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Universidade de São Paulo

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

Industrialização em São Paulo: sociedade de elites e


urbanização periférica

Camila Medeiros | 9810664


AUP0280 – Organização Urbana e Planejamento
Prof. Dr. Nuno de Azevedo Fonseca

São Paulo
2019
Objetivos

Que a industrialização brasileira concentrou-se em São Paulo é fato de


conhecimento geral, porém as razões por trás desse desenvolvimento
desbalanceado não são de tão simples compreensão. A presente monografia
pretende entender como se deu esse processo de industrialização e
urbanização paulista e como as economias regionais foram determinantes,
inclusive para a forma urbana da cidade de São Paulo que se desdobrou a
partir daí. A chave de entendimento desse problemática será a da acumulação
entrevada oferecida por Csaba Deák e outros autoras, como Suely Schiffer,
Klara Kaiser e Yvone Mautner, que são referências para uma análise crítica do
processo. Antônio Barros de Castro oferece, por outro lado, um panorama
histórico dos desenvolvimentos regionais que será fundamental para a
compreensão dos movimentos econômicos no Brasil, desde a colônia até
meados do século XX, que é especial momento de análise, uma vez que
representa o surto da industrialização pesada em São Paulo, sob a política do
Plano de Metas de Juscelino Kubistchek. A partir desse recorte, investiga-se o
desenvolvimento urbano da cidade, segundo a da ótica da periferização aliada
aos baixos salários, relacionada à questão do estágio capitalista extensivo
ainda predominante no Brasil. Ao final, faz-se uma indagação sobre o recorte
de gênero passível de ser levantado nessa mesma chave de análise, referente
à importância do trabalho doméstico das mulheres no rebaixamento dos
salários que possibilitarão a expansão da cidade rumo às periferias
autoconstruídas.
Acumulação entravada

O processo de industrialização e urbanização de um país diz respeito,


de maneira geral, a instalação e avanço do sistema de produção capitalista.
Para Csaba, entender o capitalismo e suas formas de reprodução significa
interpretar a natureza da sua própria sociedade. Para o autor, o sistema de
produção brasileiro não se completa em função de sua sociedade ser uma
sociedade de elites, que priva a plena acumulação capitalista em favor de sua
hegemonia.

Essas ditas “elites” que detém o poder nacional, e mantém o laço


patrimonialista no Brasil, o são desde tempos coloniais. São os grandes
proprietários latifundiários, que comandavam os processos de produção
agrícola para exportação. A independência e configuração do Estado brasileiro
foi direcionada por esse grupo, e teve como princípio ser realizada com o
mínimo de alterações possíveis na economia e na sociedade. Assegurou,
portanto, as condições de reprodução dessa sociedade colonial.

O processo de passagem para o assalariamento foi um ponto chave


nesse percurso de instauração da República e das relações capitalistas de
produção, uma vez que constitui o fundamento da produção capitalista. E,
seguindo a lógica da independência, se deu de maneira a garantir a exclusão
desse contingente populacional do acesso à propriedade privada assegurado
pela Lei de Terras. Dessa forma, o controle sobre a economia baseada na
exploração agrária em latifúndio foi mantido pelas elites, e, consequentemente,
sua hegemonia política também. Segundo Csaba, “a sociedade colonial
constitui na independência as condições de sua reprodução. A base
institucional para essa reprodução é o Estado e sua base de produção material
é a acumulação entravada, que determinaria sua evolução”

Acompanhando o conceito da sociedade de elites, está o da acumulação


entravada. Para entendê-lo é necessário elucidar sobre os estágios de
acumulação intensiva e extensiva utilizados pelo autor. O estágio de
acumulação predominante extensiva é aquele em que “a expansão da forma
mercadoria procede relativamente desimpedida” (CSABA, p.31) de maneira
que não ocorre sem investimento maciço do Estado. Ao contrário, o estágio
intensivo seria aquele que procede o extensivo, e que, na medida em que o
Estado realiza investimentos de maneira a assegurar a reprodução capitalista,
esta se dá a partir do aumento da produtividade do trabalho segundo a
inserção de tecnologia.

