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José Luiz Fiorin (org.) Introdu¢do 4 Linguistica |. Objetos tedrices editoracontexto A mudanga linguistica Paulo Chagas Introdugdo © fato de as linguas passarem por mudangas no tempo é algo que pode ser perce- bide de mais de uma forma. Uma delas é 0 contato com pessoas de outras faixas etarias. Quanto maior a diferenga de idade, maior a probabilidade de encontrarmos diferengas na forma de fillar de duas pessoas. Suponhamos que um falante de cerca de vinte anos converse com outro falante de cerca de setenta anos. Ambos poderao pereeber diferencas, por pequenas que s -onstrugdes diferentes, prontincia diferente de certas palavras ou de certos sons. Além dessa maneita, acessivel a todo falante de uma comunidade linguistica, outra modo de percebermos a realidade da mudanca linguistica é entrarmos em contato‘com textos escritos ou falados de outras épocas. Textos falados seriam gravagdes, filmes ou qualquer outro tipo de registro que permita que escutemos os sons utilizados. Textos des- se tipo nos permitiriam recuar apenas cerca de um século no tempo. Se pretendermos ter uma nogio das mudangas de alguma lingua num periodo mais extenso ou mais distante do atual, precisaremos tecorrer a textos escritos. Ao fazer isso, devemos estar preparadas para interpretar © que esta registrado nesses textos ¢ em que medida eles so um retrato fiel da Iingua falada, Embora seja algo conhecido que as linguas mudam, tanto em sua forma falada quanto em sua forma eserita, a lingua escrita ¢ sempre mais conservadora do que a lingua falada. Quando a lingua escrita j4 se encontra em um estado normali- zado, sujeita a tegras socialmente estabelecidas ¢ estaveis, ela pode dar a impressio de que certas mudaneas ocorrem em bloco ¢ em saltos, © que no é verdade para tados os teéricos. O problema é que o contato com textos escritos de certa forma filtra bastante a nossa percepedio da ocorréncia de mudancas linguistieas, Senos limitarmos a forma como. a escrita registra a prontincia dos sons ¢ palavras do portugués. por exemplo, podemos constatar facilmente que ja ha.algum tempo varios tipos de palavras tiveram sua proniincia alterada, mas continuam a ser grafadas da mesma forma, Por exemplo, palavras como ouro, beijo ou cadeira nao sio mais pronunciadas pela maioria dos falantes com ditongo na silaba t6nica, mas continuam a ser grafadas dessa forma. Esse afastamento da lingua escrita ¢ da lingua falada ¢ algo normal ¢ que pode ser verificado em qualquer lingua que seja representada graficamente. 142 Infrodugie & Linguistica Das linguas mais familiares para nés brasileiros. o inglés é um caso extremo de discrepancia entre grafia e pronimcia, ja que as consoantes iniciais em know e psycho- logy si mudas, bem como a consoante final em palavras bor, pot exemplo, Algumas sequéncias grifficas como -ough podem ter varias promincias inteiramente diferentes, como ocorte nas palavras though [SoU] “embora”, through [@ru:] “através”, “duro” cough [kof] “tosse”. So conhecidos também exemplos come o do francés, em que palavras como haie (“sebe, cerca-viva”) ¢ est (*“é, esta”), com grafias tio dispares, sio homéfones com apronimeia [E], ou seja, so usadas trés ou quatro letras para representar um Gnico som. E importante assinalar que esses nfo sda casos isolados. ‘Valtando para o portugués, podemos verificar que sea lingua escrita tivesse como objetivo principal representar de forma diferente o que soa diferente ¢ de forma igual o que soa igual, niio teriamos palavras homéfonas, mas com grafia diferente, como © par cagar e cassar. Mas nio ¢ isso o que acorre. O som [s] é um caso extremo no partugués, podendo receber nove transcrigdes diferentes. Por incriyel que pareca, ¢ isso 0 que temos em: som, nosso, centro, prego, exceta, simaxe, voz, crescer ¢ cresea. Além desse exemplo em que o mesmo som é representado de nove maneiras dife- rentes, podemos ter também situagOes um tanto estranhas. Um outro exemplo do portugu pode nos mostrar como devemos interpretar com cautelaas informagdes que nos so dadas por textos eseritos. Se olharmos a grafia das formas preso ¢ preza do portugués, percebe- remos que a grafia delas nos sugere que o terceiro som da palavra deve ser pronunciado da mesma maneira nas duas palavras, 20 passo que o quarto som deve ser pronunciado diferentemente. Uma transcric&o fonética das duas palavras nos mostraria o quanto essa hipotese estaria equivocada, j4 quea primeira palavra seria transcrita [preze] ¢ a segun- da seria trat rita [prez]. Um falante de outra lingua que visse a grafia dessas formas paderia, portanto, imaginar erroneamente a existéneia de diferengas onde elas ndo existem e semelhangas igualmente onde elas ndo existem. A ligdo que devemos tirar dessas consideragdes € que € necessirio antes de tudo saber interpretar 0 que o texto escrito nos diz para no ficarmos com um quadro falso de como a lingua é de como ela 4 foi e, portanto, também do que mudou. No item seguinte, apés termos visto dois textos de épocas diferentes da nossa, vere= mos diversos exemplos demudangas grificas que deverio ser analisadas com desconfianga, antes de virmos a atribuir-Ihes 0 cariter de mudanga linguistica propriamente dita. Apesar de precisarmos usar de cautela, podemos reconhecer a presenca de al- também nos textos escritos. Qualquer falante da lingua portuguesa que tome contato com textos de outras épocas perceberd que nossa lingua softeu modificagdes no tempo, Mesmo que nos limitemos a textos em prosa veremos que a lingua de um texto do século xin, época dos primeiros registros escritos em portugués, ndo era igual 4 de um texto do século xvi, e que nenhum dos dois é igual 4 forma como escrevemos hoje em dia. Evidentemente, a distincia de cerca de alguns séculos entre os textos facilitaria a localizagdo de elementos que mudaram. E isso © que faremos inicialmente neste capitulo. Examinaremos inicialmente um texto de cada um desses dois séculos (0xm €0 xv), afim de nos familiarizarmos com certas mudancas que ocorreram no portugués nesse periodo. Ha, entio, um intervalo de cerca de 400 anos entre 0s dois textos entre o do século xvn c odo periodo atual. Evidentemente, o conhecimento do portugues atual fica pressuposto . i Armudange linguists 143 este capitulo, Os textos so extraidos de Tarallo (1991), que compreende textos desde ‘9 século xm até 0 século xx. Fazendo, entdo, um recuo de cerea de oitocentos anos, vejamos inicialmente © texto do século xu, a Lei dos Almuxarifes de D. Afonso 1, datada de 1211, contida nos Portugaliae Monumenta Historica, Leges et Consuetudines, p. 164-165. 