Você está na página 1de 9

cena n.

19

A Estética Relacional e o Espectador Como


Participante do Fenômeno Teatral

Stenio José Paulino Soares


Ator e professor do curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR)
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade de São Paulo (USP)
E-mail: steniosoares@gmail.com

Resumo Abstract

A esfera das relações humanas como lugar The sphere of human relations as a place of
da obra de arte sempre foi um dos assuntos work of art has always been one of the most ex-
mais caros à arte teatral. Este aspecto da esté- pensive issues to theatrical art. This aspect of
tica relacional nos provoca uma reflexão sobre relational aesthetics motivates us to reflect on
as artes cênicas, embora Nicholas Bourriaud the performing arts, although Nicholas Bour-
oriente sua reflexão através das mudanças riaud orient its reflection through the changes
evidentes nas artes visuais. Ainda que perce- in the visual arts. We understand that the per-
bamos que as artes cênicas também foram forming arts have also been affected by propo-
afetadas por proposições da estética relacio- sals of relational aesthetics and they have un-
nal e sofreram mudanças significativas quanto dergone significant changes of the performing
à obra de arte cênica, devemos admitir que a art work. We must admit that intersubjectivity
relação de intersubjetividade entre os artistas relationship between theater artists, the sce-
teatrais, a cena e os espectadores precede a ne and the spectators above the very notion of
própria noção da arte moderna, e se remete modern art: they recall the elementary forms
às formas elementares da vida em sociedade of social life when the priests, the ritual and
quando os sacerdotes, o acontecimento do the participants were related as to amount to a
ritual e os participantes se relacionavam de sublime state. This work is the result of our ex-
maneira a elevar-se a um estado sublime. O perience with the work in progress “Black me-
presente trabalho resulta da nossa experiên- mories” and the observation of contemporary
cia com o work in progress “Negras memórias” theatre. As we reflect on the relational aesthe-
e a observação de encenações contemporâ- tics, also seek to highlight what has changed,
neas. Conforme refletiremos sobre a estética especially in the status of the performing art
relacional, também buscaremos evidenciar o work. We will discuss the interaction phenome-
que foi alterado, especialmente, no estatuto da non from the perspective of the theatrical phe-
obra de arte cênica. Discutiremos o fenômeno nomenon that revisits through the principle of
da interatividade, na perspectiva do fenômeno human relations as a place of art.
teatral que revisita através das encenações o
princípio das relações humanas como lugar da
arte.

Palavras-chave Keywords
Estética Relacional. Espectador. Fenômeno Relational Aesthetics. Spectator. Theatrical
Teatral. Phenomenon.
cena n. 19

O que elas (a intersubjetividade, a principais intelectuais do romantismo, já reco-


interação) produzem são espaços
tempos-relacionais, experiências inter
nhecia que aspectos estéticos relacionais pre-
-humanas que tentam se libertar das sentes na cena se assemelhavam às formas
restrições ideológicas da comunicação elementares da vida religiosa, quando sacer-
de massa; de certa maneira, são luga-
res onde se elaboram sociabilidades dotes e participantes se relacionavam em ri-
interativas, modelos críticos, momen- tuais de maneira a se elevarem a um estado
tos de convívio construído (Bourriaud,
2009, p.62). sublime.

[...] A antiguidade nada tem de mais


solene, nada de mais majestoso. Seu
Introdução culto e sua história se misturam ao seu
teatro. Seus primeiros atores são sa-
cerdotes; seus jogos cênicos são ce-
A estética relacional, argumentada pelo fi- rimônias religiosas, festas nacionais”
lósofo Nicholas Bourriaud, compreende uma (Hugo, 2012, p. 21).

