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626-Texto Do Artigo-1190-1-10-20170220
626-Texto Do Artigo-1190-1-10-20170220
Departamento de Filosofia
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Largo São Francisco de Paula, 1, 3o. andar
20051-070 RIO DE JANEIRO, RJ
ethelmrocha@aol.com
Resumo: Meu objetivo nesse artigo é o de reconstruir a primeira prova da existência de Deus e a
prova do mundo externo como estas são apresentadas por Descartes nas Meditações Metafísicas
tendo como fim examinar o modelo de causalidade nelas envolvido. Pretendo mostrar que
embora Descartes, nas duas provas, ao recorrer ao princípio de causalidade, expressamente
mencione um único e mesmo modelo de causalidade, a saber, o modelo segundo o qual a causa
transmite sua essência ou parte dela a seu efeito, para se evitar um embaraço para a prova da
existência do mundo externo, devemos admitir que de fato são dois modelos distintos de
causalidade (sendo um derivado e dependente do outro) que estão envolvidos nas duas provas.
Abstract: My purpose in this article is to reconstruct the first proof of God's existence and the
proof of the existence of the external world as they are presented by Descartes in the Meditations
on First Philosophy aiming to examine the model of causality that is involved by them. I intend to
show that although on the two proves, as he appeals to the causality principle, Descartes
manifestly mentions the same model according to which the cause transfers its essence or part of
it to its effect, in order to avoid an obstacle for the proof of the existence of the material world
we must admit that there are two different models of causality involved in the two different
proves.
Palavras chave: princípio de causalidade; prova do mundo externo; prova da existência de Deus;
qualidades sensíveis; coisas materiais; causalidade formal.
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 10, n. 1, p. 7-30, jan.-jun., 2000.
8 Ethel Menezes Rocha
Bento Prado Junior, Descartes Obra Escolhida, São Paulo, Difusão Européia do Livro,
1973. As citações serão acompanhadas de suas referências nesta edição e na edição
standard feita por Charles Adam e Paul Tannery (Oeuvres de Descartes, Paris, Léopold Cerf,
1897 a 1913, 11 volumes), abreviada como AT, seguida do número do volume em
romanos e do número da página).
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2 Principia Philosophiae. Para a tradução para o português ver em Revista Analytica, tradução
coordenada pelo prof. Guido Antônio de Almeida, vol. 2, nº 1, 1997 e vol. 3, nº 2, 1998.
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não têm realidade objetiva e, por isso mesmo, a elas não se aplica o princípio de
causalidade.
Se, como afirma Descartes 3 , a realidade objetiva de qualquer idéia
contém a possibilidade de existência do que é exibido no intelecto no momento
do ato de representar e se o que é exibido no intelecto no ato de representar
são basicamente propriedades atribuídas a coisas então, ao tentarmos aplicar a
mesma versão do princípio de causalidade, cujo modelo é a transferência de
realidade da causa para o efeito, à prova da existência das coisas corporais, nos
deparamos com um embaraço. Nessa prova, Descartes através do recurso a
essa versão forte do princípio de causalidade parece eliminar como candidatos a
causa das idéias sensíveis algo que seja menos nobre que seu efeito (que
simplesmente dê origem a um movimento que seja, portanto, apenas uma causa
eficiente) e através do recurso a uma inclinação natural e à veracidade divina
elimina como candidatos à causa das idéias sensíveis qualquer coisa mais nobre
que o próprio corpo (elimina também, portanto, a possibilidade de que a causa
seja uma causa eminente). A causa das idéias sensíveis que temos dos corpos
singulares seria consistiria, nesse sentido, nas próprias coisas singulares e seria,
portanto, uma causa formal. Apesar disso, Descartes sistematicamente defende
a tese de que as idéias sensíveis dos corpos e, portanto, as idéias que temos dos
objetos particulares, envolvem a exibição ao espírito de propriedades que,
entretanto, não pertencem aos objetos singulares que causam essas idéias. Isto
é, embora a versão forte do princípio de causalidade utilizada conjugada à
rejeição de uma causa eminente tenha como conseqüência que a causa das
idéias sensíveis tenha o mesmo grau de realidade formal que sua realidade
objetiva, isso não é possível dada a conclusão cartesiana. E se é assim, a menos
que Descartes possa sustentar que as idéias sensíveis não têm realidade objetiva,
não se trata do mesmo conceito de causalidade utilizado nas duas provas.
