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Os operadores jurídicos e a negação dos

direitos fundamentais no Brasil (uma


perspectiva penal)

Ricardo de Brito A. P. Freitas

Sumário
1. Introdução. 2. O caráter do direito penal.
3. Sistema penal e controle social. 4. O sistema
penal brasileiro. 5. Os operadores jurídicos e o
sistema penal.

1. Introdução
Penso que um dos temas mais impor-
tantes tanto para o direito penal quanto
para a ciência política é o que se refere aos
denominados direitos fundamentais.
Liberdade de expressão, segurança pessoal,
participação política, acesso à saúde e ao
emprego, direito a um meio ambiente sadio
e equilibrado constituem demandas, todas
elas, indispensáveis ao pleno desenvolvi-
mento da personalidade humana. A
despeito desses direitos serem hoje reco-
nhecidos como tais por considerável
parcela dos Estados, eles são, muitas
vezes, sonegados implícita ou explici-
tamente, como demonstra a realidade. Não
obstante, traduzem um programa político
de ação, significando com isso dizer que
estão em permanente construção em
decorrência da luta dos marginalizados
por uma condição de existência digna.
A centralidade do problema dos direi-
tos fundamentais é de tal ordem de impor-
Ricardo de Brito A. P. Freitas é Professor tância que produz reflexos e envolve todas
Assistente de Direito Penal da Faculdade de
Direito do Recife (UFPE), mestre e doutorando as manifestações do direito. Entre os
em direito pela UFPE, membro do Ministério chamados “ramos” do direito, o direito
Público Militar da União, ex-Juiz de Direito, ex- penal não constitui exceção, muito pelo
Professor da Faculdade de Direito de Olinda. contrário. O sistema penal, de acordo com
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a promessa garantista liberal, pretende-se jurídicos: magistrados, membros do Minis-
eficaz no sentido de proporcionar segu- tério Público e, também, em situações
rança aos cidadãos contra o arbítrio do específicas, os professores universitários
Estado, constituindo-se essa missão um da área penal. Na sociedade, talvez sejam
reflexo da concepção do Estado de direito eles os que mais se iludem sobre o seu
enquanto ordem político-jurídica autoli- papel social. De fato, impressiona o
mitada pelas normas constitucionais. divórcio entre os operadores jurídicos, a
Por outro lado, o contraste digno de maioria dos quais, é forçoso reconhecer,
nota entre a programação teórica e ideo- encontra-se comprometida, pelos menos
lógica do sistema penal e a realidade de em termos retóricos, com a proteção dos
sua atuação, problema bastante conhe- direitos fundamentais, e a realidade do
cido, permite a conclusão de que, a rigor, funcionamento do sistema penal. Todavia,
ele vem cumprindo, pelo menos no Brasil, acredito sinceramente não ser tal estado
uma dupla função, estas sim reais e de coisas inexorável.
inteiramente divorciadas dos pressupos-
tos garantistas do direito penal moderno. 2. O caráter do direito penal
A primeira dessas funções consiste no
desempenho de uma missão ideológica no Advirto preliminarmente que, para
significado emprestado por Marx à pala- efeito deste artigo, quando me refiro ao
vra. Nesse sentido forte, o sistema penal direito penal, não pretendo apenas consi-
como um todo atua com o escopo de derar um sistema de normas jurídicas que
encobrir as verdadeiras funções dele contém, sobretudo, proibições dirigidas ao
exigidas, de modo a criar uma ilusão sobre conjunto dos cidadãos sob a ameaça de um
o seu real significado. Essa ocultação, por castigo, mas sim, de modo amplo, incluir
sua vez, propicia uma maior dificuldade o que se denomina direito processual
de se entender e combater a sua perversi- penal, direito penitenciário, etc., e mais
dade intrínseca. A segunda função, de ainda, o próprio sistema penal como um
índole fortemente repressiva e discrimina- todo, na medida em que, no Estado de
tória, consiste no exercício de um controle direito, o seu funcionamento deve ser
social rigoroso pelo aparelho punitivo do pautado pela legalidade, pela observância
Estado sobre as camadas mais desfavore- rigorosa das normas jurídicas penais,
cidas da sociedade. processuais, de direito penitenciário e,
Diante de tais considerações, interessa- acima de tudo, as normas de direito
me particularmente, neste pequeno e constitucional.
