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Resumo:
O mercado de games retrô constitui o objeto empírico deste artigo, que se caracteriza
como resultado parcial de pesquisa em andamento voltada para a compreensão das
relações entre memória, identidade e consumo de games, no mercado brasileiro.
Buscamos explicitar alguns nexos entre memória social e o consumo de jogos digitais
retrô, entendendo que a constituição das memórias individuais e sociais são processos
comunicativos e afetivos. Como percurso argumentativo, apresentamos, na primeira
parte deste artigo, algumas considerações sobre o conceito de memória social, bem
como sobre fenômeno contemporâneo de “cultura da memória”, conforme trabalhado
pelo historiador Andreas Huyssen. Em seguida, tratamos de iluminar alguns pontos
sobre os sentidos mobilizados no processo de consumo dos jogos retrô.
Palavras-chave:
Games retrô; Memória; Identidade; Consumo; Comunicação.
Abstract:
The retro games market is the empirical object of this paper, that is characterized as a
partial result of ongoing research aimed to understand the relationships between
memory, identity and game consumption, in the Brazilian market. It seeks to explain
some nexus between social memory and the consumption of retro digital games,
perceiving that the constitution of individual and social memories are communicative
and affective processes. As an argumentative course, it presents, in the first section,
some considerations on the concept of social memory, as well as on contemporary
phenomenon of "memory culture", according to the historian Andreas Huyssen. Then
it tries to enlighten some matter about the senses that are mobilized in the process of
retro games process consumption.
Keywords:
Retro games; Memory; Identity; Consumption; Communication.
1 Introdução
produção e de consumo de games retrô. Esse procedimento foi amparado pela análise
de casos de jogos e pela compreensão dos sentidos mobilizados pelos jogadores (as)1
em seus usos e apropriações de jogos retrô, conforme pudemos observar em nossa
atuação acadêmica e profissional.
Como referencial teórico, nos amparamos na compreensão de que o consumo
não deve ser visto como um ato meramente induzido nos consumidores pela
publicidade e por interesses comerciais. Na discussão que propomos, o consumo deve
ser entendido como
Castro (2014, p.60) entende que o consumo é um campo plural e que hoje “não
seria correto falarmos em cultura, mas culturas do consumo”. Corroborando essa ideia,
Sassatelli (2010, p.193) destaca que as lógicas de consumo que permeiam essas
culturas geram uma miríade de consumidores que compram, usam, estocam, mantêm,
gerenciam e fantasiam com mercadorias, ainda que se possa questionar até que ponto
realmente se concebem como consumidores enquanto executam essas variadas
atividades no dia a dia. O consumo está impregnado no cotidiano. Consumimos
produtos, mas também consumimos conteúdos, ideias, simbolismos e imagens.
Retomando Castro (2014), o consumo é plural ou multifacetado porque está presente
em diferentes situações que nos cercam no dia a dia. Consumimos não somente quando
compramos algo em uma loja, mas quando navegamos na internet ou nos
movimentamos pela paisagem urbana.
Além do mais, nos servimos das conceituações apresentadas pelos campos da
Psicologia, da História e da Comunicação acerca dos processos de constituição das
memórias individuais e sociais. Baseados no trabalho de Nunes (2016, p.148),
1
Para aliviar o texto, a partir daqui deixaremos de usar a formulação “o (a)”.
Conforme nos mostra Bosi (2003, p.36), a partir das reflexões do filósofo
francês Henri Bergson, a memória tem um papel fundamental na existência humana,
“já que ela permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo,
interfere no curso atual das representações”: enquanto força subjetiva, as lembranças
incidem diretamente nas percepções e valorações atuais. Em outros termos: a memória,
fruto de uma trajetória de vida singular, é “o lado subjetivo de nosso conhecimento do
mundo” (BOSI, 2003, p.36) – um dos principais substratos da consciência de si e da
realidade.
Ao estar diretamente ligada à constituição da identidade e à percepção de quem
somos, a memória individual é atravessada por afetos. Conforme nos ensina o filósofo
holandês Espinosa, os humanos são seres fundamentalmente constituídos pelos afetos
(pelas paixões). Isso significa, sem desconsiderar a importância de nossas faculdades
racionais, que nossa relação com o universo físico e social é guiado pela nossa relação
afetiva com o que nos cerca. De maneira resumida e parcial, para o filósofo a essência
do humano é buscar o contato com coisas e seres que ele imagina aumentar sua
felicidade e evitar o contato com as coisas e seres que imagina lhes causem tristeza.