1 Come ehney manda aos seus almacsarifes que nor leuem neniuana cousa dagpuéles a que accsice pri 2 goanomar 3. Stabelugemos que nenhuum nom Ieue saqueles que acaecer perigon no mar, assy das da terra game dos 4 das outms, se acaeger por britamento de nave ou de mavio, alguma couse que andisse na nau 04 no 5 aio que aportase na ribeyra ou en alguum porto, mais os ssenhones dessas cousas ajam-nas todas 6 em pax, assy que os nossos almuarifes nom keuem W’eles cousa, nem aquelles que de #08 as toras 7 teverem, nem neahuum outro, Ca ssem rrazom pareye que aque] que he atormentaado darthi homer © outro tormenta, Se per wentnyra alyunm contra esta nossa consteticam quizer bir, reteendo-lio seu 9 quer, leuands dos dauamdietos alguma cousa, fecta primeiramente entrega das cousas que Ih fiharor 10 ou pentcrom, perga quanto ouves, Avangando cerea de quatrocentos anos no tempo. vejamos em seguida 0 texta do séeulo xvi, que € um pardgrafo do Capitulo xxut da Jomada dos Vassalas da Coroa de Portugal, escrita pelo padre Bartolomeu Gomes. Do que succedeo na: Batya. sendo Capitdo Mor. Francisco Nunez Marino de Ec ‘Ainda que sabia o Govemiador Matthias de Abuqueraue, quar bem prouido estaus 0 ugar de Capito Mar a Bahya, na pessoa do Bispo, pello acordo, valor & vigilancia, com que o bam pastor se desve- lau a fazer guerra ao inimigo, pod Yods a rezo o aleviasse de tanto trabalho, pera com mayor cuida- do 0 terno gonemo {sic} pera Sua Tere, porque doutrinas herticas, aio tivessem entrada nell. até deste particular, se milo esqucceo sua Magestade, que a no encomennkasse avs senhores Gouemadores, BBispo, & Gouemador do Bruil, vigiassem com grande cuidado, nao espalhasscm os inimigos alguns liuros de seus erros. Por este respeito, se resolueo o Capitam Mor da Bahya, a0 Capitam, Francisco ‘Nunez Marinho de Esa, do babito de Christo, pessoa de muyta confianga, & experiencia da guema, na. 10 India, & fora della: & que fora Capitan Mir, na Parahiba, em cujos rcbaldes aposeniado vivia. Levou LI soeorro de municoens, quanto se The podi dar, em tempo tar nevessitado delias. Levou poderes, 10 12 sd na sus Capitanis, mas ma de Seregipe, Mheos, & Porta Seguro, pera se valer dellas em toda a necessi- 1B dade quctinesse de socorro, & mantimentos, Qualquer um desses textos apresenta caracteristicas que se afastam das do texto deste capitulo, por exemplo, escrito no inicio do século xxt, Se pensarmos um pauco mais detidamente sobrea mudanea linguistica, poderemos formular pelo menos trés tipos de perguntas, que nos dardo uma perspectiva geral sobre ela, Poderiamos perguntar: (1) 0 que muda nas Hinguas?: (2) por que elas mudam?: (3) como elas mudam? Essas perguntas so a esséncia dos trés itens seguintes. 1. O que muda nas linguas Observando mais atentamente os textos dos séculos il exvir que vimos, podemos detectar uma série de diferengas entre esses textos ¢ o portugues atual. Tendo em mente a ressalva feita na introdugio quanto fidedignidade do texto escrito ¢ seu uso como representagio da lingua falada, devemos ser cautelosos também a0 atribuir a toda e qualquer distingao ortognifica o staus de mudanca linguistica. Se as 144. Introdugdo 6 Linguistica Ictras da escrita atual ndio correspondem uma a uma a sons diferentes, é aconselhivel submeter os dados eseritos a um erivo bem rigoroso para nao ficarmos com ideias falsas a respeito do que mudou. Tendo feito isso, deveremos descartar. por no serem exemplos de mudangas linguisticas propriamente ditas, diversas distingdes que provavelmente sio apenas mudangas ortogréficas, Mesmo que examinemos 0 trecho mais recente, 0 da Jornada dos Vassalos, que ¢ do século xvu,, a0 encontrarmos palavras como mayor ¢ Magestade, podemos pensar numa smudanga de pronineia, j4 que a escrita ¢ utilizada para representar os sons da lingua. Ow seja, podemos raciocinar da seguinte maneira: sea escrita representa os sons da lingua e se alterou, isso quer dizer que os sons que ela representa também se alteraram. Na verdade, podemis estar completamente equivocados, 0 que pode ter acontecido em razao de mudangas grificas ocorridas por dois motivas distintos. © primeiro relaciona-se a textos de époci como século xm, que tém como caracteristica o fato de nde apresentarem uma ortografia jos a regras de ortografia estabelecidas ¢ aceitas por todos. ‘Assim, autores diferentes podiam grafar a mesma palavra de forma diferente. Na verdade, isso acontecia inclusive com o mesmo autor, que podia grafar a palavra san a seu bel-prazer como tum, hum, 7, etc. Mesmo em periodos em que a ortografia esta fixada por regras definidas, uma mudanca de ortografia pode tefletir uma mudanea de proniincia ow nio, Palavras como scfencie tinham até 0 inicio do século xx uma grafia etimolégica, ou seja, uma grafia que tinha 0 objetivo de refletir sua grafia na lingwa de origem, 0 latim. Se se passa de uma grafia com preocupagdes fortemente etimolégicas para outra que tenha 0 objetivo primordial de representar os sons das palavras em sua prontincia atual, ou pelo menos em uma delas, certos elementos griificos que ndo correspendem a uma diferenga atual de prontincia deixam de ser utilizados. Esses exemplos sio em maior nimero no texto do século xm (no quala grafia oscilava de forma bem acentuada), mas também ocorrem no do século xvi, Algumas dessas falsas diferengas encontradas na Lei dos A lmuxarifes so: jana primeira linha do texto, as duas ocor- réncins de antes de e, em stabeleremos em acaecer; em vez do cutilizado atualmente; 0 uso de simples ou dobrado de forma oposta 4 do portugues atual, come em aportase (linha 3) ¢ ssenhores (linha4); ¢ ofato dea escrita no distinguir ude v, como vemos na palavra venta (linha 7), em que a primeira ocorréncia do 1 grifico corresponde ao nosso v-atual. Feitas algumas ressalvas como