Você está na página 1de 142

ANAIS

Núcleo de Estudos em Música do Brasil e América Latina

2016

1
ANAIS

I Colóquio em Música do Brasil e América


Latina/ Etnomus UFRGS

Porto Alegre, 3 a 4 de novembro de 2016

Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

PPGMUS UFRGS

Núcleo de Estudos em Música do Brasil e América Latina

2016

2
Organizador

Reginaldo Gil Braga

Arte de capa

(baseada na obra América invertida, 1943, do artista uruguaio Joaquín Torres Garcia)

Mandi Moreira

Realização

Etnomus UFRGS/ Núcleo de Estudos em Música do Brasil e América Latina

E-mail: etnomus@ufrgs.br

As pesquisas e artigos são de inteira responsabilidade dos autores

3
SUMÁRIO

I Colóquio em Música do Brasil e América Latina/ Etnomus UFRGS

APRESENTAÇÃO ........................................................................................................ 6

PROGRAMAÇÃO GERAL ..................................................................................... 7

MESA REDONDA. "Estudos em Música no Brasil e América Latina: experiências


e práticas (trans)locais"

Etnomusicologia e marginalidade – implicações para a disciplina no Brasil (e outros


contextos marginais) ..................................................... ........................................... 10
Suzel Ana Reily

Pesquisa musical: questionamentos e desafios. Uma visão a partir do Uruguai ..... 19

Ernesto Donas

COMUNICAÇÕES

Trampos, montagens e patifagens: uma etnografia musical no Campo da Tuca, Porto


Alegre ............................................................................................................................. 31

Pedro Fernando Acosta da Rosa

O Semba Angolano e o “paradigma do Ngola ritmos” ................................................ 41

Mateus Berger Kuschick

Alupandê o povo da rua: Performance, identidade e novas escutas na Quimbanda de


Porto Alegre e Conesul .................................................................................................. 50
Felipe Cemim
Percorrendo nexos entre política e memória em um fazer musical no sul do Brasil: Os
Tápes (1970/1980) e outros atores sociais na canção popular/regional politizada ....... 58
Daniel Stringini

4
Fuelles en la frontera: narrativas de acordeonistas y bandoneonistas del interior de
Uruguay ......................................................................................................................... 67
José A. Curbelo
Um estudo etnomusicológico sobre “Identidade Gaúcha” e Indústria Cultural: aportes
teórico-metodológicos para a pesquisa .......................................................................... 78
Clarissa Figueiró Ferreira
Irmãos Bertussi e o baile gaúcho: (re)criações e agenciamentos na música regional de
baile no Rio Grande do Sul ............................................................................................ 87
Fernando Henrique Machado Ávila

Ritual a la venta: la capitalización de lo inmaterial en el rito del palo volador de


Veracruz, México .......................................................................................................... 95

Héctor López de Llano

Por que estudar imigração, migração e música? Lacunas, problemas e perspectivas do


estudo etnomusicológico ............................................................................................. 104
Suelen Scholl Matter
“Quédate con mi voz": una reflexión metaperformática sobre personajes musicales de
una cantante cubana en la escena urbana de trova y canción de autor mexicana ….... 113
Cássio Dalbem Barth
Sobre vikings, donzelas, bardos e gaiteiros: alguns apontamentos sobre as relações
entre festivais "medievais" e música "celta" no Brasil ................................................ 123
Caetano Maschio Santos
Etnomusicologia aplicada e pesquisa-ação: Tocando para o Acervo Plauto Cruz,
Regional Plauto Cruz e Ação Musical ........................................................................ 132
Paulo F. Parada

5
APRESENTAÇÃO

O Colóquio visou a iniciar os diálogos acadêmicos entre o Grupo de Pesquisa


Etnomus UFRGS - Núcleo de Estudos em Música do Brasil e América Latina, criado
em 2014 e registrado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e as parcerias já
firmadas nas áreas de etnomusicologia/ musicologia e antropologia da música.

Na sua primeira edição, através da participação de professores convidados


ilustres e das apresentações de comunicações, fomentou-se o intercâmbio científico e a
formação de alunos vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Música, do Grupo
de Pesquisa Etnomus e alunos de graduação em música da UFRGS, principalmente.

Realizou-se entre os dias 3 e 4 de novembro de 2016, a mesa redonda "Estudos


em Música no Brasil e América Latina: experiências e práticas (trans)locais" com a
participação dos professores convidados Suzel Ana Reily (Unicamp) e Ernesto Donas
(UDELAR - Uruguai) e as apresentações de comunicações científicas.