Para o autor, o capitalismo brasileiro jamais superou o estágio extensivo,


que se encontra em crise desde os anos 1970, em função da manutenção das
sociedades de elites e da acumulação entravada. Seu argumento parte do
entendimento que a economia funciona com base no que chama de
expatriação do excedente: ao invés de haver uma acumulação plena de
capitais, na qual o capital é reinvestido integralmente para sua reprodução e
ampliação, uma parte é reservada para exportação, o que se resulta na
ampliação incompleta do capital. Essa análise se vale de que a reprodução
ampliada completa do capital faria emergir de maneira poderosa a classe
burguesa que deteria o controle sobre esse processo, o que iria de encontro a
manutenção da hegemonia da sociedade de elites.

A expatriação do excedente assegura, portanto, a reprodução da ordem


hegemônica. No entanto, processos de ampliação e restrição da acumulação
coexistem: a substituição de importações foi uma tentativa de fazer deslanchar
a industrialização no país, ou seja, de um processo de reprodução ampliada
completa do capital. Estes ciclos de industrialização, porém, são freados,
configurando o que o autor denomina acumulação entravada. Mesmo este
processo de desenvolvimento industrial de meados do século XX, foi realizado
segundo o investimento de capital estrangeiro, significando menor controle e
avanço da burguesia nacional.

Essa é uma dinâmica que atravessa toda a história do Brasil desde os


tempos coloniais. Nasce com a independência e permeia até os dias atuais as
decisões econômicas realizadas no Brasil, seja de investimento do público ou
privado. Sendo o objeto de estudo a industrialização e urbanização de São
Paulo, a resposta para algumas das perguntas estão nessa chave de
pensamento. Porém, para compreendê-lo em sua totalidade, é necessário um
olhar sobre o restante do Brasil, pois é essencial uma análise que parta não do
encontro fortuito do café com a natureza paulistana, mas sim, dos processos
que se deram em outras regiões e que foram também determinantes para a
concentração de capital em São Paulo que resultou na maior aglomeração
urbana da América Latina.

Desenvolvimentos regionais

Alguns dos instrumentos para percorrer essa história são oferecidos por
Antônio Barros de Castro em Sete ensaios sobre a economia brasileira que,
nesta monografia, serão analisados à luz da teoria da acumulação entravada.
O que resulta tarefa simples, uma vez que o autor, sem dizer com as mesmas
palavras, sustenta o mesmo argumento. Segundo Castro, a ocupação do Brasil
se deu através de surtos de atividades exportadoras em diferentes regiões e
momentos: todo surto decadente servia de fonte e todo surto ascendente de
destino para a mão de obra. Em meio a esse processo, a industrialização surge
pontualmente como um projeto várias vezes fracassado.

Logo, fica claro que o que já foi dito: compreender a industrialização


paulista significa compreender as dinâmicas econômicas que se deram no
restante do país e que levaram a esse fim.

Na região Nordeste, predominava, no tempo colonial, a produção de


açúcar para exportação e também o cultivo de algodão, ainda que não fosse
decididamente incentivado pela Coroa. A agricultura da cana-de-açúcar
funcionava segundo a lógica da produção em latifúndio e mão de obra escrava,
além de ter como condição o alto investimento, figurado no engenho. O
algodão, ao contrário, não exigia grandes investimentos e seu cultivo era
avesso à mão de obra escrava, o que tornava sua produção muito mais
acessível, contribuindo para o desenvolvimento da vida urbana.

Com a decadência do ciclo da cana (por motivos relativos ao declínio da


mineração, à competividade com a produção nas Antilhas e com os Estados
Unidos), o cultivo do algodão não foi incentivado pelo Estado, resultando no
seu baixo desenvolvimento, incapaz de competir com a produção internacional.
A solução dada pela Coroa foi voltar-se para o mercado que se formava na
região centro-sul, o café. Essa escolha revela como operavam os setores
detentores do poder: sempre privilegiando a produção em latifúndio, com alto
investimento em mão de obra e capitais, de maneira a manter o poder
econômico sempre sob o domínio das elites.
A região das Minas, por outro lado, passou por um processo distinto no
qual a vida econômica voltava-se para o mercado interno, produzindo uma
aglomeração em centros urbanos. A decadência dessa economia veio em
função não somente do esgotamento das reservas de ouro, mas também da
baixa inserção de tecnologia, que iam contra os interesses das elites pois
dispensaria o trabalho escravo, e também da Coroa que inclusive sancionou
uma lei proibindo as fábricas na colônia.

