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Carta Branca a
Bordalo Dias
Trilogia
No seguimento da Carta Branca a Jorge Palma, em 2008, e a Camané em 2009,
nesta temporada o CCB optou por dar Carta Branca a Fausto Bordalo Dias.
Num concerto único e irrepetível, Fausto Bordalo Dias apresenta sete canções
de cada um dos discos que compõem a sua trilogia sobre a diáspora lusitana,
cujos primeiros dois discos, Por este rio acima e Crónicas da terra ardente, são
uma referência da música popular portuguesa.
Nas vésperas do lançamento do tão aguardado terceiro quadro deste tríptico,
Fausto propõe-se levantar a ponta do véu, dando-nos a conhecer, em antecipa-
ção, sete canções do novo disco e, em revisitação, sete canções de Por este rio
acima e de Crónicas da terra ardente.
Fausto Bordalo Dias, apologista da música e da cultura em português, compõe
cada álbum de originais como quem conta uma história, da primeira à última
canção. Dizem os seus admiradores que cada um dos seus discos devia ser es-
cutado “de guião em punho”, como quem vai à ópera.
“Por favor, leiam estes discos!”, diz o jornalista e crítico Viriato Teles.
Por este rio acima, o sexto álbum de originais de Fausto, publicado em 1982, é
inspirado nas viagens de Fernão Mendes Pinto, relatadas na sua Peregrinação.
Doze anos depois, em Crónicas da terra ardente, Fausto retoma a temática dos
descobrimentos, tendo como fonte a História Trágico-Marítima de Bernardo
Gomes de Brito. Com título ainda a anunciar, este terceiro disco versa sobre as
viagens dos portugueses por terras de África.
Trilogia
Carta Branca a Fausto Bordalo Dias
19 Junho 2010 \ Grande Auditório \ 21h \ M/12
FICHA ARTÍSTICA
Fausto VOZ E GUITARRA
João Maló GUITARRA
Miguel Fevereiro GUITARRA
Filipe Raposo PIANO
Enzo d’Aversa TECLADOS E ACORDEÃO
João Ferreira PERCUSSÕES
Vítor Milhanas BAIXO
Mário João Santos BATERIA
ALINHAMENTO
FUTURO ÁLBUM
E FOMOS PELA ÁGUA DO RIO
VELAS E NAVIOS SOBRE AS ÁGUAS
E VIEMOS NASCIDOS DO MAR
NOS PALMARES DAS BAÍAS
FASCÍNIO E SEDUÇÃO
À LUZ MAIS FRÁGIL DAS AURORAS
À SOMBRA DAS CILADAS
POR ALTAS SERRAS DE MONTANHAS
Em dois capítulos, escritos a sangue e ambição, épicos mas redimensionados para que o
homem comum não se sinta esconjurado por grandezas que lhe escapam, Fausto assumiu
o papel de cantor da Diáspora. Se fosse apenas Poesia, rimaria com “metáfora”.
Se fosse linearmente geométrica, montaria verso com “facínora” ou com “espora”.
Se fosse somente o passado de Nação a que Deus ou os donos nos conduziram – ou nos
seduziram? –, tornaria legítimo o uso concordante de “outrora”. Nada disso: a Diáspora
de Fausto é a que ainda vivemos “agora”, por mais cambiantes que se vislumbrem
no guarda-roupa, por mais febril que seja o actual mergulho nos efeitos especiais,
por mais avassaladoras se sintam as trucagens, por mais empolgante e enganadora
4 se pressinta a propaganda. Aos poucos, com arquitectura rendilhada mas honesta,
transversal ao tempo mas bem fundada nos modelos musicais desta terra que parece
servir-nos de emblema e maldição, de orgulho e asfixia, a sua casa ganha forma na
justa medida em que distribui conteúdo. Esta peregrinação particular começou há 28
anos – foi “Por Este Rio Acima”, quando a Europa ainda não tinha tomado posse. Con-
tinuou uma dúzia de anos depois, desenhando “Crónicas da Terra Ardente”, marcadas
a ferro e a Fé na nossa pele. Chegou a hora de seguir Viagem.
