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São Paulo
2017
LUCAS GONÇALVES MOUTINHO
São Paulo
2017
LUCAS GONÇALVES MOUTINHO
CURSO: LICENCIATURA EM MÚSICA
Nota: ____
Banca Examinadora:
_____________________________________________________________________
Prof.a Dr.a Rita Luciana Berti Bredariolli (Orientadora)
______________________________________________________________________
Prof. Levi Fernando Lopes Vieira Pinto (Coorientador e Examinador)
São Paulo
2017
Dedicatória
À minha vó Thereza.
Aos meus alunos.
Aos professores e educadores que lutam por um mundo melhor.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a toda minha família, principalmente a minha mãe Elizabeth, pelo carinho,
paciência, amor e apoio incondicional. Tudo que eu sou hoje é graças a ela.
Agradeço a Prof.ª Dr. ª Rita Luciana Berti Bredariolli por sua orientação, pela sua
amizade, por sua paciência e pelos seus conselhos que me ajudaram muito como pessoa
e na realização deste trabalho. Também agradeço muito por suas aulas que me inspiram
até hoje.
Agradeço ao Prof. Levi Fernando Lopes Vieira Pinto pela sua orientação e pela sua
amizade. Sua esperança e seu respeito pela educação são uma inspiração para mim.
Agradeço ao Rafael Moreira por ter me emprestado grande parte da bibliografia que
usei para fazer este trabalho.
Agradeço ao meu primo Marcos Rinaldi por ter me ajudado várias vezes com a
formatação deste trabalho.
Agradeço a todos os meus amigos que acompanharam, de uma forma ou de outra, meu
caminho fazendo esta monografia, e agradeço de coração a compreensão pelas vezes
que acabei por não conseguir vê-los por causa deste trabalho. Vocês são a minha
felicidade.
Agradeço especialmente ao Leonardo Rodrigues e a Camila Coelho, grandes amigos
que sempre estavam lá quando precisei.
Agradeço também ao Victor Mattos e ao Alan Magalhães Lima (amigos de uma vida
inteira) pelo suporte e amizade nestes últimos tempos.
Sem vocês quatro eu não teria conseguido terminar este trabalho.
RESUMO
Neste trabalho discute-se o gênero musical brasileiro funk pela perspectiva de Bourdieu e sua
relação com o contexto escolar. Objetiva-se demonstrar se o funk encontra dificuldades de ser
trabalhado dentro da instituição escolar. Esta pesquisa será realizada por meio de relatos de
experiência e uma pesquisa bibliográfica baseada nas ideias de Bourdieu, Setton, Noronha,
Braga e Saldanha; e também por meio de uma pesquisa historiográfica trazendo as ideias de
Vianna, Medeiros, Essinger, Moreira, Dayrrel e Guedes. Concluiu-se que, ao longo de sua
história, o funk encontra dificuldades de ser aceito como uma manifestação cultural legítima, e
por consequência disso tem dificuldades de ser inserido dentro da instituição escolar.
Palavras Chave: Funk; escola; capital cultural; educação musical.
ABSTRACT
This monograph intends to discuss the Brazilian musical genre funk by the perspective of
Bourdieu and its relationship with the school. The objective of this work is to demonstrate if the
funk finds difficulties in being studied within the school. This investigation will be realized by
the use of experience reports and a bibliographic research substantiated on the ideas of
Bourdieu, Setton, Noronha, Braga e Saldanha; and also by a historiographical research based on
the ideas of Vianna, Medeiros, Essinger, Moreira, Dayrrel and Guedes. This research concluded
that, throughout its history, the funk finds difficulties in being accepted as a legitimate cultural
manifestation, and consequently, has difficulties in being studied within the school institution.
Introdução......................................................................................................... 8
Cap 3: Propostas........................................................................................................... 39
Considerações Finais......................................................................................... 44
Referências Bibliográficas................................................................................ 46
Apêndice........................................................................................................... 47
8
INTRODUÇÃO
[...] não se trata de "impor uma definição de cultura" [...] mas sim, de uma
estratégia para fazer com que o funk migre das páginas policiais - onde é
posto, intencionalmente, de maneira racista, inclusive -, para as páginas de
cultura. Cultura de massa, fruto da indústria cultural e, como tal, passível de
críticas, como a música sertaneja, o pagode romântico e os roquezinhos dos
ídolos pop e da garotada de Malhação, dentre outros. (SILVA, 2009, p.5).
Um dos motivos que me fez querer realizar este projeto foi a relutância na
realização de trabalhos relacionados ao funk carioca que encontrei enquanto estagiava
no ensino formal, relutância que relacionada a qualquer gênero é um problema por si só.
Eu e uma colega minha professora de música, Fernanda Tardivo, dávamos aula de coral
para crianças de 6 a 8 anos em uma escola municipal em São Miguel – São Paulo. Após
termos passado alguns meses trabalhando neste espaço, resolvemos trabalhar
composição musical com nossos alunos. Propomos que eles cantassem ideias que
viessem a mente, e conforme gostássemos (como grupo) de um trecho ou de outro,
fôssemos decidindo o que manteríamos e o que descartaríamos. Logo em sequência,
1
Link para uma reportagem sobre o projeto de criminalização do funk: “Projeto de lei de criminalização do Funk
repete a história do samba da capoeira e do rap”: http://www.bbc.com/portuguese/brasil-40598774
9
uma das primeiras coisas que aconteceu foi uma das crianças começar a fazer com
percussão vocal2 uma batida de funk, coisa que deixou os professores e grande parte dos
alunos animados, mas outros nem tanto, pois diziam que não gostavam de funk. Este
tópico já foi discutido em aulas anteriores sobre o funk, mas também sobre outros
estilos que trabalhamos ou escutamos no decorrer do ano que estagiamos lá. Os alunos
diziam que não gostavam do funk especificamente por causa do conteúdo de suas letras
e também alguns diziam que não podiam ouvir ou cantar pois os pais os proibiam. Esses
dois pontos foram discutidos nos outros dias e neste de forma simples, primeiramente
dissemos que este funk como seria uma criação nossa, só ficaria pronto se tivesse uma
letra que todos gostássemos. Dito isto, também deixamos claro que o gênero musical
funk não necessariamente implica em um conteúdo de letra específico. E sobre a
proibição dos pais, foi combinado que se os pais não tivessem deixado o aluno cantar ou
ouvir funk, nós entraríamos em contato com eles e pediríamos para que eles
conversassem conosco sobre o assunto, visando explicar o porquê como professores
achávamos importante trabalhar este gênero dentro de sala de aula, e enquanto isso,
continuaríamos o trabalho como combinado. Tendo conversado isto, continuamos o
trabalho de criação. Depois de alguns trechos cantados que envolviam rimas simples,
porém muito importantes para compreensão de aspectos formais da poesia naquela
idade, chegamos nesta letra juntos:
“Eu estou cantando, minha música do mal, cheguei em casa, pra comer mingau,
radical! ”3
Uma letra, uma melodia simples e uma batida de funk. Pronto! Tínhamos nossa
primeira composição. Todos gostaram muito e foi uma aula muito divertida. Porém,
logo após este dia no próximo encontro após termos proposto a conversa para os pais
pelos alunos, um de nossos alunos mais interessados não veio mais. Quando o
encontramos depois nos corredores da escola por acaso, ele disse que não podia ir mais
as aulas por causa de alguns problemas em casa. Supomos que tenha sido o fato de
trabalharmos o funk na sala de aula fez com que o pai decidisse que ele não poderia
mais vir, pois além dele ser um aluno aplicado e gostar muito da aula, a saída dele foi
repentina e sem justificativa e ele não sabia explicar exatamente o porquê não poderia
vir mais. Além disso, já tínhamos conhecimento que os pais não permitiam que o funk
fosse cantado pelos seus filhos previamente, e nossas tentativas de contato com eles
2
Sons percussivos feitos com a boca, Beatbox.
