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O Retrato de Uma Vida
O Retrato de Uma Vida
Mar Português
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Fernando Pessoa
O Retrato de Uma Vida 2
Prefácio
Meu nome é Antônio, meu pai e meu bisavô também se chamavam Antônio. Tenho
um filho e um neto que também se chamam Antônio.
Praticamente uma ópera em 5 atos, este conto baseado na vida real, será narrado na
voz do meu bisavô Antônio Alves Corrêa, filho de lavradores pobres, naturais dos
Açores. Os documentos e registros históricos que serviram de base para este relato
podem ser encontrados na Coletânea “A Nossa Família”.
Sumário
Prefácio ......................................................................................................................................... 2
Prólogo .......................................................................................................................................... 5
Ato I – Aventura............................................................................................................................ 9
Desilusão... .............................................................................................................................. 17
Sucesso!................................................................................................................................... 18
Viagem para a Europa... .......................................................................................................... 25
A Promessa .............................................................................................................................. 28
Família & Negócios... ............................................................................................................... 30
Novos Horizontes .................................................................................................................... 33
Hotel Cruzeiro do Sul............................................................................................................... 37
Ato II – Tempos de Bonança ....................................................................................................... 39
Ato III - Tragédias ........................................................................................................................ 42
Ato IV - A vida continua .............................................................................................................. 46
Ato V – Fecham os panos ........................................................................................................... 54
Epílogo ......................................................................................................................................... 57
4 Antônio Carlos L. A. Corrêa
Este conto está concorrendo ao Prêmio UCCLA Literário 2018 UCCLA - Novos
Talentos, Novas Obras em Língua Portuguesa – 3ª edição.
O Prémio Literário UCCLA - Novos Talentos, Novas Obras em Língua Portuguesa tem
como objetivo estimular a produção de obras literárias, nos domínios da prosa de
ficção (romance, novela e conto) e da poesia, em língua portuguesa, por novos
talentos escritores. Trata-se de uma iniciativa conjunta da Editora A Bela e o
Monstro, da UCCLA – União das Cidades Capitais de Lingua Portugueza e
Movimento 2014, que conta com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa.
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Prólogo
José Alvares Corrêa Bertão e Sophia Gertrudes Cândida, se casaram na igreja de São
Jorge, Freguesia das Doze Ribeiras, na Ilha Terceira - Açores e tiveram 7 filhos: José,
o mais velho, nasceu em 1861, depois nasceu minha irmã Rosa Balbina. Fui o terceiro
filho, nasci em 22 de janeiro de 1864 e fui batizado na freguesia de Doze Ribeiras,
pelo vigário João Loureiro da Rocha. Depois nasceram meus irmãos Francisco em 1867
e Maria em 1870.
Desde muito cedo comecei a trabalhar com meus pais e meu irmão José na lavoura e
na criação de algumas cabras. Também fazíamos a ordenha de duas vacas de um
vizinho que nos dava, como paga pelo trabalho, parte do leite que tirávamos. Minha
mãe alimentava os pequenos e fazia queijos e coalhada deliciosos com o leite que
trazíamos para casa.
Acordávamos muito cedo e logo depois do café da manhã reforçado, preparado por
minha mãe no fogão a lenha, íamos para a lavoura, rotina que só se alterava quando
o mau tempo nos obrigava a ficar em casa ou aos domingos quando todos se
aprontavam para ir à missa. Mãos calejadas do arado e da enxada, uma vida difícil, ali
não tínhamos futuro, nem mesmo à escola podíamos ir. A escola era distante e era
preciso ajudar aos meus pais na lavoura de milho e na colheita de laranjas, para pagar
aos senhorios o arrendamento das terras que cultivávamos. Cada um fazia a sua parte,
minha irmã Rosa ajudava minha mãe na cozinha, aprendia os segredos da culinária e
também olhava os menores quando minha mãe ia lavar as roupas.
Meus pais eram legalmente primos, mas minha mãe tinha sido adotada pelos tios do
meu pai quando “apanharam uma menina exposta na Roda no Convento da Freguesia
de São Pedro”, como ficou anotado no registro dela e como era o processo de adoção
naquela época.
Um domingo, depois da missa meu pai chamou os filhos homens, eu e meus irmãos
José e Francisco, nos levando até a cidade onde estava acontecendo uma “tourada a
corda”, enquanto minhas irmãs Rosa e Maria ficaram em casa fazendo companhia para
minha mãe.
Numa prosa com alguns rapazinhos que estavam ali assistindo a tourada, eu soube
que o “Armazém de Jacob Abohbot”, que ficava na rua de São João, tinha publicado
no jornal “A Independencia – Folha Açoriana” um anúncio para contratar “um menino
de 14 anos” para ser Caixeiro naquele estabelecimento.
No dia seguinte, muito animado, vesti a melhor roupa que tinha – o traje da missa - e
dirigi-me ao centro da cidade para me candidatar à vaga.
Fiquei encantado ao entrar no Armazém. Ali podia ver as estantes com bebidas finas,
vinhos, conhaques e licores importados. Também eram bem abastecidas as prateleiras
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com enlatados, cafés, chás, sopas em pacotes e barricas com cereais que eram
vendidos “a granel”, biscoitos e bolachas vendidas “a retalho” e uma grande variedade
de utensílios, panelas e frigideiras.
Fui entrevistado pessoalmente pelo “Seu Jacob”. Rico comerciante judeu, filho de uma
senhora inglesa e do “seu Mimon Abohnot” que tinha vindo do Marrocos e cujo nome
ficou conhecido, na Ilha Terceira como o “Rabino e Deão dos Judeus”. Depois de uma
sabatina, “seu Jacob” disse que eu era ‘um menino bem esperto’ e que ficou
impressionado com minha facilidade para cálculos aritméticos, apesar de não ter
aprendido a ler nem escrever. Contudo, alegando que eu só tinha 12 anos, preferiu
admitir como caixeiro o Francisco Ernesto, sobrinho da diretora do “Lyceu de Angra do
Heroísmo”.
Desanimado para voltar para casa fiquei caminhando pelas ruas da cidade, chutando
pedras no caminho para desanuviar um pouco. Descendo a rua de São João passei
pela Igreja da Misericórdia e acabei chegando ao porto de Angra do Heroísmo.
Observei uma grande movimentação de pessoas embarcando no vapor “D. Maria” que
estava zarpando para Lisboa e para a cidade do Porto.
Fiquei curioso, aproximei-me daquela multidão e logo estava a conversar com alguns
trabalhadores que tinham terminado a faina de carregar com trigo e carne o paquete.
Soube então que a vida em Portugal estava muito difícil e que muitos portugueses
preferiam rumar em direção à nova nação livre e independente – o Brasil – que, além
das suas riquezas e produções, continuava a partilhar com nossa terra de origem a
língua, a religião e os costumes, tornando o território brasileiro o “El Dorado”
predominante para acolhimento dos meus patrícios.
Fui para casa matutando e conversei horas com meu irmão José que já tinha 15 anos.
Narrei o que tinha acontecido na entrevista de emprego e comentei que estava
disposto a embarcar e tentar a sorte em outro lugar.
Ele tentou dissuadir-me da ideia, disse que seria muito perigoso e difícil tentar a vida
no exterior. Também comentou que nossos pais não permitiriam e arrematou dizendo
que eu deveria esperar um tempo. Quando me tornasse adulto decidiria.
Não desisti, nas semanas e meses seguintes a ideia continuava martelando em minha
cabeça.
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Ato I – Aventura.
No início da primavera, eu, meus pais e meus irmãos (José, Rosa, Francisco e Maria
que tinha apenas 5 anos), fomos à cidade para assistir a celebração da “Festa do
Divino”. Do alto do Forte de São Sebastião vimos chegando ao porto de Angra do
Heroísmo um belo paquete, com 80 metros de comprimento, equipado com 2 mastros
aparelhados (com pano redondo e latino) e uma máquina a vapor de 140 CV que
impulsionava uma hélice. O vapor era o “LIDADOR”, construído na Inglaterra pelo
estaleiro Walker Shipyard, em 1873.
Minha mãe estava indisposta, soube depois que estava grávida do sexto filho, e pediu
para voltarmos para casa. Fiquei desapontado, mas no caminho de casa a cabeça
continuava fervilhando com a ideia fixa de tentar a sorte em outras paragens.
Enchi-me de coragem e pedi permissão aos meus pais para embarcar no navio que
tínhamos visto no porto e que partiria para o Brasil. Foi muito difícil convence-los,
acharam que era uma loucura minha, não tinham dinheiro para a passagem, era muito
perigoso, eu estaria sozinho em outro continente, um mundo desconhecido, etc.