3 Ver respostas às Segundas Objeções, Axioma X onde Descartes afirma: “Na idéia
ou no conceito de cada coisa, a existência está contida porque nada podemos conceber
sem que seja sob a forma de uma coisa existente” (AT VII, 166).
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4 Para propriedades divinas que não concebemos, mas inteligimos pelo entendimento
puro, veja-se as respostas de Descartes as Segundas Objeções onde ele afirma que através
do entendimento temos uma idéia pura da imensidade, simplicidade, ou unidade absoluta
em Deus... da qual não encontramos em nós ou alhures, nenhum exemplo: “Mas, além
disso, nosso entendimento nos diz que há em Deus uma imensidade, simplicidade e
unidade absoluta que abrange e contém todos os seus outros atributos, e da qual não
encontramos em nós, ou alhures, nenhum exemplo; ... Por essa razão reconhecemos que
nenhuma das coisas que, por fraqueza de nosso entendimento, atribuímos a Deus como
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de modo imperfeito (por exemplo, seu entendimento finito); além disso tem ao menos
uma de suas propriedades infinita como a substância infinita que é que lhes torna
semelhantes (a vontade) e, mais ainda, a substância finita não tem certa propriedades
que tem a substância infinita (por exemplo, a unidade e simplicidade).
6 Alguns autores tais como Stanley Tweyman em Deus ex Cartesio argumentam em
favor da tese de que Descartes, no momento da prova por efeito da existência de Deus
não teria a matemática legitimada ainda como verdadeira e, por isso mesmo, não
poderia ainda realizar tais cálculos que segundo ele seriam como ou mais difícil que
contar os lados de um quadrado ou somar três e dois.
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algo de real (isto é, possível de existir). Essa alternativa, portanto, supõe que se
possa identificar a opacidade e confusão das idéias sensíveis à ausência de
realidade objetiva nelas o que, no entanto, não parece ser o caso no sistema
cartesiano.
Se as idéias das qualidades sensíveis constituem o princípio de
individualização das idéias dos objetos particulares, então a confusão e
opacidade dessas idéias não diz respeito a não exibição de propriedades ou à
exibição de propriedades confusas e obscuras. Isto é, se o conteúdo das idéias
das qualidades secundárias dos objetos é confuso não pode ser em virtude de
não exibir propriedades ou de exibir propriedades não determinadas. Quando
represento um determinado objeto, o represento como sendo, por exemplo, de
uma determinada cor, com um determinado sabor, temperatura, etc... e é por
que exibo no conteúdo da minha idéia desse objeto essas propriedades que
posso representar esse objeto como tendo essas propriedades e, portanto,
como sendo esse objeto e não outro. Isto é, se sempre que representamos
alguma propriedade essa vem atrelada a uma substância, se nossas
representações sensíveis mesmo quando confusas e obscuras ainda assim
permitem a distinção de propriedades e atribuição a um objeto determinado,
então, por um lado, parece, não podemos identificar opacidade e confusão à
ausência de realidade objetiva.