Assim como na Região Nordeste, a solução para o declínio de uma


atividade não esteve em sua recuperação, mas sim na busca por uma outra,
como coloca Castro em uma visão geral sobre os processos econômicos na
história do país “a deteriorização das condições enfrentadas por uma certa
região não levava, contudo, à busca por maior produtividade que permitisse a
recuperação ou consolidação das posições ameaçadas. A resposta mais
condizente com a nossa conformação interna e condicionamento interno seria
a busca por um novo produto” (p.12). A pecuária teve esse papel no âmbito do
declínio do ciclo do ouro, assim como a extensão da produção cafeeira para a
região de Minas, ainda que não tenha vingado.

A pecuária, por outro lado, foi uma atividade imune a crises, uma vez
que voltava-se para abastecimento do mercado interno, sendo impulsionada
com os diversos ciclos exportadores. Foi o agente do primeiro esboço do
território econômico nacional, transmitindo suas características: a produção em
latifúndio, a dispersão e rarefação econômica dada pelo caráter transitório e
desconexo, a precariedade do sistema de transportes e o auto abastecimento
da produção. Todas essas características que não contribuem para a
conformação de um mercado nacional integrado, nem para o desenvolvimento
urbano ou industrial.

A região Sul, teve como principal atividade a própria pecuária e a


agricultura diversificada, como trigo e vinho, voltando-se para o mercado
interno e beneficiando-se com o surto do café. Sua especificidade está na sua
produção industrial, ainda que fortemente atrelada à agricultura: o
processamento industrial de artigos derivados da pecuária como o couro, por
exemplo. Por essas atividades, o Sul ficou conhecido como o celeiro do país.
Até aqui, já é possível antever que a economia cafeeira será o principal
motivo da industrialização em São Paulo, porém, nota-se também que é um
processo sensível à reação das demais regiões e ciclos produtivos à ascensão
da produção do café. Em detrimento de suas próprias atividades, quando estas
encontravam-se em condições de declínio, as políticas regionais foram de
abandono da atividade produtiva, ao invés da sua reconversão, como poderia
ter sido o caso do algodão, ou do investimento em produtividade no caso
mineiro. A opção vencedora foi sempre a da grande propriedade privada,
manifesta no latifúndio, a mão de obra escrava e a consequente concentração
de renda e poder, em detrimento do incentivo à vida urbana.

Dessa maneira, o desenvolvimento rarefeito da época da colônia


manteve-se no percurso econômico da história brasileira. “A ausência de
dinamismo da economia interna não se modificou nem mesmo com a
Independência, já que não se alterou o modelo de exploração colonial na
condução da economia interna” (SHIFFER, p. 80)

O café

Na região Sudeste, o café foi a principal atividade econômica, e obteve


substanciais investimentos do Estado para sua sobrevivência, ao contrário das
demais regiões. Baseado na grande propriedade e na mão de obra escrava, a
produção cafeeira, ainda que tenha levado a formação de um importante
mercado interno – que viria a articular o mercado nacional – foi sempre voltada
à exportação.