Acabaram cedendo com a minha promessa de que daria um jeito de voltar para casa
se as coisas saíssem mal. Meu pai ficou emburrado, minhas irmãs assustadas, minha
mãe chorou muito e acabou me dando alguns trocados que tinha guardado para
qualquer emergência. Era muito pouco e só aceitei a metade.
No oitavo dia de viagem, indo ao banheiro no convés da 3ª classe, fui descoberto pela
tripulação e levado até a cabine de comando onde, arguido pelo comandante do navio –
capitão Augusto Borges Cabral, contei as dificuldades que minha família estava passando na
terra natal.
O Capitão Augusto passou-me uma reprimenda, queria saber como eu consegui embarcar, me
deixou bem assustado e ao final (acho que ele simpatizou comigo) disse que eu poderia fazer
alguns trabalhos a bordo em troca de alimentação, mas que seria embarcado de volta
quando o navio chegasse ao destino. Trabalhei duro, na faxina a bordo e na
alimentação da caldeira, enquanto outros rapazes da minha idade ficavam brincando
no convés. Eu estava habituado ao trabalho pesado, dediquei-me bastante aos
afazeres que me foram confiados, precisava retribuir os alimentos que recebia. E torcia
para o capitão mudar de ideia quanto a me deportar.
No dia seguinte o barco estava entrando na Baía, que lugar lindo! Todos os passageiros
(e eu também) debruçados na amurada, observavam maravilhados a beleza do lugar,
o dia estava amanhecendo.
O barco atracou na Praça 28 de Setembro (depois o nome mudou para Praça Mauá),
no final de março de 1876. Os passageiros se movimentavam organizando seus
pertences para desembarcar.
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Passei pela imigração sem problemas, meu nome estava no rol de passageiros.
Minha vontade era sair para conhecer a cidade, conversar com os habitantes, explorar
as redondezas.
Mas, sabia que precisava de dinheiro para me manter e vendo os preparativos para
descarga do navio percebi uma oportunidade de ganhar alguns trocados. Fui falar com
o encarregado pela descarga. A vida dura na lavoura me deu um físico robusto e logo
estava começando a trabalhar na estiva.
Era grande o movimento no Porto! Neste mesmo dia estava chegando ao Rio de
Janeiro o paquete inglês Magellan, vindo de Liverpool e estava com partida prevista
para o dia seguinte para a Argentina o paquete Cordillera, da mesma companhia
inglesa.
Participei da faina de carga e descarga dos três navios e ao final do dia fui pago pela
labuta. Fiquei maravilhado ao receber o primeiro pagamento em troca do meu
trabalho, embora um pouco inconformado por ter recebido apenas a metade do
pagamento dados aos outros estivadores...
satisfeito por ter alguns réis na algibeira e me sentia só. Estava muito longe de casa e
da minha família.
Tinha um armazém ali perto e fui lá para comprar alguns itens de higiene e tentar
saber onde conseguiria um lugar para me alojar. Puxei conversa com o dono do
armazém, “seu” Manuel, que também era português, relatei a minha odisseia e ele
disse que estava mesmo precisando de um rapaz para fazer serviços de entrega e que
por alguns dias eu poderia passar as noites em um pequeno depósito de caixas vazias
nos fundos do armazém. A entrada era ao lado do armazém, o lugar era um pouco
escuro, muito quente, sem ventilação e, mesmo sendo final da primavera, estava um
calor escaldante. Mas pelo menos era um teto. Ali fiquei por uma semana, não queria
abusar da generosidade do patrão.
A maior parte das entregas que seu Manuel mandava fazer, eram gêneros para
abastecer os navios e eu fazia puxando um carrinho de mão, trabalho normalmente
feito por escravos negros ou pelos imigrantes recém desembarcados. Chamavam-nos
de “burrinho sem rabo”. Não me ofendia com isso, o carrinho facilitava o transporte e
eu era pago por cada entrega feita. Com o pagamento que recebia pude alugar um
quartinho próximo do armazém, me manter e juntar algum dinheiro.
Fiquei nessa labuta por quase dois anos. Conheci muitas pessoas e fiz alguns poucos
amigos, como o Narciso Ferreira e depois o Manuel Barboza apresentado pelo Ferreira.
Seu Manuel também me permitiu usar o endereço do armazém para receber eventuais
correspondências, então tratei de mandar o endereço para a minha família nos Açores.
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Era fácil saber quem viajava de primeira classe e os demais, pelos trajes que vestiam
e pelas malas que carregavam. Prometi a mim mesmo que um dia eu embarcaria
vestindo um daqueles ternos elegantes...
Eu sentia falta de saber ler e escrever, queria saber notícias e também relatar minhas
aventuras e desventuras para meus pais e meus irmãos. Então precisava pedir ao meu
amigo João Nunes que escrevesse cartas para minha família na Ilha Terceira. Lá eles
também não sabiam escrever, tinham que pedir ao padre José Mendes Álvares que
lesse minhas cartas e as respondesse. E assim, duas ou três vezes ao ano
conseguíamos trocar notícias e matar um pouco as saudades! O endereço do armazém
ficou sendo meu endereço oficial.
Dois anos depois de chegar, soube pelos estivadores que trabalhavam no Cais do
Porto, que o LIDADOR naufragou na Ilha Terceira.
Ele foi surpreendido por um forte vendaval, o “vento carpinteiro” como era chamado
nos Açores, sendo arremessado contra uns recifes em frente ao forte de São Sebastião.
Isso ocasionou um grande rombo em seu casco de ferro, inundando a casa de
máquinas e provocando a explosão da caldeira. Estavam bem perto da costa acho que
o naufrágio não causou vítimas fatais, ainda bem! Fiquei entristecido ao saber do
acidente e ao mesmo tempo aliviado ao saber que o capitão Augusto e sua tripulação
sobreviveram.
Recebi tempos depois uma carta da minha família contando alguns detalhes do
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Nessa carta fiquei sabendo que tinha mais um irmão. Nasceu em 1879 o sétimo filho
dos meus pais, a quem deram o nome de Manoel.
Meus pais e meus irmãos estavam me esperando no porto e ficamos muito felizes com
o reencontro. Foi uma forte emoção rever a cidade de onde saíra 5 anos atrás, bem
como a casa humilde onde passei toda a minha infância. Quase nada tinha mudado,
apenas a lavoura era bem menor. Emocionante também rever meus pais e meus
irmãos, os mais novos João e Manoel nasceram depois da minha partida e ainda não
os conhecia.
Nos finais de tarde nos reuníamos no alpendre, meus irmãos queriam saber como era
a vida no Brasil, se tinha índios e floresta, se eu conhecera o Imperador, um monte
de coisas mais.
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Não fiquei muito tempo nos Açores, estava aflito para voltar e tentar ser proprietário
de um negócio no Brasil... Comentei com meus irmãos José que já estava com 20 anos
e Francisco que tinha 14 sobre as possibilidades que poderíamos ter no novo
continente, falei para eles que pretendia adquirir um estabelecimento e que eles
poderiam me ajudar na administração, mas foi em vão.
De volta ao Rio de Janeiro, aos 17 anos consegui realizar meu sonho de me tornar um
comerciante, adquirindo com minhas economias, por uma quantia irrisória um
botequim próximo as Docas da Alfândega e do Mercado. Meu amigo João Nunes me
ajudou na papelada dessa transação. Também me ajudou a tirar a Carta de Identidade
de Estrangeiro.
Este boteco era frequentado por estivadores, temidos por sua força e brutalidade.
Estava precisando de reparos, mas era um bom começo e a localização muito boa. Era
grande o movimento de pessoas naquela área.
Ao final da jornada de trabalho e nos intervalos das chegadas dos navios os estivadores
iam para o botequim, onde se embebedavam e iniciavam constantes brigas e
badernas. Era comum a prática do “fiado”, muitas vezes as despesas ficavam no
“pendura” e não eram pagas. Não era grande o movimento e eu tinha que ser
cuidadoso. A receita era pequena e era necessário repor estoques, então precisava ser
muito comedido nas compras que, em grande parte eram pagas contra a entrega, eu
não conseguira ainda crédito na praça...