essas, podemos passar a listaralgumas das mudangas de fato do texto do século xu com relagAo ao portugués atu + tentando identificar diferengas de promincia entre 0 portugués do século xi ¢ 0 portugués atual, stos chamama atencdo algumas vogais dobradas. Algumas delas ‘ocorrem em silaba tonica ¢ talvez reflitam a duragao maior das vogais tonicas (0 que ocorre ainda hoje), como & 0 caso de atormentaado (linha 7). Outras, entretanto, come perigoo, na linha 1, no estio em silaba tonica, ¢ possivelmente reflctem uma proniincia existente na época que ainda mantinha as duas silabas pos-tnicas etimolégicas derivadas do latim periculum, + formas desusadas de palavras ainda em uso, como assy e come (linha 2), bem como aguel e cousa (linha 5); + encontramos no texto a preposi¢ao per (linha 7). Essa variante, embora em de- suso, nos mastra o porqué de termos ainda hoje em dia pedo como contrago de ‘A mudanga linguistico 145 por+ 0, ou seja, havia essa outra variante em estigios anteriores do portugués, ‘ca forma que prevaleceu precedendo o artigo foi esta, atualmente desusada quando ndo seguida do artigo definido (a ndo ser em formas como pelai, que encontramos de vez em quando): « areaismos lexicais, ou séja, certas palavras que cairam em desuso, como acaeger (“acontecer”) ¢ britamento (“naufragio”), ma linka 2; ¢ filha ("tornar”) na linha 9; = em termos morfoldgicos, temos a manutengao (que nao fica evidente somente a partir desse trecho) da distingio entre as formas de terceira pessoa do plural do perfeito e do mais-que-perfeito, As formas filharom¢ perderom (inka 10)sd0 do perfeito. Mais tarde elas se tornaram homénimas com #s do mais-que-perfeito (filharan e perderam), «= ginda dentro da morfologia, encontramnos a forma perca (linha 10) come su tivo do verbo perde «em termos sintatioos, temos as palavras enh (linha 1) © alguun (linha 7) come pronomes indefinidos usados substantivamente, de acordo coma term ino- Jogia gramatical corrente, ou seja, tendo usos correspondentes aos dos nossos ninguém e alguém atuais; « ha também palavras que deixaram de ser usadas em certas construpdes, como © verbo haver, com 0 sentido de “ter”, que aparece na forma ajam (linha 4) ¢ na forma ouver (linha 10). E claro que a auséncia do h inicial ¢ apenas um proble- rma de grafia distinta da atual, nfo tendo havide nenhuma mudanga ¢m relagiio a isso. Hoje em dia grafamos todas as formas desse verbo com nunca 0 pronunciamos; +o pronome indefinido omem: (linha 7), som sentido de quantificador existencial (alguém) ou genérico (as pessoas: em geral). Essa constructio, perdida no portugues stuate em outraslinguas roménicas,¢frequente nas linguas germanicas eno francés, Em francés, por exemplo, 0 pronome on (originariamente 0 caso sujeito correspon jun jal, mas dente A forma regida ome, onme, todas elas formas do substantive com significado original de“homem’”) €1 utilizado em frases. como on parle francais ("se fala francés”, “a gente fala francés”), Da mesma forma, em vérias linguas germénicas, como © alemio, encontramos © pronome man com esses mesitios sentidos, como em mir spricht Deuasch, (“ala-se lem" —literalmente, “homem fala alemio"); «= aq eoncordéineia negativa em que nenhaaum nom leue (tina 1). equivalente a qve ningiém leve no portugues atyal. Embora scja comum a denominacao dupla mregacdo para nos referirmos a esse tipo de constmlo, atualmente esse terme é eservade para construgGes em que uma negativa cancela a ontra, Cuando ocar- rem dois termos que isoladamente sfio negatives e 0 sentido global continua a set negativo, o termo usado atualmente € concordkineia negative: Vejamos agora algumas diferengas encontradas no texto do séeulo xvu com relagio ao portugués atual, Dada a maior proximidade no tempe, ¢ de se esperar que esses dois momentos da lingua sejam mais semelhantes. Varias vezes ocorrem sujeitos: separados de us verbos por virgula (por exemplo, na Linha 1 eno final da linha 5), mas ess diferenga sunscreve a pontuagio, no caracterizando de modo algum wma mudanga lingut que tenha ocorrido. possivel, no entanto, lovalizae divergéncias 146 Introdusao a Linguistica * algumas palavras apresentam variantes em desuso hoje em dia, como rezdo (li- nha 4), em lugar de razdo, e pera (linha 4), em lugar de para. Isso pode tanto indicar uma alteracao de promincia quanto maneiras diferentes de grafar a vogal ‘itona; + apalavra rebaldes, hoje desusada, Das numerosas palavras de origem arabe que entraram no portugués durante o dominio mouro na Peninsula Ibérica, muitas se fixaram na forma precedida do artigo definido al, por exemplo alfiaiate, dlgebra. Outras se fixaram sem o artigo. Provavelmente houve variagio com algumas de- las. Nas palavras cuja forma em arabe era iniciada por uma consoante coronal, ou seja, uma consoante produzida com a ponta da lingua, havia assimilagao do | do artigo definido a essa consoante coronal, surgindo uma eonsoante gemina- da ou dobrada, pronunciada mais longa do que a consoante simples. Essa ¢ a ofigem de palavras como arrez ¢ aceite. A consoante geminada s6 se manteve nas palavras com r, A palavra rebaldes, que ocorre no texto citado, ¢ a mesma que se manteve na forma arrabafde, tendo sido utilizada, portanto, quer em sua forma sem artigo, quer na forma precedida do artigo definido, que se assimilou aor seguinte; * alocucio conjuntiva ainda que (linha 1)é empregada com o indicative (ainda que sabia), em vez de com 0 subjuntivo, como hoje em dia (ainda que soubesse): tinta do clitico ou pronome atone com relagdo 4 negagaio em deste particular, se ndo esqueceo sua Magestade (linha 6), jé que atualmente 0 clitico se aparece entre a negagao ¢ o verbo, ¢ nao antes da negagiio; + omesmo ocorre com 0 pronome de terceira pessoa em que 0 ndo encomendas- se... (linha 7); + haainda que assinalar a grande ocorréncia de ora¢Ses com a sujcito posposte 20 verbo, mesmo com verbos transitivos, o que s¢ distingue do portugués brasileiro atual. Os exemplos do texto so: “Ainda que sabia o Gouernador Matthias de Albuquerque, quam bem prouido estaua...” (linhas 1 € 2); “pedia toda a reziio 0 aleuiasse de tanto trabalho” (linha 4); “E até deste particular, se ndio esqueceo sua Magestade” (linha 6); “Por este