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LUCAS GONÇALVES MOUTINHO

O FUNK NO CONTEXTO ESCOLAR

São Paulo
2017
LUCAS GONÇALVES MOUTINHO

O FUNK NO CONTEXTO ESCOLAR

Trabalho de conclusão de curso em


Licenciatura em Música apresentado por Lucas
Gonçalves Moutinho, graduando em
Licenciatura em Música da Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” –
UNESP.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rita Luciana Berti


Bredariolli.
Coorientador: Prof. Levi Fernando Lopes
Vieira Pinto.

São Paulo
2017
LUCAS GONÇALVES MOUTINHO
CURSO: LICENCIATURA EM MÚSICA

O FUNK NO CONTEXTO ESCOLAR

Trabalho de conclusão de curso em Educação


Musical – modalidade Licenciatura –
apresentado por Lucas Gonçalves Moutinho,
graduando em Licenciatura em Música da
Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” – UNESP.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rita Luciana Berti


Bredariolli.
Coorientador: Prof. Levi Fernando Lopes
Vieira Pinto.

Data da Defesa: __/__/__

Nota: ____

Banca Examinadora:

_____________________________________________________________________
Prof.a Dr.a Rita Luciana Berti Bredariolli (Orientadora)

______________________________________________________________________
Prof. Levi Fernando Lopes Vieira Pinto (Coorientador e Examinador)

São Paulo
2017
Dedicatória

À minha vó Thereza.
Aos meus alunos.
Aos professores e educadores que lutam por um mundo melhor.
AGRADECIMENTOS

Agradeço a toda minha família, principalmente a minha mãe Elizabeth, pelo carinho,
paciência, amor e apoio incondicional. Tudo que eu sou hoje é graças a ela.
Agradeço a Prof.ª Dr. ª Rita Luciana Berti Bredariolli por sua orientação, pela sua
amizade, por sua paciência e pelos seus conselhos que me ajudaram muito como pessoa
e na realização deste trabalho. Também agradeço muito por suas aulas que me inspiram
até hoje.
Agradeço ao Prof. Levi Fernando Lopes Vieira Pinto pela sua orientação e pela sua
amizade. Sua esperança e seu respeito pela educação são uma inspiração para mim.
Agradeço ao Rafael Moreira por ter me emprestado grande parte da bibliografia que
usei para fazer este trabalho.
Agradeço ao meu primo Marcos Rinaldi por ter me ajudado várias vezes com a
formatação deste trabalho.
Agradeço a todos os meus amigos que acompanharam, de uma forma ou de outra, meu
caminho fazendo esta monografia, e agradeço de coração a compreensão pelas vezes
que acabei por não conseguir vê-los por causa deste trabalho. Vocês são a minha
felicidade.
Agradeço especialmente ao Leonardo Rodrigues e a Camila Coelho, grandes amigos
que sempre estavam lá quando precisei.
Agradeço também ao Victor Mattos e ao Alan Magalhães Lima (amigos de uma vida
inteira) pelo suporte e amizade nestes últimos tempos.
Sem vocês quatro eu não teria conseguido terminar este trabalho.
RESUMO

Neste trabalho discute-se o gênero musical brasileiro funk pela perspectiva de Bourdieu e sua
relação com o contexto escolar. Objetiva-se demonstrar se o funk encontra dificuldades de ser
trabalhado dentro da instituição escolar. Esta pesquisa será realizada por meio de relatos de
experiência e uma pesquisa bibliográfica baseada nas ideias de Bourdieu, Setton, Noronha,
Braga e Saldanha; e também por meio de uma pesquisa historiográfica trazendo as ideias de
Vianna, Medeiros, Essinger, Moreira, Dayrrel e Guedes. Concluiu-se que, ao longo de sua
história, o funk encontra dificuldades de ser aceito como uma manifestação cultural legítima, e
por consequência disso tem dificuldades de ser inserido dentro da instituição escolar.
Palavras Chave: Funk; escola; capital cultural; educação musical.
ABSTRACT
This monograph intends to discuss the Brazilian musical genre funk by the perspective of
Bourdieu and its relationship with the school. The objective of this work is to demonstrate if the
funk finds difficulties in being studied within the school. This investigation will be realized by
the use of experience reports and a bibliographic research substantiated on the ideas of
Bourdieu, Setton, Noronha, Braga e Saldanha; and also by a historiographical research based on
the ideas of Vianna, Medeiros, Essinger, Moreira, Dayrrel and Guedes. This research concluded
that, throughout its history, the funk finds difficulties in being accepted as a legitimate cultural
manifestation, and consequently, has difficulties in being studied within the school institution.

Keywords: Funk; School; Cultural capital; Musical education.


SUMÁRIO

Introdução......................................................................................................... 8

Cap 1: Para começo de conversa: uma análise sociocultural sob o conceito de


capital cultural................................................................................................. 13

Cap 2: O Funk e a Instituição escolar........................................................................... 21

Cap 3: Propostas........................................................................................................... 39

Considerações Finais......................................................................................... 44

Referências Bibliográficas................................................................................ 46

Apêndice........................................................................................................... 47
8

INTRODUÇÃO

O funk é um gênero muito presente na realidade da música brasileira, nas


mídias, nas escolas e nas ruas sempre estamos em contato com o funk. Partindo de uma
pesquisa bibliográfica e de relatos de experiência eu viso analisar os aspectos deste
estilo musical dentro do contexto escolar, desde sua relevância na vida dos discentes e
dos docentes até se ele encontra dificuldades de ser inserido no âmbito do ensino
formal. Eu pretendo discorrer sobre quais são os motivos que facilitam ou dificultam a
inserção do funk na instituição escolar, e se objetiva também discorrer sobre formas de
como lidar com esta situação.
Enquanto escrevia este trabalho, surgiu um projeto de lei de criminalização do
funk, que repete a história de repressão de outras manifestações culturais como o samba,
o rap e a capoeira.1
Dito isto, posso inferir que este é um tema relevante para ser discutido, para
refletirmos sobre a história das repressões culturais que aconteceram nos séculos
passados e ainda acontecem com o intuito de reprimir manifestações culturais
provenientes especificamente de classes sociais menos privilegiadas, repressão que
acontece inclusive, de maneira racista, como Silva diz:

[...] não se trata de "impor uma definição de cultura" [...] mas sim, de uma
estratégia para fazer com que o funk migre das páginas policiais - onde é
posto, intencionalmente, de maneira racista, inclusive -, para as páginas de
cultura. Cultura de massa, fruto da indústria cultural e, como tal, passível de
críticas, como a música sertaneja, o pagode romântico e os roquezinhos dos
ídolos pop e da garotada de Malhação, dentre outros. (SILVA, 2009, p.5).

Um dos motivos que me fez querer realizar este projeto foi a relutância na
realização de trabalhos relacionados ao funk carioca que encontrei enquanto estagiava
no ensino formal, relutância que relacionada a qualquer gênero é um problema por si só.
Eu e uma colega minha professora de música, Fernanda Tardivo, dávamos aula de coral
para crianças de 6 a 8 anos em uma escola municipal em São Miguel – São Paulo. Após
termos passado alguns meses trabalhando neste espaço, resolvemos trabalhar
composição musical com nossos alunos. Propomos que eles cantassem ideias que
viessem a mente, e conforme gostássemos (como grupo) de um trecho ou de outro,
fôssemos decidindo o que manteríamos e o que descartaríamos. Logo em sequência,

1
Link para uma reportagem sobre o projeto de criminalização do funk: “Projeto de lei de criminalização do Funk
repete a história do samba da capoeira e do rap”: http://www.bbc.com/portuguese/brasil-40598774
9

uma das primeiras coisas que aconteceu foi uma das crianças começar a fazer com
percussão vocal2 uma batida de funk, coisa que deixou os professores e grande parte dos
alunos animados, mas outros nem tanto, pois diziam que não gostavam de funk. Este
tópico já foi discutido em aulas anteriores sobre o funk, mas também sobre outros
estilos que trabalhamos ou escutamos no decorrer do ano que estagiamos lá. Os alunos
diziam que não gostavam do funk especificamente por causa do conteúdo de suas letras
e também alguns diziam que não podiam ouvir ou cantar pois os pais os proibiam. Esses
dois pontos foram discutidos nos outros dias e neste de forma simples, primeiramente
dissemos que este funk como seria uma criação nossa, só ficaria pronto se tivesse uma
letra que todos gostássemos. Dito isto, também deixamos claro que o gênero musical
funk não necessariamente implica em um conteúdo de letra específico. E sobre a
proibição dos pais, foi combinado que se os pais não tivessem deixado o aluno cantar ou
ouvir funk, nós entraríamos em contato com eles e pediríamos para que eles
conversassem conosco sobre o assunto, visando explicar o porquê como professores
achávamos importante trabalhar este gênero dentro de sala de aula, e enquanto isso,
continuaríamos o trabalho como combinado. Tendo conversado isto, continuamos o
trabalho de criação. Depois de alguns trechos cantados que envolviam rimas simples,
porém muito importantes para compreensão de aspectos formais da poesia naquela
idade, chegamos nesta letra juntos:
“Eu estou cantando, minha música do mal, cheguei em casa, pra comer mingau,
radical! ”3
Uma letra, uma melodia simples e uma batida de funk. Pronto! Tínhamos nossa
primeira composição. Todos gostaram muito e foi uma aula muito divertida. Porém,
logo após este dia no próximo encontro após termos proposto a conversa para os pais
pelos alunos, um de nossos alunos mais interessados não veio mais. Quando o
encontramos depois nos corredores da escola por acaso, ele disse que não podia ir mais
as aulas por causa de alguns problemas em casa. Supomos que tenha sido o fato de
trabalharmos o funk na sala de aula fez com que o pai decidisse que ele não poderia
mais vir, pois além dele ser um aluno aplicado e gostar muito da aula, a saída dele foi
repentina e sem justificativa e ele não sabia explicar exatamente o porquê não poderia
vir mais. Além disso, já tínhamos conhecimento que os pais não permitiam que o funk
fosse cantado pelos seus filhos previamente, e nossas tentativas de contato com eles

2
Sons percussivos feitos com a boca, Beatbox.
3
Partitura anexada no Apêndice.
10

após o acontecimento não deram resultado.


Depois de apresentar essa minha experiência pessoal com o trabalho do funk na
sala de aula, gostaria de falar de outros três relatos de experiência que coletei para
ressaltar a relevância deste trabalho. Nestes relatos pedi para que os entrevistados
falassem sobre experiências negativas marcantes que tiveram com o funk dentro do
contexto escolar. Solicitei que eles gravassem ou escrevessem seus relatos.
Respectivamente, o primeiro relato a entrevistada escreveu e ele está transcrito na
íntegra, os outros dois foram gravados e transcritos. O primeiro relato é o de uma
professora de música de 24 anos, estudante de licenciatura em música, que trabalha em
uma escola particular de ensino formal faz dois meses. Em seu relato, ela disse:
“Quando eu fui para a entrevista de emprego na escola particular de classe média
que trabalho hoje, fui conversar com a coordenadora do fundamental 1 e uma das
primeiras coisas que ela falou foi que eles não permitem funk na escola, mas ela não
justificou em momento algum isso, só disse que não era permitido. Na prática e no
contato com as crianças deu pra perceber que essa proibição de nada serve, isso porque
eles (quase sempre os meninos, e quase sempre os meninos que querem ser
"subversivos" e quebrar as regras) cantam as letras, fazem os passinhos e tocam os
ritmos nos instrumentos. ”
O segundo é também de um professor. Ele tem 28 anos e leciona inglês em uma
escola de idiomas faz 3 anos:
“Bom, na escola que eu trabalho no CNA, tem algumas aulas que eles têm que
fazer atividades, e eu deixava eles colocarem músicas da escolha deles, e uma das vezes
eles me pediram para colocar funk, eu fui ver se o funk “tava” tudo bem, se não tinha
nenhuma letra que prejudicasse. E “tava” tudo bem, deixei eles colocarem a música mas
aí veio o diretor da escola pedir para tirar e falou que funk não podia, mas não era um
preconceito dele, entre aspas. Ele deu o seguinte motivo: Ele falou que era porque se
alguma mãe ou pai chegasse poderia reclamar: “Porque que os filhos estão escutando
funk dentro de uma aula de inglês dentro de uma escola? ”
O terceiro é de um aluno estudante de música de 17 anos que estuda no ensino
formal em uma escola particular:
“Então, eu “tava” tendo aula de história, e meu professor de história ele é
bastante crítico, ele gosta de comentar sobre um monte coisa, e aí uns moleques lá no
fundo “tava” cantando funk e ele sempre deixa uns minutos pra gente ficar zuando lá
11