Com a publicação e distribuição dos Anais do evento, contendo toda a memória


do Colóquio, pretende-se: difundir a produção acadêmica do Grupo de Pesquisa e
colaborar para a integração entre as áreas de musicologia/ etnomusicologia e
antropologia da música e dos pesquisadores individuais e coletivos de investigação
musical no chamado Cone Sul.

Para uma real troca de saberes contra-hegemônicos, tal como preconizada por
Boaventura Santos com as “epistemologias do sul”, inspirou-nos nos momentos de
planejamento, realização e avaliação do evento, como norte invertido ou, melhor, como
sul possível a obra América invertida (1943) do artista uruguaio Joaquín Torres Garcia,
slogan do Colóquio e obra base para a arte da capa destes Anais. É nosso desejo que
este Colóquio tenha sido o primeiro de muitos que ainda virão em diferentes formatos e
entrosamentos entre o Brasil e a América Latina.

Reginaldo Gil Braga

Coordenador do Núcleo de Estudos em Música do Brasil e América Latina/ Etnomus


UFRGS

6
PROGRAMAÇÃO GERAL

Quinta-feira, 3 de novembro de 2016

13:30: Abertura

14:00 – 15:30: Comunicações, sessão 1

1. Sobre vikings, donzelas, bardos e gaiteiros: alguns apontamentos sobre as relações


entre festivais "medievais" e música "celta" no Brasil.
Caetano Maschio Santos, UFRGS

2. Irmãos Bertussi e o baile gaúcho: (re)criações e agenciamentos na música regional de baile no Rio Grande
do Sul
Fernando Henrique Machado Ávila, UFRGS

3. Etnomusicologia aplicada e pesquisa-ação: Tocando para o Acervo Plauto Cruz, Regional Plauto Cruz e
Ação Musical
Paulo F. Parada, UFRGS
15:30 – 16:00 INTERVALO

16:00 – 17:30: Comunicações, sessão 2

1. Por que estudar imigração, migração e música? Lacunas, problemas e perspectivas do estudo
etnomusicológico
Suelen Scholl Matter, UCS RS
2. Um estudo etnomusicológico sobre “Identidade Gaúcha” e Indústria Cultural: aportes teórico-
metodológicos para a pesquisa
Clarissa Figueiró Ferreira, UNIRIO
3. Alupandê o povo da rua: Performance, identidade e novas escutas na Quimbanda de Porto Alegre e Conesul
Felipe Cemim, UFRGS

Sexta-feira, 4 de novembro de 2016

10:00 – 12:00: Mesa Redonda

“Estudos em música no Brasil e América Latina: experiências e práticas (trans)locais”


Etnomusicologia e marginalidade – implicações para a disciplina no Brasil (e em outros contextos marginais)
Suzel Ana Reily,Unicamp

Pesquisa musical: questionamentos e desafios. Uma visão a partir do Uruguai

Ernesto Donas, UdelaR, Uruguai

14:00 – 15:30: Comunicações, sessão 3

1. Trampos, montagens e patifagens: uma etnografia musical no Campo da Tuca, Porto Alegre

Pedro Fernando Acosta da Rosa, UFRGS

7
2 Percorrendo nexos entre política e memória em um fazer musical no sul do Brasil: os Tápes (1970/1980) e
outros atores sociais na canção popular/regional politizada
Daniel Stringini, UFRGS
3. Fuelles en la frontera: Narrativas de acordeonistas y bandoneonistas del interior de Uruguay
José A. Curbelo, UFPel
15:30 INTERVALO
16:00 – 17:30: Comunicações, sessão 4 (via Skype)

1. O Semba Angolano e o “paradigma do Ngola ritmos”

Mateus Berger Kuschick, Unicamp

2. “Quédate con mi voz": una reflexión metaperformática sobre personajes musicales de una cantante cubana
en la escena urbana de trova y canción de autor mexicana.

Cássio Dalbem Barth, UNAM, México

3. Ritual a la venta: la capitalización de lo inmaterial en el rito de los voladores o del palo volador de
Veracruz, México

Héctor López de Llano,UNAM, México

17:45 ENCERRAMENTO

8
MESA REDONDA

"Estudos em Música no Brasil e América Latina:


experiências e práticas (trans)locais"

Etnomusicologia e marginalidade – implicações para a disciplina no Brasil


(e outros contextos marginais)
Suzel Ana Reily
Universidade Estadual de Campinas

9
Resumo
Este trabalho parte do pressuposto de que a etnomusicologia é uma disciplina marginal.
A partir de um conceito de marginalidade como espaço de encontros, liberdade de
expressão e hibridismo, busca-se mostrar como a etnomusicologia tem adotado
perspectivas teóricas diversas no avanço de seu objetivos acadêmicos de forma criativa.
Nas margens dos centros etnomusicológicos estes processos são ainda mais visíveis.
Assim, volta-se para a etnomusicologia no Brasil a fim de identificar como as condições
de marginalidade têm impactado o desenvolvimento da pesquisa no país, gerando
orientações que fundem abordagens transnacionais diversas com as preocupações
situadas dos investigadores.
Palavras chave: etnomusicologia, marginalidade, hibridismo

