consenso entre estas, sendo o princípio da
consensualidade importante na efetivação da justiça restaurativa.
A confidencialidade corresponde ao sigilo de todos os fatos revelados durante a
processo restaurativo, inclusive as sugestões e propostas apresentadas pelo mediador ou pelas
partes. Caso o procedimento se mostre infrutífero ou o acordo seja descumprido, o caso voltará
a justiça comum e nesta não poderão ser usados os elementos colhidos naquela. A oralidade é
uma característica essencial nos procedimentos restaurativos pois favorece a manifestação das
partes, não devendo suas declarações serem reduzidas a termo, apenas o acordo final é que terá
a forma escrita, como dito anteriormente (FERREIRA, 2006, p. 37).
O princípio da complementariedade diz respeito ao posicionamento da justiça
restaurativa como um complemento ao sistema penal tradicional. Ela geralmente é adequada ao
processo penal comum, inserindo-se em determinados momentos, trazendo consigo meios
menos herméticos de tratar o caso em questão, podendo ser oferecida a suspensão do processo
caso a mediação seja bem-sucedida e o acordo seja cumprido. Ferreira (2006, p. 39), defende a
aplicação da justiça restaurativa na fase de execução, como forma de redução da pena, por
exemplo:
[...] em vez de uma pena efectiva de vinte e cinco anos de prisão, o arguido pode
receber uma de quinze, desde que se haja retratado perante as vítimas, se tenha
esforçado por as reparar ou se haja predisposto a prestar trabalho voluntário em favor
da comunidade, daquelas ou das respectivas famílias, na prisão ou, quando possível,
fora da mesma.
30
Já Sica (2007, p. 30), reconhece esse momento de aplicação, mas discorda da sua
utilização, visto que acarreta a sobreposição dos dois sistemas, o punitivo e o restaurativo. No
item 3.3 trataremos melhor sobre o assunto.
Portanto, como a substituição do paradigma retributivo pelo restaurativo ainda é
utópica, a justiça restaurativa utiliza-se da complementariedade para se inserir no sistema penal
tradicional, na tentativa de torná-lo menos hermético e mais humanizado.
O princípio da celeridade advém da forma simples e informal com que os
procedimentos são conduzidos na justiça restaurativa, que oferecem uma resposta mais célere
e eficaz ao conflito do que a justiça oficial. Contudo, não quer dizer que a justiça restaurativa
não possua mecanismos padronizados, ela apenas adota ritos estritamente necessários para a
resolução do caso (FERREIRA, 2006, p. 40).
A economia de custos é um princípio que decorre da própria celeridade, visto que
com menos ritos o processo torna-se menos custoso financeiramente. Esses recursos antes
destinados a crimes menos graves, podem ser realocados, utilizando-os em crimes mais graves
e assim reduzir os custos materiais do Estado (FERREIRA, 2006, p. 41).
O princípio da mediação diz respeito aos processos restaurativos que se utilizam de
meios negociais para resolver o caso. Geralmente, as partes ficam frente a frente para discutir
a respeito do crime, sob a supervisão de um terceiro intermediário. Outras práticas restaurativas
são variações da mediação, diferenciando-se especialmente pelo número de participantes, que
podem envolver os familiares das partes ou membros da comunidade (FERREIRA, 2006, p.
41).
Por fim, o princípio da disciplina corresponde a obediência aos termos acordados
pelas partes ao final do processo restaurativo. Esta é importante para trazer credibilidade social
ao método. Além disso, o mediador deve se valer da disciplina para conduzir o processo de
forma ordeira e coerente (FERREIRA, 2006, p. 42)
Apesar de existirem divergências doutrinárias, os princípios colocados pelo autor
mostram-se coerentes e caracterizam de maneira eficaz os preceitos da justiça restaurativa.
Primeiramente, cabe destacar que não existe apenas uma forma de manifestação da
justiça restaurativa, mas sim várias práticas. Segundo Rodrigo de Azevedo,
Diante disso, não há uma definição para o que seja um processo restaurativo,
também chamado de conferência restaurativa, apenas diretrizes que se aplicadas corretamente
produzem um processo dessa natureza e, consequentemente, um resultado restaurativo. Assim,
adaptações e variações são estimuladas para que sejam condizentes ao caso concreto. Porém,
existem práticas que são mais difundidas, já tendo sido utilizadas com sucesso em vários países
e por conta disso cabe destacá-las (PALLAMOLLA, 2009, p. 105):
a) Mediação vítima-ofensor (VOM – victim-offender mediation): o primeiro
programa de mediação vítima-ofensor foi estabelecido em 1974, no Canadá. A prática é
bastante difundida no EUA, com 300 programas funcionando atualmente e na Europa com 500
programas. Esse procedimento consiste em promover um encontro entre a vítima e o ofensor
para que estes dialoguem sobre o ocorrido, na presença de um terceiro neutro, que pode ser
tanto membro da comunidade que tenha recebido treinamento para isso, quanto um profissional
qualificado. A própria mediação deve ser tratada como um meio e não como um fim, sendo a
obtenção de um acordo o mero resultado de um processo satisfatório (FROESTAD;
SHEARING, 2005, p. 82). A mediação vítima-ofensor foi o método escolhido para ser utilizado
nos casos de violência doméstica contra a mulher no modelo que estamos propondo e assim
será abordada detalhadamente no próximo capítulo.