Quem estiver a ler estas notas já saberá, com grande probabilidade, que faz parte de
um núcleo de privilegiados. Afinal, que outra designação poderá oferecer-se aos que
se sentiram convocados para serem testemunhas, oculares e auditivas, da estreia de
nada menos de oito canções inéditas de Fausto Bordalo Dias, parte integrante do disco
que completa a trilogia da Diáspora e que não tem ainda existência física, embora já
tenha lugar reservado no cume das nossas expectativas e necessidades? Homem de
palavra e também homem da Palavra, Fausto cumpre o que prometeu, sabendo que
o seu ritmo de respiração não se compadece com contratos a prazo, mas tão-só com o
trabalho, a inspiração, o esculpir de cada canção. Sempre um valor acrescentado em si
mesmo, mas também peça fundamental para que a história corra sem outros sobressaltos
que não os do próprio enredo. Há-de levar-nos aos perfumes, à paleta e à imensidão
de África, onde tantas vezes quisemos adivinhar lezírias ou socalcos. Fixemo-nos nos
títulos que aqui vão ser desvendados: “E Fomos pela Água do Rio”, “Velas e Navios
sobre as Águas”, “E Viemos Nascidos do Mar”, “Nos Palmares das Baías”, “Fascínio e
Sedução”, “À Luz Mais Frágil das Auroras”, “À Sombra das Ciladas”, “Por Altas Serras
de Montanhas”. É todo um programa.
Para que o roteiro fique completo, estão garantidas as escalas necessárias nos episó-
dios anteriores. Todos juntos, vão mostrar-nos, de novo, como as nossas travessias não
acabam nunca, enquanto houver memória, sentimento e juízo crítico. Por este rio
acima e Crónicas da terra ardente respondem à chamada do criador que quer reunir
o individual ao colectivo, a aventura à desgraça, a conquista ao desleixo, o altivo ao
mesquinho, o sagrado ao profano, o sublime ao vergonhoso. De tudo isto se faz uma
história tão única como único é o nosso cicerone deste serão: conhecedor, sensível,
atento, capaz do realismo como da fantasia. Fausto Bordalo Dias é o melhor dos guias
que podíamos seguir – porque é tudo menos “turístico”, leviano ou efémero. Já se
adivinhava o desfecho: se o Centro Cultural de Belém quis dar-lhe “carta branca”,
Fausto encarregou-se de preencher o vazio com canções que valem como espelhos,
telescópios virados ao céu eterno, microscópios que não deixam passar despercebido
o mais ínfimo dos pormenores. Da “carta branca” fez uma “carta de marear”, onde
cabem Portugal inteiro e mais todos os portos onde pusemos pé. Talvez por isso apetece
dizer que o solstício é mesmo hoje. É mesmo agora. Porque este dia vai ficar, longo e
brilhante. Único. Boa Viagem, outra vez.
“E correram tanto avante que passaram aquela terra e viram outra mui
desassemelhada daquesta primeira, porque esta era areosa e maninha, desacompanhada
de arvores, como cousa em que faleciam as águas, e a outra viram acompanhada de
muitas palmeiras e outras arvores verdes e formosas. Tendo já passado estas caravelas
a terra de Zaara, como é dito, viram as duas palmeiras pelas quaes conheceram que alli
se começava a terra dos Negros, com cuja vista folgaram assaz. Disseram depois alguns
daqueles que ali eram, que bem mostrava o cheiro que vinha da terra a bondade do seu
fruito, estando eles no mar, lhes parecia que estavam em algum gracioso pomar, or-
denado a fim de sua deleitação. No outro dia fizeram seu caminho, e viram uma ilha,
e bem é que os Mouros pouco havia que aí estiveram, segundo pareceu pelas redes e
outros aparelhos de pescar que lhe acharam, especialmente grande multidão de tar-
tarugas. E porque será que todos não haverão conhecimento deste pescado, saiba que
não são outra cousa tartarugas, senão cágados de mar, cujas conchas são tamanhas
como escudos.”
