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Microtrilogias.

Horácio Dib

1
Microtrilogia
da infância

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I

Rio Bravo

Ontem à noite, meu pai entrou no rio bravo.


Não é a gente que entra no rio bravo, ele me disse, é o rio bravo que entra na
gente. Pois é.
Todo dia pai entra no rio bravo. Leva comida. Leva foto minha e das minhas
irmãs. Leva um carinho salgado e uma esperança mofada na pele enrugada de tanto que
entra no bruto do rio bravo.
Ninguém entra por querer no rio bravo, porque sabe que o rio luta contigo pra
que tu não saia mais. É carente, o rio. Tem bravo só de nome, mas ele é um
conquistador, é o que dizem os mais velhos.
O rio é frio e quando corpo quente entra ele fica todo arrepiado. E acaricia corpo
quente e lentinho lentamente ele pega os pés quentes com seus cabelos alga marinha,
faz uns peixinho segurar os braços pra baixo, manda umas tartarugas ancorar corpo que
entra. Quem é conquistado pelo rio tem aquela vontade boa de dormir. E dorme que é
uma delicia.
Eu num consigo dormir desde que meu pai entrou no rio bravo, ontem. Sei não,
ele andando reto sem medo, metendo o corpo lá dentro até a cabeça virar ilha. Ele
sempre faz isso, mas sei não. O rio não é bravo com quem entra.
A luta é pra sair, isso que é. Entrar o rio se espicha todo igual cachorro em
cafuné. Eu já entrei no rio bravo uma vez, era dia. Ele dorme de dia, mansinho. De noite
ele também é mansinho, mas é assim, ele gosta de companhia pra sempre. Você entra de
noite e ele te beija e te leva pra cama e você se apaixona e vive em baixo da água brava.
Vó velha reclama tudo quanto pode, os dente dela cai mas a voz ainda esmigalha
nossas orelhas. Ela fala que é maldição, que não tinha que ter construído a vila nas
costas do rio. Que o rio olha pra nós e fica com inveja. Que o rio queria ficar sozinho e a
gente faz arruaça.
O problema é que aqui é quente e às vezes até de noite faz uns calor da porra e a
gente queria tanto era nadar e ninguém deixa: cercaram o rio bravo...
Não posso falar “porra”, pai briga.
Mas pai entrou no rio bravo ontem à noite.
Ele entra todas as noites, leva comida, etc. Entra sorrindo, sai chorando. E diz:
venci o rio bravo de novo. E chora e toma a cachaça. E às vezes bate em uma de nós. O
bom de ter cinco irmã é que a gente se reveza: cada uma dorme de rabo quente uma
noite da semana.
Aqui a gente é tudo meio índio, casa de madeira. Não sei se índio de verdade ou
se somos só pobres, porque esse negócio de oca, de ritual, de tanga e pena e papagaio
nunca existe mais. Talvez índio é como eles chama os pobres hoje. Mas não é pra ter
vergonha. Pai todo suado sempre fala que não pode ter vergonha da terra do nosso
corpo. A gente é corpo de terra mesmo, deita no chão e ninguém vê a gente mais. Até a
gente se perde e vira pó sem querer. E no fim do dia é vó que varre nós pra baixo da
casa, junto com a terra toda. Junto com lama de xixi. A gente se perde fácil.
Perdi pai. Ontem ele entrou no rio bravo, como todo dia. Leva as coisas, etc.
Leva pra minha mãe. Ele diz, todo dia desde que mãe sumiu, ele diz que mamãe amava
a gente, mas não guentava não. E um dia o rio bravo chamou ela e ela foi. E aí mamãe
virou sereia. É porque mamãe sempre foi diferente, ele fala, a gente é terra, mamãe
sempre foi água. Se jogar ela no chão vira lama. E a gente era chão e terra, ela tava
cansada de ser lama assim. Entrou no rio, a cauda de peixe que ela escondia cresceu e
ela virou linda com duas concha na frente do peito e os cabelo encaracolado, mãe-
sereia. Nunca mais vimo, só pai vê mãe. Ela não pode aparecer fora do rio bravo. Se
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virem ela, matam. Então ela fica escondida e pede licença pro rio bravo pro papai
passar. Todo dia ele vai lá, leva a alma, leva o peito, leva nós nas lágrima. Mamãe
queria tanto ver vocês mocinha, ele disse anteontem. O rio bravo tá cada vez mais
bravo, ele disse também. E eu choro tanto que tô me sentindo água, acho que ouvi ele
reclamando.
Pai sempre entra no rio bravo, mas sempre sai. Não ontem. Ontem ele só entrou.
Levava a gente nos olhos. Levava um fogo também, uma vontade. Pela primeira vez ele
bebeu cachaça antes de entrar no rio bravo. E beijou nossas cabeça bem no cabelo, sem
medo de piolho. Eu não beijaria, cabelo não. Cabelo é sujeira, pior que lama de xixi.
Cabelo é a medida da gente morrendo.
Ontem à noite, meu pai entrou no rio bravo.
Tava com os cabelo grande, pai. As barba maior. Muita morte saindo do corpo,
medidas longas de morte, maior que o corpo dele até. Tava assim faz tempo, o cabelo
não crescia mais. Como se a morte tivesse chegado no limite dos pelo de pai.
Não é a gente que entra no rio bravo, ele me disse, é o rio bravo que entra na
gente. Pois é.
Acho que meu pai virou sereio.

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II

Dever de casa: Faça uma redação sobre um ente querido (valendo 10 pontos)

Eu lembro é só do gosto. Era como se eles sessem estrelas e do mar.


E lembro a língua não queimava no toque ingual parecia pelos olhos. O olho se
enganava com a cor borbulhante, só a língua que sabia que a verdade dos cabelos de
mamãe eram borboletas.
No boa noite quando as luzes fechavam os olhos e descansavam em suas
caminhas, eu sentia na caminha minha o beijo dos cabelos da mamãe na minha
bochecha. Eles pareciam do fogo mas marinho. Como uma ferida no escuro, cicatriz
ainda quente de sangue que escapuliu na pele preta do quarto. Mas o gosto, não tinham
o gosto de dor nenhuma. Cando ela dormia como uma bolha de sabão, eu vinha de
gatinhas e botava na boca um pedação de cabelo dela pimenta. Não ardia não nem
sangrava nem. Tinha gosto de silêncio e sal, uma pitada de canela e giz de cera.
As vez mamãe chorava e de noite. Seus cabelos era como se sessem fantasmas
de cabelos depois de um tempo. Mas sempre tinha beijo de mãe no escuro e as luzes
dorminhocas não testemunhavam porque dorminham. Mãmãe tinha a boca cabelos de
batom, porque sem ficava igual cabelos fantasmas que ela teve depois.
Eu lembro é de que quando ela se dançava nas festas e os outros batiam umas
palmas tímidas, só os pés dela eram apaixonadinhos pelo chão e davam bitocas no piso
da sala e as mãos zombavam de Deus em movimentos ingual cobra. E os cabelos, ai, os
cabelos aí é que eram foguera e dava pra ouvir a palha do cérebro estalado por debaixo
do incêndio de mamãe. Ultima festa que mamãe dançou eram os fantasmas de uma
foguera, um fogo fátuo ecoante e os pés não estavam tão safadinhos assim e as mãos
pareciam mais cristãs.
Cando era de fantasma eu botei só um pouquinho de cabelo um dia na boca. Não
que era difício, que mami só nanava o dia e a noite toda que tinha e aí eu podia ter
cabelo de apiritivo, mas é que eles pareciam tão cansadinhos que eu só provei foi um
dia e provei foi um tantinho assim. Aí guspí na hora de susto. Era gosto de lagartixa, de
entranha de lagartixa, bem azedinho assim, um gosto da coisa mais verde que já existiu
e eu écati. Eu nunca entendi cabelos fantasmas.
Eu acho que era porque ela não vinha mais me dar boa noite aí os cabelos iam
adoecendo porque meu beijo é ingual aguinha de planta e mamãe parecia sequinha
sequinha, murchinha murchinha. A última vez que vi ela no sofá ela não bolha de sabão,
ela chumbo e aí ela tinha os cabelinhos tristes nem fogo de vela, mais pra baba de vela
do que pavio ensanguentado de chama.
Aí é que eu resolvi dar um jeito e é aí que é que eu é que subi na mamãe e
comecei a beijar tudo e de estalinhos. E lambuzei com carinho as buchechas pra pele
sugar aguinha e cabelo crescer igual maçã e beijei borboleta seus cílios pra fazer carinho
nos pelinhos que pareciam mortinhos, beijei os ossinhos do rosto que tavam bem
desenhados que era igual o livro de História Antiga da vovó que me assustava e beijei o
vazio de baixo dos olhos que era ingual o panda tinha e também aquele bicho que
parece um ladrãozinho mas que esqueci o nome do bicho... Professora, cando eu
lembrar o nome do bicho eu te conto o nome do bicho... Qual era?
Mas o preto onde os olhos da mamãe dormiam não eram tão fofos igual dos
bichos não, eram o profundo, como se entre o rosto e o pretinho vivo do olho existisse o
infinito, o preto tão preto que engolia as formas e as dimensões de guloso. E beijei as
pálpebras cheia das veínhas que eram ingual pétala de rosa branca quase transparente
que eu dei pra ela penúltimo dia das mães que o pai me deu pra dar pra ela, mas que a

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gente só botou na mesa de mármore onde ela trabalha, porque ela tava muito meio que
ocupada pra receber disse papai.
E aí beijei a testa suada suada parecia que eu nadava na testa, hoje eu nem
preciso mais usar boia que se fosse beijasse lá de novo, mas sabia que não ia não, então
me atirei nas águas de mamãe mesmo e quando eu bem me afogava foi aí que ela
acordou e gritou baixinho e de choro e eu preciso dormir meu filho e de raiva tira ele
daqui e ponhou a mão nos olhos e de vergonha. Papai me puxou das águas e a voz de
mamãe era aquática ingual, como alguém que se afoga e em borbulhas vai falando e as
mãos ingual de pássaro e os olhos infinitos submersos enterrados enterrados, enterrados
em água salgada era como se sesse derretida. E aí eu ouvi ingual quem treme que eu não
podia ver ela assim e era a voz dela e eu chorei e papai falou que era porque mamãe
tava com vergonha e com medo, de que papai, de dormir e de pra sempre. Aí eu que
dormi e meio dormindo senti um beijinho sequinho e cabelos tão frágeis me acariciando
que nem sei se sonhava ou se era verdadeirice.
Aí ó foi a última vez aí só depois, mas não era mãmae era uma moça que se
fantasiava de mãemãe e foi no quarto branco igual ela e perguntei quem é e papai é
mamãe e eu mas cadê o cabelo de sereia de passarinho de fogo marinho de rodopio e
bailarina de caixinha de música e de ferida no escuro de rosa de flor que derrete de, ah
filinho ela não precisava, ela jogou fora pra nascer outra flor.
Aí ó é que mamãe só tinha um lencinho na cabeça, professora. E de tão
branquinha de quarto tão branquinho que parecia que ia indo, embora de gatinhas,
devagarzinho pra não assustar, ingual eu quando ia beijar o fogaréu dela lá na sala e aí
era como se todo dia era tchau. Como se ela tivesse num ônibus na rodoviária que
demora um montão pra sair de ré e que a gente vê, intocável, o rosto de quem a gente
ama na janelinha escura, só o rosto, o rosto e a escuridão que já existe nos olhos
infinitos, só o rostinho de mamãe que foi indo, indo, indo e iu.
Dos cabelos de mamãe só lembro o gosto e já derreteu entre salivas e toda vez
que vejo foto dela eu salivo nos olhos de fome de mamãe. E tudo que avermelha me
aconchega e me repele. Cabelo de mamãe que virou lencinho, ainda vermelhinho, ainda
ardente na caminha branca. Nesse dia das mães desse ano eu punhei florzinha vermelha
na mesa de mármore dela e papai disse que ela estava ocupada de novo e o olho dele era
da cor da rosa dos cabelos e dos lábios de mamãe. Brilhavam, era como se eles sessem
estrelas e do mar.
Lembrei, era guaxinim o bicho, professora.

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III

Dor e Fel

   - Mãe, olha mãe, olha pra mim!


A mãe, apesar de ouvir os chamados agoniantes do filho, perdia-se no esquema
colossal de metais, retas e cabos. Embaixo da grande torre que trespassava os céus
parisienses todos os olhos eram roubados, o menino deveria perceber isso. Como um
imã, as pernas abertas para a imensidão, a torre acinzentada imantava os seres,
enclausurando-os numa realidade de satisfação inexplicável. E embaixo de toda essa
onipotência, o garoto clamava, desesperado.
- Olha, mamãe, por favor! - E esticava os braços para o alto, abrindo as pernas o
máximo que podia - Eu sou a torre!
Ninguém perderia seu tempo olhando para uma miniatura quando a verdadeira
torre está imponente sobre sua vista e possível ao toque dos dedos suados de emoção. O
menino, pobre menino, no meio de um engarrafamento de turistas deslumbrados,
imitava a torre, fazendo dela a extensão de seu corpo, mas mamãe preferia a outra.
- Olha mãe! - E esticava-se mais, as braços alcançando o céu e as pernas quase
englobando o mundo. Mas mamãe perdia-se nos parafusos, nos elevadores e nos outros
perdidos, agasalhados sobre as penas de ferro parisienses. - Eu sou a torre, não é
engraçado?
Não era. Não era, pois publico não havia, provavelmente a verdadeira torre era
muito mais engraçada, não pareciam gostar de imitações por ali. Na verdade isso não
era de todo certo, pois sem ninguém ver, ao longe, um senhor dos cabelos nuvem olhava
bondoso para os pobres esforços do sonhador pequeno. Os olhos do senhor, derretendo
na visão dos dedos esticados no alto, fazendo cócegas no umbigo do sol, sorriam,
melados de um amor imediato, um lago de calmarias que lavava a pureza do menino em
suas águas límpidas.
Aos poucos o senhor sorridente dos cabelos doces aproximava-se, os pés
voadores volitando entre os pés de ferro da torre dos turistas dos turvos seres cegos à
beleza infantil que rodopiava num turbilhão de cores no centro do monumento. Dali,
daquele ângulo, a torre criançava e a criança torreava, dali, enquanto o senhor lambia o
chão com os pés deslizantes, a criança roubava todas as luzes as luas e os olhos
imantados pela torre. E a mamãe, ao menos do ângulo dos velhos olhos bondosos,
prestava toda a atenção, sorrindo e surpreendendo-se com a elasticidade dos membros
eternos de sua cria criança.
A alguns passos da pequena torre que brotava no solo, o pacifico senhor, agora
parado, sorria com todos os membros de seu corpo. Como amava crianças. A pureza dos
corações-anões nos peitos flamejantes arfantes infantes, gigantes de alma, pluri-seres,
pluri-vidas, pluri-ritos, pirulitos e algodões pelos ouvidos, pelas mãos e dedos, seres
amebas angelicais, transformistas puros, tudo e todos. As crianças, aquela imensidão
engaiolada no peito frágil, nas curvas ainda em rabisco, nas cores à espera de uma
segunda mão. Das dobras, dos gestos, dos gostos virgens. Como amava crianças.
- Vê, mãe, como seguro a ponta do céu? Olha, sou torre também! - Mas a mãe
continuava seu caminho, cega à verdadeira beleza que transpõe realidade, à beleza das
crianças, e continuou seu caminho adulto, adulto e cego, entre os turistas esmagados por
si mesmos, presos entre seus corpos e presos ao pouco que o olho vê.
A criança, agora sozinha, ainda estendia-se em seu varal. Ainda torre, ainda
enorme, pedia a atenção de qualquer um, pedia o retorno da mãe, pedia para ser torre
mesmo, de verdade, de ferro, fogo, parafuso, fio, pernas abertas e coração trancado,
enjaulado no topo da cabeça, inalcançável como sua existência naquele meio

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gigantesco. Em seu peito, brotando a tristeza da incompreensão, da privação do ser e do
som, jorrava dor e fel.
O bom homem dos olhos excitados chegava perto, tocado pela falta de
apreciação da verdadeira arte, da verdadeira escultura. A criança, como amava crianças,
era a escultura perfeita da bondade, a pele pessegal da eterna felicidade, pelos ainda que
tímidos, grama loira aparada pelo tempo, fazendo do toque um cafuné eterno, os lábios
do melhor vermelho, do vermelho mais pulsante, inigualável, abatonzável, abatível.
Como amava crianças.
O bom homem dos olhos sorridentes, dos membros sorridentes e pulsantes,
aproximava-se lentamente, tal cobra sorrateira com os pés nuvens, lambedores do solo
de escarros e suores corpóreos.
O bom e velho homem dos cabelos alvos e óculos de tartaruga, da boca murcha
revelando a falta dos dentes, das costas já entravadas, dos dedos duros de calos,
aproximava-se da irradiante beleza infantil e com sua boa mão de velho e bom homem
tocado pela falta de amor, tocou, com todo amor do mundo, a pura e dura face da
nádega direita do menino torre.

8
Microtrilogia
da adolescência

9
I

O Estranho Dançarino.

As luzes piscavam agressivamente, atordoando-o, como um veado paralisa-se


com o vislumbre dos ardentes faróis de um carro louco para sugar sua existência. E
talvez realmente o fosse. Ele estava no lugar errado, quilômetros longe de sua área de
conforto, totalmente acuado como um cão cuja liberdade fora ceifada pela carrocinha. E
talvez realmente o fosse.
Seus amigos o levaram para aquele lugar barulhento, onde as pessoas iam para
soar uma nas outras e esfregarem-se ao ritmo do barulho numa tentativa enlouquecida
de transformar seus corpos em uma só calda homogênea de volúpia e saliva. Mas ele era
tímido demais e as luzes delatavam sua existência num ambiente tão errado e torto. Lá
estava ele, pela primeira vez em vinte e cinco anos, parado na multidão pululante,
perdido entre línguas esticadas que enlaçavam-se por trinta centímetros de extensão,
cobras esponjosas embriagadas esmagando seus corpos uns nos outros, entre poças de
bebidas derramadas onde um ou outro bêbado se afogava aos poucos, entre as luzes
metralhadoras que furavam lentamente seu corpo.
Seus amigos começaram a empurrá-lo para o centro da massa, as palavras saiam
moles de suas bocas, suas razões derretendo-se em vai lá dançar cara,  tenta encontrar
alguém, não custa nada se movimentar, deixe de ser tímido, bebe alguma coisa. Não
bebia, não encontrava ninguém, não dançava, era tímido, estava num lugar tão antitético
à sua existência que a palidez de seu corpo fazia a luz refletir quando tocava sua pele e
isso dava a impressão de ser perceptível e quebradiço, o que dava muito medo.
As muitas mãos daqueles polvos malditos iam contra seu fraco corpo,
empurrando-o para o epicentro enlouquecido do fervor e logo ele se viu sozinho entre
frequências altas de uma batida martelante e asquerosa feita de fibras plásticas da
acefalia musical, entre masculinos olhares caçadores que perdiam-se entre budas e
peitos, entre femininos olhares de desdém, entre braços eternos que batiam contra sua
pequena, imóvel e instável existência naquele lugar extraterreno.
Logo percebeu que chamava mais atenção parado do que se se entregasse para a
dança vazia de chacoalhões ininterruptos. Os outros percebiam que havia alguém ali que
não se misturava, que quebrava a cadeia de ações, que destoava da imparável pulsação
dos corpos. O estresse tomou seu corpo, chacoalhando-o, e a vergonha veio como uma
onda gigantesca de fogo, acendendo suas protuberantes bochechas no mais rubro que o
calor deixava. Agora ele brilhava mais que as lâmpadas que rebolavam no teto.
Assustado, resolveu olhar a luz, o Strobo, que piscava os olhos interrompendo sua visão
em clarões de escuridão absolutas seguidos pelo vazio do clarear agressivo.
A luz metralhadora estourava suas retinas e o fazia perder lentamente o controle
do corpo, aos poucos foi se sentindo mole e seus olhos começaram a lacrimejar, mas
nada podia fazer, agora era como um sapo paralisado pelo medo da lanterna, como um
inseto apaixonado pelo poder da luz, como um religioso intumescido pelo clarão de
deus. O barulho misturava-se com a luz, os dois no mesmo ritmo eletrônico - várias
impressoras velhas imprimindo documentos enormes, a estática da televisão fora do ar,
o barulho incessante de uma conexão à internet discada -, sons mortos que batiam sobre
seu corpo com uma carga de ódio inesperado e que lentamente o fulminavam. Foi então
que começou a dançar.
Os músculos endureceram, travando o corpo num espasmo, e lentamente as
extremidades começaram a se mover. Os pés tomaram o ritmo enquanto os braços
bamboleavam um contratempo. Os dedos moviam-se aleatoriamente, parecia tocar um
piano invisível, apelando para alguma melodia no meio daquela bateção de panelas. Os
braços transformaram-se em polvos e começavam a movimentar-se, como a hélice que
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se liga, rodando lentamente em ondas de um suingue inesperado. As rotações
aumentavam e logo ele era uma mar em ressaca, muito bravo, as ondas gritando seu
rancor contra a humanidade. Seu corpo tornou-se tsunami, uma onda crescente de
devastação de seus sentidos, espalhando-o para todos os lados, arrebatando-o sobre as
pessoas e lentamente chamando a atenção de todos para a sua pessoa franzina.
Logo todo seu corpo dançava em transe. Dos pés até a cabeça, os olhos rodando
em seus eixos, a língua sambando entre os dentes que tentavam guilhotiná-la, os lábios
em distúrbios de bipolaridade, franzindo-se e esticando-se, como um eletrocardiograma
de um corpo que luta entre dores contra o desfalecer, agarrando-se na borda da vida e
batendo os pés como uma criança aprendendo a nadar.
E agora ele batia as pernas!
E os braços!
Não importava o que fazia, sempre estava no ritmo.
Os olhos voltavam-se para o fenômeno e fizeram uma rodinha em volta daquele
ser tão flexível. Batiam palmas e faziam barulhos primatas de excitação, assustados com
tamanha peripécia e desprendimento da auto-crítica daquele ser. Isso é que é um homem
livre, pensavam as mentes bêbadas, isso que é um ser feliz, liberto das algemas sociais
da auto-castração para atingir a normalidade moldada e mecânica. E batiam as mãos e
balançavam a cabeça para aquele novo herói.
Os amigos que o levaram para aquela danceteria logo chegaram, aliviados pelo
plano de ter dado certo, felizes por verem seu amigo integrando-se com outros seres e
com grandes chances de conseguir deslacrar sua virgindade ainda naquela noite.
Juntaram-se ao coro das palmas - ele finalmente era parte da música, da massa, da
dança! - enquanto o dançarino resolvia fazer uns passos ousados de hip-hop ao jogar-se
no chão e imitar um peixe debatendo-se na areia seca.
Todos riam e aplaudiam. O cara estava tão enlouquecido e excitado que
começou a babar e espumar, diziam, mas tudo bem porque ele era maneiro pra caramba
e essas coisas acontecem! Seu corpo pulsava-se à batida musical, seus ossos
chacoalhavam como maracas esquentando a música, os músculos retesados prendendo-o
em movimentos bruscos e delirantes, a música o invadia e a luz... a luz piscando
hipnotizava fazendo seu coração piscar junto com ela.
Depois de vinte minutos começou a ficar chato, eram sempre os mesmos passos,
realmente era um cara principiante porque trabalhava em sua maioria com a repetição. A
rodinha ao seu redor desfez-se e os corpos voltaram para suas músicas alheias, os
amigos foram à caça de mulheres e acharam melhor deixar o companheiro se divertir da
maneira que quisesse, afinal sempre fora estranho toda vida e essa era a primeira coisa
normal que ousava fazer em anos, decerto teria alguma pitada de sua estranheza natural
e extensão, pela própria valorização do ato e de si mesmo.
Por isso que ninguém percebeu quando os olhos viraram-se para dentro,
transformando-se em duas bolas cegas e desesperadas, assim como ninguém viu a baba
esbranquiçada mesclar-se com o gosmento e melancólico sangue que tomava o rio
leitoso de saliva com seu avermelhado atraente de uma vida vazando lentamente.
Os dentes famintos finalmente travaram-se na língua, diriam os médicos, durante
um enorme e torturante ataque epilético.
Mas os médicos só chegariam bem depois, junto com o nascer do sol. Os olhos
bêbados não conseguiam discernir o que acontecia, então decidiram deixar o estranho
dançarino descansar em sua viagem lisérgica, afinal, para um cara dançar daquele jeito
só podia estar muito drogado.
O corpo ficou no chão por quatro horas, como um animal empalhado na sala do
vencedor, sus olhos brancos refletindo a luz em seu eterno piscar, como um cavalo
desesperado que petrifica-se sobre o trilho de trem apaixonado pela luz estonteante que
o vem abraçar, seus membros ecoavam alguns espasmos perdidos de dança macabra
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anterior, retorcendo os dedos, tremendo os braços e as pernas, como uma aranha que
depois de esmagada retesa suas patas, como a barata que, pisoteada, baila a triste valsa
da morte, definhando lentamente, com as patas movendo-se nervosas, num reflexo
elétrico da vida que ali existiu, as patas levantando-se procurando o rosto do existir
como um cego que tateia o escuro. E talvez realmente o fosse.

