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REFLEXAO Abandonar o 4 hoje uma urgéncia em se fornecer aos homens de boa vontade os meios de uma via espiritual que respeite sua inteligéncia. Porque, ao rejeitar, com toda razio, os dogmas estreitos das religi: estabelecidas, o homem ocidental, herdeiro mais ou menos consciente do espirito do “Tluminismo”, freqiientemente tende a jogar fora o bebe espiritual junto com a agua do banho religioso. Visto que a questo é reaver 08 dados do pro- blema quase que do zero, voltemos entdo a centrar nossos esforgos no nticleo pri- mordial da expe- riéncia vivida, { \ nica garantia de alguma univer- i ¥ salidade. ‘Todo ser humano, cedo ou tarde no curso de sua existéncia, defronta-se com experién- cias de maravilhamento espontaneo, gera- das, por exemplo, pelo perfume de uma flor ou o olhar de uma crianca. Quem jé nao se sentiu transportado de alegria, ao menos por ‘um segundo, pela visdo de um simples raio de sol entrando num aposento antes na escuridao? Por sua propria brevidade, esse sentimento escapa & andlise logica; esta aquém da objetivagao intelectual. Nesse instante, produz-se algo semelhante a uma sincronicidade, aquilo a que chamamos, ‘genericamente e de modo vago, uma intui- ‘sao. Ora, que é uma intuigéo sendo a percep- ‘do de uma dada realidade por outro meio que no o emprego dos cinco sentidos e do raciocinio, ainda que reduzido a sua mais simples expresso? Aquilo que Henri Bergson chamou de “dados imediatos da consciéncia” nos traz uma luz nova pelo curto- circuito salutar das nossas faculdades objetivas. Nesse instante, 0 tempo deixa/cessa de q existir, somente subsistem a experiéncia eo } sentimento ¥ 4 profundo, inalte- ravel, quase organico, que entao atribuimos a alguma verdade universal nao quantificvel e nio transmissivel pelo verbo. Sejam quais forem os meios cultural e social, a localizagao geogrifica ou a época, todos os homens viveram e viverdo fend- menos semelhantes. H, portanto, a um s6 tempo, universalidade pelo ntimero e distri- buigao dos experimentadores pelo sentido dado a experiencia. 18 OROSACRUZ # 1° TRIMESTRE 2007 Prva materialismo A intuigSo, a capacidade de maravilha- mento, o jibilo natural e, de modo geral, a qualidade amorosa de cada um de nds si0 aquilo que nos liga da forma mais segura 4 raiz comum da faculdade espiritual, ao inexprimivel niicleo transcendente do ser. ‘Vou andando por um caminho campestre, uma borboleta roca minha visdo e circuns- ‘reve com suas asas um fragmento de eternidade. Tudo entdo cai em silencio, tudo que compunha meu ambiente se esvanece € dé lugar eterna realidade daquilo que é. Duplicando por algum tempo as circunvolu- oes das sensages, um perfume de inexpri- mivel plenitude inunda o espaco e todas as idéias desaparecem ento no ritmo de uma danga natural, na qual a consciéncia humana €convidada a entrar. ‘Como descrever, falar ou discutir sobre uma experiéncia que, por natureza, escapa a nossa intelecco? Eis 0 que une os poetas € ‘os misticos, a arte e a religido e, mais gene- ralizadamente, a via do espfrito. Conside- remos essa capacidade natural de efusio espiritual como nosso bem mais precioso, aquilo que, no fim das contas, seguramente nos diferencia do estado de bruteza ou de homem-méquina. Ela é 0 fundamento, a pedra angular de toda'compreensao superior do real. Mas s6 podemos viver esses instantes privilegiados se estamos suficiente e natural- mente dispostos a isto, se adotamos um estado mental suficientemente aberto e sem 4 priori. A essa abertura, a essa “boa vonta- de” do inocente, soma-se, é verdade, uma predisposigao, uma faculdade inata de mara- 1 Por PHILIPPE LAURENT, FRC? vilhamento, uma qualidade contemplativa especial que nao parece ser - que pena! ~ 0 traco dominante de nossa época. Contempla- do, na verdade, nao significa concentracao, tensao sobre, mas, ao contrario, relaxa- mento, abertura total ao instante presente, participagéo de todo o ser na tonalidade vibratéria do espaco. Sob essa tica, um pastor, que passa seus mais claros tempos deixando seu olhar plainar sobre as pasta- gens, desenvolve suas faculdades naturais de compreensdo muito mais do que 0 erudito que acumula um saber enciclopédico, inter- calando uma camada