tranquilo. E aí eu “tava” lá pá, cantando funk e tudo, e aí ele comentou: “Nossa mano
vocês ainda chamam isso de música...” Aí a gente falou: “Lógico que é música, funk é
tudo professor! ” Aí ele: “Ah, toma no cu essas porcarias aí, é um bando de gente que
não tem noção das coisa, olha a forma que eles colocam aí a letra das músicas e tudo
mais ...esses negócio de funk é de quem não tem cultura não tem noção de nada” Aí ele
começou a mete o pau e falou que: “Quem escuta funk não tem noção do que é a
verdadeira riqueza do nosso país, culturalmente falando”.
Gostaria de ressaltar dois pontos sobre estes relatos sobre os quais discorrerei de
forma mais aprofundada nos próximos capítulos. Primeiramente, partindo do ponto de
vista dos entrevistados, posso inferir que por parte da coordenação da escola e também
por parte do professor do último relato, existe um esforço para dificultar a escuta e o
fazer do funk dentro da sala de aula. Isto é um problema, porque a sala de aula deveria
ser um espaço onde qualquer tema pudesse ser discutido, e principalmente um espaço
onde pudéssemos difundir, exercer e discutir sobre nossa própria cultura, no caso,
especificamente, o funk para alguns dos discentes. Sobre o segundo ponto, este trata-se
especificamente do último relato quando, o entrevistado e seus colegas de classe,
comentam a importância do funk para sua vivência dizendo “Funk é tudo”, onde posso
observar a partir do relato o grande valor simbólico que esta música tem para aqueles
que ouvem ela e a praticam. Mas logo em sequência, a partir do relato também posso
observar o descaso do professor com esta manifestação cultural quando ele ofende os
alunos e segue dizendo que quem escuta funk não tem noção do que é a verdadeira
riqueza do nosso país, deixando claro uma hierarquia entre culturas, onde existe uma
riqueza/cultura “real” em oposição a uma riqueza/cultura “falsa”. Partindo deste
segundo relato posso discutir sobre a relevância deste trabalho, pois eu pretendo discutir
a hierarquização, e por consequência, a exclusão de culturas do contexto escolar,
tratando-se especificamente do funk carioca, e como podemos compreender e combater
este fenômeno.
No primeiro capítulo discutirei primeiramente a teoria de Bourdieu - sobre a
qual trarei a visão de Setton - para por meio desta teoria, apresentar reflexões da
história da capoeira trazidas também por Braga e Saldanha e do canto orfeônico
villalobiano trazidas por Noronha, e então, traçarei com ambas manifestações culturais
um paralelo com o funk e sua inserção na instituição escolar, concluindo esta ideia com
um pensamento de Dayrrel. No segundo capítulo discorrerei sobre a história do funk
12

pela visão de Vianna, Medeiros, Essinger, Dayrrel e Moreira, desde suas origens nos
Estados Unidos e na Jamaica até os dias atuais aqui no Brasil, pontuando as correlações
com a teoria de Bourdieu e discorrendo sobre a inserção do funk no contexto escolar e
também discutindo sobre aspectos da criminalização do funk no Brasil. No terceiro e
último capítulo irei indicar propostas para o trabalho do funk na sala de aula
considerando o que foi discutido nos outros capítulos.
13

CAP 1: PARA COMEÇO DE CONVERSA: UMA ANÁLISE


SOCIOCULTURAL SOB O CONCEITO DE CAPITAL CULTURAL

Antes de começar a discorrer especificamente sobre os temas desta monografia


gostaria de conceituar o termo capital cultural que foi desenvolvido pelo sociólogo
francês Pierre Bourdieu, e então com base neste conceito discutir sobre os pontos deste
trabalho de forma geral.
Porém, para entendermos o capital cultural devemos compreender o termo
estrutura social. Bourdieu define que a estrutura social é um sistema hierarquizado de
poderes e privilégios, que é mantido pelas relações simbólicas, econômicas, sociais e
culturais entre aqueles que estão dentro desta estrutura social. Nesta estrutura, a posição
em que diferentes grupos se encontram é definida pelo acumulo ou pela falta destes
poderes e pela transmissão dos mesmos. Dentre estes poderes e privilégios, Bourdieu
define especificamente:
1 - O capital cultural, que é definido pelo acumulo de conhecimento. Isto tanto
pela escola ou por outros meios como, por exemplo, apresentações artísticas, livros, etc.
2 - O capital econômico, que é definido pelo acumulo de dinheiro.
3 - O capital simbólico, que é definido pelo poder que, por exemplo, um diploma
oferece ao seu dono.
4 – O capital social, que é definido por relações sociais que podem gerar capital.
Quando um certo grupo pelo decorrer de sua história acumula estes poderes, ele
se mantém em uma posição social hierarquicamente superior a outros grupos que não os
adquiriram, e consequentemente, tem mais facilidade em se manter nesta posição e
acumular mais capital ainda para ir para uma posição mais privilegiada. Isto em
oposição a outros grupos que por terem uma menor quantidade destes poderes,
encontrariam mais dificuldades de acumular mais capital, e simultaneamente teriam
dificuldades de alcançar uma posição melhor nesta estrutura hierarquizada.
Tendo definido o conceito de estrutura social e capital cultural, cabe aqui
também discutir sobre como estes poderes são mantidos e transmitidos por estes grupos
pelo tempo. Bourdieu diz que a reprodução destes poderes acontece principalmente por
meio de duas instituições que tem por função transmitir cultura, a escola e a família:

A reprodução da estrutura de distribuição do capital cultural se dá na relação


14

entre as estratégias [de reprodução] 4 das famílias e a lógica específica da


instituição escolar. (BOURDIEU, 2011, p. 35).

A família é a primeira instituição que o indivíduo tem contato e que teria a


função de contribuir para o acumulo de capitais e para transmissão deles, pois, esse
conjunto de poderes adquirido pelo decorrer do tempo irá garantir a estabilidade deste
grupo dentro da estrutura social, perpetuando os privilégios que haviam sido adquiridos
pelo decorrer do tempo por essa instituição. E considerando que os privilégios são
mantidos, a desigualdade social também é mantida pela transmissão destes capitais.
Agora falarei da escola. Bourdieu diz que a escola além de ter a função de
transmissão de cultura, também tem a função de legitimação do conhecimento. Isto
através de certificados como diplomas, que se enquadram no conceito de capital
simbólico. Este é um dos pontos mais importantes deste trabalho pois, considerando que
famílias que já tem este acumulo de capital legitimem o conhecimento que acumularam
pelo decorrer de sua existência, estas mesmas famílias irão decidir, em conjunto com a
escola, que tipo de cultura seria a cultura a ser estudada dentro da sala de aula, e em
contrapartida, elas também decidem que cultura não teria espaço dentro da sala de aula
por ser de outros grupos menos privilegiados. Logo, mantendo sua posição de privilégio
dentro desta estrutura social em relação a outros grupos menos privilegiados, inclusive
em relação ao valor simbólico de sua cultura em relação a cultura destes outros grupos.
Bourdieu também diz em sua teoria que o sistema escolar faz uso de meios para
segregar aqueles que já tem este capital cultural cultivado5 daqueles que não o tem. No
seu livro “Razões Práticas” Bourdieu, faz uma comparação entre o Demônio de
Maxwell (uma imagem que o físico Maxwell utiliza para explicar como a eficácia da
segunda lei da termodinâmica poderia ser anulada) e o sistema escolar para exemplificar
esta separação entre os alunos que tem quantidades desiguais de capital cultural:

O sistema escolar age como o demônio de Maxwell: à custa do gasto de


energia necessária para realizar a operação de triagem, ele mantém a ordem
preexistente, isto é, a separação entre os alunos dotados de quantidades
desiguais de capital cultural. Mais precisamente através de uma operação de
seleção, ele separa os detentores de capital cultural daqueles que não o
possuem. Sendo as diferenças de aptidão inseparáveis das diferenças sociais
conforme o capital herdado, ele tende a manter as diferenças sociais
preexistentes. (BOURDIEU, 2011, p. 37).

Bourdieu ainda afirma que, instaurando uma ruptura entre os alunos das grandes

4
Meios pelos quais as instituições perpetuam seu acumulo de capital pelo decorrer do tempo.
5
Capital que já foi acumulado e internalizado pelos seus detentores, grupos sociais ou indivíduos.
15

escolas 6 e das faculdades, a instituição escolar institui fronteiras sociais análogas


àquelas que separavam a grande nobreza da pequena nobreza, e esta dos simples
plebeus (BOURDIEU, 2011, p. 37).
Considerando que a instituição escolar faz isso, Bourdieu na citação anterior a
compara com a Nobreza, referindo-se a classe social da idade média. Comparação que
ele faz para deixar claro a ideia da hereditariedade de privilégios e poderes, fazendo
uma analogia com a ideia de transmissão de privilégios apenas pelo fato exclusivo de
fazer parte de uma família ou ser filho de alguém. Bourdieu ainda afirma, seguindo esta
linha de raciocínio referente a nobreza, que a classificação escolar é um ato de
ordenação7:

A classificação escolar [...] institui uma diferença social de estatuto, uma


relação de ordem definitiva: os eleitos são marcados, por toda vida, por sua
pertinência (antigo aluno de...); eles são membros de uma ordem no sentido
medieval do termo, e de uma ordem nobiliárquica, conjunto nitidamente
delimitado (pertence-se ou não a ela) de pessoas separadas dos comuns
mortais por uma diferença de essência e, assim, legitimados para dominar.
(BOURDIEU, 2011, p. 38).

Bourdieu conclui, definindo o conceito de nobreza de estado:

Assim, a instituição escolar, que em outros tempos acreditamos que poderia


introduzir uma forma de meritocracia ao privilegiar aptidões individuais por
oposição aos privilégios hereditários, tende a instaurar, através da relação
encoberta entre a aptidão escolar e a herança cultural, uma verdadeira
nobreza de Estado, cuja autoridade e legitimidade são garantidas pelo título
escolar. (BOURDIEU, 2011, p. 39).

O conceito de nobreza de estado seria síntese de como a escola contribui para a


legitimação da herança cultural e o mantenimento do poder de certos grupos inseridos
dentro de uma estrutura social, conservando os privilégios e as diferenças entre estes
grupos inseridos nesta estrutura. Em resumo, Setton, estudiosa das teorias de Bourdieu,
diz:

Em síntese, para Bourdieu o sistema escolar, em vez de oferecer acesso


democrático de uma competência cultural específica para todos, tende a
reforçar as distinções de capital cultural de seu público. Agindo dessa forma,
o sistema escolar limitaria o acesso e o pleno aproveitamento dos indivíduos
pertencentes às famílias menos escolarizadas, pois cobraria deles os que eles
não têm, ou seja, um conhecimento cultural anterior, aquele necessário para
se realizar a contento o processo de transmissão de uma cultura culta. Essa
cobrança escolar foi denominada por ele como uma violência simbólica, pois
imporia o reconhecimento e a legitimidade de uma única forma de cultura,
desconsiderando e inferiorizando a cultura dos segmentos populares.

6
Instituições de ensino de grande prestígio de acesso restrito para poucos.
7
A ordenação na idade média era uma cerimônia de titulação entre nobres e vassalos ou até de cunho
litúrgico.
16

(SETTON, Uma introdução a Pierre Bourdieu).

E ainda seguindo a perspectiva de Bourdieu exposta por Setton, ela afirma que o
gosto cultural é produto de um processo educativo que acontece na família e na escola, e
não fruto de uma sensibilidade inata dos agentes sociais. Logo, é algo que depende das
trajetórias educacionais e sociais dos indivíduos.

Mais especificamente Bourdieu afirma que as práticas culturais são


determinadas, em grande parte, pelas trajetórias educativas e socializadoras
dos agentes. Dito com outras palavras, Bourdieu afirma, causando um grande
mal-estar na época, que o gosto cultural é produto e fruto de um processo
educativo, ambientado na família e na escola e não fruto de uma
sensibilidade inata dos agentes sociais. (SETTON, Uma introdução a Pierre
Bourdieu, [2010?]).

Considerando as duas últimas citações, posso fazer uma reflexão sobre a teoria
de Bourdieu e sua relação com o funk e outras manifestações culturais que, por fazerem
parte desta “cultura dos segmentos populares”, são inferiorizadas e muitas vezes não são
aceitas com algo que pode ser trabalhado dentro do contexto escolar. Já que, como diz
Bourdieu, o sistema de ensino tende a manter a estrutura de distribuição do capital
cultural, contribuindo para reproduzir e legitimar as diferenças de gosto estre os grupos
sociais. Posto isso, as disposições exigidas pela escola, como por exemplo, as
sensibilidades pelas letras ou pela estética visual ou musical, enfim, uma estética
artística, privilégio de alguns poucos, tendem a intensificar as vantagens daqueles mais
bem privilegiados, material e culturalmente (SETTON, Uma introdução a Pierre
Bourdieu, [2010?]).

Assim, convertendo as desigualdades sociais, ou seja, as diferenças de


aprendizado anterior, em desigualdades de acesso à cultura culta, o sistema
de ensino tende a perpetuar a estrutura da distribuição do capital cultural,
contribuindo para reproduzir e legitimar as diferenças de gosto entre os
grupos sociais. (SETTON, Uma introdução a Pierre Bourdieu, [2010?]).