GOMES EANES DE ZURARA “CRÓNICA DE GUINÉ”
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E FOMOS PELA ÁGUA DO RIO
“E depois que navegámos contra as partes do Meio-Dia, nas terras dos ne-
gros da Baixa Etiópia (Guiné), este rio separa a geração que se chama Azenegues, que
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são mais depressa homens baços do que pardos, do primeiro reino dos negros.
E maravilhosa coisa me parece que para cá do rio a terra é árida e seca e todos sejam
negríssimos, grandes e gordos, e para lá, seja abundante de enormes árvores e diversas
espécies de fruta e todos sejam pardos e enxutos e de pequena estatura. E quando
avistaram pela primeira vez velas ou navios, acreditaram que eles fossem grandes aves
com asas brancas que voassem de algum estranho lugar, e não vendo senão os cascos
dos navios, alguns deles julgavam fossem peixes, vendo-os assim de longe. E diziam
entre si: se estas fossem criaturas humanas, como nós, como poderiam percorrer numa
noite um caminho que qualquer um de nós não percorreria em três dias? não conhecendo
o artifício do navio.
LUÍS DE CADAMOSTO “VIAGENS DE LUÍS CADAMOSTO E DE PEDRO DE SINTRA”
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VELAS E NAVIOS SOBRE AS ÁGUAS
“Estes negros, tanto machos como fêmeas, vinham ver-me como uma mara-
vilha, e parecia-lhes coisa extraordinária ver um cristão em tal lugar, nunca dantes
visto: e não menos se espantavam do meu trajo e da minha brancura. Reparavam para
o pano de lã, reparavam para o jubão, e muito pasmavam. Têm um estranho costume
que é continuamente trazerem um lenço em torno da cabeça com uma ponta que
lhes passa de través na cara, e assim cobrem a boca e a parte do nariz: e dizem que a
boca é uma feia coisa pois continuamente deita umas ventosidades e mau fedor; que
portanto se quer coberta. E não a querem mostrar. Quase a querem, salvo o devido
respeito, comparar ao cu; e, por isso, estas duas partes devem-se cobrir.”
LUÍS DE CADAMOSTO “VIAGENS DE LUÍS CADAMOSTO E DE PEDRO DE SINTRA”
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E VIEMOS NASCIDOS DO MAR
“Estes negros Beafares são grandes ladrões; furtam e vendem muitos escra-
vos, vacas, e tudo o mais que acham. É gente vadia o mais do tempo que lhes não dá
mais que furtarem e folgarem. E acodem a este rio que é de grande trato, com muitos
escravos da própria terra. E nesta terra de Guinala se faz a maior feira que há em toda
a terra, chamada Bijorrei, na qual se juntam mais de 12 000 negros e negras, os mais
formosos que há em toda a Guiné. E vendem tudo o que naquela terra há e das cir-
cunstantes, a saber: escravos, roupa, mantimentos, vacas e ouro, que há algum e fino.
Viu-se na Guiné trazerem a vender alguns escravos destes aos nossos, e eles por res-
peito de os defenderem os não compraram; e os que os traziam e vinham vender, por
não serem descobertos, os mataram em terra. Não sei se fora bom comprá-los, porque
resultava disso receberem o baptismo e serem cristãos. Não me meto mais largo nesta
matéria, porque são casos que eu não sei determinar.”