O desenvolvimento da economia cafeeira se deu pela continua


necessidade de terras e pela expansão da fronteira agrícola, estendendo-se do
Rio de Janeiro à Minas Gerais. Porém, foi em São Paulo, especificamente no
oeste paulista, que se deram as condições ideias para o cultivo. Em função da
sua continua expansão, deve ser analisada como uma atividade em
movimento, que compreendia três fases: pioneira, produtiva e decadente,
conformando um processo de quase abandono das terras improdutivas e
decadentes em direção a novas lavouras. Essa continua mobilidade impunha a
necessidade de uma infraestrutura que conectasse-as entre si e também ao
porto, resultando numa malha ferroviária articulada no estado de São Paulo.
Dotada de infraestrutura, condições aptas à lavoura - dado seu caráter
transitório-, abundância de mão de obra - com a chegada de 900.000
imigrantes europeus entre 1887 e 1900 - e investimento estatal, estavam
postas as circunstâncias para a superprodução. Iniciavam-se nesse período as
políticas de valorização de preços destinadas a sustentar o ciclo do café já em
declínio, a partir do fim do século XIX, e que propiciaram a hegemonia do
capital paulista e seu controle sobre a acumulação nacional.

Entre 1900 e 1924 foi implementada a política de valorização do café e a


classe cafeeira passou a diversificar sua própria produção em um processo de
desespecialização da produção, diversificada em lavouras de outros gêneros e
também pecuária. Dessa forma, São Paulo volta-se para a sua própria
produção, acarretando maiores desiquilíbrios regionais, uma vez que a
produção do restante do país que, historicamente, voltou-se para a
manutenção do café, agora tornava-se menos importante. Este foi o primeiro
surto manufatureiro paulista em resposta à crise, ainda dominado pelas
mesmas elites, mas acabou por impulsionar, naturalmente, o crescimento
urbano da capital.

Nesse cenário já em declínio do ciclo do café, colocavam-se condições


favoráveis à industrialização: “o refluxo de mão de obra para as cidades, o
barateamento do capital – consequência inevitável da profunda mudança de
comportamento do setor cafeeiro; e finalmente, o estancamento da capacidade
de importar”. (CASTRO, p.56) Além disso, o conflito da I Guerra Mundial
também dá margem ao florescimento da indústria, assim como a geada em
1918 que destruiu 400 milhões de pés de café e desestabilizou mais ainda
produção.

No entanto, as políticas estatais continuam a voltar-se para a sobrevida


da atividade cafeeira. De 1924 a 1930 há uma segunda política, a da “defesa
permanente” que consistiu, entre outras coisas, na queima dos estoques de
café afim de conter a superprodução e impedir o rebaixamento dos preços.
Porém, o ciclo do café não pode resistir a crise de 1929 e o colapso dos
mercados mundiais, que representaram o fim da sua hegemonia no país.
A Revolução de 30 que segue esse momento histórico é resultado “da
necessidade de se construir um Estado capaz de promover a unificação do
mercado nacional em face do processo de industrialização que se consolidava
(...) o Estado tornou-se, notadamente a partir de 1940, o principal investidor do
país, atuando na instalação das indústrias de base” (SCHIFFER, p. 86). Ainda
assim, as elites cafeeiras mantiveram seu poder e a Revolução de 32 é
exemplo disso, garantindo a continua política de valorização do café.
Representativo disso é o fato de que em 1950, plena industrialização paulista,
60% da população economicamente ativa ainda vinculava-se ao setor primário,
sendo o café responsável por 60% das exportações de todo o país.

Na mesma chave, a industrialização que foi se desenvolvendo em São


Paulo desde a década de 1940, se fez pelo investimento do capital estrangeiro,
vide a indústria automobilística que foi um dos mais importantes ramos da
economia nesse momento. Tanto o governo de Getúlio Vargas de 1950 a 1955
quanto o de Juscelino de 1955 a 1960 privilegiaram o capital internacional e
São Paulo como pólo econômico dominante nesse processo e centro da
unificação nacional. No entanto, territorialmente, isso significou a concentração
de capitais justamente onde já estava o maior parque industrial do país: novos
investimentos, confluência do capital estrangeiro e expansão da infraestrutura –
agora rodoviária. Uma consequência notória desse processo, foi a
desestruturação da indústria da região sul que perdeu seus mercados.