Dito isto, esta sensibilidade por uma estética artística é uma sensibilidade
voltada para uma estética específica, direcionada para gêneros musicais também
específicos que estejam ligados aos grupos que tem poder para legitimar essas
diferenças de gosto a partir de sua posição na estrutura social, e por consequência,
gêneros musicais ligados ou provenientes das camadas mais baixas dessa estrutura
tendem a sofrer represálias tanto do estado, quanto da escola, quanto da família, quanto
da própria mídia. Tudo isso justificado muitas vezes por essa legitimação da cultura de
grupos que estão em posições superiores dentro desta estrutura social.
Pretendo depois de ter conceituado superficialmente estes aspectos da teoria de
17

Bourdieu, discutir sobre essa ideia da escola e outras instituições legitimarem a cultura
dos grupos que estão em posições mais privilegiadas, e fazendo isso, elas ao mesmo
tempo deslegitimam outras culturas. E por consequência, outros gêneros musicais que
por sua vez provêm de grupos que estão em posições sociais inferiores a outros dentro
desta estrutura social, como o funk e outros estilos.
Falarei agora como isso já vem acontecendo com algumas manifestações
culturais provenientes de grupos sociais menos favorecidos pelo decorrer da história
para aí então fazermos um paralelo com o funk e falarmos especificamente sobre ele.
Também falarei sobre manifestações culturais que, em contraposição a estas, foram
legitimadas pela escola e pelo poder destes grupos sociais mais privilegiados e puderam
se manter relevantes pelo decorrer do tempo sem disputas com instituições como o
estado ou a escola, pelo contrário, normalmente estas manifestações acabaram por ser
subsidiadas por estas instituições, independente de poderem se enquadrar nas mesmas
justificativas que seriam usadas para criticar estes outros gêneros musicais provenientes
de grupos menos privilegiados.
Vamos começar falando sobre a capoeira. A capoeira é uma manifestação
cultural brasileira que abarca arte marcial, cultura popular, música e esporte. Sendo a
música um dos aspectos principais dela. Como não é o objetivo deste trabalho falar
especificamente sobre a capoeira, trago um trecho do trabalho de Braga e Saldanha para
trazer resumidamente a história da capoeira e sua relevância social:

Na primeira metade do século XVI, os portugueses instalados no Brasil


resolveram desenvolver a produção de açúcar que já se iniciara, trazendo
negros africanos para servirem como escravos no cultivo. Eles passaram a
viver de forma subumana no trabalho nos engenhos, na casa do dono do
engenho e nas demais tarefas que se faziam necessárias na propriedade do
senhor do engenho.
O desumano transporte nos navios, as péssimas condições de trabalho, a
alimentação ruim, as frequentes humilhações e os castigos, sendo
majoritariamente feitos com o açoite de chicote, desencadearam revolta e as
seguidas tentativas de fuga, que eram cerceadas pelos capitães do mato, os
quais eram pagos por tal serviço e caçavam e devolviam a “mercadoria” aos
seus “donos”. Aqui surge a capoeira como forma de se defender de tantas
imposições de comportamentos e aceitações as quais não eram mais
suportadas.
O reconhecimento da capoeira como habilidade corporal, destreza certeira,
que, fazendo uso dos membros (braços e pernas), poderia ser fatal,
principalmente quando usada contra repressores que não sabiam se defender,
levou considerada crime no Código Penal de 1890. Outras manifestações
afro-brasileiras como o candomblé e o samba também foram igualmente
proibidas.
Hoje a capoeira é concebida como manifestação cultural, englobando arte,
dança, música, filosofia de vida e luta, conhecida e admirada mundialmente e
18

aceita com simpatia pelo povo brasileiro, entendida como arte bonita de ser
praticada e visualmente apreciada.
Por tudo isso, faz-se importante o estudo e a pesquisa da capoeira como
patrimônio cultural imaterial da nação, a fim de esclarecer os pontos
relevantes sobre o assunto e, sobretudo, a classificação da capoeira como
elemento brasileiro que engloba arte, luta, dança, musicalidade, expressão
corporal e desenvolvimento social. (BRAGA e SALDANHA, p. 2 e 3).

O paralelo que quero fazer entre a capoeira e o funk a partir da perspectiva de


Bourdieu seria a ideia de uma cultura que, pelo fato de ser proveniente de classes sociais
mais baixas dentro de uma estrutura social, e também sendo uma cultura de matriz
negra em um país como o Brasil foi colonizado por Europeus brancos, encontra muito
mais dificuldades pelo decorrer de sua história de ser classificada como um símbolo que
deve ser devidamente respeitado e valorado (como já falamos na introdução a partir da
citação de Silva). E por consequência, tem muito mais dificuldade de ser inserida no
contexto escolar como uma cultura que deve ser reconhecida e estudada dentro das
instituições sociais, pois como já discuti, a escola separa os detentores de capital
cultural daqueles que não o possuem. Mas estes detentores são donos de um capital
cultural que tem valor simbólico dentro (e fora) da escola quando relacionado com
manifestações culturais específicas. A escola cobra o reconhecimento e também legitima
estas culturas específicas, podendo inferiorizar a cultura de segmentos populares, onde a
capoeira se enquadraria neste contexto, principalmente considerando que o conceito de
escola (o ensino formal) e de estado que conhecemos hoje no Brasil foi importado
pelos colonizadores europeus, fazendo com que eles legitimassem sua própria cultura
em oposição a cultura das pessoas que eles escravizavam, assim lhes conferindo poder
simbólico para legitimarem de mais de uma forma, sua cultura como superior.
Agora em oposição a capoeira gostaria de falar do canto orfeônico brasileiro e o
projeto villalobiano 8, e de como este projeto é intrinsicamente ligado com a música dita
erudita, e consequentemente, com a cultura europeia e branca (mas vem camuflado com
a ideia de identidade nacional). Tendo dito isto, ainda reforçamos que por estes fatores
estas manifestações culturais têm muito mais facilidade de se inserir no contexto escolar
e adquirir capital simbólico para sua legitimação. Como objetivo deste trabalho também
não é discorrer sobre o canto orfeônico brasileiro de forma extensa, irei trazer um trecho
do trabalho de Noronha, para trazer um panorama geral de sua história e relevância

8
O canto orfeônico é de forma geral, a prática do canto coral amador. O canto orfeônico villalobiano
trata-se especificamente de um projeto que instaurava a prática do canto orfeônico e do ensino da música
como disciplina obrigatória em escala nacional.
19

social:

No Brasil, após a Revolução de 30, Villa-Lobos foi convidado pelo


interventor paulista João Alberto de Lins e Barros a discutir seu plano de
educação musical. [...]
Em 1932 tornou-se obrigatório o ensino do Canto Orfeônico nas escolas do
Rio de Janeiro. Para tal foi necessária a criação de um centro de formação de
professores que os capacitasse a ministrar a nova disciplina. Criou-se então a
SEMA, Superintendência da Educação Musical e Artística, como parte da
Secretaria de Educação e Cultura do Distrito Federal. Sob o comando de
Villa-Lobos, a SEMA tinha em três pontos centrais as diretrizes pedagógicas
da prática orfeônica: a disciplina, o civismo e a educação artística. [...]
As propostas orfeônicas de Villa-Lobos se mostraram úteis aos ideais do
governo getulista. Desde o início desse seu trabalho orfeônico, os propósitos
nacionalistas já estavam fortemente presentes como cerne de sua pedagogia
musical. O Guia Prático, escrito por Villa-Lobos para servir de material de
referência à prática do canto orfeônico, trazia o interesse focado nas canções
infantis, no folclore, em hinos e canções de cunho patriótico, além da música
erudita.
Heitor Villa-Lobos defendia o forte controle por parte do Estado em relação
às atividades ligadas à educação e à cultura. Este controle visava à ideia de
valorização da “verdadeira cultura nacional”, que o levou à busca do
elemento folclórico e ao propósito de defender a música brasileira “genuína”
e de “valor”, ameaçada pela “baixa qualidade” da música estrangeira que
invadia o país. A referência à música popular como algo de caráter comercial,
o que embutia uma conotação pejorativa, era explícita. A música popular era
vista como uma ameaça à música erudita nacionalista, como algo que
representava a confusão e a desordem de uma cultura urbana crescente. Em
oposição a essa “barbárie”, o folclore era considerado como fundamento da
formação da música brasileira. Era um ponto central usado por Villa-Lobos
em defesa da música nacionalista. Ele via no uso do folclore uma maneira de
levar a cultura que realmente tinha valor às massas, uma forma de elevar o
nível cultural do povo. (NORONHA, 2009, p. 2 e 3).

A visão de folclore deste movimento se baseava nas ideias românticas dos


folcloristas europeus do século XIX, que extraíam da cultura popular elementos
escolhidos para compor o “universo simbólico da nação”. Essa concepção do folclore
como a “autêntica” música brasileira, algo ligado à origem rural, livre da influência
“maléfica” da cultura popular urbana mostra um recorte, uma seleção do material - pelo
que é eleito e pelo que é excluído - que deixa transparecer o ponto de vista da cultura
hegemônica (NORONHA, 2009, p. 3). Dentro desta própria ideia de autenticidade, ela
carrega um conceito de hierarquização, de como uma cultura pode ter “realmente” valor
em oposição a uma outra cultura, no caso a música popular versus a música erudita
nacionalista neste caso especificamente.
Aqui observo em contraposição a capoeira, a facilidade que esta cultura, pelo
fato de que seus detentores e apreciadores terem um grande acumulo de capital não
somente cultural, como econômico, simbólico e social, consegue se inserir na
20

instituição escolar e paralelamente adquire o poder simbólico que a escola concede para
as culturas inseridas dentro dela desta forma. Assim perpetuando o posicionamento dos
grupos dentro desta estrutura social, e também mantendo a ideia de valoração de uma
cultura específica dentro do contexto escolar. A filosofia do canto orfeônico villalobiano
deixa claro esta ideia de valoração de uma cultura específica dentro da escola em
detrimento a outra, por isso ela é um ótimo exemplo de como isso pode perpetuar a
legitimação e o reconhecimento de uma cultura pelo decorrer tempo dentro de uma
sociedade e ao mesmo tempo afetar negativamente a imagem de outras culturas.
Tendo discutido como a escola pode servir para perpetuar as desigualdades
sociais, termino este capítulo com dois trechos do artigo de Dayrrel que discorrem sobre
as instituições sociais:

...agências clássicas de socialização, como veremos no caso da escola e do


trabalho, se mostram frágeis, não sendo uma referência de valores e normas.
Destas, a única instituição que continua tendo forte referência formativa é a
família. Mas nenhuma delas, no contexto de uma sociedade em mutação,
oferece certezas e seguranças como no passado. Como lembra Melucci
(1996), as seguranças de que necessitamos devem ser construídas por nós
mesmos.
(DAYRREL, 2002, p. 121).

A escola se realiza como uma provação, uma “chatice necessária” para um


credenciamento que tem um peso relativo no mercado de trabalho. Já para
outros, a experiência escolar carrega um sentido negativo, contribuindo para
reproduzi-los na condição de subalternos. (DAYRREL, 2002, p. 123).
21

CAP 2: O FUNK E A INSTITUIÇÃO ESCOLAR

O objetivo deste capítulo, depois da discussão sobre o conceito de capital


cultural de Bourdieu e sobre a aceitação e o mantenimento, ou a negação e a repressão
de certos gêneros musicais pelo decorrer do tempo, é falar especificamente da relação
da história funk carioca com a teoria de Bourdieu e a instituição escolar.
Como pontua Vianna é imprescindível uma breve história da música americana
para que se entenda o que acontece nos bailes cariocas, e por consequência compreender
o funk no Brasil (VIANNA, 2014, p. 16). A história do funk começa nos anos 30/40
quando grande parte da população negra migrava das fazendas do Sul para os grandes
centros urbanos do Norte nos Estados Unidos. O Blues, até então uma música rural,
começou a utilizar instrumentos elétricos/eletrônicos, o que acabou gerando outro estilo
musical, o Rhythm and Blues. Essa música, transmitida por famosos programas de
rádio, encantou adolescentes brancos – como veio acontecer a Elvis Presley -, que
passaram a copiar o estilo de tocar, cantar e vestir dos negros. Nasceu o Rock. Tempos
depois o R&B acabou por se misturar com o gospel. O primeiro, um estilo musical
profano, e o segundo uma música protestante negra, descendente dos Spirituals. Da
união destes dois estilos surge o Soul. Alguns dos principais expoentes do Soul são Ray
Charles, Sam Cooke e James Brown. Estes músicos até usavam gestos e frases típicos
de pastores em suas apresentações, deixando claro a influência da música gospel em seu
trabalho. Nos anos 60 o Soul foi um elemento importante para o movimento pelos
direitos civis que ocorria nos Estados Unidos, como podemos observar pelo título e
também pela letra da música de James Brown “Say it loud – I’m black and i’m proud”.
Perto dos anos 70, o Soul acabou por se tornar um termo vago, sinônimo de “black
music”, perdendo seu caráter revolucionário do começo da década, passando a ser
encarado por alguns músicos negros como mais um rótulo comercial. Foi nessa época
que a gíria funky aparece dentro da cena musical como diz Vianna:

Foi nessa época que a gíria “funky” (segundo o Webster Dictionary, “foul-
smelling;offensive”) [Tradução do autor: Mal cheiroso, ofensivo] deixou
de ter um significado pejorativo, quase o de um palavrão, e começou a ser um
símbolo de orgulho de negro. Tudo pode ser funky: Uma roupa, um bairro da
cidade, um jeito de andar e uma forma de tocar música que ficou conhecida
como funk. (VIANNA, 2014, p. 16).