respeito, se resolueo o Capitam Mér da Bahya” (linha 9); * no trecho porque doutrinas hereticas, nao tiuessem entrada nelta (linhas 5 ¢ 6) vemos a conjungio: porque com subjuntivo ¢ sentido correspondente ao para que atual; * verbo esquecer aparece construido com verbo no subjuntivo-na forma negativa na subordinada, em vez de com infinitive, em se ndo esqueceo sua Magestade, que 0 ndo encomendasse aos senhores Gowernadores, Bispo, & Gouwernador do Brazil, vigiassem com grande cuidado Examinar esses textos e conffontar a linguagem utilizada neles com 0 portugués atual pode nos dar a falsa impressao de que o portugués ainda estava em formagio como lingua nesses momentos, mas hoje em dia ja temos uma lingua constituida, que nio esta- ia, portanto, sujcita a mudangas come em periodos anteriores, Nao poderiamos estar mais longe da verdade, pois como jé foi dito, além dos textos eseritos de outras épocas, podemos perceber a mudanga conversando com pessoas de outras faixas etérias. A-nudange lingua 147 Para evitar que prevalepa essa impressio, ser conveniente listarmos algumas mu dangas em operagao no portugués atual, as quais poderao ser multiplicadas pelos leitores. Ha algum tempo vém ocorrendo alteragées no sistema dos pronomes pessoais, com formas como i, nds ¢ vés enfrentando a concorréncia de formas como vocé, a gente e vocés, respectivamente. Dessas trés formas, vds é a que ja foi praticamente eliminada da lingua falada, tanto no Brasil como em Portugal. J4 0 pronome 1 foi perdido em muitas regides do Brasil no caso reto, mas preserva ainda bem vives a forma te ¢ o possessive tev. O pronome nds enfrenta a forte concorréncia da expressiio a gente, embora ser ameagado em certos contextos. onserve sem ‘Osurgimento de participios passados formados com acréscimo de -o a raiz verbal, como em jd tinka chego.em ver de ja tinha chegado. O caso especifico de chegar prova- velmente € influenciado pela existéncia do participio irregular pego, de pegar, fonctica- mente muito semelhante a ele Por esses exemplos podemos perceber que as mudaneas nio se restringem a um nivel da gramdtica, podendo ocorrer em qualquer um deles. Vimos mudangas fonolagicas, sintéticas, morfolégicas, semanticas, lexicais, ete. E importante também pereebermos que uma mudanga em um desses componentes da gramatica pode levara alteragdes-em outro, como o surgimento de formas como vocé, que acabou por afetar o sistema de pronomes possessivos, produzindo ambiguidade no possessivo-seu, interpretivel como de segunda ou de terceira pessoa. 2. Por que as linguas mudam A segunda pergunta que fizemos na introdugao ¢ a que se relaciona com a razio por que ocorrem mudangas linguisticas. Como vimos no comego do capitulo, a lingua scrita nao reflete todas as mudangas que ocorrem na lingua falada. A lingua escrita ven normalmente a reboque das mudangas ocorridas na lingwa falada, havendo frequentemente ‘uma defasagem entre 0 aparecimento de mudangas na lingua falada ¢ o momento em que elas passam a ser aceitas ou pelo menos toleradas na lingua escrita. O que discutiremos neste item diz respeito 4 lingua falada. ‘A perspectiva aqui adotada é a da Sociolinguistica Variacionista, iniciada por La- boy. Para compreendermos a importancia de Labov no estudo da mudanga linguistica, precigamos antes olhar brevemente o tipo de linguistica iniciado por outros dois grandes linguistas no século xx: 0 estruturalismo saussuriano ¢ @ gerativismo chomskyano. ‘Ao fazer qualquer observagdo a respeito de uma lingua, podemos analisar aspectos que sho momenténeos (relacionados a um tinico momento, presente ou no) ou aspectos que apresentam certa duragdo no tempo (relacionados a pelo menos dois momentos e ao intervalo entre cles). No inicio do século xx, Saussure apontou, no Curso de linguistica geral, a necessidade de distinguir fatos sincrénicos ¢ diacr6- nicos, algo inusitado ¢ importantissime para a época. Como a Linguistica anterior a ele tinha cunho quase unicamente histérico, utilizando o chamado método histérico- comparativo, a posi¢do de Saussure representou uma grande ruptura ao destacar de modo incisivo nie sé a possibilidade mas a necessidade de estudar os fatos linguisticos sem qualquer correlagao com sua histéria, 148 Introducto & Linguistica Na verdade, a intengaio de Saussure foi mais ampla: isolar 0 estudo da lingua de tudo que ¢ exterior a ela, 0 que inclui os pontos de vista da histéria, da antropologia, da ‘etnografia, da soviologia ¢ da psicologia, segundo seu modo de ver a linguistica. Em outras palavras, Saussure quis estabelecer a linguistica intema como uma disciplina cientifica, relegando para segundo plano a linguistics externa, que se ocupa da relacdo existente snire a lingua ¢ a histéria, as instituigdes ¢ a estrutura da sociedade. A linguistica externa € vista por ele como algo secundario. O essencial seria, ent&o, estudar os elementos da lingua e como eles se telacionam entre si Paralclamente a isso, Saussure estabeleceu uma distingdo bastante rigida entre os fatos sincrGnicos ¢ as fatos diacronicos. Eo que verificamos na seguinte citagao do Curso de linguistica geral (p. % da edig&o brasileira) incrénico tudo quanto se relacione com oaspecto estitico da nossa ciéneia, diacronico tudo 0 que diz respeito as evolugdes. Do mesmo modo, sincronia e diacronia designario respectivamente um estado de lingua e uma fase de evolugdo”. Como consequéncia dessa forma de ver a relagdo entre o sincrénico ¢ o diacréni- Co, verificamos no priprio Saussure que a distingdio entre as dois pontos de vista era tida como absoluta, nao admitindo compromissos, como vemos neste outro trecho; “A-oposigaio entre 0 diacrinico € 0 sinerdnico se manifesta em todos os pontos. Por exemplo— e para comegar pelo fato mais evidente — nio tem importincia igual. Nesse ponto, esti claro que 0 aspecto sincronico prevalece sobre 0 outro, pois para a massa falante, ele constitui a verdadeira ¢ tinica realidade” (idem: 105-106). Portanto, um ponto fundamental 2 respeito das posigSes teéricas de Saussure quanto A lingua ¢ seus aspectos diacrénico esincrdnico ¢ 0 fato de que ele considera que essas $0 duas perspectivas totalmente distintas. O aspecto sincrénico estaria relacionado