O processo de industrialização que se verificou entre 1940 e 1960 foi


marcado, portanto, pela concentração de capital estrangeiro em São Paulo. O
que significou o contínuo crescimento da capital paulista novamente em
detrimento da unificação do mercado nacional e da potência industrial de
outras regiões. Mais do que isso, o fator internacional do capital revela que o
acúmulo da produção capitalista não ficava inteiramente no país e que, apesar
de fomentar o crescimento urbano, não resulta no crescimento de uma classe
burguesa nacional responsável por ele, mantendo assim os esquemas da velha
ordem e da acumulação entravada.
Urbanização periférica

É nesse mesmo período de intensa acumulação e crescimento urbano


que o trinômio loteamento irregular – casa própria – autoconstrução torna-se
preponderante sobre as formas de assentamento da população trabalhadora e
expansão da cidade. A partir de 1930, o Estado passa a ser o maior investidor
da indústria que finalmente seguia seu caminho para consolidação. No campo
urbanístico e habitacional, surgiram os IAPs que eram fundos de pensão dos
sindicatos responsáveis por prover habitação. Apesar da sua atuação, o
acesso à moradia por essas vias dependia da compra ou locação e atendeu
basicamente à uma classe média com condições de arcar com essas
despesas.

Ao contrário, a classe trabalhadora foi relegada ao esquema da


habitação autoconstruída, uma vez que seu salário não cobria o preço de uma
moradia regular. Esse sistema não foi mera casualidade, mas sim produto da
omissão do Estado, característica do estágio de acumulação
predominantemente extensiva em que se encontrava o país nesse momento de
meados do século XX. Com um afluente intenso de trabalhadores migrantes à
São Paulo para compor a força de trabalho das fábricas - somente entre 1950 e
1955 chegaram 42% do total de 2 milhões de imigrantes do norte e nordeste
que viriam à São Paulo nessa década – não havia necessidade de intervenção
estatal nem de maior produtividade para dar continuidade ao processo de
acumulação.

Dessa forma, os trabalhadores ficaram à mercê dos interesses do capital


estrangeiro e também do Estado, que via crescer uma cidade poderosa sem
maiores esforços. O resultado é uma expansão urbana que se dá na lógica da
periferia e que vai sendo progressivamente incorporada à cidade formal. Novos
loteamentos clandestinos são feitos e vendidos aos trabalhadores que
conseguem pagar somente o preço da terra e são obrigados a voltar-se à
autoconstrução de suas casas e bairros para sua sobrevivência. Com o
alargamento do sistema de transportes através dos ônibus, essa região se
interliga ao centro da cidade e, posteriormente, por pressões, é incorporada à
cidade, dando margem para que novos loteamentos sejam realizados cada vez
mais longe do centro.
Essa é a lógica exposta por Yvone Mautner ao falar da sequência
trabalho – trabalho – capital. A primeira camada de trabalho é referente à
autoconstrução realizada pela classe trabalhadora, a segunda camada de
trabalho é a da vinda da infraestrutura, financiada pelo Estado e a terceira, de
capital, é a legalização do loteamento, sua consequente valorização e
possibilidade de abertura de novos, cada vez mais periféricos. Esse processo é
assegurado pelos baixos salários que impedem o acesso do trabalhador à
moradia formal, logo, não assegurando sua reprodução.

Existe ainda, uma revisão feminista em relação a garantia dos baixos


salários através da reprodução da força de trabalho realizada pela mulher em
casa. Immanuel Wallerstein em A mercantilização de tudo: produção de capital,
revela como a unidade doméstica e o trabalho reprodutivo são essenciais ao
capital, pois atuam como um regulador dos salários. Quanto mais trabalho não
pago é realizado no lar, menor é o limite mínimo de salário aceitável pelo
trabalhador, e assim, maior o lucro do empregador.

A década de 1950 é reconhecida no imaginário coletivo segundos


algumas figuras chaves e uma delas é a dona de casa, ainda que referenciada
nos Estados Unidos. O que é importante é que nesse momento houve um forte
discurso de retorno da mulher ao lar, reforçando o seu papel como mãe,
esposa e responsável pela casa, ou seja, como a figura encarregada da
reprodução. Dados oferecidos pelo livro Estrutura do Emprego e Trabalho
Feminino no Brasil: 1920 a 1970 de Paul Singer e Felícia Reicher Madeira nos
auxiliam no entendimento do que significou esse processo de industrialização
para a mulher brasileira.