Porém, logo após o surgimento deste estilo, o autor também diz que:

Como todos os estilos musicais que, apesar de serem produzidos por e para
22

uma minoria étnica, acabam conquistando sucesso de massa, o funk também


sofre um processo de comercialização, tornando-se mais “fácil”, pronto para
o consumo imediato. (VIANNA, 2014 p.17).

Desta situação surge a música Disco 9, a qual tomou conta das pistas de dança de
todo o mundo e da black music norte americana por volta de 77/78. Dayrrel resume esta
breve história do funk americano da seguinte forma, também se referindo ao rap, o qual
discutirei logo em sequência:

Esses dois estilos possuem uma mesma origem – a música negra americana –
, que incorporou a sonoridade africana, baseada no ritmo e na tradição orais.
Eles são herdeiros diretos do soul que, depois de ser a trilha sonora dos
movimentos civis americanos da década de 1960 e um símbolo da
consciência negra, perdeu essas características revolucionárias com a sua
massificação. O funk radicalizou o soul, empregando ritmos mais marcados e
arranjos mais agressivos, mas o funk também sofreu um processo de
comercialização, com a remoção de sua base cultural, tornando-se uma
música mais digerível do grande público. (DAYRREL, 2002, p.125).

Agora, para chegar ao funk no Brasil, também falarei brevemente sobre a


história do hip-hop e do rap. Enquanto a música disco alcançava o auge do seu sucesso,
no Bronx, o distrito negro/caribenho localizado na parte norte de Nova York, a cultura
hip-hop surgia. No final dos anos 60 um disc-jockey10 chamado Kool Herc (apelido de
Clive Campbell) trouxe da Jamaica para os Estados Unidos a técnica dos famosos
“sound systems”, nome que se dava as equipes de som jamaicanas, onde nos anos 50 em
Kingston, capital da Jamaica, DJ’s carregavam caminhões com geradores, “turntables”11
e grandes caixas de som.
Herc trabalhava em festas juntamente com seu parceiro Coke La Rock, que era o
MC12 (Master of ceremony) improvisando discursos acompanhando o ritmo da música
dada pelo DJ, este foi o início do rap. Como diz Vianna, os DJ’s do hip-hop mixam13
todos os estilos de música norte americana, mas o fundamental é o funk mais pesado
reduzido ao mínimo: bateria, scratch14 e voz. Para pontuar a diferença entre o hip-hop e

9
Musicalmente, a disco pode ser considerada, de forma um tanto grosseira, uma "europeização" do funk.
Mantém-se o groove, só que com uma batida mais reta, sem aquelas síncopes tão marcadamente negras.
Cordas em profusão ocupam o lugar dos metais em brasa. E os vocais tornam-se mais suaves, menos soul
abrindo espaço para cantoras como uma característica sutilmente operística - tanto que acabaram
apelidado de divas disco. (ESSINGER, 2005, p. 42).
10
DJ, Disc-jockey ou discotecário. O profissional que coloca os discos para as pessoas dançarem.
(VIANNA, 2014, p.97)
11
Toca discos sem alto falantes embutidos.
12
O cantor de rap/funk
13
Misturar duas ou mais músicas utilizando o aparelho mixer. O DJ que mixa bem consegue trocar de
“balanço” sem que os dançarinos percebam o momento em que uma música termina e a outra começa.
(VIANNA, 2014, p. 98).
14
A utilização do toca-discos como instrumento musical, destacando determinadas partes de uma canção
ou literalmente arranhando (daí o nome scratch) o disco. (VIANNA, 2014, p.98).
23

o rap, trago uma citação de Vianna:

“[...] nas festas de ruas do Bronx, também estão surgindo a dança break, o
grafitti nos muros e trens do metrõ nova-iorquino e uma forma de se vestir
conhecida como estilo b-boy, isto é, a adoração e uso exclusivo de marcas
esportivas como Adidas, Nike, Fila. Todas essas manifestações culturais
passaram a ser chamadas por um único nome: hip-hop. O rap é a música hip-
hop, o break é a dança hip-hop e assim por diante. ” (VIANNA, 2014, p.18).

Vianna afirma que o primeiro disco de rap é o Rapper’s Delight, e foi lançado
pelo grupo Sugarhill Gang. Ele foi um enorme sucesso de vendagem, o que possibilitou
a contratação de Afrika Bambaataa, entre outros musicistas, por vários selos
independentes. Afrika Bambaataa, em 82, com o auxílio do produtor (branco) Arthur
Baker, desenvolveu um estilo de gravar hip-hop que utiliza muito instrumentos
eletrônicos, principalmente as “drum-machines” 15 mais especificamente a TR-808 da
Rolland. Com a TR-808 e as variações dentro da própria música hip-hop, surgia o ritmo
“Miami Bass”, ritmo este que iria influenciar fortemente o funk no Brasil (VIANNA,
2014, p.19 e 20).
Tendo discorrido sobre brevemente sobre a história destes dois gêneros
imprescindíveis para a compreensão da história do funk, agora falarei sobre o início do
funk dentro do Brasil, nos bailes cariocas. Sobre a difusão do funk e do hip hop por
estes bailes, Dayrrel diz:

No Brasil, a difusão do funk e do hip hop remonta aos anos 1970, quando da
proliferação dos chamados “bailes black” nas periferias dos grandes centros
urbanos. Embalados pela black music americana, principalmente o soul e o
funk, milhares de jovens encontraram nos bailes de finais de semana uma
alternativa de lazer até então inexistente. Desenvolveram- se nos mesmos
espaços, por jovens de uma mesma origem social: pobres e negros, na sua
maioria. (DAYRREL, 2002, p.126).

Ainda sobre a relevância dos bailes, comparando a quantidade de pessoas que


atendem a eles com a quantidade de frequentadores da praia no Rio, Vianna diz:

“Hoje, segundo pesquisa que realizamos em 1987, acontecem cerca de


seiscentas festas funk (conhecidas como bailes funk) por fim de semana,
atraindo um público de mais ou menos um milhão de pessoas. Estes números
colocam o baile funk como uma das diversões mais "populares" da cidade. ”
Só a praia parece atrair, com essa freqüência, um público fiel" maior. ”
(VIANNA, 1990, p.244).

A história destes bailes começa no início dos anos 70, na Zona sul do Rio, no
Canecão, uma famosa casa de espetáculos conhecida como um palco nobre da MPB.
Esses bailes eram organizados pelo DJ Ademir Lemos e pelo animador e locutor Big

15
Bateria eletrônica.
24

Boy. (Big Boy produzia e apresentava um programa diário [menos aos domingos] na
rádio Mundial, rádio voltada ao público jovem que ia ao ar no horário mais popular da
época). Esses bailes eram chamados de “Bailes da Pesada” e reuniam cerca de 5 mil
pessoas de bairros cariocas, tanto da Zona Sul quanto da Zona Norte 16 . Os estilos
musicais que eram tocados nestas festas eram bastante ecléticos, se tocava, pop, rock,
soul; porém, Ademir tinha claramente uma preferência pelo soul e por artistas como
James Brown e Kool and the Gang, como Dayrrel também pontua na sua fala. Porém,
conforme o tempo passou os bailes no canecão tiveram um fim. Aqui coloco um trecho
do livro de Vianna onde o próprio Ademir comenta o fim dos bailes no Canecão e suas
motivações:

As coisas estavam indo muito bem por lá. Os resultados financeiros estavam
correspondendo à expectativa. Porém, começou a haver falta de liberdade do
pessoal que frequentava. Os diretores começaram a pichar tudo, a pôr
restrição em tudo. Mas nós íamos levando até que pintou a ideia da direção
do Canecão de fazer um show com o Roberto Carlos. Era a oportunidade
deles para intelectualizar a casa, e eles não iam perdê-la, por isso fomos
convidados pela direção a acabar com o baile. (VIANNA apud Jornal da
Música, 2014, p.20).

Vianna comenta em sequência deste trecho em seu livro que “intelectualizado ou


não, o Canecão passou a ser considerado um palco nobre da MPB”. Esse é um dos
pontos importantes a serem ressaltados dentro da história do funk aqui no Brasil, pois
partindo do que os próprios organizadores dos Bailes disseram, existia uma tentativa de
“intelectualizar” a casa, ou seja, o que acontecia lá não era algo que seria tratado como
intelectual na opinião do Ademir, isto em oposição a MPB, ao Roberto Carlos, e
possivelmente ao outro público que iria frequentar a casa, pontuo este fato pois
situações semelhantes a essa se repetiram na história do funk e tem origens em uma
ideia de hierarquização de culturas, hierarquização esta intrinsicamente relacionada com
o conceito de capital cultural de Bourdieu e a legitimação de uma cultura pela sua
posição dentro de uma estrutura social. Conforme eu for prosseguindo pela história do
funk ressaltarei outros momentos como este.
Continuando, com o fim dos Bailes da Pesada no Canecão eles se locomoveram
para os clubes do subúrbio (Zona Norte) do Rio de Janeiro. Big Boy havia se separado
do Ademir, porém como locutor, anunciava seus Bailes no seu programa na rádio
Mundial, que a cada dia se tornava mais influente. Os bailes da pesada também

16
Cabe dizer aqui que a Zona Norte do Rio é uma região do Rio mais pobre em oposição a Zona Sul que
é uma região mais rica, isto do ponto de vista de acumulo de capital econômico (acumulo de dinheiro).
25

aconteciam em outras cidades, como em Brasília em 74. Alguns daqueles que


frequentavam os bailes da pesada tiveram a ideia de forma suas próprias equipes de
som. Surgiram equipes como Soul Grand Prix, Furacão 2000, Uma Mente numa Boa,
Revolução da Mente entre muitas outras.
Neste meio tempo uma mudança aconteceu referente ao repertório tocado nos
bailes da pesada, aquela seleção de músicas mais eclética deu espaço para uma
predileção quase absoluta pelo Soul. Porém, como Vianna diz, as explicações do porque
isso aconteceu não são muito claras:

As explicações para a mudança do ecletismo inicial do Baile da Pesada


resultando na supremacia do Soul não são muito elaboradas. Todos os
informantes acabam dizendo que o Soul é uma música mais marcada,
portanto melhor para dançar. (VIANNA, 1990, p.22).

Por volta de 75 a equipe Soul Grand Prix, que havia adquirido muita
popularidade e fazia baile todos os dias, de segunda a domingo, desencadeou uma nova
fase na história do funk carioca, que a imprensa apelidou de Black Rio. A equipe Soul
Grand Prix começa a fazer bailes com pretensões didáticas, nas palavras de um dos
fundadores desta equipe Dom Filó diz que estão fazendo uma espécie de introdução a
cultura negra por fontes que o pessoal já conhece, como a música e os esportes
(VIANNA, 1990, p.23).
Durante as apresentações eram projetadas imagens de músicos e esportistas
negros nacionais e internacionais, além de trechos de documentários e filmes referentes
a cultura negra, como por exemplo Wattstax, um semidocumentário de um festival norte
americano de música negra.
No dia 17 de julho de 1976 uma matéria saiu no Jornal do Brasil de autoria de
Lena Frias intitulada “Black Rio: - O Orgulho (Importado) de ser Negro no Brasil”. Esta
matéria como afirma Vianna, não deixou boas recordações para aqueles que viveram o
“Black Rio”:

Paulão, dono e discotecário da equipe Black Power, afirma:

Que eu saiba, foi o Jornal do Brasil que inventou o nome Black Rio. Eu nem
sei se o meu nome estava ali naquela matéria. Eu nem sei quem é Lena Frias.
Mas o nome da minha equipe era muito forte e, de carona nessa história de
Black Rio, eu fui parar no DOPS.

Nirto, um dos donos da Soul Grand Prix, também me falou que foi preso,
junto com seu primo Dom Filó, pois a polícia achava que por trás das equipes
de som existiam grupos clandestinos de esquerda. [...]
26

[...] o próprio Nirto declarava:


Esse negócio é muito melindroso sabe? Poxa, não existe nada de político na
transação. É o pessoal que não vive dentro do soul e por acaso passou e viu,
vamos dizer assim, muitas pessoas negras juntas, então se assusta. Se
assustam e ficam sem entender o porquê. Então entram numa de movimento
político. Mas não é nada disso. .... É curtição, gente querendo se divertir.
(VIANNA apud Jornal da Música, 2014, p.24).