Summary
This paper is premised on the assumption that ethnomusicology is a marginal discipline.
Conceptualizing marginality as a space of encounters, freedom of expression and
hybridity, it aims to show how ethnomusicology has creatively adopted diverse
theoretical perspectives to advance its aims. At the margins of ethnomusicological
centres these processes are even more visible. Thus, I turn to ethnomusicology in Brazil
to identify how the conditions of marginality have impacted research development in
the country, generating perspectives that fuse diverse transnational approaches to the
situated preoccupations of the researchers.
Key words: ethnomusicology, marginality, hybridity

Hoje em dia tornou-se senso comum qualificar a etnomusicologia como uma


disciplina inerentemente interdisciplinar, localizada entre a musicologia e a antropologia
– mas marginal a ambas. Para Gregory Barz (2015), a marginalidade da
etnomusicologia dá aos etnomusicólogos muito mais liberdade que as disciplinas
“centrais” para utilizar estilos etnográficos experimentais. Sem dúvida, a prática
etnomusicológica é pautada pela livre apropriação de modelos teóricos desenvolvidos
numa variedade de disciplinas, como antropologia, sociologia, ciências políticas,
filosofia, psicologia, linguística entre outras. Esta promiscuidade, por assim dizer,
ampara a perspectiva de Barz em relação à liberdade marginal da etnomusicologia.

Mas o que é “marginalidade”? Uma maneira de responder a essa pergunta é vê-


la como aquilo que não é “centro”. Por outro lado, contudo, isto só levanta outra
questão: o que é “centro”? Afinal, centros podem ter centros, sendo que centros podem
estar numa posição marginal a outro centro. Do mesmo modo, margens podem ter suas
próprias margens. Com efeito, a marginalidade é um conceito relacional, não uma

10
essência; ela invoca a relação entre domínios. As relações entre centros e margens estão
predicadas a momentos históricos, estando, portanto, em constante transformação,
sendo redefinidas conforme o fluxo das circunstâncias que permeia as dinâmicas
sociais.

O papel da marginalidade é demarcar as fronteiras do centro, mas, ao fazer isto,


esbarra nas margens de outros centros. As marginalidades, portanto, são esferas de
encontro, construindo-se a partir dos fragmentos das margens com que se defrontam,
tornando-se centros de convergência e hibridismos. Com efeito, as margens são espaços
de bricolage e criatividade.

Pensar a etnomusicologia em relação à marginalidade dá saliência às orientações


híbridas da disciplina, mas também evidencia sua precariedade frente às disciplinas
centrais. Ou seja, embora a liberdade teórica da etnomusicologia permita que a
disciplina faça contribuições inusitadas para o pensamento mais amplo, estas
contribuições ficam, muitas vezes, ofuscadas pela sua marginalidade entre as disciplinas
acadêmicas. Assim, a tarefa da etnomusicologia é a de encontrar meios de inserir seus
trabalhos em arenas de maior projeção. Vale notar que passos significativos neste
sentido já vêm ocorrendo; afinal, recentemente Nicholas Cook (2008) afirmou: “Somos
todos etnomusiólogos agora” (We are all ethnomusicologists now).

Até aqui venho utilizando o termo “etnomusicologia” de forma genérica, o que


tende a remeter a uma construção transnacional de disciplina, o que vale dizer, a
perspectiva central, a do eixo euro-americano, com um acento forte sobre o lado
americano deste eixo. A revista Ethnomusicology, por exemplo, é publicada pela
Sociedade de Etnomusicologia (Society for Ethnomusicology), uma associação sediada
nos Estados Unidos e membros predominantemente americanos, embora não inclua a
palavra “americana” em seu título. Já o Forum Britânico de Etnomusicologia (British
Forum for Ethnomusicology), tal como muitas outras associações, deixa claro a que
território se associa. Desde 2001 existe a Associação BRASILEIRA de
Etnomusicologia (ABET), fundada durante o congresso do ICTM no Rio de Janeiro,
tendo hoje em torno de 400 membros, um número considerável, tendo em vista o
número limitado de programas de etnomusicologia em universidades no país.

