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05/11/2020 Voz do Deserto — TEXTO VII - EM PLENO NORDESTE TROPICAL OUVIU-SE O “CASTELO FORTE” DO LUTERO [do livr…

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Voz do
Deserto
TEXTO VII - EM PLENO
NORDESTE TROPICAL OUVIU-SE
O “CASTELO FORTE” DO
LUTERO [do livro ambulante
“Arame Farpado no Paraíso”]
“Onde se conta de como São Paulo nos derruba e de como o nordeste brasileiro
pode ser um oásis teológico”

Com todas estas coisas não tive oportunidade de passear por S. Paulo.
Depois da actuação na Sensorial Discos, o melhor que conseguimos foi,
graças à paciência e generosidade do Pr. Valter Reggiani, que não só me
recebeu em sua casa como na sua igreja, e como ainda me acompanhou
ao concerto, atravessar de carro a Avenida Paulista. E que avenida! À
falta de melhor referência, era como se estivesse numa Manhattan
tropical. São Paulo é uma cidade realmente esmagadora.

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Não se pode passar por uma cidade como São Paulo e não sentir um
atropelo. É uma cidade imensa que passa por cima de nós de uma
maneira que não saímos ilesos. Apesar de ter visto pouco, fui pisado por
muito. Quero regressar a São Paulo.

***

Na Igreja Batista Reformada de S. Paulo conheci um casal vindo do


contexto judeu messiânico. Neste caso, um rabi convertido ao
cristianismo. Em Portugal não há casos assim, que conheça. Também,
vale a pena dizer que em Portugal os poucos judeus que há pouco
acreditam em Deus. Ou seja, Portugal tem essencialmente daquele tipo
de judeus teologicamente liberais que na prática equivalem acreditar na
Torah a acreditar no Gato das Botas. Portugal é teologicamente tão
pobre que nem do povo mais privilegiado do mundo, o judeu, se
consegue sacar um centímetro de fé verdadeira.

***

Depois de S. Paulo, Fortaleza era o próximo ponto de paragem. Depois


de um Domingo preenchido na Igreja Batista Reformada de S. Paulo,
com sermão de manhã e sermão de noite, esperava-me uma noite de
pouco sono para acordar às quatro da manhã e seguir para o aeroporto
em Congonhas. O Pr. Valter Reggiani conduziu-me até lá e fui
surpreendido por uma coisa que não sabia existente, só possível numa
mega-cidade como São Paulo: trânsito antes das seis da manhã. Ainda
assim, deu para chegar ao aeroporto às seis da manhã.

Como já disse antes, sou um nabo diplomado, incapaz de me safar


sozinho. Imaginem-me a chegar a um aeroporto e ter de me
desenrascar a embarcar num avião. Cometi um erro logo aí. Em vez de
despachar a minha mala, levei-a para a zona do embarque. É verdade
que achei estranho o facto de ser o único naquela área com uma mala

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do tamanho da minha. Mas a verdade é que os senhores que tratavam


de verificar as bagagens de mão, não me impediram de entrar com
aquela mala imprópria. No raio-x apitou a minha mala porque levava
uma faquinha de manteiga, que a Rute tinha juntado aos petiscos que
escondeu na minha bagagem. Mas quando mostrei, não se opuseram.

Foi preciso chegar perto de uma pessoa com mais critério que eu, que
neste caso era o Sérgio Moura, da Editora Vida Nova (que publicava três
dos meus livros), para que entendesse que tinha cometido um erro ao
não despachar a mala no lugar certo. O Sérgio começou a averiguar se
seria necessário voltar atrás ou se daria para despachar na porta de
embarque. Disseram-lhe que a segunda seria possível. Mas o Sérgio não
evitou uma nota irónica, ao ver o senhor do aeroporto que pegar nela na
zona de embarque com um ar pouco orientado, e comentou que
provavelmente eles a iriam perder. Dito e feito. Quando chegámos a
Fortaleza, assim tinha sucedido e a mala tinha ficado no Rio, onde
fizemos uma escala (vi o Rio de Janeiro apenas à distância).