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II

Celibato.

Era uma santa, seus longos cabelos de lisa candura jaziam intactos provando sua
fieldade ao Grande Cabeleireiro, seus olhos voltados aos céus na maior parte do tempo
procurando respostas às aflições dos próximos e amar o Homem dos Céus, desprendia-
se do que tinha para dar aos mais necessitados lembrando do Santo Caridoso, vestia
vestido preto até a sola do pé e cinto de castidade vinte e quatro horas, que na verdade
era um maio de ferro e cobria até os seios, baseada nos ensinamentos do Puro Casto. Por
isso era virgem, linda moça, olhos azuis, vermelhos cabelos, vermelhos e fogosos, como
sua flor escondida que jazia intacta. A moça era tão santa que só comia banana ungida
em banho-maria de água benta e cortada em rodelas como hóstias, aliás adorava quando
ia tomar as hóstias das mãos dos padres. Ajoelhava-se com gosto e abria a boca para
receber o sagrado branco com gosto de deus das mãos desses párocos santos, a rodela
derretia em sua língua quente com ardor, o calor fazendo do sólido um liquido branco,
que escorria garganta abaixo e preenchia todos os espaços de seu corpo. Às vezes, sem
querer, ela dizia, sua língua tocava nos nós dos dedos dos padres. Dez pai-nossos, vinte
ave-marias.

13
III

Automutilação

Sou um ser sujo, horrendo e pegajoso, que não merece nenhuma gota de piedade
ou compreensão, que não merece o mínimo brilho de um sorriso falso e quebradiço em
sua retina cega, ou o mais fino toque da mão pura do outro em seus fios oleosos e
ofídios que brotam assustados e confusos de seu couro cabeludo.      
Sou uma extensão nojenta de pele morta que mal sela minha carne putrefata e
engordurada, como grossas postas de um boi gordo, a gordura amarelada parasitando a
carne e estufando a morte cada vez mais perto de mim,  apenas um embrulho de derme
sebosa que faz de tudo para não explodir em cachoeiras de mar amarelado, os diques
estriados de minha pele arranhando-me e gritando por compaixão.
Sou a extensão mais nojenta e deformada de pele possível, com minhas
montanhas e depressões recheadas de pus, meus vulcões enlouquecidos de esmegma
oleoso, minhas espinhas, espadas levantadas contra os olhos dos seres humanos,
agredindo a pureza de seus olhares com os espinhos encravados espumando e
derretendo meu rosto lentamente.
Me enojo em tocar-me, em olhar-me, em dar prazer ao meu cansado e bufaloso
corpo suado, em propiciar uma réstia nojenta e pegajosa de gozo à bola de carne e
destruição que ousa respirar, de tatear em espasmos ritmados meus muitos ápices e,
depois do jorro calculado e murcho, rolar em minha vergonha, procurar-me na falsa
espuma do prazer volátil, e me ver nu, no meio do pátio escuro, com a névoa de torpor
que me cobria a dissipar e a mostrar para todos minha vergonhosa e enrugada cadeia de
montanhas.
Me enojo só de pensar que o cabelo que derrete em minha cabeça e que moldura
meu rosto em pequenos tufos desconexos, é o mesmo que prolifera em meus sovacos
enlameados, é o mesmo que enrola-se em meu sexo adiposo e borbulhante, é o mesmo
que adorna as faces de minha bunda. Deixo de tocar-me cada vez que percebo que o
cabelo que tento arrumar com as mãos trêmulas é o mesmo que bravamente serve de
mata ciliar natural do olho do meu cu.
Me rasgo envergonhado ao perceber que a mesma pele adocicada de minha
bochecha onde mãos puras ousam tamborilar ou passear, ainda que raramente, é a
mesma que enruga-se e escurece em longas fileiras de fungos na fina camada protetora
do meu escroto, a pele que abraça e enlaça meus parentes e outros seres obscuros é a
mesma que assume o cheiro azedo de meu sexo e amarra severamente o líquido solto de
minhas bolas.
Me calo com medo de falar quando descubro que a mesma pele marrom que
estica-se em meus lábios com sua suave e silenciosa proteção é a pele que empelota-se,
ainda que da mesma cor de madeira e escuridão, nos bicos abertos dos meus mamilos,
em bolas amarrotadas de carne preta e sensível, em auréolas pedregosas com antigas
maldições cravadas em braile.
Sou a morte que ainda não veio, o cadáver que espera, o aborto que vingou. Sou
a lepra emocional, a putrefação mental, o estupro existencial. Sou o nada em meu tudo
que estende-se tão seguro, tão pretenso em existir, tão orgulhoso em estender-se que
esquece, por isso preciso lembrá-lo de tempos em tempos, que de tudo não tem nada, só
o nada que eu sou.

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Microtrilogia
do transporte público

15
I

On(ib)us

Sobreviver à odisseia dos calosos caminhos da cidade sobre o mofado transporte


público é estressante. 
Sobreviver, porque a morte certas vezes pode ser menos encalombada e
sudorípara do que as curvas que defenestram pessoas nas sarjetas e projetam axilas
oleosas em faces despreparadas, as bocas abertas a sorver do fino caldo do calor e da
sujeira corpórea liquefeita, em grossos goles de pelos e dor revolvida por asco. 
Sobreviver, porque a quantidade de pessoas transbordando pelas janelas
rachadas faz o ambiente ali dentro virar uma selva onde a lei do mais forte impera, e
cada vez que uma pessoa tenta se mover e é massacrada pelas demais é possível ouvir,
lá no fundo do silêncio seboso dos corpos atritando-se, a gostosa e ecoante gargalhada
de Darwin.
Se não bastasse a largura, o odor e a textura corporal dos passageiros
indiferentes aos pesos de seus corpos, indiferentes ao toque de suas extremidades,
indiferentes ao cheiro de seus hálitos, deus resolveu lhes dar bocas, e, pior, cordas
vocais, e, pior!, uma verve incansável de avisar a todos ao seu redor todo e qualquer
problema que possa surgir em sua vida, e, pior!!!, determinados horários para chegar em
seus determinados lugares. A junção de todas essas infelizes complicações faz crescer o
imenso burburinho, ensurdecendo a todos ao redor, que precisam gritar mais alto, numa
explosão infinita de ondas sonoras arregaçadas que de tanto se complementar e
confundir quase geram o ensurdecedor som branco.
Como os ônibus por excelência atrasam, os humanoides atrasam e eis o maior
medo: perder tempo-espaço, que gera movimento de todos os atingidos. De certo o
movimento é abstrato, pois é impossível lutar contra a massa de corpos e dores
enlatados entre o aço dos bancos esqueléticos. Movimentam as bocas entre gritos e
uivos, em brigas distantes com o motorista, que além de mal-digerir e dirigir precisa
calcular preços, devolver trocos, liberar catracas e acalmar ânimos, graças a um ótimo
plano de economia da empresa de transportes. Normalmente o motorista pressionado,
para impressionar os apressados, tende a pressionar o pé no acelerador e queimar os
velhacos pneus no chão de pregos e gatos amassados da cidade.
Dia desses acontecia o mesmo, trogloditas gritando seu atraso à quatro ventos,
motorista gritando sua pressa no acelerador, os olhos cegos do desespero nos olhos
cegos e mal iluminados dos faróis, o ônibus balançando nos buracos municipais, que
são os maiores pontos turísticos da cidade, e entre essa pulsação de insanidade a vida
ousava florescer lá fora numa realidade diferente dos homens dentro do maldito ônibus,
e nessa vida segregada daquela realidade os homens resolviam passar de uma borda à
outra da calçada quando o sinal ruborizasse de vergonha.
Mas veja os olhos cegos que não te veem, homem, e sente o corpo de metal
engolir o seu, os ossos destacando-se da pele como a capsula de aspirina forçada para
fora do pacote pelos gordos dedos impacientes, o pneu macerando a carne como os
gordos dentes fizeram nos almoços polpudos com bifes malpassados, malpesados e
malpensados, um grito de dor, um uivo de adeus, e interjeições de dó à si bemol das
alheias vidas que passavam por fora do ônibus e observavam o massacre urbano.
Morreu adiantado atropelado pelo atraso. O ônibus teve que parar, compreenda, porque
era impossível seguir com um corpo abraçado no pneu dianteiro, rolando e divertindo-se
nas rachaduras do solo, espirrando seu sangue no pálido acinzentado da natureza e dos
olhos que arregalavam-se de pavor. Ao fim havia um couro híbrido de homem e pneu,
um xadrez enlameado e ensanguentado, entre ossos, carne, borracha e fluídos corporais,

16
o corpo morto das compras estiradas no chão, a cabeça do tomate rolando pela sarjeta
suja de escarros sociais.
O motorista assustado desceu do ônibus e olhou piedoso para a vítima da
sociedade que estrebuchava como a barata que luta contra a morte em suas patas
arqueadas. Os homens que andavam desceram de suas cegueiras e abriam os olhos
cansados para o mesclado de ser humano e máquina com o mastodôntico pneu do
ônibus. O problema, veja você, é que os passageiros não conseguiriam descer do ônibus.
Logo, os passageiros não conseguiriam descer de sua cegueira, a massa não se movia ali
dentro, alheia a vida, e gritava, estrebuchava, como gordos cães raivosos presos num
sujo saco de estopa: estamos atrasados seu motorista ô seu motorista ô piloto vamos
chegar atrasados porra incompetente vou abrir uma reclamação contra você que
deixou o local de trabalho ô motorista filho da puta estamos atrasados seu motorista.
Os gritos ecoavam por todo o mundo e logo as autoridades dos transportes
públicos ouviriam e prenderiam o motorista. O pobre homem agarrou a pasta de ser
humano no pneu e, com a ajuda de mais duas pessoas que ativavam as hipocrisias e
ousavam balançar a cabeça negativamente, puxou aquele resto de réstia de vida para a
sarjeta escarrada. Era engraçado, pensaram os homens, como o pneu não se machucara,
nele só restara uma fina geleia de ser humano. Logo o caldo de sangue que sobrava
daquele corpo escorreu entre os gigantescos ralos da cidade com seus dentes entre
musgos. Pedaços de carne e pele também desprendiam-se do corpo e suicidavam-se no
poço sem fundo dos esgotos. Os ratos teriam um banquete.
estamos atrasados seu motorista ô seu motorista ô piloto vamos chegar
atrasados porra incompetente vou abrir uma reclamação contra você que deixou o
local de trabalho ô motorista filho da puta estamos atrasados seu motorista
Os homens, os que andavam, botaram novamente os óculos sociais e cegaram-
se, para poder sobreviver à feroz realidade. O motorista, apedrejado por latinhas de
refrigerante, papéis, pedaços de bancos, dentes, e o que mais fosse encontrado dentro do
ônibus, suspirou profundamente e entrou em seu caixão sobre rodas, desligando-se da
realidade e levando seus gordos porcos pro abate em que a vida se transformara. E entre
as urinadas, cusparadas e fezes jogadas pelos passageiros que continuavam a reclamar
do atraso que nunca mais seria recuperado, o motorista sussurrava baixinho, entredentes
e cáries: são ossos do ofício.

17
II
palavras rápidas sobre a violação

A mulher violada no metrô fechou os olhos, sentiu o calor fecundar seu corpo e
o clarão de luz de repente iluminar suas vergonhas.
Virou a cabeça para o lado e a tombou, em seu cabelo uma coroa de cobras
sibilando e lacerando sua cabeça, ao seu redor mais três mulheres, violadas, acaloradas,
seus estigmas brilhando à luz das câmeras, suas cobras enrolando seus cérebros. 
O que fazer, perguntou o homem, eu estava com vontade, não pude me segurar,
quem de vós não tiver pecado, atire-lhe a primeira pedra.
Em meio ao silêncio de nossa reprovação, movimentos santos tomaram-nas.
Dar a outra face, respondeu uma que levava na mão a maçã mordida.
A outra não falou nada, mas suas lágrimas místicas formavam a seguinte frase
no chão: Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?
e a do meio, emocionada como santa Tereza em seu êxtase, sussurrou para seu
coração: 
Perdoai-os, eles não sabem o que fazem.
As mulheres então calaram-se e engoliram a hóstia da culpa, sem morder o pão
santificado. E beberam o amargo vinho de sangue de lágrimas de dor.
As mulheres seguiram ao confessionário com medo de suas sujeiras.
Dez ave-marias, vinte pai-nossos e muita vergonha na cara, disse o homem
padre.
As mulheres abaixavam os olhos pros homens necessitados.
As mulheres tapavam os corpos e pediam desculpas.
As mulheres faziam o sinal da cruz e entravam no metrô.

18
III

O Grande Circo.

A menina, como bailarina, rodou no branco do céu de nossos olhos e caiu,


impossível, bem ali.
Tão linda a menina, na beira da vida como equilibrista, os bracinhos abertos num
voo magnífico que nunca acontecia, mergulhou. Espetáculo para os olhos.
Loirinha, a pequena, deslumbrava como contorcionista, amarela nos pelos,
esbranquiçada nas maçãs, de céu o olhar, olhou enfim para seu público e sorriu,
vermelho branco amor, bracinhos abertos.
Infante a menina, pequena criança, grandes passos, como o elefante adestrado,
sua infância despetalando nos olhos assustados, no fundo que abraçava seu corpo, no
silêncio tumulo que cresceu ao redor.
A criança, como mágica, como alquimista, fez da vida a falta dela, fez do mundo
crueldade e fez de sua presença, tão bela, o silêncio que anda até hoje nas minhas
palavras e sombreia minha lágrima cáustica.
Queima, sua imagem caída, e a mão que talvez queria abraça-la, ainda sobre seu
corpo, empurrando o vazio onde estava sua presença. Talvez fora empurrada pelo amor,
quem a empurrou na verdade queria-a tanto e tão avidamente que perdera seu controle e
na fome eufórica o impulso foi contrário.
A mão maldita chorava também, como todos nós naufragávamos em nos
mesmos e como a própria menina afogava-se em lágrimas e em sua baba borbulhante.
Caiu, naquela tarde, o girassol e o próprio sol, no abismo cruel do trilho do
metrô. E seu corpo iniciou a dança lacerante e doentia dos epiléticos, era a energia,
alguém disse. A criança no trilho do metrô. A criança foi eletrocutada no trilho do meu
trô. E meus olhos negam até hoje.
Todos imediatamente duvidaram da existência de Deus e o Próprio, pobrezinho,
olhava no espelho e chorava. Imagem e semelhança, Ele murmurou, imagem e
semelhança.
Deus caíra, naquela tarde, no trilho do metrô, e abraçava a menina loira, os dois
na dança infeliz e lúgubre dos que partem em milhares de pedaços e que não deveriam
partir.
A menina fora empurrada no trilho do metrô e todos nós fomos juntos, atrás,
num salto ornamental, num nado sincronizado no líquido das lágrimas de nossos olhos e
da saliva da pequena, que estava em erupção, ainda com gosto de pirulito, ainda
pedindo perdão. Pedíamos todos perdão e mergulhamos todos, todos que ali estavam.
Morremos junto com Deus, junto com a menina bailarina que dançava no trilho inocente
do metrô.
Perdoemos o trilho, ele não sabe o que fez. Mesmo sabendo, que no fundo, ele e
nós mesmos nunca iremos nos perdoar. Os cílios se fecham doces, delicados, como a
mãe que cobre sua filha na hora de dormir, como as cortinas empoeiradas de um grande
espetáculo. Sem aplausos. Beijamos sua bochecha, cobrimos seu corpo.
Bença. 
Deus te abençoe minha filha.
Boa noite. 
Boa noite meu amor.
Até amanhã. 
...
É o nó em nossa garganta que responde.

19
Microtrilogia
do corpo

20
I
O gordo.

Olha pra ele, quanta obesidade que cabe nesse corpo, olha pro gordo, olha como
ele se mexe e as banhas balançam como se fosse a globeleza. Duvido que ele consiga
sambar, Nilto. Mas não é ele que dança, é a banha, olha só a banha, ela já tem vida
própria, mulher. E olha como ele anda engraçado, as pernas afastadas, tá cagado o
gordo? Tá não, tá assado, a coxa raspa na outra, deve estar carne viva. Se continuar
nesse assamento vai subir o cheirinho de churrasco e logo o gordo se come logo
rarararara! Rararara mulher você é duca! Olha seu Jão, o quê?, o gordo ali. Ah esse
gordo sempre passa por aqui, sempre nesse rosto de noite, o corpo de sombra, doido pra
se esconder mas é tão gordo, rapaz, tão gordo que nada o esconde, pode por a Terra na
frente dele que vai dar pra ver um embiguinho saltado. Rarararara. E o que ele faz? Ele
vai na vendinha, volta cheio de comida. As estria no braço tudo arrebentando, a pele
parece por um fio, branca branca, as veias vermelhas estourando, tudo embolotado
rapaz, esse baitola nunca viu enxada na vida. E se viu, comeu, rerererere!
Alá, o gordo voltando, agora tá com pouca coisa nos braços, mas ainda dá pra
ver as veias, que bosta de pessoa, chama lá o Gerso. Ou, Gerso, grita aí. Fala home. O
gordo, tu viu? Vi, veio aqui comprar corda. Corda? Corda, sim. Só? Corda. Pra quê, mas
que caralho de gordo. Ele é irritante mesmo homem, sempre que passa aqui eu fico com
um nojo. Eu tiro as crianças de perto. Já eu boto elas é perto e aponto e grito olha o
gordo olha é pra elas não serem nunca o gordo. Tá certa, Joana, é assim que se educa.
Mas, diz Gerso, o gordo não falou nada? Falou com a voz toda cheia de gordura dele,
um nojo, dava pra ver umas batatas do Mcdonalds presa nos dentes, a voz de
papaburguer, se os suínos falassem sairia daquele jeito.
Disse o quê? Que queria corda. O que esse diabo quer com corda? E pediu pra
eu ensinar um nó bem forte, capaz de suspender um touro. Ixi, um touro? O gordo vai se
suspender é? Ali, tá na casa dele, tá vendo? Ele entrou na casa, da pra ver o gordo da
janela, ali ó, se estrebucha aqui na mureta, não consigo, pega o banquinho caraio. Então,
aí eu ensinei ele uns nós no tempo da marinha. Ele é esperto, gordo é esperto, deve ter
aprendido de vez. Olha aí seu Gerso, que ele tá fazendo o nó certinho. Eita porra. É, o
que tem de gordo tem de esperto, o cérebro deve estar flutuando em fritura e pus. Ali
seu Gerso, pendurou um pedaço da corda numa madeira do teto e tá subindo no banco.
Que puta de banco forte hein, deve ser de elefante fazer truque. Rarararara! Rerererere!
Porra, foda! Rararararar!
Ali, caraio, é uma forca seu Gerso. Ele fez direitinho. Vai se matar, o baitola? Vai
se matar, o mórbido? É só um peso no mundo mémo. RArarararara!
Essa corda vai é arrebentar e vai ser um terremoto do cu fazer bico rararararrara!
Olha isso, que vergonha. Rarararara!
Isso aí é falta de buceta! Rarararararara!
Rererererere!
Rorororororo!