despretensioso artigo, propiciar a reflexão O sistema penal – e o direito penal em
e o debate acerca do papel dos operadores sentido mais estrito –, enquanto produto
jurídico-penais em torno das funções da atividade estatal, não está e nem
desempenhadas pelo sistema penal e, ao poderia estar voltado para a consecução
mesmo tempo, estimular o surgimento de do bem comum. O direito penal não é
pistas para a superação dessa realidade. neutro porque o Estado não é. Pelo con-
Desde logo, esclareço não ter qualquer trário, o Estado desempenha as suas
pretensão de estabelecer verdades abso- funções de modo nada imparcial, ao
lutas ou conclusões definitivas. Muito pelo contrário do que proclama amiúde a
contrário, desejo apenas levantar algumas doutrina mais tradicional. Logo, sendo o
questões relativas ao funcionamento do Estado a instância produtora por exce-
sistema penal à luz do problema da lência do direito penal, é inegável que o
preservação dos direitos fundamentais, seu caráter contribuiu para determinar o
incluindo a atuação daqueles que deno- conteúdo de toda a atividade de seu
mino, para efeito deste artigo, operadores aparelho repressivo.
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A afirmação acima, deixo bem claro, medida e à sua conveniência, e manipulá-
não implica compartilhar a opinião exces- lo-ia à sua vontade, segundo seus interes-
sivamente reducionista de que o direito é ses” (Poulantzas, 1981:14-5). Aqui tam-
constituído, tanto no tocante à sua exis- bém a conclusão é inevitável: o direito
tência quanto ao significado dos valores penal é um produto da vontade da classe
que preserva, pela “estrutura histori- dominante, estando direcionado, em
camente determinada de um aparelho última análise, à reprodução das relações
produtivo, independentemente do indi- de produção. O direito penal seria, em
víduo e das classes sociais” (cf. Hespanha, ambos os casos, necessariamente, um
s.d.:23). Por outro lado, não implica igual- instrumento de dominação. Por seu turno,
mente aderir ao ponto de vista de que o os operadores jurídicos, também em
direito, por ser a “emanação normativa de ambos os casos, teriam por missão compor
um poder”, corresponde tão-somente a o sistema penal enquanto seus agentes e
um “instrumento de domínio de grupos fazê-lo funcionar como instância eficaz
sociais sobre outros” (Aguiar, 1980:XVII), de controle social visando à preservação
grupos esses que utilizam o Estado para da ordem vigente.
manter o controle das massas e, com tal O direito penal é, na verdade, um
finalidade, editam “normas que traduzem direito de classe, na medida em que o
a ideologia do poder tornando-as ativas e Estado também é um Estado de classe.
seletivas, por meio de um dever-ser Todavia, para compreender-se o caráter do
sancionador que regula, controla e pro- direito penal e das instâncias e agentes
move condutas” (Aguiar, 1980:80-1). A incumbidos de aplicá-lo, não basta tal
primeira dessas concepções é, de fato, afirmação, fazendo-se necessário entender
coerente com a visão de que o Estado não o lugar específico de determinada ins-
é uma instância neutra, voltada para o tância no quadro social global. Ao pôr em
bem comum; todavia, ela relega o direito, movimento o sistema penal mediante toda
por mais que se negue, a um plano bas- uma série de ações informadas pelo direito
tante irrelevante, na medida em que as penal e processual penal, os operadores
transformações sociais que realmente jurídicos não atuam, conforme examinarei
importam aconteceriam, em última aná- adiante, meramente na esfera da repres-
lise, no interior da base econômica. Diante são, mas também no campo da ideologia.