Essa questão das escalas foi outra para a qual não estava preparado.
Estupidamente prevendo as minhas deslocações com as dimensões
portuguesas, idealizei que cada viagem que fizesse dentro do Brasil fosse
directa. Burro. Em todas tive de fazer escalas. O que significava que na
prática a quantidade de voos duplicava. Para quem não gosta de voar,
isso não é animador. Valia-me agora o facto de estar acompanhado pelo
Sérgio. O Sérgio foi uma excelente companhia. O Sérgio é um
conversador muito agradável, um bom apresentador do Brasil para
quem não conhece, alguém que se oferece para resolver problemas
quando eles aperecem, entre outros aspectos. A minha estadia no Brasil
foi melhor graças ao Sérgio Moura. Recebi dele muita paciência e
generosidade.

***

Continuando na lógica saloia do português, pensava em Fortaleza como


um Algarve brasileiro: praias e turistas num certo sossego veraneante.
Céus. Fortaleza tem mais de dez milhões de habitantes. Um Algarve
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brasileiro é maior do que Portugal inteiro. Neste caso em particular, e


já do avião, dava para ver que Fortaleza é uma grande cidade mesmo. O
facto de ter praia e turistas não diz tudo sobre ela, apenas uma pequena
parte.

Eu e o Sérgio fomos recebidos pelo Pastor Cleyton Guedelha e o Pastor


Irenildo. O primeiro era o responsável pela igreja onde iria falar à noite,
a Igreja Batista de Parquelândia. O segundo é um dos melhores
contadores de história que já ouvi. Foi ele que me respondeu à pergunta
que averiguava acerca de quanta seria a população de Fortaleza
respondendo que setenta por cento eram bandidos. Depois explicaram
que na imensidão que o Brasil é, há um lugar especial para o sentido de
humor nordestino - é tão leve quanto auto-irónico.

O certo é que Fortaleza é das cidades mais perigosas do mundo e


considerada a mais perigosa do Brasil. Agradeço por me ter apercebido
melhor desta realidade posteriormente, depois de ter deixado a cidade.
No entanto, houve um momento único em que, quando o Pr. Irenildo
nos conduzia do hotel para a igreja onde daria a palestra, lhe perguntei,
ao ver uma equipa policial bem apetrechada de armas junto de um
semáforo, se era normal as autoridades envergarem sempre aquele tipo
de apetrechamento. Ao qual me respondeu que todos os dias agradecia
a Deus quando chegava a casa. O modo como disse isso foi
naturalíssimo. Depois explicou, sempre com um sorriso nos lábios, que
a coisa mais vulgar em Fortaleza era precisamente estar parado no
trânsito junto a um semáforo e aparecer uma mota com alguém armado
que aponta o revólver e leva o que quiser. Não é raro morrer gente no
processo. Como podem imaginar, o Pr. Irenildo explicou isto quando
estávamos precisamente parados num semáforo. Ele continuava a sorrir
ao contar isto. Eu também sorri mas foram os nervos que me fizeram
sorrir. Apeteceu-me dizer-lhe que ele podia ter deixado aquela história
para outra altura.

Esta é uma das características interessantes dos brasileiros. Os


brasileiros estão tão habituados à violência que só podem falar dela
com naturalidade. Não gostar de falar de um assunto é geralmente um
luxo de quem julga que o pode evitar. Os portugueses preferem não
saber do risco que correm porque talvez assim não precisem de lidar

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com ele. Para os brasileiros o risco é omnipresente e por isso talvez seja
melhor lidar normalmente com ele. Fale-se dele, ria-se dele, lide-se com
ele. O Pr. Irenildo era um contador de histórias brilhante também por
ser capaz de pegar no medo e rir dele. No fundo, também é uma espécie
de coragem.