3
Partitura anexada no Apêndice.
10
tranquilo. E aí eu “tava” lá pá, cantando funk e tudo, e aí ele comentou: “Nossa mano
vocês ainda chamam isso de música...” Aí a gente falou: “Lógico que é música, funk é
tudo professor! ” Aí ele: “Ah, toma no cu essas porcarias aí, é um bando de gente que
não tem noção das coisa, olha a forma que eles colocam aí a letra das músicas e tudo
mais ...esses negócio de funk é de quem não tem cultura não tem noção de nada” Aí ele
começou a mete o pau e falou que: “Quem escuta funk não tem noção do que é a
verdadeira riqueza do nosso país, culturalmente falando”.
Gostaria de ressaltar dois pontos sobre estes relatos sobre os quais discorrerei de
forma mais aprofundada nos próximos capítulos. Primeiramente, partindo do ponto de
vista dos entrevistados, posso inferir que por parte da coordenação da escola e também
por parte do professor do último relato, existe um esforço para dificultar a escuta e o
fazer do funk dentro da sala de aula. Isto é um problema, porque a sala de aula deveria
ser um espaço onde qualquer tema pudesse ser discutido, e principalmente um espaço
onde pudéssemos difundir, exercer e discutir sobre nossa própria cultura, no caso,
especificamente, o funk para alguns dos discentes. Sobre o segundo ponto, este trata-se
especificamente do último relato quando, o entrevistado e seus colegas de classe,
comentam a importância do funk para sua vivência dizendo “Funk é tudo”, onde posso
observar a partir do relato o grande valor simbólico que esta música tem para aqueles
que ouvem ela e a praticam. Mas logo em sequência, a partir do relato também posso
observar o descaso do professor com esta manifestação cultural quando ele ofende os
alunos e segue dizendo que quem escuta funk não tem noção do que é a verdadeira
riqueza do nosso país, deixando claro uma hierarquia entre culturas, onde existe uma
riqueza/cultura “real” em oposição a uma riqueza/cultura “falsa”. Partindo deste
segundo relato posso discutir sobre a relevância deste trabalho, pois eu pretendo discutir
a hierarquização, e por consequência, a exclusão de culturas do contexto escolar,
tratando-se especificamente do funk carioca, e como podemos compreender e combater
este fenômeno.
No primeiro capítulo discutirei primeiramente a teoria de Bourdieu - sobre a
qual trarei a visão de Setton - para por meio desta teoria, apresentar reflexões da
história da capoeira trazidas também por Braga e Saldanha e do canto orfeônico
villalobiano trazidas por Noronha, e então, traçarei com ambas manifestações culturais
um paralelo com o funk e sua inserção na instituição escolar, concluindo esta ideia com
um pensamento de Dayrrel. No segundo capítulo discorrerei sobre a história do funk
12
pela visão de Vianna, Medeiros, Essinger, Dayrrel e Moreira, desde suas origens nos
Estados Unidos e na Jamaica até os dias atuais aqui no Brasil, pontuando as correlações
com a teoria de Bourdieu e discorrendo sobre a inserção do funk no contexto escolar e
também discutindo sobre aspectos da criminalização do funk no Brasil. No terceiro e
último capítulo irei indicar propostas para o trabalho do funk na sala de aula
considerando o que foi discutido nos outros capítulos.
13
Bourdieu ainda afirma que, instaurando uma ruptura entre os alunos das grandes
4
Meios pelos quais as instituições perpetuam seu acumulo de capital pelo decorrer do tempo.
5
Capital que já foi acumulado e internalizado pelos seus detentores, grupos sociais ou indivíduos.
15
6
Instituições de ensino de grande prestígio de acesso restrito para poucos.
7
A ordenação na idade média era uma cerimônia de titulação entre nobres e vassalos ou até de cunho
litúrgico.
16
E ainda seguindo a perspectiva de Bourdieu exposta por Setton, ela afirma que o
gosto cultural é produto de um processo educativo que acontece na família e na escola, e
não fruto de uma sensibilidade inata dos agentes sociais. Logo, é algo que depende das
trajetórias educacionais e sociais dos indivíduos.
Considerando as duas últimas citações, posso fazer uma reflexão sobre a teoria
de Bourdieu e sua relação com o funk e outras manifestações culturais que, por fazerem
parte desta “cultura dos segmentos populares”, são inferiorizadas e muitas vezes não são
aceitas com algo que pode ser trabalhado dentro do contexto escolar. Já que, como diz
Bourdieu, o sistema de ensino tende a manter a estrutura de distribuição do capital
cultural, contribuindo para reproduzir e legitimar as diferenças de gosto estre os grupos
sociais. Posto isso, as disposições exigidas pela escola, como por exemplo, as
sensibilidades pelas letras ou pela estética visual ou musical, enfim, uma estética
artística, privilégio de alguns poucos, tendem a intensificar as vantagens daqueles mais
bem privilegiados, material e culturalmente (SETTON, Uma introdução a Pierre
Bourdieu, [2010?]).
Dito isto, esta sensibilidade por uma estética artística é uma sensibilidade
voltada para uma estética específica, direcionada para gêneros musicais também
específicos que estejam ligados aos grupos que tem poder para legitimar essas
diferenças de gosto a partir de sua posição na estrutura social, e por consequência,
gêneros musicais ligados ou provenientes das camadas mais baixas dessa estrutura
tendem a sofrer represálias tanto do estado, quanto da escola, quanto da família, quanto
da própria mídia. Tudo isso justificado muitas vezes por essa legitimação da cultura de
grupos que estão em posições superiores dentro desta estrutura social.