21
II
A gorda

Os passageiros todos prendiam a respiração e enrolavam os dedos uns nos outros


em mandingas para a boa sorte vir. Dois dedos cruzados, antenas imantadas com
capacidade de moldar as venturas ao bel-prazer de seus donos, argumento irrefutável
capaz de fazer todo o Universo conspirar ao seu favor, o simbolo máximo da auto-
proteção já descoberto, tantas vezes desprezado e desacreditado, amuleto natural do ser
humano, tal como o selvagem cruzamento de pernas de Sharon Stone o cruzar dos
dedos manipula eventos irrefutavelmente negativos para fins prazerosos para quem dele
utiliza, dois dedos cruzados para ditar a humanidade, dois dedos cruzados para todos
governar. Mas infelizmente os dedos cruzados não surtiram efeito. Talvez pelo Universo
sentir-se superaquecido com a quantidade de cruzamentos imediatos, talvez por essa
besteira toda não fazer sentido, quando todos os passageiros do ônibus cruzaram os
dedos em uníssono seus pedidos não foram atendidos.
E lá estava ela, no seu ponto eterno, esticando o braço, já naturalmente esticado,
como se duas águas vivas da cor-de-pele estivessem num eterno balanço atado ao
antebraço daquele ser. Logo o ônibus teve que parar, mesmo tendo o motorista todos os
dedos possíveis cruzado, e as portas enferrujadas escancararam-se de medo, como uma
vítima que levanta os braços no reflexo de um assalto, para a gorda entrar em seu corpo.
Ela subiu lentamente, as banhas presas pelo leve fio de uma pele prestes a romper
balançando ao vento, os degraus de metal rangendo de dor e sangrando lentamente, os
braços rechonchudos como empadas e pernis agarrando-se na maçaneta que dobrava
sobre o próprio corpo, contorcendo-se e pedindo perdão pelos erros.
Quando a gorda entrou o ônibus, e não apenas os passageiros, suspirou. Dava
para ouvir os estalos do chão amassando milimetricamente em direção ao planeta que
avançava no corredor. Todo dia era o mesmo suspense, o corpo hecatombico subindo
lentamente no ônibus, avançando lentamente, tal qual uma piscina prestes a transbordar,
até a catraca e esmagando-se entre os dentes de ferro que esmagavam-se também entre
os milhões de calorias, diabetes, hipertensões e gorduras trans daquele corpo. Porém,
naquele fatídico dia em que todos fizeram seus dedos abraçarem-se, ela percebeu, com
muita dor e vergonha, que seu corpo não era mais capaz de passar pelos dentes da
catraca, que pareciam agora moldados para crianças, mas que na verdade sempre foram
daquele tamanho, pois ela era que parecia moldada para viver num mundo de gigantes, e
não entre os seres humanos.
O corpo, o grande e oleoso corpo, tentou dar meia volta, mas continuava preso.
Então chegara nesse ponto, pensou, no ponto em que deveria dar a volta no ônibus e
entrar por trás se quisesse tomar viagem. Um véu triste tombou sobre seu rosto entre
dobras e  voltas de pele empapuçada, os olhinhos suínos perdendo-se na multidão
sentada que lentamente vibrava os lábios numa tentativa de parecer não sorrir. Até que o
primeiro dos passageiros, que não checara se as amarras de seu bom senso estavam
corretamente atadas, lançou uma ecoante gargalhada que vibrou na boca dos demais. A
gorda estava empacada, isso parecia ser deveras engraçado. Olha a gorda, olha a gorda,
diziam, escangalhou o ônibus, olha o tamanho dela, gritavam, parece aquela porca do
desenho, parece um tumor inchado, parece um pudim, apontavam os dedos.
Ahahahaha!
O motorista, em prantos de rir, amarrou nos braços os braços felpudos da
rotunda mulher e, com todas as forças, arrancou o gasoso ser dos braços tortos da
catraca.
Logo ela desceu do ônibus, levando o mesmo em outro suspiro, agora de prazer,
para subir novamente na última porta, coberta de leite-condensado e vergonha, levando
sua traseira lunar para a dupla cadeira que lhe era de direito. As risadas continuaram,
22
fundo musical de toda a viagem, até a gorda desgrudar seu corpo chiclete dos múltiplos
bancos que possuía e rolar escada abaixo até o chão que lhe era de direito. Ouviu apenas
o escapamento do ônibus rindo de seu corpo inflado, boneco da michelin, andando para
sua casa com as pernas abertas para não correr o risco de profundas assaduras, já
bastava o coração assado.
O resto foi choro. Um dia aquário de injustiças, piscina enlameada de mágoas.
As lágrimas lambiam o rostinho atoucinhado da gorda e escorriam no ralo afiado de sua
boca, que era, normalmente, o ponto final de diversas outras coisas. Lentamente
começou a perceber que não era de todo mal o gosto das lágrimas. Tinham algo
semelhante à gordura destilada do mais puro bacon o suor suíno de seus olhos. E se o
resto do corpo fosse tão bom quanto?
Lentamente começou a descobrir-se.
Iniciou a auto-degustação pelo dedo mindinho, nada  muito grande para não
correr um risco irreversível, e teve uma surpresa agradável quando percebeu que tinha o
exato gosto de um panetone maravilhoso que engolira sem mastigar no natal retrasado.
Logo, arrancou os demais dedos, cortou-os delicadamente em rodelas uniformes e fritou
em azeite de oliva, alho e cebola refogada. Foi a melhor janta que jamais tivera prazer
de provar, um caleidoscópico de todos os gostos que antes sorvera, fruindo dos aromas
múltiplos e agridoces dos temperos de sua vida. De certo não conseguira parar por ali.
Em cinco dias já havia degustado uma das pernas, um dos braços, todos os dedos da
mão restante, o fígado, uma das faces da bunda e quarenta por cento da gordurosa
barriga que comera tal qual toucinho suculento.
Os passageiros do ônibus todos os dias se surpreendiam com as mudanças. De
início começaram a perguntar qual era a dieta que ela encontrara, mas quando
perceberam a falta da perna pararam de perguntar e só olhavam arregalados e
assustadíssimos. Agora ela, alegre e orgulhosa, passava na catraca com uma facilidade
incrível, mas mesmo assim os olhos seguiam-na para onde ia, pesados sobre as costas,
julgando suas dobras mordidas, seus membros amputados, sua fome incessante.
Assustada e envergonhada pelos olhos que confrontavam sua natureza, preparou
o banquete final. Ia provar-se por inteira, engolir-se e tentar sumir o máximo possível da
terra. Infelizmente só conseguiu digerir o corpo até a parte inferior da terceira dobra de
seu pescoço. Felizmente pode provar a delicia que era um coração humano explodindo
gordura e artérias entupidas, tal qual um coração de galinha  bem fritinho em tamanho
máximo, como um ovo de pascoa de um kinder ovo divino.
Morreu na mesa, os olhos vidrados com a íris levada para cima, a boca aberta de
prazer, com o semblante de quem achou o sabor divino. De certo o último órgão que
levara a boca mostrara-se tão magnânimo que a levara à morte por exaustão de prazer.
Morreu assim, da noite pro dia, e foi enterrada num caixão de criança pelo tamanho que
seu corpo agora tomava no mundo. A ironia final foi a conclusão de que a mulher que
gostaria de ser lembrada por estar tão triste e envergonhada de seu peso que resolveu
engolir-se para ser aceita num mundo cruel e socialmente ditatorial passou a ser
conhecida por ser a  mulher que era gorda, mas tão gorda, que se comeu todinha.

23
III
ninfomaníaca.

botaram uma ninfomaníaca e uma criança numa sala e ficaram só de observo.

a criança não tinha medo, elas estavam


elas estavam dos lados opostos da sala, a criança e a ninfomaníaca.

a criança não sabia, mas vocês sabem, vocês sabem o que a ninfomaníaca faz com as
mãos.
vocês sabem o que a ninfomaníaca faz com os olhos.
vocês sabem o que a ninfomaníaca faz com a boca.
vocês sabem bem o que ela faz com o corpo todo, não só com aqueles lugares.
a ninfomaníaca não toma banho.

a criança não sabia, mas as pessoas sabiam e elas só de observo.


aí a ninfomaníaca sorriu, porque viu a criança, com aqueles dentes que você sabe o que
eles fazem.
porque ela viu a criança com aqueles olhos que você sabe bem o que ela faz com eles.
e a criança não sabia.

a criança veio, a ninfomaníaca queria a criança.


pra fazer aquilo
você sabe o que
aí os homens de observo abriram a bocarra e botaram o dedo perto do botãozão do
alarme

mas a criança não viu, nem a ninfomaníaca, por causa do espelho.


a criança chegou perto, assim de perto, de tocar.
e foi o que a ninfomaníaca fez, acredite, com aquela mão que você sabe pra que que ela
usa.
ela fez, ela tocou
ela tocou a cabeça santa da criança
a ninfo
ela tamborilou os dedos na cabeça da criança pura
parecia carinho mas não era, vocês sabem o que era
a criança sorriu, seria uma futura ninfo
a ninfo
ela tocou na
cabeça da
crian
ça

mas aí poderia ter mais mas não teve


porque o botãozão já tava apertado já faz tempo, e as bocarras iam até o chão
e a policia pegou a ninfomaníaca e jogou na cela
pegou ela com roupa de proteção e de luva
não queriam tocar na pela dela
você sabe
você sabe o que ela faz com aquela pele.

24
Microtrilogia
do trabalho

25
I
o amor.
Acharam o amor morto no mar. 
De repente a água trouxe, os braços de ondas moles arrastando o corpo até os
lábios da areia, e lá ficou preso o antigo cadáver, entre algas e peixes metamorfoseados,
entre ossos à mostra e dentes escancarados.
Lá estava o amor, com a inchada barriga apontando para as estrelas, os braços
abertos em eterna clemência, o rosto de súplica destroçada. No dia que ousava crescer,
os olhos pulsaram em direção ao cadáver putrefato que se estendia como jesus nas
areias albinas da praia morta.
Os cientistas trouxeram maletas cheias de ciência e magia em pó, os
matemáticos trouxeram seus livros de palavras e números, suas fórmulas e certezas, os
pensadores trouxeram seus cérebros, chutando-os com os pés como bolas murchas pela
orla da praia, os políticos trouxeram seus dedos apontados e seus discursos brochas, os
jornalistas trouxeram palavras afiadas e câmeras intrusivas, todos em massa só para
cutucarem com um graveto o falecido amor em sua barriga protuberante.
Os olhos, envoltos de águas lacrimais e outros musgos, fitavam os homens
curiosos e pediam desculpas por não terem conseguido terminar seu trabalho, por terem
morrido na praia há milhares de anos atrás. Em luto, os homens choravam,
desacreditados. Se o amor estava morto, que falsa imitação era aquela com que eles
haviam se acostumado?
Logo os profissionais levantaram o cadáver e levaram para a caixa que convinha.
No dia treze de novembro foi enterrado no cemitério dos indigentes o amor,
numa cova rasa, na chuva enlameada e aidética. Um amor raquítico, de dentes
deformados e olhos arregalados. Um amor desesperado pelo perdão que nunca teria.
No dia treze de novembro era enterrado o amor, sozinho, deitado em sua cova e
jogando a areia sobre o próprio corpo. Um amor faminto, de barriga enegrecida e
esburacada, os ossos furando a pele estirada. Um amor desacreditado da própria
existência.
No dia treze de novembro o amor se auto-sepultava, porque os homens tinham
mais o que fazer.

26
II
Cartório Judicial Federal dos Corações Partidos

- Boa tarde, eu gostaria de desligar meu coração.


A senhora de óculos preto parou o que estava fazendo e olhou o homem com
seriedade.
Se fosse perceptivo perceberia a expressão paralisada de todos os trabalhadores
em suas mesas, que pararam o que estavam fazendo para olhar o homem com seriedade.
O Chefe ficaria orgulhoso ao ver que todos estavam seguindo com o protocolo
para esses casos especiais, mas estava muito ocupado parando o que estava fazendo para
olhar o homem com seriedade. Seus muitos anos de trabalho e crises em situações
difíceis deram-lhe experiência e sabedoria, que conseguia demonstrar habilmente com
sua expressão de seriedade, já trabalhada e moldada para mostrar que era de nível
superior – seu rosto tinha a mesma expressão dos demais, mas com uma alteração
significativa: sua sobrancelha esquerda acentuadamente arqueada, puxada para cima
com todas as forças de seu profissionalismo.
Se fosse mais perceptivo ainda, perceberia as mãos da senhora de óculos preto
suando initerruptamente e a veia jugular pulsando, dançando, nervosa.
Mas não estava perceptivo, não se percebe muita coisa num momento de
desespero. Aquele pobre homem só queria desligar seu coração, não analisar a cena de
um crime.
A mulher de óculos preto engoliu seco, pigarreou, preparando-se mental e
emocionalmente para falar as palavras tão bem ensaiadas, revistas, estudadas, e falou-
as, pausadamente, de forma clara, quase robótica, acentuada por um pequeno terremoto
em suas cordas vocais, dado pelo nervosismo.
Cada sílaba da frase nadou pelo ar.
- Ahn?
Fez-se silêncio novamente.
Pra tudo dar certo seria necessário que, após esse silêncio de calculados dois
segundos e meio, o homem respirasse fundo e repetisse a frase que havia gerado o
estado de pânico pacientemente.
A mulher esperou.
Os trabalhadores em sua mesa esperaram.
O chefe esperava enquanto avaliava se a espera de seus subordinados era boa e
profissional como a sua.
Todos os olhos continuavam voltados para os monitores de seus computadores,
hora ou outra passando no relógio, contando os segundos.
Podia não parecer, mas todos estavam aterrorizadamente nervosos. Os dois
segundos e meio haviam estourado, cinco segundos já se passavam e só poderia
significar duas coisas estritamente estudadas e analisadas.
1º O homem era surdo de um ouvido
Ou
2º um rebelde desconfiado.
No primeiro caso era recomendável apenas repetir a frase antes proferida – nesse
caso a frase seria “Ahn?” – até cair no entendimento do cliente.
No segundo caso era recomendável apenas apertar um botão que descarregava
um delicioso choque capaz de paralisar o cliente por vinte minutos e chamar a policia
que, em exatos dezenove minutos e cinquenta e nove segundos, chegaria, levando o
meliante.
Para descobrir se era o caso um ou o caso dois era necessário alta observação:

27
 Se o homem fizesse um gesto já conhecido com a mão ao redor do
ouvido e apertasse os olhos – como se apertar os olhos ajudasse a apertar
os ouvidos – era, normalmente, o primeiro caso;
agora
 Se o homem começasse a gritar, quebrar coisas, proferir palavras
proibidas ou os arcaicos “palavrões”, espumar raiva pela boca, tirar a
camisa, tirar a roupa toda, atirar fogo em si mesmo, atirar fogo em si
mesmo e abraçar os trabalhadores, matar transeuntes, mostrar armas,
utilizar armas contra os trabalhadores, utilizar os trabalhadores como
armas, utilizar armas contra si, utilizar seus órgãos sexuais como armas
contra os trabalhadores, utilizar os órgãos sexuais de outros trabalhadores
como armas contra outros companheiros de trabalho, rir dos
trabalhadores, ou qualquer ato de violência contra a ética do grande
público leitor, era, normalmente, o segundo caso.

Trecho retirado do Manual de


Sobrevivência em uma Sociedade
com Rebeldes que Resolvem Rebelar-
se dentro de um Órgão de Justiça
Público.

E era exatamente esse trecho que fazia os trabalhadores ficarem tão tensos.
Todos os olhos e suas visões periféricas prendiam-se no homem, tentando
calcular seus futuros atos. Era impossível, nenhuma das ações premeditadas e
calculadas anteriormente foram seguidas pelo homem, que se mantinha imóvel.
Até que detecta-se um pequeno movimento em sua garganta, como juntando
saliva. Era um sinal esperançoso.
Dos dois segundos e meio calculados, oito já haviam se passado. Era tudo ou
nada.
E então o homem repetiu a frase que havia gerado aquele estado de pânico
pacientemente.
- Boa tarde, eu gostaria de desligar meu coração. – e emendou – Aqui é o
Cartório Judicial Federal dos Corações Partidos, certo? Eu quero ver meu processo
amoroso e desligar meu coração.
Era previsto que ele emendasse com alguma outra frase, caso você não tenha
lido, estava no § 4 da Lei 6830/66 de previsões de respostas.
Todos respiraram fundo, silenciosamente. Era agora que a parte perigosa
começava.
A mulher de óculos preto se levantou e caminhou lentamente até o balcão de
atendimento, que separava os trabalhadores do cliente. Ou, se preferir, separava os
trabalhadores do futuro rebelde e dos perigos que o mesmo poderia proporcionar.
Chegou ao limite máximo de proximidade.
Tocou com sua mão direita envolta na Luva da Carência na mão esquerda do
homem (esse era o máximo de proximidade que poderia proporcionar, a luva era apenas
utilizada em momentos de críticos carência de futuros-suicidas, porque estes precisavam
do máximo de carinho e toque possível, como diz a lei que rege nosso Novo Estado) e
sussurrou docemente:
- Você errou de lugar meu querido, é no cartório ao lado.
Infelizmente fazia anos que a mulher de óculos preto não sussurrava docemente,
então, com a técnica correta esquecida, o som de sua voz aproximou-se perfeitamente
ao de um pato tendo um infarto.

28
O chefe percebeu isso e anotou com todo profissionalismo na ficha da mulher de
óculos preto, empunhando a caneta de um jeito politicamente correto.
O homem baixou os olhos.
Era ruim até para errar o cartório. Nem desligar seu próprio coração conseguia.
Sem mais falar, virou as costas, saiu de onde estava fechando a porta atrás de si
(o que demostrava ser uma pessoa seguidora da regra de polidez em locais públicos nº
54) e foi em direção ao cartório ao lado.
Não existia “Cartório ao lado”.
Poucos sabiam, mas essa era uma expressão que significava “buraco negro
memorial”. Ou, pra ilustrar melhor, uma porta em que você entra e subitamente esquece
de tudo que te faz triste e volta tempo-espaçamente para onde tudo começou. Claro, isso
fazia uma reação em cadeia, porque as escolhas seriam as mesmas, mas era o máximo
que conseguiram pensar.
O “Cartório ao Lado” era designado apenas para os que chegavam ao ponto de
querer desligar seus próprios corações.
Ninguém normal deveria entrar no “Cartório ao Lado”.
Causaria uma crise mundial, e todos corações correriam o risco de parar.
Claro, era uma pequena chance. Na maioria dos casos a pessoa simplesmente
virava um feto. Apenas em 0,005% das vezes acontecia dos corações desligarem-se
todos.
Eles tinham a sorte disso nunca ter acontecido antes.
Quando o ser depressivo saiu do Cartório Judicial Federal dos Corações
Partidos, o chefe apertou o botão verde da alegria. O botão da alegria era ligado a um
complexo enredo de fios que ligava-se às cadeiras dos trabalhadores. Ele, quando
apertado, descarregava um pouquinho das toxinas de cada corpo sentado em sua cadeira
e liberava quantidades racionadas de endorfina.
Pra isso, era necessário estar sentado (o que fez a mulher de óculos preto sair
correndo para sua cadeira)
Pra isso, era necessário fazer um bom trabalho aos olhos do chefe. (eles nunca
faziam um bom trabalho)
Pra isso, era necessário sair de crises e/ou salvar seres depressivos.
Apenas nesses casos, e somente nesses, o botão da alegria era apertado.
O chefe mesmo não gostava de receber a descarga de alegria. Segundo ele,
poderia viciar.
Ele já tinha se divertido num passado, e foi a pior coisa que poderia ter feito.
O botão era apertado por detalhados um segundo e quarenta e cinco milésimos, o
que fez o chefe, logo, desapertá-lo, de um modo bastante profissional.
Ninguém sorriu.
Era proibido, segundo as novas normas do regime do Novo Estado.
Eram essas mudanças recentes que fizera o número de depressivos em potencial
aumentar.
Eram essas mudanças recentes que fazia cada um dos trabalhadores ter vontade
de desligar seu coração.
O chefe não.
Tal ato era antiprofissional demais.

