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Resumo Abstract
A esfera das relações humanas como lugar The sphere of human relations as a place of
da obra de arte sempre foi um dos assuntos work of art has always been one of the most ex-
mais caros à arte teatral. Este aspecto da esté- pensive issues to theatrical art. This aspect of
tica relacional nos provoca uma reflexão sobre relational aesthetics motivates us to reflect on
as artes cênicas, embora Nicholas Bourriaud the performing arts, although Nicholas Bour-
oriente sua reflexão através das mudanças riaud orient its reflection through the changes
evidentes nas artes visuais. Ainda que perce- in the visual arts. We understand that the per-
bamos que as artes cênicas também foram forming arts have also been affected by propo-
afetadas por proposições da estética relacio- sals of relational aesthetics and they have un-
nal e sofreram mudanças significativas quanto dergone significant changes of the performing
à obra de arte cênica, devemos admitir que a art work. We must admit that intersubjectivity
relação de intersubjetividade entre os artistas relationship between theater artists, the sce-
teatrais, a cena e os espectadores precede a ne and the spectators above the very notion of
própria noção da arte moderna, e se remete modern art: they recall the elementary forms
às formas elementares da vida em sociedade of social life when the priests, the ritual and
quando os sacerdotes, o acontecimento do the participants were related as to amount to a
ritual e os participantes se relacionavam de sublime state. This work is the result of our ex-
maneira a elevar-se a um estado sublime. O perience with the work in progress “Black me-
presente trabalho resulta da nossa experiên- mories” and the observation of contemporary
cia com o work in progress “Negras memórias” theatre. As we reflect on the relational aesthe-
e a observação de encenações contemporâ- tics, also seek to highlight what has changed,
neas. Conforme refletiremos sobre a estética especially in the status of the performing art
relacional, também buscaremos evidenciar o work. We will discuss the interaction phenome-
que foi alterado, especialmente, no estatuto da non from the perspective of the theatrical phe-
obra de arte cênica. Discutiremos o fenômeno nomenon that revisits through the principle of
da interatividade, na perspectiva do fenômeno human relations as a place of art.
teatral que revisita através das encenações o
princípio das relações humanas como lugar da
arte.
Palavras-chave Keywords
Estética Relacional. Espectador. Fenômeno Relational Aesthetics. Spectator. Theatrical
Teatral. Phenomenon.
cena n. 19
traçarei um breve caminho que, longe de am- bém consideramos que sua tradição ocidental
bicionar conclusões, buscará tão-somente se transformou de tal maneira que no caso do
esboçar um quadro teórico a fim de compre- teatro moderno (Szondi, 2011), especialmente
ender a abordagem do fenômeno da interativi- na expressão do naturalismo, a relação inte-
dade feita por alguns artistas teatrais, a partir rativa entre artistas, cena e espectadores foi
de suas encenações, as quais contemporane- relegada, e o texto enaltecido enquanto dra-
amente, revisitam o princípio das relações hu- maturgia. O teatro moderno assume a forma
manas como lugar da arte. dramática, enraizado no raciocínio dialético de
Aristóteles, quando as ações se desenvolvem
A intersubjetividade de maneira que a contradição entre os fatos
na teoria do drama moderno resulte em uma solução-síntese.
visto que essa prática artística propicia uma dos espectadores como um elemento
de sua própria constituição não pode
convivência com o outro. Nesse sentido, quan- se fechar em um todo nem do ponto
do uma obra teatral propõe a interatividade, de vista prático nem teórico. Assim, o
ela, de alguma maneira, aproxima-se à forma acontecimento teatral torna explícitas
tanto a processualidade que lhe é pró-
estética relacional: pria quanto a imprevisibilidade nela im-
plícita”. (Lehmann, 2007, p. 100).