Ainda que, em totalidade, houve um crescimento do total de mulheres


ativas no mercado de trabalho, houve um decrescimento do total que se
dedicava ao setor secundário – mesmo que crescesse a indústria – que foi
deslocado ao setor terciário de consumo individual, no qual grande parte se
dedicava ao emprego doméstico. A vinda dos imigrantes do Norte e do
Nordeste para compor a força de trabalho industrial não foi somente composta
de homens: vieram famílias. E a grande maioria dessas mulheres foi dedicar-se
ao serviço doméstico da casa das famílias das classes médias que se
alargavam nesse momento. Ficava à cargo dessas mulheres, portanto, o
trabalho de reprodução alheio e também da sua família, recaindo sobre ela o
peso do achatamento dos salários.

Logo, se a discussão da habitação autoconstruída desagua na questão


da reprodução que não é plenamente garantida pelos salários, a discussão dos
salários desagua no papel da mulher como reprodutora da força de trabalho. O
olhar para o papel da mulher nesse processo desvela uma segunda camada de
profundidade. O encargo do trabalho doméstico sobre a mulher, através da
desvalorização e naturalização do trabalho doméstico como trabalho feminino é
também peça fundamental para o entendimento da questão dos salários. Sem
o trabalho feminino realizado de maneira não paga, na forma de amor, não
seria possível seu rebaixamento.

Essa condição é também característica do estágio de acumulação


predominantemente extensiva. Na Europa e nos Estados Unidos, quando o
extensivo entrou em crise e ocorreu a passagem para o estágio
predominantemente intensivo, uma das suas principais marcas foi a adoção de
um Estado de Bem-Estar Social, ou seja, um Estado amplo que arca com os
custos da reprodução, provendo educação, saúde, lazer, entre outros, para o
trabalhador. No entant, se o Brasil nunca atingiu esse estágio, que está em
crise do extensivo desde a década de 1970, fica mais claro o entendimento da
ineficácia do Estado em prover os serviços básicos para a população brasileira.

Considerações finais

A partir de um panorama da histórica econômica regional brasileira


desde os tempos coloniais, foi possível compreender as razões por trás do
desenvolvimento industrial concentrado em São Paulo. Privilegiando formas
arcaicas de crescimento econômico, que condiziam com o latifúndio, o trabalho
escravo e concentração e renda, em detrimento de formas de crescimento
industrial, que resultariam em maior mobilidade e crescimento urbano, a
política econômica brasileira sempre voltou-se para o exterior. Assim, foram
mantidas a hegemonia das elites e o mecanismo de expatriação da produção
que a assegurava.

O crescimento industrial paulista foi causa e consequência desse


processo. Incentivado pela já concentração de capital em São Paulo, acabou
por concentrar ainda mais os investimentos na região sudeste e desintegrar
mercados regionais que voltavam-se para a produção do café.

Em consequência desse desenvolvimento, a cidade se expandiu


seguindo a lógica da periferização e da autoconstrução, garantida pela omissão
do Estado e pelos baixos salários. O fluxo migratório do Norte e Nordeste foi
essencial para compor a força de trabalho e tornar obsoleta a necessidade de
produtividade e infraestrutura, de modo que o trinômio do loteamento
clandestino – autoconstrução – regularização tornou-se a regra do crescimento
de São Paulo, constituindo gigantescas periferias em seu entorno.

O papel social da mulher como responsável pela reprodução da força de


trabalho foi também fundamental. Progressivamente retirada da mão de obra
industrial, a mulher voltou-se para o lar – seu ou alheio na forma de emprego
doméstico – de modo a assegurar o trabalho não pago que garantiria o
rebaixamento dos salários, fazendo girar todo o mecanismo de reprodução do
capital em São Paulo.
Referências bibliográficas

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Capitalismo histórico e civilização capitalista, Contraponto. 2000

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