No Brasil, como em muitas tradições acadêmicas marginais, a investigação


musical tende a se voltar para repertórios nacionais, o que também faz de muitos
pesquisadores operando no país profundos conhecedores dos repertórios locais. O
11
acesso relativamente fácil ao “campo” permite-lhes renovar continuamente sua
etnografia. Esta situação é bem diferente das principais preocupações acadêmicas que
mobilizam os etnomusicológos no eixo euro-americano (particularmente no mundo
anglofônico), onde desenvolveu-se um estilo de investigação voltado para o uso da
etnografia primeiramente como forma de ilustrar um argumento teórico de validade
“universal”. Precisamente devido à sua (suposta) universalidade, teria aplicabilidade
transcultural. Assim, perspectivas com tais orientações passaram a definir o padrão
internacional de pesquisa – o centro da disciplina – enquanto estudos centrados em
dados etnográficos e especificidades locais teriam um foco de interesse limitado a
públicos acadêmicos com as mesmas preocupações paroquiais, formando as margens.
Conforme houve um declínio na valorização da etnografia como algo contendo um
valor intrínseco próprio – uma preciosidade por si só – o distanciamento entre as
tradições acadêmicas etnográficas e as interpretativas vem aumentando – pelo menos ao
olhar de alguns.

O que eu gostaria de propor aqui é que no Brasil – e em outras escolas


acadêmicas “nacionais” – a marginalidade contribuiu para o surgimento de campos de
pesquisa inovadores e de caráter altamente experimental. Simplesmente desqualifica-las
como arenas paroquiais de documentação descritiva e ingênua, como são muitas vezes
vistas, ignora a riqueza e dedicação que permeia a pesquisa nas margens. Com efeito,
muito trabalho passa despercebido nas arenas internacionais devido, em parte, a
barreiras linguísticas, mas também devido ao seu descaso com os cânones acadêmicos
das escolas hegemônicas.

Partindo destas considerações, quero agora voltar-me para a pesquisa musical


brasileira, refletindo sobre como a marginalidade tem afetado suas práticas e tradições.

A pesquisa musical no Brasil

O grande interesse pela etnomusicologia no Brasil (apontado acima) pode ser


atribuído a diversos motivos. Um deles tem a ver com o próprio desenvolvimento da

12
pesquisa musical no país muito antes de haver uma disciplina chamada
“etnomusicologia”: um interesse comum entre os intelectuais na construção da nação, o
que também estabeleceu fluidez entre as barreiras disciplinares. Enfim, parece que, no
Brasil, nós somos literalmente “todos etnomusicólogos” hoje, embora, paradoxalmente,
a disciplina esteja numa posição institucional marginal.

Com efeito, a pesquisa voltada para a música brasileira no Brasil tem mobilizado
duas esferas complementares: por um lado, pesquisadores engajados na coleta extensiva
de repertórios locais como meio de identificar suas particularidades estéticas – aquelas
preciosidades que inclusive poderiam ser integradas a uma arte nacional (ou regional) e,
quiçá contribuir para a inserção da música brasileira (marginal) no cenário internacional
(ou central); por outro, move-se pelo desejo de conhecer o país e identificar o que o
mantém na marginalidade, para que se possa contribuir de alguma forma à superação
dos problemas nacionais. A pesquisa no Brasil, portanto, tem sido sempre uma atividade
engajada – um domínio de “etnomusicologia aplicada”.

Vale notar, contudo, que a avalição dos problemas centrais do Brasil e as


perspectivas sobre como a pesquisa musical (bem como das demais formas de
expressão artística) poderia trazer contribuições para sua superação vêm se
transformando ao longo do tempo. Para atingir estas metas, os acadêmicos brasileiros
buscaram, muitas vezes, orientações que emergiram dos debates nos “centros”. No
entanto, esta apropriação nem sempre se deu de forma transparente: pelo contrário, ela
se fazia mediada pelas avaliações das circunstâncias locais, hibridizada pelo confronto
de uma realidade vivida no centro de diversas marginalidades.

Um dos primeiros grandes bricoleurs da pesquisa musical brasileira foi, sem


dúvida, Mário de Andrade, uma figura cujas orientações são complexas demais para
serem ensaiadas aqui, mas algumas considerações podem ser resumidas. Mário de
Andrade se empenhou no desenvolvimento de um legado artístico nacional
fundamentado na brasilidade, colocando-se a tarefa de identificar a constituição desta
brasilidade. Na Europa projetos de construção nacional baseadas em movimentos
artísticos já haviam definido algumas práticas que puderam ser transpostas para o
contexto brasileiro. No entanto o conceito de nação europeia centrava-se numa noção de
etnicidade, onde buscava-se sobrepor a nação (ou grupo étnico) ao estado (GELLNER,
2006 [1983]) – uma tarefa complicada para um território como o brasileiro.