Certa feita um marinheiro irlandês corpulento, que tinha exagerado nas doses de
aguardente começou a dar alteração e quebrar garrafas, fui forçado a elevar a voz
mandando ele se comportar. O gajo não ficou satisfeito com a reprimenda e veio até
onde eu estava para tirar satisfações. Começou, de dedo em riste, a me insultar e o
grupo que estava com ele ficou rindo da cena. Mandei que ele pagasse a conta e fosse
embora e ele acabou me desfechando um tapa na cara! Perdi a cabeça, saí de traz do
balcão e desfechei um murro certeiro no nariz do baderneiro que se estatelou
sangrando no chão! Um silêncio incomum tomou conta do lugar, os amigos dele
perceberam que eu não estava de brincadeiras e a partir daquele dia passei a ser mais
respeitado...
No dia seguinte, um senhor muito bem vestido, que se apresentou como o pai do
rapaz, veio ao meu estabelecimento. O visitante informou que ficara sabendo do
ocorrido na véspera e agradeceu pela proteção dada ao seu filho. Como agradecimento
e sendo o chefe do escritório de administração do cais do porto, prometeu que
descontaria direto em folha de pagamento todos os gastos e prejuízos que os
estivadores e demais funcionários viessem a causar ao estabelecimento, bastando
apenas que fosse notificado dos fatos, nomes e valores. Após adotar esta prática
o botequim passou a dar lucro, acabaram-se os “penduras” não pagos!
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Desilusão...
Trabalhei ainda por mais uns anos no botequim, já conhecia muita gente. Fiquei
conhecido na região, pagava as contas sempre em dia, passei a ter crédito e boa
reputação com os fornecedores. Finalmente as coisas estavam indo bem e já tinha até
uma namorada, a Rosa Theodora Borges. Uma moça simples, tímida e trabalhadeira,
de origem portuguesa, que conheci numa quermesse, após a missa dominical. Rosa
fazia a limpeza e também ajudava ao Jorge, o cozinheiro do botequim, que eu tinha
contratado quando passei a servir almoço para os fregueses.
Ainda estávamos em lua de mel, Rosa estava com uma infecção dentária que se
generalizou e ela acabou falecendo, o médico que chamamos nada pôde fazer. Fiquei
desolado, tinha planos de voltar a Ilha Terceira com minha mulher para que ela
conhecesse minha família e sua morte me deixou muito abatido. Eu nunca tinha
passado por essa dolorosa experiência de sepultar um familiar...
Meu irmão José e sua mulher Maria do Egypto tinham tido outros três filhos, um
menino a quem deram o nome de Francisco, uma menina chamada de Rosa e um
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menino mais novo a quem deram o nome de José, o mesmo nome do meu irmão e do
meu pai também.
Era o fim do império, um grupo de militares, liderados pelo marechal Manuel Deodoro
da Fonseca, destituiu o imperador e assumiu o poder no país. Tinha sido proclamada
a República do Brasil, no Campo de Santana, onde eu costumava passear com a Rosa,
e que passou a se chamar Praça da Aclamação. A cidade, capital da recém-fundada
República, era palco de reformas que modificavam os ares provincianos,
transformando-se em uma metrópole moderna.
A chegada da iluminação elétrica trazida pela “Light And Power Company Ltd.”,
empresa canadense, que passou a prestar os serviços de geração e distribuição de
energia elétrica além do fornecimento de gás, encantou a população, deixando em
desuso a iluminação com lampiões a querosene e azeite de peixe.
Fiquei de luto por mais de um ano, raramente saia do botequim e trabalhava de manhã
até a noite. Solitário e desiludido, decidi vender o botequim e pensei em voltar para
os Açores, para perto da minha família, estava longe deles por mais de 10 anos. Pedi
ao amigo Manoel Barboza que era contador e trabalhava em uma empresa norte-
americana a Dun & Bradstreet, especializada em aquisição de empresas, para me
ajudar na venda do estabelecimento.
Sucesso!
Fiquei muito surpreso com o resultado da avaliação que a empresa do Manuel fizera
do meu botequim que, verdade seja dita, agora tinha melhores instalações, bom
conceito com os fornecedores, boa rentabilidade, ótima localização e uma clientela
mais comportada, segundo o laudo do avaliador da Dun & Bradstreet. Mandei publicar
anúncios no “Correio da Manhã” e em pouco tempo recebi ótimas propostas para o
estabelecimento, consegui vender o botequim com uma excelente margem de lucro.
Então era isso! Comprar um estabelecimento comercial por um preço baixo, sanear os
problemas, fazer melhorias e ter um bom ganho na venda! Eu tinha encontrado “o ovo
de Colombo”. Fiquei entusiasmado e decidi adiar por um tempo a volta em definitivo
à terra natal.
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Com o dinheiro recebido na venda abri uma conta na “Caixa de Amortização” que tinha
inaugurado recentemente um prédio, na esquina da Rua Visconde de Inhaúma, antiga
Rua dos Pescadores, com a Avenida Central que estava em construção.
Decidi tirar umas férias, comprei passagens para rever minha família. Na bagagem
levava presentes para minha mãe, meus irmãos e meus sobrinhos. Meu pai já havia
falecido naquela época.
Não consegui bilhetes direto para a Terceira então embarquei para Funchal e dali faria
o transbordo para a Terceira.
Chegando a Funchal me hospedei por dois dias em uma pensão na rua da Praia,
pertinho do porto. Fiquei maravilhado com a Ilha da Madeira, que lugar bonito! Bonitas
construções, ruas bem calçadas, arborizadas e bem movimentadas.
Era um domingo e fui assistir a missa na Catedral da Sé e mais tarde embarquei para
a Ilha Terceira no vapor S. Thomé, conduzido pelo comandante Carlos Pereira Vidinha.
Soube que estava a venda o “Armazém de Fazendas e Modas” do Bento José de Mattos
Abreu & Filhos, bem localizado na rua da Sé número 20. Visitei o estabelecimento,
conversei com o Joaquim Abreu, um dos filhos, cheguei a discutir com ele valores.
20 Antônio Carlos L. A. Corrêa
O prédio precisava de alguma reforma, o estoque era bom e o aluguel um pouco caro.
Mas, apesar de estar fazendo uma liquidação oferecendo descontos de 40% nas
mercadorias o movimento era muito fraco, o dinheiro era muito escasso nos Açores.
Cheguei então à conclusão de que meu futuro seria mesmo no Rio de Janeiro.
A viagem me fez bem, aplacou a dor do luto, decidi voltar para o Brasil no final da
primavera de 1893. Comprei o bilhete de volta no vapor alemão Lissabon, da
companhia Hamburg-Sudamerikanische.
Antes de partir fui convidado por José e Maria do Egypto para ser padrinho de crisma
do meu sobrinho Francisco, o segundo filho deles e a cerimônia foi na Igreja da Sé.
Enquanto nos despedíamos mais uma vez falei para meus irmãos virem para o Brasil.
Desembarquei no Porto do Rio de Janeiro em 8 de julho de 1893, me hospedei
provisoriamente no Hotel Cruzeiro do Sul que ficava próximo à estação ferroviária e a
Praça da República comecei a visitar estabelecimentos que estivessem à venda.
Precisava também encontrar uma casa para morar e percorri várias regiões buscando
um imóvel para moradia. Cheguei a ir a um bairro chamado Copacabana. Não gostei,
o lugar era de difícil acesso pelo morro, somente existiam na localidade o Forte Reduto
do Leme e a pequena Igreja de Nossa Senhora de Copacabana e os terrenos naquele
sítio eram muito arenosos, não prestariam para erguer uma residência! Achei mais
sensato morar no Engenho Velho ou Aldeia Campista e aluguei uma pequena casa no
início da rua Santa Luiza, uma área nobre da cidade, perto da Quinta da Boa Vista que
tinha sido a residência imperial.
rua São Francisco Xavier 83. Também comprei uma Leiteria que ficava na mesma rua
em que eu morava, a rua Santa Luiza. Nós tínhamos então animais e carroças para
transporte de leite e também de cargas e mudanças, mas eu queria mesmo era fazer
transporte de passageiros e ter carros para casamentos e outras solenidades. Tratei
de vender quase todas as carroças a tração humana destinadas a transporte,
mantendo apenas algumas usadas na venda e distribuição de leite nas redondezas e
outras que eram alugadas para compradores de garrafas e metais (cobre, chumbo e
latão) à domicílio.
Ali perto estava sendo demolida a Igreja de São Joaquim, ao lado do Colégio Pedro II,
para abrir espaço para uma nova avenida, a Rua Larga, que depois veio a se chamar
avenida Marechal Floriano.
Quando os carros chegaram, foi um sucesso! Nós tínhamos os animais para a tração,
treinamos os cocheiros para as novas atividades, alfaiates e costureiras foram
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contratados para preparar uniformes para toda a equipe, arreios e forração novos
foram comprados.