diversidade de expressões artísticas, que re-


Embora com papéis definidos, todas as
velam um fenômeno no âmbito da linguagem.
pessoas envolvidas em um ritual religioso
Inicialmente, esse fenômeno exige um esforço
participam com atos e práticas comuns. Essa
para ser compreendido, por que se acerca de
condição de participantes interativos, presente
significações sem se encerrar nelas. Assim, no
no fenômeno religioso, é percebida tanto nos
fenômeno cênico, algumas construções de lin-
jogos e brincadeiras populares de grupos étni-
guagem se expressam por sinais percebidos
cos na contemporaneidade quanto na gênese
em virtude da corporeidade, resultando em
do teatro ocidental, como lemos em Aristóteles
um sentido incorpóreo.
e em Platão. No entanto, são nos escritos de
“A esfera das relações humanas como lu-
Antonin Artaud (2010), no início do século XX,
gar da obra de arte” (Bourriaud, 2009, p.61)
que encontramos claramente a proposição de
sempre foi o assunto mais caro à arte teatral
um teatro ritual, considerando o fenômeno cê-
e, certamente por este motivo, o filósofo nos
nico como um desdobramento cultural do fa-
provoca uma reflexão sobre as artes cênicas,
zer ritualístico religioso.
embora seu ensaio sobre a estética relacional
No contexto da arte relacional, a intersubje-
se oriente pelas mudanças evidentes nas ar-
tividade e a interação, tal como destaca Bour-
tes visuais, integrando novas linguagens que
riaud (2009), não são procedimentos teóricos
não eram abarcadas pela História da Arte
ou aspectos coadjuvantes da prática artísti-
Moderna. No entanto, ainda que percebamos
ca. A arte relacional considera estes aspec-
que nas artes cênicas também se manifes-
tos como “ponto de partida e de chegada, em
taram aspectos que se aproximam à estética
suma, como principais elementos a dar forma
relacional, provocando, sobretudo, mudanças
à sua atividade” (Bourriaud, 2009, p.62).
significativas quanto ao estatuto da obra de
Ao longo deste artigo, com base em refle-
arte teatral, devemos admitir que a relação de
xões sobre a estética relacional, buscarei evi-
intersubjetividade entre os artistas teatrais, a
denciar o que foi alterado nas artes cênicas,
cena e os espectadores precede à própria no-
especialmente na obra teatral. Com isso,
ção de arte moderna. Victor Hugo, um dos

Soares // A Estética Relacional e o Espectador como Participante do Fenômeno Teatral


cena n. 19

traçarei um breve caminho que, longe de am- bém consideramos que sua tradição ocidental
bicionar conclusões, buscará tão-somente se transformou de tal maneira que no caso do
esboçar um quadro teórico a fim de compre- teatro moderno (Szondi, 2011), especialmente
ender a abordagem do fenômeno da interativi- na expressão do naturalismo, a relação inte-
dade feita por alguns artistas teatrais, a partir rativa entre artistas, cena e espectadores foi
de suas encenações, as quais contemporane- relegada, e o texto enaltecido enquanto dra-
amente, revisitam o princípio das relações hu- maturgia. O teatro moderno assume a forma
manas como lugar da arte. dramática, enraizado no raciocínio dialético de
Aristóteles, quando as ações se desenvolvem
A intersubjetividade de maneira que a contradição entre os fatos
na teoria do drama moderno resulte em uma solução-síntese.

Sendo o drama sempre primário, sua


Sabemos que o teatro ocidental, desde as época é sempre o presente. O que não
indica absolutamente que é estático,
convenções postuladas no contexto do renas- senão somente que há um tipo parti-
cimento, propunha à forma dramática uma au- cular de decurso temporal no drama:
o presente passa e se torna passado,
tonomia da encenação diante do espectador, mas enquanto tal já não está mais pre-
colocando-o na condição de observador con- sente em cena. Ele passa produzindo
uma mudança, nascendo um novo pre-
templativo. No entanto, não é incorreto afirmar sente de antítese (Szondi, 2011, p. 32).
que as relações de intersubjetividade sempre
estiveram presentes nas artes cênicas. O fe- Sob a forma dramática, os espectadores
nômeno da cena não se limita a um conjunto estão na condição de receptores, plateia para
de artifícios técnicos somados à atuação de “contemplar” a encenação. Segundo Peter
atores, orquestrados por um encenador que Szondi (2011), o drama moderno tem a ten-
coloca sobre um palco a expressão cênica de dência de reproduzir na cena a estrutura do
um texto. Antes do texto existe o argumento, diálogo, como forma representativa da relação
sendo que o próprio texto pode ser construído intersubjetiva dos personagens no texto. No
de diversas maneiras. Mesmo assim, a obra entanto, no final do séc. XIX e início do séc.
teatral sempre exigiu uma relação entre ar- XX, Stanislavski e Meyerhold já salientavam
tistas, encenação e espectadores, ainda que que as obras de Anton Tchékhov desafiavam
submetesse o espectador ao distanciamento, os limites de um realismo naturalista, porque
como aconteceu no teatro naturalista e sua não se tratavam de dramas convencionais:
vertente burguesa (Szondi, 2004). elas não reproduziam a estrutura do diálogo,
Afirmamos que as relações de intersubje- tal como os dramas realistas vigentes, e a in-
tividade entre os artistas teatrais, a cena e os tersubjetividade dos personagens era criada
espectadores se remetem às formas elemen- em torno de uma conversação com longas
tares da vida religiosa e acontecem de ma- pausas e textos que refletiam a própria con-
neira a fazer os participantes se elevarem a dição do personagem. Vejamos o que Szondi
um estado sublime. Quando nos remetemos à afirma sobre os textos de Tchékhov:
gênese antropológica das artes cênicas, tam-
[...] monólogos debruçados de