ao que ¢ momentineo ¢ estitico ¢ 0 diacrénico, ao que tem duracdo no tempo e € dinmico. O principal equivoca de Saussure com relagdo a essa dicotomia, como assinalado por Jakobson (1969), foi justamente equiparar essas duas dicotomias: sincrdnico e dia crdnice corresponderiam, para Saussure, respectivamente, a estatica e dindmico. Contudo, ‘como apontou Jakobson, as quatro combinagées entre essas dicotemias so possiveis. Ou scja, podemos ter as seguintes combinagdes, exemplifieando com o portugués + fatos sincrénicos cestaticos: fatos que se apresentam em equilibrio, sem perspec- tiva de alteragdo num determinado momento, seja ele presente ound. Exemplos: atualmente haa existéncia de dois géneros, hd concordancia de género; no periodo arcaico havia a distingao entre ch [tf] ex [J]: + fatos sincrénicos edinimicos: fatos que num determinado momento apresentam indicagdo de estarem em proceso de mudanga. Por exemplo: atualmente, ha mudanga no uso do pronome pessoal de primeira pessoa do plural, com @ gente gradativamente substituindo nés; * fatos diacrénicos ¢ estaticos: sempre houve trés conjugag6es yerbais no portu- gués;¢ * fatos diacrOnicos e dinamicos: a perda da mesdclise como fenomeno vernaculo no portugués do Brasil. Verndculo deve ser entendido aqui no sentide de Labov, um tipo de construgao que os falantes usam enquanto estiio conversando A von- tade ¢ sem fazer esforgo consciente para falar “corretamente”. Amoudonca linguistica 149 O quadro que se tem da lingua em um momento dado, de acorde com a perspectiva saussuriana do Curso de Linguistica geral, 0 de win conjunto fechado ¢ homogénco de rogularidades, de futos estiticos, prevaleceu durante muito tempo. Assim, seria possivel descrever uma lingua sem que fosse necessirio considerar elementos em variacZo ou em mudanganem 0 papel quea estrutura da sociedade teria nesses dois fenémenos. Essa con- cepgionos levaa vera lingua come algo auténomo, que tem seus fendmenos sinerénicos como primordiais. Provavelmente como consequéncia do fato de ter tido a intencao de romper com a tradicao anterior, eminentemente historica, Saussure acabou por relegar a jacronia a uma posicao de pouca importincia. Outra das grandes correnies tedricas da Linguistica, o gerativismo iniciado por ‘Chomsky em meados do século xx, surgiu também como reagiio 20 tipo de linguistica que se praticava na époea. Dessa vez, o alvo da reago foram os estruturalistas americanos, que se filiavam a uma concepgao de lingua extremamente mecanieista, em que aprender uma lingua era visto como um processo de imitagdo, generalizagiio estimulada por refor¢os positivos, etc. bem maneira do behaviorismo ou do comportamentalismo de Skinner, que rejeitava a preocupacdo com o que se passa na mente das pessoas em razio de isso ser algo inacessivel a um observador externo. Em 1959 foi publicada a famosa resenha que Chomsky fez do livro Verbal Beha- vior, de Skinner, na qual sio apresentados argumentos fortes a favor de uma concep¢io segundo a qual os falantes de uma lingua sfo criativos no uso que fazem dela, nio podendo se restringir a uma simples imitacdo do que ja ouviram. A concepgde que Chomsky tem desenvolvide desde entdo se centraliza justamente no conhecimento linguistico armazenado namente do falante, mudando, dessa forma, por completo 0 foco das pesquisas linguisticas, passando da sua manifestagio externa para algo interno ao falante. Por estar interessado no conhecimento individual a respeito da lingua, na relacio entre lingua ¢ mente, Chomsky pressupée um falante ideal numa comunidade ideal, também com 0 objetive de abstrair consideragées sociais. Fazendo uma oposi¢do entre gramatica (tida por ele como conhecimento que cada falante tem do idioma que utiliza) e lingua (tida come algo social), Chomsky faz claramente uma op¢io metedolégica em favor da primeira, ‘Vemnos assim que nem a visio estruturalista, descendente de Saussure, nem av gerativista, iniciada por Chomsky, pretendem relacionar a lingua, suas variagdes ealtera- ‘gSes com a heterogeneidade da sociedade. Diferentemente dessas duas perspectivas, a abordagem sociolinguistica variacionista, iniciada por Laboy, ndo procura eliminar da andlise o que é varidvel ¢ mutante. Pelo contririo, ela faz da variagao ¢ da mudanga lin- guisticas os objetos centrais de estudo, relacionando-as justamente a alguns dos aspectos que Saussure e Chomsky quiseram manter fora da andilise da lingua: a cstrutura da socie- dade e sua historia. Para Laboy, toda lingua apresenta variagao, que ¢ sempre potencialmente um desencadeador de mudanga, Como a mudanca é gradual, é necessario passar primeiro por um periods de transigdo em que ha variago, para em seguida ocorrer a mudanga. Como a mudanga e a variacdo estio estreitamente relacionadas, é muito dificil estudar uma sem estudar a outra. De ceria forma, Labo faz © caminho inverso de Saussure, j que este fez um es- forgo para exeluir o que ¢ externa. lingua em si dos estudas linguisticas, eaquele procu- 150 Infrodugéo 6 Linguistica ra justamente demonstrar que © funcionamento de uma lingua no pode ser entendido no vacuo. Ela necessariamente faz parte de uma sociedade que a utiliza, a influencia ¢ ¢ influenciada por cla. Ora, Saussure (1969:13) declara ser um dos objetivos da Linguistica “estudar as forgas que esto permanentemente em jogo nas linguas”. Embora possamos detectar for- as internas 4 lingua agindo sobre ela (fatores gramaticais), é igualmente verdadeiro que ha forgas extemas & lingua que atuam nela (fatores sociais, por exemplo). Se deixamos de lado tudo que é social, nfo estritamente interno 4 lingua, niio podemos explicar, por exemplo, por que alguns falantes utilizam um r retroflexo, isto é, com a ponta da lingua voltada para tris, 0 chamado r caipira, em contextos que outros utilizam um r wibrante alveolar e outros utilizam apenas uma aspiragdo, sem que haja distingdo de significado. Abdicando de qualquer consideragdo quanto 4 estrutura da soviedade, a heterogeneidade das classes sociais e das populagdes de regides diferentes, etc., ficamos apenas com uma “variante livre”, que na verdade nao ¢ inteiramente livre, se consideramos, por exemplo, a.classe social on a regio de origem do