b) Conferências de Família (FGC – family group conferencing): essa prática é mais
difundida na Nova Zelândia, na Austrália e em partes do Canadá, baseando-se em métodos de
32
órgão ministerial arquivará o caso, com base no princípio da oportunidade, presente em alguns
ordenamentos jurídicos (PALLAMOLLA, 2009, p. 101).
Na segunda fase, ocorrida após acusação, mas antes da instrução, o
encaminhamento é feito pelo Ministério Público depois do oferecimento da denúncia. Nesses
casos, o processo restaurativo pode integrar os requisitos para a obtenção da suspensão ou do
arquivamento do processo penal em curso (FERREIRA, 2006, p. 31). A primeira e a segunda
fase constituem a chamada solução divertida. Segundo Francisco Amado Ferreira (2006, p. 27),
“numa perspectiva de política criminal, diversão significa a eleição de uma ou mais opções que
se destinem a prosseguir uma via exclusivamente desviada ao sistema de Justiça 'oficial', na
prevenção, gestão, e resolução de determinados factos penalmente relevantes”. Assim, tratam-
se de soluções extraprocessuais, que visam impedir o prosseguimento da ação penal. No modelo
proposto no próximo capítulo, este foi o momento processual escolhido para a ocorrência da
mediação vítima-ofensor nos casos de violência doméstica contra a mulher.
A terceira fase corresponde aquela em que o processo restaurativo ocorre antes do
julgamento ou ao tempo da sentença, sendo o encaminhamento realizado pelo tribunal. A quarta
fase é a da punição, na qual a prática restaurativa é utilizada como alternativa à prisão, como
parte dela ou somada à pena. Ambas as intervenções ocorrem em momentos que o processo
penal já está instaurado. Leonardo Sica (2007, p.30), alerta que nessas duas fases ocorre a
sobreposição dos dois sistemas, o que pode gerar alguns problemas:
Tal proposta é legítima e não sofreria tantas críticas por parte daqueles que
entendem pela atuação principal do direito penal, mas por outro lado, não se coaduna
completamente com os princípios da justiça restaurativa, já que só ao final de um longo
processo, a vítima e o ofensor seriam submetidos a um processo dessa natureza.
3.4. Lei nº 9.099/95 e violência doméstica contra a mulher: houve a aplicação de métodos
restaurativos?
Assim, a Lei dos Juizados Especiais Criminais (JECRIM) nasceu com dois
objetivos no que tange a política criminal: o implemento da lógica despenalizadora no Brasil
para crimes de menor potencial ofensivo, prevendo para estes formas alternativas ao cárcere,
como a composição civil, sendo a conciliação uma etapa anterior, seguida da transação penal e,
por fim, da suspensão condicional do processo; e a consequente economia processual, visto que
os processos teriam ritos mais céleres e ao final não seria atribuída a pena de prisão. Além disso,
as varas criminais teriam mais prioridade para tratar dos crimes de maior potencial ofensivo
(SÉRIE PENSANDO O DIREITO, 2013, p. 21).
No início, a referida lei foi vista com bons olhos por pesquisadores e grupos
feministas, pois os novos dispositivos poderiam agilizar a responsabilização de autores de
agressão. Além disso, para outros delitos, o JECRIM seria importante “para conferir agilidade
aos processos judiciais, para desafogar a justiça tradicional, para despenalizar pequenos delitos
e para acelerar a resolução de disputas em torno de interesses específicos” (MORGADO, 2013,
p. 266). O problema surgiu com o conceito de crime de menor potencial ofensivo, que acabou
por englobar, indistintamente, crimes contra a pessoa.
O conceito de menor potencial ofensivo previsto na lei é meramente quantitativo,
enquadrando-se neste, os crimes cuja a pena máxima é de até dois anos (art. 61). Ocorre que
este conceito não é adequado para a aferir a ofensividade do delito. Como dito no capítulo
anterior, a criminologia feminista apontou o machismo presente no Direito Penal, cuja a pena
é estabelecida com base na reprovabilidade social que o crime gera. No caso da violência
doméstica contra a mulher, por exemplo, as penas sempre foram baixas, representando que o
legislador penalista naturaliza a conduta e não lhe concede a devida gravidade.