A N D R É Á LVA R E S D E A L M A D A “ T R ATA D O D O S R I O S D E G U I N É D O C A B O V E R D E ”
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NOS PALMARES DAS BAÍAS
“Como ali acerca estava um cavaleiro que se chamava Ahude Meiman e que
queria fazer com eles alguma mercadoria de guineus que trazia cativos, dous homens
dos nossos foram levados como arreféns às tendas dos Mouros, onde eram de Mouras
mui grande parte, e das melhores daquela terra. E aconteceu, assim que os mouros
levantaram arruido uns com os outros, por cuja causa se foram das tendas, afastados
pelo campo uma grande peça, que as Mouras, esguardando naqueles dous arrefens,
pensaram de os cometer, mostrando mui grande desejo de jazerem com eles; e aque-
las que em si mais avantagem sentiam, de boamente se mostravam quejandas primei-
ramente saíram dos ventres de suas madres, e assim lhes faziam outros muitos acenos
assaz deshonestos. E vendo que os outros tinham maior sentido no temor que haviam,
pensando que o arruido daqueles Mouros era cautelosamente levantado a fim de lhes
fazer dano, elas todavia, aporfiando em sua deshonesta tenção, faziam-lhes sinaes de
grande segurança, rogando-os, que chegassem à fim do que elas queriam. Mas se isto
era enganosamente cometido ou se a natureza maliciosa de si mesma o constrangia,
fique no encargo de cada um de o determinar como lhe bem pareça.”
GOMES EANES DA AZURARA “CRÓNICA DE GUINÉ”
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FASCÍNIO E SEDUÇÃO
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À LUZ MAIS FRÁGIL DAS AURORAS
“E seguindo assim sua via, caminho de terra, disse um daqueles dos batéis
contra o capitão: — ”Não sei se vedes o que eu vejo”.
— ”E o que é que tu vês — disse o capitão — que nós não vejamos”?
— ”Vejo — disse ele — que aqueles pretos que estão naqueles medões de são cabeças
de homens, nos quaes quanto mais esguardo, tanto mo mais parecem; e se bem
esguardardes, vereis que estão bulindo.” E descobertos assim todos, de que os Mouros
mostravam grande prazer, metendo-se na água, deles até aos pescoços e outros mais
baixos, todavia desejosos de chegar aos Cristãos, como se nos tivessem em cerco, sem
esperança de socorro, acenando contra nós como homens seguros sobre coisas vencidas.
E em isto, o capitão, fez vogar os bateis o mais rijamente que ser pudesse, e que fossem
8 dar de proa entre os Mouros e saltamos entre eles, como homens que temiam pouco a
braveza de seus contrários. E como quer que a sua multidão fosse grande, em compa-
ração da pouquidade dos nossos, não voltaram porem atras, como homens em que o
medo não cobrava senhorio, tendo-se com os seus contrarios um mui grande pedaço,
no qual os Mouros receberam grande dano. Porem a fim, vendo a nossa gente a grandeza
do perigo, viram vir contra eles muitos Guineus, uns com dargas e azagaias, outros
com arcos; e tanto que foram acerca da água começaram de tanger e bailar, como
homens afastados de toda a tristeza; e nós, os do batel, querendo escusar o convite
daquela festa, nos tornamos para o nosso navio.”
GOMES EANES DA AZURARA “CRÓNICA DE GUINÉ”
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À SOMBRA DAS CILADAS
“As encostas desta aresta, viradas a Leste, levantam-se abruptamente e em
pendores súbitos de zona baixa e litoral do Mar Vermelho, atingindo rapidamente
altitudes de 2200 a 2700 metros. Ao subir esta encosta pelos secos das torrentes, con-
vertidos em caminhos na época da estiagem, encontra-se em cima o grande planalto
da Etiópia. O nome é talvez mal aplicado, porque o planalto está bem longe de ser
plano. De outro lado, todo o planalto é rasgado por fundos valeiros, de margens
abruptas e profundíssimas. Um pouco para o interior, chegando às partes mais altas
da “daga” ou terra fria, vêem-se ao claro sol dos trópicos as montanhas raiadas pelas
manchas resplandecentes da neve, que em partes pode persistir durante todo o ano.