Eram muitos os pedidos de contratações para batizados, casamentos, etc. Até para
enterros vinham solicitações, o que exigiu que preparássemos “victorias” próprias para
funerais. Eu fazia questão de ter sempre “coupés” e “cabriolés” em frente à estação
D. Pedro II (Central do Brasil) para que os recém-chegados tivessem facilidade de
locomoção, sem abandonar o transporte de cargas e o serviço de fretes e mudanças.
Os negócios estavam a pleno vapor, a Cocheira tinha até anúncio nos jornais e
almanaques comerciais. A receita do empreendimento estava superando as
expectativas, a cada dia contratávamos mais empregados. Abandonei definitivamente
a ideia de deixar o Brasil. Eu tinha feito boas amizades, mas ainda sentia falta da
família, me sentia solitário.
Entusiasmado com o sucesso, voltei a insistir com meus irmãos para que viessem para
o Brasil, queria que eles participassem dos negócios e pudessem ter uma vida mais
confortável.
José, Rosa e Maria declinaram do convite e não quiseram vir. José e sua mulher Maria
O Retrato de Uma Vida 23
do Egypto tinham tido mais dois filhos a quem chamaram de Deolinda e Antônio (acho
que em minha homenagem!). A família dele aumentando, já tinham 6 filhos, minha
irmã Rosa também estava casada e tinha 3 filhos – Francisco, Gedriana e Maria - e eu,
já com 30 anos, nenhum ainda. Senti uma pontinha de inveja deles.
Mas, aceitando meu convite vieram meus três irmãos mais novos, Francisco que estava
com 26, João com 18 e Manoel com 16 anos, todos ainda solteiros. Fiquei muito feliz
quando chegaram, eram tantas coisas a contar e a mostrar!
Poucos dias depois de desembarcar no Rio de Janeiro, Francisco fez uma fezinha e foi
sorteado na loteria. Comprou um terno novo, abotoaduras de ouro, um par de alianças
e voltou para a Ilha Terceira, embarcando no mesmo vapor que tinha vindo para o
Brasil para casar-se com Helena Alves. Tentei dissuadi-lo de voltar e ele não me ouviu,
isso me deixou um pouco desapontado. Entendi que o moço estava de coração partido
e não se adaptou ao clima quente do Rio de Janeiro. João e Manoel, os mais novos,
ficaram entusiasmados com a cidade e com os meus negócios, foram mais sensatos,
decidiram ficar e trabalhar comigo, revezando-se em um botequim que eu tinha
comprado na rua Conselheiro Pereira Franco 7, no Largo do Depósito e na Cocheira
Maracanã.
João tinha um temperamento parecido com o meu, era ambicioso e esforçava-se muito
para ter sucesso nos negócios, enquanto Manoel tinha um jeito mais bonachão, mais
descontraído. Era uma boa parceria, nos dávamos muito bem, eu estava satisfeito em
trabalhar com meus irmãos.
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Nesta época o João Nunes me convidou para ir à casa dele para um almoço dominical
e me apresentou sua irmã Maria, chamada carinhosamente pelos que a conheciam de
Maricota. Ela tinha completado 18 anos, era uma moça bonita, quieta e serena e me
apaixonei assim que a conheci. Passei a corteja-la e pouco tempo depois pedi ao seu
João Machado Nunes, o pai dela, a mão da moça em casamento.
Nos casamos no ano seguinte e, em 1895 nasceu nossa filha a quem demos o nome
de Deolinda. Dona Maria do Carmo, minha sogra, uma senhora bem sisuda, mas muito
experiente na criação de filhos, nos ajudou bastante nos primeiros anos de vida da
Deolinda.
Eu estava muito feliz, finalmente tinha uma família para cuidar e para amar, os
negócios estavam muito bem e algum tempo depois Maricota engravidou novamente,
a família iria crescer! Infelizmente, depois de um parto sofrido, a criança, nossa
segunda filha, acabou falecendo. Foram momentos muito difíceis e dolorosos, Maricota
ficou muito triste e abatida (e eu também). Um padre foi chamado para a unção da
criança a quem batizamos com o nome de Rosa e cuidei para que o sepultamento dela
fosse no São João Batista, na mesma sepultura da minha primeira mulher, a Rosa
Theodora Borges Corrêa.
Juca era franzino, desde cedo muito esperto, mas não era “arteiro”, ao contrário, tinha
um temperamento calmo.
Os negócios estavam indo muito bem, Juca estava com 4 meses quando meu irmão
João se casou no Rio de Janeiro com Maria Rocha Beltrão e a Maricota engravidou
novamente.
Desta vez as coisas não correram bem. O parto foi difícil e demorado, fiquei muito
apreensivo e com razão. A criança, um menino que seria o quarto filho, não sobreviveu
ao parto. Nós o batizamos como João e o sepultamos com muita tristeza junto da irmã
Rosa, no cemitério de São João Batista.
Novamente a dor e a tristeza se abatiam sobre nossa família. Quando Maricota estava
acabando o resguardo decidi viajar novamente para a Ilha Terceira, levando a família
para que minha mãe e meus irmãos os conhecessem e para que eu e a Maricota nos
recuperássemos das perdas da Rosa e do João.
Encomendei a uma firma com escritório na rua Gonçalves Dias 60, que tinha fábrica
em Petrópolis, a “Guimarães Cotia & C.” um fornecedor de arreios e forração para os
carros da Cocheira Maracanã e que fabricava malas e baús de couro, um belíssimo e
completo conjunto de malas para nossa viagem.
26 Antônio Carlos L. A. Corrêa
Eram muitas malas com o enxoval da família além de um baú com presentes para
minha mãe, meus irmãos e sobrinhos. Maricota e Deolinda ganharam uma frasqueira
cada uma, para que levassem artigos de higiene e apetrechos femininos necessários
à viagem.
Embarcamos para os Açores, eu, Maricota, Deolinda – que estava com 5 anos – e Juca
com pouco mais de um ano. O leite da Maricota tinha secado, então decidi embarcar
também uma das vacas da Leiteria para que as crianças tivessem leite fresco durante
a viagem. Era minha intenção deixar o animal de presente para a minha mãe e meus
irmãos, quando voltasse, caso eles não viessem comigo. A vaca foi no porão e
diariamente eu ia fazer a ordenha e cuidar para que ela se alimentasse e bebesse
água. Um marujo cuidava da limpeza.
Quando o navio passou pelo Monte Brasil já podíamos avistar o Porto de Pipas e a
"Mui Nobre, Leal e Sempre Constante Cidade de Angra do Heroísmo"!
Fomos recepcionados com muita pompa e alegria, era a época das “Joaninas”, festas
dedicadas a S. João, na Ilha Terceira. A cidade estava toda enfeitada. As Joaninas
ocupavam as ruas de Angra do Heroísmo durante dez dias. Desfiles, cortejos,
concertos musicais, provas desportivas, touradas, tasquinhas de petiscos, espetáculos
de teatro e fogo-de-artifício faziam parte da programação. A população da cidade já
ultrapassara os 30 mil habitantes e eram muitos os turistas que tinham vindo para as
“Joaninas”.
Minha intenção era ficar com Maricota e as crianças em uma pensão, meu irmão José
alertou que seria uma ofensa para nossa mãe que já tinha reservado lugar na casa
para nos alojarmos.
Ela disse ao nos receber que “da porta para dentro, tudo são camas”!
José, Rosa e Maria vinham com os filhos sempre nos visitar. Minha mãe estava sempre
na cozinha preparando algum petisco. As crianças ficavam brincando no quintal e
Deolinda se juntava a eles enquanto os adultos conversavam e bebericavam um cálice
de vinho do porto durante a prosa. Minha mãe observava a todos com um brilho nos
olhos e pouco falava.
Quando estava nas despedidas para embarcar de volta, tentei mais uma vez convencer
minha mãe e meus outros irmãos a virem para o Brasil, mas eles não aceitaram e
O Retrato de Uma Vida 27
apenas Francisco – o Chico - com 13 anos, filho do José, o meu irmão mais velho,
pediu permissão para vir. Além de sobrinho o Chico era meu afilhado, então garanti a
ele um emprego quando chegasse ao Brasil e deixei paga a passagem de navio. Chico
ficou muito animado e disse que iria providenciar os documentos para viajar.
José alegava não poder vir naquela ocasião pois estavam com uma filha com pouco
mais de um ano, a Alexandrina, e a Maria do Egypto estava em estado avançado de
gravidez.