Soares // A Estética Relacional e o Espectador como Participante do Fenômeno Teatral


cena n. 19

réplicas, como manchas coloridas em A intersubjetividade


que se condensa o sentido do todo. e a interação na cena como acontecimento
E das auto-análises resignadas, que
quase todas as personagens expres-
sam uma a uma, vive a obra, escrita
em função delas (Szondi, 2011, p. 50). A estética relacional constitui não uma
teoria da arte, que suporia o enunciado
de uma origem e de um destino, e sim
A especificidade da linguagem tchékhovia- uma teoria da forma (Bourriaud, 2009,
na explodia a centralidade do texto e deman- p. 26).
dava uma forma diferente para sua encenação.
O drama moderno se revelava em crise e, ao Discutimos, anteriormente, que a intersub-
passo que o texto se tornava insuficiente para jetividade é um fenômeno inerente à obra cê-
a obra, ele também exigia dos encenadores a nica. Vimos que as convenções postuladas
criação de uma linguagem cênica que fosse sobre o drama desde o renascimento até o ro-
além da representação do texto. E, nesse con- mantismo limitou o espectador à condição de
texto, Vsévolod Meyerhold, aponta a respon- observador contemplativo da cena. Em virtu-
sabilidade de se assumir o espectador como de da natureza dramatúrgica de autores como
um novo criador da cena: Tchékhov, a encenação como representação
do texto passa a ser questionada. Nesse con-
Enfim, depois do autor, do diretor e do texto, Meyerhold propõe o deslocamento do
ator, o método de estilização supõe
no teatro um quarto criador: o espec- espectador da condição de contemplador para
tador. A nova concepção de direção criador da obra cênica, a partir da sua experi-
obriga o espectador a completar pela
sua imaginação as alusões feitas em ência de pensamento. Assim, observamos que
cena” (Meyerhold, 1969, p. 38) (grifo do a subjetividade do espectador passa a ser um
autor).
elemento criativo, evidenciando o aspecto de
intersubjetividade da cena.
Diante das novas obras de autores como
A experiência de intersubjetividade e intera-
Tchékhov, Ibsen e Strindberg, segundo
ção na obra teatral tem um contexto específi-
Meyerhold (1969), a linguagem da encenação
co, atribuído pelo caráter de acontecimento da
teatral precisava provocar no espectador uma
cena. Por outro lado, há também um extensivo
experiência de pensamento. Ou seja, o espec-
debate em torno da performance, o que deslo-
tador experimenta a obra cênica e a partir dela
ca o teatro do centro das discussões, inserin-
também cria. Ao assumir o espectador como
do a dança e o estudo da performance.
um quarto criador da obra cênica, Meyerhold
Considerando a história da performance, há
adianta uma nova mudança no estatuto da
quem prefira situá-la em um campo comum
obra de arte cênica: a cena apresenta neces-
tanto das artes cênicas como das artes visu-
sariamente uma relação de intersubjetividade
ais.
com o espectador, ainda que não se fale em
Ao que concerne às artes cênicas, a noção
interatividade.
de acontecimento compreende um espaço-
tempo específico de relação com a obra. As
relações de intersubjetividade durante o ato
cênico constroem um mundo particular,