É certo, que nas depressões fundas dos rios, na chamada “Kuala”, se volta a experi-
mentar o mais intenso e abafado calor.
CONDE DE FICALHO “VIAGENS DE PÊRO DA COVILHÔ
“E indo nós por mui boa estrada larga e chã, por onde caminhava toda a
gente que na folga connosco folgara e outra muita que detrás caminhava, deixamos
esta estrada e metemo-nos por uns matos e serras sem caminho nenhum e por aí fize-
mos ir os camelos e a nós outros todos com eles; e deixando os caminhos reais, vamos
por onde andam os lobos, porque não caminham senão cáfilas com medo dos ladrões;
e para a parte do levante, onde começam as mais bravas serras e fossas fundas descen-
dentes aos abismos, as mais que homens nunca viram nem se pode crer sua fundura.
E fomos sempre por ribeiras secas, e, de uma parte e da outra, serranias mui altas e de
grandes arvoredos de diversas nações e sem frutos as demais, e onde não havia senão
chamar por Deus, que os pecados andariam naqueles bosques ao meio-dia. E para que
nos quisesse bem encaminhar, com devoção fizemos petição a Nosso Senhor que, assim
como a Santa Helena abrira caminho para a achar, assim abrisse a nós caminho de
nossa salvação, que tão cerrado o víamos.”
P. F R A N C I S C O Á LVA R E S
“VERDADEIRA INFORMAÇÃO SOBRE A TERRA DO PRESTE JOÃO DAS ÍNDIAS”
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POR ALTAS SERRAS DE MONTANHAS
“Dando todas as naus à vela aquele dia com muito contentamento, era o mar
como um rio fazendo mil maneiras de ondas e águas, os céus formosos e adamascados,
muito para ver e maravilhar. Mas também houve prenúncio de ruim viagem, que fazía-
mos às partes da Índia, porque aqui demos com um peixe fusco e mal encarado que vía-
mos ir diante da embarcação lançando grandes refolhos de água. E numa quarta-feira
de trevas deram-nos uns mares tão grossos, com algumas bafugens que da trovoada nos
ficavam, que se rendeu o navio, dando tão secreta entrada ao mar que nunca jamais
se soube por onde. Abordados com as ilhas Terceiras, ali não pudemos chegar nem nos
atrevemos a demandar Cabo Verde, senão deixá-lo ir a seu gosto. E deixando-o ir assim
para onde os ventos queriam, nos pôs a 25 de Março em Porto Rico.”
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AO SOM DO MAR E DO VENTO
“Chegando aquela tarde a reconhecer o porto, encontramos esta ilha muito
rica com montes e bosques cheios de laranjas, limões, cidras, goiabas, papaias, mamões,
bananas e o auge de todas as frutas que são os ananases. Vinho não o dá esta terra e
em lugar deste lhes serve o tabaco de Santo Domingo a que nós chamamos erva-santa.
E não há quem o tire nunca da boca, ou dos narizes, e infinitos há que nem de ambas
as maneiras se fartam dele. Só os poderia fartar quem lhes descobrisse invenção para,
assim como o metem dentro de si por estes dois sentidos, o poderem também meter
pelos outros três, que lhe ficam privados de tanto gosto. A estes canudinhos (como
eles lhe chamam), acesos por uma ponta e metidos na boca pela outra, estão chu-
pando o fumo reprimindo o fôlego quanto podem, para que tenha tempo de andar
visitando, consolando e amezinhando todas as partes interiores. E tanta é a doçura
deste veneno que, nesta forma, tomado pelos narizes, experimentou o Padre Gaspar
Afonso também sua virtude.”