Minha mãe por sua vez, já perto dos 70 anos, não queria sair da sua terra natal.
Contratei então José, muito habilidoso na construção civil, para que fizesse uma boa
reforma na casa de nossa mãe e construísse um estábulo para a vaca que lá deixei,
correndo todas as despesas por minha conta.
Assim estava também ajudando meu irmão a ganhar um dinheiro extra para usar no
sustento de sua numerosa prole, além de proporcionar à minha mãe uma casa mais
confortável e bonita. Deixei encomendado e pago todo o material a ser usado na obra.
Logo que chegou Chico fazia questão de não gastar dinheiro com alugueis até que me
reembolsasse do custo da viagem. Juntava as cadeiras da Confeitaria para dormir
durante a noite e assim que saldou sua dívida alugou um quartinho na rua Laura de
Araújo, na Praça XI que ficava perto da casa de pasto da Pereira Franco, não muito
distante da Confeitaria.
28 Antônio Carlos L. A. Corrêa
O rapaz era sério e trabalhador, dedicava-se bastante aos seus afazeres. Também era
meticuloso, andava sempre com um caderninho anotando os gastos e receitas.
A Promessa
Algum tempo se passou, Maricota estava grávida novamente e chegou a hora do parto.
Pela demora e agitação da parteira e das ajudantes que saiam toda hora para buscar
toalhas e lençóis limpos eu percebi que a coisa não estava indo bem, fiquei angustiado,
já tínhamos perdido dois filhos. Aflito, perguntei à parteira, numa das passagens dela
pela saleta onde eu esperava, o que estava acontecendo. Ela, que morava próximo à
igreja de Santo Antônio de Lisboa e Bom Jesus do Monte, em Vila Isabel, disse que a
criança estava virada e eu devia orar para Santo Antônio porque seriam poucas as
chances de sobrevivência.
Ajoelhei-me e fiz uma promessa, com muita fé no santo que tinha o meu nome,
prometendo reconstruir o telhado da Igreja de Santo Antônio de Lisboa e Bom Jesus
do Monte, destruído por um temporal, se tudo corresse bem no parto. Seria muito
doloroso perder mais um bebê...
O parto foi difícil, mas o bebê nasceu bem, recebendo o nome de Antônio, que era o
meu nome e também o do santo. Foi apelidado de Antoniquinho.
O Retrato de Uma Vida 29
Apesar de possuir uma grande área próxima à igreja, na rua Teodoro da Silva, eu não
frequentava essa capela, mas a partir deste episódio passei a fazer parte da
Irmandade, mandei reconstruir o telhado e a escadaria de acesso e doei para a igreja
uma área no entorno para que ali fossem construídas casas para famílias carentes,
que eram assistidas pela Irmandade de Santo Antônio de Lisboa e Bom Jesus do
Monte.
30 Antônio Carlos L. A. Corrêa
Nesta ocasião chegou dos Açores outro sobrinho, irmão do Chico e filho do meu irmão
mais velho José, que também se chamava José. Chegando ao Rio de Janeiro seguiu a
orientação e ajuda do Chico e logo, compraram em sociedade, do “seu Virgilio da
Costa”, a propriedade do Café Transporte, botequim e "casa de pasto", situado na
rua Mariz e Barros 211, perto do Instituto de Educação.
Meus irmãos João e Manoel e o Chico, meu sobrinho, ficaram encarregados de tomar
conta dos negócios durante minha ausência. Só voltamos ao Brasil depois do
nascimento do João, nosso sexto filho, apelidado carinhosamente de Sissão. O apelido
surgiu porque minha irmã, sempre cantarolava uma musiquinha quando estava
ninando o João, mais ou menos assim: Bão, balalão; João, Sissão, do coração; João,
sissão, balabalão... e várias outras frases que acabavam sempre em “ão”.
Na viagem de volta ficamos algum tempo, em uma “Villa” alugada na Ilha da Madeira,
ao lado do Parque Quinta Magnólia, cerca de 1 km da Praia Formosa. De Funchal -
Ilha da Madeira - embarcamos para Lisboa, onde ficamos um tempo em um Hotel no
Rossio. Fiquei encantado com a rede eletro viária Lisboeta, desenvolvida pela
Companhia dos Carris de Ferro de Lisboa, uma das concessionárias de transportes
públicos de passageiros na capital portuguesa, utilizando bondes elétricos sobre
trilhos.
Ouvi no Rossio onde estava hospedado, boatos sobre a contratação da “Light”, para
instalação deste tipo de transporte elétrico na capital do Brasil. Até aquela ocasião o
transporte urbano no Rio de Janeiro era feito exclusivamente por carroças e “bonds”
(como passaram a ser chamados à época) puxados a cavalo ou por trens movidos a
vapor. Fiquei preocupado com o futuro da Cocheira Maracanã...
Quando voltamos de Portugal trouxe no navio um sino de bronze, pesando 85 Kg, para
instalar na torre que eu pretendia mandar construir na igreja de Santo Antônio. A
Igreja de Santo Antônio de Lisboa e Bom Jesus do Monte era muito bonita e uma
O Retrato de Uma Vida 31
Aqui chegando, meu irmão João me contou entusiasmado que tinha um bom negócio
para fazermos. Um espanhol, o Luiz Corvello d’Avila, estava vendendo por um bom
preço o Café Portas. O café ficava na Praça da República 125, muito bem localizado
pois estava perto da estação da Estrada de Ferro D. Pedro II, a Central do Brasil.
Esse Luiz d’Avilla estava encrencado com a justiça. Tinha se metido, acho que sem
saber, num negócio com estampilhas falsas e queria voltar para sua terra de origem.
Eu não estava muito animado, mas de fato era um bom negócio e o gajo estava com
muita pressa de vender, então acabei aceitando e fechamos o negócio, depois de ter
me certificado que o estabelecimento estava com a documentação em ordem.
Neste mesmo ano, finalmente, meu irmão José e sua família vieram para o Brasil. Ele,
sua mulher Maria do Egypto e os filhos Maria com 18, Rosa com 15, Deolinda com 10,
Antônio com 9, Joaquim com 8, Alexandrina com 5, Celestina com 3 e João com 1 ano,
embarcaram no vapor alemão “San Nicolas”, o mesmo em que o Chico tinha vindo
para o Brasil em 1900 e desembarcaram no porto do Rio de Janeiro em 04 de agosto
de 1904.
Sophia Gertrudes, minha mãe, continuou morando na Ilha Terceira, bem como minhas
irmãs Maria e Rosa Balbina, e meu irmão Francisco que tinha se casado com a Helena.
Tínhamos tido mais dois filhos, o sétimo filho batizamos com o nome de Francisco
(Chiquinho) nasceu em 1909 e dois anos depois nasceu o Manoel (Manduca), nosso
oitavo filho. Alguns dias antes do nascimento do Manduca recebemos um telegrama
dos Açores comunicando o falecimento da minha mãe, que ocorrera em 16 de abril,
na Ilha Terceira.
Encontrei à venda uma outra confeitaria, desta feita no Engenho Velho, a “Confeitaria
Tijuca” na rua Conde de Bonfim 152, no Largo da Fábrica das Chitas (atual Praça Saenz
Peña), um logradouro com um belo projeto paisagístico de inspiração francesa. Era
uma área nobre da cidade e aos domingos, uma banda marcial se apresentava no
coreto ao seu centro. Entre as atividades de lazer destacavam-se as apresentações do
teatro de fantoches para crianças. Tinha sido inaugurado a pouco tempo o
Cinematógrafo Maracanã e o Éden Cinema nas redondezas e isso garantia para a
Confeitaria uma clientela farta, seleta e elegante.
Meu filho Chiquinho não estava se dedicando aos estudos como os irmãos, levava tudo
na pilhéria. Então eu resolvi que ele precisaria trabalhar na Confeitaria para tomar
gosto pelos negócios.
Não fiquei muitos anos com a Confeitaria, estava decidido a não ficar preso atrás de
um balcão e sabia que negócios como botequim, casa de pasto e confeitaria exigiam
que o proprietário estivesse “com a barriga na registradora” para que o comércio desse
bom resultado.
Novos Horizontes
Apesar da Cocheira Maracanã, empresa de transportes e de bondes puxados a burro,
ser muito lucrativa, tratei de vende-la no auge de suas atividades, pouco tempo depois.
Meus irmãos João e Manoel, ficaram surpresos. A venda incluiu o outrora galpão do
Largo do Depósito que tinha sido transformado numa moderna “Garage” para os carros
e bondes.