Soares // A Estética Relacional e o Espectador como Participante do Fenômeno Teatral


cena n. 19

visto que essa prática artística propicia uma dos espectadores como um elemento
de sua própria constituição não pode
convivência com o outro. Nesse sentido, quan- se fechar em um todo nem do ponto
do uma obra teatral propõe a interatividade, de vista prático nem teórico. Assim, o
ela, de alguma maneira, aproxima-se à forma acontecimento teatral torna explícitas
tanto a processualidade que lhe é pró-
estética relacional: pria quanto a imprevisibilidade nela im-
plícita”. (Lehmann, 2007, p. 100).
[...] a forma de uma obra de arte nasce
de uma negociação com o inteligível
que nos cabe. Através dela, o artista Quando observamos uma obra teatral que
inicia um diálogo. A essência da práti- propõe a intersubjetividade e interação com o
ca artística residiria, assim, na inven-
outro/espectador, não podemos negligenciar
ção de relações entre sujeitos; cada
obra de arte particular seria a propos- o aspecto de acontecimento deste fenômeno.
ta de habitar um mundo em comum, Esta relação dinâmica faz compreender uma
enquanto o trabalho de cada artista
comporia um feixe de relações com o atividade teatral dialogando com a forma re-
mundo, que geraria outras relações, e lacional.
assim por diante, até o infinito” (Bour-
riaud, 2009, p. 31). Deve-se ressalvar que, embora apreciemos
o estudo de Hans-Thies Lehmann, que revela
Segundo Hans-Thies Lehmann (2007), a significativas observações acerca da teoria crí-
forma dramática foi o cânone, o princípio for- tica de teatro, percebemos problemas no seu
mal, que interferiu estruturalmente nas regras conceito de “teatro pós-dramático”. Mesmo que
das artes cênicas. Embora o autor argumente o autor não tenha a intenção de reforçar uma
que o teatro “pós-dramático” seja tanto uma historiografia cronológica do teatro (Lehmann,
crítica à forma dramática quanto também o 2010), há de se considerar um deslize do crí-
deslocamento da obra de arte cênica para o tico ao empregar o conceito “pós-dramático”.
acontecimento, o que houve foi a reafirmação O uso do prefixo “pós” (do latin post, atrás de;
do caráter antropológico do acontecimento, depois de; após, em seguida) implica conside-
essência ou princípio racional do fenômeno da rar que a forma “pós-dramática” é uma “fase”
cena. posterior ou aquilo que vem depois da forma
dramática. Se Lehmann desenvolve o concei-
[...] Foi determinante para a estética to de “pós-dramático” considerando o mesmo
teatral o deslocamento da obra para
o acontecimento. É certo que o ato como uma reação crítica à forma dramática,
da observação, as reações e as “res- nesse sentido, enquanto significante linguísti-
postas” latentes, ou mais incisivas dos
espectadores desde sempre haviam co, “pós-dramático” é um termo ambíguo. Os
constituído um fator essencial da rea- aspectos que o autor identifica como “signos
lidade teatral, mas nesse momento se
tornam um componente ativo do acon- do teatro pós-dramático”1 estão presentes na
tecimento, de modo que a ideia de uma forma dramática, o que nos leva a entender
construção coerente de uma obra tea-
tral acaba por se tornar obsoleta: um que uma tendência de resistir à forma dramá-
teatro que inclui as ações e expressões tica é inerente a ela mesma.”

1 A saber: a parataxe como des-hierarquização dos recursos teatrais (ator, luz, som, cenografia, etc); a simultaneidade dos recur-
sos teatrais; a superabundância dos elementos cênicos; a musicalização (música valorizada como elemento cênico); cenografia
como dramaturgia visual; e a corporeidade, ou seja, o corpo não como portador de sentido, mas como substância física e ges-
ticulação. (Lehmann, 2007).