29
III
O comerciante

Abri uma loja no centro da cidade. De grandes vidraças esbugalhadas, limpas


meticulosamente todas as manhãs com o carinho e a precisão de um banho de gato. Na
vitrine, os melhores e misteriosos produtos, pra chamar a atenção dos clientes, pra que
esbugalhassem os olhos às minhas lindas vidraças esbugalhadas.
O primeiro dia já percebi os olhos famintos. As pessoas passam e penetram em
minha vidraça, grudam os olhos nos produtos e na parte de dentro da loja, onde eu
sorrio e aceno pros potenciais clientes. Meus dentes não são tão limpos quanto a vitrine,
apesar de, como os gatos, eu passar a língua neles e suga-los na esperança de tirar as
manchas do tempo. Olham ávidos às vitrines, mas não entram na minha loja.
Pra ajudar as mentes confusas, comprei uma placa: “Entre, Entre!” em francês e
árabe, caso tenha a sorte de tombar com algum patrício, e adicionei, sem Samara ver,
uma carinha sorrindo pros clientes. Fiquei entre carinha sorrindo e carinha piscando,
mas tive medo do piscar, seria como se tivéssemos um segredo, eu e o cliente, e
segredos trazem uma euforia malquista. Além de ter um ar sedutor, a carinha piscando,
como nas casas de massagem. E não quero, nesse momento, clientes me insultando na
Justiça por assédio sexual.
No mesmo dia em que botei as placas, nem mais um olhar pingou minha vitrine.
Seca, dura, fantasma imperceptível. Os narizes apontavam pra cima, os olhares
desviavam e dava pra ver o passo apertar. Foram meus olhos que pingavam quando
entendi. Mundo globalizado que aceita só uma parte do globo. É preciso vender-te antes
de vender o produto, me disse Samara uma noite, de seu jeito misterioso. Apaguei a
parte em árabe, cortei a barba e o bigode. O sorriso continuava sujo, porém parei de usar
os dentes para rir. Usei pó de arroz pra esconder as olheiras. Nem precisava de tanto: no
dia em que tirei a placa em árabe, os olhos já não mais acuavam e transbordavam minha
vitrine.
Como fiquei feliz! Sorria banguela, dando tchauzinhos detrás do balcão. Mas os
olhos só passavam, furiosos, nunca atravessavam a porta.
Perguntei um dia pra Samara se ela não gostaria de ficar na loja no meu lugar.
Ela disse sim. Em roupas ocidentais, eu completei, se possíveis pequenas. Ela só voltou
a falar comigo ontem. Me fuzilou com seus olhos poderosos, detentores de todos os
segredos do mundo, e calou-se em protesto. Ora, Samara tem um lindo corpo, que
tomasse então como elogio! É uma pena para os olhos do mundo que ela só mostre os
olhos e que só os meus olhos imundos sejam capazes de ver essa beleza toda. Mas não
consigo despi-la do manto preto de suas convicções, nem retirar os livros sagrados da
ponta da sua língua. Samara não aceita ser aceita. Usaria eu roupas mais curtas se
fossem dez anos atrás, quando eu fazia parte do clube de natação do meu país, mas
foram os tempos. Passam eles perante minha vitrine afiada, mas não entram.
A loja, os produtos, comprei com o resto das minhas réstias, o desespero era a
única coisa que entrava no meu estabelecimento. De resto, Paris passava, olhava e
passava, como os grãos do tempo, como as cifras negativas na minha conta. Até o dia
em que eu quis entender. Queria ser o passante. Quem sabe esbarro com uma entediada,
desesperada e apaixonante Baudelaire feminina e tenha um poema imortalizado em
minha leviandade? Sorri, bobo, ao pensar nisso, e como se lesse meus pensamentos,
Samara, a quem eu pus no balcão da loja, olhou para mim com os olhos de fogo. A
bruxa só tem olhos de incinerar. Vê? É só eu escrever isso e ela já passa com o olhar me
fundindo inteiro.
Pus ela lá no balcão, saí da loja e andei de uma ponta do quarteirão à outra.
Como um passante normal, observei as vitrines das lojas, o falso interesse nos olhos, a
mão no queixo mal barbeado, o passo calculado de quem flutua. A minha, no meio de
30
tantas outras lojas e vitrines, não tinha nada de diferente. Se destacava, na verdade, o
vridro perfeitamente limpo, olhinhos brilhando e bochechas rosadas de gratidão. Minha
vitrine sorria, com seus objetos bem dispostos e sua impecável limpeza.
Resolvi passar uma segunda vez, entre a multidão, de um lado para o outro. Na
quarta vez eu já começava a entender. Todos ali passavam olhando para as vitrines das
lojas e naquela superfície líquida do vidro podiam ver, refletidos, seus corpos. Mas
minhas vidraças, que Samara mesmo instalara e limpara, tinham uma mansidão
misteriosa como a de Samara, uma pele pessegal como a de Samara, um brilho de
preciosidade como o de Samara, e por terem sido mal instaladas por uma amadora,
possuíam um ângulo, ou dobradura, que fazia com que a imagem do passante
aparecesse comprimida, dando a ilusão da magreza instantânea e milagrosa.
Era simples, os olhos, acostumados com a realidade das outras vitrines, se
assustavam e apaixonavam pelos corpos esbeltos refletidos, se examinavam o quanto
podiam, se agarrando ao tempo e às passadas calmas, pois não seria de bom grado parar
pra se arrumar na frente de uma vitrine e há toda uma regra social e blablabla. Enfim,
sequer percebiam meus produtos. Eram eles os produtos, eles os manequins, eles a loja.
Ah, os narcisos do mundo moderno! Não temos mais lagos, afogam-se em
qualquer outro reflexo. Se todos fossem Samara, tão bela e tão altruísta... Seus reflexos
refletem o negro puro dos olhos e dos tecidos. Seu copo fica disforme, tão discreto e
apetitoso quanto a carne escondida num charuto de folhas de uva. Mas o mundo não é
Samara, só um pedaço do globo desglobalizado que impõe esse tipo de vestes, porém
não impõe virtudes. Samara já não é mais natural de lugar algum, até nossa terra natal se
dobra perante os espelhos, lagos e reflexos. É uma anomalia, uma bela anomalia. Se
Samara fosse francesa, etíope, americana, continuaria Samara, continuaria mistério e
sombra, continuaria.
Ali a loja nunca seria verdade. Eu, com barba ou sem barba, com dente ou sem
dente, nunca seria perceptível. Samara, no balcão, com ou sem roupa, nunca existiria. A
única coisa que me fez perceptível, mas que assustava os olhares, eram os dizeres em
árabe e a pútrida ignorância humana, que me enrubesce e me salga os olhos.
Minha loja nunca seria frequentada, concluí cabisbaixo. Vendi todos os produtos
no varejo e recuperei metade do dinheiro inicial. Samara me deu aquele olhar de fogo,
mas entendia que não havia outra saída e cabe ao homem a benção das tentativas após
seus erros. Na mesma noite, enquanto eu usava seu belo corpo como cachecol, ela me
iluminou a mente perturbada em poucas palavras e olhos molhados de prazer. Hoje
tenho uma loja de vidraças.
Ah, Samara que me salvara, o mundo merece tanto conhece suas belezas
seculares e afiadas... Quem me dera em praça publica despir suas roupas, despir sua
pele, despir sua carne e mostrar seu espírito, Samara, de fênix, de elefante, de sabedoria.
Samara dos olhos atentos, tudo sabe, tudo vê, a boca lacra as maiores verdades do
mundo que fluem ponderadas desses lábios-pétalas. Deixe-me mostrar-te! Ao menos
despir tuas roupas já daria para aumentar as vendas das vidraças, Samara. Estou
brincando, é brincadeira! Ah, não... Ai, lá vem ela com o olhar.

31
Microtrilogia
da mulher

32
I
A genealogia da maçã

Hoje, fatalmente, eu percebi: estou ficando igual minha mãe. O desespero me


inundou quando vi no espelho meu rosto recente de velha e minha alma porosa
intumescida em pólvora. Estou ficando igual minha mãe em uma proporção
avassaladora: hoje meus dentes amarelaram, ontem foi o cabelo que esbranquiçou,
amanhã os olhos que enlamearão. Catarata. Meus olhos envoltos de nata. Amanhã
cegarei como minha mãe.
Que ficassem vermelhos, como os coelhos, do meu sangue. Mas depois de
amanhã, enegrecerá meu sangue, como minha mãe. Em alguns dias, os chifres, o
tridente, os estigmas, como minha mãe. Logo nascem as várias flechas no meu peito. E
as duas outras cabeças infernais.
Olhei no espelho e tremi: estou sendo minha mãe. O movimento é natural, os
filhos tornam-se seus pais, mas eu não tive mãe e é estranho me ver metamorfosear em
nada. Me envergonha essa intensa duvida do que serei. Sei que será minha mãe... Não
sei. Nasci dum cisto lunar, uma bolha na derme craquelenta da lua que ploc estourou.
Fui boiando até meu pai, pelo Espaço. A lua nunca me deu presente de aniversário,
nunca perguntou como foi meu dia, nem ajudou na minha gravidez. Mas sempre a vejo
me observando, tão longe...
Olho pra minha filha que dorme. Em trinta anos ela será eu. A metamorfose
começa aos cinquenta, é quando trocamos de pele. Mulher é cobra. No Éden é mentira:
não tinham outros seres além do Adão e da Eva. Mulher que é cobra: troca de pele,
sibila pelos cantos, dá a maçã... Hoje olhei no espelho e vi que o chocalho já nascia na
minha bunda. Cobra.
Essa transformação me sorve os dias. Esperando a conclusão. Esperando o dia
em que finalmente eu me transforme em minha mãe e veja como ela sou. E talvez me
abrace chorando, contando minhas dores e chamando-a de puta. E talvez enfie uma
navalha na xana dela enquanto beijo minha boca sua. Mãe minha e de mais ninguém!
Passo meses no espelho esperando a mutação, os olhos de cobra, os cascos nos pés, as
asas angelicais sangrando tanto. Mãe é ferida que sangra eternidades, ninguém fecha,
ninguém liga pra mãe, mãe liga pros outros.
Percebi, nas transformações, que se é natural filha virar mãe, significa que minha
mãe é então o rosto de sua mãe, sua mãe seria o rosto da mãe anterior, etc. Logo, eu
teria o rosto da minha mãe, que tinha o rosto da minha avó, que tinha o rosto da
bisavó... E qual é o rosto da mãe? No início era tudo Eva.
No fim, todas viram o mesmo rosto e o peso de eras maternais nas costas era o
que destruía. Eu virava Eva, como minha mãe e a mãe dela, como todas que se
transformam e era dor e confusão essa percepção. Minha mãe não tinha rosto, era Eva e
eu também seria. Nunca mais conheceria, então, minha mãe, só a sombra opaca da
maternidade que atinge as mulheres depois que os seios caem.
Deu vontade de virar logo Eva, pra bater na cara dela por ter roubado minha mãe
de mim. Olhei minha filha de vinte-anos-seios-levantados e entristeci sabendo que em
trinta anos Eva chegaria. O rosto de Eva, rosto de quem trai, rosto de quem peca, o
primeiro rosto de culpada da humanidade. Eva, sua putinha...
Fiquei com pena da minha filha e da filha que ela teria. Deu vontade de matar
ela. De pegar a faca e vazar ela. De usar meus dentes e envenenar ela. De pegar um pau
e arregaçar ela. De, se não matar, deformar até vencer a genealogia maldita da maçã. De
deixar ela tortinha até concordarmos, em silêncio, que ela nunca será Eva. Cortar ela,
costurar seu sexo, comer a maçã.
Me transformo mais: ontem meus pés já viraram ao contrário, hoje minha cabeça
já caiu pelo chão da sala e, no lugar, labaredas de fogo. Amanhã ficarei negra e perderei
33
uma perna. Depois, serei feita de escamas da barriga estriada pra baixo e vou pros rios
enganar pescadores bêbados. Mas no fim é Eva, eu sei que é, no fim é serpente que viro,
é Deus e é lua.
Hoje é meu aniversário de cinquenta. Começo a inchar. Ainda não matei nem
aleijei minha filha e sei que quando eu virar Mãe não poderei fazê-lo. Virar esse poder
melancólico e martirizante, Mãe, essa solidão alva que lacra nosso sexo piedoso, Mãe,
essa tristeza pálida que paira entre nossas calcinhas beges sem mais uma gota de
sangue, Mãe, essa vontade lúgubre de fazer bolo de cenoura toda semana até
envelhecermos e virarmos Avó e transformarmos o bolo de cenoura em bolo de linhaça
e nos fins de semana falsos entre família fazermos um pavê mofado e repetirmos sempre
a mesma piada do pá-vê e pá-comê enquanto lacrimejamos envergonhadas vendo
nossos filhos e netos e bisnetos sorrirem de piedade e repensarem com os olhos polidos
sobre botar-nos no asilo da esquina.
Perco o fôlego.
Cinquenta anos.
Sinto meu corpo inflando e embranquecendo, sinto o vazio expandindo em meu
corpo. É a metamorfose final da maçã. Em poucos minutos meu tamanho duplica.
Mulher não é igual homem que metamorfoseia em inseto, barata, escritor tcheco,
mulher com rola ou até sem. Mulher muda de verdade, eu, por exemplo, viro um globo
enorme, branco e poroso, quase dum queijo minas impregnado de fungo.
Triplico. Quadriplico. Minha superfície vira casca dura impenetrável e eu peso
tanto que as pernas quebram. Já não tenho pernas: flutuo. Buracos rasgam minha
superfície, já não tenho olhos, boca, nada humano, só mineral. Não Evo. Aumento e
pressiono tudo ao meu redor, explodo tudo. Multiplico de tamanho. Meu corpo esmaga
e mata minha filha. Meu marido, meus cachorros, meus vizinhos, minha cidade, meu
país. O continente inteiro se afunda com meu peso, oceanos engolem a terra, milhões
morrem sob minhas toneladas.
Lentamente levito e vou em direção aos Espaço. E vou até a Lua. Minha mãe. E
fico pertinho dela, ela me abraça. Mamãe-lua me fala amor e me nina. Como senti
saudades, como queria te abraçar, como queria ouvir tua voz, como te amo! Mamãe-lua
tem a cara da minha vó e me diz: você é idêntica a mim e vai ficar cada vez mais! Eu
choro.
Vontade de matar ela...
Vontade de acabar com essa maldição...

34
II
Construção

Eu caia lentamente, do meu ponto de vista. É sempre bom ser primeira pessoa,
temos a melhor ilusão de perspectiva. Na queda, ali, eu fui pela primeira vez a primeira
pessoa da minha vida. Pela primeira vez me chamei de “Eu” e não de “Ela”. Se o solo
fosse um espelho eu poderia apontar e sem dúvidas me distinguir da multidão. Talvez
pelo fato de eu estar caindo na horizontal, mas mais ainda pelo fato de eu ter me
descoberto naqueles pequenos instantes. Se eu soubesse que isso aconteceria só ali, teria
me jogado mais vezes. Mas não foi por isso que despenquei do meu galho, nem foi
vento mais forte ou borboleta violenta. Eu caí porque quis. Porque já não tinha o que
mais segurar. Talvez simplesmente caí porque continuei a andar. Da porta da minha casa
até a escada. Da escada até o topo do prédio. Da ponta do prédio até o árido chão. As
coisas se unem fáceis quando pensamos simples e só ali, naquela réstia de vida, tudo se
fazia simples. Afinal, me joguei porque queria servir pra alguma coisa. Queria que me
notassem, queria me explodir na contramão atrapalhando o tráfego, queria que vissem
minha vida despetalando pelo vento, ser algo. Pra mim, ali, eu era. Era alguma coisa,
era rotulável, era perceptível. Era a chamada “suicida”.
Mas não era a mim quem eu queria chamar a atenção. Era aos outros. Os outros,
essa extensão parasita e cancerígena da nossa pele, que pouco entende nosso linguajar
que tampouco enxerga nosso rosto, que mal nos distingue dos outros deles. Eu, fadada a
viver como uma outra não conseguiria viver. E pra brilhar na vida, percebi, precisava
me destacar. Infelizmente seriam segundos minúsculos, minha hora da estrela, que eu
agarraria com toda a sede do mundo, segundos menores ainda se vistos de terceira
pessoa. Mas não, ali, voando sem asas, eu estava primeira e única. Porém, diferente do
meu imediato autoconhecimento, ninguém olhava pra mim. Quando saí de casa
ninguém olhava pra mim, mas isso era natural. Ali, no topo, com o pé metade dentro e
metade fora da vida, também nenhum dos espectadores me via. Isso poderia ser
explicado por eu ser quase parte de uma piada infantil: um pontinho preto em cima de
um prédio cinza. Era tão monocromática quando a cidade, minha vida, minha pele, meu
prédio. Cinza no cinza, nada se veria mesmo, então continuei. Foi só por não ser vista
ali que eu dei o único passo e meu corpo se perdeu no emaranhado de cordas. Minha
bailarina se desequilibrou e rolou pelo palco, ainda estupenda, os pezinhos num pas de
bourrée eterno, debatendo-se no ar, o tutu transformando-se em flor no meio de um
vendaval... Mas mesmo assim, entre berros e em movimento constante para baixo, eu
não me destacava. Nenhuma daquelas pessoas me percebeu.
Entenda, eu fiz as contas. Eu moro no centro do centro da cidade que é o centro
do mundo. Centenas de pessoas e carros passam ou engarrafam embaixo da minha
janela por minuto. Sem dúvida ali, naquele quadro de segundos pincelado, eu seria vista
por dezenas e acertaria em cheio algumas unidades. Alguém precisava perceber, não
fazia sentido Alguém devia perceber um corpo que cai. Corpos não caem a toa, não é da
condição natural do homem cair. É sim da gravidade regra, mas do homem, que acredita
ter o equilíbrio do umbigo e do mundo no próprio umbigo, cair, que seja de uma
distancia menor que de um prédio, digamos a distância de uma cadeira ao chão, é uma
vergonha publica. Usam a pobre vítima como centro de suas raivas encravadas e
descontam chibatadas nas bundas machucadas daqueles que caem, chibatadas risonhas,
disfarçadas de gracejos, gargalhadas e dedos em riste, afiadíssimos. As línguas pulam de
alegria, envenenadas, os olhos lacrimejam de prazer. Cair nesse mundo é um evento tão
grande quanto os apedrejamentos e esquartejamentos com cavalos puxando os membros
em praça publica. Joga-se toda a repressão naquele que cai, o que aumenta o peso, o que
faz a queda doer dentro e fora. Um homem não pode cair. Nunca, na existência da terra,
se viu um homem de terno cair. O terno deve ter algo antigravitacional, ou ainda, para
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usar um terno você deve ser imposto a vários empurrões. Se você não falhar, você
merece a vestimenta. Criança cai. Mulher cai também, salto alto é compreensível.
Babaca cai. Homem não. Imaginei, então, que minha enorme queda seria tanto uma
ajuda para mim, ao ser percebida, quanto uma ajuda para a população, jogar sobre mim
toda raiva oprimida, sujar com meu suco e meus órgãos, tirar aquela tensão no ar com
pessoas gargalhando pros meus pedaços espalhados no solo. Ajudar, fazer da vida dos
homens sérios que nunca caem algo mais suave.
Mas nenhum dos meus cálculos, apontamentos e regras da natureza humana
faziam sentido quando eu realmente caí. Nesses segundos entendi que há um grande
precipício entre a teoria e a prática. E foi irônico cair pensando em precipícios
metafóricos. Assim como na grande porcentagem da minha vida, vi, entre os cacos do
espelho no chão que refletiam minha alma e me faziam me chamar de “eu”, que até na
morte eu fui falha. Não valia mais a pena, então. Morrer dá um puta trabalho pessoal e
social. Imagine os parentes que fingem lágrimas, os meus gatos sem alimentos, meu
marido sem sua carne cortada no prato antes de bem apresentada na mesa. Imagine que
peso essa morte vã faria na vida do meu filho quando ele estivesse sem dinheiro e
conseguisse visualizar os acontecimentos sem a fumaça da droga que ele fumava pra
fugir... Imagine a prefeitura tendo que acionar os garis, os coveiros e urubus. Tendo que
acionar o Chico Buarque pra fazer uma música só com rimas proparoxítonas sobre um
peso morto que explodiu, uma piñata de mau gosto que fraturou mais três pessoas em
sua queda e caiu na contramão atrapalhando o sábado...
De repente, morrer não fazia mais importância. Não tinha holofote algum. Não
ouvi nenhuma mão indo à boca, nenhum grito desesperado, nenhuma compaixão jogada
para me apanhar no solo duro. Os homens cinzas, da cidade cinza, em seus ternos
antigravitacionais, não olhavam pra cima. Seus olhos eram pra frente e pra dentro. E
não havia como me jogar de um prédio deitado, nem me jogar pra dentro de todos.
Ninguém enxergava a baleia que iria explodir em poucos segundos no chão, sozinha,
sem companhia nem de um pote de flor.
Fora tudo tão bonito... Me apoiei no extremo do prédio, totalmente ereta, como o
cristo redentor abrindo os braços abri também os meus. Um cristo sem chagas, sem
coroa, nem cruz. Um cristo marginal, sem importância, sem louros. Um cristo mulher.
Também cinza como a cidade, portanto imperceptível. Me posicionei então, como se
fosse me jogar pra um nado sincronizado no meio do asfalto e do escarro alheio. Botei
minha toca e o pé de pato, sorri pros jurados, e me joguei, perfeita. Senti meus cabelos
vivos e negros ondulando como cobras em meu rosto e subindo eternos acima de minha
cabeça. Até pensei que seria engraçado se eu ficasse presa em algum ar-condicionado
pelos cabelos e quebrasse o pescoço, mas não aconteceu. Senti o vento frenético
sussurrar um acalanto em meu ouvido, nanando esse neném-búfalo, acalmando minhas
feras e quase, quase dormi. Mas eu precisava estar atenta para ver os outros me verem.
No fim, fiquei atenta e sozinha e só eu me vi. Meu único momento de perfeição serviu a
mim e ponto. Não, não valeu a pena.
Aí veio o chão. O chão vinha feito bobo, de braços abertos, querendo um cheiro.
Vinha que vinha, bole que bole, rebolando a pança na minha direção. Vinha duro, vinha
sujo e melado, vinha cheio de gente. Vinha corpo estalado como ovo, vinha sangue
explodindo, vinha dentes rolando. E veio, assim. Ainda ouço o som do meu corpo
explodindo seus diques no solo. Explodi como um balão cheio de água, todas minhas
fronteiras se rompendo em vermelho. Meu ser não existia mais, em uma fração de
segundos eu era uma papa endiabrada no solo, um monte avermelhado de carne. Como
uma pintura surrealista, escorri por todos os cantos, incompreensível, fantasma. Eu
parecia um quadro de Pollock, mas ninguém mais gostava de Pollock. Era ameba,
plasma, não era importante, ninguém percebera minha morte, ninguém balbuciara um
grito, nem uma interjeição, mão alguma foi à testa nem à boca, nenhuma autoridade foi
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chamada, nenhum transito ou sábado foi atrapalhado por meu corpo intruso. Não valera
a pena, nunca valera a pena. Agora era uma bolha de carne e sangue, olhos desorbitados,
cérebro explodido e dentes pra tudo quanto é lado.
Puta que pariu!, eu gritei, Vocês não sabem como isso dói! Mas ninguém se deu
o trabalho de ouvir. Eu estava espalhada pela calçada e um pouco pelo asfalto. Sentia
meus órgãos soltos como numa sopa de letrinhas macabra, sentia alguns carros
atropelando minha orelha esquerda e percebi assustada que perdera meus brincos na
queda. Gritei mais um palavrão, o povo gosta. Mas nem isso pareceu chamar atenção à
minha morte. Meu ser desfigurado, incompreensível, digno de um quadro à ser
analisado pelo maior crítico francês e ser avaliado como a nova vanguarda da Arte, doía
para caralho. Não há discrição ou descrição, ultrapassei os limites do corpo, atingi todos
os chacras possíveis, senti o gozo verdadeiro, e toda aquela poesia falsa só fazia arder
cada poro e explodir de dentro pra fora. Era tudo mentira, não tinha nenhum alívio,
nenhum prazer em ligar-se com o Cosmos. O Cosmos era uma merda, era tudo cinza,
era tudo homens de terno, não havia prazer, nem fuga. Ruí, nada era verdadeiro.
Lembrei de novo do precipício entre a teoria e a prática e fiquei com vontade de me
jogar dele. Doía tanto que pensei sim em me matar mais uma vez.
Mas ninguém veria, como ninguém viu. E que importância teria? E que
importância eu tive? Só me baguncei e fiz doer o que antes não doía ainda. Fiquei puta
da vida. Uma bola amassada de carne, osso e tripas puta da vida. Levantei, então, de
uma vez só. Toda torta, toda cubista, fui pegando alguns membros que ainda estavam
em bom estado. Resgatei aquela orelha amassada, peguei um dos meus olhos porque o
outro havia explodido na queda, garimpei um pouco do meu cérebro que grudara no
asfalto, juntei numa bolinha de mim. Abaixar assim depois de uma queda daquelas?
Nem te conto a dor nas costas! O que a falta do que fazer não faz...
Então parei na primeira vendinha pra comprar um super bonder e fingi não sentir
mais a dor pra ver se ela parava. Enquanto o caixa me dava o troco, eu me perguntava
filosoficamente como diabos eu cortaria o bife da janta do meu esposo se só tinha
encontrado quatro dos meus dez dedos. Bufando, voltei na minha poça de sangue e me
prometi que só sairia dali com oitenta por cento da minha mão completa. Ainda não
encontrei os mindinhos.