13
Mário, então, apropriou-se do discurso já desenvolvido no Brasil, que propunha
que, no Brasil, estaria se formando um povo mestiço, resultado da miscigenação de
europeus, africanos e indígenas. Se a geração anterior a Mário via esta situação como
algo que o Brasil precisaria superar com políticas de branqueamento, Mário redefiniu a
mestiçagem como algo que estabeleceria a unidade “étnica” do brasileiro. Assim, seu
interesse na pesquisa musical não se limitava à coleta de repertórios pelo país para
proporcionar matéria prima aos artistas “verdadeiros”, os artistas “desinteressados”;
também se engajou na análise do material para qualificar a “psique” desta etnia mestiça,
que se revelaria na música. Apesar das diferenças formais nos repertórios de uma
localidade a outra na imensidão do território brasileiro, encontrou um elemento de
unidade que viu como base da psique brasileira. Em suas palavras: “A mesma doçura
molenga, a mesma garganta, a mesma malinconia, a mesma ferócia, a mesma
sexualidade peguenta, o mesmo choro de amor rege a criação da música nacional de
norte a sul” (1972 [1928], p. 65).

Seu livro Ensaio sobre a música brasileira (1972 [1928]) foi, acima de tudo, um
manifesto convidando os compositores brasileiros a se apropriarem do repertório
popular do país na construção de uma arte nacional. Ele mesmo não se via como
compositor, mas demonstrou seu projeto através de seu romance Macuníma: o herói
sem nenhum caráter, uma obra de bricolage monumental! E este herói, como o próprio
Mário, sai à procura do “muiraquitã” – seu caráter, tornando-se brasileiro.

Vale notar que a orientação proposta por Mário continua influenciando o mundo
artístico brasileiro. Ariano Suassuna, por exemplo, foi transparente em atribuir a Mário
sua inspiração no estabelecimento do Movimento Armorial, que visava realizar “uma
Arte [erudite nacional], com base em suas raízes populares” (SUASSUNA, 1974, p. 5),
seu projeto também uma grande bricolage.

Mas a proposta de Suassuna propunha que a construção de uma arte nacional


não deveria apenas incorporar elementos musicais do repertório brasileiro a estruturas
fundamentalmente europeias, mas antes identificar as estruturas brasileiras, utilizando-
as como a base de uma arte verdadeiramente brasileira. Para Suassuna, esta base poderia
ser encontrada no sertão nordestino, onde elementos eruditos estariam fundidos a uma
cultura popular, diferentemente das regiões litorâneas, já excessivamente influenciadas
por culturas externas. Esta orientação se evidencia no próprio nome que deu ao
movimento: “armorial”, um termo arcaico que significa o estudo de brasões e

14
estandartes. Se, por um lado, o termo deveria sugerir as “bandeiras” e a “heráldica”
popular (VENTURA, 2007, p. 32), por outro remete às reminiscências de um legado
longínquo, retido nas tradições sertanejas: um medievalismo, um renascentismo e um
barroco rústicos, evidenciados na literatura de cordel, nos repentes, nas bandas de
pífanos (AMARAL, 2013). Assim, Suassuna encontrava no isolamento do nordeste a
alma de toda a cultura brasileira. Ali teriam ficado retidas as estruturas básicas que
poderiam formar o arcabouço para a genuína arte da nação como um todo. Em vez de
uma arte erudita com traços populares, contudo, poder-se-ia dizer que o Movimento
Armorial gerou uma arte popular com traços eruditos (WOITOWICZ, 2008), matizada
na cultura sertaneja.

Sem dúvida o Armorialismo foi pioneiro na pesquisa musical do sertão


brasileiro. No entanto, apesar do uso de escalas, instrumentos, ritmos e formas musicais
sertanejas, a orientação performativa dos seus protagonistas, conjuntos como a
Orquestra Armorial, o Quinteto Armorial, o Quarteto Romançal entre outros, foi
decididamente “cosmopolita” e “apresentacional” (TURINO, 2008), o que lhe imprimia
uma sonoridade distante da nordestina tradicional, por mais que buscasse imitá-la. No
entanto, sua pesquisa foi movida por uma orientação prática: a de que a música existe
para ser performada. Deste modo, os resultados das pesquisas transformavam-se em
performances – em shows – que efetivamente difundiram uma sonoridade peculiar por
todo Brasil e com ela um novo imaginário do nordeste.