Porém, como sabemos, a violência doméstica e familiar é sim uma conduta grave
para a mulher, que se vê traída e machucada por um homem que ela confiava, que lhe causa
não só dores físicas, mas principalmente emocionais, destruindo a autoestima, podendo gerar
graves problemas psicológicos para a vítima. Como se não bastasse, a agressão atinge, de
maneira reflexa, os familiares dos envolvidos, especialmente os filhos, que crescem
presenciando situações de violência e as naturalizam, podendo reproduzir o mesmo
36
Além disso, os dispositivos despenalizadores não tiveram como finalidade dar mais
humanidade ao processo penal; o único objetivo almejado foi a não instauração do
procedimento. Assim, o processo de conciliação entre a vítima e o ofensor, sob a égide de Lei
nº 9.099/95, mostrou-se fracassado, pois não havia tempo nem espaço para a construção de uma
solução por parte dos envolvidos. Muitos dos acordos eram induzidos pelos servidores públicos,
37
posto que manter as “prateleiras vazias” era mais importante do que o resolver o mérito da causa
(SICA, 2007, p. 51; GUTIERRIZ, 2012, p. 86).
Diante desse fracasso no tratamento da violência doméstica contra a mulher por
parte do JECRIM, a sociedade civil e os movimentos sociais passaram a reivindicar novas
formas de enfrentamento a esse tipo de delito. Quando a Lei Maria da Penha foi sancionada, o
legislador quis afastar-se totalmente das práticas dos Juizados Especiais Criminais, como uma
forma de estabelecer um novo momento, uma nova ordem para os crimes cometidos no âmbito
doméstico, e assim, vedou a utilização dos dispositivos previstos na Lei nº 9.099/95,
desencorajando o fomento de práticas reparadoras para os casos de mulheres em situação de
violência.
Uma das principais preocupações deste trabalho, é que aplicação da justiça
restaurativa para os casos de violência contra a mulher não seja entendida como um retrocesso
ao tempo da aplicação da Lei 9.099/95. Primeiramente, a escolha da conciliação como método
para dirimir o conflito penal entre as partes não foi acertada. A mediação penal, também
conhecida como mediação vítima-ofensor, seria a melhor opção para um processo de
composição entre as partes, para comprovar esse entendimento, vale conceituar e apontar as
diferenças entre mediação e conciliação.
A expressão mediação tem origem no termo latino mediar ou mediare, que significa
interpor-se, abrir, dividir ao meio. A mediação surgiu como um meio de estabelecer canais de
diálogo entre partes conflitantes, através de um terceiro neutro, para possibilitar a resolução de
um conflito, cujos litigantes não tem capacidade de resolvê-lo por si só (FERREIRA, 2006 p.
73; SICA, 2007, p. 46).
Francisco Amado Ferreira (2006, p. 74), ao explicar as origens da mediação, a
distingue, de imediato, da conciliação:
legislação específica sobre violência doméstica contra a mulher. A referida lei, que não foi feita
com esta finalidade, acabou por abarcar uma questão delicada por pura negligência do
legislador às questões de gênero. Porém, atualmente, como o advento da Lei Maria da Penha,
essa questão evoluiu bastante, sendo objeto de discussão nos mais diversos setores sociais,
inclusive em redes sociais. Os delitos cometidos no âmbito doméstico ganharam certa
reprovabilidade, ainda que insuficiente para coibi-lo. Diante disso, uma possível aplicação da
justiça restaurativa, aliada às conquistas já obtidas poderiam ser um instrumento de maior
efetivação dos direitos das mulheres e uma forma de diminuir ainda mais os índices de
violência.
Diante do exposto, apesar de o JECRIM prevê práticas despenalizadoras que se
coadunam com a justiça restaurativa, esta não foi completamente implementada por aquele,
visto que não houve foco no momento de encontro e diálogo entre vítima e ofensor. Além disso,
não há previsão da figura do mediador qualificado e treinado para exercer essa função, que
muitas vezes era exercida pelo juiz, sem que este tivesse passado por qualquer treinamento.
Muito menos, a qualquer menção a atuação da comunidade, que foi deixada de lado. Porém,
avanços podem ser colocados para resolver os problemas dos Juizados Especiais Criminais, e
muitos deles perpassam pela utilização mais efetiva da justiça restaurativa (AZEVEDO, R.,
2005, p. 134).
Dito isto, o próximo capítulo abordará a aplicação da justiça restaurativa aos casos
de violência doméstica contra a mulher, frisando a utilização da mediação vítima-ofensor e de
dispositivos despenalizadores, como a suspensão condicional do processo.
4.1. Por que utilizar a Justiça Restaurativa nos casos de violência doméstica contra a
mulher?
Dito isto, temos que uma conferência restaurativa pode responder adequadamente
aos anseios das vítimas, além de estabelecer um tratamento diferenciado ao acusado. Reunir
vítima e ofensor em uma mediação ou uma conferência de família, onde os dois estejam
dispostos a dialogar sobre o problema enfrentado, expondo seus pontos de vista, sentimentos,
angústias, sob a supervisão de um mediador qualificado pode ser benéfico para as duas partes.
Para a mulher, esse processo pode ajudar a superar a vitimização, devolvendo-lhe a autonomia;
quanto ao homem pode ajudá-lo a entender a gravidade do seu ato, incentivando-o a assumir
responsabilidades e assim, reduzir a possibilidade de reincidência (ZEHR, 2014, p. 28 e 41).