Pretendo depois de ter conceituado superficialmente estes aspectos da teoria de
17
Bourdieu, discutir sobre essa ideia da escola e outras instituições legitimarem a cultura
dos grupos que estão em posições mais privilegiadas, e fazendo isso, elas ao mesmo
tempo deslegitimam outras culturas. E por consequência, outros gêneros musicais que
por sua vez provêm de grupos que estão em posições sociais inferiores a outros dentro
desta estrutura social, como o funk e outros estilos.
Falarei agora como isso já vem acontecendo com algumas manifestações
culturais provenientes de grupos sociais menos favorecidos pelo decorrer da história
para aí então fazermos um paralelo com o funk e falarmos especificamente sobre ele.
Também falarei sobre manifestações culturais que, em contraposição a estas, foram
legitimadas pela escola e pelo poder destes grupos sociais mais privilegiados e puderam
se manter relevantes pelo decorrer do tempo sem disputas com instituições como o
estado ou a escola, pelo contrário, normalmente estas manifestações acabaram por ser
subsidiadas por estas instituições, independente de poderem se enquadrar nas mesmas
justificativas que seriam usadas para criticar estes outros gêneros musicais provenientes
de grupos menos privilegiados.
Vamos começar falando sobre a capoeira. A capoeira é uma manifestação
cultural brasileira que abarca arte marcial, cultura popular, música e esporte. Sendo a
música um dos aspectos principais dela. Como não é o objetivo deste trabalho falar
especificamente sobre a capoeira, trago um trecho do trabalho de Braga e Saldanha para
trazer resumidamente a história da capoeira e sua relevância social:
aceita com simpatia pelo povo brasileiro, entendida como arte bonita de ser
praticada e visualmente apreciada.
Por tudo isso, faz-se importante o estudo e a pesquisa da capoeira como
patrimônio cultural imaterial da nação, a fim de esclarecer os pontos
relevantes sobre o assunto e, sobretudo, a classificação da capoeira como
elemento brasileiro que engloba arte, luta, dança, musicalidade, expressão
corporal e desenvolvimento social. (BRAGA e SALDANHA, p. 2 e 3).
8
O canto orfeônico é de forma geral, a prática do canto coral amador. O canto orfeônico villalobiano
trata-se especificamente de um projeto que instaurava a prática do canto orfeônico e do ensino da música
como disciplina obrigatória em escala nacional.
19
social:
instituição escolar e paralelamente adquire o poder simbólico que a escola concede para
as culturas inseridas dentro dela desta forma. Assim perpetuando o posicionamento dos
grupos dentro desta estrutura social, e também mantendo a ideia de valoração de uma
cultura específica dentro do contexto escolar. A filosofia do canto orfeônico villalobiano
deixa claro esta ideia de valoração de uma cultura específica dentro da escola em
detrimento a outra, por isso ela é um ótimo exemplo de como isso pode perpetuar a
legitimação e o reconhecimento de uma cultura pelo decorrer tempo dentro de uma
sociedade e ao mesmo tempo afetar negativamente a imagem de outras culturas.
Tendo discutido como a escola pode servir para perpetuar as desigualdades
sociais, termino este capítulo com dois trechos do artigo de Dayrrel que discorrem sobre
as instituições sociais:
Foi nessa época que a gíria “funky” (segundo o Webster Dictionary, “foul-
smelling;offensive”) [Tradução do autor: Mal cheiroso, ofensivo] deixou
de ter um significado pejorativo, quase o de um palavrão, e começou a ser um
símbolo de orgulho de negro. Tudo pode ser funky: Uma roupa, um bairro da
cidade, um jeito de andar e uma forma de tocar música que ficou conhecida
como funk. (VIANNA, 2014, p. 16).
Porém, logo após o surgimento deste estilo, o autor também diz que:
Como todos os estilos musicais que, apesar de serem produzidos por e para
22
Desta situação surge a música Disco 9, a qual tomou conta das pistas de dança de
todo o mundo e da black music norte americana por volta de 77/78. Dayrrel resume esta
breve história do funk americano da seguinte forma, também se referindo ao rap, o qual
discutirei logo em sequência:
Esses dois estilos possuem uma mesma origem – a música negra americana –
, que incorporou a sonoridade africana, baseada no ritmo e na tradição orais.
Eles são herdeiros diretos do soul que, depois de ser a trilha sonora dos
movimentos civis americanos da década de 1960 e um símbolo da
consciência negra, perdeu essas características revolucionárias com a sua
massificação. O funk radicalizou o soul, empregando ritmos mais marcados e
arranjos mais agressivos, mas o funk também sofreu um processo de
comercialização, com a remoção de sua base cultural, tornando-se uma
música mais digerível do grande público. (DAYRREL, 2002, p.125).
9
Musicalmente, a disco pode ser considerada, de forma um tanto grosseira, uma "europeização" do funk.
Mantém-se o groove, só que com uma batida mais reta, sem aquelas síncopes tão marcadamente negras.
Cordas em profusão ocupam o lugar dos metais em brasa. E os vocais tornam-se mais suaves, menos soul
abrindo espaço para cantoras como uma característica sutilmente operística - tanto que acabaram
apelidado de divas disco. (ESSINGER, 2005, p. 42).
10
DJ, Disc-jockey ou discotecário. O profissional que coloca os discos para as pessoas dançarem.
(VIANNA, 2014, p.97)
11
Toca discos sem alto falantes embutidos.
12
O cantor de rap/funk
13
Misturar duas ou mais músicas utilizando o aparelho mixer. O DJ que mixa bem consegue trocar de
“balanço” sem que os dançarinos percebam o momento em que uma música termina e a outra começa.
(VIANNA, 2014, p. 98).
14
A utilização do toca-discos como instrumento musical, destacando determinadas partes de uma canção
ou literalmente arranhando (daí o nome scratch) o disco. (VIANNA, 2014, p.98).
23
“[...] nas festas de ruas do Bronx, também estão surgindo a dança break, o
grafitti nos muros e trens do metrõ nova-iorquino e uma forma de se vestir
conhecida como estilo b-boy, isto é, a adoração e uso exclusivo de marcas
esportivas como Adidas, Nike, Fila. Todas essas manifestações culturais
passaram a ser chamadas por um único nome: hip-hop. O rap é a música hip-
hop, o break é a dança hip-hop e assim por diante. ” (VIANNA, 2014, p.18).