Soares // A Estética Relacional e o Espectador como Participante do Fenômeno Teatral


cena n. 19

O drama, enquanto forma, não foi supera- des e sentidos, foi provocado a transformar
do pelo teatro na contemporaneidade, visto essas qualidades e sentidos em gestos, ou
que percebemos expressões da permanên- seja, movimentos plásticos. Nesse momento, o
cia de questionamentos, sobretudo, referente processo criativo do performer expressa uma
ao aspecto relacional da obra teatral. O que relação da interioridade à exterioridade, cons-
Lehmann identifica como “teatro pós-dramá- truindo uma ação que estabelece uma relação
tico” são teatralidades que eclodem críticas intersubjetiva com a percepção do espectador
à forma dramática, sem sua completa nega- e sua experiência de pensamento. É evidente
ção. Estas expressões se manifestam como nas encenações que o espectador da dança-
alternativas discursivas, cuja ascensão está teatro de Pina Bausch não pode se perder no
atrelada às narrativas de legitimação com de- envolvimento dos sentimentos-gestos que os
terminado vínculo social da obra teatral. Nes- performers expressam.
se sentido, situo o trabalho dos encenadores Na obra 1980, a repetição por vezes exaus-
José Celso Martinez Correa, Pina Bausch e tiva coloca o próprio gesto em suspensão, de-
Angélica Lidell como expressões que situam finindo uma determinada temporalidade para
essa “crise das narrativas” (Lyotard, 1989) no apreensão crítica do espectador. Essa sus-
contexto das artes cênicas. pensão parece se aproximar da chamada “éti-
Em Pina Bausch, especialmente no espe- ca do signo”, conforme argumentada por Jean
táculo 1980, as relações da sua dança-teatro Galard (2008). Antes que a gesticulação, como
com a crítica à forma dramática como estrutu- elemento da corporeidade dos bailarinos de
ra narrativa ficam evidentes. A construção das Pina Bausch, resuma-se a uma mera exterio-
cenas se destaca como o resultado de um in- rização de natureza íntima ou manifestação
ventário, um levantamento detalhado de ges- de um ser interior, a encenadora organiza as
tos corporais que constroem a corporeidade cenas tal como “[...] uma forma produtora de
de cada ator/bailarino. Os corpos dos bailari- sentido, uma configuração significante que é
nos nas coreografias de Pina Bausch expres- supérfluo referir a uma origem substancial”
sam qualidades próprias que deixam incertos (Galard, 2008. p.46). Os gestos cotidianos,
os limites entre a dança e o teatro. O proces- encenados teatralmente, podem ser identifica-
so criativo de Pina Bausch, evidente na obra dos pelo espectador, que lhe atribue sentidos
1980, baseia-se na experiência de rememorar familiares. Contudo, observa-se que durante o
sentimentos e manifestá-los em gestos. Esse espetáculo, quando a repetição de gestos sur-
procedimento revela também uma indagação ge como aparente “reprodução” de cenas do
mais arraigada à personalidade e ao incons- cotidiano, um bailarino começa a servir uma
ciente do bailarino, um trabalho de interiorida- bebida (supõe-se que chá ou café) aos es-
de do performer com o objetivo de expressar pectadores, de maneira a acusar criticamente
algo que foi cultivado, construído e que de al- uma contemplação passiva. Com aproximada-
guma maneira constitui uma personalidade. mente uma hora de espetáculo, executando
Trata-se de um processo poético das sensa- repetidamente uma partitura de movimentos
ções, isso quer dizer, que o performer, forma- gestuais, os bailarinos deslocam a cena do
do por experiências que lhe geraram qualida- palco para a plateia de maneira que, ao andar

Soares // A Estética Relacional e o Espectador como Participante do Fenômeno Teatral


cena n. 19

em fila indiana, realizam compassadamente transcendendo a cena para um estado no qual