Além disso, o foco da justiça restaurativa reside nas consequências do crime e nas
relações sociais afetadas por ele, havendo uma perspectiva futura quanto ao delito
(GUTIERRIZ, 2012, p. 77). Tal objetivo coaduna-se com a natureza dos crimes ocorridos no
âmbito doméstico, especialmente nos casos em que a vítima volta a conviver com o agressor.
Ao pensarmos em políticas públicas para prevenir e combater esse tipo de violência devemos
41
ter em mente, para além da punição do acusado, a cessação desses delitos, que como já sabemos,
ocorrem de forma reiterada, sendo necessário romper o ciclo da violência.
Em pesquisa realizada pela Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da
Justiça em parceria com instituições acadêmicas, constatou-se que a intenção das mulheres que
acessam o sistema de justiça para reportar as agressões, não era de que o infrator fosse preso,
mas sim que este, simplesmente, parasse de agredi-las. Uma das entrevistadas disse que “não
desejava a prisão do ex-marido, mas que esperava que ele a 'deixasse em paz', ou seja, cumprisse
a medida protetiva consistente na proibição de aproximação, anteriormente descumprida”. A
mesma vítima complementa: “Ele não precisa ser preso para cumprir com a obrigação […]. Ele
vê que a lei funciona, que tem ordens que tem que ser cumpridas. O que eu espero é isso”
(SÉRIE PENSANDO O DIREITO, 2013, p. 42).
Diante desse depoimento, podemos refletir sobre a aplicação da justiça restaurativa.
Será que utilizar técnicas restaurativas no caso em tela poderia ajudar o infrator cumprir a
medida protetiva e assim deixar a vítima “em paz”? Esse é um dos principais questionamentos
desse trabalho, sendo tal resposta construída e fundamentada ao longo dessa pesquisa.
Precipitadamente, poderíamos responder que sim, que submeter o infrator a um
processo restaurativo o ajudaria a compreender o mal causado a vítima, já que de acordo com
o que foi narrado, ele insiste em descumprir até mesmo a medida protetiva imposta. Porém,
antes de chegarmos a essa conclusão, outros fatores devem ser considerados, especificamente
o caráter voluntário do processo restaurativo, pois impor à vítima e ao ofensor um encontro
pode não ter o resultado desejado (FERREIRA, 2006, p. 31).
No caso em tela, em audiência ocorrida em uma vara criminal comum, a vítima foi
questionada se gostaria de ser ouvida sozinha, ao qual ela respondeu que não. O juiz perguntou
o porquê dessa decisão, posto que em audiência anterior ela quis ser ouvida sozinha. A ofendida
respondeu que “desta vez quer falar na cara do agressor que não quer mais ele”. O juiz, de
maneira pouco empática, respondeu que em casos de separação ela deveria procurar a
Defensoria Pública. Ao final, o magistrado optou pela soltura do acusado, com base na
desnecessidade da manutenção da prisão preventiva; e, a pedido da vítima, deixou que o infrator
visse as filhas que estavam no corredor (SÉRIE PENSANDO O DIREITO, 2013, p. 87, caso
33).
Esse caso é emblemático, pois observamos que a vítima necessita de um espaço de
fala, o que não é concedido em audiência. Mesmo com poucas informações sobre a vítima,
podemos aferir, pela sua atitude, que passar por uma experiência restaurativa junto ao agressor
seria benéfico, pois ela poderia falar sobre o caso, falar sobre a violência, expor os seus
42
guardam estreita relação, sendo a primeira a técnica que melhor contempla os princípios da
segunda. A atividade comunicativa relacional inerente às relações humanas transporta-se para
a mediação, tornando possível a resolução satisfatória dos conflitos por meio da composição.
Dito isto, abordaremos agora a mediação na esfera penal, esclarecendo o
procedimento, técnicas, o papel do mediador e os possíveis acordos, observando de que forma
eles se coadunam aos aspectos da violência doméstica e até que ponto podem ser utilizados.
Primeiramente, vale destacar a definição de mediação penal proposta por Leonardo Sica (2007,
p.53) nos moldes do novo paradigma, cuja atividade pode gerar uma despenalização e a
desnecessidade de ingressar na tutela penal retributiva. Assim,
a mediação se mostre infrutífera e a lide seja remetido à justiça comum, os fatos debatidos nessa
sede não poderão ser utilizados em juízo. Tal premissa é um incentivo para que o ofensor fale
a verdade e assuma a responsabilidade pelo delito, sem o receio que as suas declarações sejam
posteriormente utilizadas contra ele, resguardando assim o princípio da presunção de inocência,
previsto no art. 5º, LVII da Constituição Federal de 1988.