37
III
A mulher de Ló

1. E sentindo o fogo alastrar sobre suas costas, a mulher sem nome aceitou a
punição por ter expelido mortiferas palavras à um dos escolhidos por Abraão.
2. Pois sua mente era de maledicência embebida e crispara na língua ofídia uma
insinuação sobre a potência máscula de seu Varão, gritando vê-lo com homens nas
sombras intumescidas de Sodoma.
3. O chicote do justo varou-lhe as costas mentirosas e purificou seu corpo,
enquanto a voz brandia: “Caso queiras escapar deste antro em vida, mulher, é bom que
te cale de encontro ao eterno e siga-me, que olhe para onde eu olhe e esqueça este
mundo apodrecido de onde vens, pois eu sou o escolhido e enquanto eu te aceitar e te
purificar, estás perdoada.”
4. A mulher vomitou agradecimentos, pois a dor encrespara e a pele derretia
sobre sua carne suada e salgada pelo marido.
5. E disse o homem: “Aceito as graças e espero que não repitas esta infâmia,
pois aqueles que vistes comigo eram os anjos do Senhor, poupando nossas vidas,
avisando-nos da queda de Sodoma.”
6. E amarrando o pescoço da fêmea com o chicote, levantou-lhe a saia
esfarrapada e abriu as coxas trêmulas da mulher: “Aceite minha benção”.
7. O acto de amor e perdão apenas findaria no dia seguinte com a balbúrdia dos
anjos batendo em suas portas, as pedras de fogo prestes a derreter a pele dos impuros.
8. E os seres angélicos disseram para Ló: “Agarre suas filhas e sua esposa e
saiam para as montanhas, pois Sodoma será enterrada viva pela Justiça Divina.”
9. E a mulher de Ló não entendia nada de Justiça, pois sua mente era infestada
pelo diabo e insinuações doentias contra o Senhor, as costas lanhadas sangrando a
camisa de pano sujo, o sexo tão esfolado, os olhos loucos acreditando ver nos olhos dos
anjos uma malícia ao olharem para Ló, e em Ló uma ereção dissimulada pelas mãos
estrategicamente posicionadas entre as coxas.
10. Para mais não tinha tempo, pois Ló, como se ouvisse seu pensamento,
dotado da justiça dos Santos, estapeara-lhe o rosto e dissera: “Pois fiquem com minha
esposa, os homems de Sodoma, e perfurem buracos onde ainda não haja!”.
11. E os anjos, que pareciam ter pequenos chifres a crescer lentamente por
debaixo dos halos, gargalharam e disseram: “Não precisa, tendo em vista que
deixaremos todos cegos para depois tostá-los.”
12. Enfurecido em ter que continuar com a mulher envenenada, Ló carregou as
filhas e deixou a mulher a cambalear uma fuga descuidada atrás dele.
13. E ela se sentia num paradoxo de mortes, escapando da morte para a morte
mais próxima, nas mãos de seu marido agressor e oprimido.
14. Não sabia como conseguiria liberdade das punições que seu sexo deveria
aceitar, não entendia como Deus escolhera aquele monstro agressor para salvar de Sua
Justiça.
15. Mas não era problema ela ser tão agredida pelo homem, já que as mulheres
são semi-seres desde que a maçã comera Eva.
16. Porém, não era Eva, era a Mulher de Ló, cujo nome ninguém jamais
lembraria, cuja identidade Bíblia nenhuma se proporia elucidar.
17. Não teria a importância de Eva se em algum momento mordesse a maçã.
18. Mas não havia maçã, nada era proibido.
19. Salvavam-se da maçã e ela não tinha escolha a não ser seguir o marido e seu
martírio aceitar pela eternidade maldita.
20. A costela do homem chorou enquanto seus pés queimavam no solo quente, a
caminho da salvação que não queria.
38
21. A sombra do homem cambaleava com as coxas assadas e o sexo ardendo
pela compaixão do macho.
22. Não tinha saída a não ser a submissão e a morte, nesta exata ordem, mesmo
sabendo que estas palavras eram sinonimas.
23. Quando a família atravessava os umbrais da cidade os anjos urlaram:
“Salvem-se! Para tanto, não olhem para trás, não se arrependam, não olhem para trás ou
se transformarão em estátua de sal e se desfarão ao vento furioso do Senhor,
instantaneamente!”
24. No momento em que ouvira essas palavras, só dor esboçara a mulher de Ló,
pelas costas, pelo sexo, pela submissão, pelas pedras e pela cruz invertida de seu gênero.
25. Mas no meio do caminho a mulher de Ló sorriu.
26. E então ela virou sua cabeça para trás, em paz, e olhou nos olhos da
eternidade pela primeira vez, completa, intensa, protegida por seu santo anonimato em
suor, saliva e sal.

39
Microtrilogia
do homem

40
I
Esquizofrenia

Os olhos que me julgam não piscam, não dormem, não choram. Os olhos me
seguem e só. Me seguem, me julgam e só. Me seguem, me julgam e sussurram bem no
meu ouvido as línguas malditas e só. E me pedem pra fazer coisas, coisas em troca do
repouso de meus olhos, pois meu descansar provém do deles, num reflexo de cérebro
univitelino. Enquanto os olhos abertos me julgam, meus olhos se julgam, se piscam, se
dormem, se choram e seus atos desdobram-se no julgamento maldito dos olhos insones,
no sussurro sibilante e estalado das línguas viscosas, víboras viciosas que fazem minha
mente esmiuçar o sentido de seus pedidos, pensar em realizar seus atos libidinosos e
viscerais em troca do dormir eterno que tanto busco, do repousar corpóreo pelo qual os
músculos retesados piscam e choram, diferente dos olhos, que só me julgam. Mamãe diz
que os olhos são maus porque eles mentem e deformam a mente, ela diz que eles não
existem, mas como acreditar num ser como mamãe se ela já morreu e se ela também
tem olhos – dos verdes, o pior tipo, hora ou outra vejo-os arregalados, arregalando-me
no escuro do meu silêncio -, dois deles, do tipo que também julga. Mamãe morta dos
olhos julgadores tenta fazer-me acreditar nela, mas como acreditar em mamãe que, viva,
agredia meu sexo e agora, morta, é o reflexo de minha putrefação? Os olhos de mamãe
também queriam me tocar o pênis deformado pelas doentias mordiscadas, pelos
agressivos beliscões e pelos infelizes petelecos em minha glande infantil, desprotegida,
inflada de dor, que fizera em seus malditos dias vivos. Se eu soubesse que botá-la para
deitar traria seu fantasma para atenazar meu porvir com seus olhos flagelantes, faria o
melhor. Pois se o que vejo dela é o reflexo de como tombei seu corpo e alma, valeria
mais resumi-la ao pó.
Nunca tive mãe, nunca tive pai, nunca tive barreiras que me moldassem,
nunca tive vírgulas ou pontos finais em minhas sentenças, nunca tive travessões
paternais invadindo meu discurso, nunca tive pula uma linha, parágrafo, letra
maiúscula. Nasci órfão de geradores humanos, fruto de caudalosos cadáveres
cerebrais, numa morfogênese duvidosa de paranoia com requintes de imoralidade
sociocultural e pitadas d ataques raivosos com pimenta calabresa. A médica disse
que eu brotei na terra feito tumor e que, a partir daquele dia, pestifiquei o solo por
onde meus dedos roçavam, desvirginando os ambientes e impondo minha aura de
incertezas e loucuras nos objetos que antes foram puros. Quando nasci todos me
olhavam, porque nasci com os olhos abertos que nunca mais fechei.
Os olhos que pipocam nas paredes sujas e senis de minha casa estão lendo o que
escrevo. Agora a casa é deles, não mais minha, nem de papai ou de mamãe. De mamãe
não é porque consegui tirá-la do mundo com a arma de papai que ela pedira pra enfiar
bem forte. De papai não era desde que ele fugira de casa quando eu tinha três anos e ele
percebera no meu corpo os primeiros sinais de violação pelas mãos de mamãe. Papai
correu de casa mais rápido que as unhas de mamãe pela minha coxa e deixou de herança
pra mim a repudia ao sexo (que mamãe descontava em mim) e a arma (que descontei
ante o sexo de mamãe). Então naquele momento a casa seria minha, a não ser pelos
olhos que pululavam na cal enrugada das paredes. Usucapião, era o meu medo. Os olhos
reproduziam-se assexuadamente e logo tomariam todos os cantos de casa e de meu
corpo. De certa forma sua reprodução era algo de ruim para mamãe que, aflita,
lagrimejava desejo voluptuoso enquanto repousava em mim seus mortos olhos verdes
julgadores.
Odeio quando papai abre a porta do quarto de supetão e, de supetão, abre a
porta do meu sono e, de supetão, abre a porta da escuridão e, de supetão, deixa vazar e
explodir sobre meus olhos o calor e dor da luz e da realidade que estupram-me de meu
repouso onírico-sensorial. Mas papai sempre me acorda assim, abrindo minhas portas
41
e escancarando-me pra uma realidade indesejada, provocando, de supetão, um contato
radical entre a realidade dura, áspera e sanguinária com a pele mole e fina das minhas
pálpebras. Acordar é um aborto. Peço pra mamãe que papai não faça isso, mas ela diz
que essa é a maneira dele falar comigo. Quando ele me invade de supetão eu fico triste
e feliz. Triste por sair dos meus mundos especiais e ter que encarar o de carne (podre) e
osso (quebrado), feliz por saber que aquela era uma conexão com papai, uma
conversa, um olá. Triste, novamente, porque, depois daquilo, nenhuma outra palavra
era trocada entre nós. As vezes conseguia ouvir um “bom dia meu filho eu te amo”
misturado com o ranger agreste da porta e o eco do vigoroso retumbar  da maçaneta
metamorfoseando-se com a parede machucada, mas era algo tão rápido, tão ríspido,
que a voz de papai parecia apenas madeira murmurando suas dores ao abrir-se. Então
eu não sabia se era a voz do papai que parecia a madeira ou se era a madeira que
parecia a voz do papai. Eu chorava por isso, acordava chorando, e mamãe me
abraçava e fazia comida. Mamãe me ama, eu também a amo, assim como amo papai
em silêncio. A madeira da porta me diz o quanto ele me ama e meu choro é o reflexo de
todo esse amor. Os olhos de papai são avermelhados e andam bêbados pela paisagem
refletida. Nunca ouvi ele falar, não duvido que tenha voz de madeira. Não duvido que
ele realmente fale “bom dia meu filho eu te amo” com sua voz de madeira.
Quando eu nasci sozinho no mundo fui adotado por um cachorro. Tive sorte
de que ele estava passando no exato momento em que Deus me cuspia no asfalto da
cidade. Ele me ensinou como o mundo é cão e como é necessário lamber seu
próprio pênis. Vaguei sozinho no mundo sozinho amaldiçoando os seres sozinhos
com seus olhos julgadores e infinitos estendendo-se e refletindo-se do nascer ao por
do sol, que nada mais era que O Olho Julgador e Infinito do Deus que me cuspira
naquele lugar sujo e julgador. Odeio ser julgado. Os cães não tem olhos, os cães
não julgam. Os cães tem buracos vazios de ternura e compaixão, porque eles me
adotaram e me ensinaram a lamber meu próprio pênis. Sinto falta dos seres
quadrupedes sem nome. Esses sim viviam numa estrutura social sem diferenças,
sem olhos julgando, sem olhos nos rostos vazios dos outros, sem olhos pulando do
chão, nascendo do verde dos semáforos – os verdes de mamãe? Mas eu nunca tive
mãe, eu nunca tive pai, sou apenas produto de saliva divina, sou apenas broto da
terra, sou apenas uma criança que nunca ouviu a voz do pai e chorava para
mamãe, sou apenas uma criança que nunca tivera pai em casa e que sofria nos
dedos salientes de mamãe, sou apenas uma pessoa sem pai nem mãe nem ponto
final, sou apenas uma pessoa com olhos, olhos julgadores me sepultando -, os olhos
nascendo nas árvores mortas do meu caminho infinito rumo ao nada, os olhos
nascendo na minha mão.
Os olhos nasceram na minha mão. De repente sinto-a esquentar e vejo formar,
lentamente, um círculo escurecido sobre as costas da mão, aos poucos a pele do círculo
vai borbulhando, assim como a dor de ser queimado vivo, e derretendo-se, formando um
líquido de pele e carne que vai solidificando-se, esfriando-se e enrugando-se. Antes que
eu percebesse o olho abriu-se, floresceu das pálpebras malditas que cresceram da minha
pele. Agora o olho estava em mim. Ao meu redor, na minha caneta, no meu papel, no
círculo do meu “o’, o olho reflete. Os olhos refletem-se e marcam o tempo do meu
fenecer corpóreo em cada piscadela irônica. Eles sussurram pelos cílios maldades
imensas, coisas sobre machucar os outros, matar mamãe, puxar uma conversa com
papai. Mas os olhos estavam errados, mamãe já estava morta, pelos meus braços, e
papai fugira de casa quando em tinha três anos, como poderia eu começar uma conversa
com um ser inexistente?, os olhos pareciam confusos ou pareciam querer confundir-me.
Meu medo maior veio a partir da percepção que meu corpo também é invulnerável aos
olhos. E se um deles resolver nascer bem embaixo de minha orelha e sussurrar suas
loucuras até que eu acredite nelas? E, pior, se vários deles crescerem e pulularem os
42
labirintos e vãos do meu cérebro? E tomar conta do meu corpo? E transformar-me num
olho gigante, num gigante olho julgador? Mais cinco olhos cresceram em mim, dois na
mão esquerda e três na direita. Fixos, me olham e me julgam.
A cadeira de balanço da sala movia-se naquele dia e sussurrava sua língua de
madeira por todos os cantos do aposento. Ela movia porque papai movia ela. Eu via
que ela movia porque a sombra movia a luz do meu quarto o que me dava momentos de
prazer na escuridão seguidos de momentos de dor pela fatigante luz rompante da
janela gigante que crescia eternamente atrás das costas de papai. Mamãe não estava
em casa, acho que nunca esteve, se não me engano mamãe fugiu de casa quando eu
tinha três anos, bem quando descobriu que papai me tocava lá. Ela me deixou de
herança sua tristeza e sua mudez contra o sexo e a arma de papai. Se eu fosse ela, eu
fugiria também, porque deve doer ver papai me machucar, mais do que deve doer
sentir, coisa que eu não sinto por causa do remédio que papai passava no meu nariz
quando eu sabia que ele ia me machucar com os instrumentos de metal e de carne que
ele trazia nas calças. Eu gostaria de falar com papai, ouvir sua voz de madeira
rangendo em uníssono com a cadeira de madeira as histórias de madeira que os dois
deviam guardar. Queria esculpir daquela árvore humana um “eu te amo”, um “me
perdoa”, um “me abraça” e pedir pra que papai não me dê mais remédio, porque
quero sentir alguma coisa vindo dele, nem que seja o poder de sua dor. Seu silêncio já
era sua dor. Resolvi falar com papai, mesmo que papai não falasse comigo, e levantei-
me da cama moída antes do que era esperado. Papai fingiu não me ver. Esgueirei-me
entre as réstias de escuridão que permeavam a luz da janela e do balançar do grande
corpo de papai. Papai fingiu não me ver. Sentei-me em seu colo que não fez um
movimento, além da já conhecida montanha que ele tinha na calça sempre que vinha
me dar remédio. Papai fingiu não me ver, não me sentir. Comecei a falar, como era
lindo o dia, como era lindo o sol, como era saudades em meu peito de não ter alguém
de não ter amor de não ter mamãe de não ter papai de não ter a voz de papai nos meus
ouvidos de madeira rangendo de madeira podre caindo e morrendo. Desembestei a
falar, preenchendo papai com o som da minha voz, esperando que ele fizesse o mesmo.
Mas nada. Ficamos assim por duas horas, ele balançando, em silêncio, eu, sobre sua
montanha pontiaguda, balançando em seu ritmo e esvaindo-me em palavras, tantas
palavras e sentenças ordenadas que ao fim não me restou nada além de balbucias.
Implorei para papai falar comigo, molhei seu corpo com minhas lágrimas mudas,
implorei mais, para que abrisse a boca, para que soltasse seu som de árvore
despencando e atingindo o solo. De tanto clamar, quase 54 horas pedindo compaixão,
papai parou de dançar sobre a cadeira. Iria me machucar, pensei, e que seja sem
remédio, esperei. Mas não foi. Papai me viu, pela primeira vez, em todos aqueles anos.
Sei disso porque pude ver meu reflexo nos bêbados olhos vermelhos do homem-pedra-
madeira. Papai, então, moveu lentamente a mandíbula e percebi que ele estava pronto
para falar. Radiante de alegria, esperei mais quatorze horas até que os lábios se
movessem. Logo, alguns dias depois, a boca abriu-se e o que era pra ser belo virou a
pintura do dantesco. De sua boca pútrida pela falta de uso saíram milhares de olhos
voadores, olhos voadores julgadores, todos arregalando-se pra mim e julgando meu
corpo de criança. Milhares de olhos pularam do portal bucal de papai e prenderam-se
nas paredes da casa. Um olho enorme dependurava-se na língua de papai e
metamorfoseava-se com sua carne. Aos poucos papai não existia mais.
Me tomei pelo terror quando fui urinar e, invés de glande, um assustado olho
verde fitou meus olhos, julgando-me. Era mamãe, com certeza, que conseguira a posse
de meu pênis depois de tantos anos de horror que passei em seu calabouço. Logo
abaixo, dois olhos azuis piscavam pra mim onde existiam antes meus testículos. Resolvi
furá-los com agulhas quentes, cegar os olhos, pra que não me julgassem mais, mas a
minha surpresa foi sentir a dor subir em meu corpo como chama quando estourei minha
43
glande com a agulha de crochê de mamãe. Os olhos continuavam lá, a cabeça do meu
pênis que perdia sua vida, sangrando e urinando para todos os lados. Os olhos
gargalhavam com seus cílios sibilantes e apontavam pro meu sangue mijado, pra dor
pulsante que escalava minha espinha dorsal e explodia meu cérebro. Agarrei-me na pia e
percebi, depois de anos, meu rosto refletido no espelho. Vários buraquinhos escurecidos
borbulhavam no meu queixo, na minha bochecha e na minha testa. Assim como no meu
peito, assim como no meu mamilo, assim como no meu corpo inteiro e, pude ver, assim
como no meu cérebro. Meu maior temor cumpria-se. Nu, totalmente borbulhando de
olhos julgadores e sangrando urinas, corri pra selar meu destino e escrever os meus
porquês. Papai, mamãe, acreditem em mim. Sei que nunca falei com mamãe, mas papai
me ajudava nesses momentos de tristeza e me abraçava e era bom pra mim, ele vai
contar pra mamãe como fui bonzinho, meus irmãos, meus irmãos cães, obrigado por me
apresentarem ao mundo cão no mundo sem olhos com olhos, olhos crescendo no meu
corpo. Desculpa mamãe por ter te matado, desculpa papai por você fugir de casa quando
eu tinha três anos, desculpa papai e mamãe que eu não tive porque eu nasci órfão do
solo pútrido das latrinas, desculpa papai da voz de madeira, desculpa mamãe dos dedos
de mel que acalentavam meus choros, desculpa papai da montanha na calça, dos
remédios de amor, desculpa mamãe que matei pela dor que me trazia, não foi culpa
minha, os olhos tomaram conta de tudo! Eu não pude fazer nada, vocês sabem disso,
digam que sabem disso! Papai, finalmente eu sei o que fazer pra que os olhos não vejam
mais, não sussurram mais, não existam mais. Agora eu sei mamãe, finalmente, o que
fazer para arrancar os olhos julgadores das paredes: arrancar os meus.

44
II
Moto-contínuo

Eu sempre estou voltando.