os gestos em sincronia com a música, inte- as dicotomias cotidianas estão suspensas, tal
grando sua ação física aos olhares e às intera- como argumenta Gilberto Icle (2010, p.81).
ções dos espectadores. Nesse momento, tan- Outro aspecto na perspectiva da cena teatral
to espectadores como atores integram a cena como acontecimento, concerne à aproxima-
teatral. ção da atuação dos atores a uma certa perfor-
Diferente das encenações de Pina Bausch, mance quando do “[...] uso do corpo humano
José Celso Martinez Correa realiza sua ence- como sujeito e força motriz do ritual” (Glus-
nação de maneira a evidenciar o ato cênico berg, 2013, p.11). Esse aspecto da relação ar-
como acontecimento ritual, não obstante o te-vida é evidente nas três obras teatrais que
encenador inicia e termina seus espetáculos abordamos nesse trabalho.
com músicas que remetem a um estado subli- Há algo em comum entre os atores de 1980
me religioso. No Teat®o Oficina Uzina Uzona, de Pina Baush, de Walmor e Cacilda 64 – Ro-
o coletivo se torna um sujeito teatral. Nele, in- bogolpe de José Celso Martinez Correa e a
tegram-se artistas que executam papéis distin- atuação de Angelica Lidell em Yo no soy bo-
tos e colaborativos no processo criativo: o en- nita, apresentada na Mostra Internacional de
cenador, o dramaturgo, os atores e as atrizes, Teatro São Paulo, em março de 2014. Na en-
os músicos, o videomaker, o iluminador, o so- cenação de 1980, uma bailarina “dança” a par-
noplasta e os demais técnicos da produção, os tir da movimentação de um regador elétrico,
quais formam um coletivo de artistas teatrais. instalado e ligado sobre o palco. Ou ainda, em
A encenação do espetáculo Walmor e Cacilda outro momento, uma bailarina coloca objetos
64 – Robogolpe, apresentado na sede da cia em combustão entre os dedos do pé de outro
de teatro em maio e junho de 2014, é iniciado bailarino, de maneira que ele consiga apagá
como um ritual. A forma narrativa dramática é -los no momento em que estes começam a
usada como recurso para o humor, enquanto queimá-lo. Ainda assim, a ação hiper-realista
surgem em cena formas de um teatro contem- de Angélica Lidell de se cortar em cena e se
porâneo que se apropria da projeção audiovi- alimentar do próprio sangue retoma, de forma
sual de cenas e utiliza da iluminação execu- mais evidente, essa estreita relação arte-vida.
tada em sincronia aos gestos corporais e à Criada a partir de uma experiência de abuso
musicalização, algo próximo ao que artistas sexual sofrido por Angélica Lidell, a perfor-
conceituais do Fluxus tratavam como interme- mance Yo no soy bonita apresenta uma crí-
dia. O espectador é constantemente interroga- tica à sociedade patriarcal e aos papéis que
do e, em alguns momentos, é trazido ao centro são condicionados às mulheres. Nessa perfor-
da cena, ainda que à revelia. mance, a atriz executa breves e intensos atos,
No acontecimento cênico realizado pelo Te- alguns que demonstram a mutilação do corpo,
at®o Oficina Uzina Uzona, o espectador não reelaborando poeticamente a violência sexu-
pode ficar em inércia contemplativa. Ele é con- al. Sua ação física se manifesta para além de
vocado para ser um participante da cena e, uma ideia de ficção. A criação cênica deixa de
nesse sentido, o ator trabalha como um xamã,

Soares // A Estética Relacional e o Espectador como Participante do Fenômeno Teatral