Foi uma decisão difícil, esse era até então o grande empreendimento da minha vida e
me sentia responsável pelos muitos patrícios que eu empregava ali. Será que a Light
que foi a compradora iria mantê-los nos empregos?
Bem, agora precisava decidir onde investir o dinheiro que havia recebido na venda da
empresa de transportes e da Confeitaria Tijuca. Eu queria um investimento que fosse
sólido como uma rocha, onde pudesse continuar empregando os patrícios que
precisassem e estivessem dispostos a trabalhar.
Comprei duas pedreiras, certo que seria uma atividade sólida e rentável. A cidade
estava sendo remodelada, o canal do Mangue - construído em 1854 desde a praça XI
para servir à Quinta da Boa Vista, residência Real - estava sendo canalizado, estava
sendo construído o Pavilhão Mourisco que viria a ser o prédio principal da Fundação
34 Antônio Carlos L. A. Corrêa
Felizmente, muitos dos cocheiros que eram meus antigos empregados receberam
treinamento e se tornaram condutores e cobradores na rede de bondes e boa parte
dos que antes cuidavam das carroças e dos animais da Cocheira, acabaram se
capacitando e foram aproveitados na manutenção dos bondes elétricos e dos trilhos.
no Lins de Vasconcelos.
A do Lins de Vasconcelos, localizada ao final das ruas Cabuçu e Dona Romana, fornecia
pedras para a construção da Casa Marcílio Dias (que mais tarde se transformaria em
um hospital).
Eu queria construir uma capelinha sobre a sepultura no Cemitério São João Batista,
mas a administração do cemitério não autorizou. A Santa Casa de Misericórdia me
ofereceu duas campas no cemitério São Francisco Xavier, no Caju em troca da
sepultura do São João Batista e ali mandei erguer uma capela que tivesse um pequeno
altar revestido em mármore. A capela foi construída com pedras da Pedreira do Lins
de Vasconcelos.
Os Corrêa Nunes
Nesta ocasião, Juca já estava no colégio e desde cedo já demonstrava ser muito
inteligente e grande apreciador das artes, especialmente música e teatro. Eu queria
que meus filhos frequentassem bons colégios e tinha matriculado o Juca no Colégio
Diocesano São José, um dos melhores da região, concorrente do Colégio Pedro II. Lá
ele disputava as notas do quadro de honra com o Ary Franco.
Juca era considerado um dos expoentes intelectuais da família, fez história no exame
de diplomação do Colégio Dom Pedro II. Era um rapaz possuidor de admirável cultura.
Sempre que podia levava os irmãos – um de cada vez – ao teatro ou a atividades
culturais, legando a eles o gosto pelas artes, especialmente música e teatro.
Quando os pais levavam queijos, goiabada frutas e outras guloseimas para os filhos
no Internato São José, o farnel era recepcionado na secretaria do colégio e guardado
por um inspetor que etiquetava os embrulhos com o primeiro e o ultimo nome do aluno
a quem era destinado.
Mas, eram muitos os José, Antônio, Manuel e Francisco com sobrenome Corrêa e volta
e meia os petiscos caiam em outras mãos, os homônimos. Juca então “inventou”
alterar a ordem do sobrenome, passando a assinar José Corrêa Nunes. Isto era possível
porque o Registro Civil com o sobrenome completo só era feito na adolescência, até
então valia apenas o Registro de Batismo só com o primeiro nome. Assim, não corria
mais o risco de alguém se apoderar do seu farnel porque não havia nenhum José
Nunes no colégio. Todos os meus outros filhos adotaram posteriormente a mesma
inversão nos nomes e apenas Maricota ficou sendo Nunes Corrêa.
Durante a novena ao Divino Espírito Santo, Juca e os irmãos passavam de internos
para semi-internos no colégio para celebrar com a família, rezando o terço “cantado”.
Durante nove dias, havia bailes e comilança. No último dia de festa, coroava-se a
criança mais nova, comia-se massa sovada, carne e sopa do Divino Espírito Santo.
Chico dedicou-se de corpo e alma ao Hotel, economizava o quanto podia dos salários
que recebia, até que um dia me propôs entrar na Sociedade. Eu não tinha interesse
em continuar no ramo de hotelaria e não queria ficar me deslocando para o centro da
cidade.
Aceitei a proposta do Chico para compra da minha parte na sociedade e meus irmãos
João e Manoel continuariam como sócios. Chico, com as economias que fizera, me
pagou o sinal do negócio e assinou as promissórias do saldo, que foram religiosamente
38 Antônio Carlos L. A. Corrêa
pagas em seus vencimentos. Meus irmãos João e Manoel e meu sobrinho estavam
indo muito bem com o Hotel Cruzeiro do Sul que agora ostentava na cobertura um
grande anúncio (como se dizia à época para propaganda) luminoso da companhia
“CINZANO & VINHO ÚNICO”, que piscava nas cores azul e vermelho. Este “Anúncio”
rendia uma boa renda extra ao hotel e era uma referência publicitária para o HOTEL
“aquele do anúncio do CINZANO“, diziam os que passavam por aquela área.
Naquela altura, eu preferia seguir apenas com atividades imobiliárias e construção civil,
contando sempre com o apoio do meu irmão José e seguindo a sugestão do João
Machado Nunes, meu sogro. Me dediquei a comprar terras para construção de imóveis.
O Retrato de Uma Vida 39
Deolinda estava com 16 anos, era uma moça bonita e prendada e Chico a estava
cortejando.
Não demorou muito para que Chico pedisse a mão de Deolinda em casamento e, em
27 de abril de 1912, casaram-se na Paróquia de Santo Afonso, perto do Largo da
Fábrica das Chitas que tinha mudado de nome e agora era Praça Saenz Peña.
40 Antônio Carlos L. A. Corrêa
Logo depois do casamento, Chico e Deolinda embarcaram em lua de mel para a Ilha
Terceira, nos Açores. Mandaram um telegrama em novembro informando que Deolinda
estava grávida e que teriam o filho na Ilha Terceira.
Assim que recebi o telegrama com a notícia tratei de comprar passagens no primeiro
vapor que estava partindo para a Ilha Terceira e, menos de uma semana depois, eu e
Maricota embarcamos para a Ilha Terceira levando nossos filhos Juca, Antoniquinho,
Sissão, Chiquinho e Manduca, todos na foto a seguir, onde Deolinda já estava em
adiantado estado de gravidez.
Meu sogro, João Machado Nunes dedicava-se à construção civil e tinha escritórios na
rua Senhor dos Passos 11 e na rua Teófilo Otoni (antiga rua das Violas) 147. Ele e
minha sogra, D. Maria do Carmo, também embarcaram para acompanhar o nascimento
do bisneto na Ilha Terceira. Meu cunhado João Nunes ficou tomando conta dos
negócios do pai dele enquanto estivesse viajando.
O parto correu muito bem, era um menino, Antoninho, nosso primeiro neto!
Depois da festa de batizado embarquei com a família, de volta para o Brasil, porque o
ano letivo já ia começar e não podíamos permitir que as crianças fossem prejudicadas
no colégio. A família preparou uma grande festa de “bota-fora” na véspera do
embarque.
Maricota estava grávida da nossa nona filha, Maria Luzia que nasceu no início de
dezembro daquele ano.
Juca prestou concurso público para preenchimento de vagas de escriturários do
Tribunal de Contas e se classificou em 15º lugar. Meu sobrinho, Antônio Alves
Martins, irmão do Chico, casou-se naquele ano com Ricardina Carvalheda.
Tudo estava um mar de rosas! Eu tinha constituído uma família, já era avô, os negócios
indo de vento em popa.
42 Antônio Carlos L. A. Corrêa
inseparável dos tios dele, Chiquinho e Manduca que estavam com 11 e 9 anos,
respectivamente. Eram como irmãos e estudavam juntos no São José.
Nesta ocasião, meu sobrinho José, irmão do Chico e sócio dele no Café Transporte,
casou-se com Luzia Gomes da Costa, que engravidou, logo depois de casada, ao
mesmo tempo que a irmã mais velha dela, também chamada Deolinda. Em
setembro do ano seguinte elas deram à luz a duas meninas, Maria da Piedade e
Philomena, respectivamente. Deolinda, a irmã de Luzia, não resistiu ao parto da
Philomena e morreu. Luzia amamentava a filha e a sobrinha órfã. Quatro meses
depois meu sobrinho José, o marido dela e irmão do Chico também morreu. Mais
momentos de tristeza...