disso, tudo o que se eleva acima dessa base, Assim, repressão e ideologia se mesclam
e, logo, também o direito e o Estado, é puro em prol da funcionalidade do sistema
reflexo da mesma. Essa concepção, que penal. Nesse sentido, como referência
pode ser denominada “economicista- teórica para análise, mostra-se preciosa a
mecanicista”, reduz a importância do terminologia empregada por Althusser
direito, mesmo admitindo-se a “famosa” para descrever o modo como o Estado
ação retroativa da superestrutura sobre exerce o poder. Ele explica que a teoria
a base econômica, insuficiente no sen- marxista clássica identifica o Estado com
tido de abalar a sua auto-suficiência (cf. o seu aparelho repressivo. Este atua, efeti-
Poulantzas, 1981:15 e ss). Por outro lado, vamente, por intermédio da violência, ou
a segunda posição, de conteúdo niti- seja, “funciona predominantemente atra-
damente voluntarista, reduz o Estado a vés da repressão (inclusive a física) e
uma dimensão puramente instrumental, secundariamente através da ideologia”, na
o que significa dizer concebido como medida em que não existe aparelho pura-
simples espaço de dominação política “no mente repressivo. Atualmente, porém, diz
sentido de que cada classe dominante ele, para exercer o seu domínio, deter-
produziria seu próprio Estado, à sua minada classe social não se vale apenas
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dos chamados aparelhos repressivos do repressivo, mas também no cultural, ou é
Estado, mas também dos chamados apa- dado a alguém desconhecer que, para
relhos ideológicos, que “funcionam prin- ascender e destituir a nobreza e o clero das
cipalmente através da ideologia, e secun- confortáveis posições que ocupavam, ela
dariamente através da repressão, seja ela valeu-se da difusão dos valores que lhes
bastante atenuada, dissimulada, ou mes- eram caros, ampliando-os a todas as
mo simbólica” (Althusser, 1980:57 e ss). demais classes sociais? Logo, diante das
Da tese de Althusser, pode-se concluir teses de Gramsci, o funcionamento do
que tanto o aparelho repressivo do Estado sistema penal com base no direito penal
(v.g. a polícia, os tribunais, as prisões) não pode deixar de expressar os interesses
quanto os chamados aparelhos ideológicos dos setores hegemônicos da sociedade;
(v.g. faculdades de direito) são indispen- porém, o importante é que o seu funcio-
sáveis ao exercício do controle social e namento e a ideologia que o alimenta
compõem o sistema penal ampliado. Tanto passam a ser definidos também no campo
uns quanto os outros apresentam uma cultural.
dupla dimensão – repressiva e ideológica Diante do exposto, é forçoso admitir
– na sua atuação, variando apenas a que o sistema penal há muito não desem-
intensidade dessa manifestação. Essa penha apenas uma função repressiva, sem
concepção, logo se vê, admite que os dúvida a mais importante e que não deve
operadores jurídicos possam ter um ser de modo algum subestimada, mas
posicionamento para além da correlação também uma função cultural, objetivando
mecânica entre a estrutura econômica da a formação do consenso em torno de sua
sociedade/classes dominantes e o exer- atuação visando legitimar-se. Portanto, o
cício puro e simples da repressão sobre os sistema penal tem, em regra, a missão de
setores desfavorecidos da sociedade. implementar o controle social nos moldes
Outra concepção importante para a desejados pelas camadas dominantes da
compreensão do problema da natureza do sociedade; todavia, enquanto parte com-
sistema penal, incluindo os seus operado- ponente da superestrutura jurídica estatal,
res, é a formulada por Gramsci. O Estado, pode tornar-se um espaço para o combate
revela Gramsci, não reflete a dimensão do entre os diversos setores sociais na luta
domínio de classe apenas pela via da pela hegemonia. Em outras palavras, pode
coerção, mas também pela hegemonia, funcionar como instância a partir da qual,
entendida como a direção política e entre outras conquistas, pode vir a ser
cultural da sociedade. Com essa afir- alargada e aperfeiçoada a cidadania pela
mação, Gramsci amplia o conceito de concretização dos direitos fundamentais.