É só deitar na minha cama que eu sinto meu corpo voltando ao que era no
começo do dia. Dá pra sentir o tempo puxando minha pele e meus músculos, dá pra
tocar a velocidade da minha cama inteira correndo para trás nesse organismo misterioso
chamado tempo.
O tempo me imanta, me agarra e não me deixa prosseguir. É só dormir que eu
volto pro mesmo dia.
Percebi faz pouco tempo e só percebi porque muito percebo.
As nuvens, o sol, as cores da tampa da Terra, era tudo igual todos os dias. Eu
poderia descrever, no quarto mais escuro, como estaria o céu lá fora só olhando pelo
relógio. Porque a primeira vez que eu percebi, comecei a passar dias olhando o céu e
fazendo cronogramas. Vou sempre a fundo, sempre fui a fundo, e o fundo é sempre
horrendo. Durante uma semana o céu foi sempre o mesmo céu e pelo meu raso
conhecimento isso é impossível.
Não tem outra explicação, pensei, estou vivendo todos os dias os mesmos dias!
E faz sentido. A mesma roupa, o mesmo trajeto, as mesmas pessoas, o mesmo trabalho,
os mesmos horários, o mesmo céu. Talvez o céu apenas cansou, sabe? “Por que mexer
meu corpo, que é tão enorme e pesado, se nada se movimenta nessa Terrinha?” E eu
entendo o céu.
Mas eu comecei a perguntar pros outros, porque sempre existem outros, esse
corpo estrangeiro e indobrável. E talvez eu enxergue mais que os outros, mas há
chances de algo ser tão verdade que assim se mostre até pra esse intruso.
Os outros não sabiam, não percebiam e apontavam dedos e gargalhadas
cacarejadas pra mim. Me lambuzaram de vergonha e desdém, me esfaquearam e
pintaram o céu imóvel do meu sangue.
E todo o dia quando eu perguntava isso para os outros, os outros sempre me
respondiam da mesma forma. E tudo, tudo se repetia. Do tudo ao nada, eu sempre estou
voltando.
Não encontrei motivos, não entendi. Vivi o dia de diversas vezes diferentes.
Perdi o emprego, perdi o sentido, mas sabia que recobraria no dia seguinte. Mesmo que
eu não tenha voltado ao emprego, mesmo que eu não tenha conseguido retomar o amor
da minha namorada e a amizade dos outros, eu sabia que era sempre o mesmo dia.
Porque o céu era o mesmo.
Mesmo se uma coisa que eu fizesse de diferente num dia mudasse coisas no
outro dia, agora não importava mais. O céu era imutável, era como um adesivo gigante
que Deus colou em nosso globo de neve.
Comecei a jogar pedras pro alto, pra quebrar o vidro, pra espalhar nossa água e
nossos flocos de neve sintéticos para todo o lado. Pra furar o dedo do dono do globo de
neve, pra ver o sangue divino escorrer entre nosso trincado. Comecei a subir no topo do
meu prédio e arremessar todos objetos que tinha.
Sou observador sim, mas nunca fui forte.
Nunca atingi a camada cristalizada do céu, nunca dei um cutucão em Deus, mas
cheguei a quebrar vidros, afundar cabeças de pessoas e machucar outros animais menos
importantes. Cheguei a chamar atenção da policia e mesmo sendo preso e acordando na
cadeia todos os dias da semana seguinte, o céu... O céu era uma reprise.
Eu que tanto li, que tanto estudei, que tanto fingi ser capaz de ensinar, jamais
entendi. Todas as pesquisas de nada valiam, porque no dia seguinte era o mesmo dia.
Tudo zerava e eu desentendia. Era como se eu estivesse preso num organismo morto,

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num canal perdido entre as grandes emissores de televisão, um canal alheio que só passa
vídeo de boi e tapetes caros. Às vezes algumas joias também, não minto.
Meu filho nasceu, mas era mentira. Era mentira, porque o dia não avançava.
Nem me levantei, acredita? Ele deve estar com trinta anos hoje. Ou nem deve ter
nascido. Não me lembro mais.
Agora são dez e vinte da manhã e eu sei que metade do céu está nublado e a
outra metade está clara, com um sol fortíssimo. As nuvens cinzas batalham com o azul
vivo e amarelado escaldante dos dentes sujos do sol e a quinze passos do meu
apartamento dá pra ficar bem na intersecção desses dois mundos. Tenho fotos
comprovando. É apocalíptico, as nuvens cinzas e negras, cheias de veias e humores
inflados, nuvens bestiais e canibais, arrancando pedaços enormes do céu claro, todo
aberto, totalmente indefeso. Em duas horas vai chover e se não for água, será o sangue
do céu vencido. E depois, quando for noite, vai abrir de novo o tempo e a lua amarelada
como um queijo murcho vai piscar entre suas banhas mofadas. Aquelas crateras
nojentas, cheias de espinhas e cravos, cheias de pus, com seu batom barato e sua
maquiagem de puta. A lua, aquela vagabunda, vai abrir as penas peludas pra todo
mundo e às três da manhã ela mostra os seios por vinte reais. Mas ninguém percebe,
ninguém olha o céu. É todo dia o mesmo espetáculo.
Será que meu filho nasceu? Ou ele tá dentro de mim ainda? Será que mudou
alguma coisa no céu lá fora? Eu cansei de me movimentar pra ver. Eu estou deitado
algumas semanas já. Alguma coisa nasce no canteiro da minha boca. Não sei se barba,
não sei se canos. E ouço meu coração ao longe. Todo dia é o mesmo, é como se eu
tivesse preso.
Acredito que enfim cheguei num resultado. Tudo me mostra o mesmo e tudo
caminha pra isso. A repetição, a prisão, o céu, a barba, os canos. Eu entendi, enfim, que
nada disso era real. Eu estou em coma. Só pode ser isso. Eu estou em coma, em algum
lugar. Falei isso pra minha faxineira que vem aqui dia sim dia não, ela riu e deu pra
ouvir o câncer de garganta dela estalando. Foi fumar depois, alimentar o parasita.
Minha mãe veio aqui hoje, eu falei pra ela que estava em coma e que nada
passava de meus delírios. Ela me deu um tapa e chorou. Espero que meu corpo em coma
não tenha sentido o tapa ou a dor que eu senti de ver derramado em meu corpo as
lágrimas da minha santa mãe.
Acho que meu filho apareceu aqui. Ele está com barba ou canos na boca. Filho,
vem cá. Você cresceu, meu amor. Mas eu sei que não cresceu, porque... deixa eu te
contar um segredo, porque todos os dias são o mesmo dia. Nunca tem amanhã, meu
filho, então você nem foi gerado ainda, você tá aqui ó, e bato no saco e rio.
Dá pra ver o sorriso frouxo do meu filho. Ele pergunta se eu quero passear,
porque minhas pernas estão roxas e inchadas. Ele fala que me levaria na cadeira de
rodas ou poderia me ajudar com a muleta. Não entendi, eu sou tão jovem...
Minha mulher também apareceu, na verdade era alguém tão velha que eu achei
que era minha mãe, mas falou que era minha mulher. Eu avisei que estava em coma e
não podia dar atenção e ela me deu um tapa e chorou. A pele velha da mão dela fez
como borracha no meu rosto e eu senti meus dentes se locomoverem. Ela gritou comigo
que eu não cuidava mais da dentadura, que ela não aguentava mais escovar aquela
podridão todo dia. Então eu tive que explicar que era impossível, que eu tinha vinte e
três anos e que os dias estavam se repetindo e que eu estava em coma na vida real. No
fim, ela nem arrumou minha dentadura e eu tive que botar no lugar.
Mamãe morreu, meu filho falou. Olha, um pelo branco na barba dele. Eu ri, não
tem problema meu filho, quando eu acordar do coma ela vai estar lá, rindo pra mim.
Aqueles olhos castanhos de jabuticaba e a boca como uma pena rosada fazendo cócegas
e volitando nos meus lábios. E vou sentir tocar minha pele com seus dedos pacientes e
ouvir como era seu sorriso verdadeiro, doce e envolvente, numa espiral de gargalhadas
46
em eterno crescimento. E aí sim eu vou fazer você, vou fazer você dentrozinho dela e
vou cuidar de você e vou te ensinar a fazer a barba. E vou olhar pro céu e ele vai estar
diferente meu filho e o amanhã nunca mais vai ser hoje.
Falo isso tudo, ele me dá um tapa e chora, senti meu queixo estalar e não voltar
direito pro lugar onde merecia. É estranho as lágrimas de um feto molhando minha pele
enrugada, mas tudo é tão estranho. Me sinto como um boi no canal do boi, eterno
retorno. Além de ter a pele toda marcada e meu pescoço estar puxado pra baixo
também. E eu faço mugidos baixinhos quando tô triste. O tempo passa devagar pra um
tempo que não passa.
Não tenho mais quem me dar banho.
A empregada não vem mais.
Câncer de garganta.
Meu filho apareceu hoje, parece comigo. Uma uva passa de cabelos brancos.
Veio hoje fechar meus olhos com os dedos e tapar minhas narinas com algodão. Depois
me vestiu com um paletó que eu não lembrava de ter comprado e arrumou uma rosa pra
por no meu bolso. Que brega, meu filho. Ri dele, ele me deu um tapa e chorou sobre
meu corpo. Dá pra ver algumas velas ao meu redor, um mar de lágrimas. Que pena que
quando eu voltar do coma vou esquecer de tudo isso, dessa emoção toda, de toda essa
vida que se foi.
Fecho os olhos pra dormir no fim do dia.
Eu sempre estou voltando.

47
III
A partícula do homem.

Os cientistas todos erraram. Os poetas equivocaram. Todos filósofos calaram. Os


legistas que cortaram, os polícias que mataram, professores que ensinaram, todos, todos
equivocaram. Ou fingiram, ou maquiaram, ou não viram, ou pularam a verdadeira
descoberta do profundo corpo imundo, digo, corpo humano, que vivenciamos anos e
anos após anos.
Veja,
Não eram só de partículas calmas, nem pícolas almas, ou ridículas palmas o
corpo desumano, digo...
não eram de cosmos, estrelas, de ossos, de beiras, nem de grandes bandeiras.
Veja,
O corpo hermano, descobriram os homens,
era todo costurado em fibras e libras, em peles e pelos, nos selos dos olhos até os
joelhos, dos dentes aos grelos de galhos inteiros, dos pintos aos cintos de sinos finitos,
de orelhas roceiras às grandes sobrancelhas e as bocas tão ocas pulsando de loucas e em
cada pórinho do mais mesquinho, dos cabelos em ninhos e ternos de linho
O homem todo, todo!, todinho
Carregava nos ossos , nos olhos, nos canos, nos postos, nas pastas, embaixo dos
panos, nos anos, nos peitos, da lama aos leitos, nos becos estreitos, tirando proveitos,
matando e calando e seres humanos que socam humanos que socam humanos que
socam humanos que são cães humanos de olhos tão fanhos, tão cegos e belos, que belos
e esbeltos!, da meiga estupidez na sede de sangue de sangue do sangue de sangue do
mangue de sangue de gangue de gangrena grande que drena, sim, drena o protuberante
olhar de infante dos homens e os homens, ah...
Os homem, os omens, todosozomens!
Não são de carne ou de osso,
de karma insosso,
de cama e de poço...
Os homens são apenas, sem sono, sem siso,
a materialização perfeita e profunda do vício
do abismo escuro, do grito mais duro,
da estupidez irrequieta e do ódio mais puro.
...
(e triste aviso:
não existe rima pra isso.)

48
Microtrilogia
da velhice

49
I
Nascituro

Estava perdido há longos tempos nos corredores enormes daquela casa estranha.
Era tudo tão longe e tão espaçoso que só afirmavam o quão pequeno ele era entre os
móveis gigantescos e as pessoas que tinham dois móveis daqueles de altura. Era
pequeno, já sabia, mas essa era uma verdade que não precisava ser confirmada com
tamanha contundência pelas coisas que abraçavam os arredores de seu corpo numa
ciranda maciça de poderes dançantes, uma selva labiríntica de móveis e pessoas de
mãos dadas em que ele se sentia um nada perdido entre aquelas curvas e apto para ser
engolido por alguma planta carnívora a qualquer momento. Começou a chorar, porque
era isso que atraía atenção da moça que era quase onipresente naquele lugar ou que ao
menos seguia-o para onde ia, e nas lágrimas embarcaram ligeiras gotas de saliva e muco
desregrado que perderam-se no grande chão brilhante da casa grande. Estava perdido, e
se os outros estivessem também? O choro atrairia com mais facilidade, pensou, e chorou
mais forte do que seus pulmões poderiam deixar.
Logo a consolação caiu dos céus. A mão, a doce mão de nuvens, da pele macia
de carinhos, amaciou sua indignação em ser pequeno e lento e embalou seu corpo em
outro mais experiente. A mão, grande mão como tudo na casa, tudo muito grande perto
dele, tocou sua pequena mão e abraçou-a com força. Eu estou aqui, sussurrou a mão
para sua mãozinha, não vou te largar até que encontre seu caminho dentre os caminhos
desencontrados que ainda há de compreender na enorme vastidão do mundo que se
ampliará nessa cabeça vazia. Ele abraçou a mão de volta com sua mãozinha, mas nada
disse porque ainda não entendia como formular palavras tanto verbalmente quando
mentalmente. Esquecera. Ou nunca soubera.
A mão o levou pra sala quente que tinha a cama calma engolidora de seu corpo e
lá ele deitou como se nunca deitara antes na sua vida, e tudo era tão novo que talvez não
tivesse deitado. Acima da mão brotavam da terra batida do rosto os olhos, os doces
olhos de esperança ou préluto, não sabia dizer, não sabia dizer muita coisa, que
olhavam-no como se descobrisse naquele rosto ainda mal formado formas
caleidoscópicas, encontrando na incógnita várias respostas mutantes, as vezes
favoráveis, as vezes assustadoras, e os olhos tremiam como tocados pelo choque quando
viam isso. Os olhos aguados sempre regavam seu rosto quando voltavam pra ele, saindo
água dos cantos num chorinho calmo e silencioso como se o próprio céu tivesse
mandado um chuvisco particular para acalmar o calor do pequeno corpo. Os olhos
lambiam seu rosto como o cachorro fiel que nunca vai largar o dono, enxaguavam sua
face como o regador nas plantas feridas pelo sol, confortavam sua medíocre existência
no mundo de gigantes.
Sempre que o deitava na cama os olhos estendiam sua mão e abriam a doce
boca, duas penas brancas de cansaço, tremeluzentes à pouca luz, ainda que gigantesca,
que entravam pela grande janela do quarto. E a boca soltava silabas, musicas, sons,
muitas vezes desconhecidos aos ouvidos inexperientes dele. Tinham som de ôÔ? ôÔ Ôô
ÔÔ? E logo torciam seus cantos para baixo, um ricto de tristeza relâmpago, o pesar da
falha de comunicação, o eterno ruído que seriam seus lábios para aquelas orelhas
perdidas. Logo o ôÔ? se transformava em ação e as mãos doces tornavam-se intrusas no
corpo, tateando a carapaça de plástico que protegia seu sexo e sua bunda, que cortava o
contato de seu corpo completamente nu com o resto da realidade, aquele pano
endurecido que prendia os restos de seu corpo que derretia pelos buracos e que sempre,
sempre, estava cheio de seus restos. Estava caindo aos poucos, pensava, tinha passado
da validade. E logo as mãos intrusas tiravam a fralda suja, limpavam-no, passavam
santos unguentos e cremes adocicados naquela pele ácida e botavam outra fralda tão

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perfumada quando os belos olhos e como o hálito da bela boca que tanto lembrava de
anos como não conhecera em toda sua pequenina vida.
Depois as mãos acariciavam seu corpo, enrugada semente pequenina que logo
deveria crescer - ou definhar? - e ser tão gigante quanto os gigantes. As carícias infinitas
tomavam conta de seu existir até que as pálpebras resolvessem conversar entre si, em
sussurros cansados de existência, coisas que ele nunca compreenderia e lacrassem seu
corpo quente até que as mãos viessem com sua chave destrancá-lo para a realidade
gigantesca. E quando isso acontecia ainda podia sentir o pequeno gotejar do
encanamento furado dos doces olhos que tanto o vigiavam.
Quando acordava sentia medo de se perder de novo, mas precisava tanto avançar
pelo chão enorme que seu corpo apenas caminhava perdido e mecânico, entrando em
buracos desconhecidos e borrados. Enxergava tudo muito borrado, talvez pelos olhos
não acostumados a existir, talvez pela luz tão grande em todos os lugares possíveis. E
caminhava, semi-cego, pelos corredores enormes até começar  a chorar. Talvez pelo
desespero de não encontrar-se, talvez pelo ôÔ, talvez pela fome e a vontade louca de sua
língua esponjosa dançar eternas valsas com a papinha deliciosa. E ia para a cozinha,
diretamente para a cadeira especial, esperando de boca aberta as mãos divinas
entregarem-lhe a sumo movedor de sua existência, a comida liquefeita que escorria tão
pacientemente pelas curvas e pedregulhos de sua garganta. Às vezes ele jogava pra fora
tudo que botavam dentro dele pelo simples prazer de expelir algo que lhe era forçado, e
fazia barulhos, e fazia rostos deformados, símbolos de sua dor e de sua incompreensão.
A resposta automática disso era a chuva dos olhos avermelhados e doces e, às vezes,
incompreensão dos olhos que logo chamavam suas amigas, as mãos, para aplicarem-se
sobre as bochechas dele com toda a força do mundo dos gigantes, o que fazia com que o
choro fosse mais facilmente liberado, de ambas as partes.
Não lembrava de muita coisa da vida, também não deveria ter muito para
lembrar, vivera tão pouco ainda. Mas às vezes sentia saudades de um passado
incomprovável e torturante que apertavam seu âmago e o enchiam da dor do
desconhecido não vivido. A nostalgia do inexistente corroía sua pequena existência e
não sabia o que fazer senão alertar para o mundo todo que não entendia nada e que
talvez nunca compreendesse, perdido na imensidão do externo e do interno, uma presa
de si mesmo. Nessas horas engatinhava até o banheiro gigantesco e subia em dezenas de
cadeiras para reconhecer seus traços no espelho. E via, brilhando nos borrões das luas
de cataratas de seu olhar, com os olhos cheios de água, as dores marcadas nas rugas e
nas bolsas escuras envolta de suas bolas oculares avermelhadas. Tocava com as mãos
calejadas as peles que se desprendiam de seu rosto antigo e amassado pela mão das
eras imperdoáveis e via-se mais perdido do que quando nos corredores enormes. Seu
rosto era um gigante, uma interrogação cheia de pelancas, os anos pendendo sobre as
bochechas, as décadas nos dentes amarelados que sobravam, os desesperos nos cabelos
brancos que ainda seguravam as pontas na calva cabeça pintada de senilidade, os
amores nas mãos pedregosas, as dores por toda a boca repuxada e esfarelada, entre
pedaços de pele e rugas nada se encontrava nos caminhos de seu rosto anterior à toda
existência. E como nada podia fazer, liberava as barragens de sua infelicidade,
derramando tristeza pela pia inteira, invadindo a seca de seu rosto com as lágrimas de
sua existência perdida. Não sabia como o rosto estava ali, nem como as mãos estavam
tão quebradiças, era tão jovem, era tão criança, como pudera envelhecer em segundos?
Demorara tanto para subir nas cadeiras?
E pendia seu corpo para trás, nas interrogações e incertezas de seu ser, as
cadeiras tremendo pelo peso da idade sobre elas, loucas para envergar, explodirem e
darem um fim naquela existência inexistente, naquele peso morto para a viva casa em
que viviam. Mas logo vinham os olhos assustados e as mãos alentadoras que tremiam de

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medo pelo que poderia acontecer. E sussurravam em seu ouvido cabeludo e esticado
como o chiclete mascado pela vida: Vamos papai, que está na hora de dormir.