Com a morte de José, Chico viu-se obrigado a assumir sozinho o Café Transporte,
única fonte de renda que ficou para a viúva de seu irmão, mas o Hotel exigia
muito a presença dele. Preocupado com o futuro da sobrinha que ficara órfã com
apenas quatro meses veio se aconselhar comigo sobre o que fazer. Ele queria se
desfazer do Café Transporte e garantir uma boa poupança para a família do seu
irmão.
Contratei uma avaliação do estabelecimento e orientei na publicação de anúncios
e o botequim da rua Mariz e Barros foi vendido para a firma “Gonçalves &
Rodrigues” pouco tempo depois da morte de José, tirando um peso das costas
do Chico. Luzia, a viúva de José, e o cunhado viúvo da irmã dela criavam juntos
as duas meninas órfãs e acabaram se casando.
Juca, meu filho mais velho, além de ser um amante das artes, também era
entusiasta de esportes, foi secretário geral da Liga Brasileira de Desportos e
diretor do “Preto e Branco Football Club”, um time formado principalmente por
primos (e bons jogadores). Muito míope precisava jogar bola usando um pince-
nez que, para meu desespero, invariavelmente acabava quebrado ao final das
pelejas...
Quando estava cursando a Faculdade de Medicina, montei uma farmácia de
manipulação para o Juca, em uma das minhas propriedades, na rua São Francisco
Xavier 427, no Engenho Velho, onde antes funcionava a “Manufactura Penna Fiel”
porque era comum na época os médicos terem uma botica.
O farmacêutico era o Sr. Cortes.
Eu estava muito orgulhoso de ter um filho que estava se formando na faculdade, não
O Retrato de Uma Vida 45
queria que meu filho médico tivesse um pai iletrado e aos 53 anos tratei de me
alfabetizar, contratando como meu professor particular o meu cunhado João
Nunes.
Em 1921, poucos dias antes de se formar, Juca já estava fazendo residência médica.
No final de julho meu sogro, João Machado Nunes faleceu. Ele e minha sogra D. Maria
do Carmo estavam morando na Rua Felipe Camarão 59.
A missa de sétimo dia foi na Igreja do Divino Espírito Santo do Maracanã. Maricota
ficou muito triste, era muito afeiçoada ao pai.
Em 4 de setembro daquele ano, após jantar, meu filho Juca dirigiu-se à farmácia e
comentou ao boticário que não estava se sentindo bem, tombou sobre o balcão, onde
veio a falecer, ainda solteiro, com apenas 22 anos, vítima de um enfarte fulminante.
Mais uma vez ficamos todos arrasados, foram tempos muito negros...
Desde a morte do Juca Maricota nunca mais foi a mesma pessoa alegre de antes,
passava horas sentada na capela da família aos domingos.
Juca havia obtido a primeira colocação no concurso para o quadro de médicos do
Estado do Rio de Janeiro e a nomeação chegou no dia da missa de sétimo dia de
falecimento dele.
46 Antônio Carlos L. A. Corrêa
Nesta viagem o Chico trouxe para o Brasil os primos Antônio, João e o Manoel da
Rocha Mello, filhos da minha irmã Maria que aqui ficaram trabalhando como garçons
no “Ao Lunch da Moda” e no restaurante do “Hotel Cruzeiro do Sul”.
Fiquei encantado quando fui avaliar o tal sítio em Niterói. Ficava em frente a uma praia
deserta e bonita, as terras iam até a vertente do morro, um lugar paradisíaco. Da
propriedade era possível avistar a Fortaleza de Santa Cruz no alto do morro de
O Retrato de Uma Vida 47
Jurujuba. Ao fundo podia ver o morro do Pão de Açúcar, onde tinha sido recentemente
inaugurado um teleférico que ficou conhecido como o “Bondinho do Pão de Açúcar”.
Aceitei a quitação da hipoteca com estes imóveis, depois de confirmar que estavam
com a documentação regular e sem ônus.
Resolvi construir no sítio de Charitas uma casa de veraneio para a família e dividir em
lotes o restante do terreno para futura distribuição entre os filhos ou construção de
casas de veraneio para vender. O prédio da rua Dona Romana seria usado como
escritório administrativo da pedreira do Lins de Vasconcelos.
Voltei ao local trazendo a Maricota, falei da casa que queria construir ali. Ela ficou
encantada e sugeriu que a casa ficasse em frente à praia e àquela vista deslumbrante.
A casa, de dois pavimentos, foi construída antes da abertura da estrada, sendo todo o
material transportado por barcos. Era difícil o acesso, mas a casa oferecia todo o
conforto possível à época.
Quando o almoço estava servido o código era pendurar uma toalha na janela lateral e
“a turma” vinha correndo para casa!
Para tomar conta da propriedade quando não estivesse em uso, mandei construir uma
pequena casa na lateral da propriedade para alojar um caseiro, o “seu Zé Antônio”,
que era casado com “Dona Mocinha” e o filho deles, o Alcides.
Numa das estadas em Niterói fui picado por um mosquito e contraí impaludismo, fiquei
muito mal, tinha muitos calafrios e febre. Fui tratado pelo Dr. Alexandre Calaza que
administrava altas doses de Quinino para combater a doença e isso acabou atacando
o meu fígado, causando cirrose hepática.
Meus irmãos e Chico, felizmente, estavam indo muito bem nos negócios, o Hotel e o
restaurante dando bons resultados, graças à administração eficiente e séria que
adotavam.
Chico e Francisquinha estavam morando, com meu neto Antoninho, na Rua D. Zulmira
50, onde tiveram dois filhos, uma menina chamada Nilda e um menino chamado
Nilson. Posteriormente mudaram-se para a rua Santa Luiza 145.
Tudo correndo bem, decidimos passar mais uma temporada na Europa. Embarcamos
então para a Ilha da Madeira, eu, Maricota, Chiquinho, Manduca, Luzia, Waldemiro e
Deolinda. Antoniquinho estava no último ano da faculdade de engenharia e Sissão já
estava cursando a de medicina, então não foram nessa viagem para não atrapalhar os
estudos.
Ficamos na Ilha da Madeira, numa Quinta alugada em Câmara de Lobos, uma região
vinícola a oeste de Funchal.
50 Antônio Carlos L. A. Corrêa
A Quinta ficava na rua José Joaquim da Costa, bem no alto e dali desfrutávamos de
uma belíssima paisagem, com a cidade e o mar lá embaixo. Pouco acima ficava a
“Estalagem Quinta do Estreito” um hotel de categoria superior muito procurado por
turistas. Os meninos costumavam ficar olhando as pernas das moças, normalmente
inglesas, quando saiam ou voltavam para o hotel, porque desacostumadas ao aclive o
faziam de pernas abertas...
Uma indecência!
Alguns meses depois de nossa chegada fui procurado pelo Sr. Manuel Luiz Vieira que
relatou estar produzindo uns filmes e precisava de locais para filmagem e estava
pedindo aos moradores das Quintas na região que permitissem a filmagem. Segundo
ele o elenco era totalmente madeirense e amador. Como não tinha como pagar aos
atores ele recorreu à irmã, ao cunhado, a amigos, alguns eram amadores de teatro.
Naturalmente não me importei e permiti a filmagem, com a condição de que ele nos
daria ingressos quando fosse exibido o filme. Meus filhos ficaram encantados,
Chiquinho e Luzia tentaram até fazer uma “ponta”! O Manuel Vieira prometeu uma
participação deles no próximo filme que se chamaria “O Fauno das Montanhas”.
Ganhamos os convites para a estreia, o filme ficou ótimo, foi aclamado pela imprensa
e até pela atriz Maria Matos, que realçou o trabalho fotográfico na sua nitidez e
perfeição, destacando o capítulo que tinha lugar em Câmara de Lobos e que considerou
um dos mais encantadores, notadamente pela beleza dos quadros.
Vila Operária
Em 1925, era inaugurada a Companhia de Tecidos Nova América. A economia se
diversificava e as cidades cresciam. O Rio de Janeiro passava por uma completa
remodelação e os bondes elétricos davam o toque de modernidade a cidade. Neste
ambiente de progresso a Companhia de Fiação e Tecidos Confiança Industrial, fundada
em 1885, cresceu e se transformou numa das maiores e mais tradicionais fábricas do
país. A fábrica estava instalada na rua Maxwell 300, numa área próxima da Igreja de
Santo Antônio de Lisboa e Bom Jesus do Monte. E uma grande área de terra ao redor
era de minha propriedade, então observando a necessidade de moradias para os
empregados da Fábrica, propus ao seu proprietário a construção de casas a serem
vendidas para os empregados da fábrica, com o pagamento feito por consignação na
folha de pagamento, valendo-me da experiência adquirida no boteco do Cais do Porto.