Nas últimas décadas uma nova orientação se instaurou em relação à pesquisa e


performance de repertórios populares que já não se volta mais para a transposição
apresentacional; agora o projeto é o de aprender as artes populares para poder participar
delas como fazem seus produtores “autênticos” (TRAVASSOS, 2014; GIESBRECHT,
2014): engaja-se com suas formas “participativas” (TURINO, 2008). Jovens por todo o
Brasil fazem viagens a Recife para aprender com mestres de maracatu, a São Luiz do
Maranhão para integrar um grupo de bumba-meu-boi, ao Vale do Paraíba para aprender
a dançar jongo e assim por diante. Nas suas cidades formam grupos populares os mais
diversos. Campinas, por exemplo, oferece uma variedade grande de alternativas para
quem quer se engajar em tradições participativas, como o maracatu, o samba de bumbo,
o jongo, o samba-lenço, banda de pifes e assim por diante. Muitos destes grupos são
dirigidos por pessoas que tiveram vivências pessoais com mestres reconhecidos. No
mundo da etnomusicologia, estas preocupações estão promovendo debates em torno do

15
registro do patrimônio imaterial e do saber popular (LÜHNING, 2011; TUGNY e
QUEIROZ, 2006). pesquisa participativa, colaborativa

Talvez um dos projetos mais inovadores na pesquisa etnomusicológica hoje seja


a orientação conhecida como “participativa” ou “colaborativa”, projetos em que
investigadores experientes recrutam moradores de uma localidade para pesquisarem
suas comunidades. A empreita mais conhecido desta natureza é, sem dúvida, o projeto
na favela da Maré no Rio de Janeiro, encabeçada por Samuel Araújo. Vendo-se como
mediador, Araújo trabalha com os participantes para definir um tema de pesquisa, sendo
que em seguida os participantes são treinados para fazerem entrevistas, documentação
musical, gravações e filmagens, e voltam-se para o levantamento de dados, os quais são
então conjuntamente analisados e transformados em relatórios e publicações coletivos
além de eventos musicais, exposições, vídeos e gravações. Vale notar que estes projetos
estão recebendo cada vez mais atenção externa, colocando um foco internacional sobre
a produção etnomusicológica brasileira (ARAÚJO ET AL, 2006).

Estes projetos vão ao encontro de outros desenvolvimentos em que comunidades


estão tomando a iniciativa na documentação de suas heranças culturais, criando centros
de pesquisa e documentação, arquivos e centros culturais. Os pontos de cultura
certamente foram um grande incentivo neste sentido e resta saber se a efervescência
recente terá continuidade e que perfil se desenvolverá a partir de agora (NEDER, 2008).

Palavras finais

Quando a etnomusicologia brasileira – ou a etnomusicologia de alguma outra nação


periférica – é comparada à do centro, pode parecer que lhe falta substância teórica; não
parece estar gerando modelos que possam ser utilizados em outras localidades para
explicar fenômenos musicais de outras tradições. No entanto, o que busquei mostrar
aqui é que as preocupações de muitos pesquisadores de música no Brasil não estão
direcionadas à produção teórica para o consumo internacional. Ao contrário: buscam
descobrir o país e suas ricas heranças musicais e nestas buscas, os protagonistas têm se
fundamentado em discursos e práticas por ora bastante ecléticos, acabando, eles
mesmos a contribuírem para a construção da brasilidade a que se propuseram
documentar.

16
O principal objetivo de Mário de Andrade foi a construção de uma sensibilidade
estética nacional que representasse o caráter nacional, sendo que sua obra,
particularmente Macunaíma, beneficiou-se de seus vastos arquivos de material popular,
permitindo-lhe “viajar” livremente, nos escritos, por todo o território nacional, viagens
que também emergem no trabalho de alguns compositores, talvez de forma mais audível
em Villa-Lobos. Ariano Suassuna, por sua vez, também desenvolveu um projeto de
pesquisa “marginal”, construindo um discurso particular referente à cultura brasileira
que traduziu em projeto artístico no Movimento Armorial. Ao disseminar este discurso
por meio de peças, como “O Auto da Compadecida”, e musicais com os grupos
armoriais, disseminou um conceito mágico-arcaico do sertão nordestino de considerável
força estética.

Os esforços de figuras pioneiras como Mário e Suassuna – ou Gramanni,


Wisnik, Manuel Veiga e tantos outros – e sua liberdade expressiva nos legaram o desejo
de conhecer cada vez mais o universo popular que nos rodeia, seja indo ouvir e
participar deste universo, seja participando com seus protagonistas nas suas viagens de
autoconhecimento. A marginalidade nos permite construir nossos próprios centros e por
meio deles, integrar-nos a redes cada vez mais amplas. Se não estamos contribuindo
com teorias, nossas práticas e bricolages têm muito a oferecer a projetos transculturais.