Porém, para que isso venha a ocorrer, é
Estado, pois, se em sentido estrito ele pode
indispensável que os operadores jurídicos
ser identificado com a sociedade política
tenham consciência do papel que desem-
(coerção), em sentido amplo engloba
penham no interior do sistema penal, bem
organicamente a sociedade política e a
como consciência da sua real natureza.
sociedade civil, na célebre fórmula
“coerção + consenso”. Evidentemente, a
fórmula gramsciana mostra-se muito mais 3. Sistema penal e controle social
pertinente às sociedades de tipo ocidental Mesmo antes de conceituar, para efeito
deste século e não às do século dezoito ou deste artigo, o que se deve entender por
mesmo do século dezenove; porém, mesmo sistema penal, faz-se necessário tecer
assim, não resta dúvida que, no passado, algumas considerações sobre o controle
o domínio da burguesia sobre as demais social por ele exercido no Brasil e as
classes sociais não se deu apenas no plano peculiaridades dessa intervenção.
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O controle social é inerente a toda e do Ministério Público, funcionários do
qualquer estrutura de poder. Histori- sistema penitenciário etc. (Zaffaroni &
camente, pode-se perceber com facilidade Pierangeli, 1997:70).
as diversas formas mediante as quais os Em todas as partes, o sistema penal é
grupos sociais mais poderosos se impuse- motivo de preocupação dos estudiosos do
ram aos mais débeis e implementaram problema penal, sobretudo porque, em
com sucesso o controle da conduta dos contraste com os postulados garantistas
integrantes dos setores desfavorecidos da clássicos, inclusive no âmbito das demo-
sociedade. Entre as diversas formas de cracias ocidentais, “o controle penal dos
controle social, pode-se mencionar a indivíduos e da sociedade, ao invés de
religião, a educação, a família etc., e, ainda, restringir-se, se expande, como demonstra
o sistema penal. Como forma de controle o atual aumento da população carcerária,
social, o sistema penal possui grande depois de um período de diminuição,
importância, talvez não toda aquela enquanto delineam inquietantes tendên-
imaginada pelos operadores jurídicos, mas cias autoritárias” (Baratta, 1985:44).
certamente muito maior do que supõem Porém, independentemente da sua expan-
alguns, principalmente porque, no Brasil, são além dos limites suportáveis, a própria
convivem, lado a lado, em certo sentido natureza do sistema penal em uma socie-
até contraditoriamente, um “país” de dade de classes, como mencionei ante-
características que, em muitos aspectos, riormente, tende a fazê-lo atuar de ma-
aproxima-se das democracias ocidentais neira desvinculada de qualquer compro-
e um outro que se assemelha aos países misso com a representação e tutela dos
periféricos. O sistema penal, diante de tal interesses das camadas mais desfavore-
realidade, tanto ao desempenhar as suas cidas. Em conseqüência, o sistema penal
funções ideológicas quanto as suas fun- “se apresenta como um subsistema fun-
ções repressivas, lida com essa contradi- cional à reprodução material e ideológica
ção representada, no país, pela coexis- (legitimação) do sistema social global, ou
tência de uma minoria privilegiada e uma seja, das relações de poder e de proprie-
maioria que nada possui, a quem é negado dade existentes” (Baratta, 1985:444).