Vianna afirma que o primeiro disco de rap é o Rapper’s Delight, e foi lançado
pelo grupo Sugarhill Gang. Ele foi um enorme sucesso de vendagem, o que possibilitou
a contratação de Afrika Bambaataa, entre outros musicistas, por vários selos
independentes. Afrika Bambaataa, em 82, com o auxílio do produtor (branco) Arthur
Baker, desenvolveu um estilo de gravar hip-hop que utiliza muito instrumentos
eletrônicos, principalmente as “drum-machines” 15 mais especificamente a TR-808 da
Rolland. Com a TR-808 e as variações dentro da própria música hip-hop, surgia o ritmo
“Miami Bass”, ritmo este que iria influenciar fortemente o funk no Brasil (VIANNA,
2014, p.19 e 20).
Tendo discorrido sobre brevemente sobre a história destes dois gêneros
imprescindíveis para a compreensão da história do funk, agora falarei sobre o início do
funk dentro do Brasil, nos bailes cariocas. Sobre a difusão do funk e do hip hop por
estes bailes, Dayrrel diz:
No Brasil, a difusão do funk e do hip hop remonta aos anos 1970, quando da
proliferação dos chamados “bailes black” nas periferias dos grandes centros
urbanos. Embalados pela black music americana, principalmente o soul e o
funk, milhares de jovens encontraram nos bailes de finais de semana uma
alternativa de lazer até então inexistente. Desenvolveram- se nos mesmos
espaços, por jovens de uma mesma origem social: pobres e negros, na sua
maioria. (DAYRREL, 2002, p.126).
A história destes bailes começa no início dos anos 70, na Zona sul do Rio, no
Canecão, uma famosa casa de espetáculos conhecida como um palco nobre da MPB.
Esses bailes eram organizados pelo DJ Ademir Lemos e pelo animador e locutor Big
15
Bateria eletrônica.
24
Boy. (Big Boy produzia e apresentava um programa diário [menos aos domingos] na
rádio Mundial, rádio voltada ao público jovem que ia ao ar no horário mais popular da
época). Esses bailes eram chamados de “Bailes da Pesada” e reuniam cerca de 5 mil
pessoas de bairros cariocas, tanto da Zona Sul quanto da Zona Norte 16 . Os estilos
musicais que eram tocados nestas festas eram bastante ecléticos, se tocava, pop, rock,
soul; porém, Ademir tinha claramente uma preferência pelo soul e por artistas como
James Brown e Kool and the Gang, como Dayrrel também pontua na sua fala. Porém,
conforme o tempo passou os bailes no canecão tiveram um fim. Aqui coloco um trecho
do livro de Vianna onde o próprio Ademir comenta o fim dos bailes no Canecão e suas
motivações:
As coisas estavam indo muito bem por lá. Os resultados financeiros estavam
correspondendo à expectativa. Porém, começou a haver falta de liberdade do
pessoal que frequentava. Os diretores começaram a pichar tudo, a pôr
restrição em tudo. Mas nós íamos levando até que pintou a ideia da direção
do Canecão de fazer um show com o Roberto Carlos. Era a oportunidade
deles para intelectualizar a casa, e eles não iam perdê-la, por isso fomos
convidados pela direção a acabar com o baile. (VIANNA apud Jornal da
Música, 2014, p.20).
16
Cabe dizer aqui que a Zona Norte do Rio é uma região do Rio mais pobre em oposição a Zona Sul que
é uma região mais rica, isto do ponto de vista de acumulo de capital econômico (acumulo de dinheiro).
25
Por volta de 75 a equipe Soul Grand Prix, que havia adquirido muita
popularidade e fazia baile todos os dias, de segunda a domingo, desencadeou uma nova
fase na história do funk carioca, que a imprensa apelidou de Black Rio. A equipe Soul
Grand Prix começa a fazer bailes com pretensões didáticas, nas palavras de um dos
fundadores desta equipe Dom Filó diz que estão fazendo uma espécie de introdução a
cultura negra por fontes que o pessoal já conhece, como a música e os esportes
(VIANNA, 1990, p.23).
Durante as apresentações eram projetadas imagens de músicos e esportistas
negros nacionais e internacionais, além de trechos de documentários e filmes referentes
a cultura negra, como por exemplo Wattstax, um semidocumentário de um festival norte
americano de música negra.
No dia 17 de julho de 1976 uma matéria saiu no Jornal do Brasil de autoria de
Lena Frias intitulada “Black Rio: - O Orgulho (Importado) de ser Negro no Brasil”. Esta
matéria como afirma Vianna, não deixou boas recordações para aqueles que viveram o
“Black Rio”:
Que eu saiba, foi o Jornal do Brasil que inventou o nome Black Rio. Eu nem
sei se o meu nome estava ali naquela matéria. Eu nem sei quem é Lena Frias.
Mas o nome da minha equipe era muito forte e, de carona nessa história de
Black Rio, eu fui parar no DOPS.
Nirto, um dos donos da Soul Grand Prix, também me falou que foi preso,
junto com seu primo Dom Filó, pois a polícia achava que por trás das equipes
de som existiam grupos clandestinos de esquerda. [...]
26
Este é outro ponto da história do funk carioca que merece atenção, posso aqui
apontar um dos mecanismos de repressão cultural que o estado tem para utilizar contra
manifestações culturais, e consequentemente, contra pessoas e suas posições políticas: a
polícia e o exército. Estes mecanismos podem ser utilizados da mesma forma que a
escola como forma de legitimação de um tipo de cultura ou de repressão de outra. E
reforço que a repressão cultural está diretamente relacionada com o racismo, posições
políticas e classes sociais pelos relatos acima.
Voltando a discutir a repercussão da matéria de Lena Frias, seguido a publicação
desta matéria, muitas outras surgiram trazendo visibilidade para o movimento que
acontecia no Rio, e então por causa disso a indústria fonográfica descobriu um novo
mercado em que poderia investir, um mercado que atingia centenas de milhares de
pessoas. Tendo em vista isto, esta indústria investiu nesse mercado em duas frentes, uma
primeira, onde ela fazia coletâneas de grandes sucessos dos bailes, e estas coletâneas
eram vendidas pelos nomes das equipes mais famosas. Por exemplo, o primeiro disco de
equipe foi o LP Soul Grand Prix, lançado pela WEA17 onde as equipes ganhavam uma
porcentagem dos lucros. A segunda frente que as gravadoras tomaram foi investir na
ideia de criar um soul nacional, produzido por músicos brasileiros cantando em
português. Porém, apesar dos grandes investimentos por parte da indústria fonográfica,
a maioria dos discos lançados como soul brasileiro foram um fracasso de venda, salvo
algumas exceções como os discos do Tim Maia. Vale ressaltar que nos bailes as músicas
do soul nacional não eram tocadas, pois a preferência era pelo funk e pelo soul norte
americano.