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II
Melhor-idade Penal

Tudo começou com o último decreto da lei, aquela lei que ninguém se lembra de
ter escrito ou aprovado algum dia, mas que por algum motivo incoerente apareceu com
todos os carimbos necessários para tornar-se verdade. E lá estava, o que chocou a todos
de início, em resumo: Todos os brasileiros de ambos os sexos que estiverem acima de
70 (setenta) anos e com comprovada incapacidade mental e física estarão livres da pena
de qualquer trespassamento de qualquer outra túmida lei que esfregue o protuberante
falo na face dos demais cidadãos. Dava pra ver, além do tempo ruir, os olhos e as bocas
abrindo-se de espanto enquanto o presidente castanholava por entre sua dentadura nova
as novas letras que conduziriam os próximos dias da pátria amada. Mas logo as bocas
desespantaram-se e os olhos fecharam-se, porque uma vez dado o ponto final, e todos o
sabiam, a estranheza havia de sumir, já que uma lei é uma lei (e necessita haver
normalidade num cumprimento de uma lei afinal, o que somos, bárbaros?).
Ainda que alguns jornalistas que ousavam jornalistar perguntassem ao senil
presidente o que diabos acontecia, a resposta era simples: Nos últimos anos muitos
idosos mentecaptos eram presos, pois os verdadeiros bandidos utilizavam os velhos e
semi-mortos corpos de seus avós para prostrar em suas idosas costas o peso hediondo de
seus crimes. De fato, ninguém nunca pesquisou a fundo a veracidade disso, mas quem
em sã consciência duvidaria de um presidente de 79 anos, tão fofo com aquele
bigodinho de nuvem e olhinhos de céu, tão batalhador tentando proteger sua pátria e sua
gente e tão cute-cute e olha só pra ele que engraçado imitando o Vagabundo do Charles
Chaplin no meio da conferência de imprensa!
De início não houve grandes mudanças na maneira em que o mundo desfilava
sambando os quadris, claramente os idosos mais energúmenos compreendiam seus
novos direitos da mesma forma que compreendiam por que diabos suas mães, já
falecidas há séculos, estavam brigando com eles por terem feito xixi na cama. Alguns
sorriam apenas, da mesma forma como sorriam para os xingamentos e os elogios, pro
belo e pro grotesco; outros negavam com a cabeça participarem ou aprovarem essa
loucura, mesmo não sabendo do que se tratavam as perguntas, afinal gostavam de negar
tudo normalmente desde que eram jovens negativos naquele mundo hostil do ontem.
Mas então, lentamente, um ou outro idoso esquecia de pagar as contas no banco, um ou
outro idoso saía do mercado, sem querer, com a cara ração de seus gatos escondida entre
os peitos, um ou outro idoso atirava na companheira de mesa por ter gritado "Bingo"
antes dele e os problemas começaram a se espalhar à passos jovens.
Os indignados revoltavam-se quando viam os senhores e as senhoras saindo
impunes, graças à nova lei de melhoridade penal, e reivindicavam em plenos pulmões
sua nacionalidade, gritavam com deus e com o diabo para tomarem algum tento com o
que estava ocorrendo na terra que cabia a eles gerenciar, perguntavam às autoridades
onde estava a justiça, pois os únicos idosos que podiam escapar da prisão eram os mais
fragilizados, não os que saiam pulando de alegria e xingando os revoltados, os
intocáveis eram os que tinham incapacidade mental e/ou física comprovada, e não os
ex-hitlers que botavam os pirus idosos pra fora e urinavam na multidão incrédula na
porta do supremo tribunal. Os políticos, pressionados, começaram a fazer testes para
peneirar os idosos néscios dos delinquentes seniores, mas surpreenderam-se avidamente
ao perceberem que todos os idosos infratores apresentavam insuficiência mental quando
avaliados. Fica entre nós, e entre parênteses, que mesmo babando e respondendo coisas
desconexas era possível perceber nos fundos dos olhos idosos a chama do proibido e da
liberdade se alastrando lentamente.
O medo cresceu quando perceberam que haviam muitos idosos ilegalmente
incapazes mentais/físicos, na verdade grandes mentirosos e cafajestes das antigas que
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representavam sua senilidade tão perfeitamente que parecia, pelos cinco minutos de
teste, totalmente verdadeira. Diziam, os que eram os expectadores desse show de
mentiras concretas e indestrutíveis, que todos os policiais casca-grossa que aplicavam o
teste saiam com os olhos abraçados de lágrimas, talvez pela imagem da velhice
impotente que dói tanto aos olhos, talvez pelo medo do espelho futuro, e liberavam com
sorrisos nos olhos e corações amanteigados senhoras e senhores do pior escalão de
torturas da ditadura e de guerras além-mar.
A cidade, então, totalmente povoada de idosos nascidos não sei onde, em não sei
que era milenar, tremia suspeitas e gotejava medo. Não havia um dia na praia em que os
banhistas não aguçavam os ouvidos para perceberem os passos cambaleantes e o duro
tilintar dos andadores contra os calçadões com medo do já muito conhecido "Arrastão
da Terceira Idade". O bingo, pela quantidade de homicídios em série e emboscadas
contra os vencedores, foi considerado ilegal, totalmente proibido, sendo jogado apenas
na calada da noite, nos asilos mais obscuros e agressivos do Estado.
Comissões de idosos famintos passaram a se reunir na saída de bancos e escolas
para faturar uma grana dos jovens indefesos, jogando-os no chão e roubando o dinheiro
da merenda. Era natural ouvir vozes grisalhas grasnando coisas como "Perdeu menó" e
"Passa o verdinho, broto" e "Peculiar retaguarda de oiro, jovem dama pudica, que meus
olhos se esvaem em vossas curvas angelicais e vossos cabelos loiros de doirado
fulminante, pudera eu alcançar vosso incansável púbis e deleitar-me em vosso leite.".
Felizmente os estupros vinham em menor escala, muitos não tinham forças para
manterem-se em continência peniana, os que conseguiam a partir de muitos remédios
morriam de enfarte durante o ato.
Nas ruas, conversíveis bombeavam em suas vitrolas antiquadas músicas que
agrediam os ouvidos infantis e juvenis resistentes à monarquia idosa. Enlouquecidos
Wagners, romanticos Mozarts, apaixonados Beatles,  salientes Jovens
Guardas, nostálgicos Tons Jobins e Chicos, virtuosos Liszts explodindo alto-falantes,
entre pneus cantados e gritos de dores nas costas e nos ossos, eram agora o barulho que
tomava conta dos ouvidos desavisados e desprotegidos de fones-de-ouvido. Velhos de
todos os tipos uniam-se em rondas nos carros recém-roubados, e vandalizavam os
demais transeuntes, utilizando suas bengalas e dentaduras babadas como maliciosos
projéteis. Enfim, não havia mais paz.
As pessoas mais jovens passavam a temer os idosos, pois nada podiam fazer
contra isso. Se tocassem nos mais velhos, respondendo a agressão, ou ousassem falar
mais alto e repreender a loucura que deixava as cabeças idosas em febre devoradora de
razões, eram presos no estalo. Primeiro por estarem contra a importante lei, segundo por
agressão à idosos. Mas muito houve de mortes causadas pelos jovens para os velhos,
todas obviamente em auto-defesa, todas obviamente com os auto-defensores atrás das
grades. Por isso, os familiares mais jovens começavam a excluir os avós que lentamente
chegavam na melhor idade, loucos para serem crianças novamente. Os homens mais
sérios que aos poucos perdiam a cor de seus cabelos e a força de seus dentes, temiam
por chegarem logo na velhice e perderem as estribeiras. Esse temor resultou numa série
de suicídios trágicos de senhores de 69 anos que queriam, enfim, morrer com o resto de
dignidade que batalharam pelas vidas, sem tocar naquela idade maldita que enlouquecia
as cabeças mais duras e mais moles. Assim, ser velho virou um sinônimo de rebeldia e
depredação social, tornando-se assim um termo pejorativo associado aos mais jovens
que ousavam caminhas no mundo do crime, roubando por necessidade ou matando
(provavelmente por necessidade também, quem lá sou eu para dizer e desdizer).
Toda essa balbúrdia teve fim com o grande escândalo presidencial. Afinal, você
deve ter visto o caso do nosso presidente, que foi pego em seu cativeiro particular
mantendo vivas enquanto torturadas cinco escravas sexuais. As mulheres estavam
totalmente destruídas e deformadas, aposto que muitos leitores dos jornais devem ter
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virado o rosto em reflexo à agressão visual. Se fosse avaliado como arte plástica, o
presidente seria um dos grandes do cubismo ou surrealismo. Como você também deve
ter lido, não foi por isso que o nosso presidente foi retirado à forças do cargo, mas sim
que ele atestou insuficiência mental através dos testes feitos pelos policiais, que mais
uma vez saíram encharcados de lágrimas. O problema foi que, de repente, com a
descoberta de um presidente retardado, insuficiente, como agora o era de maneira legal,
com carimbo e lágrimas, perceberam que o mesmo não poderia governar um país tão
grande e em estado de depredação interna. Infelizmente essa descoberta se fez tarde
demais, ao meu ver, pois desde o início da aprovação dessa lei bárbara acredito que já
era perceptível o estado de insuficiência mental de Vossa Excelência, porém, mas uma
vez, nada mais sou do que um fantasma que sussurra essas letras em seu ouvido, nesse
documento histórico mal escrito, feito apenas para marcar levemente essa era negra de
nossa História de maneira a não mais ser esquecida.
Uma vez derrubado o presidente idoso proponho que tentemos nos distanciar da
senilidade o mais rápido possível. Enjaulem seus velhos, prendam seus senis,
encarcerem os avós, nenhum ato de rebeldia geriátrica passará impune. Pensemos,
senhoras e senhores, que o melhor a se fazer é eleger um presidente o mais distante da
morte e da velhice possível. Por isso estou aqui, além do fator documental, em prol da
causa da menoridade presidencial, pois o país precisa hoje de uma visão diferente da
realidade, mais colorida e menos agressiva. 
Deixemos que a minoria que os jovens se tornaram, após o apocalipse dos
balzaquianos, tomem voz e reconstruam esse país, retirando as teias e os mofos de
nossas dobras velhas. Envelheceremos sim, todos nós, mas não nos deixemos tornar
idosos nunca mais! Portanto, mais uma vez, reitero o pedido de menoridade presidencial
e apresento aqui meu sobrinho, Alan, de oito anos, que acabou de ler seu primeiro gibi
do cebolinha e agora está fazendo um monstro de massinha espetacular, para futuro
presidente da nação, em prol de um país mais puro como as crianças e os menores. Não
se assustem com o fato dele estar decapitando o monstro, veja, veja pra cara fofa dele,
essas bochechas! Olha que gracinha, imita o Vagabundo do Charlie Chaplin pra eles,
imita Alan! Ele faz direitinho, as perninhas tortas, o chapéu coco, o bigodinho de Hitler!
É uma gracinha, não é?

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III
autoenterro

Ele podia estar em qualquer lugar no tempo-espaço quando quisesse, como


quisesse. Se ficasse demais poderia morrer, mas não se preocupava com isso. Dera a si
mesmo uma cota de vinte minutos no deslocamento temporal, talvez aguentasse trinta
minutos, sentia enfraquecer a cada dez, então talvez conseguisse ficar um pouco mais se
se alimentasse melhor e fizesse exercícios. Qualquer lugar, ele entendera, no tempo-
espaço, e depois voltaria para a existência anterior e teria que recarregar o corpo pra
conseguir viajar nas próximas horas. Com medo de deteriorar muito estabeleceu viajar
apenas uma vez por dia. Qualquer lugar no tempo-espaço. Qualquer. E ele só conseguira
pensar em um: o dia de seu velório.
Automorrer era mistério e a morte seduzia suas pálpebras, sentia a extrema mata
ciliar de seu corpo estremecendo. Gostaria de ver-se morto, apenas. Entender-se
deteriorado, compreender-se ultrapassado pelo próprio tempo, ver a existência
escorrendo vigorosa de sua boca murcha. Não queria motivo, não queria estar no local
de seu arrebatamento. Queria ver os ecos de sua queda, de seu último grito, e memorizar
as dobras e falhas do rosto morto. Tocar a mascara flácida de sua velhice, se tivesse a
sorte de obtê-la, decodificar as histórias em suas rugas. Então foi.
Chegou e tinha marrom por todo canto. Quando viu, estava marrom também. A
roupa havia mudado pra um paletó que parecia madeira escura e viu muita ironia nisso.
Sorriria se não fosse pelo respeito ao morto. Estava numa casa grande, também
amadeirada como suas vestes. Era o futuro. O chão era abraçado por tapetes enormes
que seguiam seus passos teimosos. Ele seguia o corredor, desviando o olhar de quadros
curiosos e candelabros. Seria sua futura casa? Seria a funerária? Qualquer que fosse a
resposta, o lugar era luxuoso. Teria dinheiro no futuro, talvez com o negócio de passear
errante pelo tempo tivesse conseguido roubar coisas, era o que sabia fazer. Deus deu
asas pra essa cobra, não deveria, pensou. Sorriria se você sabe.
Enfim um umbral amadeirado e tocou os sapatos amadeirados numa grande sala.
Separavam-se dois blocos organizados com muitas cadeiras. Deveria ter quase cem
pessoas naquele lugar, ou mais, facilmente mais. Um silêncio impregnado com soluções
e choros. Ouvia vozes masculinas lamentando coisas que ainda não entendia, viu
cabeças balançando e negando. Sentiu certo orgulho.
Os olhos atentos procuraram alguma cadeira vaga para se enfiar. Ali estava, na
última fileira, no último lugar. Sentou-se e focou o olhar no grande caixão negro que
deitava na frente de todos, roubando o show. Poderoso, deitado em quanto os outros
choravam em seus assentos, deitado sem sentir dores, sem precisar chorar. Não podia
ver o corpo, apenas uma mancha branca vestida de paletó. Tentava não olhar para as
pessoas ao redor, com medo de ser reconhecido, mas sabia que as pessoas com quem
vivia hoje já não viveriam naquele momento, tendo em vista que parecia bem velha
aquela mancha pálida no caixão solitário.
Sussurros solitários, choros torrenciais, soluços. Pareciam amá-lo. Parecia ser
importante pra muita gente. Havia em todos uma sombra de tristeza verdadeira,
daquelas que não se vê nas novelas nem nos filmes. Uma sombra que só ocorre com a
luz da realidade, quando o rosto fica esbranquiçado e os olhos descrentes, quando os
lábios tremem infantis e o suor desata. Frio. Sombra fria tomava todo o local. Não
ousou levantar para se ver, não queria romper aquela bolha de luto e carinho para si
mesmo. O luto naquela sala tinha força própria, matéria e cor. Um preto amadeirado, um
cheiro de carvalho endurecido, um gosto de pistache. Era mais forte do que seu próprio
corpo, não ousava levantar. Via o peso da morte, o verdadeiro peso da morte, e foi tão
pressionado que as lágrimas foram arrebatadas de seus olhos. Chorou, envergonhado,
como uma criança. Perto do grande homem que ali falecia, era sim uma criança.
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Talvez pela tristeza, talvez pelo desespero que arrancava talos de seu extinto
equilíbrio, sentiu-se fraco. Era a energia gasta na viagem, era o sentimento que acertara-
lhe de uma maneira que já esquecia. Cruel, golpes baixos em madeiras, pistaches e
carvalhos. Precisava voltar. Queria ver mais coisa, mas precisava voltar. Precisava ouvir
palavras. O padre, a mulher, o filho ou o neto, alguém que fora encarregado com o peso
funesto de discorrer sobre a vida daquele que já não está, naquela tentativa desesperada
de uma sinopse à altura, coisa jamais alcançada por ninguém. Precisava ouvir o que era,
precisava entender o que faria no grande futuro que jazia num caixão negro. Voltou e
desmaiou em sua cama.
Dois dias depois recobrou a força. Treinou, comeu bem, fez uma série de
flexões, vestiu seu melhor paletó – usara uma vez, primeira tentativa de conseguir um
emprego, última – semi-novo e viajou, natural. Mesmo lugar, mesmos tapetes e quadro,
mesma madeira, mesmo umbral grande e salão cheio. Mas agora não encontrava mais
lugar para sentar-se. Onde estava antes estava ocupado e tudo parecia mais cheio que
antes. Escorreu os olhos pelas muitas fileiras e encontrou um outro lugar, mais ao meio.
Sorrateiro, passou pelos homens em luto e sentou-se, tentando discrição, tentando não
olhar para os olhares desesperados.
Dessa vez notara uma música de fundo suave, quase espumante, bem fúnebre.
Vinha de um órgão que se escondia em algum lugar. Ele aprendera a tocar piano em sua
juventude, talvez saberia tocar órgão se relembrasse algumas coisas. Mas tinham os
pedais, o segundo teclado e as alavancas, não entendia porra nenhuma. A música
vibrava, bailava em seus ouvidos como pena, sentiu-a bolha, a superfície refratora
explodindo em arco-íris, a beleza instável e frágil de uma gigante bolha de sabão.
Levantou o dedo, como louco, imaginando estourar a bolha de dor que o organista
costurava ao redor de todos, nada acontecia, a música continuava, os rostos ainda
afogavam em luto, luto negro e espesso brotando dos orifícios, tenebras. Post tenebras
spero lucem, sussurrou. Era uma piada interna nas aulas de latim. Alguém ao seu lado
deixou uma risadinha besuntada de demência escapar, como se entendesse a piada.
Impossível. Ele resolveu não olhar para o dono da risada solta, não queria compactar
com loucuras nem mais chamar atenção.
Fora o órgão, silêncio. Fora o choro, silêncio. Fora o som constrangedor e
torturante da morte palitando seus dentes sobre o caixão exposto como postas de carne
em açougue de peças vencidas, silêncio. Da última vez, ficara naquela realidade por
apenas quinze minutos, o baque de sua morte o enfraquecera muito, mas sentia que
agora era capaz de testar se aguentava trinta. O som vicioso do órgão lentamente invadia
seu peito com suas patinhas peçonhentas. Um misto de escorpião, aranha, cobra e
coruja, embalsamou sua alma no veneno do luto e deflorou sua pele antes saudável.
Derretia, desmanchava, apodrecia e o desespero de sentir-se apodrecer tomou seu corpo
antes calmo. Parecia uma versão mofada de uma música que ouvia quando criança.
Fechou os olhos pra memória tomar o que sobrava de seu corpo. Conseguia ver
nitidamente sua mãe adocicada, as maçãs dos rostos avermelhadas de bondade materna,
os cabelos de mel na frente dos olhos cansados, a boca carnuda e amorosa sussurrando a
música para o filho teimoso. Era A galinha, do disco dos Saltimbancos do Chico. Era
isso. E estava sendo deformada numa corrupção feita de órgão fúnebre. Sentia o gosto
de bolor crescendo-lhe na língua. Era desesperador ouvir a voz de sua mãe clara, junto
com a escura música de seu funeral. Todo ovo que eu choco me toco de novo, todo ovo
é a cara, é a clara do vovô.
Perdera as forças. Revisitava sem escolhas seu quarto, em prantos.
Sentiu-se apto para voltar à morte uma semana depois, após uma rotina cerrada
de escolhas saudáveis em seus menus cotidianos e de polichinelos e agachamentos na
academia. Sentia-se o mais saudável e vívido possível, continuasse assim e não
duvidaria ser capaz de atrasar a morte. Voltou, então, ao futuro. Como no filme. Uma
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versão mais adulta, mais fatal. O mesmo corredor, os mesmos olhos curiosos, o mesmo
umbral onipotente, a mesma mórbida musica infantil, o mesmo monólito deitado em
que seu futuro cadáver descansava. A cadeira da viagem anterior também estava
ocupada, não sabia mais onde sentar. Vagou, perdido, entre as pessoas que se derretiam
em lágrimas até encontrar um lugar vazio e logo o preencheu, esguio.
Sentou e esperou. Queria ver alguma palavra, analisar o que seria sua vida,
entender o que significava. Tanta gente naquele salão, tanta ostentação e poder, como
ninguém poderia se levantar para falar algumas palavras? Precisava morrer em paz,
oras. Horas passaram, talvez. Sem dúvidas não, senão estaria morto ali mesmo, mas
pareceu como. Talvez beirava os vinte cinco minutos, a música modificava, talvez
abraçando todo o álbum dos Saltimbancos e transformando sua infância num inferno
deprimente, o choro arrastava-se. Parecia infinita a sua morte. Nenhum movimento, a
não ser cabeças negando, lágrimas suicidando, sussurros tristes. Ao seu lado, um
homem, do outro também outro. Vestiam roupas diferentes. Tentava não olhá-los, queria
o mínimo de atenção. Ambos balançavam os pés com ansiedade, quando viu fazia o
mesmo ritual viciante. Estancou a perna e olhou pra cima, ocioso. Um lustre de cristal,
parecia, refletia as luzes vindas de grandes vitrais nas enormes paredes. Era belíssimo o
lugar, pena que ele mesmo não estava vendo, ocupava-se em morrer na frente de todos.
Um verdadeiro grand finale.
Sentiu-se fraco e percebeu-se quarenta minutos parado. Voltou para o passado
sem ouvir nenhuma palavra. Temor e incompreensão assolaram seu corpo. Como podia
ninguém falar para o homem morto? Como podia ele atravessar o Aqueronte sem
palavras, sem moedas para impulsionar a barca? Seria defenestrado por Caronte
facilmente. Não entendia e não aceitava. Voltou mais três vezes naquele mês – quadros,
tapete, madeira, órgãos, cadeiras, assento vazio em lugar diferente – e tentava sempre
superar em tempo a vez anterior. Ninguém, nunca, levantava para dizer algumas
palavras sobre o defunto. Como ninguém tinha coragem? Como nenhuma daquelas
pessoas era capaz de falar nada sobre o homem que vieram visitar pela última vez?
Como ficavam tantas pessoas sem fazer nada por tanto tempo, envoltas em desespero e
de um choro ensurdecedor? Ele parecia tão rico naquele caixão, tantas pompas e
elegâncias, uma mancha esbranquiçada no paletó preto com tantos litros de choro
desesperado alheio em sua conta.
Resolvera por um fim à espera. Exercitou seu corpo para o desgaste de existir no
futuro e em três meses de treino intenso voltou ao futuro, a vontade de por um fim ao
mistério do emudecimento de seu funeral. Passou por tudo de novo, todas aquelas
avalanches e inundações de madeira, salão grande com cristalino lustre, cadeiras todas
cheias, tateou pelo móvel já sem tanto cuidado algum lugar vazio, viu alguns rostos
velhos, pareceu conhecer, mas não zanzou por aqueles terrenos proibidos por muito
tempo. Sentou. A Galinha, Chico Buarque. Murmúrios e choros. Ele está afiadíssimo,
transforma cada celular em olho e tudo analisa. Movimentos, narizes entupidos, choros
e vozes masculinas soltando palavras baixinhas ao chão. Havia desespero, ele via, mas
nenhum corpo se levantava para tirar de si a dor.
Ao longe, umas cadeiras a frente, viu uma mão levantar. Nunca prestara atenção
nisso, assim como nenhuma das outras pessoas pareciam prestar atenção. A mão
abaixou-se imediatamente e mais nenhum movimento foi dado. Alguém falou algo mais
alto, outro alguém riu em resposta, uma gargalhada tímida e ensandecida. Mais nada.
Um assovio ao longe, mas o arranhar do órgão cobria. E o tempo passava. Quem sabe o
corpo começasse a azedar e alguém corresse pra fechar o caixão e se visse na
responsabilidade de falar algo antes disso. Quem sabe o próprio morto levantasse e
perguntasse: - Mas que merda é essa?
Aguardou algum fenômeno, em silêncio.

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Agora sim passaram horas. Não sentia-se tão bem. Horas, olhara no relógio que
trouxera. Na verdade quase uma hora de espera. A lista de musicas do organista
terminara e ele voltara para A Galinha do Chico Buarque, não tocava muito bem aquele
músico. Parecia entender o instrumento pela metade, como se não soubesse onde meter
os pés nos pedais, ou como manejar as alavancas, como diabos lidar com dois teclados
sobrepostos. Percebia-se que a espera deixava o musico cada vez mais nervoso.
Algo devia ser feito. Sentia que algo estava prestes para ser feito. Todos ali
pareciam sentir, até o morto se arrepiava. Tensão no ar, era como se a música tivesse se
transformado num infinito diminuto maldito, tenebroso e colérico. Como podia ele ficar
imóvel vendo o silêncio assolar sua vida e morte? Cansava-se, precisava resolver isso.
Sentia-se já perdendo as forças que tanto lutara para ter. O cheiro de carvalho parecia
apodrecer, precisava fazer algo antes que tudo desbotasse e voltasse sem paciência para
o passado. Todos sabiam que ele precisava falar algo. Olha que simbólico. Se não
falasse palavras, talvez podia levantar e perguntar se alguém teria algo para falar.
Ao passar essa ideia na cabeça ouviu o barulho do choro intensificar. Rodeado
do lamaçal da dor, levantou de sua cadeira e abriu a boca para destrinchar seu protesto
contra o silêncio. Porém tudo parara. A música parara. Os burburinhos pararam.
Morreram as lágrimas e as conversas. O tempo não ousava mais passar. Levantou-se e
olhou para o lado, assustado com o que acontecia. Ao seu redor, todos levantavam ao
mesmo tempo. Esmiuçou os olhos cansados, já sentindo seu corpo evanescer. Eram
todos homens, sim, todos homens. Viu no fundo da sala grande o órgão, o músico
tremendo, velho músico, óculos como os seus. Parecia não saber o que fazia, o músico,
e olhava nos seus olhos. Olhou a todos. Todos os olhos olhavam para os seus. Todos os
óculos eram os mesmos. Alguns homens mais velhos, outros bem mais jovens. Todos
choravam e olhavam com os olhos de perdão para o rapaz que descobria a solidão de
sua morte. Todos esperavam pacientemente a morte para preencher seu velório de
mentira. Todos eram ele em momentos diferente de suas vidas.
Viagem do tempo, pensou, enquanto era lentamente esfarelado de volta para o
seu quarto.
Sorriria se não fosse pelo respeito ao morto.