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À DERIVA PORTO RICO
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TODO ESTE CÉU
“Mas a causa do que nos haveria de acontecer era terem-se ausentado dali
todos os ventos para maior descuido nosso, e irem-nos esperar todos juntos e muito
calados, como em cilada, e aí, em desembocando, se arremassaram todos a nós. O céu
conjurado contra todos, encobriu-se com a maior cerração e escuridade que se viu,
e a fúria do temporal fez sofrer o navio tão mal ao pairo que, ficando muitas vezes
afogado dos mares o trazia de todo vencido e muito apalpado daquele trabalho.
10 E neste tempo veio um homem debaixo dizendo que já lá andava no porão uma cam-
painha tangendo como quando vai com defunto. Todos juntos de joelhos, chamando
por Nossa Senhora, não pediam outra coisa mais que remédio para as almas que da
salvação dos corpos estavam todos desconfiados. E de súbito deu o navio de meio
através nos baixos uma pancada temerosíssima.”
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NA PONTA DO CABO
“Ao outro dia, e depois que amanheceu, estava toda a praia cheia de coisas
preciosas numa confusa ordem com que a desaventura tinha tudo aquilo ordenado.
E havia gente na fralda do mar com vista espalhada pelas praias e arrecifes porque em
saindo o sol, o abrandou de sua fúria e braveza.”
O MAR PÁG. 19
“
“Carregada a nau no fundo do mar por cobiça e cuidando então que fosse
ao fundo por quão rota e aberta ia, começaram por confessar-se sumariamente a alguns
clérigos, sem tino e sem ordem, que o confessor chega a tapar a boca ao alienado
que vai gritando alto os seus pecados. E a gente do mar, por natureza inumana e mal
inclinada, embarcava em jangadas que construíam, roubando e destruindo tudo, e
defendendo as embarcações dos quais que as vinham demandar, à força das espadas
e de safanões. Foi o espectáculo deste dia o mais triste e lastimoso que se podia ver.
E aquela gente toda aos arrecifes agarrada, e que a maré enchendo os afogava, bra-
davam pelos do batel e das jangadas nomeando muitos por seus nomes, toda a noite
num perpétuo grito tamanho que penetrava os céus.”
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A CHUSMA SALVA-SE ASSIM
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OS NAVEGADOS
Por Este Rio Acima
L E T R A S E M Ú S I C A S D E FA U S T O B O R D A L O D I A S
Baseadas e inspiradas na “Peregrinação”
de Fernão Mendes Pinto
“Continuando nosso caminho por este rio acima, tudo quanto a vista alcançava
era embarcações com toldos de seda e muitos estandartes, guiões e bandeiras e varan-
das pintadas de diversas pinturas. Ali se trocam e oferecem todas as sortes de caças e
carnes quantas se criam na terra, que nós andávamos como pasmados como requeria
tão espantosa e quase incrível maravilha. Noutras embarcações vêm grande soma de
amas para crianças enjeitadas e outras, pelo tempo que cada um quiser, mulheres
velhas que servem de parteiras dando mezinhas para botarem crianças, e fazerem
parir ou não parir. Noutros barcos há homens honrados que servem de correctores de
casamentos e consolam mulheres enlutadas por morte de maridos e filhos e outras
coisas desta maneira. Em barcaças de muitas cores, com invenções de muitos perfumes
e cheiros muito suaves, vêm homens e mulheres tangendo em vários instrumentos
para darem música a quem os quiser ouvir. Na terra do labirinto das trinta e duas leis,
nesta terra toda lavrada de rios, a China, há uma tamanha observância da justiça e um
governo tão igual e tão excelente, que todas as outras, por mais grandiosas que sejam,
ficam escuras e sem lustro.”
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POR ESTE RIO ACIMA
“O meu desejo seria sair desta viagem muito rico em pouco tempo sem pen-
sar quão arriscada eu então levaria a vida, confiado nesta promessa e enganado nesta
esperança. Na cidade de Diu, preparava-se então a guerra por suspeita que se tinha
da vinda da armada do turco. Parti de Portugal na Primavera e, navegando todos os
barcos pela sua rota, cheguei ao mar da outra banda do oceano. A Índia.”