o gozo dos direitos fundamentais, o que Por outro lado, como demonstra a
representa uma situação de extrema doutrina com base nos dados oriundos da
injustiça, sobretudo comparando-se o moderna criminologia crítica, o sistema
Brasil às nações do mesmo porte. penal promove uma “criminalização
Em razão das características peculiares seletiva dos marginalizados, para con-
da formação social brasileira, o sistema ter as demais” (Zaffaroni & Pierangeli,
penal institucionalizado é, além de funda- 1997:78), por meio do “etiquetamento”.
mentalmente punitivo, francamente Em outras palavras, não há propriamente
discriminatório. um “desviado”, mas sim “um processo
Pode-se conceituar o sistema penal de desviação ou criminalização, com
como “controle social punitivo instituciona- base em processos de definição e sele-
lizado, que na prática abarca desde que se ção desde os grupos de poder” (Bustos
detecta ou supõe detectar-se uma suspeita Ramírez, 1987:17).
de delito até que se impõe e executa uma Além disso, a seletividade do sistema
pena, pressupondo uma atividade norma- penal não se limita à seleção (“etiqueta-
tiva que cria a lei que institucionaliza o mento”) dos desviados, mas inclui igual-
procedimento, a atuação dos funcionários mente a seleção de bens e interesses que,
e define os casos e condições para esta de algum modo, interessam aos setores
atuação”, incluindo a atividade desen- hegemônicos da sociedade (cf. Baratta,
volvida pelos policiais, juízes, membros 1985:444).
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Como produto direto da seleção dos façam parte dos organismos estatais
“clientes” do sistema penal e dos bens ou de organizações econômicas pri-
jurídicos dignos de proteção, é gerada uma vadas legais ou ilegais” (Baratta,
situação como a que temos no país, onde, 1985:444-5).
de acordo com o censo penitenciário Apenas por exceção um indivíduo
nacional realizado pelo Ministério da pertencente aos estratos superiores da
Justiça (1994), 95% dos presos são pobres sociedade pode vir a ser alcançado pelo
e 85% não tiveram condições de contratar sistema penal. Isso ocorre quando ele põe
defensor. Por sua vez, o censo peniten- em perigo a própria sobrevivência do
ciário de 1995 revela que 49,3% dos presos sistema, colocando em risco, com essa
cumprem penal devido, basicamente, à atitude, a própria hegemonia daqueles que
prática de duas espécies de delitos: roubo detêm o poder. É precisamente o que
e furto (http//mj.gov.br./censo). É para acontece nas hipóteses de contestação
esse público e para esses crimes que o política ao sistema por todos aqueles que
sistema penal funciona. Explica-se, assim, integram os próprios setores sociais
porque não é absolutamente hegemônicos (cf. Zaffaroni & Pierangeli,
“uma casualidade que a imensa 1997:78).
maioria dos prisioneiros nos cárceres
pertençam aos setores sociais mais 4. O sistema penal brasileiro
desfavorecidos da população, que a Se o sistema penal, enquanto instru-
principal atividade da polícia esteja mento de controle social institucionali-
também dirigida a esses setores e zado também presente nos países centrais,
que, conseqüentemente, eles sejam o sofre as críticas assinaladas no ponto
objeto fundamental da Adminis- anterior, bem mais grave é a sua atuação
tração da Justiça” (Bustos Ramírez, no Brasil.
1987:17). A partir da contribuição de Zaffaroni,
Por outro lado, contrastando com a pode-se definir o sistema penal em sentido
atuação efetiva do sistema penal, ao lato e em sentido estrito. Em sentido
mesmo tempo em que se procede a crimi- estrito, a sua atuação pode ser legal ou
nalização e a marginalização dos grupos ilegal. Em sentido amplo, o conceito de
desfavorecidos da sociedade, “os setores sistema penal abrange as atividades de
que na estrutura do poder têm a decisão conteúdo terapêutico ou assistencial,
geral de determinar o sentido da crimina- ideologia psiquiátrica, institucionalização
lização, têm também o poder de subtrair- de asilo de idosos etc. Essa concepção
se à mesma (de fazer-se a si mesmos menos ampliada do sistema penal é indispensável
vulneráveis ou invulneráveis ao próprio para que se possa aquilatar a realidade da
sistema de criminalização que criam)” atuação dessa instância de controle social
(Zaffaroni & Pierangeli, 1997:75). Assim, estatal.