No primeiro caso, amamos essas coisas e intentaremos conservar o máximo possível
a presença dessas coisas em nossa vida; no segundo caso, odiamos essas coisas e
sempre que possível nos esforçaremos por afastá-las de nossa vida.
No caso da relação memória e afeto, demonstra Espinosa na definição 32 e na
proposição 36 da parte III de sua Ética ([1677], 1973, p. 194-197):
2
Essa citação retirada de Espinosa (1973) foi cotejada com a tradução de Marilena Chauí (2006) a partir
da edição Gebhardt II da Ética demonstrada à maneira dos geômetras, na língua original em latim. No
contexto dessa tradução, a autora coloca o termo desiderium como equivalente do termo saudade.
Como nos mostra Le Goff (2000, p. 391), tanto os conteúdos das memórias
sociais quanto os modos sociais que elas assumem são historicamente determinados.
Cada época histórica tem um modo definido de constituição das memórias sociais: nas
sociedades antigas, a cultura da memória é fundada em processos orais de transmissão.
Nesse cenário a figura do “narrador” se destaca, uma vez que é nesse que se encontram
os formatos de preservação e comunicação das memórias sociais. Já na Idade Média e
na Idade Moderna até a Revolução Industrial, a memória é constituída tanto através de
procedimentos orais quanto através de processos escritos – nesse contexto histórico a
difusão de memórias é ampliada por conta da invenção da prensa, porém limitada
materialmente em seu alcance por estar restrita ao registro em fichas, cadernos,
catálogos e livros de tiragem reduzida. A partir do século XIX, com a difusão da
imprensa escrita e da indústria editorial, a memória coletiva adquire um volume tal
que se torna impossível “pedir” que a memória individual “receba o conteúdo das
bibliotecas” (LE GOFF, 2000, p. 391).
Evidentemente, não existem rupturas entre esses processos históricos, e sim um
processo dialético de acumulação e transmissão do acervo de conhecimento e dos bens
culturais ao longo da história, de maneira que o salto que a memória coletiva
experimenta a partir do século XIX é “a conclusão culminante da acumulação da
memória desde a Antiguidade” (LE GOFF, 2000, p. 391). Assim, o desenvolvimento
e ampla difusão dos diversos suportes materiais e tecnológicos das memórias
contribuem cada vez mais para a tessitura de uma memória social. Nunca houve como
em nossa sociedade tantos dispositivos tecnológicos de registro e comunicação da
memória, assim como nunca houve a quantidade de agentes sociais que as produzem.
Fotos, testemunhos, reportagens e vídeos relatam o presente, transbordam os meios de
comunicação, tradicionais e os digitais, numa imensidão de experiências pessoais e
coletivas (CUNHA, 2011).
No contexto contemporâneo, podemos identificar pelo menos duas mudanças
importantes nas relações da sociedade com a memória individual e coletiva: por um
lado, temos um contexto social e cultural marcado por transformações na organização
do tempo social e nas experiências das temporalidades que implica novas formas de
Fonte: Emuparadise.me4.
3
Nesse campo, destacamos as réplicas comercializadas nos dias de hoje de consoles 8 e 16 bits como o
NES Classic, SNES Classic Edition e Atari Flashback 7. Destacamos também, nesse variado mercado,
a existência de jogos que se inspiram em estéticas antigas, mas servem-se de mecânicas modernas
4
Disponível em: <https://goo.gl/jhecY4>. Acesso em: 12 mar. 2018.
Fonte: Playstation.com5.
Um outro exemplo que podemos trazer para nossa discussão é o jogo Shovel
Knight lançado em 2014 pela produtora Yacht Club Games para as plataformas
PlayStation 4 e Nintendo 3DS; vale frisar que em 2017 o game também foi lançado
para a mais recente plataforma da Nintendo, o console Nintendo Switch. O título
utiliza gráficos de consoles da década de 1980 e 1990 para compor uma narrativa com
temática medieval no qual um cavaleiro utiliza uma pá como arma. Há uma atualização
nas mecânicas e dinâmicas do jogo, mas o visual de cada tela reproduz o visual de
antigas produções do mercado.
Fig. 3 – Tela do jogo Shovel Knight para Playstation 4 (Yacht Club Games, 2014)
5
Disponível em: <https://goo.gl/ngqKTg>. Acesso em: 12 mar. 2018.