***

O augúrio do Sérgio Moura concretizou-se. À chegada a Fortaleza a


minha mala extraviou-se. Para castigo do seu mau presságio, teve de ser
o Sérgio a tratar do assunto. Como não sou um viajante assim tão
experimentado, ainda não me tinha acontecido ter a bagagem
extraviada. O sentimento não é agradável. Ficámos na expectativa que
chegasse durante a tarde. Nada. Ficámos na expectativa que chegasse ao
início da noite. Nada. Ficámos na expectativa que chegasse durante a
madrugada. Nada. Ficámos na expectativa que chegasse na manhã
seguinte. Nada. Comecei a ficar preocupado e triste. Quando se sente
falta de casa, até uma mala faz diferença. Ainda bem que tinha a
gravação de uma entrevista em vídeo durante essa manhã - por estar
ocupado, não fiquei a deprimir no hotel.

Essa entrevista era com o Yago Martins. Nem vou tentar fazer justiça à
importância do Yago nestas linhas porque não conseguiria. Sem ele, não
teria chegado ao Brasil. O Yago é um miúdo de vinte e poucos anos que
hoje é um justo fenómeno público teológico. Com o Filipe começou há
uns anos um canal de YouTube chamada “Dois Dedos de Teologia” que,
entre outras conquistas, deu a uns quantos brasileiros um interesse
genuíno pela Igreja da Lapa e pelos meus livros. Eu, que sou estranho
para o meu país, sendo ainda mais estranho para o Brasil, sou lá
beneficiado pela característica brasileira que tenho repetido nestes
textos que é a generosidade. O Yago é casado com a Isa, que também já
conquistou o coração da Família Cavaco. Sentir os ossos do Yago num
abraço foi um dos prodígios da minha viagem ao Brasil.

A noite anterior, na Igreja Batista de Parquelândia, tinha sido uma


grande experiência. Coloquem-se no meu lugar: estou no Brasil para
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lançar três livros mas, como é óbvio, para a esmagadora maioria sou um
ilustre desconhecido. É verdade que a conferência em que estava
inserida a minha palestra contava com o Franklin Ferreira no terceiro e
último dia, facto que atraía muita gente. Ainda assim, quem se dispõe a
ouvir um portuga anónimo? Foi aí que, uma vez mais, me apercebi que
as minhas categorias portuguesas não faziam sentido no contexto
brasileiro.

A Igreja Batista de Parquelândia rapidamente se encheu, com talvez três


centenas ou mais de pessoas dentro do salão, mais um grupo de mais de
cem pessoas a assistir num pátio externo da igreja, por uma tela
instalada para o efeito. Assim em traços gerais, eu falava para quase
meio milhar de pessoas, sendo que a maior parte eram jovens. Tal e
qual: segunda-feira à noite, perto de meio milhar de jovens ouve um
pastor português desconhecido falar sobre meio milénio de um evento
no Velho Continente. Se isto dá para reproduzir na própria Europa?
Dificilmente.

Esta coisa fantástica só pôde acontecer comigo porque há um país


chamado Brasil onde se vivem coisas impensáveis no meu. Durante
décadas o Brasil foi campo missionário norte-americano e, no contexto
reformado no geral e presbiteriano em particular, houve um
investimento em receber alunos brasileiros em boas universidades
evangélicas americanas. Adicione-se a isto o inesperado vigor da vaga
calvinista dos últimos dez anos e podemos encontrar um quadro que,
sendo inesperado, está relacionado com boas práticas de um passado
recente. Para que haja casas cheias e sedentas de ouvir falar sobre
eventos europeus com meio milénio, que nem à Europa interessam, foi
feito muito esforço norte e sul-americano.

Agora imaginem o momento em que, antes da palestra começar, se


levanta o coral da Igreja Batista de Parquelândia e canta em plenos
pulmões o “Castelo Forte” do Lutero. As minhas pequenas categorias
europeias foram pelos ares. Quem no mundo está a valorizar a herança
religiosa germânica são pequenas multidões de latino-americanos. Já
pensaram nisto? A Europa bem pode deitar para o lixo o melhor do seu
passado que haverá quem no hemisfério sul o aproveitará. Mais ainda: a
Igreja Luterana alemã pode ser a anedota que é, que consiste

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basicamente em não acreditar em nada daquilo em que Lutero


acreditava, que não há problema: we will always have Fortaleza! A Europa
bem pode apodrecer em versões maricas e pós-modernas daquilo que
foi uma revolução chamada Reforma Protestante, que a América Latina,
bem acompanhada por África e Ásia, ainda agora se juntaram à festa.
Lutero está morto e enterrado na Alemanha mas eu vi-o bem vivo nas
gargantas daqueles nordestinos. Fiz um esforço para não chorar porque
tinha de falar àquela multidão logo de seguida.