na prática, o sistema penal cuida de A característica mais notável do siste-
reprimir apenas os setores mais desfavo- ma penal brasileiro talvez seja a tendência
recidos e débeis da sociedade, não obstante a atuar, boa parte das vezes e sistemati-
saber-se que camente, à margem da legalidade, sem se
“os comportamentos socialmente submeter a controles legais eficazes de
negativos estão difundidos em todos contenção do arbítrio. Em face dessa
os estratos sociais e as violações mais característica, revela-se insuficiente o
graves dos direitos humanos acon- conceito de sistema penal que não englobe
teçam por obra de indivíduos per- atividades ilegais, implícitas ou explici-
tencentes aos grupos dominantes ou tamente admitidas ou toleradas pelo
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Estado. Caso se deseje entender a especifi- condição dos cárceres, revelada pela
cidade da atuação do sistema penal ausência de condições mínimas de higiene,
nacional, não basta concebê-lo como uma alimentação adequada, segurança, assis-
forma de controle social instituciona- tência jurídica e médica eficiente etc.
lizado que atua com base na lei (apesar
da importância de tal conceito), mas 5. Os operadores jurídicos
precisa-se alargá-lo para incluir ações e o sistema penal
ilegais por ele promovidas ou admitidas
Entre os funcionários que atuam no
tacitamente. Nesse sentido, o sistema
sistema penal, são os policiais que exer-
penal há de ser concebido também como
cem, na realidade, o papel de maior relevo
uma forma de controle social que não
no processo de seleção da população
apenas tolera mas também muitas vezes
criminosa, não importando o que a lei e
estimula certas ações proibidas pela lei,
as aparências dêem a entender a respeito.
inclusive pela Constituição, porque
É no subsistema penal que estão concen-
“não se pode ignorar que formam
trados os maiores poderes no tocante à
parte do sistema penal – inclusive
viabilização das tarefas exigidas ao
em sentido limitado – os proce-
dimentos contravencionais de con- sistema penal por toda a sociedade. São os
policiais que exercem, na maior parte do
trole de setores marginalizados da
população, as faculdades sanciona- tempo, o verdadeiro poder. Na sua atuação,
tórias policiais arbitrárias, as penas costumam muitas vezes tornar letra morta
sem processo, as execuções sem pro- o discurso garantista tradicional que
cesso etc” (Zaffaroni & Pierangeli, forma o senso comum da maioria dos
1997:70). operadores jurídicos, tais como juízes e
Quando se considera o funcionamento membros do Ministério Público. Diante da
do sistema penal nacional, pode-se obser- atuação do subsistema policial, magis-
var que ele constitui um importante fator trados e membros do Ministério Público
de desprezo aos direitos fundamentais. comportam-se, em boa parte das vezes, de
O sistema penitenciário, por exemplo, modo extremamente cauteloso. Como
cumpre a “relevante” função de sele- assinala Zaffaroni, “por regra geral, as
cionar para a reincidência os autores dos agências judiciais preferem não ter conflito
crimes patrimoniais, assegurando a sua com as não judiciais, dado que as reco-
desviação permanente “mediante um nhecem mais poderosas”, lembrando,
processo de seleção e condicionamento inclusive, que tais conflitos representam
criminalizante”, no qual, com base em indesejáveis choques de interesse com o
estereótipos, “lhes atribuem e exigem esses poder executivo (cf. Zaffaroni, 1989:130).