Após estes acontecimentos a imprensa acabou por se cansar da novidade da
música black e o próprio movimento andava em baixa. As equipes menores se debatiam
com a indefinição do funk, em transição para o reinado da música disco, que chegava ao
Brasil juntamente com os filmes de John Travolta. Considerando isto, a maioria das
equipes aderiu ao novo ritmo, para o desespero dos fãs de soul. Esse foi um momento
17
Representante brasileira dos selos Warner, Elektra e Atlantic.
27
raro, onde a Zona Sul e a Zona Norte do Rio de Janeiro dançaram as mesmas músicas.
(VIANNA, 1990, p.27)
Quando a moda da música disco passou, a Zona Sul volta a ouvir rock. Ouvindo
estilos como o punk, new wave e o pós punk, até que o rock brasileiro vira o estilo
favorito dos moradores da zona sul em 82. A Zona Norte continua fiel a black music
norte americana, ouvindo disco-funk e charme18. Os bailes após a baixa do movimento
demoraram a ficar lotados novamente.
Entre 83 e 85 houveram grandes mudanças na cena musical do Rio de Janeiro,
como pontua Vianna:
Desde o início dos bailes no Brasil as equipes caçavam vinis recém-lançados nos
Estados Unidos, isso em uma época em que ainda não existia CD ou internet. O
esquema era difícil e disputadíssimo. Dependia-se destes vinis para se o fazer o
diferencial de uma festa. E no meio disso, chega no Brasil o miami bass – estilo dance
americano, cujas letras eram repletas de palavrões e sexo. Apesar das letras serem em
inglês, todos sabiam do que se tratavam as músicas e não demorou para que
inventassem um jeito brasileiro de cantar elas. Os frequentadores faziam versões em
português, utilizando palavras que soassem como a letra original. Aí surgiram os
melôs19. E essa febre não perdoava ninguém, do pop ao rock (MEDEIROS, 2006, p. 15
e 16).
Em 1989, Fernando Luís da Matta – o DJ Marlboro – já era discotecário há
quase dez anos e acabara de ganhar o concurso nacional de DJs promovido pela Disco
Mix Club (DMC). O prêmio lhe garantiu uma viagem a Londres, onde disputaria a
etapa de internacional. Não ganhou, porém, teve a oportunidade de ouvir e comprar as
últimas novidades da música dance, electro e black. Comprou tudo que pode e voltou ao
18
Nome local que ficou conhecido uma variedade mais lenta de R&B. (MOREIRA, 2016, p. 16).
19
Melôs: Também conhecido como Rap das galeras, o Melo era o tipo de música que se tornou
característica no fim dos anos oitenta e início dos noventa, no qual eram feitas versões em português para
as músicas que faziam sucesso nos bailes, já que a maioria dos frequentadores não as entediam em inglês.
As letras eram sempre de muito bom humor e também marcadas pelo conteúdo sexual de forma
irreverente. Vale ressaltar também que os Melôs inicialmente nasciam de forma espontânea e só depois
eram feitas as versões produzidas pelos DJs. (MOREIRA, 2016, p. 67).
28
A gente chamava aquilo de funk porque nós vínhamos dos bailes funk, que
tocavam funk mesmo. Aí veio aquela música eletrônica que chamamos de
funk porque não havia outra denominação. Quando o o Afrika Bambaataa
veio, ele foi chamado de quê? De electro, de música eletrônica? Não. Ele
passou ali no meio daqueles funks naquele momento e a gente começou a
chamar de funk. (ESSINGER, 2005, p. 92).
Uma vez lançado o Funk Brasil, Marlboro viu que seu disco não era um
daqueles filhos bonitos que a companhia gostava de exibir em convenções. Era um
disco proscrito. Um dos produtores chegou a pedir para não ter seu nome incluído no
rótulo do LP. E também não havia verba divulgação. Apesar disso o disco bateu a marca
de 250 mil cópias vendidas (ESSINGER, 2005, p. 93).
Aqui gostaria de abrir um parêntese para discutir, uma das questões mais
importantes deste trabalho. O que faz uma manifestação cultural como um estilo
musical ser aceita por instituições sociais ou até pela indústria fonográfica? Como já
discuti neste trabalho, pouco tempo após o fim dos bailes da pesada no canecão, eles
começaram a acontecer prioritariamente na Zona Norte. Cabe reiterar que a Zona Norte
do Rio é uma região do Rio mais pobre em oposição a Zona Sul que é uma região mais
29
rica, isto do ponto de vista de acumulo de capital econômico 20. Vianna critica o fato de
que, como o hip-hop no início dos anos 90 trazia a ideia de ser uma música de
moradores da zona norte do Rio, era evitado por lugares que pretendiam atrair clientes
da zona sul. Vianna também diz que a juventude de classe média carioca esteve
envolvida durante os anos 80 com seu próprio movimento de rock, mas que isso ainda
não era motivo suficiente para recusa integral do hip-hop (VIANNA, 1990, p. 248).
Também no início dos anos 90, outro estilo de funk chamado house começava a
desfrutar de um enorme prestígio nas boates das grandes metrópoles de primeiro
mundo. E em pouco tempo, também tomou conta das boates da Zona Sul carioca.
Imediatamente as emissoras que antes dedicavam sua programação musical ao rock (e
que se recusavam a tocar hip hop) passaram a tocar house e a Rede Globo de televisão
lançou coletâneas de grandes sucessos de house (VIANNA, 1990, p. 248).
Referindo-se a este fenômeno cultural, Vianna resume aqui um dos pontos mais
importantes deste trabalho:
As acusações que antes se fazia ao Hip hop (de ser uma música pobre,
repetitiva, com “insuportáveis” ritmos eletrônicos) poderiam ter sido ativadas
também contra a house. Mas não foram. Isso prova que a aceitação de
determinado estilo musical não depende necessariamente de características
intrínsecas desse estilo (afinal, a house, ritmicamente e melodicamente, tem
muito mais semelhanças com o hip hop do que com o rock), mas sim do
contexto social e cultural onde ela acontece. No caso do Rio, a divisão da
cidade em grupos (principalmente aqueles representados por quem mora na
Zona Sul e na Zona Norte) que pretendem estabelecer entre si tantas marcas
de distinção parece também dividir a cidade em territórios musicais
excludentes, que raras vezes (como foi o caso da “febre” das discotecas no
final dos anos 70) dançaram os mesmos ritmos). (VIANNA, 1990, p. 248 e
249).