falante. Labov considera, ent&o, que no devemos parar no que ¢ estritamente linguistico. Se queremos explicar quais forgas agem na lingua, podemos e devemos incluir 0 modo como a lingua esta inserida na sociedade. Muitos fenémenos que pareciam aleatérios re- cebem assim uma explicagao por vezes bastante ébvia. Mas, afinal, por que as linguas mudam? ‘Como apontou Coseriu (1979),-4 lingua nunea esta pronta. Ela ¢ sempre algo por refazer. A cada gera¢’o, ou mesmo em cada situagao de fala, cada falante recria a lingua. Dessa forma, ela esti sujeita a alteragées nessa recriagdo. Por outro lado, depende de uma tradigdio, j4 que cada falante diz.as coisas de determinada mancira em grande parte porque 6 daquela maneira que se costuma dizer. Ha entdo um delicado jogo de continuidade e de inovagdes, estas sempre em menor niimero. ‘Comoa lingua esti sempre sendo recriada, ela comportao surgimento de inovag atodo momento. O crucial é que nem toda inovagao vinga, nem toda inovagio ¢ realmente incorporada ¢ difundida pelos falantes de uma determinada comunidade. Se tomamos as consoantes vibrantes, ou seja, 0 r fraco ¢ 0 r forte, que apresentam grande variaciio no Brasil, constatamos que ha variantes que nao dio sinais de que estariam se difundindo: a chamada “lingua presa”, em que o falante pronuncia palavras como presa como se fosse algo como pdesa; or forte em final de palavra seguida por palavra iniciada por vogal, como em fazer isso, pronunciado como se fosse fazerrisso. E importante termos em mente que as linguas so heterogéneas, nilo sio sistemas perfeitos, prontos, acabados. Pode haver nelas heterogeneidade de origem externa ou interna d lingua, ¢ a heterogencidade de um tipo pode gerar também heterogeneidade do outro tipo. Por exemplo, hd atualmente no pertugués do Brasil uma tendéncia de perda dos pronomes atonos ou cliticos. Essa tendéncia é bem acentuada nos cliticos de terecira pessoa, mas nio se limita acla. Formas como ew vi ele so bem mais comunsno-verndculo do que ew o vi. Mas. além dessa situagio de perda de um clitico (0, a, as, as), ha também a substituigao de um elitico por outro. Coma primeira pessoa do plural encontramos formas como nds se encontramos, cm vez de nds nos encontramos. Podemos explicar esse uso, por um lado, considerando que esse se-aparece com nds porque existe a forma de tratamento a gente, que tem 0 proname se como seu reflexivo, ¢ talvez haja uma extenso do uso do se es ‘A mudonca linguistica 157 para o deum refiexive do nds. Mas outro fator que provavelmente influi no uso-do se, em vez do nos como reflexive de nds, ¢ «im fator prosédico. Os eliticos sao prosodicamente fracos ¢ sujeitos.a fortes restriedes prosddicas, como que tipo de silaba eles sao, se pesada (com ditonge ou consoante no final da silaba) ou leve (sem nenkum dos dois). Nesse sentido, os tinicos eliticos que parecem continuar sendo amplamente usados no portugués do Brasil so os que apresentam a forma cv (consoante seguida de vogal), 0 tipo de silaba considerado 0 mais basico nas linguas em geral. Sao les: me, rec se. Dessa forma, surgem construgdes como nds se encontramos, evitando-se, assim, @ uso de um clitico que é uma silaba pesada. Surgindo essa variante, ela acabou sendo vista como nao padrio, produvindo assim uma heterogencidade quanto 2 reardo que provoca. Uns no pereebem que seu uso seria um desvio, ao passo que outros a reprovam. ‘Qualquer desequilibrio desencadeado por motivos unicamente linguisticos ou por motivos extemos a lingua pode dar origem &-variag&o. E toda variagio pode em principio vir a ocasionar mudanga ‘Comoa lingua esta todo momento se equilibrando entre tendéncias potencialmente conflitantes, ¢ até mesmo opostas, esta sujeita.a sofrer mudaneas, pois esse equilibrio pode vira ser alterado por qualquer tipo de fator, interno ou externo. xaminaremos a seguir a telagdo entre a lingua ¢ a sociedade com um exemplo especifico, partindo da ideia de que tanto a lingua quanto a sociedade podem apresentar uma grande heterogeneidade. Essa heterogeneidade € no fundo a raiz de toda mudanga e podemos verificar que a heterogeneidade na lingua. evice= ciedade pode gerar heterogencidade na rsa. No caso dos reflexivos expostos, a heterogencidade linguistica gerou uma Variagdo que gera reagdes diversas, ow seja; uma heterogeneidade externa A lingua. Qualquer outra variag%o que surja por motivos que nao os internos a lingua constitui tam- bém uma heterogencidade dentro da propria lingua. Tomemos como exemplo 0 caso dos pronomes pessoais no portugues. O sistema pronominal herdado do latim tinha jr come nico pronome de segunda pessoa do singu- lar, Ja dentro do periodo-em que podemos considerar que existia uma lingua portuguesa endo mais uma forma diferente do latim, surgem determinadas formas de tratamento que io utilizadas para expressar um grau maior de hierarquia ou respeito do falante pelo s interlocutor. Sao formas como Hossa Mered, Vossa Majestade, Vossa Reveréneia, etc. O surgimente dessas formas de tratamento ¢ obviamente resultado da existéncia de uma. sociedade heterogénea, hierarquizada, na qual pode ser imprescindivel expressar nosso. reconhecimento ¢ aceitacio dessa hierarquia ¢ dessa heterogencidade. Temos ai uma heterogencidade extralinguistica que produziu uma heterogeneidade linguistica: ja ndo s¢ tinha mais apenas uma forma de segunda pessoa, pois, a0 lado do pronome 1, havia as diversas formas de tratamento Essa formas so linguisticamente heterogéncas pelo simples fato de o pronome ‘tu ser semanticamenie de segunda pessoa ¢ apresentar comportamento morfossintitica condizente com isso. Jéas formas de tratamento sio compostas na verdade de um pos- sessivo de segunda pessoa (do plural, também um sinal de hierarquia ¢ heterageneidade) eum substantivo feminino. Sintaticamente, portanto, essas formas de tratamento eram, pelo menos na sua origem, sintagmas nominais como quaisquer outros. Dessa forma, si0 de terceira pessoa do singular, como qualquer outro sintagma nominal singular. Assim, s¢ digo vossa casa & muito bonita, também digo Vossa Mercé € muito importante, © 152. tnirodugéo & Lingutetica no *Vossa Mercé és muito importante ou *Vossa Mereé sais muito importante. Surge, entao, uma