sempre mais espessa de falsas certezas entre o real e sua mente. Admitamos, portanto, que seja saudivel afastar nossa mente analitica por algum tempo e que as faculdades imaginativas € intuitivas da nossa consciéncia sejam a porta de acesso as realidades transcendentes, as ‘inicas das quais se falam quando se estuda uma via espiritual, qualquer que seja ela. ‘A abertura dos sentidos subjetivos interiores, contudo, nao poderia ser sufi- ciente para o desenvolvimento completo e harmonioso da consciéncia total. Sem 0 sentimento da existéncia de um sentido coculto por tris e subjacente ao real, fica-se adstrito ao papel de receptor passivo. Quan- tos grandes artistas, poetas maravilhosos, sofreram por nao poder concluir em seu pensamento uma visio harmoniosa e cons trutiva daquilo que sua sensibilidade Ihes fazia pressentir? Entregues & mercé de emogées contraditérias, nao conseguiam estabelecer os fundamentos de uma concep- -TRIMESTRE 2007 # O ROSACRUZ 19 REFLEXAO ¢o global do mundo. Colocada sobre areias ‘movedicas, sua pedra fundamental, incapaz de suportar uma superestrutura, afunda inexoravelmente em ondas de sensagSes efémeras. 0 fil6sofo, ao contrario do poeta, tem de ir em busca de um sentido. Podemos considerar isso pretensioso, podemos, desde logo, nos declarar derro- tados na tentativa que consiste em compre- ender 0 que é o mundo que nos rodeia; isto no impede que a realizaco espiritual s6 possa ser conseguida ao prego da anuéncia de todo nosso ser a uma linha diretriz. Nao hd nisso nenhuma contradi¢ao com a neces- séria abertura ao real, que acabamos de citar, mas 0 ancoramento a uma Tradigao ainda é 0 melhor meio de nao nos desencaminharmos de modo irremediavel pelos atalhos. Pensar que o mundo é governado mais ou ‘menos secretamente por uma ordem que 0 sustenta e Ihe dé sentido é o corolirio indis- pensivel 3 faculdade iluminativa, se nao ‘queremos que a via espiritual seja tao- somente um sentimentalismo dobrado sobre si mesmo e provocando irremediavelmente 0 ‘eterno recomeco dos comportamentos habituais e dos erros passados. ‘Trata-se, ortanto, de passar da contemplacao 4 aco, sem limitar esta tiltima as obras humanas visiveis a todos, mas estendendo-a, de modo ‘mais abrangente, & projeco e objetivacao dos desejos mais nobres. E nesse ponto que o acoite vai ferir alguns, pois se o homem de boa vontade admite as virtudes da introspeccao e da abertura mental as sensag6es sutis 0 assal- tam, sem que, na maior parte do tempo, ele thes preste atencao, menos mal hé em admitir a priori a existéncia de uma ordem metafisica inerente 4 Criagao. Apresso-me em declarar que, sim, trata-se de um ato de fé. Se nao formos capazes de cruzar esse Rubicdo da esperanca, de “passarmos para a ‘outra margem’”, como disse o Buda, entdo a via espiritual, sendo impossivel, ficard no minimo fortemente bloqueada. Aqui, a filosofia deve se calar e 0 sAbio, na falta de poder convencer, deve a0 menos mostrar 0 caminho, provar, por seu exemplo, que & efetivamente possivel superar as limitagoes hhumanas para se atingir 0 além do visivel. “Negar: nada melhor para emancipar a mente. Mas a negacdo é fecunda somente durante 0 tempo em que nos empenkamos em conquisté-la €.em nos apropriarmos dela; uma vez adquirida, ela nos aprisiona: uma cadeia como a outra. Escraviddo por escravidao, mais vale se dirigir para aquela do ser, ainda que isto ndo se dé sem uma certa dilacerasdo: trata-se, nada mais, nada menos, de subtrair-se ao contdgio da nulidade, ao consolo de um desvario...”. Quio bem este pensamento de Ciordo se aplica ao que estamos falando! Por excesso de cerebralidade, esta mesma que tantos condenam, mas que faz parte, quer © queira- mos ou nao, de nossa natureza, o homem ‘ocidental efetua, na maior do parte do tem- po, um lento trabalho de progressiva des- truicfo, que o conduz cada vez mais longe na trilha do materialismo. Ao nos ligarmos a uma via espiritual, escolhemos deliberada- mente dizer “sim” aquilo que pressentimos ser a verdadeira realidade das coisas, e pode- mos ter a certeza de que, finalmente, esta- mos certos. Que me perdoem a afirmacao negativa, mas penso sinceramente que 0 importante nao & aquilo em que se acredita, mas simplesmente o acreditar, de todo