20
Ver capítulo 1 p.10
30
o Raphael Grandmaster, que também lançou seu LP intitulado Super Quente em 1989
(ESSINGER, 2005, p. 96). Esse e o Funk Brasil foram os discos pioneiros do Funk
Carioca. Dentro deste LP, podemos já identificar em algumas faixas, subgêneros do
funk carioca, como o “Melô do bicho” que inaugura o subgênero funk proibidão 21 os
próprios melôs que são outro subgênero sobre o qual já discuti (ESSINGER, 2005, p.
91).
Voltando a falar do Raphael Grandmaster, no começo dos anos 1980 ele
começou a trabalhar na Rádio Tropical, e enquanto fazia um dos programas da rádio
intitulado “No clima dos bailes” foi convidado para tocar na Furacão 2000, uma equipe
que não parava de crescer na cena funk. Raphael dizia que só se tocava funk
internacional, e os poucos funks nacionais que se tocavam eram uma coisa elitizada, um
grupo de amigos determinados pelo Marlboro. Era um grupo fechado, não era gente do
baile, que dançava, que saía do chão, que até brigava, e que subia no palco e cantava
(ESSINGER, 2005, p. 97).
Elevado a condição de produtor musical da Furacão, e com o objetivo de
incentivar os garotos das favelas e bairros pobres que frequentavam os bailes para
comporem suas próprias músicas, sua atenção se voltou para os festivais das galeras22
que algumas equipes como a Furacão começaram a promover com dupla intenção: para
atrair mais pessoas para o baile e para evitar as brigas entre os frequentadores, que
começavam a se tornar mais frequentes (ESSINGER, 2005, p. 98). Daí os festivais
abriram espaço para muitos novos MCs como D’Eddy e MC Galo que se tornou um dos
expoentes do que viria ser conhecido como funk/rap consciente23 (ESSINGER, 2005, p.
103).
Em 92, enquanto a violência nos bailes aumentava e a mídia estava especulando
sobre possíveis ligações entre funkeiros e o Comando vermelho ou o Terceiro Comando
– as duas principais facções criminosas que dominavam o tráfico de drogas no Rio,
aconteceu um evento que como Medeiros diz, começou a era das trevas para o funk,
esse evento foi o “arrastão” na praia do Arpoador (MEDEIROS, 2006, p.19).
21
Proibidão: Rap de contexto, funk proibido, funk de facção e funk neurótico (este último com uma linha
tênue entre o consciente e o Proibidão) são alguns dos nomes dado ao gênero que fala sobre crime, por
vezes exaltando facções criminosas. Seria a nossa versão do gangsta rap. (MOREIRA, 2016, p. 68).
22
Os festivais da galera consistiam em concursos de MCs, no qual os Djs soltavam batidas que eram
conhecidas pelas galeras, como o popular Volt Mix, e rimavam por cima. (MOREIRA, 2016, p.18)
23
Funk Consciente: Talvez um dos termos mais estranhos para designar um estilo de funk, já que, como
salientado ao longo da monografia, todo funk é consciente. Mas o termo se refere, aos primeiros funks
oriundos dos festivais da galera, com temas que abordam o pedido de paz nos bailes, ter orgulho da
favela e fazer reivindicações sociais. (MOREIRA, 2016, p.67).
32
24
Bailes de briga ou Bailes de corredor: Realizados nos clubes [...] o público se dividia, Lado A e Lado B,
com um grande corredor vazio no centro, onde um guerreiro de cada facção se enfrentaria com golpes que
misturam capoeira e a luta livre. (MEDEIROS, 2005, p.57).
25
Funk Melody: Foi o nome como ficou conhecido o Latin Freestyle no Brasil, uma variante do Miami
Bass que fazia uso mais abusivo de melodias e letras românticas com arranjos mais preenchidos
harmonicamente. O termo logo ficou vago e incorporou nomes de outros estilos diferentes como rap
romântico ou funk-brega, se reinventado e ganhando outras características diferentes do Freestyle
(MOREIRA, 2016, p.67). Um de seus primeiros e principais expoentes é a dupla Claudinho e bochecha, a
cena do funk melody crescia em paralelo a estes acontecimentos.
26
Comissão parlamentar de inquérito
33
chegando as vias de fato. Mesmo com regras impostas pelas equipes e punições severas
a quem as infringisse era quase impossível que aqueles que lutavam saíssem ilesos. E a
imprensa estava lá, na hora de saída dos bailes e na porta dos hospitais para relatar e,
até, exagerar o número das vítimas – muitas vezes fatais (MEDEIROS, 2006, p. 56 e
57).
Para o DJ Marlboro, a generalização que a imprensa fez nesse período foi
fundamental para criar um estigma sobre o funkeiro – cujos resquícios permanecem até
hoje. Medeiros em seu livro traz um relato de Marlboro sobre o tema:
Existiam dois ou três bailes no Brasil que tinham corredores e tinham briga.
O resto dos bailes não tinha. A mídia colocou como se fossem todos os bailes
do Rio de Janeiro e aquilo passou a ser uma identidade. Furacão 2000 e ZZ
disco é que faziam aquilo. E a mídia não colocou, não identificou, não deu
nome aos bois, não separou o joio do trigo. Não. Ela englobou como se todo
mundo fosse aquilo e deu identidade àquela galera marginalizada que passou
a existir a partir daquele momento.
Na época, a mídia tinha que identificar e falar quem é que estava fazendo
aquele tipo de baile para que eles fossem punidos. Mas não. E as autoridades
por sua vez também não tomaram a mesma atitude que tomaram contra os
pitboys. Não tinham os pitboys que quebravam as boates na zona sul? Não
foram lá e identificaram? Não botaram policiamento? Não garantiram a
diversão de quem queria se divertir? Então porque o funk não teve o mesmo
tratamento? Por que não colocou policiamento e foi lá e identificou quem
eram os arruaceiros e puniu como foi feito nas boates? Não. Aí fecham os
bailes, porque é mais cômodo, né? É diversão dos pobres, então ‘vamos
fechar essa porra. Não vamos garantir diversão de ninguém não. Vamos
englobar que é todo mundo e vamos fechar esse negócio. Acabou’. Foi o que
aconteceu. (MEDEIROS, 2005, p. 57 e 58).
Esta citação de Marlboro traz claramente muitos dos pontos deste trabalho,
fazendo paralelos de situações semelhantes que aconteceram na Zona Sul e na Zona
Norte, porém, foram tratadas de formas diferentes pelo estado pelas motivações
exemplificadas na própria citação. Motivações estas que são fundamentadas pelo
acumulo de capitais de uma classe social específica em oposição a outra.
Conforme o tempo passava, em 1998 os bailes de corredor já não existiam mais.