Por outro lado, Descartes, na III Meditação admite que as idéias
sensíveis das qualidades secundárias constituem fortes candidatos à falsidade
material visto que atribuem propriedades a objetos que talvez não possam
possuir essas propriedades. Nessa passagem Descartes afirma, por exemplo:
“...ignoro se as idéias que eu concebo dessas qualidade [luz, cores, sons, odores,
sabores, calor, frio e as outras qualidades que caem sob o tato] são, com efeito,
as idéias de algumas coisas reais ou se não me representam apenas seres ... que
não podem existir” (AT VII, 43). Um pouco adiante Descartes define a
falsidade material das idéias da seguinte maneira: “... pode ocorrer que se
encontre nas idéias uma certa falsidade material, a saber, quando elas
representam o que nada é como se fosse alguma coisa”. Sendo assim, parece
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que podemos afirmar que as idéias sensíveis dos objetos em sua singularidade
seriam candidatas à falsidade material na medida em que exibiriam propriedades
como sendo de objetos extensos quando não se pode determinar clara e
distintamente na própria idéia se são modos possíveis dos objetos extensos.
Resta examinarmos se o fato das idéias sensíveis serem fortes candidatos á
falsidade material determina que não tenham realidade objetiva.
Sabemos que somente as idéias confusas e obscuras podem ser idéias
materialmente falsas. Como afirma Descartes nas suas respostas às Quartas
Objeções: “a falsidade material tem origem apenas na obscuridade das idéias”.
Entretanto, sabemos ainda que nem toda idéia confusa e obscura é
materialmente falsa visto que algumas idéias confusas e obscuras oferecem
pouca oportunidade para um juízo errado. Por exemplo, as idéias
voluntariamente forjadas pela imaginação, mesmo quando confusas e obscuras,
porque são reconhecidamente produtos da imaginação, dificilmente seria
material para um juízo falso 7 . Sendo assim, parece que podemos afirmar que
duas coisas determinam a falsidade material de uma idéia: 1) o grau de clareza e
distinção das idéias e 2) o não reconhecimento de que são obscuras e confusas.
Aparentemente, as idéias reconhecidamente claras e distintas 8 seriam aquelas
que constituiriam material verdadeiro para juízos verdadeiros (dada a prova da
existência de Deus) e as idéias confusas e obscuras que não dependem do meu
arbítrio, seriam materiais falsos para a constituição de juízos verdadeiros e,
portanto seriam aquelas materialmente falsas.
Pode-se afirmar, portanto, que uma idéia materialmente falsa é tal que
fornece material para erro em dois sentidos: 1) qualquer juízo que a afirma
como uma verdadeira representação de algo necessariamente será um juízo
falso. Além disso, 2) uma idéia materialmente falsa leva ao erro na medida em
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que nada na idéia, ela mesma, permite que determinemos que se trata de um
material que leva ao juízo falso. Nesse sentido, podemos afirmar com segurança
que não é possível reconhecer a falsidade material de uma idéia se simplesmente
examinamos a idéia. As idéias materialmente falsas seriam aquelas que por não
apresentarem nenhum sinal próprio de falso material (do contrário não
poderiam levar ao erro), seriam tomadas como idéias de algo real que, na
verdade, não o é.
Sendo assim, até aqui podemos afirmar que: 1) a falsidade material de
uma idéia consiste no fato de inadvertidamente exibir em seu conteúdo uma
substância com propriedades que não lhe pertencem; 2) uma idéia sensível
exibe propriedades como cores, sabores, etc., e, como em toda idéia, essas
propriedades aparecem como atreladas a substâncias; 3) o erro das idéias
sensíveis quando são materialmente falsas consiste em exibir em seu conteúdo
algo (uma qualidade sensível) como se fosse uma qualidade real (possível) da
matéria quando de fato é uma qualidade da mente; 4) nada na idéia ela mesma
me fornece meios para detectar esse erro. Tanto as idéias sensíveis confusas e
obscuras que são materialmente falsas, quanto as idéias claras e distintas, quanto
as idéias confusas e obscuras que não fornecem material para um juízo falso (as
idéias fictícias, por exemplo) exibem um conteúdo (atributos ou modos de
substâncias) que, tomado nele mesmo, nos aparece como possível. Todas essas
idéias, tomadas independentemente da existência atual de seus objetos e, por
isso mesmo, tomadas nelas mesmas, representam coisas possíveis com
determinadas características. Isto é, até aqui podemos afirmar que tanto as
idéias claras e distintas, quanto as fictícias e as materialmente falsas exibem um
conteúdo. Sabemos que o conteúdo exibido por uma idéia são as propriedades
exibidas e essas atribuídas a uma determinada categoria de substância. Sabemos
ainda que as idéias sensíveis que são materialmente falsas contêm o erro
categorial de inadvertidamente atribuir as propriedades que exibe a uma categoria
de ser que não tem essas propriedades.