[...] a forma de uma obra de arte nasce
de uma negociação com o inteligível
que nos cabe. Através dela, o artista Quando observamos uma obra teatral que
inicia um diálogo. A essência da práti- propõe a intersubjetividade e interação com o
ca artística residiria, assim, na inven-
outro/espectador, não podemos negligenciar
ção de relações entre sujeitos; cada
obra de arte particular seria a propos- o aspecto de acontecimento deste fenômeno.
ta de habitar um mundo em comum, Esta relação dinâmica faz compreender uma
enquanto o trabalho de cada artista
comporia um feixe de relações com o atividade teatral dialogando com a forma re-
mundo, que geraria outras relações, e lacional.
assim por diante, até o infinito” (Bour-
riaud, 2009, p. 31). Deve-se ressalvar que, embora apreciemos
o estudo de Hans-Thies Lehmann, que revela
Segundo Hans-Thies Lehmann (2007), a significativas observações acerca da teoria crí-
forma dramática foi o cânone, o princípio for- tica de teatro, percebemos problemas no seu
mal, que interferiu estruturalmente nas regras conceito de “teatro pós-dramático”. Mesmo que
das artes cênicas. Embora o autor argumente o autor não tenha a intenção de reforçar uma
que o teatro “pós-dramático” seja tanto uma historiografia cronológica do teatro (Lehmann,
crítica à forma dramática quanto também o 2010), há de se considerar um deslize do crí-
deslocamento da obra de arte cênica para o tico ao empregar o conceito “pós-dramático”.
acontecimento, o que houve foi a reafirmação O uso do prefixo “pós” (do latin post, atrás de;
do caráter antropológico do acontecimento, depois de; após, em seguida) implica conside-
essência ou princípio racional do fenômeno da rar que a forma “pós-dramática” é uma “fase”
cena. posterior ou aquilo que vem depois da forma
dramática. Se Lehmann desenvolve o concei-
[...] Foi determinante para a estética to de “pós-dramático” considerando o mesmo
teatral o deslocamento da obra para
o acontecimento. É certo que o ato como uma reação crítica à forma dramática,
da observação, as reações e as “res- nesse sentido, enquanto significante linguísti-
postas” latentes, ou mais incisivas dos
espectadores desde sempre haviam co, “pós-dramático” é um termo ambíguo. Os
constituído um fator essencial da rea- aspectos que o autor identifica como “signos
lidade teatral, mas nesse momento se
tornam um componente ativo do acon- do teatro pós-dramático”1 estão presentes na
tecimento, de modo que a ideia de uma forma dramática, o que nos leva a entender
construção coerente de uma obra tea-
tral acaba por se tornar obsoleta: um que uma tendência de resistir à forma dramá-
teatro que inclui as ações e expressões tica é inerente a ela mesma.”
1 A saber: a parataxe como des-hierarquização dos recursos teatrais (ator, luz, som, cenografia, etc); a simultaneidade dos recur-
sos teatrais; a superabundância dos elementos cênicos; a musicalização (música valorizada como elemento cênico); cenografia
como dramaturgia visual; e a corporeidade, ou seja, o corpo não como portador de sentido, mas como substância física e ges-
ticulação. (Lehmann, 2007).
O drama, enquanto forma, não foi supera- des e sentidos, foi provocado a transformar
do pelo teatro na contemporaneidade, visto essas qualidades e sentidos em gestos, ou
que percebemos expressões da permanên- seja, movimentos plásticos. Nesse momento, o
cia de questionamentos, sobretudo, referente processo criativo do performer expressa uma
ao aspecto relacional da obra teatral. O que relação da interioridade à exterioridade, cons-
Lehmann identifica como “teatro pós-dramá- truindo uma ação que estabelece uma relação
tico” são teatralidades que eclodem críticas intersubjetiva com a percepção do espectador
à forma dramática, sem sua completa nega- e sua experiência de pensamento. É evidente
ção. Estas expressões se manifestam como nas encenações que o espectador da dança-
alternativas discursivas, cuja ascensão está teatro de Pina Bausch não pode se perder no
atrelada às narrativas de legitimação com de- envolvimento dos sentimentos-gestos que os
terminado vínculo social da obra teatral. Nes- performers expressam.