cora- do. Entretanto, ao se engajar confiante na via esotérica, o postulante aos Mistérios geralmente comete um erro: considerar que la represente fundamentalmente a Verdade primordial, aquela que se oculta por tras de todas as vias espirituais. Na verdade, é pre- iso admitir, ainda que o entusiasmo tenha de se ver alterado por algum tempo, que ela € tdo-somente uma luz particular dessa Verdade. Tomar ao pé da letra as conside- rages ontologicas ou outras do esoterismo nada mais é que um disparate intelectual, 20 OROSACRUZ « 1°TRIMESTRE 2007 para nao dizer um gatunismo. Multiplas vias, tradicionais existem pelo mundo; cada qual possui seu préprio sistema simbélico, suas prdprias chaves de interpretacdo do real, muitas vezes contraditorias. Nao se pode, . com toda objetividade, decretar que uma delas tenha razo, com exclusdo de todas as demais. Tal concepcdo s6 poderia caber na ‘gama jé to atravancada dos fanatismos de toda espécie. Aceitar um ensinamento, qualquer que seja ele, como sendo alfa e Smega de toda a realidade significa alienar-se voluntaria- mente, fechar os olhos ¢ os ouvidos a toda experiéncia nova, e insultar a Inteligéncia universal que nos muniu de uma consciéncia apta a nos fazer progredir na via do Desper- tar. Nao caiamos, pois, no erro que consiste em negar, pura e simplesmente, a utilidade de todo ensinamento espiritual. Antes, escolhamos aquele que melhor nos conve- nha e ajamos como um paciente jardineiro; nada de importante pode advir da precipi ta¢do. A fé (necessariamente nos voltamos para ela) é 0 cimento da nossa evolugao espiritual. Observemos nossas vitérias, mas também nossos fracassos; nenhum esforgo deve ser poupado para abrir nossos sentidos interiores, a sensibilidade de nossa alma, as, mensagens tdo numerosas que nascem do confronto com o real. Se quiséssemos dar mostra de cinismo, poderiamos considlerar que todo sistema baseado na fé, tanto esotérico como exoté- rico, age mais como um sedativo para a mente do que como uma verdadeira chave para abrir os mistérios do universo. Admi- tiremos simplesmente que isso nao 6 forcosamente um defeito, pois 0 essencial, no caminho do Conhecimento, é acalmar a mente todo-poderosa em nés, ocidentais, superinformados e permanentemente mergulhados numa banheira de abstracdes estéreis. A mente é um ditador ou, antes, ‘uma crianca turbulenta e temperamental; ela exige ter, todos os dias, sua parte de sutilezas e sofismas, de construgies Iégicas empilhando-se umas sobre as outras, 4 maneira de uma torre de Babel, sempre inacabada e perpetuamente recomecada. Mais vale, para nossa tranqillidade, ceder a seus caprichos. Entreguemo-Ihe a metafi- sica, para acalmar seus clamores. Dele’ ‘temo-nos com as maravilhosas engre- nagens misticas, com planos incrivelmente complexos saidos de um espirito obscuro, secreto, contemplemos antigas gravuras. Robert Fludd, Heinrich Kunrath, Jacob Boehme e tantos outros nos fornecem amplo material para meditacao. Enlevemo- nos com as construgdes simbélicas desses priscos alquimistas, pois, mesmo que se pudesse provar que eles estavam errados, as mAscaras que eles, com tanto sacrificio, procuraram confeccionar pelo menos cum- prem sua funcio principal: dissimular & nossa mente fragil a insondével imensiddo do Mistério da Criagio. Nao assustemos em vio a nossa inteligéncia, passemos nela 0 ungtiento das falsas certezas ¢ deixemos que nossa intuicdo voe para alturas superiores! esoterismo pode ser considerado, a bem da verdade, como a ciéncia dos ritmos. Em trés, sete ou doze tempos, ela nos pro- Oe participar em sua coreografia. Pensando bem, ela nao explica nada; faz muito mais: ela nos convida a entrar em sua danca para que participemos, & sua moda, no grande balé césmico. A danca ndo ensina a pensar, mas a viver. Por absorver de nés toda dist io entre o “eu” e “o mundo”, ela realiza, numa escala humana, o grande projeto da Unidade, também denominado androginia primordial. Se aceitamos entrar na roda e abandonar nossa pretensio a individuali- dade, & “originalidade”, penetramos, entai na Senda do Iniciado. *Exaroido do livro “Espiritualidade - Oriente ~ cidonto” publicade pela AMORC-GLP. 1° TRIMESTRE 2007 = OROSACRUZ 21.

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