Este é outro ponto da história do funk carioca que merece atenção, posso aqui
apontar um dos mecanismos de repressão cultural que o estado tem para utilizar contra
manifestações culturais, e consequentemente, contra pessoas e suas posições políticas: a
polícia e o exército. Estes mecanismos podem ser utilizados da mesma forma que a
escola como forma de legitimação de um tipo de cultura ou de repressão de outra. E
reforço que a repressão cultural está diretamente relacionada com o racismo, posições
políticas e classes sociais pelos relatos acima.
Voltando a discutir a repercussão da matéria de Lena Frias, seguido a publicação
desta matéria, muitas outras surgiram trazendo visibilidade para o movimento que
acontecia no Rio, e então por causa disso a indústria fonográfica descobriu um novo
mercado em que poderia investir, um mercado que atingia centenas de milhares de
pessoas. Tendo em vista isto, esta indústria investiu nesse mercado em duas frentes, uma
primeira, onde ela fazia coletâneas de grandes sucessos dos bailes, e estas coletâneas
eram vendidas pelos nomes das equipes mais famosas. Por exemplo, o primeiro disco de
equipe foi o LP Soul Grand Prix, lançado pela WEA17 onde as equipes ganhavam uma
porcentagem dos lucros. A segunda frente que as gravadoras tomaram foi investir na
ideia de criar um soul nacional, produzido por músicos brasileiros cantando em
português. Porém, apesar dos grandes investimentos por parte da indústria fonográfica,
a maioria dos discos lançados como soul brasileiro foram um fracasso de venda, salvo
algumas exceções como os discos do Tim Maia. Vale ressaltar que nos bailes as músicas
do soul nacional não eram tocadas, pois a preferência era pelo funk e pelo soul norte
americano.
Após estes acontecimentos a imprensa acabou por se cansar da novidade da
música black e o próprio movimento andava em baixa. As equipes menores se debatiam
com a indefinição do funk, em transição para o reinado da música disco, que chegava ao
Brasil juntamente com os filmes de John Travolta. Considerando isto, a maioria das
equipes aderiu ao novo ritmo, para o desespero dos fãs de soul. Esse foi um momento

17
Representante brasileira dos selos Warner, Elektra e Atlantic.
27

raro, onde a Zona Sul e a Zona Norte do Rio de Janeiro dançaram as mesmas músicas.
(VIANNA, 1990, p.27)
Quando a moda da música disco passou, a Zona Sul volta a ouvir rock. Ouvindo
estilos como o punk, new wave e o pós punk, até que o rock brasileiro vira o estilo
favorito dos moradores da zona sul em 82. A Zona Norte continua fiel a black music
norte americana, ouvindo disco-funk e charme18. Os bailes após a baixa do movimento
demoraram a ficar lotados novamente.
Entre 83 e 85 houveram grandes mudanças na cena musical do Rio de Janeiro,
como pontua Vianna:

Uma rádio FM, até então desconhecida, chamada Tropical, começou a


divulgar os bailes e o funk em programas especializados. Os discotecários
desses programas, por volta de 83, tocavam quase 100% de charme, mas
reservavam os últimos minutos para alguns raps. A mudança foi “lenta e
gradual”: no final de 85, os mesmos programas já eram quase 100% hip hop,
apenas os primeiros minutos ficavam com o charme. Os bailes também foram
mudando do charme para o hip-hop. (VIANNA, 1988, p.61).

Desde o início dos bailes no Brasil as equipes caçavam vinis recém-lançados nos
Estados Unidos, isso em uma época em que ainda não existia CD ou internet. O
esquema era difícil e disputadíssimo. Dependia-se destes vinis para se o fazer o
diferencial de uma festa. E no meio disso, chega no Brasil o miami bass – estilo dance
americano, cujas letras eram repletas de palavrões e sexo. Apesar das letras serem em
inglês, todos sabiam do que se tratavam as músicas e não demorou para que
inventassem um jeito brasileiro de cantar elas. Os frequentadores faziam versões em
português, utilizando palavras que soassem como a letra original. Aí surgiram os
melôs19. E essa febre não perdoava ninguém, do pop ao rock (MEDEIROS, 2006, p. 15
e 16).
Em 1989, Fernando Luís da Matta – o DJ Marlboro – já era discotecário há
quase dez anos e acabara de ganhar o concurso nacional de DJs promovido pela Disco
Mix Club (DMC). O prêmio lhe garantiu uma viagem a Londres, onde disputaria a
etapa de internacional. Não ganhou, porém, teve a oportunidade de ouvir e comprar as
últimas novidades da música dance, electro e black. Comprou tudo que pode e voltou ao

18
Nome local que ficou conhecido uma variedade mais lenta de R&B. (MOREIRA, 2016, p. 16).
19
Melôs: Também conhecido como Rap das galeras, o Melo era o tipo de música que se tornou
característica no fim dos anos oitenta e início dos noventa, no qual eram feitas versões em português para
as músicas que faziam sucesso nos bailes, já que a maioria dos frequentadores não as entediam em inglês.
As letras eram sempre de muito bom humor e também marcadas pelo conteúdo sexual de forma
irreverente. Vale ressaltar também que os Melôs inicialmente nasciam de forma espontânea e só depois
eram feitas as versões produzidas pelos DJs. (MOREIRA, 2016, p. 67).
28

Brasil com o projeto de nacionalização do funk. Começava então a produção da música


eletrônica brasileira, utilizando as batidas Volt Mix (da música 808 volt mix, do DJ
Battery Brain) e Hassan (da faixa Pump up the Party, de Hassan) com letras irreverentes
em português. O resultado seria lançado no disco Funk Brasil. Este disco Funk Brasil,
lançado em 1989, trazia músicas como Melô do bêbado (música que contêm a batida
miami bass), Melô da mulher feia, Rap do arrastão, Rap das aranhas e Feira de Acari. A
faixa Feira de Acari chamou tanta atenção que fez parte da trilha sonora da novela
Barriga de aluguel, de Glória Perez, exibida pela TV Globo em 1995 (MEDEIROS,
2006, p. 16).
Ainda sobre o Funk Brasil, cabe aqui discutir sobre o porquê chamamos este
gênero musical de funk, e por que chamamos o que os americanos chamam de funk de
soul. Como comentei, conseguir discos dos Estados Unidos não era um trabalho fácil,
sendo que era difícil conseguir até informações sobre os últimos lançamentos. Essa
dificuldade de acesso a informação seria um dos motivos pelos quais os próprios
discotecários continuaram a chamar o funk de soul, quando funk era a palavra usual nos
Estados Unidos (VIANNA, 2014, p. 22). Os próprios bailes blacks eram chamados
tanto de bailes soul quanto de bailes funk. Ainda nesta linha de raciocínio trago um
trecho do livro de Essinger com uma explicação do próprio DJ Marlboro:

A gente chamava aquilo de funk porque nós vínhamos dos bailes funk, que
tocavam funk mesmo. Aí veio aquela música eletrônica que chamamos de
funk porque não havia outra denominação. Quando o o Afrika Bambaataa
veio, ele foi chamado de quê? De electro, de música eletrônica? Não. Ele
passou ali no meio daqueles funks naquele momento e a gente começou a
chamar de funk. (ESSINGER, 2005, p. 92).

Uma vez lançado o Funk Brasil, Marlboro viu que seu disco não era um
daqueles filhos bonitos que a companhia gostava de exibir em convenções. Era um
disco proscrito. Um dos produtores chegou a pedir para não ter seu nome incluído no
rótulo do LP. E também não havia verba divulgação. Apesar disso o disco bateu a marca
de 250 mil cópias vendidas (ESSINGER, 2005, p. 93).
Aqui gostaria de abrir um parêntese para discutir, uma das questões mais
importantes deste trabalho. O que faz uma manifestação cultural como um estilo
musical ser aceita por instituições sociais ou até pela indústria fonográfica? Como já
discuti neste trabalho, pouco tempo após o fim dos bailes da pesada no canecão, eles
começaram a acontecer prioritariamente na Zona Norte. Cabe reiterar que a Zona Norte
do Rio é uma região do Rio mais pobre em oposição a Zona Sul que é uma região mais
29

rica, isto do ponto de vista de acumulo de capital econômico 20. Vianna critica o fato de
que, como o hip-hop no início dos anos 90 trazia a ideia de ser uma música de
moradores da zona norte do Rio, era evitado por lugares que pretendiam atrair clientes
da zona sul. Vianna também diz que a juventude de classe média carioca esteve
envolvida durante os anos 80 com seu próprio movimento de rock, mas que isso ainda
não era motivo suficiente para recusa integral do hip-hop (VIANNA, 1990, p. 248).
Também no início dos anos 90, outro estilo de funk chamado house começava a
desfrutar de um enorme prestígio nas boates das grandes metrópoles de primeiro
mundo. E em pouco tempo, também tomou conta das boates da Zona Sul carioca.
Imediatamente as emissoras que antes dedicavam sua programação musical ao rock (e
que se recusavam a tocar hip hop) passaram a tocar house e a Rede Globo de televisão
lançou coletâneas de grandes sucessos de house (VIANNA, 1990, p. 248).
Referindo-se a este fenômeno cultural, Vianna resume aqui um dos pontos mais
importantes deste trabalho:

As acusações que antes se fazia ao Hip hop (de ser uma música pobre,
repetitiva, com “insuportáveis” ritmos eletrônicos) poderiam ter sido ativadas
também contra a house. Mas não foram. Isso prova que a aceitação de
determinado estilo musical não depende necessariamente de características
intrínsecas desse estilo (afinal, a house, ritmicamente e melodicamente, tem
muito mais semelhanças com o hip hop do que com o rock), mas sim do
contexto social e cultural onde ela acontece. No caso do Rio, a divisão da
cidade em grupos (principalmente aqueles representados por quem mora na
Zona Sul e na Zona Norte) que pretendem estabelecer entre si tantas marcas
de distinção parece também dividir a cidade em territórios musicais
excludentes, que raras vezes (como foi o caso da “febre” das discotecas no
final dos anos 70) dançaram os mesmos ritmos). (VIANNA, 1990, p. 248 e
249).

Reiterando o que Vianna disse: A aceitação de determinado estilo musical não


depende necessariamente de características intrínsecas desse estilo, mas sim do contexto
social e cultural onde ele acontece. Reforço que este é um dos pontos principais deste
trabalho, principalmente quando relaciono ele com os conceitos de estrutura social que
discutimos no primeiro capítulo.
Vianna ainda se referindo a esta divisão entra Zona Norte e Zona Sul nos dá
mais um exemplo desta dicotomia, agora falando do Funk Brasil, disco do DJ Marlboro.

Um bom exemplo desse “apartheid” musical carioca foi a trajetória do disco


Funk Brasil [...] A gravadora do disco, Polygram, não fez qualquer esforço
para divulgar seu novo produto. Na mesma época, estava sendo lançado o LP
Burguesia, do cantor de rock Cazuza, e todo o esquema promocional da
gravadora estava empenhado em vender este último disco. Para surpresa do

20
Ver capítulo 1 p.10
30

pessoal da Polygram (apenas um de seus diretores, aquele que contratou


Marlboro, acreditava que um disco de hip hop brasileiro pudesse ser
sucesso), as vendagens do disco Funk Brasil superaram por meses aquelas do
Burguesia, chegando até a superar a marca das cem mil cópias vendidas,
número que no Brasil equivale ao “disco de ouro”. Esse sucesso inédito (foi o
primeiro disco de hip hop carioca) e imprevisto não facilitou em nada na
divulgação do LP Funk Brasil. As rádios (com exceção da Manchete FM,
onde o próprio DJ Marlboro tem um programa) não tocaram suas músicas e a
televisão não gravou videoclipes com elas. Mesmo assim, nas ruas do Rio era
possível ouvir várias pessoas cantarolando a Melô da mulher feia ou a Mêlo
do bêbado, grandes sucessos do Funk Brasil. Onde essas músicas foram
escutadas? Apenas nos programas de rádio do DJ Marlboro? Nos bailes?
Então é possível existir um sucesso de massa ignorado pelos meios de
comunicação de massa? (VIANNA, 1990, p. 248 e 249).