se sentido, situo o trabalho dos encenadores Na obra 1980, a repetição por vezes exaus-
José Celso Martinez Correa, Pina Bausch e tiva coloca o próprio gesto em suspensão, de-
Angélica Lidell como expressões que situam finindo uma determinada temporalidade para
essa “crise das narrativas” (Lyotard, 1989) no apreensão crítica do espectador. Essa sus-
contexto das artes cênicas. pensão parece se aproximar da chamada “éti-
Em Pina Bausch, especialmente no espe- ca do signo”, conforme argumentada por Jean
táculo 1980, as relações da sua dança-teatro Galard (2008). Antes que a gesticulação, como
com a crítica à forma dramática como estrutu- elemento da corporeidade dos bailarinos de
ra narrativa ficam evidentes. A construção das Pina Bausch, resuma-se a uma mera exterio-
cenas se destaca como o resultado de um in- rização de natureza íntima ou manifestação
ventário, um levantamento detalhado de ges- de um ser interior, a encenadora organiza as
tos corporais que constroem a corporeidade cenas tal como “[...] uma forma produtora de
de cada ator/bailarino. Os corpos dos bailari- sentido, uma configuração significante que é
nos nas coreografias de Pina Bausch expres- supérfluo referir a uma origem substancial”
sam qualidades próprias que deixam incertos (Galard, 2008. p.46). Os gestos cotidianos,
os limites entre a dança e o teatro. O proces- encenados teatralmente, podem ser identifica-
so criativo de Pina Bausch, evidente na obra dos pelo espectador, que lhe atribue sentidos
1980, baseia-se na experiência de rememorar familiares. Contudo, observa-se que durante o
sentimentos e manifestá-los em gestos. Esse espetáculo, quando a repetição de gestos sur-
procedimento revela também uma indagação ge como aparente “reprodução” de cenas do
mais arraigada à personalidade e ao incons- cotidiano, um bailarino começa a servir uma
ciente do bailarino, um trabalho de interiorida- bebida (supõe-se que chá ou café) aos es-
de do performer com o objetivo de expressar pectadores, de maneira a acusar criticamente
algo que foi cultivado, construído e que de al- uma contemplação passiva. Com aproximada-
guma maneira constitui uma personalidade. mente uma hora de espetáculo, executando
Trata-se de um processo poético das sensa- repetidamente uma partitura de movimentos
ções, isso quer dizer, que o performer, forma- gestuais, os bailarinos deslocam a cena do
do por experiências que lhe geraram qualida- palco para a plateia de maneira que, ao andar
ser fantasiosa e passa a agir com hiper-re- interatividade entre o artista, a encenação e o
alismo, que pode despertar o incômodo do espectador. Nesse sentido, o teatro, na esté-
respectador quando da descoberta que o ato tica relacional, revela-se como um campo de
violento é real e doloroso; aqui percebemos a tensões entre palco e o espectador.
experiência da performer na produção de um Tal postura pode ser entendida sob a pers-
sentido que pode vir a ser despertado no es- pectiva da relação entre estética e política,
pectador. como propõe Jacques Rancière. Assim, esse
É difícil dar uma definição à performance, teatro de formas relacionais, com interven-
visto que isso nega sua própria ideia de lin- ções dos artistas a partir das contaminações
guagem artística. Considerando as observa- da performance, reagindo e criticando a forma
ções de Roselee Goldberg (2006), nenhuma dramática, acende também essas tensões en-
outra forma de expressão artística tem um tre o palco e os seus espectadores. “A política
programa tão ilimitado como a performance. aí se representa como relação entre a cena e
Seu caráter “maleável” e “indeterminado”, com a sala, significação do corpo do ator, jogos de
o objetivo de colocar a arte em contato direto proximidade ou distância [em relação ao es-
com o público, foi algo significativo no trabalho pectador]” (Rancière, 2009, p.24).