Referências

AMARAL, Carlos Eduardo, Premissas estéticas e ideológicas da música armorial,


Revista Brasileira de Música, v. 26, n. 2, p. 321-334, 2013.
AN RA E, Mário de. nsaio sobre a m si a brasileira. 3a ed. São Paulo: Vila Rica,
1972 [1928].
ARAÚJO, Samuel et al. Conflict and Violence as Theoretical Tools in Present-Day
Ethnomusicology: Notes on a Dialogic Ethnography of Sound Practices in Rio de
Janeiro, Ethnomusicology, v. 50, n. 2, p. 287-313, 2006.
BARZ, Gregory. Rethinking “local” in inherited and indigenized music:theorizing post-
colonial choral music in Tanzania. Apresentação no simpósio “Local Musicking in
Cross-Cultural Perspective”, Belfast, 2015.
COOK, Nicholas. 'We are All (Ethno)musicologists Now'. In: STOBART, Henry (org.),
The New (Ethno)musicologies, Lanham, MD: Scarecrow Press, p. 48-70, 2008.
GELLNER, Ernest, Nations and Nationalism, Oxford: Blackwell, 2006 [1983].
GIESBRECHT, Érica, Jongos, batuques e sambas de bumbo: dançando a memória
negra de Campinas. Música e Cultura, v. 9, 2014.
LÜHNING, Angela, O papel dos “mitos modernos” na etnomusicologia. In: Anais: V
Encontro da ABET, Belém, p. 81-90, 2011.
NEDER, Álvaro. Jongo, literatura oral e música: o futuro do pretérito em jogo no

17
presente das políticas públicas. In: XI Congresso Internacional da ABRALIC:
Tessituras, Interações, Convergências, USP, 2008.
SUASSUNA, Ariano. O Movimento Armorial. Recife: UFPe, Editora Universitária,
1974.
TRAVASSOS, Elizabeth. Música folclórica e movimentos culturais. Debates, v. 6, p.
89-113, 2014
TUGNY, Rosângela Pereira de; QUEIROZ, Ruben Caixeta de, orgs., Músicas africanas
e indígenas no Brasil, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
TURINO, Thomas, Music in Social Life: the politics of participation. Chicago: The
University of Chicago Press, 2008.
VENTURA, Leonardo Carneiro, Música dos espaços: paisagem sonora do nordeste no
movimento armorial, dissertação de mestrado, UFRGN, 2007.
WOITOWICZ, Karina Janz O som popular e erudito do Quarteto Romançal. Revista
Internacional de Folkcomunicação, v. 1, 2006

Pesquisa musical: questionamentos e desafios. Uma visão a partir do Uruguai1

1
Este texto foi concebido originalmente em espanhol, e apresentado no I Coloquio de Investigación
Musical – Ibermúsicas, na Cidade do México, em 2015. Esta versão, além de estar em língua portuguesa
por ocasião do I Colóquio em Música do Brasil e América Latina, fruto da especificidade da

18
Ernesto Donas2

Em etnomusicologia, a atividade de pesquisar envolve diferentes formas de


envolvimento com as práticas musicais ou, vale dizer, as práticas sonoras. Desde a sua
gênese e através da história, a disciplina passou por diferentes etapas, questionamentos,
e desafios. A identificação do fenômeno sonoro e a relação com o objeto de estudo (no
papel de pesquisadores) tem tido muitas idas e vindas, e gerado muita bibliografia e
teorias, mas uma coisa inegável: a pesquisa envolve, ao fim, algum tipo de
materialização, de reconhecimento dessa pesquisa. Pode ser em formatos conhecidos,
pode ser em formatos mais difíceis de reconhecer. A minha proposta visa questionar e
debater essas formas de materialização, algumas fortemente institucionalizadas na
etnomusicologia, e que exigem revisitar alguns conceitos em relação à ação de
pesquisar que muitas vezes parecem óbvios ou implícitos, mas que não necessariamente
se problematizam e que, entendo, são bem complexos.

A partir do conceito de pesquisa musical construíram-se padrões, formas de


conceber e validar práticas e resultados que são plausíveis de uma abordagem crítica e
abrangente. Como pesquisadores em etnomusicologia, acredito que vale a pena nos
determos e questionar linhas de ação, ideias e interpelações sobre histórias e exemplos
próprios da nossa disciplina e nossas realidades, em diferentes âmbitos, geografias e
contextos sociopolíticos, em relação à pesquisa das práticas musicais. Além de
desestimular quaisquer levantamentos, breves ou exaustivos (evitando assim os termos
parcial ou total), a proposta é conhecer, somar e comparar experiências e processos,
potenciando os cruzamentos e visões que possam enriquecer o debate e os olhares,
assim como possíveis campos de ação e reconhecimento.