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PORQUE NÃO ME VÊS
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COMO UM SONHO ACORDADO
“Embarquei para Portugal, assim como parti, sem nada de meu, confiado
nesta esperança de que a minha Pátria me não negasse o que por meus serviços eu
cuidei que me era devido. Cheguei a salvamento à cidade de Lisboa.”
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LEMBRA-ME UM SONHO LINDO
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OLHA O FADO
“De Diu embarquei para o estreito de Meca, daqui fomos a Maçuá e daí,
por terra, ao Reino do Preste João. Passei ao Reino dos Batas e de fugida pelo Reino
de Quedá como adiante darei parte. Em Patane conheci António de Faria, capitão a
quem servi na venda da mercadoria. Fomos atacados e roubados pelo perro do Coja
Acém, temido pirata depois que Heitor da Silveira lhe matara seu pai e dois irmãos.
Por isso, Coja Acém havia prometido a Mafamede matar todos da geração de Malaca.
Em pequenas fustas, enfrentei também a grande armada do turco que bordejava na
nossa esteira com as velas quarteadas de cores e muitas bandeiras de seda.”
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A GUERRA É A GUERRA
“Ainda muito jovem vim para Lisboa onde um tio meu me pôs ao serviço
de uma senhora de geração nobre e de parentes ilustres. Sucedeu-me então um caso
que me pôs a vida em tanto risco que para a poder salvar me vi forçado a sair naquela
mesma hora de casa, fugindo com a maior pressa que pude. Indo assim tão desatina-
do, entre outros medos, e sem trabalho que bastasse para minha sustentação, decidi
embarcar-me para a Índia, ainda que com poucas ilusões, já disposto a toda a ventura,
ou má ou boa, que me sucedesse.”
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O BARCO VAI DE SAÍDA
FUTURO ÁLBUM DE ESTRANHOS LUGARES
ASSIM LEVANTADAS
E FOMOS PELA ÁGUA DO RIO
MUITO MAIS ALADAS
E FOMOS PELA ÁGUA DO RIO
PELAS ENTRANHAS DAS CAFRARIAS
EM BUSCA DAQUELA TERRA
E NASCIDAS DE OUTROS MARES
E A MARÉ FOI DE ROSAS
DE OUTROS ARES
PELA BOCA
NA CALMARIA TÃO GRANDE
E QUANDO ARREÁMOS VELAS
E ASSIM COMO FOSSE CANSADO
LANÇÁMOS FERRO
A ÁGUA VAI MUITO MANSA
E VENDO APENAS CASCOS
E O MEU CORPO SUADO
DE FEITIO
EMBALADO
CUIDARAM ENTÃO
FLUTUA E DESCANSA
QUE FOSSEM PEIXES
NUNCA ANTES TINHAM VISTO
E VIMOS COM OS NOSSOS OLHOS
QUALQUER OBRA DE NAVIO
QUE EM MARAVILHA SE
VÃO REMOS AO ALTO
OLHARAM
PÁRA DE VOGAR
