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ANÁLISE FÍLMICA DE “EM TRÂNSITO” (MARCELO PEDROSO, 2014) por Yuri Lins

A sessão de estreia de “Em trânsito” (Marcelo Pedroso, 2014) no Cinema São Luiz, durante
o festival Janela Internacional de Cinema do Recife, configura-se, ainda hoje , como uma
das mais catárticas experienciadas por mim dentro de uma sala de cinema. O nível de
algazarra e falta de distanciamento crítico empreendido pelo público talvez só encontre
paralelo nas sessões para fãs ávidos de filmes como Vingadores, Harry Potter ou Star
Wars: batiam-se palmas e gritava-se a plenos pulmões, isso sem que a projeção tivesse
encerrado; as reações desenfreadas aconteciam como uma resposta a cada nova cena que
surgia na tela.

Sabe-se que Marcelo Pedroso não é um George Lucas, uma vez que sua obra permanece
dentro de um sistema de produção mais modesto e suas aspirações enquanto realizador
estão na ordem da reflexão política sobre os descaminhos do Brasil. Seus filmes vão desde
documentários (Pacific, Câmara escura), passando ficções alegóricas (Brasil S/A, Corpo
Presente) até panfletos militantes (Recife, cidade roubada e os vídeos do coletivo Vurto).
Nada, até então, parecia prefigurar qualquer indício de que Pedroso comporia algum filme
com tamanho poder de gerar catarse explosiva no seu público. Ver uma plateia composta
pela ​intelligentsia r​ ecifense​, q
​ uase que majoritariamente uma burguesia esclarecida e de
esquerda, ​agir como qualquer fã de franquia faz pensar sobre as operações utilizadas pelo
realizador e o que isto revela sobre o poder e as limitações da imagem cinematográfica.

Lançado nos efervescentes anos de 2013, “Em trânsito” acompanha o protagonista Elias
que, certo dia, recebe por telefone uma ligação com uma gravação do (ex)governador
Eduardo Campos pedindo seu voto nas próximas eleições. Nas ruas, a campanha eleitoral
para a prefeitura do Recife está bastante movimentada, militantes gritam e tremulam
bandeiras, enquanto que Elias passa por um caleidoscópio de situações surreais: sua casa
é destruída, ele compra um carro, passeia por manifestações, corta a cabeça do governador
e assume o seu lugar como regente de um balé de uma frota de carros.

O que o filme anseia é construir um ato de vingança simbólica contra todo um estado de
coisas que a cidade do Recife vivencia na sua esfera social. Tem-se um antagonista claro: a
lógica de um desenvolvimentismo atroz que remodela as cidades e que não teme em
passar por cima das pessoas desfavorecidas em prol de construir mais vias para os que
carros, símbolo deste progresso econômico, possam existir e percorrer. Elias, homem que
vive às margens, morador de um barraco que será demolido, passa a ser observador destas
contradições e será o vetor para que, dentro da ficção do filme, algum gesto de revidar
possa acontecer

O que salta aos olhos em ‘“Em trânsito”, e o que talvez explique o seu poder de catarse, é a
sua completa frontalidade em assumir-se como produto de um tempo e espaço específicos,
de permear suas imagens com signos que, à época de seu lançamento, estavam em plena
ebulição e angariavam os afetos mais presentes de quem vivenciou ou foi espectador
daqueles acontecimentos: em determinada cena, Elias é acordado por uma ligação que
contém uma gravação com a voz do Ex-Governador Eduardo Campos a pedir votos para o
seu candidato à prefeitura do Recife, Geraldo Júlio; noutra cena, Elias caminha na
contramão de um desfile de militantes do PSB que fazem campanha por entre os carros
numa avenida; a própria existência do boneco de papelão em tamanho real do
ex-Governador como uma personagem zoomórfica finca o pé do filme naquele tempo
específico, nos idos de 2013, anos que já parecem tão longínquos. Fazer uma análise deste
filme hoje requer indagar se a sua potência ainda permanece, se as suas cenas, ideias e
articulações ainda se sustentam quando a catarse já é uma impossibilidade.

Percebe-se muito claramente que o realizador possui total consciência das fragilidades
inerentes a fazer um filme com este recorte tão arraigado naquele período. Talvez isto
venha da sua bagagem enquanto militante político, em que a urgência de agir e de
comunicar algo se sobrepõe à qualquer consenso sobre o que um filme precisa ter para que
se mantenha universal que possa envelhecer bem. Pedroso transforma estas fragilidades
em matéria para compor o seu filme.

Hoje, alguns dos signos construídos por Marcelo Pedroso já não possuem o mesmo
impacto. A imagem do poder significado na figura de Eduardo Campos, sua cabeça sendo
cortada pelo homem oprimido e para logo depois ser utilizada como máscara, o áudio da
Presidenta Dilma Rousseff fazendo um elogio ao projeto desenvolvimentista de seu (finado)
governo, o próprio temperamento anti-política institucional, ainda que pueril se comparado
ao que veio depois, já não diz muita coisa. Eduardo Campos morreu em um acidente aéreo,
a Presidenta Dilma foi destituída do cargo através de um golpe de estado, a extrema-direita
subiu ao poder e ninguém sabe por onde anda o Elias.

Cada filme é uma cápsula do tempo, mesmo que não almeje a eternidade. Rever “Em
trânsito” em 2020 foi perceber coisas que o meu olhar em 2013 não pôde acessar, de tão
infectado pelo presente, de tão compactado pelo momento. Pude perceber coisas
interessantes num filme que eu nunca gostei realmente - e que ainda não gosto, como um
todo. Nele, sente-se qualquer coisa que lembra as comédias clássicas de Buster Keaton
(“Steamboat Bill”, Jr.” e “The General”) e os Marx Brothers (principalmente “Duck Soup, de
1933). A expressão sempre séria de Elias, em que qualquer variação, de tristeza ou
deboche, faz iluminar o ecrã recorda diretamente o Keaton, por mais que o filme de Pedroso
opte por manter seu ator-personagem sempre muito enrijecido e dependente da direção,
sem muito espaço para que ele possa oferecer a própria gestualidade como uma matéria a
ser trabalhada pelo filme.

Há momentos de verdadeiro humor e que, hoje, em retrospecto, parecem mais sutís do que
quando vistos no lançamento: Elias cruzando os braços para ficar com a mesma postura
que o boneco do governador é como se fosse o Keaton a imitar o grande ditador, de
Chaplin; a primeira aparição do boneco de papelão, presença que se constitui algures entre
o monolito de 2001: A Space Odyssey (Stanley Kubrick 1968) e o Michael Myers de
“Halloween” (John Carpenter, 1978), e, ao final, o balé de carros sendo regidos pelo
maestro Elias, totalmente paramentado e mascarado; uma imagem que carrega uma
pobreza dos seus meios e uma vontade de ser épica, disjunção que consegue alcançar um
resultado realmente engraçado e até comovente.

Do seu discurso político, restou-me a constatação daquilo que não mudou: ainda estamos
sob governo do PSB, os descendentes de Eduardo Campos se preparam para assumir as
vagas de poder do estado, os carros continuam infernais, por mais que a crise econômica já
não permita que eles sejam desovados nas ruas tal como nos áureos tempos do petismo,
os prédios continuam bloqueando os ventos e os pobres continuam sendo apagados.
Enquanto filme, ficam o bom senso de humor, uma certa vontade de ficção e alegoria,
sempre mais interessantes do que qualquer gesto de responder ao presente com urgência e
catarse.

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