comportamentos, lhes tratam como se Em conseqüência do poder que possuem
comportassem dessa maneira e os olham na prática, os subsistemas não judiciais do
e instigam a todos a olhá-los do mesmo sistema penal, sobretudo o policial, “têm
modo, até que se obtenha finalmente a poderes para impor penas, violar domi-
resposta adequada ao papel atribuído” cílios e segredos de comunicações...”, além
(Zaffaroni, 1989:137-8). Por outro lado, o de privar as pessoas de sua liberdade
subsistema penitenciário “lhe lesiona a (Zaffaroni, 1989:130).
auto-estima em todas as formas imaginá- Além de sua debilidade política, con-
veis: perda de privacidade e de seu próprio tribui para enfraquecer o poder dos
espaço, submissão a inspeções degra- operadores jurídicos das agências judiciais
dantes etc.” (Zaffaroni, 1989:140). Soman- o processo de domesticação intelectual por
do-se a tudo isso, tem-se a precária eles sofrido e que é promovido pelo
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próprio sistema. Em regra, esses profissio- apenas os magistrados, representa para
nais mostram-se rigorosamente alheios eles pouco menos que o desacato puro e
aos problemas extrajudiciais, declarando- simples.
se com orgulho neutros e apolíticos. A burocratização da atividade judicial,
Mostram-se muitas vezes fascinados pela por sua vez, é reflexo desse comporta-
pompa e pelas homenagens que apenas mento dos operadores jurídicos e tem
disfarçam a sua submissão. Como bem como conseqüência debilitar ainda mais
percebe Dallari, o seu poder. Impõe-se observar o fato de
“existem casos em que os inimigos que esse comportamento débil e, ao mesmo
da magistratura independente [po- tempo, pretensamente onipotente dos
deríamos acrescentar do Ministério operadores jurídicos é altamente fun-
Público independente] agem aber- cional e desejável para o próprio sistema
tamente contra ela, mas há situações em razão de suas caraterísticas e dos fins
em que a destruição dessa indepen- a que persegue.
dência é feita com disfarces mais ou A força do subsistema policial, contu-
menos sofisticados, podendo até do, não é devida apenas à maior força do
assumir a aparência de homenagem poder executivo em relação ao judiciário
a juízes e tribunais” (1996:45). e nem tampouco à neutralização ideoló-
Essa situação guarda uma relação direta gica dos operadores jurídicos. Ela decorre,
com aquilo que Zaffaroni denomina conforme assinalei, das necessidades
“sinais de falso poder” permanentemente funcionais do próprio sistema penal. Há,
internalizados pelos operadores jurídicos efetivamente, uma série de fatores a
por intermédio de um processo de treina- limitar a atuação dos operadores jurídicos
mento e que se traduz em solenidades, frente aos subsistemas policial e peniten-
tratamentos monárquicos, placas espe- ciário. Nesse sentido, é de ser lembrado o
ciais ou automóveis com insígnias, sauda- papel daquilo que Zaffaroni denomina
ções militarizadas do pessoal da tropa de “fábricas de realidade” e “usinas ideoló-
outras agências etc. (cf. 1989:147). Lembra gicas”. As primeiras correspondem, grosso
ainda Zaffaroni que modo, à mídia, considerada indispensável
“a manipulação da imagem pública à legitimação do sistema penal. É ela que
do juiz pretende despersonalizá-lo e introduz o medo na sociedade de modo a
reforçar sua função supostamente justificar as funções ilegais exercidas pelo
‘paternal’, de forma a tornar oculto e subsistema policial. São exatamente essas
opaco seu caráter de operador de uma “fábricas de realidade” que lideram as
agência penal com limitadíssimo campanhas de “lei e ordem” mediante
poder dentro do sistema penal; esta uma série de estratagemas, tais como a
imagem é introjetada pelo próprio reserva de uma parcela importante de sua
operador, porque foi treinado nela, de programação ao jornalismo policial; a
modo que alimenta sua onipotência – instigação pública à prática de delitos
signo de imaturidade, próprio da (justiça com as próprias mãos, o elogio dos
adolescência – e o impede de perceber “justiceiros” etc.); a disseminação de
as limitações de seu poder; a colocação mensagens alarmistas, como por exem-
em dúvida do mesmo é sofrida como plo: “a menoridade penal é um estímulo
uma lesão ao seu ‘narcisismo treinado’, à criminalidade”, “ninguém faz nada
que é resultado deteriorante de sua para combater à criminalidade” etc. (cf.
personalidade” (1989:146). Zaffaroni, 1989:133).