Não existe consenso sobre o porquê isto aconteceu. Verônica Costa, que era casada com
o dono do Furacão 2000, Rômulo Costa, conta que aos poucos foi tentando minar o
clima da briga fazendo bailes de coreografia. Na época o É o Tchan estava fazendo
muito sucesso com a dança da boquinha da garrafa. Ela conta:
Ninguém acreditou que fosse dar certo. Mas eu fazia 10% montagem de
coreografia e 90% de corredor. Logo as mulheres dançavam tanto que os
homens se perdiam e já ficavam olhando. Daí eu aumentei a coreografia para
20% do baile. Fui aumentando. Ai 70% dançavam e 30% já estavam
dançando com as meninas. E devagar, devagar o baile todo começou a
34
dançar. [...] Os meninos começaram a não querer mais brigar pra não suar.
[...] Aí começou um preconceito contra os brigões, a gente começou a fazer
os MCs voltarem e os bailes de corredor se dissolveram. (MEDEIROS, 2005,
p. 65 e 66).
Porém, segundo DJ Marlboro o fim dos bailes de corredor veio depois que os
donos das equipes mais beneficiadas foram punidos:
O que acabou com o Lado A/Lado B do funk foi a punição dos responsáveis.
Eles foram presos, aí acabou. O corredor parou, aí o funk voltou novamente a
ser ponto de encontro para dançar e se divertir. O que já devia ter sido feito
no início quando só havia dois bailes, e não quando isso estava generalizado.
(MEDEIROS, 2005, p. 66).
O funk foi bode expiatório de tudo que era de errado que acontecia na cidade.
Era o modo conveniente de pessoas descarregarem todo o preconceito que
elas tinham contra o preto, o pobre e o favelado. E essa perseguição e esse
medo das pessoas ouvirem o que o funk cantava empurraram o funk para
dentro do gueto. O funk era a favela cantando sobre o asfalto, se você
observar. O Rap da felicidade (Cidinho & Doca) foi a última tentativa de
diálogo com o asfalto. Depois ficou a favela cantando a realidade da própria
favela. Aí vieram as músicas pornográficas e as músicas de proibidão.
(MEDEIROS, 2005, p.69).
Cabe aqui dizer que o termo proibidão surge da mídia, que ao tomar
conhecimento deste subgênero que era conhecido como rap de contexto, o apelidou de
proibidão. (MEDEIROS, 2005, p.69) O primeiro funk proibidão que chamou atenção da
mídia e do grande público foi o “Rap do Comando Vermelho” (ESSINGER, 2005 p.
229).
Em pouco tempo, a mídia e a opinião pública puseram o funk proibidão e o funk
consciente dentro do mesmo saco. Isso só contribuiu para reforçar o preconceito contra
o funk e o distanciar cada vez mais do reconhecimento como movimento cultural.
Opinião pública e polícia se voltaram contra a produção cultural do morro. Duda do
Borel, Mr. Catra28 e até Cidinho & Doca foram intimados a prestar declarações sobre o
conteúdo do seus funks e acusados de apologia ao crime. Nada ficou comprovado, mas
o estigma em torno deles e dos funkeiros em geral permanece (MEDEIROS, 2005 p. 69
27
Funk Irreverente: Também chamado de funk sensual, pornográfico ou erótico, este subgênero abusa de
letras bem-humoradas que já viam desde os Melôs, na maioria das vezes regado a uma boa dose de
erotismo e marcado pelo duplo sentido. (MOREIRA, 2016, p.67).
28
Funkeiro, cantor e compositor que surgiu na década de 90. Um dos grandes nomes do funk no Brasil.
35
e 70).
Há um limite tênue entre apologia e crônica da realidade. E a origem social e
geográfica destes compositores está 100% ligada a essa interpretação. (MEDEIROS,
2005 p. 69 e 70) Mr. Catra comenta sobre o tema:
Ninguém está incitando ninguém. Ninguém vira bandido por causa de funk.
O funk é uma crônica mesmo. [...] O que acontece é que as pessoas ainda não
se acostumaram a conviver com a realidade dos outros, tá ligado? [...] Funk é
cultura. Então não tem que ser com o Ministério da Justiça, tem que ser com
o Ministério da Cultura. [...] todos os movimentos são tratados pelo
departamento de cultura e o funk não. O funk é tratado pela justiça. Que
coisa, não? (MEDEIROS, 2005, p. 69 e 70).
Se algumas músicas de Catra tem letras polêmicas com refrões como “Mata!
Mata! Mata!”, por outro o lado o Rock sempre descreveu a violência também. É o caso
de The End gravada pelo The Doors em 1967, em que Jim Morrison canta ao final
“Kill! Kill! Kill”. Se “kill” significa “mata”, então qual é a diferença? Por que o funk
carioca faz apologia e o rock americano não? (MEDEIROS, 2005, p. 69 e 70) Catra
ainda traça outro paralelo:
Há pouco tempo aqui no Brasil fez sucesso aquela música Cop Killer29, hã?
Tocava pra caramba nas rádios e quer dizer ‘assassino de policial’. Vários
sons gringos que a gente consome, que tocam pra caramba nas rádios, falam
sobre isso. Aí você faz uma música em português, a rádio vai lá e te censura.
É o maior esculacho. (MEDEIROS, 2005, pg. 71).
Eu acho muito mais apologia o pessoal da classe média que glamouriza essas
músicas de proibidão do que o próprio garoto que faz. Porque o garoto que
faz está contando a verdade do que ele vive. (MEDEIROS, 2005, p. 71 e 72).
29
Cop Killer foi um grande sucesso mundial, gravado pelo rapper americano Ice-T, que nos Estados
Unidos foi censurada e lhe rendeu uma investigação pelo FBI (Federal Bureau of Investigation). Aqui foi
executada livremente nas rádios. (MEDEIROS, 2005, p.71).
30
Aliança entre galeras. (MOREIRA, 2016, p. 21)
36
palco. Deize Maria Gonçalves estava lá, e resolveu mostrar uma de suas músicas Hilda
Furacão. Medeiros ainda diz que este talvez seria o momento na história onde aconteceu
a grande virada feminista na história do funk, pois por um bom tempo, o funk havia
deixado as mulheres em segundo plano, sendo o funk reflexo de uma sociedade
machista. Antes desse evento no Coroado as aparições das mulheres eram esporádicas,
como a da adolescente Monique Furacão, que gravou a Melô da Vadia no disco
Funkmania, produzido por Marlboro em 1993, e depois desapareceu (MEDEIROS,
2005, p.75 e 76).