Para reduzir o custo deste empreendimento decidi construir casas com estilo de
engenharia e arquitetura portuguesa, mas à moda inglesa, ou seja, com repetição do
mesmo projeto.
O Compositor Noel Rosa, considerado por muitos a maior expressão da música popular
brasileira e nascido no bairro, imortalizou a Fábrica de Tecidos e ficava, como diz a
música, esperando a namorada sair da fábrica de tecidos.
O projeto dessas casas estabelecia que as fachadas tivessem a porta principal, duas
janelas (quarto e sala da frente), emolduradas com frisos, escada de acesso e beiral
de 60 cm, além de vãos para ventilação dos porões, quando existentes.
O Retrato de Uma Vida 53
Chico e Francisquinha tiveram outra filha, a Neuza. Quando a menina estava com 2
anos, Chico, Francisquinha, os filhos Nilda, Nilson e Neuza e mais o Antoninho, meu
neto, embarcaram no navio Madrid, mais uma vez com destino aos Açores, onde
ficaram um ano.
Eu sentia muita saudade do meu neto Antoninho, estava muito afeiçoado a ele.
Poucos dias antes do embarque Antoninho, que já tinha 15 anos, tinha feito o registro
civil, naturalizando-se brasileiro e adotando o nome de Antônio Alves Corrêa Netto, em
minha homenagem. Claro, fiquei muito envaidecido! Meu único neto com o meu nome.
Na volta trouxeram outra filha da minha irmã Rosa Balbina, a Celestina uma moça
tímida e humilde (porém muito geniosa) que já estava com 27 anos. Chegando ao
Brasil Celestina casou-se com o Afonso, um português também humilde, trabalhador,
de bom coração e muito divertido. Afonso era um artesão muito habilidoso na
fabricação de “calçados finos”, sob medida.
54 Antônio Carlos L. A. Corrêa
Chico me sugeriu ir para Gerez, na região norte de Portugal, próximo a Braga, onde
tinha passado uma temporada com a irmã e meu neto Antoninho algum tempo atrás,
famosa estância de águas minerais ao norte de Portugal, ou para a Ilha Terceira, onde
abundavam fontes de águas medicinais, de origem vulcânica. Decidi viajar para
Portugal com a família, escolhi ir para Gerez, por recomendação dos médicos. A água
de Gerez era recomendada para tratamento específico de doenças do fígado, vesícula,
obesidade, hipertensão e diabetes. No maciço granítico junto à Fonte da Bica, tem
uma inscrição em latim “AEGRI SURGUNT SANI” – “Os Doentes Saem Sãos…”
Pretendia levar apenas os filhos menores, porque Antoniquinho, que estava com 29
anos, tinha concluído o curso de engenharia e estava prestando concurso para o
Departamento de Águas da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro. Também Sissão já
tinha concluído o curso de Medicina, estava fazendo residência, eu não queria
atrapalhar seu trabalho, mas ele e Maricota insistiram muito que ele fosse conosco
para que eu tivesse um acompanhamento médico durante a viagem.
Quando estava no Consulado fazendo o Registro, minha vida começou a passar pela
mente como uma novela. Lembrei-me da vinda para o Brasil como clandestino, sem
dinheiro, sem documentos e sem saber ler e escrever e agora eu iria de novo
atravessar o Atlântico, em uma cabine confortável, com minha família, tinha dinheiro
e documentos, tinha amigos e sabia ler e escrever....
Meus filhos e meu neto cursaram os melhores colégios e minhas filhas estavam sendo
bem preparadas. Tinham até mesmo uma tutora, “dona Amélia”, esposa do Sr. Cortês
(o farmacêutico da botica), que ensinava artes manuais além de ler e a escrever,
Naquele momento tive a certeza de que tudo tinha valido a pena, a vida tinha sido
generosa para mim, sobretudo por ter tido a felicidade de me casar com Maricota, o
baluarte de toda a família e eu estava pronto para enfrentar o que fosse necessário!
56 Antônio Carlos L. A. Corrêa
Embarquei então com Maricota e com os meus filhos em 1929, mais uma vez para
Portugal, com destino a Gerês, talvez minha última viagem. Fiz com uma corretora
indicada pelo João Nunes um seguro garantindo que em caso de óbito eu seria
embalsamado para ser sepultado no Rio de Janeiro.
Nesta viagem me acompanharam minhas filhas Luzia que estava com 16 anos e Déo,
a caçula. Waldemiro estava comemorando 12 anos naquela semana e Deolinda tinha
completado 10 no mês anterior. Ocupávamos duas cabines contíguas no convés
superior, eu e Maricota em uma delas, na outra o João e as meninas Luzia e Deolinda.
Estava cansado, com febre e fui para a cabine com Maricota enquanto as crianças
ficaram no convés com o João, aguardando a partida. Deitei-me, Maricota
carinhosamente ajeitou o travesseiro sob minha cabeça para que eu tirasse um cochilo,
pouco depois o navio fez soar as sirenes.
O navio zarpou, meu coração batia calmo. Ouvia o barulho cadenciado das máquinas
a vapor movimentando as hélices. Olhei pela varanda da cabine e vi o cais se
distanciando.
Epílogo
Antônio Alves Corrêa faleceu no Rio de Janeiro, num domingo, em 29 de setembro de
1929, pouco depois de voltar de Gerês, vítima de cirrose hepática, decorrente da
grande dose de Quinino ingerida para tratar do impaludismo.
Seu enterro foi suntuoso, com missa de corpo presente na Igreja de São Francisco de
Paula, no Largo de São Francisco e foi sepultado no cemitério de São Francisco Xavier.
O cortejo fúnebre formou uma longa fila de carros que ia da rua Santa Luiza até o
Largo da 2ª Feira e o comércio da redondeza não abriu as portas. Todas as cortinas
da casa foram substituídas por cortinas na cor preta e os filhos mantiveram luto – até
nas roupas íntimas - por um ano.
Deixou esposa, filhos e um neto, muitos bens materiais, mas o maior legado que
deixou foi uma história de vida de um homem bom, corajoso, honesto e que dedicou
a vida à família e ao trabalho.
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Antônio dizia que a melhor herança que deixaria para os filhos era o saber e isso
ninguém tomaria!
João o médico, estudou alemão e física, montou uma oficina para pesquisar e criar
equipamentos eletro-mecânicos e outros relacionados à ótica e foi o inventor de um
aparelho que permitia radiografar bebês recém-nascidos. Foi tocador de banjo e um
excelente jogador de futebol. Há uma sala com seu nome no Instituto Fernandes
Filgueiras, em reconhecimento aos frutos dos trabalhos prestados aquela instituição.
Casou com Dalva Moreira e tiveram uma filha, Estela Maria.
Chiquinho tocava piano e foi proprietário do Banco Espanhol e por anos, dedicou-se à
filantropia, tais como a Corporação para Empregados Católicos de Vila Isabel, e foi
Diretor Social da Sociedade Espanhola de Beneficência (atual Hospital Espanhol).
Ingressou no Colégio Nova Friburgo, da Fundação Getúlio Vargas, onde atuou em
diversos funções, sendo conhecido como “Tio Chico”. Também montou o Curso São
Francisco. Casou-se com Maria Ely Brito e tiveram duas filhas, Myriam e Celi Maria.
Luzia também tocava piano. Casou-se com Aurino Vianna de Oliveira, que era
dentista e oficial administrativo do Distrito Federal. Tiveram quatro filhos, Luiz
Antônio, Eliane Maria, Carlos Augusto e Paulo Roberto.
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Deolinda casou com Ulisses Parisot Esberard, filho de um industrial dono de uma
fábrica de vidros em São Cristóvão, onde produziam litros para venda de leite e
tiveram dois filhos, Rogério Henrique e Carlos Eugênio.
Maricota era simples, carinhosa, inteligente e muito querida por todos. Quando estava
com 67 anos quebrou a perna jogando bola com o bisneto (Ney Francisco). Negou-se
a ir para o hospital, foi tratada em casa e ficou mancando a partir daí.
Nos 24 anos em que esteve viúva só usou roupas na cor preta, zelou para que fossem
mantidas as tradições das novenas do Espírito Santo e patrocinava a barraca de
alimentos na festa da Igreja de Santo Antônio de Lisboa.
Faleceu poucos dias antes de completar 78 anos, em 03 de fevereiro de 1953.