cena n. 19

ser fantasiosa e passa a agir com hiper-re- interatividade entre o artista, a encenação e o
alismo, que pode despertar o incômodo do espectador. Nesse sentido, o teatro, na esté-
respectador quando da descoberta que o ato tica relacional, revela-se como um campo de
violento é real e doloroso; aqui percebemos a tensões entre palco e o espectador.
experiência da performer na produção de um Tal postura pode ser entendida sob a pers-
sentido que pode vir a ser despertado no es- pectiva da relação entre estética e política,
pectador. como propõe Jacques Rancière. Assim, esse
É difícil dar uma definição à performance, teatro de formas relacionais, com interven-
visto que isso nega sua própria ideia de lin- ções dos artistas a partir das contaminações
guagem artística. Considerando as observa- da performance, reagindo e criticando a forma
ções de Roselee Goldberg (2006), nenhuma dramática, acende também essas tensões en-
outra forma de expressão artística tem um tre o palco e os seus espectadores. “A política
programa tão ilimitado como a performance. aí se representa como relação entre a cena e
Seu caráter “maleável” e “indeterminado”, com a sala, significação do corpo do ator, jogos de
o objetivo de colocar a arte em contato direto proximidade ou distância [em relação ao es-
com o público, foi algo significativo no trabalho pectador]” (Rancière, 2009, p.24).
dos artistas conceituais no âmbito das artes No teatro, as relações de interatividade e
visuais, embora estivesse presente bem an- intersubjetividade artista/encenação/especta-
tes nos trabalhos dos dadaístas e surrealistas. dor se assumem como princípios que dão for-
Deve-se considerar que as ações realizadas ma à arte teatral, reacendendo o ato cênico
durante encenações teatrais, ao menos aque- como acontecimento ritual e, dessa maneira,
las que se aproximam ou se contaminam com reconstituindo uma comunidade emancipada,
a linguagem da performance, revelam alguns no sentido que Jacques Rancière emprega a
aspectos que não são percebidos na forma expressão:
dramática. São ações empreendidas como
Os artistas, assim como os pesquisa-
maneira de dar vida a ideias formais e con- dores, constroem a cena onde a mani-
ceituais nas quais se baseia a criação cênica, festação e o efeito de suas competên-
mas que encontraram limitações formais no cias são expostos incertos nos termos
do idioma novo que traduz uma nova
fazer teatral mais ligado à tradição da repre- aventura intelectual. O efeito do idioma
sentação. São, portanto, provocações e desa- não pode ser antecipado. Ele solicita
dos espectadores que jogam o papel
fios postos às artes cênicas. E, nesse sentido, de intérpretes ativos que elaborem sua
tanto na performance art quanto em determi- própria tradução, para se apropriar da
“história” fazendo sua própria história.
nadas ações realizadas em encenações tea- Uma comunidade emancipada é uma
trais, o performer tem uma variedade infinita comunidade de contadores e de tradu-
tores” (Rancière, 2008, p. 28-29).
de como realizar seu programa ao longo do
seu processo criativo e da própria execução
Realizamos uma breve e ainda incompleta
da ação. E, dessa maneira, os artistas reafir-
reflexão, articulando aspectos da estética rela-
mam que a ideia é mais importante que o pro-
cional de Nicholas Bourriaud a um fenômeno
duto, e que esta ideia pode ser entendida a
percebido nas artes cênicas. Pretendo
partir de uma relação de intersubjetividade e

Soares // A Estética Relacional e o Espectador como Participante do Fenômeno Teatral


cena n. 19

desenvolver essa reflexão de maneira mais co. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
densa, observando outras questões que cer-
cam o mesmo fenômeno e que não foram ______. “Teatro pós-dramático e teatro políti-
abordadas, tal como o work in progress na en- co”. In. FERNANDES, Silvia; GUINSBURG, J.
cenação contemporânea. Certamente, se ten- (orgs.). O pós-dramático: um conceito opera-
tasse aprofundar o tema nesse ensaio, preci- tivo?. São Paulo: Perspectiva, 2010. pp. 233-
254.
saria ter uma reflexão mais longa e profunda.
Neste caso, preferimos cercar o fenômeno da
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-
intersubjetividade e da interatividade de forma
moderna. Lisboa: Gradiva, 1989.
introdutória.
MEYERHOLD, Vsévolod. O teatro de
Referências Meyerhold. Tradução, apresentação e orga-
nização de Aldomar Conrado. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1969.
ARTAUD, Antonin. Oeuvres. Paris: Gallimard,
2010.
RANCIÈRE, Jacques. Le spectateur émanci-
pé. Paris: La Fabrique Éditions, 2008.
BOURRIAUD, Nicholas. Estética relacional.
São Paulo: Martins Fontes, 2009.
______. A partilha do sensível. São Paulo:
EXO Experimental org.; Editora 34, 2009.
FERNANDES, Silvia; GUINSBURG, J. (orgs.).
O pós-dramático: um conceito operativo?.
SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno
São Paulo: Perspectiva, 2010.
(1880-1905). São Paulo: Cosac Naify,
2011.
GALARD, Jean. A beleza do gesto: uma es-
tética das condutas. São Paulo: Edusp, 2008.
______. Teoria do drama burguês [século
XVIII]. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
GLUSBERG, Jorge. A arte da performance.
São Paulo: Perspectiva, 2013.

GOLDBERG, Roselee. A arte da performance: Recebido em 30/11/2014


do futurismo ao presente. São Paulo: Martins Aprovado em 25/05/2016
Fontes, 2006.

HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. São


Paulo: Perspectiva, 2012.

ICLE, Gilberto. O ator como um xamã: confi-


gurações da consciência no sujeito extracoti-
diano. São Paulo: Perspectiva, 2010.

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramáti-

Soares // A Estética Relacional e o Espectador como Participante do Fenômeno Teatral

Você também pode gostar