Deize então se uniu com outras quinze meninas da Cidade de Deus e formou o
Bonde do Fervo, inspirada na letra de Hilda Furacão. Em sequência surgiu outro bonde
chamado Bonde das Bad Girls que rivalizava com o Bonde do Fervo. Essa competição
foi até os palcos do Coroado, dando origem a um duelo de rima entre estes bondes.
Logo, essa competição ganhou fama, inspirando o surgimento de vários outros bondes.
Foi o início do Bonde dos Putão (hoje Bonde do Tigrão 31), Bonde do Vinho e Bonde dos
Carrascos. A força feminina no funk não ficou restrita ao Bonde do Fervo e ao Bonde
das Bad Girls. Em resposta ao Bonde dos Putão, um outro grupo de meninas formou o
Bonde das Putanas. Também nessa época surgem alguns dos grandes nomes do funk
carioca como Tati Quebra Barraco e a Gaiola das Popozudas, grupo onde Valesca
Popozuda era a vocalista (MOREIRA, 2016, p.77 e 78).
A maior polêmica que envolve as MCs da Cidade de Deus, Deize e Tati, é o
conteúdo erótico de suas letras. E sobre isso em seu livro, Medeiros traz uma fala de
Denise Garcia, autora do documentário Sou feia mas tô na moda, que fala das mulheres
no funk:
31
O Bonde do Tigrão, lançado pela Furacão 2000 no cd Tornado Muito Nervoso 2, veio acompanhado de
algumas das personalidades no CD de compilação da equipe. Entre elas estava MC Beth com a música
Tapinha e MC Naldinho em parceria com a MC Beth, com a música Dança da motinha. (MOREIRA,
2016, p. 21).
32
Em A porra da buceta é minha, [...] Deize Tigrona dispara sem rodeios sua revolta contra um homem
que começou a difamá-la porque ela se recusou a dormir com ele. (MEDEIROS, 2005, p. 84)
37
33
Funk Ostentação: Provavelmente um dos únicos que não tenha outra designação. O funk ostentação
nas suas letras exalta nomes marcas de luxo, dinheiro e mulheres. (MOREIRA, 2016, p. 68)
38
Por alguns, este “novo” funk tem sido chamado de funk ousadia, mas como
já dito, nada mais são do que um novo nome atribuído a algo que já existia
anteriormente, porém que foi levado a uma sexualização extrema que o
melhor nome que se encaixa tem sido Funk Putaria. Neste tipo de funk,
notamos o total uso explícito de letras pornográficas atreladas as mais belas
melodias românticas do Funk Melody (como MC Livinho, Na ponta do pé),
as vezes sobre paródias de músicas da Disney (como MC Tati Zaqui com a
música Eu vou e MC Livinho, com Picada Fatal), ou ainda sobre a forma de
rap que sempre permeou a história do funk (como MC TH, com Tipo
Ginecologista e MC Smith, com Apaixonado). (MOREIRA, 2016, p. 24 e
25).
34
Funk Putaria: Por uns chamados como funk ousadia ou sensual, o funk putaria, diferentemente do
irreverente, fala explicitamente sobre sexo em suas músicas. (MOREIRA, 2016, p.68).
39
CAP 3: PROPOSTAS
com qualquer estilo que estudamos, compreender seus aspectos formais, harmônicos,
rítmicos, melódicos e etc. para que possamos falar sobre eles com propriedade seja para
criticá-los seja para reproduzi-los em nossas práticas musicais. Isso se faz mister no
estudo do funk carioca por vários motivos que aparentemente são extramusicais, mas
são de suma importância para compreensão da relevância deste estilo nos dias de hoje.
Falando mais especificamente sobre o trabalho deste estilo em âmbitos práticos, trago
outro tópico que é a:
4 – Criação, uma das grandes conquistas que o funk já traz dentro de si e pode
trazer para a educação musical no ensino formal é o trabalho da criação, muitas vezes
deixado de lado no ensino da música. Dentro do funk praticamente não existem artistas
que fazem “covers” de outros artistas, de forma geral todas as músicas que os artistas
cantam são composições próprias. Além disto como diz Dayrrel referindo-se ao funk e
ao rap, afirma que são estilos democráticos:
Considerando estes pontos que Dayrell levanta, posso refletir sobre a grande
gama de possibilidades que temos para trabalhar o funk carioca de formas muito ricas e
criativas dentro de sala de aula, dando liberdade para pessoas que nunca tiveram contato
com o trabalho de criação se expressarem. Isto considerando também a precariedade no
acesso de instrumentos musicais e afins no ensino formal. Como o funk é estritamente
ligado com a ideia de criação, posso fazer um paralelo com o que alguns educadores
musicais dizem sobre como a criação é, na concepção deles, uma das formas mais ricas
de trabalho com a música, como aponto nesta citação de Swanwick:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
principal de uma instituição que visa ensinar o fazer musical. Fim este que deveria ser o
trabalho prático com a música, a criação, a audição e a performance; sendo que a
criação, e até a audição em muitos casos, são deixadas de lado dentro das instituições
escolares.
O funk é um gênero democrático e diretamente ligado com o trabalho de criação
(como já discutimos no capítulo três pela visão de Dayrrel), a partir disto proponho que
nós educadores o utilizemos como meio para construção de uma educação musical
melhor, uma educação musical onde o fazer musical aconteça e tenha valor simbólico
real tanto para os alunos quanto para os professores, uma educação musical que seja
realmente para todos.
46
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOURDIEU, Pierre. Razão praticas sobre a teoria da ação, tradução de Mariza Corrêa
11º ed. - Campinas, SP: Papirus, 2011.
ESSINGER, Silvio. Batidão: uma história do funk. Rio de Janeiro e São Paulo: Record,
2005.
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“proibidão”. 2007. 135 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Pontíficia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
MEDEIROS, Janaína. Funk carioca: crime ou cultura? O som dá medo. E prazer. São
Paulo: Terceiro Nome, 2006.
MOREIRA, Rafael Hermés Mondoni. É Som de Preto, de Favelado, mas quando toca
ninguém fica parado: O Funk Como Canção, 2016, Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” – UNESP Instituto de Artes.
SETTON, Maria da Graça Jacintho. Uma introdução a Pierre Bourdieu, Disponível em:
https://revistacult.uol.com.br/home/uma-introducao-a-pierre-bourdieu Acesso em: 11 de
Setembro de 2017
SILVA, Cidinha. Funk carioca: crime ou cultura?, Revista África e Africanidades - Ano
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VIANNA, Hermano. O Mundo Funk Carioca, Zahar Edição Digital, abril 2014, pg.113.
VIANNA, Hermano. Funk e cultura· popular carioca, Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, vol. 3, n. 6. 1990, pg. 244-253.
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APÊNDICE
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