A oralidade decorre da confidencialidade, pois as sessões de mediação não serão
registradas em ata, para que as partes se sintam mais à vontade para falar sobre o caso. Somente
o acordo obtido será redigido para que a vítima e o ofensor fiquem cientes dos termos acordados
e para que este seja enviado ao magistrado e, assim, homologado. Ressalte-se que o conteúdo
do acordo deve ser submetido a avaliação do Poder Judiciário, devendo este observar se os
princípios da razoabilidade e da proporcionalidade foram respeitados, não admitindo excessos
ou acordos degradantes (GUTIERREZ, 2012, p. 89).
Já a informalidade denota que a mediação deve ocorrer da forma mais simplificada
possível, devendo o mediador utilizar-se de um vocabulário acessível às partes. Mesmo sendo
um processo informal, a mediação vítima-ofensor deve ser estruturada de forma organizada,
permitindo que cada uma das partes se manifeste sem interrupções e de forma ordeira
(AZEVEDO, A., 2005, p. 146).
O envolvimento comunitário e a autonomia em relação ao sistema de justiça estão
diretamente interligados. Conforme exposto no capítulo anterior, a justiça restaurativa estimula
a participação da comunidade na busca por uma resposta ideal ao delito, tornando a justiça
penal mais democrática. Ao estabelecer esse objetivo, os métodos restaurativos buscam também
se desvincular do modelo tradicional de justiça, primando pela resolução de conflitos no âmbito
comunitário. Apesar de se relacionar com o sistema de justiça tradicional, a mediação está fora
do processo judiciário (SICA, 2007, p. 54).
Nos casos de violência doméstica contra a mulher, entendemos que a comunidade
pode inserir-se nesse processo, mas somente em casos excepcionais. A participação dos filhos
do casal, que tenham idade para compreender o delito ou de familiares, tanto da vítima quanto
do ofensor, nos moldes das conferências de família (FGC – family group conferencing), podem
ser benéficas para obtenção de um resultado satisfatório. Porém, como regra geral, deve-se
priorizar a mediação vítima-ofensor.
Em muitas situações, o mediador é uma pessoa pertencente a comunidade, sendo
por vezes, um voluntário que passa por um treinamento. Nos casos de violência doméstica,
devido à complexidade do delito, entendemos que o mediador deve ser qualificado, devendo
ser graduado em psicologia, e/ou serviço social ou áreas a fins, somados a treinamentos em
46
(…) aqueles que se reportam a histórico de relacionamento positivo das partes; os que
evocam interesses comuns; os que a solução já foi implicitamente indicada pelas
partes nas exposições iniciais; os que proporcionam maior aprofundamento da
compreensão recíproca acerca das necessidades e interesses de cada parte.
com os objetivos da mediação penal e com os anseios da vítima. Esta pode se dar por meio da
frequência de cursos; no caso de o agressor ser dependente de álcool e/ou drogas, pode ser
acordado que ele fará tratamento para livrar-se do vício. Reparações dessa natureza são
benéficas para as duas partes e têm mais chances de fazer cessar o ciclo da violência. Trataremos
melhor desse tema nos tópicos finais deste capítulo.
(…) pessoa capaz, graduada há, pelo menos, dois anos em curso de ensino superior
de instituição reconhecida pelo Ministério da Educação e que tenha obtido capacitação
em escola ou instituição de formação de mediadores, reconhecida pela Escola
Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – ENFAM ou pelos
tribunais, observados os requisitos mínimos estabelecidos pelo Conselho Nacional de
Justiça em conjunto com o Ministério da Justiça.
Nos moldes do art. 12, os tribunais deverão manter um cadastro atualizado contendo
os mediadores habilitados. Ressalte-se ainda que a remuneração dos mediadores será fixada
49
pelos tribunais e custeada pelas partes, salvo casos em que estas sejam hipossuficientes (art.
13).
A lei prevê ainda que os tribunais deverão criar Núcleos Permanentes de Métodos
Consensuais de Solução de Conflitos, nos moldes da Resolução nº 125/2010 do CNJ, que serão
compostos por magistrados e servidores, cujas atribuições estão previstas no art. 7º da referida
resolução, dentre as quais vale destacar: a atuação dos Núcleos como articuladores de uma rede
a ser construída entre o Poder Judiciário e entidades públicas e privadas, inclusive universidades
e instituições de ensino com o intuito de difundir a mediação, especialmente a mediação
comunitária; a instalação de Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania que
concentrarão as sessões de mediação e conciliação; a promoção de treinamentos, capacitação,
cursos para os magistrados, servidores, mediadores e conciliadores (CNJ, 2010, p. 04).