Como vimos, para sustentarmos que o princípio de causalidade não se
aplica às idéias sensíveis dos objetos em sua singularidade devemos sustentar
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que as idéias sensíveis das qualidades secundárias não exibem uma realidade
objetiva em seu conteúdo representativo. Até aqui temos que a falsidade
material das idéias sensíveis dos objetos em sua singularidade envolve a
exibição de propriedades atribuídas a substâncias que não têm essas
propriedades. Se é assim, a princípio parece que poderíamos identificar a
falsidade material de uma idéia à ausência de realidade objetiva exibida em seu
conteúdo: uma idéia não teria realidade objetiva quando ela exibe algo que não
pode existir no mundo atual e as idéias sensíveis que são materialmente falsa
seria um exemplo dessas na medida em que exibiriam objetos que não existem
(objetos com propriedades secundárias).
A noção de realidade objetiva no sistema cartesiano está intrinsecamente
relacionada a sua teoria da modalidade: quanto maior grau de realidade objetiva
tem uma idéia, maior a possibilidade de sua existência. Mas se é assim, em que
sentido ainda pode-se afirmar que as idéias sensíveis dos objetos singulares em
sua particularidade não têm realidade objetiva? Para que as idéias sensíveis que
podem ser materialmente falsas possam ser identificadas àquelas que não têm
realidade objetiva seria preciso sustentar que seu conteúdo não exibe algo real
(isto é, possível de existir). Mas no que consistiria essa impossibilidade relativa
ao conteúdo das idéias sensíveis dos corpos em sua particularidade?
Afirmar que o conteúdo das idéias sensíveis das qualidades secundárias
não tem realidade objetiva parece problemático por duas razões: 1) trata-se de
um conteúdo que me aparece como logicamente possível e, não só isso, mas 2)
trata-se de um conteúdo que não parece ser intrinsecamente falso na medida
em que ao menos indica a presença e variação de coisas externas. Isto é, não
parece plausível afirmar que aquilo que essas idéias exibem em seu conteúdo
implica uma impossibilidade lógica visto que posso pensar esse conteúdo como
possível. Não nos aparece como logicamente impossível que as qualidades
secundárias que percebo sejam qualidades de coisas materiais do contrário não
haveria possibilidade de julgarmos verdadeiro esse conteúdo e,
conseqüentemente, não haveria possibilidade de erro. Assim, se posso julgá-la
corretamente como sendo uma idéia (materialmente) falsa ou julgá-la
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erradamente como uma idéia verdadeira então é porque a idéia sensível das
qualidades secundárias é logicamente possível. Se posso pensar esse conteúdo
como possível, então posso tomar o conteúdo exibido ao meu espírito pela
idéia sensível como sua realidade objetiva. Posso me enganar quanto a realidade
objetiva de minhas idéias sensíveis porque posso pensar (e de fato penso) que o
que é exibido no conteúdo das minhas idéias sensíveis é possível de existir no
mundo quando, segundo a ciência cartesiana, não é. Mas isso não é o mesmo
que afirmar que essas idéias não têm realidade objetiva. Se posso pensar
erroneamente que esse conteúdo é possível é porque ele é logicamente possível
e só não é possível segundo as leis da ciência cartesiana do mundo físico. As
idéias sensíveis, portanto, envolvem a possibilidade de um erro (quando as julgo
verdadeiras) mas posso não errar quanto a elas (se as julgo falsas). Mas se é
assim, aquilo que elas exibem é verdadeiro ou falso, o que implica na sua
possibilidade lógica. Não podemos afirmar que Descartes admite que é a
impossibilidade de existência no mundo atual daquilo que é exibido pelo
conteúdo das idéias que determina a ausência de realidade objetiva das idéias se
não quisermos atribuir a Descartes a tese embaraçosa de que só as idéias com
validade objetiva nesse mundo têm realidade objetiva. Essa tese seria absurda
visto que, por exemplo, as idéias fictícias necessariamente não têm validade
objetiva já que são impossíveis segundo as leis naturais e, no entanto, têm
realidade objetiva.