59
Microtrilogia
do nada

60
I
O Gato de Schrödinger

O ambiente era uma sala, grande o bastante para um jantar em família, pequeno
demais para uma competição de tango - o que era uma pena, pois quando os pés
tomavam conta da mente e os corpos uniam-se não deveria haver salas que pudessem
pará-los, atrapalhar a energia universal de um tango, seus movimentos em cadeia
vibrando, reverberando, ecoando e metamorfoseando-se com o ambiente -, um
retângulo, formava a sala, um retângulo, tal qual uma caixa gigante de metal, não com a
textura ou a frieza de uma caixa de metal e a cor estava longe do cinza oxidado, aos
olhos pairava o branco, do puro branco, que refletia-se no chão e no teto, no chão
marcado por azulejos, no teto separados por quatro pontos distintos de lâmpadas, não
amarelas, também brancas, se não tivessem móveis flutuaria-se num mar de leite,
cairia-se no precipício infinito do nada, mas podia ver-se os móveis, tão brancos quanto
as paredes, limpos, distinguiam-se por seu formato, pois uma linha preta contornava
seus limites, se os olhos precisavam acostumar-se com tamanha brancura, os ouvidos
precisavam acostumar-se com os apitos frequentes, calmos sim, porém constantes,
como a tortura do pingo de água, o homem que esperava não sabia se era bom ou ruim
esse barulho, sabia que significava que sua mulher estava viva, alguma força maior
ainda fazia seu coração bater e espelhava-se naquele aparelhinho com seu barulho
monótono e agudo, Com certeza é bom, falou pra ninguém e ninguém respondeu de
volta, o bom de falar com ninguém é que você pode moldar a resposta como bem
queira, e para o homem que esperava ninguém sussurrou, tal qual vento passando pelos
seus ouvidos e arrepiando sua nuca, Como ousas duvidar da benevolência do barulho
que marca a vida de sua mulher, envergonhou-se, reprimiu-se e baixou novamente os
olhos para a imensidão leitosa que aquele quarto proporcionava, enquanto esperava o
homem que esperava perdia-se entre os lençóis esbranquiçados, emaranhava-se nos
infinitos fios alvos, seus olhos perdiam-se na branquidão, era como estivesse no Ensaio
sobre a Cegueira, como se fizesse parte do branco enlouquecedor que unia-se com o
apito ritmado do possível coração de sua mulher, parecia que seu coração batia ao
mesmo tempo, sentiu o sangue bombeando por todas suas veias no ritmo monótono,
quase morto, Deve ser triste estar preso em um corpo, pensou ele, a solidão faz as
pessoas ficarem óbvias, sua mulher estava assim há um ano e o homem que esperava
não tirou os olhos dela em nenhum momento, era muito rico e não precisava preocupar
com modos de ganhar dinheiro, por que não ganharia mais dinheiro do que tinha, tantos
zeros no seu saldo que eram necessários três papéis pra sair a quantia exata, não tinha
hobbys, passatempos, nada que pudesse abastecer seus dias vazios sobre os cifrões, até
o momento em que sua mulher sofreu O Acidente e ficou presa dentro de si mesma, no
início foi difícil adaptar-se à espera, mas o homem que esperava acostumou-se também
e apegou-se tanto à curiosidade e ao mistério preso em cada segundo que passava, tendo
em mente que em qualquer segundo os olhos negros de sua mulher poderiam romper
com aquela branquidão, que fez disso sua principal atração, como um bicho no
zoológico, sua mulher não era nada mais que uma cobra dormindo dentro do aquário e o
homem que esperava representava o menininho chato que fica batendo no vidro pra ver
se ela se mexe, arrumou-se na cadeira de metal branco em que estava sentado e fixou o
olhar nela em seu leito, ouvira dizer que os pacientes nesse estado costumam reagir ou
ao menos ouvir quando falavam com eles, era bom contar coisas ou cantar coisas, mas o
homem preferia silêncio, só um barulho era aceitável, bem-vindo, e era o apito
torturante, passou a vagar com seu olhar pelo quarto do hospital e enrolar-se novamente
em suas paredes brancas esperando algo acontecer e esperando que acontecesse a
qualquer momento, pra não perder o quesito surpresa que envolvia seu hobby, então eis
que o negro tomou conta de toda alvura, tal qual um precipício sem fim, a boca da
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escuridão engoliu todo o quarto, impregnou-se no branco e expulsou-o da vista do
homem que esperava, alguns segundos se passaram para ele perceber o que estava
acontecendo, não estava acostumado com a escuridão e ela veio inesperadamente, com a
violência de um soco na cara, o homem fora nocauteado, passou os olhos pelo quarto e
degustou de algo que não provara há uns tempos, o silêncio reinava, a deliciosa sinfonia
do nada sussurrava acordes e arpeggios em seu ouvido, massageava seus nervos,
delicados, sutil soar do silêncio, sublime, subitamente levantou-se assustado recobrando
os sentidos e a consciência nervosa e pesada, a falta de barulho era um problema assim
como a escuridão, Deve ter sido uma queda de energia, disse o homem explicando a si e
explicando-se pra sua mulher, eu nunca esperava isso, eu, eu não sei o que está
acontecendo, era a primeira vez que o homem falara diretamente para ela em um ano,
infelizmente ela não estava lá pra presenciar esse fenômeno, As máquinas pararam de
te sustentar mulher, sussurrou o homem esperando que ela não ouvisse, e quando
voltarem pode ser tarde demais, quem não conhecesse o homem que esperava poderia
imaginar que, no escuro, uma lágrima saltava de seus olhos, mas isso não aconteceu, ele
seguiu até a porta onde, atrás dela, um médico desesperado na escuridão ensaiava as
desculpas que poderia dar pro homem que esperava, o homem fechou a porta e, com
toda sua força armazenada para momentos como esse, pressionou o médico contra a
porta fechada, O que aconteceu aqui, fez-se a pergunta óbvia o homem para o médico
desesperado, o que é essa escuridão que nos toma, A energia, a luz, nunca foi confiável,
sabíamos que ia acontecer cedo ou tarde, já estávamos tomando nossas precauções com
geradores, abastecedores e luzes de emergência, mas ocorreu antes que pudéssemos
imaginar e, Não me importo com isso, não me importo com o hospital, o que vai
acontecer com minha mulher é o que quero saber, as máquinas delas desligaram-se,
Assim como todas as máquinas do hospital, Do hospital inteiro ela era a única que
precisava das máquinas completamente, são os dados do ano passado, tenho-os
guardados em algum lugar, e ao dizer isso tateou os bolsos cheios de seu paletó, Sim,
estás deveras certo, mas não atualizado, esses são sim os dados do ano passado, mas a
cada ano, precisamente a cada mês, os dados atualizam-se, pois estão em compulsória
mutação, não que isso signifique terem melhorado, não depende de nós, Achas que estás
falando com um retardado, o médico desesperado resolveu ir direto ao ponto antes que
perdesse todos os ossos naquela porta, Com o tempo na máquina sua mulher pode ter
desenvolvido batimentos próprios, ritmados, que foram sendo aperfeiçoados com o
passar dos tempos, há uma chance de ela estar alforriada da máquina por um tempo, o
que significa que pode sobreviver sem precisar de ajuda dos aparelhos, estava agora
mesmo indo falar isso pro senhor no quarto, não era necessário que viesse até mim, Se
não fosse até você não irias até mim, De modo algum, de modo algum, pois que a
primeira coisa que temos que fazer é consolar os entes queridos, Não me atualizam há
um ano, como queres que eu creia que iria agora mostrar-se a mim, o silêncio fez-se, o
médico desesperado parecia não ter respostas pra isso, lentamente o homem que
esperava foi soltando o médico de seus tentáculos, Então há uma chance de ela estar
viva, Sim, Ela esta viva agora, Daqui do lado de fora não podemos ter certeza, por isso
aconselho entrarmos no quarto pra eu poder tirar os batimentos cardíacos de sua mulher,
o homem que esperava soltou o médico, que conseguiu tocar os pés no chão, Mas ela
também pode estar morta, Esperamos que não, Mas há a chance dela estar morta, Tão
viva quanto morta, Então atrás dessa porta posso encontrar minha esposa tão viva
quanto morta, Sim, E se ela estiver morta tudo isso foi em vão, De modo algum, nunca
serás em vão, esteves do lado dela o tempo todo, ela deve ter ouvido sua voz enquanto
cantava pra ela, falava com ela, sua mulher sabia que sempre esteve ao lado dela, o
homem que esperava engoliu seco, O que não muda o fato da morte poder estar presente
atrás desta porta, Não, nada vai mudar o que aconteceu, o que pode ter acontecido, mais
uma vez silêncio das duas partes, o homem que esperava abaixou a cabeça e mordeu os
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lábios, quem o conhecesse jamais acharia que uma lágrima poderia pular de seus olhos,
mas foi o que aconteceu, a lágrima foi-se e flutuou no ar, transformando os segundos em
amarras infinitas de tempo, Dê-me a chave, Como disse, Dê-me a chave do quarto de
minha mulher, o médico desesperado esticou a mão ossuda e branca para o homem, em
sua mão a chave refletia a luz refletida na lua que invadia a janela no fim do corredor, o
homem pegou-a, inseriu na fechadura e trancou o quarto, O que pretendes fazer, Nada,
Nada, Sim, nada, Mas temos que entrar no quarto pra ver se sua mulher, Não, ninguém
mais entra nesse quarto, Estás louco, só pode, a política do hospital, a ética médica, o
juramento médico, tudo fala mais alto do que sua palavra, não podemos deixar um
paciente preso num quarto sem saber o que acontece dentro, Eu compro, Como disse,
Eu compro, eu compro o quarto, Não há dinheiro no mundo que compre uma vida, Eu
compro o quarto, desta vez foi um grito que saiu da boca do homem que esperava, logo
que as palavras saíram rasgando de sua boca, suas mãos rápidas tiravam maços de
dinheiro de seus bolsos internos do paletó e jogavam pelo chão enquanto seu grito
ecoava pelo corredor vazio, Tome quanto quiser, e continuava a jogar no chão o
conteúdo de sua fonte infinita, Tome tudo, o quarto é meu e ninguém abre esta porta, o
médico olhou para o homem que esperava, O senhor esperou por tempo demais, creio,
Tempo demais pra ir em vão, Preferes tapar os olhos pro que está acontecendo do que
saber a realidade, Não, prefiro crer que minha mulher vive pra continuar a esperar, eu
espero apenas, esse é meu dever aqui, Tem de haver um fim pra essa espera, é só deixar-
me entrar no quarto e saberemos se está viva ou morta, Já disse que ninguém entra,
enquanto a porta estiver fechada minha mulher não correrá o risco de estar viva ou
morta, ela estará viva e morta, Por que isso, Estamos todos presos em nossas caixas
médico, mortos e vivos, tristes e alegres, todos prestes a tomar o veneno, todos loucos
pra espiar na caixa dos outros pra saber se já morreram ou não, não estou fazendo nada
demais aqui, Sim, estás, estás tirando o direito de sua mulher de viver, Tiro o direito
dela não, tiro o nosso direito de saber a verdade, Preferes não sabe-la, Prefiro ter a
certeza de que minha mulher pode estar viva e morta ao invés de uma coisa só, Mas não
existe vida e morte num corpo só, Num corpo só não, na incerteza sim, os paradoxos
consomem-se e tornam-se um, apela-se para a resposta que quer-se ouvir, Então sua
esposa passa a ser um brinquedo, fica morta quando queres, fica viva quando preferires,
Ela já era um brinquedo, sempre foi um brinquedo desde um ano atrás, a situação dela
não muda nada, sempre esteve viva e morta presa naquela cama, Deixa-me entrar, Tome
este dinheiro e não faça mais perguntas, eu tenho o direito da incerteza, A incerteza não
te leva a nada, A incerteza me dá a esperança, o homem que esperava enfiou novamente
a chave na fechadura e quebrou-a lá dentro, Não olhes assim pra mim médico, apenas
externei a caixa que todos vivemos, nossos retângulos individuais, agora não havia nada
pra fazer, o médico sabia disso, o homem que esperava era um homem poderoso, seu
dinheiro calava bocas, agora o território do quarto e seu recipiente desconhecido era
mais uma de suas posses, enquanto abaixava-se para pegar o dinheiro do chão
perguntou, E quando a energia voltar e for possível liga-la às maquinas novamente, Isso
não vai ser feito, você vai garantir que a força desse quarto não seja acionada
novamente, sei que os maços que joguei farão esse trabalho, o médico balançou a
cabeça energética e negativamente de maneira repressora enquanto botava os cifrões
para dentro de seus bolsos, a linguagem da hipocrisia gritando mais alto que a razão,
Antes de ir só tenho uma pergunta pra te fazer homem, Quê, Tu és consciente de teus
atos, nada posso fazer por isso, só quero saber por que, por que o fazes, o homem que
esperava sorriu e virou-se para a saída do hospital, seu andar era mais leve do que o
normal, parecia solto, o peso em seus ombros deixado pra trás, trancado, selado por toda
a eternidade, ao fim do corredor respondeu de volta ao médico, suas palavras
reverberaram o corredor e marcaram-se nas mentes vagantes, Tenho o direito de não
querer saber, a incerteza é uma dádiva e a ignorância é uma benção.
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64
II
Tempestade de Vento

Tal como o mar revolto, o vento afogava em fúrias adormecidas a paisagem que
sustentava o peso de seus olhos enclausurados nas grades enferrujadas da janela. As
belas e majestosas árvores dobravam-se sobre seus corpos, humildes e temorosas,
enquanto o vento, em rodamoinhos de aspereza e orgulho, varria o tudo para todos os
lados, uma limpeza geral da natureza há tanto tempo tomando poeira sobre o sol
incansável e a lua dormente.
Os olhos presos e protegidos pela casa apenas conseguiam observar, imóveis,
num corpo curioso que lentamente descascava ao feroz sol dos anos. A casa era mais
forte que as árvores, pensavam os olhos, a casa é mais forte que o vento, concluía, por
enquanto. A casa, aquele cadáver em que ele parasitava, gritava horrores contra o vento,
como um titã ferido de orgulho ou de lâmina aberto, com as orelhas de suas janelas a
balançar excitadas, os vidros a tremer amedrontados, as  madeiras rangendo revoltadas
em não poderem ir lá fora e acabar de vez com aquele que ousava revolver a imóvel paz
que lá repousava e que agora voava pombo assustado, dando de cara com as paredes,
arrebentando as asas nos telhados, prestes a quebrar o fino pescoço nas armadilhas do
lar.
Ele, os olhos, não podia julgar os vidros amedrontados, de certo eram a parte
mais delicada da casa e, ainda assim, mais exposta ao terror do estilhaço, do ferimento
incurável que é ter seus pedaços esmagados pela força externa, romper suas fibras em
diversos eus perdidos, cegos a tatear-se a procura do laço morto.
Os vidros eram como os olhos, unica parte existente daquele ser observador de
tempestades, e tal como os vidros, os olhos temiam pela vida enclausurada na caixa de
concreto, temiam pela fragilidade do corpo humano lançada ao vento e já trincada por
tantas pedras passadas e encrustadas em sua pele. Fazia das pedras, pele e da pele um
ele, pra ver se aprendia sendo e refazendo dia após dia a dor que o fez sê-lo. Mas os
vidros não tinham essa flexibilidade humana, a maldita flexibilidade humana de não
estilhaçar-se de vez com a primeira pedra e acabar com a agonia do resto do viver, sem
preocupar com as pedras passadas e vindouras a atenazar sua pele eternamente, os dedos
passando pelos montes de calos e cicatrizes, montanhas de pedras arremessadas contra a
falecida maciez da epiderme, as pedras espinhadas, envenenadas pedras, moldando
entre cânions, géiseres e outras deformações anaturais, as curvas de nossos corpos, a
aridez de nossas bocas, a calefação de nossos peitos, a umidade de nossos olhos.
Os vidros batiam os dedos de frio e terror enquanto os olhos, expostos olhos a
qualquer caco a se desprender daqueles vidros, grudava em suas transparências e
dançavam junto ao vento, rodamoinhando tal como as folhas jogadas na dança da
tempestade, livres como essas folhas que viviam do lado de fora, livres e impotentes
como essas folhas que viviam do lado de fora expostas aos humores da natureza. Temeu
pelas folhas e apiedou-se delas, ambos presos em suas casas, atrás de seus vidros,
enclausurados em suas grades enferrujadas. Tudo está preso, concluíra, em algo maior
que ele. Tudo é prisão e apenas os olhos fracos não conseguiam enxergar as enormes
grades que subiam ferozes por detrás do horizonte. Eram caixinhas dentro de caixinhas
dentro da caixas dentro de caixões enterrados num cemitério de realidades, como
animais de estimações mortos. 
(caixinhas de vidas enclausuradas em caixinhas de familias enclausuradas em
caixinhas de realidades sociais enclausuradas em caixinhas de cidades enclausuradas em
caixinhas de estados enclausuradas em caixinhas de países enclausurados em caixinhas
de continentes enclausurados em caixas de mundos enclausurados em caixotes de
universos enterrados nos cemitérios das dimensões)

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Não era a toa que sempre fora claustrofóbico toda a vida. Se ao menos fizessem
um buraco pra respirar em alguma dessas caixas, como fizera com seus animais, talvez
um buraco rente aos outros buracos, que dê a capacidade aos olhos curiosos de verem o
infinito ou ao menos a cor da terra que lacra suas vidas. Mas nenhum olho teria a
audácia para olhar para cima se assim o fosse.
Era tudo tão pequeno, pensava, era tudo tão folha. Tudo tão livre e impotente ao
humor da natureza. Era uma rufada de vento e tudo e todos para os ares, dançando a
valsa da morte, a valsa da impotência, em voltas e voltas infinitas, fazendo o tudo
morrer sem ar, afogado no seco. No fim todos morreriam afogados em suas próprias
escolhas. No fim a vida é sentença de morte por enquanto sem ponto final.
Na árvore mais próxima, em seus galhos secos e espalmados como num gesto de
misericórdia, uma sacola plástica se debatia de dor, presa pelas orelhas em alguma lasca
da madeira velha. Ali o vento não fazia efeito, nunca teria forças pra tirar a vida de uma
frágil sacola plástica abraçada a um galho. E o que isso queria dizer? Os olhos
prenderam-se no micro fenômeno que tomava forma do outro lado do vidro
amedrontado. A brava sacola chacoalhava, poderosa, no galho, sem temer o destino que
o vento poderia lhe dar. Sem temer o poder maior, a caixa maior, a prisão em que vivia,
podendo volitar em qualquer uma dessas dimensões. Diante dos olhos assustados
desabrochava o imortal, o plástico fadado à vida eterna ou à mais algumas centenas de
anos a rodar pelo vento. A sacola de plástico, a debater-se contra o vento, contra o sol e
contra tempo, o assistiria lentamente definhar e morrer.
A sacola de plástico assistiria lentamente a todos os seres humanos definharem e
morrerem.
O que era o homem, então, que não um perdedor? O que era o homem, então,
além de mísera folha ao vento, presa em seu caixote mal estruturado e sem buracos para
o ar puro, invejoso ao ver a sacola a acenar os braços para o futuro que ele nunca
chegaria a vislumbrar?
Sentiu inveja, a verdadeira inveja a consumi-lo e destruí-lo, e assim que a
tempestade acabasse - prometeu para o orgulho que jazia ferido e envergonhado,
envolto na própria urina, no canto do quarto - faria questão de subir naquela árvore,
arrancar a sacola de plástico e lentamente rasgá-la com os dentes, para que conseguisse
dormir sem ver a imortalidade caçoar do resto dos seus dias e dos seres humanos na
janela de seu quarto.
Era só a tempestade parar, ele já pegara a escada e a vassoura.
Era só esperar o vento deixar de chacoalhar os vidros, irritar a casa, embaralhar
as folhas impotentes.
Era só a tempestade parar por uns segundos, que seja, um minuto apenas, uma
pausa para que ele pudesse subir nos galhos velhos de seu orgulho e depenar aquela
sacola maldita.
A tempestade nunca parou.

66
III
Senhor Ninguém.
(Construção madrugadora de personagem nenhum.)

Trazia no corpo o atraso das décadas, das épocas negras esculpidas as rugas, sua face de
misto, sua boca de grito, de eterno suspiro recheado de aflições. Trazia, assim, nos olhos
furados, o pranto de anos qual prato quebrado, estilhaços de amores envenenados em
cada veia saltada, em cada bifurcação. Aprendera a olhar o tudo e o nada e a se perder
no entremeio, no recorte que fizera do existir na linha tênue do desaparecer
propositalmente para fazer sentido, e não o fazia. Seu rosto, quebra-cabeça de encaixes
gastos e deformados, fluía com a inconstância dodecafônica de uma convulsão,
epiléticas emoções sobrevoando famintas, num eterno combate territorial, os solos da
face em sulcos de bandeiras enfincadas, numa acupuntura dos sentimentos inválidos,
azedos, empapuçados de bolor. A dor de outrora anestesiava, santa, os espinhos do
porvir, o que machucaria o martelo em parede nua? Mas esquecera que mesmo que nua,
ainda parede. E sendo eterna parede, eterno martelo a romperia, quiçá num canto mais
frouxo, quiçá num cano mais murcho, a água esvaindo de torrenciais dilúvios que ele
guardara só para si, a refrescar as tubulações de seu corpo cansado. Era um homem de
frases diretas pequenas, mas de descrição arrebitada na ponta do nariz, numa
complexidade latejante desnecessária, dentes cavalares invadindo sobredentes, de
ambíguos focos pois ambíguos olhares levava no bolso. Era um homem que não se
permitia parágrafos a mais, sucinto no pensar, castrando frases pela meta Era um
homem que não sentido gostara fazer, vivia em sentenças mal polidas espinhadas e,
mesmo por tal complexidade, compreendido fazia ou criava compreensões inéditas nas
virgens cabeças dos arredores. Como indigente morria sempre que fechava os olhos,
portanto custava o renascer, pendendo horas como marcasse segundos, os olhos
trancados em seus dormires, a morte envolvendo seu saco de ossos, a boca laceada pelo
ar invasor. E em alguns dias, porém, estourava nos olhos a luz do sol, arrombando as
portas com suas janelas, cacoando os vidros por todo o solo dos pés de seus olhos, as
pálpebras arregaçadas por um pé de cabra de emergência para quando a vida precisasse
entrar em contato consigo. Talvez era um hobby, o dessentido, talvez fizesse pelo prazer
de argumentar com os espelhos, num empate de vorazes contradições, a fluente
necessidade de suas afluentes vitais. Deixara de conversar com as facas, famintas facas
pelos túneis de seu sangue, deixara de conversar com as cordas, carentes cordas pelos
abraços de seu pescoço, deixara de conversar com deus, faminto deus pela alma pura de
seu corpo. Deixara. E no espelho, espelho vermelho dos olhos vermelhos, dos olhos de
ruga e rosto quebrado, das curvas peludas da pele do queixo, da testa tal queijo, como
uma pista de dança frequentada por agulhas, nesse espelho de extrema reflexão,
surrealismava com impeto, tecendo no silêncio de seus dedos a impotência de sua
existência num mundo deveras simples. E assim, brandindo o fio de suas túmidas
palavras numa mão e a lâmina carinhosa em alguma das outras mil, semi-disse, entre-
mentes, intra-gável, extre-mista: - Ser ou não?

E não.

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