6
Disponível em: <https://goo.gl/apq7eH>. Acesso em: ago. 2018.
O último exemplo que trazemos para esta discussão é o game Mother Russia
bleeds da produtora Devolver Digital, disponibilizado no mercado em 2016. A
narrativa, ambientada em uma Rússia apocalíptica, é um jogo de luta que reproduz os
gráficos e mecânicas de jogos como Double Dragon (Technōs Japan), de 1987.
Logicamente, como no supracitado Shovel Knight, há uma atualização de
possibilidades narrativas e mecânicas em Mother Russia bleeds, mas uma atualização
que vem “envelopada” por uma aura retrô que serve como um diferencial para o game.
7
Disponível em: <https://goo.gl/oiiB9d>. Acesso em: ago. 2018.
Fig. 5 – Tela do jogo Mother Russia bleeds para Playstation 4 (Devolver Digital, 2016)
Fig. 6 – Tela do jogo Double Dragon para Nintendo (Technōs Japan, 1987)
8
Disponível em: <https://goo.gl/fbnwAV>. Acesso em: ago. 2018.
9
Disponível em: <https://goo.gl/Y4WKuo>. Acesso em: ago. 2018.
a um tempo passado que tende a lhe afetar de modo positivo, aumentando sua sensação
de prazer e bem-estar.
Esses jogos e os sentidos atribuídos a eles estão carregados de afetos. Através
do consumo material e simbólico desses jogos, o jogador experimenta um processo
memorialístico que sublinha a permanência de uma identidade e de uma trajetória de
vida particular, deixando de lado uma lógica histórica e temporal que é essencialmente
marcada por rupturas e transformações.
Retomemos as considerações de Espinosa trazidas na primeira seção deste
artigo: o consumidor de jogos e linguagens nostálgicas se recorda de uma experiência
de sua infância e/ou juventude no qual se deleitou e busca retomá-la, de sorte a
aumentar sua felicidade – em termos espinosanos, em busca de aumentar seu conatus,
ou seja, sua potência de ser, desejar e existir.
Essa vontade de resgate memorialístico do passado está intimamente
relacionada à sensação de aceleração e dissolução que o mundo contemporâneo enceta.
Afinal, a percepção de perdas de laços com o passado e a tradição é resultante dessa
dinâmica marcada pela fragmentação espaço-temporal (VIRILIO, 2008). Uma
suposição derivada das reflexões de Espinosa é a de que os jogadores, ao
experimentarem um presente que lhes afeta negativamente e ao perceberem uma
incerteza sobre o futuro (sensação que tende a levar ao medo e/ou esperança, ambas
paixões tristes, segundo o filósofo), buscam no consumo dos jogos e linguagens
nostálgicos o resgate de um passado alegre e seguro.
Nesse quadro, mesmo jogadores mais novos que não experimentaram, de fato,
o passado com os jogos antigos, também experimentam sensações de estabilidade e
conexão ao consumirem os imaginários e memórias compartilhados pelos meios de
comunicação e que atravessam o mercado dos jogos retrô. Aqui, desenha-se de forma
clara a dimensão da memória como um fenômeno comunicativo: os afetos e
marcadores de memória fazem parte da trama cultural e estão em circulação nos
distintos universos sociais de diferentes jogadores.
A memória individual e a memória social são dialeticamente relacionadas. O
que lembramos é uma construção ativa em função de nossa trajetória de vida, mas que
se dá justamente dentro de quadros de memórias sociais. Conforme nos explica Pollak
(1989, p.9), o processo subjetivo de constituição da memória reside na
5 Considerações finais
10
Aqui, nos servimos do alerta de Pierre Bourdieu (2005) sobre o equívoco de interpretar, a partir da
leitura de seu clássico A Distinção: crítica social do julgamento, que o móvel último das ações humanas
é a busca da distinção social. Nesse campo, julgamos analiticamente fértil sua teoria do espaço social
articulada ao conceito de habitus.
REFERÊNCIAS
BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória. Ensaios de Psicologia Social. Cotia: Ateliê
editorial, 2003.
CHAUI, Marilena. Laços do desejo. In: NOVAES, Adauto (org.). O desejo. São
Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 19-66.
NUNES, Monica Rebecca Ferrari. Memória, consumo e memes de afeto nas cenas
Cosplay e Furry. Contracampo, Rio de Janeiro, v. 35, n.1, p. 142-162, abril/julho
2016.