dos artistas conceituais no âmbito das artes No teatro, as relações de interatividade e
visuais, embora estivesse presente bem an- intersubjetividade artista/encenação/especta-
tes nos trabalhos dos dadaístas e surrealistas. dor se assumem como princípios que dão for-
Deve-se considerar que as ações realizadas ma à arte teatral, reacendendo o ato cênico
durante encenações teatrais, ao menos aque- como acontecimento ritual e, dessa maneira,
las que se aproximam ou se contaminam com reconstituindo uma comunidade emancipada,
a linguagem da performance, revelam alguns no sentido que Jacques Rancière emprega a
aspectos que não são percebidos na forma expressão:
dramática. São ações empreendidas como
Os artistas, assim como os pesquisa-
maneira de dar vida a ideias formais e con- dores, constroem a cena onde a mani-
ceituais nas quais se baseia a criação cênica, festação e o efeito de suas competên-
mas que encontraram limitações formais no cias são expostos incertos nos termos
do idioma novo que traduz uma nova
fazer teatral mais ligado à tradição da repre- aventura intelectual. O efeito do idioma
sentação. São, portanto, provocações e desa- não pode ser antecipado. Ele solicita
dos espectadores que jogam o papel
fios postos às artes cênicas. E, nesse sentido, de intérpretes ativos que elaborem sua
tanto na performance art quanto em determi- própria tradução, para se apropriar da
“história” fazendo sua própria história.
nadas ações realizadas em encenações tea- Uma comunidade emancipada é uma
trais, o performer tem uma variedade infinita comunidade de contadores e de tradu-
tores” (Rancière, 2008, p. 28-29).
de como realizar seu programa ao longo do
seu processo criativo e da própria execução
Realizamos uma breve e ainda incompleta
da ação. E, dessa maneira, os artistas reafir-
reflexão, articulando aspectos da estética rela-
mam que a ideia é mais importante que o pro-
cional de Nicholas Bourriaud a um fenômeno
duto, e que esta ideia pode ser entendida a
percebido nas artes cênicas. Pretendo
partir de uma relação de intersubjetividade e
desenvolver essa reflexão de maneira mais co. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
densa, observando outras questões que cer-
cam o mesmo fenômeno e que não foram ______. “Teatro pós-dramático e teatro políti-
abordadas, tal como o work in progress na en- co”. In. FERNANDES, Silvia; GUINSBURG, J.
cenação contemporânea. Certamente, se ten- (orgs.). O pós-dramático: um conceito opera-
tasse aprofundar o tema nesse ensaio, preci- tivo?. São Paulo: Perspectiva, 2010. pp. 233-
254.
saria ter uma reflexão mais longa e profunda.
Neste caso, preferimos cercar o fenômeno da
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-
intersubjetividade e da interatividade de forma
moderna. Lisboa: Gradiva, 1989.
introdutória.
MEYERHOLD, Vsévolod. O teatro de
Referências Meyerhold. Tradução, apresentação e orga-
nização de Aldomar Conrado. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1969.
ARTAUD, Antonin. Oeuvres. Paris: Gallimard,
2010.
RANCIÈRE, Jacques. Le spectateur émanci-
pé. Paris: La Fabrique Éditions, 2008.
BOURRIAUD, Nicholas. Estética relacional.
São Paulo: Martins Fontes, 2009.
______. A partilha do sensível. São Paulo:
EXO Experimental org.; Editora 34, 2009.
FERNANDES, Silvia; GUINSBURG, J. (orgs.).
O pós-dramático: um conceito operativo?.
SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno
São Paulo: Perspectiva, 2010.
(1880-1905). São Paulo: Cosac Naify,
2011.
GALARD, Jean. A beleza do gesto: uma es-
tética das condutas. São Paulo: Edusp, 2008.
______. Teoria do drama burguês [século
XVIII]. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
GLUSBERG, Jorge. A arte da performance.
São Paulo: Perspectiva, 2013.