Sendo assim, temos que admitir que as idéias sensíveis exibem um
conteúdo possível. Além disso, as idéias sensíveis não são intrinsecamente
falsas na medida em que indicam uma variação nas coisas que de algum modo é
relevante para a união corpo e alma mover-se em direção ao prazer e/ou em
direção oposta a dor. Embora Descartes, por um lado, insistentemente afirme
que não há nas coisas materiais nada semelhante às qualidades secundárias que
percebemos nelas, por outro lado, também afirma que as variações nas nossas
percepções sensíveis indicam variações dos objetos singulares percebidos.
Como expressão da união corpo e alma as idéias sensíveis (as sensações)
exibem ao meu intelecto informações sobre os estados do meu corpo e, através
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a substância exibida pelas idéias sensíveis que podem ser materialmente falsas é
indeterminada então, essas idéias são tais que o conteúdo por elas exibido ao
espírito consiste no que seria menos nobre na ontologia cartesiana já que nesse
conteúdo seriam exibidos modos de uma substância incompleta. Ora, se na
ontologia cartesiana o que tem mais grau de realidade é a substância e se esta se
caracteriza por sua completude e independência com relação às outras, então
aquilo que seriam modos de uma substância incompleta só pode ser aquilo que
tem menos grau de realidade. E se o grau de realidade objetiva de uma idéia
depende da categoria do ser representado, então as idéias sensíveis que exibem
uma substância incompleta têm o menor grau de realidade objetiva. E é isso o
que torna o grau de realidade objetiva dessas idéias menor e não o fato de
inadvertidamente exibirem um erro categorial (atribuindo propriedades a categoria
errada de ser).
Visto, portanto, que a realidade objetiva de uma idéia está
intrinsecamente relacionada com a possibilidade lógica de seu conteúdo
corresponder a algo que independa da mente (em oposição à possibilidade
segundo uma certa ciência), então temos que admitir que se uma idéia tem conteúdo
representativo tem uma realidade objetiva. Além disso, visto que o grau de
realidade objetiva das idéias depende da categoria do ser que seu conteúdo
exibe, então as sensações são as que têm menor grau de realidade objetiva na
medida em que exibem modos do que seria a substância menos nobre visto que
indeterminada. E visto que quanto mais realidade objetiva mais clara e distinta
uma idéia é, então a confusão e opacidade das sensações que, como vimos, não
depende de uma contradição lógica se deve ao fato de exibir modos de
substância menos nobre o que, entretanto, não as exime de ter uma causa.
É exatamente porque as sensações têm uma causa, mas exibem obscura e
confusamente uma substância menos nobre que, na III Meditação, Descartes
admite a possibilidade de que o próprio eu possa ser sua causa. Isso parece ser
o que ele quer dizer quando afirma nessa meditação: “[as idéias do calor e do
frio] já que me revelam tão pouca realidade... não vejo razão pela qual não
possam ser produzidas por mim mesmo e eu não possa ser o seu autor” (AT
VII, 44). Isto é, visto que sou substância, embora finita, a princípio posso ser a
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ROCHA, E.M. Prudência da vontade e erro em Descartes. In: Edgar da R.
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