heterageneidade linguistica caracterizada pelo fato de quando 0 locutor se dirige a alguém ele ter a possibilidade de utilizar a segunda ou a terecira pessoa. Essa escolha obviamente nio € livre, j que ¢ ditada pela escolha, também nao livre, que © falante faz dese dirigir a alguém com o pronome tv ou coma forma de tratamento Yossa Mercé, por exemplo. Coma difusdo das formas de tratamento, contudo, a forma Fossa Mercé, especifi- camente, tornou-se muito comum, nao sendo necessirio que houvesse nenhuma diferenga hierirquica de fato entre quem falava e seu imterlocutor. A forma Vosse Mercé passa a ndicar apenas respeito pela pessoa a quem nos dirigimos. Com seu uso ficando comum, surgem diversas formas reduzidas dessa expressio, entre elas: vosmecé. vossuncé e,com redugdes ainda maiores. swacé ¢- nosso vecé. Passamos de quatro para trés e de trés para duas silabas. Jé hi algum tempo existe também a variante ed, monossilabica, utilizada, por exemplo, em situagdes em que ndo ha contraste. Ficando agora unicamente com a forma vocé, verificamos quea partir do momento em que vocé passa a ser uma forma corriqueira de tratamento, semanticamente de segunda pessoa, jd indecomponivel morfologicamente ¢com comportamento sintatico de terceira pessoa, surgem tendéncias opostas no seu uso. Sua origem de terceira pessoa forga 0 uso do verbo na terceira pessoa também. Mas sua semanticaa confunde com o pronome fz, A heterogeneidade esta instalada na lingua ¢ em condigées de produzir mudangas. :m diversas regides do Brasil, vocé desbancou 0 rw como pronome de segunda pessoa do singular. No entanto, mesmo nessas regides, normalmente permanecem 0 pronome atono fe © a possessivo few. Na verdade, em ambos os casos ha variacao, tanto entre te de um lado ¢ o pronome ala do outro quanto entre os possessivos feu ¢ seu como de segunda pessoa, A existéncia dessa variagdo nos indica que ¢ bom possivel que venham a ocorrer novas mudangas. 3. Como as linguas mudam ‘ Gltima pergunta que fizemos na introdugdo é a que se relaciona com a maneira como a mudanea linguistica se di, Dentro de uma perspectiva variacionista se tem como certo que toda mudanga pressupde variacHo, ou seja, para que a mudanea ocorra a lingua tem necessariamente de passar por um periodo em que hé variagao, em que coexistem dus ou mais variantes. Tomando como exemplo, para simplificar a exposic&o, o caso em que hi apenas duas vatiantes, uma mais antiga ¢ outra mais nova, poderemos constatar que grada- tivamente a distribuigao das variantes passa de um predominio da variante mais antiga para um predominio da variante mais nova, até que haja.a substituigao completa. Retomando 0 exemplo das formas voce ¢ iu, tinhamos inicialmente apenas a forma tu, depois as duasem concorréncia. Em muitas regiGes do Brasil, jd se completou a mudanga, resultando em uma substituigio completa do pronome sujeito fe por vocé, Em outras, temos ainda a variagiio entre as duas. E importante perceber que ndio passamos de uma fase em que sé se usava a forma « para outra em que s6 se usa a forma voce, sem uma fase intermediaria de variagao. Ou-seja, para a Sociolinguistica Variacionista, a mucanga é vista como gradual. Na proxima segdo, veremos que essa concepeaio nfio é undnime entre os linguistas. Amudanga linguistica 153 E importante sempre lembrar que pode haver fatores de-duas espécies que favoregam. oudificultem amudanga: fatores estritamente linguisticos ¢ fatores extralinguisticos. Os fatores linguisticos se relacionam & forma como a linguaestd organizada, como funciona o seu sistema, quais so seus elementos, suas regras, ctc. Os fatores extralinguisticos relacionam-se a forma como a lingua esta inserida na sociedade. Inicialmente foram utilizados na Sociolinguistica os termos concdicionamento linguistico ¢condicionamento extralinguistico. Essestermos tinham a conotagao de que os fatores que representavam um condicionamento cram determinantes tanto da mudanga quanto da nao mudanga. Atualmente, prefesre-se utilizar 0 termo correlagdie para fazer referencia aos fatores que influenciam o resultado da variagdo. Tendo isso em mente, examinemos mais detalhadamente o processo da mudanga linguistica. Distinguiremos trés tipos de questdes: como a mudanga s 1. como ela se processa e como ela se difunde Como se origina uma mudanga linguistica? Podemes pensar em duas possibilidades. A primeira é a agdio de um ou mais elementos extemos & lingua ¢ 8 sociedade em que ela se insere. Eo que score quando uma lingua entra em contato com outra. Par exemplo, 0 latim, ao ser implantado nas diversas regides do Império Romano, entrou em contato com linguas variadas, que acabaram por modificar certas caracteristicas do latimem cada regia, dependendo das linguas com as quais ele entrou em contato. Assim, na regitio mais ocidental do Império Romano, houve a sonorizacao das oclusivas surdas intervociilicas nao geminadas (p, 1 h), 20 passo que em regides mais orientais. como a Itilia central ¢ meridional ou a Dacia (comespondente a atual Roménia), ndo ocorreu essa sonorizagdio. Na regido em que se formou o francés, essas oclusivas passaram por uma transformagio mais radical ainda, iendosido apagadas apds terem se sonorizado. Podemos comparar 0 destino dessas oclusivas surdas intervocilicas em algumas linguas roménicas observando a tabela a seguir. Tabela 1. Oclusivas intervecélicas em latim & em algumas linguas roménicas rintervoedlico Cintemocdlico ___ | p intervocilico ati digitu- focu- lupu- Suaahel dedo flego Jobo 7 portugué dedo- fogo lobo francés doigt [awa] feu [fo] Toup flu) italiano dito fuaco lupo ae | romeno. deget [dedget] foc lup A imagem que normalmente se fazem linguistica hist6rica para descrever esse tipo de interagao entre linguas é a de camadas linguisticas (ow estratos). Pensando em duas linguas A ¢ B que convivem durante certo tempo, sio utilizados alguns termos para nos referirmos a relacdo entre essas linguas. Tomando a lingua A como ponto de referencia, temos trés possibilidades. Se a lingua B era falada em certa regitio © nessa regido se ins- tala uma populagao que falaa lingua A, que acaba por se sobreper @ lingua B, dizemos 154 Introdugae 6 Linguistica que a lingua B & 6 substrato da lingua A, Se temos a situagdo oposta, ou seja, a lingua Accra falada numa regio e a lingua B é trazida para essa regio, havendo, no entanto, a continuidade do uso da lingua A nessa mesma regiao, dizemos que a lingua B funciona como superestrato da lingua A. Por fim, a terceira possibilidade € a de duas linguas que sio faladas em tegides vizinhas, Nesse caso, se a lingua B tem alguma influéncia sobre a lingua A, dizemos que a B é um adstrato de A. Sepensarmosno portugués falado no Brasil, levando em conta esses conceitos, diremos que cle teve um substrato indigena (tupi c outras linguas nativas). Principalmente com relagdo a0 Sul ¢ ao Sudeste, podemos também dizer que ele teve um superestrato de origem diversa: italiano, alemao, japonés, etc. Além disso, nas regides de fronteira, ni o adstrato espanhol, Oclemento mais facilmente afetado pelo contato com uma lingua estrangeira.