Essa divisão e hierarquização entre classes sociais e suas manifestações


culturais, como discuti no primeiro capítulo, é o que fundamenta como a escola
perpetua a valoração de uma cultura específica, cultura proveniente daqueles que já tem
um acumulo de capital cultural, ou seja, de grupos que estão localizados dentro de uma
estrutura social em uma posição mais privilegiada que outros. E por consequência, a
valoração desta cultura acontece em paralelo com a desvalorização de outra, como
reforcei nas citações anteriores, reflexos deste fenômeno. O mantenimento e a
transferência destes capitais serve ao objetivo de manter os grupos que os detêm em
posições de privilégio dentro da estrutura social, devido a este ponto devemos sempre
nos perguntar o porquê certos estilos são facilmente inseridos dentro da instituição
escolar e outros não, sempre nos atentando as justificativas do porquê isso acontece.
Falando agora de minha própria experiência, motivos exclusivamente musicais são
muitas vezes trazidos à tona dentro da própria academia, porém, costumeiramente são
motivos superficiais, por falta de conhecimento do próprio estilo, ou motivos os quais,
por falta de coerência, poderiam se aplicar a várias músicas que são trabalhadas na
própria academia, como dizer que a música é pobre ou repetitiva, mas dizer isto sem
citar exemplos ou até analisar alguma música. Aponto que este tipo de situação é
comum, como aconteceu com hip hop e house na citação de Vianna. Então até que
ponto justificativas como estas são válidas para que exista um impedimento de analisar
ou discutir um estilo musical dentro da academia? Que justificativa é válida para que
um estilo não possa ser trabalhado em um dado contexto? Não tenho as respostas para
estas perguntas, mas são pertinentes para a discussão deste trabalho então as deixo aqui
e retorno agora a história do funk, partindo novamente de 89 do LP Funk Brasil.
Pouco tempo após o lançamento e o sucesso do LP Funk Brasil, reconhecido
como o primeiro disco de funk carioca, outros músicos começaram a lançar discos como
31

o Raphael Grandmaster, que também lançou seu LP intitulado Super Quente em 1989
(ESSINGER, 2005, p. 96). Esse e o Funk Brasil foram os discos pioneiros do Funk
Carioca. Dentro deste LP, podemos já identificar em algumas faixas, subgêneros do
funk carioca, como o “Melô do bicho” que inaugura o subgênero funk proibidão 21 os
próprios melôs que são outro subgênero sobre o qual já discuti (ESSINGER, 2005, p.
91).
Voltando a falar do Raphael Grandmaster, no começo dos anos 1980 ele
começou a trabalhar na Rádio Tropical, e enquanto fazia um dos programas da rádio
intitulado “No clima dos bailes” foi convidado para tocar na Furacão 2000, uma equipe
que não parava de crescer na cena funk. Raphael dizia que só se tocava funk
internacional, e os poucos funks nacionais que se tocavam eram uma coisa elitizada, um
grupo de amigos determinados pelo Marlboro. Era um grupo fechado, não era gente do
baile, que dançava, que saía do chão, que até brigava, e que subia no palco e cantava
(ESSINGER, 2005, p. 97).
Elevado a condição de produtor musical da Furacão, e com o objetivo de
incentivar os garotos das favelas e bairros pobres que frequentavam os bailes para
comporem suas próprias músicas, sua atenção se voltou para os festivais das galeras22
que algumas equipes como a Furacão começaram a promover com dupla intenção: para
atrair mais pessoas para o baile e para evitar as brigas entre os frequentadores, que
começavam a se tornar mais frequentes (ESSINGER, 2005, p. 98). Daí os festivais
abriram espaço para muitos novos MCs como D’Eddy e MC Galo que se tornou um dos
expoentes do que viria ser conhecido como funk/rap consciente23 (ESSINGER, 2005, p.
103).
Em 92, enquanto a violência nos bailes aumentava e a mídia estava especulando
sobre possíveis ligações entre funkeiros e o Comando vermelho ou o Terceiro Comando
– as duas principais facções criminosas que dominavam o tráfico de drogas no Rio,
aconteceu um evento que como Medeiros diz, começou a era das trevas para o funk,
esse evento foi o “arrastão” na praia do Arpoador (MEDEIROS, 2006, p.19).

21
Proibidão: Rap de contexto, funk proibido, funk de facção e funk neurótico (este último com uma linha
tênue entre o consciente e o Proibidão) são alguns dos nomes dado ao gênero que fala sobre crime, por
vezes exaltando facções criminosas. Seria a nossa versão do gangsta rap. (MOREIRA, 2016, p. 68).
22
Os festivais da galera consistiam em concursos de MCs, no qual os Djs soltavam batidas que eram
conhecidas pelas galeras, como o popular Volt Mix, e rimavam por cima. (MOREIRA, 2016, p.18)
23
Funk Consciente: Talvez um dos termos mais estranhos para designar um estilo de funk, já que, como
salientado ao longo da monografia, todo funk é consciente. Mas o termo se refere, aos primeiros funks
oriundos dos festivais da galera, com temas que abordam o pedido de paz nos bailes, ter orgulho da
favela e fazer reivindicações sociais. (MOREIRA, 2016, p.67).
32

O pesquisador e professor de comunicação da UFRJ Micael Herschmann,


analisou 125 artigos sobre o funk, publicados na mídia impressa entre 1990 e 1996. Em
o “O funk e o hip hop invadem a cena” ele aponta que em 1990 e 1991 o funk era
tratado 100% dos cadernos culturais. A partir de 1992 o funk ocupava apenas 5,2% dos
cadernos culturais e 94,8% dos cadernos locais e policiais. De 1993 a 1996 essa
diferença foi diminuindo, até atingir o equilíbrio entre as duas sessões. O divisor de
água dessa história foi o mês de outubro de 92, onde facções rivais de jovens funkeiros
se encontraram na praia do Arpoador e reproduziram ali, os rituais dos bailes de briga24.
O episódio ficou popularmente conhecido como arrastão. Mal interpretado como um
levante de assaltantes, o fato ainda agregou ao termo funkeiro uma conotação de
violência (MEDEIROS, 2006, p.53).
Por volta de 93, em paralelo com a demonização do funk o ritmo ganhava
simpatia com aparições na televisão. Sobretudo no Xuxa Park lançado em julho de
1994, onde o DJ Marlboro era atração fixa e sempre levava um MC para se apresentar.
Os “baixinhos” da Xuxa começaram a subir os morros para encontrar seus novos ídolos
do funk melody25. Isso foi a gota d’água para classe média. Incomodou tanto que 1995
foi organizada um CPI26 municipal (resolução nº127, de 1995) para investigar a suposta
ligação entre o funk e o tráfico de drogas no Rio de Janeiro (MEDEIROS, 2006, p. 55).
Como resultado da CPI os bailes foram proibidos, mas ao contrário do que a
classe média em pânico pensava, dentro das comunidades era o único lugar que não
podia haver disputas ou brigas. Seguido disto, políticos conscientes de que o os bailes
funk eram a única opção de lazer para quase 2 milhões de jovens de comunidade
começaram a regulamentar os bailes para garantir sua realização. Surge uma nova lei, nº
1.058 (1995). A nova lei não garantiu que os eventos acontecessem dentro das
comunidades, apenas em clubes, e com isso empurrou os bailes para territórios neutros,
onde tudo seria permitido. Neste território neutro os bailes de briga continuavam a
acontecer da mesma forma que aconteciam no episódio do “arrastão”, porém agora

24
Bailes de briga ou Bailes de corredor: Realizados nos clubes [...] o público se dividia, Lado A e Lado B,
com um grande corredor vazio no centro, onde um guerreiro de cada facção se enfrentaria com golpes que
misturam capoeira e a luta livre. (MEDEIROS, 2005, p.57).
25
Funk Melody: Foi o nome como ficou conhecido o Latin Freestyle no Brasil, uma variante do Miami
Bass que fazia uso mais abusivo de melodias e letras românticas com arranjos mais preenchidos
harmonicamente. O termo logo ficou vago e incorporou nomes de outros estilos diferentes como rap
romântico ou funk-brega, se reinventado e ganhando outras características diferentes do Freestyle
(MOREIRA, 2016, p.67). Um de seus primeiros e principais expoentes é a dupla Claudinho e bochecha, a
cena do funk melody crescia em paralelo a estes acontecimentos.
26
Comissão parlamentar de inquérito
33

chegando as vias de fato. Mesmo com regras impostas pelas equipes e punições severas
a quem as infringisse era quase impossível que aqueles que lutavam saíssem ilesos. E a
imprensa estava lá, na hora de saída dos bailes e na porta dos hospitais para relatar e,
até, exagerar o número das vítimas – muitas vezes fatais (MEDEIROS, 2006, p. 56 e
57).
Para o DJ Marlboro, a generalização que a imprensa fez nesse período foi
fundamental para criar um estigma sobre o funkeiro – cujos resquícios permanecem até
hoje. Medeiros em seu livro traz um relato de Marlboro sobre o tema:

Existiam dois ou três bailes no Brasil que tinham corredores e tinham briga.
O resto dos bailes não tinha. A mídia colocou como se fossem todos os bailes
do Rio de Janeiro e aquilo passou a ser uma identidade. Furacão 2000 e ZZ
disco é que faziam aquilo. E a mídia não colocou, não identificou, não deu
nome aos bois, não separou o joio do trigo. Não. Ela englobou como se todo
mundo fosse aquilo e deu identidade àquela galera marginalizada que passou
a existir a partir daquele momento.

Na época, a mídia tinha que identificar e falar quem é que estava fazendo
aquele tipo de baile para que eles fossem punidos. Mas não. E as autoridades
por sua vez também não tomaram a mesma atitude que tomaram contra os
pitboys. Não tinham os pitboys que quebravam as boates na zona sul? Não
foram lá e identificaram? Não botaram policiamento? Não garantiram a
diversão de quem queria se divertir? Então porque o funk não teve o mesmo
tratamento? Por que não colocou policiamento e foi lá e identificou quem
eram os arruaceiros e puniu como foi feito nas boates? Não. Aí fecham os
bailes, porque é mais cômodo, né? É diversão dos pobres, então ‘vamos
fechar essa porra. Não vamos garantir diversão de ninguém não. Vamos
englobar que é todo mundo e vamos fechar esse negócio. Acabou’. Foi o que
aconteceu. (MEDEIROS, 2005, p. 57 e 58).

Esta citação de Marlboro traz claramente muitos dos pontos deste trabalho,
fazendo paralelos de situações semelhantes que aconteceram na Zona Sul e na Zona
Norte, porém, foram tratadas de formas diferentes pelo estado pelas motivações
exemplificadas na própria citação. Motivações estas que são fundamentadas pelo
acumulo de capitais de uma classe social específica em oposição a outra.
Conforme o tempo passava, em 1998 os bailes de corredor já não existiam mais.
Não existe consenso sobre o porquê isto aconteceu. Verônica Costa, que era casada com
o dono do Furacão 2000, Rômulo Costa, conta que aos poucos foi tentando minar o
clima da briga fazendo bailes de coreografia. Na época o É o Tchan estava fazendo
muito sucesso com a dança da boquinha da garrafa. Ela conta:

Ninguém acreditou que fosse dar certo. Mas eu fazia 10% montagem de
coreografia e 90% de corredor. Logo as mulheres dançavam tanto que os
homens se perdiam e já ficavam olhando. Daí eu aumentei a coreografia para
20% do baile. Fui aumentando. Ai 70% dançavam e 30% já estavam
dançando com as meninas. E devagar, devagar o baile todo começou a
34

dançar. [...] Os meninos começaram a não querer mais brigar pra não suar.
[...] Aí começou um preconceito contra os brigões, a gente começou a fazer
os MCs voltarem e os bailes de corredor se dissolveram. (MEDEIROS, 2005,
p. 65 e 66).

Porém, segundo DJ Marlboro o fim dos bailes de corredor veio depois que os
donos das equipes mais beneficiadas foram punidos:

O que acabou com o Lado A/Lado B do funk foi a punição dos responsáveis.
Eles foram presos, aí acabou. O corredor parou, aí o funk voltou novamente a
ser ponto de encontro para dançar e se divertir. O que já devia ter sido feito
no início quando só havia dois bailes, e não quando isso estava generalizado.
(MEDEIROS, 2005, p. 66).

Com o fim dos bailes do corredor em 1998, houve crescimento de dois


subgêneros dentro do funk carioca, o funk irreverente 27 e o proibidão. Este é um
fenômeno sobre o qual o DJ Marlboro discorre no livro de Medeiros:

O funk foi bode expiatório de tudo que era de errado que acontecia na cidade.
Era o modo conveniente de pessoas descarregarem todo o preconceito que
elas tinham contra o preto, o pobre e o favelado. E essa perseguição e esse
medo das pessoas ouvirem o que o funk cantava empurraram o funk para
dentro do gueto. O funk era a favela cantando sobre o asfalto, se você
observar. O Rap da felicidade (Cidinho & Doca) foi a última tentativa de
diálogo com o asfalto. Depois ficou a favela cantando a realidade da própria
favela. Aí vieram as músicas pornográficas e as músicas de proibidão.
(MEDEIROS, 2005, p.69).

Cabe aqui dizer que o termo proibidão surge da mídia, que ao tomar
conhecimento deste subgênero que era conhecido como rap de contexto, o apelidou de
proibidão. (MEDEIROS, 2005, p.69) O primeiro funk proibidão que chamou atenção da
mídia e do grande público foi o “Rap do Comando Vermelho” (ESSINGER, 2005 p.
229).
Em pouco tempo, a mídia e a opinião pública puseram o funk proibidão e o funk
consciente dentro do mesmo saco. Isso só contribuiu para reforçar o preconceito contra
o funk e o distanciar cada vez mais do reconhecimento como movimento cultural.
Opinião pública e polícia se voltaram contra a produção cultural do morro. Duda do
Borel, Mr. Catra28 e até Cidinho & Doca foram intimados a prestar declarações sobre o
conteúdo do seus funks e acusados de apologia ao crime. Nada ficou comprovado, mas
o estigma em torno deles e dos funkeiros em geral permanece (MEDEIROS, 2005 p. 69

27
Funk Irreverente: Também chamado de funk sensual, pornográfico ou erótico, este subgênero abusa de
letras bem-humoradas que já viam desde os Melôs, na maioria das vezes regado a uma boa dose de
erotismo e marcado pelo duplo sentido. (MOREIRA, 2016, p.67).
28
Funkeiro, cantor e compositor que surgiu na década de 90. Um dos grandes nomes do funk no Brasil.
35

e 70).
Há um limite tênue entre apologia e crônica da realidade. E a origem social e
geográfica destes compositores está 100% ligada a essa interpretação. (MEDEIROS,
2005 p. 69 e 70) Mr. Catra comenta sobre o tema:

Ninguém está incitando ninguém. Ninguém vira bandido por causa de funk.
O funk é uma crônica mesmo. [...] O que acontece é que as pessoas ainda não
se acostumaram a conviver com a realidade dos outros, tá ligado? [...] Funk é
cultura. Então não tem que ser com o Ministério da Justiça, tem que ser com
o Ministério da Cultura. [...] todos os movimentos são tratados pelo
departamento de cultura e o funk não. O funk é tratado pela justiça. Que
coisa, não? (MEDEIROS, 2005, p. 69 e 70).

