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PATRIMONIALIZAÇÃO
RÉSUMÉ
O exercício teórico exposto neste capítulo consiste em questionar a evolução do
modelo da patrimonialização, desenvolvido anteriormente pelo autor (2006), a
partir do caso do patrimônio material quando deslocado para o patrimônio
imaterial. O desafio da abordagem é colocar em discussão a etapa da ruptura
entre o mundo de origem dos objetos patrimoniais e o mundo do tempo presente.
Essa etapa havia sido colocada como necessária na produção patrimonial, ainda
que pareça não ser mais efetiva com relação ao patrimônio imaterial, uma vez
que este garantiria uma continuidade entre os dois mundos. Porém, no caso de
uma tal continuidade, que diferença haveria entre as definições cultural e jurídica
do patrimônio? Este capítulo nos permite analisar o processo de transmissão do
patrimônio imaterial pela observação cuidadosa da passagem de uma
transmissão oral na sociedade para uma transmissão sobre a sociedade. Os
desafios teóricos em torno desses modos de existência do patrimônio imaterial
na sociedade serão explanados por meio do exemplo simples e eficaz dos cantos
tradicionais com várias vozes, oriundos da Córsega e inscritos na lista da
UNESCO de salvaguarda de urgência do patrimônio cultural imaterial da
humanidade.
11Ora, todo o saber produzido sobre esse objeto servirá primeiro para
estabelecer esse estatuto, constituindo, sobretudo, características e
reconstruindo seu contexto de origem em suas dimensões técnicas, artísticas,
históricas, sociais, societais, etc. Dito de outro modo, uma das funções principais
do saber é reconstruir, reconstituir a memória perdida do objeto e de seu mundo
de origem, de seu contexto de produção, isto é, a transmissão memorial que está
ausente. A pesquisa científica irá, assim, suprir um saber lateral sobre o objeto
que não foi transmitido. Porém, quando se cria uma representação do contexto
de origem do objeto, esta produzirá, simultaneamente, um contexto atual que dá
sentido ao objeto, ou seja, que o define a partir da análise de suas características
e faz dele um “semióforo”.3 O objeto não é apenas uma matéria formatada, nem
a pesquisa é externa a ele: como dizia acima, é o conjunto do objeto e de todo o
aparelho que o documenta, que traz o conhecimento sobre ele e o mundo de
onde vem, que constitui o objeto patrimonial, ou aquilo que comumente
chamamos de patrimônio.
• 4 Para considerar aqui apenas a dimensão patrimonial desses objetos e
não sua dimensão artística.
13A dimensão comemorativa inerente a todo objeto patrimonial vem daí. Isso
pode certamente suscitar precauções no historiador, tendo em vista as regras da
pesquisa científica,5 mas consiste naquilo que confere ao objeto seu poder
semiótico e social, ou seja, sua operacionalidade simbólica no sentido
antropológico do termo. O objeto patrimonial é, de fato, como Janus, bifacial: de
um lado, é saber, um saber presente ao mesmo tempo nos documentos anexos
e no próprio objeto oriundo do passado (mais exatamente, a interpretação
dessas características como indícios); porém, de outro, é também um objeto
material, concreto, sensível, que coloca quem está em contato com ele em
relação com um universo do qual, ao mesmo tempo, é o elemento e o
representante; de fato, um universo inacessível, intangível sem ele. Elemento do
passado no presente, o objeto patrimonial é também um signo cujo referente, em
virtude do saber construído, é um indício de seu contexto passado. É desse
modo que podemos afirmar que o objeto é um testemunho do mundo de origem
e que pode suscitar, naquele que o contempla ou toca, o sentimento de “sublime
do passado” de que fala Dulong (1998, p. 180-184).
14Quanto ao destinatário, ou seja, aquele que está em contato com esse objeto
patrimonial, o duplo caráter do objeto patrimonial serve de base para o que
podemos chamar de uma adesão patrimonial. Esta vai além do simples interesse
pelo conhecimento sem por isso ficar reduzida ao prazer da exploração de um
mundo imaginário ou ainda apenas ao prazer da relação estética. É exatamente
a conjunção do sensível e do inteligível que serve de base para a experiência
tanto do descobridor como do visitante. A dimensão testemunhal do objeto, a
operacionalidade da presença, quando é sentida pelo homem do presente, pode
colorir o saber e atribuir-lhe um caráter de anamnese, o que pode, por exemplo,
conferir à visita de uma exposição ou de um sítio visual (ou a qualquer forma de
mediação) um caráter comemorativo. O saber atrelado ao objeto material pode,
assim, despertar o interesse do grupo e circular novamente na memória social.
• 6 “vœu de se transplanter dans le passé” [Nossa tradução]
15Mas para que isso aconteça, é indispensável suscitar um interesse inicial pelo
objeto material ou pelo saber a ele atrelado, um processo de empatia, de
identificação, para encetar uma apropriação pelos indivíduos e pelo grupo que
responde ao “desejo de se transplantar no passado”6, como afirma Dulong7.
Esse interesse continua a ser uma das chaves do conhecimento do estatuto
patrimonial dos objetos vindos do passado. Sem isso, na melhor das hipóteses,
podem recair no esquecimento, na pior, serem destruídos.