é0 Iéxico, ‘como podemos ver atualmente pelo grande nimero de palavras de origem inglesa que tem entrado no portugués. O francés teve 0 mesmo tipo de influéncia sobre o portugues e muitas outras Tinguas, inclusive sobre 9 préprio inglés, principalmente até a metade do século xx, A influéncia do francés sobre 0 inglés teve como marco importante o ano de 1066, quando a (Gra-Bretanha foi invadida pelos normandos, que implantaram o francés da ¢poca como lingua da corte, fazendo com que o inglés da época fosse socialmente menos prestigiado, Deve ficar claro que a possibilidade de linguas geograficamente préximas s¢ tomarem mais semelhantes nio se limita a linguas que tenham uma origem comum pré- ‘xima (como o portugués ¢ o espanhol). As chamadas caracteristicas linguisticas areais, relacionadas a uma drea, podem ser o resultado da convergéncia de linguas mais distantes geneticamente do que 0 portugués ¢ © espanhol, como ocorreu na regitio balcanica, em que uma lingua rominica (o romeno), uma eslava (o biilgaro), 0 grego e o albanés (todas as quatro de origem indo-europeia) adquiriram algumas caracteristicas muito semelhan- entre as quais se encontram: o uso do verbo querer para formar a futuro, a fusiio do dativo e do genitivo, a grande diminuig%o do uso ou mesmo o desaparecimento do infi- semelhantes, como ocorre no subcontinente indiano, em que as linguas de ‘origem indo-europeia ¢ as linguas de origem dravidica (faladas principalmente no sul da india) convergem, por exemplo, no fato de terem varias consoantes retroflexas. $30 sons parecidos com os nossos [t], [d] e [r], com a diferenga de que a coroa da lingua (a ponta dela) se volta para tras, aproximadamente como no nosso r caipira, Allém de ser desencadeada por contato entre linguas distintas, a mudanga pode ser provocada também por fatores internos a uma lingua ¢ 4 comunidade em que ela ¢ falada. 0 Jatim possuia uma ordem vocabular bastante livre, o que se relacionava esireitamente como fato de seus substantivos, adjetivos.e pronomes apresentarem marcagao de caso, desinéncias que indicavam sua fungdo sintitica independentemente da posi¢do em que eles apareciam na oragio, A partir do memento em que comega a haver perda de diversos sons finais no im falado, hii a etosio das desinéneias de caso, que precisum entao-ser substituidas por outro mecanismo que deixe clara a fungdo sintatica dos diversas sintagmas nominais. Passa a prevalecer entio uma ordem bem mais rigida do que a que havia em latim. Nesse exemplo, estabelecemos uma correlagio entre um fator estritamente linguistico (perda de distingdes no final dos voeibulos) e uma mudanga no sistema da lingua (aquisigao de uma ordem vocabular mais rigida). No caso dos pronomes de segunda pessoa do portugues, estabelecemos uma correlagao entre um fator extralinguistico ¢ uma mudanga na lingua Amudance linguistica 155 Para responder a segunda pergunta, a de como se processa a mudanga Linguistica, podemos estudar como as mudangas afetam a lingua como sistema. Nesse tipo de pesquisa, alguns dos exemplos mais bem estudados de mudanga linguistica sio as mutagdes fo- noldgicas. Em principio, pederiamos acreditar que as mudangas normalmente afetam um elemento ou outro isoladamente. Mas com frequéncia encontramos mudangas que afetam sistema linguistico em si de forma bem mais abrangente ¢ intrineada, Vejamos como primeiro exemplo as mutagdes vocdlicas que ocorreram do latim para.o portugués. Devemos lembrar em primeira lugar que o latim possuia uma oposic! entre vogais longas ¢ vogais breves, que era distintiva, Uma vogal longa tem praticamente codobro da duragao de uma vogal breve. Podemos marcar essa diferenca graficamente como normalmente se faz com a lingua latina, utilizando a braquia sobre as vogais breves, por 4. Tinhamos, assim, pares exemplo, a, ¢ o-macron sobre as vogais longas, por exemplo, 2 minimos como maim (“mal”), com a breve, ¢ malum (“maga”), com a longo. No latim vulgar, que foi o que deu origem as linguias roménicas, havia num primeiro momento, aliada a diferenga de quantidade, a diferenga de abertura da cavidade oral na proniincia das vogais. Assim, por exemplo, 0 som do i breve [i] era algo intermediario entre 0 som do i longo [i] ¢ o do ¢ longo [8]. Na passagem do latim vulgar para as linguas romiénicas, foi perdida a oposigio de quantidade entre as vogais breves ¢ longas. No caso da vogal a, foi perdida a distingZo, mas no caso das demais vogais, o sistema sofreu uma grande redistribuigdio em termos de timbre vocilico, como podemos verificar na tabela a seguir, que ilustra © que ocorreu do latim para o portugués: Tabela 2. Vogais latinas e portuguesas Latim, Portugués mire mar latu- lado ferro cera negro vinho toda toda lobo luz. No caso do portugués, houve perda de distingdes existentes no latim, Enquanto o latim tinha dez vogais diferentes, o portugués ficou com sete, se excluirmas as vogais nasais, como normalmente se faz. Temos trés casos de fusio: do a longo ¢ do a breve, que produziram a em portugués; do ¢ longo ¢ do i breve, que produziram e fechado: ¢ do o longo ¢ dou breve, que produziram o fechado. Isso esta indicado na tabela pela auséncia de divistio nas células correspondentes aos resultados em portugués das vogais quese fandiram,

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