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O FEIO NA ARTE
Ora, apesar do que diz Nédoncelle, sustentar que o Feio e o Mal só são legítimos
para realçar a excelência do conjunto, parece insuficiente até do ponto de vista estético.
Como se explicaria, então, a Beleza das obras de arte que se baseiam unicamente no
Feio? Como se explica a beleza, não da Divina Comédia, como conjunto, mas a daquela
parte mais áspera, baseada unicamente naquilo que é sombrio, feio e repugnante, que
é o “Inferno”? No entanto, das três partes do poema imortal de Dante, o “Inferno” talvez
seja a mais bela e forte. Se Dante tivesse escrito somente o “Inferno”, seu lugar já estaria
assegurado entre os maiores gênios que a Humanidade já produziu; e, no entanto, a
beleza do “Inferno” não poderia, mais, ser legitimada como elemento de contraste, como
o acorde dissonante destinado a “realçar a excelência do conjunto”.
Como se vê, o problema não é fácil. Pelo contrário: oferece tais dificuldades, que
alguns pensadores, como Hegel, por exemplo, chegam a negar a possibilidade de virem
o Mal e o Feio a se transformar em pontos de partida para a criação da Beleza. Diz ele,
falando, na Estética, a respeito do Trágico:
Isto significa que, para Hegel, um artista que lança mão do Feio e do Mal como
assunto para seu trabalho criador, está apenas revestindo a podridão com uma forma
bela, da mesma maneira que um pedreiro recobre com um túmulo bem-construído os
cadáveres decompostos que estão no seu interior.
O que nos parece excelente, aí, é essa sugestão de que a presença do Feio nas
obras de arte nos permite captar, de modo intuitivo, o sentido da vida. De fato, a vida e
o mundo não são compostos somente do partes belas, de modo que a Arte que se
preocupa unicamente com o Belo é, talvez, mais pura, mas é muito menos forte,
complexa e asperamente eficaz do que a Arte do Feio. O que leva De Bruyne a fazer sua
melhor reflexão sobre o assunto. Indaga ele, para dar, logo depois, a resposta:
“Por que o Feio nos causa esta singular mistura de sentimentos de horror,
de temor, de repulsa, de piedade, de curiosidade? É porque ele nos revela
o profundo mistério da nossa realidade complexa, porque ele nos faz
sentir, num mistério estranho, o valor da nossa vida, a miséria que nos
espreita e que contradiz tão cruelmente nossos desejos, nossas
esperanças e nossos pensamentos... Quando o Feio surge na Arte, é um
meio de... nos fazer captar de modo intuitivo, o sentido da vida.” (Loc. cit.)
Parece, portanto, que a solução do problema do Feio na Arte tem que partir daquela
ideia de representação à qual Aristóteles já se referia e que levou Kant a fazer aquela
assertiva que já citamos antes, devidamente completada por Charles Lalo: a Beleza
natural é uma coisa bela; a Beleza artística é a bela representação de uma coisa que
pode, inclusive, ser feia e repugnante, na Natureza. A Arte do Feio é Arte da Beleza tanto
quanto a Arte do Belo, é tão legítima quanto esta última. Diante dessas ásperas formas
de Arte que lidam com o Feio, o contemplador experimenta um choque, uma espécie de
fascinação misturada de repulsa, e a impressão causada por obras desse tipo é
inesquecível. A Arte do Feio como que nos reconcilia com as contradições, os crimes e
a feiura da vida, por apresentar tudo isso representado num outro universo em que aquilo
que é chaga aparece cicatrizado e domado.