A mediação penal também foi contemplada pela resolução do CNJ, permitindo os
Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos também realizem
programas de mediação penal, utilizando-se ainda de processos restaurativos. Cabe destacar o
inteiro teor do art. 7º §3º, vejamos:
Nos termos do art. 73 da Lei n° 9.099/95 e dos art. 112 e 116 da Lei n° 8.069/90, os
Núcleos poderão centralizar e estimular programas de mediação penal ou qualquer
outro processo restaurativo, desde que respeitados os princípios básicos e processos
restaurativos previstos na Resolução n° 2002/12 do Conselho Econômico e Social da
Organização das Nações Unidas e a participação do titular da ação penal em todos os
atos.
violência. Apesar da ausência de previsão na lei, o mediador poderia ser um servidor público,
vinculado à Equipe Multidisciplinar do JVDFM. Tal fato poderia trazer mais segurança jurídica
ao procedimento, mas, por outro lado, o tornaria mais judicializado e estatal, indo contra os
princípios da mediação penal no âmbito da justiça restaurativa
Assim, entendemos que em uma possível mediação envolvendo vítima e agressor,
o mediador deve ser judicial, além de ser especializado nessa temática, para que o processo
ocorra da forma mais satisfatória possível. No próximo tópico será traçado um modelo teórico
acerca da aplicação da justiça restaurativa nos casos de violência doméstica contra a mulher no
direito brasileiro.
brasileiro como sursis processual, previsto no art. 89 da Lei nº 9.099/95. Segundo Pacelli (2013,
p. 702), o sursis processual aplica-se aos crimes
em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, e desde que o acusado
não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, e, ainda
estejam presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da
pena, o chamado sursis do art. 77 do CP.
[…]
§ 1º Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor, na presença do Juiz, este,
recebendo a denúncia, poderá suspender o processo, submetendo o acusado a período
de prova, sob as seguintes condições:
I – reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo;
II – proibição de frequentar determinados lugares;
III – proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do Juiz;
IV – comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e
justificar suas atividades.
O §2º informa ainda que o juiz poderá impor outras condições, desde que adequadas
ao caso concreto (PACELLI, 2013, p. 708).
A Lei nº 11.340/06, em seu art. 41, proibiu a aplicação de qualquer instituto previsto
na Lei nº 9.099/95. Porém, no início da vigência desta, houve divergências quanto a utilização
do sursis processual. Algumas correntes entendiam pela aplicabilidade do instituto, já que este
não era exclusivo dos crimes de menor potencial ofensivo, aplicando-se a outros ritos. Além
disso, Azevedo e Craidy (2011, p. 23) destacam a importância da suspensão condicional do
processo para a pacificação do conflito, visto que o agressor estará submetido a um período
probatório, sob controle judicial, podendo tal fato ser proveitoso para a vítima. Vários
magistrados continuaram utilizando o instituto por entenderem que ele atendia aos interesses
da vítima.
Em entrevista, a juíza atuante em um JVDFM no estado de São Paulo, ressaltou:
a vítima se sente muito mais segura com a suspensão do processo, por que ao longo
de dois anos ele está na condição de não se aproximar dela, ao passo que se a gente
tocar o processo normalmente, as penas são muito baixas, as penas de lesão e ameaça
são muito leves, um a três meses de prisão (as penas mínimas, respectivamente)
(SÉRIE PENSANDO O DIREITO, 2013, p. 50)
52
Ela ainda elogia a criação da Lei Maria da Penha por conta das inovações e dos
mecanismos protetivos que esta trouxe em seu texto normativo, mas considera que houve um
retrocesso ao não permitir a aplicação de mecanismos da Lei 9.099/95, pois com estes podia-se
aplicar uma medida alternativa de encaminhamento a programas de reeducação e reabilitação
de imediato; agora a espera pode levar mais de um ano, devido à obrigatoriedade da instauração
do inquérito policial, o que acabou por sobrecarregar a demanda na Delegacia, tendo esta
dificuldade em enviar os inquéritos dentro do prazo.
Por fim, a juíza salienta a importância do atendimento humanizado nesses casos,
devendo os operadores do direito, preocuparem-se mais com um resultado efetivo para o caso,
do que com o próprio procedimento em si:
(…) a minha angustia é poder atender as pessoas e, para mim, atender as pessoas é
efetivamente atender as pessoas e, não o papel. O Judiciário, e quando eu falo em
Judiciário, não é o Poder Judiciário, mas todo o sistema faz muito papel e pouco
resultado. O que há de efetividade, por exemplo, no registro na delegacia de uma
ocorrência? A medida protetiva? Bom, se eu deferir uma medida protetiva, o que vai
mudar? O que a gente vê é que as pessoas chegam aqui muito desestruturadas. Não
importa nem o nível cultural e nem o nível econômico, mas as pessoas quando
terminam um relacionamento, o término de um relacionamento é uma coisa muito
53
dolorida. E se não houver uma efetiva intervenção para essas pessoas, não adianta
fazer papel, fazer inquérito e um ano depois é muito tarde para decretar uma medida,
principalmente quando a situação tem origem na vítima (AZEVEDO, CRAIDY,
2011, p. 30).