UMA COR NA ÁGUA DO RIO
E OLHAM-NOS DE ESPANTO
DESVAIRADA DA OUTRA
E NÓS NESTE QUEBRANTO
DESVAIRADA PELO TOM
ACORDÁMOS EM SOBRESSALTO
ALUCINADA
SE ANDAM CAFRES PELO AR
PELO DESVAIRO DA COR
A RONDAR A RONDAR
SE UMA ERA DOCE
E A OUTRA SALGADA
TAMBÉM JULGAVAM QUE
EM ONDULANTE SABOR
OS OLHOS PINTADOS
E PINTADOS MESMO À PROA
E A COR DO OURO REPOUSA
DO NAVIO
DERRAMADO NA AREIA
ERAM VERDADEIROS OLHOS
E SABOROSA E TÃO QUIETA
E POR ESSES OLHOS
ERA A VISTA
VIA E ANDAVA
POUCO LAVADA DOS VENTOS
O NAVIO PELO RIO
SÃO INFINDAS AS GARÇAS REAIS
PAIRANDO NO ESCURO
EM VOOS MUITO ARABESCOS
ERA APARIÇÃO
QUE SÓ DO OLHAR TIVEMOS
ESTRANHA CRIATURA
UM DOCE E GRANDE REFRESCO
NA NEGRA MOLDURA
E NA AFLIÇÃO DO ESCONJURO
E EM TODO AQUELE RIO
ATROPELAM ÁGUA
ERA GRANDE
CÉU E CHÃO
A CÓPIA DE PESCARIAS
OS PAGÃOS OS PAGÃOS
DE MULTIDÃO DE
GATOS-DE-ALGÁLIA
E COBREM O AR GAFANHOTOS
PAPAGAIOS E BUGIAS
MOSQUITOS E MOSCOS
E SURGEM DO DENSO ARVOREDO
PAVÕES E PATOLAS
INCONTÁVEIS GENTES PRETAS
LIBELINHAS
DE TÃO LINDAS MULHERES
ZANGÕES
E DE GRANDE VERGONHA
BORBOLETAS
TÃO LEDAS
TABÕES
ABELHINHAS
E O PERFUME DESTA TERRA
GRALHAS
É A DOÇURA DO SEU FRUTO
GALINHOLAS
O MISTÉRIO DO SEU VULTO
14 E NO CHÃO
EM SELVA DE ARVOREDOS
ABERTOS OS GORGOMILOS
DE PALMARES
HÁ BICHAS E CROCODILOS
LARANJEIRAS
MUITO ABUNDANTES
LIMOEIROS E CIDREIRAS
DE BEIÇA LARGA
CRISTALINAS PELOS ARES
E PAPOS GRANDES
BRILHAM AS CORES DO ARCO
CELESTE DE INFINITAS MANEIRAS
E NA TAPADA
DE INFINITAS MANEIRAS
ANDAM LEÕES E LEOPARDOS
ENTRE MUITOS RUMINANTES
VELAS E NAVIOS SOBRE AS ÁGUAS
MIRABOLANTES
QUANDO AVISTARAM PELA PRIMEIRA VEZ
LONGOS FOCINHOS
VELAS E NAVIOS SOBRE AS ÁGUAS
DE “ALIFANTES”
POR MARAVILHA IMAGINARAM
QUE ERAM BRANDAS
E VIEMOS NASCIDOS DO MAR
ASAS BRANCAS
E MUITO SE ESPANTAM DA NOSSA BRANCURA
QUE VOAVAM PELAS FRÁGUAS
ENTRETANTO
VINDAS POR MAGIA
E MUITO PASMAVAM DE OLHAR COMPRAM TECIDOS DE LINHO
OLHOS CLAROS ASSIM E SAIOTES DE ODALISCAS
PALPAVAM AS MÃOS E OS BRAÇOS
E OUTRAS PARTES DEMOS OFERTAS DE BISCOITO
PORTANTO E VINHO NOSSO
ESFREGAVAM DE CUSPO MINHA PELE QUE O DELES É DE PALMEIRA
PARA VER SE ERA PROMETEM SETE ACORRENTADOS
ENFIM E UMA NEGRA
UMA TINTA P´RA MEU CONSOLO DE ESTEIRA
OU SE ERA DE ESTAMPA TÃO REQUEBRADA
UMA CARNE TÃO BRANCA LEVA A BAILA NO ANDAR
VENDO ASSIM QUE ERA BRANCO EM PERNAS DE JEITOS FELINOS
O MEU CORPO E A BRANCURA DE ENTÃO MUITO CHEIROSA
EXTASIAM ALMISCARADO ERA O SEU CORPO
E MUITO SE MARAVILHAM DE ALINHAMENTOS DIVINOS
DE TODO EM ADMIRAÇÃO LADINOS