***

O tema da palestra era “Ser Católico Sem Ser Romano - como a


Reforma Protestante não nos tira da Igreja Universal”. Levava receios de
que o assunto pudesse ser demasiado denso para as preferências que
associava a um poiso turístico. Uma vez mais, a minha ignorância
confirmava-se. Quando acabo de falar havia espaço para perguntas
colocadas pela assistência. A primeira não podia ser mais
surpreendente. Um jovem, aí na casa dos vintes anos, queria saber a
minha opinião acerca de casos como o do Scott Hahn.

Scott Hahn? Estão a fazer-me uma pergunta sobre o Scott Hahn no


solarengo nordeste brasileiro? Na minha geografia intelectual um caso
sobre o Scott Hahn dificilmente chegaria ao interesse do nordeste
brasileiro, quanto mais ao seu conhecimento. E para aqueles que não
conhecem o Scott Hahn, eu dou uma ajuda. O Scott Hahn foi um pastor
presbiteriano que há umas décadas se tornou católico romano. Escreveu
um livro a contar essa improvável conversão que se chama “Rome,
Sweet Home” (a versão portuguesa chama-se “Todos Os Caminhos Vão
Dar A Roma”) e desde então tornou-se uma das vozes mais destacadas a
defender sobretudo entre os protestantes norte-americanos a
necessidade da conversão ao catolicismo. Além do caso do Scott Hahn,
aconteceu na década passada também o do Francis Beckwith que era o
presidente da Evangelical Theological Society, entre outros possíveis de
mencionar.

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Como sou abençoado por ter amigos que são bons católicos romanos,
sendo um deles o Filipe Costa Almeida, há uns anos recebi dele como
presente este livro do Scott Hahn. Ou seja, quando a pergunta
nordestina chegou inesperadamente, eu estava protegido pelo facto de
ter lido o livro. E, portanto, tinha algo para dizer sobre o assunto. Não
correu mal. Mas toda a minha presunção de achar que o nordeste
brasileiro não estaria interessado no assunto “Ser Católico Sem Ser
Romano” tornou-se mais uma a ser arrasada. O nordeste brasileiro não
só está interessado no assunto como já está dentro dele. Se alguém
estiver atrasado, será o lugar de onde vim - a Europa.

Nunca em Portugal conheci outro evangélico que tivesse dentro da


história do Scott Hahn. Nesse sentido, os evangélicos portugueses têm
décadas de atraso em relação ao nordeste brasileiro. Teológica e
culturalmente falando, Portugal tem muita sopa para comer para
poder estar ao nível que encontrei em Fortaleza. Por exemplo, a Igreja
Batista de Parquelândia, que me recebeu para esta série de conferências,
tinha a sua própria escola teológica, chamada Charles Spurgeon (os
brasileiros pronunciam “espurgeon”, o que não deixa de ser engraçado).
O que isto quer dizer é que não somente o Brasil tem igrejas em cidades,
além da capital, que estão vivas em iniciativas próprias que oferecem
conhecimento bíblico profundo, como começam a oferecer um circuito
crescente em que um teólogo, vindo de fora, pode ser recebido, ouvido,
compreendido e colocado em causa pela via do diálogo. Muitas das
vozes teológicas no contexto reformado norte-americano têm passado
por Fortaleza. Há muitos lugares do mundo onde isto está a acontecer?
Duvido.

E aqui quero fazer um à parte para, de seguida, falar desta questão


associada à conversão ao catolicismo romano de evangélicos
proeminentes. Fica para o texto seguinte.

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SEP. 22 2017 #ARAMEFARPADONOPARAISO #BRASIL #PORTU #FORTALEZA 2 NOTES

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