2
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. ARTIGO 41 DA LEI Nº 11.340/06. ALCANCE. O preceito do artigo 41 da Lei nº
11.340/06 alcança toda e qualquer prática delituosa contra a mulher, até mesmo quando consubstancia
contravenção penal, como é a relativa a vias de fato. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. ARTIGO 41 DA LEI Nº
11.340/06. AFASTAMENTO DA LEI Nº 9.099/95. CONSTITUCIONALIDADE. Ante a opção político-
normativa prevista no artigo 98, inciso I, e a proteção versada no artigo 226, § 8º, ambos da Constituição Federal,
surge harmônico com esta última o afastamento peremptório da Lei nº 9.099/95, mediante o artigo 41 da Lei nº
11.340/06, no processo-crime a revelar violência contra a mulher. (STF - HC: 106212 MS, Relator: Min. MARCO
AURÉLIO, Data de Julgamento: 24/03/2011, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-112 DIVULG 10-06-2011
PUBLIC 13-06-2011)
54
3
A Lei nº 9.099/95 prevê que a autoridade policial produzirá o Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) nos
casos de crimes de menor potencial ofensivo (art. 69). Porém, conforme já foi dito repetidamente, os crimes
cometidos em situação de violência doméstica não são de menor potencial ofensivo e podem requerer uma
investigação mais acurada, sendo assim importante a instauração do inquérito policial. Por conta disso, no modelo
proposto permanece a apuração dos fatos por meio de inquérito policial
55
possível a obtenção de acordo, o processo é remetido para o sistema penal tradicional para que
se dê seguimento nos moldes atuais da Lei Maria da Penha. Se a mediação for bem-sucedida, o
acordo é enviado ao juiz para verificar se aquele não fere o princípio da dignidade da pessoa
humana e se condiz com o ordenamento jurídico brasileiro. Feita esta triagem, o acordo é
homologado e o cumprimento deste seria a condição para a suspensão do processo. O acusado
deverá comparecer às reuniões, sendo a frequência encaminhada aos órgãos públicos, como
forma de monitoramento. Caso o acordo estabelecido pelas partes seja devidamente cumprido
é declarada a extinção da punibilidade e o processo é arquivado; caso o infrator descumpra o
acordo, o processo volta a correr, de acordo com o próprio conceito de suspensão condicional
do processo.
Entendemos que o art. 41 de Lei nº 11.340/06 foi julgado constitucional e que a sua
aplicação já é consolidada. Não faremos aqui juízo de valor aos outros dispositivos vedados
(transação penal, p. ex), mas acreditamos que a mediação seguida do sursis processual atende
melhor os interesses da vítima e ainda possibilita ajuda ao acusado que, em vez de sofrer o
estigma do processo penal passava por um tratamento específico que teria maiores chances de
impedir a reincidência nesse tipo de crime.
A nossa proposta difere do que acontecia anteriormente por conta da inserção da
mediação vítima-ofensor, que tem preceitos bem diferentes da conciliação realizada no
JECRIM, cuja aplicação faz total diferença no cumprimento das condições por parte do
indiciado. Ao voluntariamente as partes decidirem resolver a questão por si mesmos, o acusado
assumiria de forma consciente a responsabilização dos seus atos e o acordo também tem maior
importância subjetiva já que ele próprio ajudou a forjá-lo, não sendo uma imposição vinda de
um superior (NOBRE; BARREIRA, 2008, p. 150). Esclarecemos que o sucesso do modelo está
diretamente ligado a forma como se procede a mediação, logo, a própria qualificação do
mediador, além da estruturação dos órgãos aptos a receberem os agressores. Para isso, uma
atuação conjunta de entes públicos e privados (ONGs, p. ex) se faz necessária.
Destacamos também, que a suspensão condicional do processo e o posterior
arquivamento deste em nada implicam sobre a concessão das medidas protetivas de urgência
que têm natureza cível e constituem um processo autônomo. Logo, o arquivamento da ação
penal, não implica na suspensão das medidas protetivas. Ademais, o Superior Tribunal de
Justiça, através do Recurso Especial 1419421/GO, de relatoria do Ministro Luís Felipe
Salomão, julgado no dia 11 de fevereiro de 2014, ratificou o entendimento sobre a natureza
56
4.3.3 Possíveis formas de reparação por parte do ofensor: a experiência de grupos reflexivos
para homens autores de violência doméstica contra a mulher
4
DIREITO PROCESSUAL CIVIL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER. MEDIDAS
PROTETIVAS DA LEI N. 11.340/2006 (LEI MARIA DA PENHA). INCIDÊNCIA NO ÂMBITO CÍVEL.