Se algumas músicas de Catra tem letras polêmicas com refrões como “Mata!
Mata! Mata!”, por outro o lado o Rock sempre descreveu a violência também. É o caso
de The End gravada pelo The Doors em 1967, em que Jim Morrison canta ao final
“Kill! Kill! Kill”. Se “kill” significa “mata”, então qual é a diferença? Por que o funk
carioca faz apologia e o rock americano não? (MEDEIROS, 2005, p. 69 e 70) Catra
ainda traça outro paralelo:

Há pouco tempo aqui no Brasil fez sucesso aquela música Cop Killer29, hã?
Tocava pra caramba nas rádios e quer dizer ‘assassino de policial’. Vários
sons gringos que a gente consome, que tocam pra caramba nas rádios, falam
sobre isso. Aí você faz uma música em português, a rádio vai lá e te censura.
É o maior esculacho. (MEDEIROS, 2005, pg. 71).

Marlboro também discorre sobre o tema:

Eu acho muito mais apologia o pessoal da classe média que glamouriza essas
músicas de proibidão do que o próprio garoto que faz. Porque o garoto que
faz está contando a verdade do que ele vive. (MEDEIROS, 2005, p. 71 e 72).

Marlboro traz aqui a reflexão de que, compor proibidão é a maneira encontrada


por um segmento de funkeiros para acabar com sua invisibilidade social (MEDEIROS,
2005, p. 71 e 72). Em 1998 também surgem os bondes30, mas para compreendermos
como eles surgiram temos que discutir um evento que aconteceu em 1996 no Coroado,
um dos locais onde aconteciam bailes funk na Cidade de Deus. Próximo ao Coroado
existia o Country Clube da Praça Seca, onde se faziam bailes de corredor de muito
sucesso, fazendo com que o Coroado ficasse muito vazio. Isso até que o DJ Duda teve a
ideia de durante um baile vazio lá, anunciou que iria produzir quem levasse uma letra ao

29
Cop Killer foi um grande sucesso mundial, gravado pelo rapper americano Ice-T, que nos Estados
Unidos foi censurada e lhe rendeu uma investigação pelo FBI (Federal Bureau of Investigation). Aqui foi
executada livremente nas rádios. (MEDEIROS, 2005, p.71).
30
Aliança entre galeras. (MOREIRA, 2016, p. 21)
36

palco. Deize Maria Gonçalves estava lá, e resolveu mostrar uma de suas músicas Hilda
Furacão. Medeiros ainda diz que este talvez seria o momento na história onde aconteceu
a grande virada feminista na história do funk, pois por um bom tempo, o funk havia
deixado as mulheres em segundo plano, sendo o funk reflexo de uma sociedade
machista. Antes desse evento no Coroado as aparições das mulheres eram esporádicas,
como a da adolescente Monique Furacão, que gravou a Melô da Vadia no disco
Funkmania, produzido por Marlboro em 1993, e depois desapareceu (MEDEIROS,
2005, p.75 e 76).
Deize então se uniu com outras quinze meninas da Cidade de Deus e formou o
Bonde do Fervo, inspirada na letra de Hilda Furacão. Em sequência surgiu outro bonde
chamado Bonde das Bad Girls que rivalizava com o Bonde do Fervo. Essa competição
foi até os palcos do Coroado, dando origem a um duelo de rima entre estes bondes.
Logo, essa competição ganhou fama, inspirando o surgimento de vários outros bondes.
Foi o início do Bonde dos Putão (hoje Bonde do Tigrão 31), Bonde do Vinho e Bonde dos
Carrascos. A força feminina no funk não ficou restrita ao Bonde do Fervo e ao Bonde
das Bad Girls. Em resposta ao Bonde dos Putão, um outro grupo de meninas formou o
Bonde das Putanas. Também nessa época surgem alguns dos grandes nomes do funk
carioca como Tati Quebra Barraco e a Gaiola das Popozudas, grupo onde Valesca
Popozuda era a vocalista (MOREIRA, 2016, p.77 e 78).
A maior polêmica que envolve as MCs da Cidade de Deus, Deize e Tati, é o
conteúdo erótico de suas letras. E sobre isso em seu livro, Medeiros traz uma fala de
Denise Garcia, autora do documentário Sou feia mas tô na moda, que fala das mulheres
no funk:

As pessoas criticam por medo. Se fossem umas meninas loirinhas do Leblon


cantando as mesmas coisas, elas seriam as nossas Spice Girls [...]. As pessoas
cobram letras obviamente políticas. Particularmente eu acho extremamente
político uma mulher dizer ‘a porra da buceta é minha’[32]. Muito mais do que
dizer ‘no meu barraco cai água dentro’. Convivo com elas a três anos e sabe o
que elas me dizem? ‘A gente passa a semana inteira com água caindo dentro
da nossa casa, tu acha que no final de semana nós vamos cantar sobre isso?
Quem vai dançar? [...] a gente não quer ouvir isso, a gente quer se divertir’. O
problema é que a diversão é extremamente revolucionária. Isso aí chateia.
(MOREIRA, 2016, p.84)

31
O Bonde do Tigrão, lançado pela Furacão 2000 no cd Tornado Muito Nervoso 2, veio acompanhado de
algumas das personalidades no CD de compilação da equipe. Entre elas estava MC Beth com a música
Tapinha e MC Naldinho em parceria com a MC Beth, com a música Dança da motinha. (MOREIRA,
2016, p. 21).
32
Em A porra da buceta é minha, [...] Deize Tigrona dispara sem rodeios sua revolta contra um homem
que começou a difamá-la porque ela se recusou a dormir com ele. (MEDEIROS, 2005, p. 84)
37

Em 1999 surge outra CPI para investigar as denúncias de violência, apologia ao


crime e às drogas, e pornografia no interior dos bailes, essa lei ficou conhecida como a
“Lei do Funk”. Um dos resultados dessa CPI, foi em 29 de maio de 2000, a criação da
Lei Nº. 3410 que dizia, entre outras coisas, que a realização dos bailes passaria a
depender da autorização da autoridade policial e que se deveria manter a presença de
policiais militares do início ao fim do evento. A “Lei do funk” foi complementada pela
Lei Nº. 4264 de 30/12/2003, sancionada pela governadora Rosinha Garotinho. Esta lei,
além de regulamentar o baile funk como atividade cultural de caráter popular, apresenta-
se como avanço por ser a primeira lei que trata o baile funk como um evento cultural
vinculando à Secretaria da Cultura e não à de Segurança Pública como até então
acontecia (GUEDES, 2007, p. 58 e 59).
Nessa mesma época, em paralelo ao funk irreverente e o proibidão, não podemos
nos esquecer das outras produções do movimento como o caso do funk melody, que
produziu artistas de importância como MC Leozinho com Se ela dança eu danço e MC
Andinho com Já é Sensação (MOREIRA, 2016, p. 23).
Em 2008 surge um novo subgênero do funk em outro lugar que não o Rio de
Janeiro (onde todos os outros subgêneros surgiram). Em São Paulo, surge o funk
ostentação33. O primeiro funk ostentação foi criado pelo MC Bio G3 com sua música
Bonde da Juju. O sucesso que o Funk Ostentação viria a ter, seria decorrente, também,
pelo enfraquecimento de outro gênero musical e movimento de suma importância nas
periferias de São Paulo: o Hip-hop. Outro fator seria através da ascensão da Classe C,
que começa a querer consumir bens que outrora não eram possíveis e assim, através da
celebração dessa ascensão reproduz esse contexto na sua expressão artística
(MOREIRA, 2016, p. 24).
Junto com essa nova temática, inspirada em alguns raps americanos, no qual se
fala constantemente sobre marcas de carros, roupas, bebidas, dinheiro e mulheres,
surgiram os videoclipes de funk. O primeiro videoclipe de funk ostentação a ser
produzido foi o do MC Boy dos Charmes com a música Megane, produzida por
KondZilla. A receptividade foi muito boa e logo ter um videoclipe começou a se tornar
necessário para poder lançar uma música. Assim, o Funk Ostentação começou a crescer
e se popularizar a ponto de fazer alguns MCs trocarem de estilo, como o caso do MC

33
Funk Ostentação: Provavelmente um dos únicos que não tenha outra designação. O funk ostentação
nas suas letras exalta nomes marcas de luxo, dinheiro e mulheres. (MOREIRA, 2016, p. 68)
38

Daleste que cantava Proibidão e o do MC Menor do Chapa, funkeiro carioca que


também cantava Proibidão (MOREIRA, 2016, p. 24 e 25).
A partir de 2013 o gênero foi perdendo força e adeptos, dando espaço para o
velho estilo irreverente. Moreira explica em seu trabalho que neste mesmo período
surge um novo subgênero, que aparece devido a este retorno ao funk irreverente,
subgênero este chamado de funk putaria: 34

Por alguns, este “novo” funk tem sido chamado de funk ousadia, mas como
já dito, nada mais são do que um novo nome atribuído a algo que já existia
anteriormente, porém que foi levado a uma sexualização extrema que o
melhor nome que se encaixa tem sido Funk Putaria. Neste tipo de funk,
notamos o total uso explícito de letras pornográficas atreladas as mais belas
melodias românticas do Funk Melody (como MC Livinho, Na ponta do pé),
as vezes sobre paródias de músicas da Disney (como MC Tati Zaqui com a
música Eu vou e MC Livinho, com Picada Fatal), ou ainda sobre a forma de
rap que sempre permeou a história do funk (como MC TH, com Tipo
Ginecologista e MC Smith, com Apaixonado). (MOREIRA, 2016, p. 24 e
25).

Tendo discutido sobre a história do funk e suas correlações com a teoria de


Bourdieu e a escola como instituição social, irei agora propor ideias de como podemos
trabalhar com o funk dentro da escola.

34
Funk Putaria: Por uns chamados como funk ousadia ou sensual, o funk putaria, diferentemente do
irreverente, fala explicitamente sobre sexo em suas músicas. (MOREIRA, 2016, p.68).
39

CAP 3: PROPOSTAS

Como já discuti nos capítulos anteriores, a instituição escolar pode criar


impedimentos referente ao estudo e a prática do funk carioca na sala da aula por uma
miríade de razões. Considerando isto, o intuito deste capítulo é discutir formas de lidar
com estes entraves que como docentes e discentes podemos encontrar no âmbito do
ensino formal. Então, como ponto principal, proporei simplesmente que dentro da sala
de aula o funk seja tratado como qualquer outro estilo musical, procurando fugir destes
preconceitos e estigmas que a instituição escolar traz para o funk e para seu estudo
dentro da sala de aula.
A ideia é analisar o estilo e criticar o que deve ser criticado, elogiar o que deve
ser elogiado, considerando seus aspectos históricos, sociais e culturais como já
problematizamos anteriormente. Tudo isto em oposição a uma proibição completa do
estilo na sala de aula como acontece em muitas instituições, ou até de uma aceitação
sem restrições de outros estilos que as vezes se inserem no contexto do ensino formal
contendo os mesmos “problemas” que foram os motivos do funk ter sido proibido.
Dentro disto posso, considerando este ponto principal, pensar em outras ações que se
ramificam desta ideia de trabalhar este gênero como qualquer outro, como por exemplo:
1 - Fazer um levantamento de repertório, levando em conta o conhecimento e o
reconhecimento de subgêneros dentro do funk carioca (algo que muitos músicos e
instituições de ensino fazem com inúmeros estilos que desgostam ou acham “ruins”,
porém dizem que devem conhecer pois é algo importante musicalmente). No capítulo 2
elenquei os vários subgêneros do funk carioca para facilitar esta pesquisa, um dos
grandes pontos que podem ser discutidos aqui é até que ponto informações
exclusivamente musicais definem um gênero ou até que ponto este gênero é definido
mais pela parte da letra ou até pelo contexto histórico em que ele surgiu ou que ele se
manteve pelo decorrer do tempo. Isso inclui também fazer:
2 - Uma análise das letras e uma reflexão de como, por exemplo, trabalhar os
funks proibidões dentro de sala de aula, onde o conteúdo muitas vezes se refere ao
crime e a facções criminosas, algo que teria todo o sentido em ser discutido dentro de
uma sala de ensino médio considerando que é um conteúdo extremamente rico e atual.
Por exemplo, como relacionar o funk “Faixa de Gaza” do MC Orelha, um proibidão,
com o Rio de Janeiro e a rua Leopoldo Bulhões, a qual o compositor faz um paralelo
40

com a própria faixa de Gaza na sua canção?