17O patrimônio cultural imaterial é caracterizado, como seu nome indica, pelo
fato de que nenhum objeto material torna-se patrimônio enquanto tal. O que faz
patrimônio situa-se em outro lugar, nos elementos que são unicamente
inteligíveis, perceptíveis, tangíveis através dos suportes que o tornam
manifestos. Sem isso, ele só teria existência no espírito, como “idealidade”
(Genette, 1994) postulada (postula-se que esse elemento existe como
patrimônio) ou construída (como resultado de um trabalho de análise). Um tal
objeto imaterial, sendo um objeto ideal, mesmo que venha do passado, não
poderia tornar presente o passado como pode fazê-lo o objeto material. Uma das
questões a ser examinada será, portanto, a de saber se o suporte, ou melhor
dizendo, a manifestação do objeto ideal, pode assegurar uma tal presentificação.
• 8 Lembro aqui a definição de patrimônio imaterial na Convenção:
“Entende-se por ‘patrimônio cultural (...)
18Uma das particularidades do patrimônio imaterial é, sem dúvida, que ele foi
formalizado e definido por uma das instâncias jurídico-administrativas. A
definição de referência é a feita pela UNESCO.8 Ainda que esse tipo de
patrimônio tenha se beneficiado de uma verdadeira paixão, as pesquisas e os
exemplos de situações empíricas não são suficientemente numerosos para que
se possa extrair daí regularidades estáveis.
• 9 Emprego o termo “grupo” para designar as comunidades, grupos, e,
quando necessário, os indivíduos a (...)
21Do ponto de vista da lógica, fica claro que uma definição como essa coloca
um problema duplo. O primeiro tem a ver com a maneira como aquilo que muda
pode ser reconhecido como o mesmo. Pode-se objetar que, na prática, pouco
importa se há uma mudança, se há recriação permanente ou não. Porém, isso
só será possível segundo uma única condição, e é aí que o problema ressurge,
qual seja, que não se tente especificar com precisão o que pode ser patrimônio…
O segundo problema é que são formas de continuidade muito diferentes, como
a continuidade por transmissão de geração em geração e a continuidade iniciada
pelo reconhecimento explícito e pela declaração por uma geração do caráter
patrimonial dessas práticas, representações, expressões, conhecimentos e
técnicas do que lhes é associado. A segunda forma de continuidade viria
simplesmente depois da primeira, quando na verdade não são de mesma
natureza.
• 10 Salvo se o político que propõe a declaração toma a decisão com
base em razões outras que as científ (...)
Objeto
Objeto Objeto individual
genérico
Cantu in
Ideal Versi
paghjella
31A segunda questão diz respeito à maneira como é possível compartilhar o que
constitui patrimônio (o cantu in paghjella, para retomar nosso exemplo) e suas
manifestações (execuções ou saber). Diferentemente, portanto, dos membros
da comunidade, que, pelo menos em princípio, podem determinar o que constitui
patrimônio e o que não constitui, as pessoas externas ao grupo entram
unicamente para assistir às manifestações. Isso coloca um duplo desafio. Em
primeiro lugar, o da abertura ou não desse patrimônio aos outros (por meio de
sua instalação e circulação no espaço público sob forma de concertos ou
programas de rádio e televisão, por exemplo). E, em segundo lugar, o modo
como essa instalação e essa circulação vão permitir aceder, refazer, digamos
assim, o caminho das manifestações à dimensão patrimonial e de se ir além da
mera performance musical, por exemplo. Retornarei a esses dois desafios mais
adiante.
A memoração social
• 18 “est nécessairement un raccourci et c’est pourquoi elle resserre et
concentre en quelques moments d (...)
36Na qualidade de memória, ela deve ser executada, manifestada para existir.
Mas, enquanto memória social, devem ficar, forçosamente, traços dessa
execução, dessa performance. A forma mais simples e mais antiga apela para a
transcrição, a descrição, o relato, etc.; em outras palavras, apela para a escrita.
Além da dificuldade de sua realização quando se trata de performances um tanto
quanto complexas, o inconveniente dessa forma é a importante redução que ela
opera. Ora, sabe-se que há a possibilidade de registro do som, da imagem fixa
e animada, o que permite conservar traços não apenas daquilo que se diz, mas
também da situação de enunciação, das práticas, expressões, das relações e
dos corpos. Fica evidente, porém, que o mesmo registro, por mais completo que
seja, opera sempre uma redução. De onde a necessidade de uma verdadeira
escrita, na forma da escolha do que é gravado, do ponto de vista e da montagem,
criando, assim, um contexto destinado a dar conta do contexto de origem do
elemento gravado, como nos ensinou a antropologia visual. Teremos, desse
modo, a criação de um olhar sobre a memória gravada, que a formata, editora
de um certo modo, lançando mão, para isso, do conhecimento científico,
geralmente, do saber da etnologia. A criação desse olhar introduz um
compartilhamento entre, de um lado, a memória e o mundo de onde ela vem e
de outro o mundo que operou o registro; seja entre um mundo de origem que
enuncia a memória e um mundo da recepção que a põe em forma e a conserva.
O tratamento da memória social se aproxima, então, da história e, em todo caso,
engaja, de facto, um processo de patrimonialização.
37O registro, e a fortiori a escrita, das manifestações da memória acarreta uma
profunda modificação no modo de existência social da memória. A mudança
mais importante é certamente a possibilidade de não apenas voltar sobre
manifestações anteriores da memória dentro do grupo (Goody, 1977), mas ainda
de torná-la pública, ou seja, de ser, de dá-las a conhecer e fazê-las circular fora
do grupo, num outro espaço social. Mede-se a extensão dessa mudança pelo
fato de que o objeto suporte desse registro pode se tornar totalmente autônomo.
O contexto social da produção da memória ou até mesmo de sua manifestação,
que era próprio ao grupo, pode vir a desaparecer ou, no mínimo, não mais
constituir a situação que dá sentido à memória.
NOTES
AUTEUR