NATUREZA JURÍDICA. DESNECESSIDADE DE INQUÉRITO POLICIAL, PROCESSO PENAL OU CIVIL
EM CURSO. 1. As medidas protetivas previstas na Lei n. 11.340/2006, observados os requisitos específicos para
a concessão de cada uma, podem ser pleiteadas de forma autônoma para fins de cessação ou de acautelamento de
violência doméstica contra a mulher, independentemente da existência, presente ou potencial, de processo-crime
ou ação principal contra o suposto agressor. 2. Nessa hipótese, as medidas de urgência pleiteadas terão natureza
de cautelar cível satisfativa, não se exigindo instrumentalidade a outro processo cível ou criminal, haja vista que
não se busca necessariamente garantir a eficácia prática da tutela principal. "O fim das medidas protetivas é
proteger direitos fundamentais, evitando a continuidade da violência e das situações que a favorecem. Não são,
necessariamente, preparatórias de qualquer ação judicial. Não visam processos, mas pessoas" (DIAS. Maria
Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012). 3. Recurso
especial não provido.(STJ - REsp: 1419421 GO 2013/0355585-8, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO,
Data de Julgamento: 11/02/2014, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 07/04/2014).
57
participantes em multiplicadores.
MO: Nós não somos bandidos. Ele veio com a arma, algema, nossa, parece uma
operação especial sobre assalto e… ele não é especializado pra isso. Não. É uma briga
de mulher. Não é policial que vai lá na favela catar bandido pra falar comigo. O
homem fala comigo como se eu fosse bandido. Eu não sou bandido, não. Aconteceu
um problema entre eu e a minha mulher. Vamos lá na delegacia, tem que acalmar os
dois […]. (PRATES; ALVARENGA, 2014, p. 230)
Outro ponto abordado diz respeito às relações de gênero. No início dos encontros,
a ideia dos papéis de homens e mulheres é bem definida e estereotipada pelos participantes,
reproduzindo-se discursos pejorativos, como: “JC: Quem é que me garante que a mulher não
se sujeitou a isso [condição inferiorizada] em benefício próprio?” (PRATES; ALVARENGA,
2014, p. 234).
Já do sexto ao décimo encontro, observa-se maior flexibilização dos discursos
iniciais, com destaque para o reconhecimento da violência como algo relacional, no qual a
situação não pode ser resolvida pelos parceiros, sendo necessário o rompimento do ciclo da
violência, e ainda que as mulheres também passem por algum acompanhamento psicológico
para que não se envolvam novamente em situações desse tipo. Nesse sentido, cabe destacar a
seguinte fala:
58
JC: Mas quem sofre uma agressão não tem que passar por psicólogos? Facilitador:
Você acha que tem que passar? Por quê? JC: Porque eu acho que ela também tem
parte nessa violência. Ela não apanhou lá do cara, chegou de bobeira: 'Ô, você tá linda
hoje!' e pralalalá. Alguma coisa vai alimentando, né? […]. D: Aí, um exemplo, a
mulher fazendo um negócio desse também, a própria mulher vai começar… A
semente é pequena, mas vai começar, namora com um cara que vê que o cara é zoado,
que o cara não tem jeito, que é aquele cara violento por natureza, já sai fora também.
Pra não chegar no casamento (PRATES; ALVARENGA, 2014, p. 233-234).
JC: Bom, nós chegamos à conclusão que não existe um biotipo certo, né? (…) Elas
querem homens diferentes, mas sendo as mesmas mulheres? Facilitador: (…) É
contraditório pra todo mundo, tanto pra gente, como pra elas. (…) a mulher tá fazendo
um monte de coisa, diferente do que fizeram até as mães da gente. (…) Ela mudou e
a gente também (…) e a gente não tá percebendo algumas coisas que tão mudando
(…) e aí elas tão brigando mais. JC: Porque ninguém foi educado dessa forma, né.
Facilitador: Exatamente. (…) O que a gente tenta fazer aqui não é mudar a cabeça de
ninguém, mas é, pelo menos, a gente perceber que a coisa tá diferente. Não dá pra
gente cobrar, às vezes, da mulher ou da gente a mesma coisa que foi com os pais da
gente. A gente agora tá vivendo um outro momento. JM: Tá tudo mudado agora. Não
é que nem antes (PRATES; ALVARENGA, 2014, p. 235).
Ao final, entre o 11º e 16º, é possível observar uma nova emergência de ideias a
respeito das temáticas discutidas. Além disso, os participantes se mostraram satisfeitos com os
encontros e pretendem levar para a vida cotidiana o que foi discutido:
JC: (...) A hora que acabar a minha [participação obrigatória] eu vou vir num dia aqui
'Opa, beleza? Esse aqui é o JC que não é mais obrigado, mas tá vindo'. Porque é
interessante. (…). Faz diferença porque qualquer coisa que a gente discute lá na minha
loja, na oficina, com um cliente, alguma coisa (…) eu tô sempre pensando nesses
assuntos daqui. (PRATES; ALVARENGA, 2014, p. 240)
essa alternativa é mais eficaz do que o cárcere, por exemplo, pois ela amplia o espectro de
resposta aos casos de violência doméstica contra a mulher. Nos dizeres de um dos participantes:
“MO: Aconteceu de eu discutir também durante, vamos supor, teve semana passada que eu
discuti e tal. Sempre lembro daqui. Então, nós tamos vindo aqui, tem benefício, agora ir lá
assinar no Fórum não tem benefício nenhum” (PRATES; ALVARENGA, 2014, p. 240).
5 CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
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