Também entra aqui também discutir o conteúdo das letras lascivas provenientes
do subgênero “funk putaria”, considerando a função social que esta música serve e
fazendo paralelo com outros estilos que fazem o mesmo (muitas vezes essas letras são a
justificativa para a exclusão do funk do ambiente escolar). Por exemplo, como discutir
sobre a música “Na Ponta do Pé” do MC Livinho, um funk putaria, onde ele fala
claramente sobre estar fazendo sexo oral mas ainda trazendo a ideia do funk irreverente,
com uma letra jocosa e bem humorada?
Isso sem deixar de discutir a grande presença de letras machistas dentro do funk
carioca, outro grande motivo que as instituições de ensino proíbem o funk na sala de
aula, algo que não deveria acontecer de forma alguma, discutir esse tipo de conteúdo é
exatamente o que deve acontecer dentro de uma sala de aula, e não excluir ele do
contexto escolar por completo e fingir que ele não existe, isso sim é mais uma forma de
perpetuar este tipo de problema “por baixo dos panos” ao invés de encarar ele e propor
soluções, o que em teoria seria uma das funções do ensino formal, propor discussões
éticas e morais para criticar o machismo.
Dito isto, letras lascivas e/ou machistas com certeza não estão presentes em
todos os funks, logo isso não tem nem como ser um motivo para proibir o estudo deste
estilo na sala de aula. E também estas letras não deixam de estar presentes em outros
estilos, que muitas vezes tem passe livre dentro do contexto escolar. A ideia deste
capítulo é propor ações para que estes temas controversos nas músicas sejam discutidos
com rigor, seja tratando-se do funk ou de qualquer outro estilo que contenha algo assim,
seja Monteverdi ou Mozart, seja Vinicius de Moraes ou Chico Buarque; e ainda se
possível trazendo situações contrárias dentro do próprio funk para discussão como por
exemplo funks que tratam de temáticas feministas como os funks da MC Carol e da
Valesca Popozuda.

Mas é necessário pontuar a estigmatização promovida pela mídia, numa


negação do estilo. As críticas sobre a qualidade das letras, o machismo, a
erotização pública exagerada, etc., se são até certo ponto pertinentes, não
levam em conta que os jovens expõem na cena pública as contradições do
tecido social. Eles expressam, nas músicas e na dança, o caldo de cultura em
que estão inseridos, fruto das condições em que vivem e do acesso que
possuem aos bens simbólicos. Mais do que negar, é preciso aprofundar-se nos
seus múltiplos significados. (DAYRREL, 2002, p. 13).

Também proponho fazer uma:


3 - Análise musical do funk carioca, para podermos, como deveríamos fazer
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com qualquer estilo que estudamos, compreender seus aspectos formais, harmônicos,
rítmicos, melódicos e etc. para que possamos falar sobre eles com propriedade seja para
criticá-los seja para reproduzi-los em nossas práticas musicais. Isso se faz mister no
estudo do funk carioca por vários motivos que aparentemente são extramusicais, mas
são de suma importância para compreensão da relevância deste estilo nos dias de hoje.
Falando mais especificamente sobre o trabalho deste estilo em âmbitos práticos, trago
outro tópico que é a:
4 – Criação, uma das grandes conquistas que o funk já traz dentro de si e pode
trazer para a educação musical no ensino formal é o trabalho da criação, muitas vezes
deixado de lado no ensino da música. Dentro do funk praticamente não existem artistas
que fazem “covers” de outros artistas, de forma geral todas as músicas que os artistas
cantam são composições próprias. Além disto como diz Dayrrel referindo-se ao funk e
ao rap, afirma que são estilos democráticos:

Os dois estilos são mais democráticos, não tendo como pré-requisito a


utilização de instrumentos musicais, o domínio de habilidades técnicas
musicais nem mesmo maiores custos com a montagem e a organização dos
locais para exibição pública. Para os jovens da periferia que, geralmente, não
têm acesso a uma formação musical, o rap e o funk são dos poucos estilos
que lhes permitem realizar-se como produtores musicais e artistas. Não é sem
razão que grupos de rap e duplas de MCs tendem a cantar apenas suas
próprias músicas, sendo raro que cantem músicas de outros grupos.
(DAYRREL, 2002, p.126)

Considerando estes pontos que Dayrell levanta, posso refletir sobre a grande
gama de possibilidades que temos para trabalhar o funk carioca de formas muito ricas e
criativas dentro de sala de aula, dando liberdade para pessoas que nunca tiveram contato
com o trabalho de criação se expressarem. Isto considerando também a precariedade no
acesso de instrumentos musicais e afins no ensino formal. Como o funk é estritamente
ligado com a ideia de criação, posso fazer um paralelo com o que alguns educadores
musicais dizem sobre como a criação é, na concepção deles, uma das formas mais ricas
de trabalho com a música, como aponto nesta citação de Swanwick:

[...] a composição (invenção) oferece uma grande oportunidade para


escolher não somente como mas o que tocar ou cantar, e em que ordem
temporal. Uma vez que a composição permite mais tomadas de decisão ao
participante, proporciona mais abertura para a escolha cultural. A composição
é, portanto, uma necessidade educacional, não uma atividade opcional para
ser desenvolvida quando o tempo permite. Ela dá ao aluno uma oportunidade
para trazer suas próprias idéias à microcultura da sala de aula, fundindo a
educação formal com a “música de fora”. Os professores, então, tornam-se
conscientes não somente das tendências musicais dos alunos, mas também,
até certo ponto, de seus mundos social e pessoal. (SWANWICK, 2003, p. 68).
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Outro tipo de ação que proponho dentro da sala de aula é um:


5 – Debate. Como já pude observar anteriormente, o funk encontra dificuldades
de ser inserido dentro de sala de aula também por parte de algumas diferenças
ideológicas entre os próprios discentes. Tendo isto em vista, uma das medidas mais
eficazes em lidar com isso seria propor um debate sobre porque devemos ou não
devemos cantar ou estudar algum estilo dentro da sala de aula. Esse debate poderia
abarcar até o porquê estudamos os conteúdos que estudamos dentro da instituição
escolar tratando-se especificamente do ensino de música ou do ensino formal. Mas
principalmente, o foco deste debate seria discutir a ideia de que tipo de cultura tem
passe livre para ser estudada dentro das escolas, e que tipo de cultura teria dificuldade
em ser trabalhada dentro de sala de aula e porquê. E ver até que ponto as justificativas
que impedem uma cultura de ser trabalhada em sala de aula não são as mesmas que
poderiam se aplicar a outra que já está sendo trabalhada, ou é canonicamente abordada
dentro do contexto escolar. Por fim gostaria de propor o que seria o ponto mais
importante destes cinco, que é realizar uma:
6 – Contextualização histórica. Compreender o contexto histórico onde o funk
aconteceu e acontece até os dias de hoje, é um trabalho essencial para o entendimento
do porquê devemos discutir e trabalhar este gênero tão presente no nosso dia à dia, além
de que isto abre um espaço amplo para a interdisciplinaridade e a ligação com outros
conteúdos. Para compreensão, por exemplo, dos raps de contexto ou proibidões, que
ridicularizam a polícia e exaltam facções criminosas ou traficantes, é essencial entender
o que estava acontecendo na época e nos locais que estas músicas estavam sendo criadas
e eram cantadas. Cabe também aqui entender também que quando a mídia na época
tomou conhecimento deste gênero e o apelidou de proibidão, ela colocou outros
subgêneros de funk no mesmo balaio como funk consciente, assim dificultando mais
ainda o reconhecimento do funk como movimento cultural e reforçando o preconceito
com o funk de forma geral. A realização de uma contextualização histórica dentro da
sala de aula não é uma proposta isolada e está presente dentro de todos os outros pontos
levantados neste capítulo, pois por exemplo, para analisar um estilo a fundo nos
devemos saber que outros gêneros musicais influenciaram ou ainda influenciam ele para
que ele se tornasse o que é. E para compreendermos o surgimento de subgêneros dentro
de um estilo musical como funk, devemos entender o contexto histórico no qual o
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surgimento daquele gênero aconteceu, como pudemos observar no capítulo 2 onde


falamos brevemente sobre a origem do Soul, que para compreensão superficial da
origem do mesmo nos tivemos que discutir sobre religião, sobre eletrificação dos
instrumentos musicais, sobre o movimento pelos direitos civis nos estados unidos, sobre
racismo e até sobre Blues e R&B.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da perspectiva de Bourdieu pude observar as relações entre as


instituições sociais que reproduzem e perpetuam o capital cultural e manifestações
culturais como o funk pelo decorrer deste trabalho. Por meio destas relações e paralelos
pude observar a variedade de dificuldades que o funk encontrou em sua trajetória
histórica, seja pelo estigma criado pela mídia, seja pelas leis criadas pelo estado para
regulamentação específica do funk, seja pelo próprio preconceito fundamentado nas
mais diversas razões que já discorremos sobre. E como pude ver no primeiro capítulo,
onde discutimos como certas manifestações culturais tem mais facilidade de serem
perpetuadas pelas instituições sociais (pelo fato de serem provenientes de grupos com
grande acumulo dos capitais), tudo isto é mantido e regulado por estas instituições
sociais.
Tendo apontado isto, como de dentro de uma destas instituições, a escola
especificamente, atuando como professor ou como aluno, podemos fazer com que estes
estigmas se modifiquem de dentro para fora? Respondo esta pergunta reiterando o que
trazemos no capítulo Propostas: simplesmente trazendo o funk e abordando seus
conteúdos musicais e sua história com o mesmo rigor e respeito que fazemos com
qualquer outro gênero estudado dentro da instituição escolar, seja com a dita música
“erudita” seja com o Jazz ou a MPB.
Este trabalho é o resumo de tudo que eu defendo como educador, uma busca
pelo ideal de educação musical onde todas as músicas, principalmente estas que são
propositalmente excluídas da academia e das escolas, tenham espaço e sejam discutidas
e valoradas dentro da sala de aula, assim combatendo a cultura hegemônica e podendo
trazer outros olhares para própria história da educação musical (que não somente o
Europeu por exemplo).
Finalizo este trabalho esperando que ele possa servir de inspiração para outros
pesquisadores, professores e alunos para que estes conheçam mais sobre o funk e
entendam a importância do valor musical e simbólico de trazer manifestações culturais
como esta para dentro da escola. Espero que a educação musical observe o potencial
que o funk tem como meio para o desenvolvimento de uma escola mais criativa e
inclusiva, em oposição ao ensino musical no Brasil que, de forma geral, se volta quase
que exclusivamente para a teoria e para a técnica, estas que sozinhas não dizem nada, e
deveriam sempre ser encaradas como meios para um fim, e não serem o objetivo
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principal de uma instituição que visa ensinar o fazer musical. Fim este que deveria ser o
trabalho prático com a música, a criação, a audição e a performance; sendo que a
criação, e até a audição em muitos casos, são deixadas de lado dentro das instituições
escolares.
O funk é um gênero democrático e diretamente ligado com o trabalho de criação
(como já discutimos no capítulo três pela visão de Dayrrel), a partir disto proponho que
nós educadores o utilizemos como meio para construção de uma educação musical
melhor, uma educação musical onde o fazer musical aconteça e tenha valor simbólico
real tanto para os alunos quanto para os professores, uma educação musical que seja
realmente para todos.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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11º ed. - Campinas, SP: Papirus, 2011.

BRAGA, Janine de Carvalho Ferreira; SALDANHA, Bianca de Souza. Capoeira: Da


criminalização no código penal de 1890 ao reconhecimento como esporte nacional e
legislação aplicada. Disponível em:
http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:DVyG0V6ZAp4J:publicadireit
o.com.br/artigos/%3Fcod%3D7de47452d56d59cf+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br
Acesso em: 11 de Setembro de 2017.

DAYRELL, Juarez. O rap e o funk na socialização da juventude, Universidade Federal


de Minas Gerais, Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p. 117-136, jan./jun. 2002.

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GUEDES, Maurício da Silva. “A música que toca é nós que manda”: um estudo do
“proibidão”. 2007. 135 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Pontíficia
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MEDEIROS, Janaína. Funk carioca: crime ou cultura? O som dá medo. E prazer. São
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MOREIRA, Rafael Hermés Mondoni. É Som de Preto, de Favelado, mas quando toca
ninguém fica parado: O Funk Como Canção, 2016, Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” – UNESP Instituto de Artes.

NORONHA, Lina Maria Ribeiro de. O Canto Orfeônico e a construção do conceito de


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SETTON, Maria da Graça Jacintho. Uma introdução a Pierre Bourdieu, Disponível em:
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SWANWICK, Keith. Ensinando música musicalmente, tradução de Alda Oliveira e


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VIANNA, Hermano. O Mundo Funk Carioca, Zahar Edição Digital, abril 2014, pg.113.
VIANNA, Hermano. Funk e cultura· popular carioca, Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, vol. 3, n. 6. 1990, pg. 244-253.
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APÊNDICE
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