É por isso que esse nível de observação Quando, diante das violências ou
sobre os operadores judiciais, a rigor não ilegalidades perpetradas pelo subsistema
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policial, os operadores jurídicos resolvem nicos, mas sim uma relativa autonomia,
intervir, deparam-se com a oposição claro está que, na atualidade, estes podem
velada ou explícita das “fábricas de vir a desempenhar um papel essencial-
realidade”, poderosas aliadas das ilegali- mente positivo. Com isso pretendo sugerir
dades cometidas. Infelizmente, muitas que aos operadores jurídicos (magistrados,
vezes a resposta dos operadores jurídicos membros do Ministério Público) e também
a essa aliança entre o subsistema policial aos professores de direito penal não está
e a mídia consiste em procurar legitimar- necessariamente reservada a missão de
se perante a população instigada contra a auxiliar acriticamente o Estado no desem-
sua atuação, o que se dá “impondo penas penho de suas tarefas repressivas e nem
‘exemplares’, usando expressões moraliza- tampouco subsidiar as classes privilegia-
doras nas sentenças que dão publicidade das no plano ideológico. Significa que
e, inclusive, procurando notoriedade podem vir a exercer o controle social em
pública com declarações autoritárias que termos minimamente violentos, de modo
freqüentemente contradizem as mais a propiciar uma melhor condição às
elementares regras do discurso jurídico camadas sociais desfavorecidas no que
convencional” (Zaffaroni, 1989:131). concerne ao exercício e preservação dos
Resgatando as considerações anterior- direitos fundamentais, em outras pala-
mente formuladas, pode-se, então, visua- vras, à obtenção da cidadania plena.
lizar não apenas o modo como se dá o Porém, para que isso se concretize, o
funcionamento do sistema penal no Brasil, operador jurídico deve evitar a armadilha
mas também o comportamento dos ope- ideológica representada pela miragem de
radores jurídicos. Estes são, sem dúvida, um sistema penal neutro, fundado (fal-
intelectuais no sentido gramsciano do samente) na legalidade e no respeito aos
termo. Para Gramsci, os intelectuais não direitos fundamentais. Ele deve compre-
agem independentemente, mas encon- ender que o controle social não se dá, na
tram-se vinculados às classes sociais prática, mediante o seu controle e su-
(essenciais) que travam a luta pela hege- pervisão, por maiores conseqüências que
monia no campo da cultura. São eles, essa conscientização traga a sua auto-
portanto, que articulam o consenso e imagem idealizada. Essa atitude pode
favorecem a hegemonia da classe social à significar um recomeço, uma conciliação
qual estão vinculados, difundindo a sua entre o operador do direito e a maioria
ideologia. Na tipologia gramsciana, há destituída de cidadania.
lugar para três espécies de intelectuais: o
intelectual tradicional, ligado a uma
determinada classe social que, no passado, Bibliografia
foi hegemônica; o intelectual orgânico
AGUIAR, Roberto A. Direito, poder e opressão. São Paulo
vinculado à classe dominante, voltado : Editora Alfa-Omega, 1980.
para a conservação das relações de poder ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do Estado. Rio
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como agente da transformação social, oggetti e limiti della legge penale. Il diritto penale
contribuindo para que as classes desfavo- minimo; la questione criminale tra riduzionismo
recidas possam vir a ser hegemônicas, e abolizionismo. In: Dei delitti e delle pene. Rivista
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