Como ponto de partida, começo citando uma canção do músico uruguaio


Fernando Cabrera3, cujo título Diseño de Interiores (Desenho de interiores) gostaria de

etnomusicologia em relação à versão original, mais generalista, adapta e/ou acrescenta algumas ideias e
bibliografia. Agradeço os comentários, ideias e sugestões oferecidas (em ordem alfabética) por: Coriún
Aharonián, Leandro Delgado, Gustavo Goldman, Leonardo Manzino, e ao grupo de expositores do
Colóquio no México. Agradeço também ao Prof. Reginaldo Gil Braga e ao Etnomus UFRGS pela
oportunidade de compartilhar e debater estas ideias e questionamentos no âmbito da etnomusicologia e
entre universidades e pesquisadores dentro do cone sul, em nível regional.
2
Professor da Escuela Universitaria de Música –UdelaR/ Montevidéu e músico da Orquesta Filarmónica
de Montevidéu.

19
usar como metáfora – não sem ironia se incluímos a relação entre texto e música - dos
desafios consequentes de construir e visualizar um campo de conhecimento:

Diseño de interiores

Necesito renovar mi interior


dibujarse es vivir, el presente es un proyecto anterior
se agotó por aquí, necesito desarmar el taller
aprenderse es vivir, raspar el empapelado de ayer
no dejarse dormir
Necesito repintar la razón, pelechar es vivir
el camión de la mudanza tosió satisfecho al partir
Necesito refrescar el renglón, remojarse es vivir
darme fe, tener determinación, detenerse es morir
Un amigo se llevó un sacudón su hijo quiso morir
un abismo de comunicación le impidió percibir
Necesitan apurar su interior el pasado impedir
ensayar una canción dar su voz, atreverse a decir4.

Considero que pesquisa sobre e a partir da música significa não apenas relevar e
desenhar realidades, mas também se posicionar frente a elas. E, como metáfora,
desenhar interiores e exteriores do conhecimento, e espaços de reflexão acerca das
realidades sonoras.

Contudo, não é a minha intenção brindar uma abordagem integral sobre pesquisa
musical no Uruguai –seja sincrônica ou diacrônica-, como não é comparar pesquisas ou
“estados de coisas” em termos regionais. Em primeiro lugar, a minha proposta visa
revisitar o conceito de pesquisa musical em si e a sua relação com as práticas musicais

3
Fernando Cabrera (Montevideo, 1956) é violonista, cantautor, compositor e produtor, um dos mais
ecléticos, prolíficos e importantes da sua geração na música popular uruguaia.
4
“Diseño de interiores”. Em Fernando Cabrera, Bardo. Ayui A/E 300CD. 2006. Pode se acessar online em
https://www.youtube.com/watch?v=a_bJLtMkd2Q .

20
para, em segundo lugar, traçar uma trajetória geral da pesquisa musical e alguns fatos
institucionais.

Revisitando o conceito de “pesquisa musical”

Neville Scarfe, em um artigo de 1962, afirma que o lúdico é a forma mais


elevada de pesquisa, e refere a Albert Einstein atribuindo o seguinte conceito: “O desejo
de chegar finalmente a conceitos conectados logicamente é a base emocional de brincar
vagamente com ideias básicas. Este jogo combinatório ou associativo parece ser a
característica essencial no pensamento produtivo”5.

Ora, pensemos no vínculo emocional para o acontecer do pensamento produtivo:


pesquisar é brincar com ideias, conectar essas ideias, é uma brincadeira prática, um jogo
intelectual; é tomar, desta forma, uma série de decisões. É também consequência de
muitos fatores, entre eles curiosidade, preocupação, busca, necessidade (necessidade
pessoal, ideológica ou afetiva); trabalho, motivação; condições sociais, econômicas,
políticas e históricas (favoráveis).

Henk Borgdroff (2011, p.61), em um artigo iluminador em relação às


dificuldades de reconhecer a importância e singularidade da pesquisa em artes, mas
também colocando as formas pelas quais as artes contribuem na geração e/ou ampliação
de conhecimento, e considerando que as artes têm qualidades e visões de mundo únicas
nesse sentido, afirma que:

a pesquisa nas artes dá lugar a desdobramentos multidimensionais do seu


conteúdo indefinido – dentro e através da criação e da performance, dentro e
através das abordagens discursivas... dentro e através da crítica encontrada no
âmbito da pesquisa artística e acadêmica6.

5
No original, en inglês: “The desire to arrive finally at logically connected concepts is the emotional
basis of a vague play with basic ideas. This combinatory or associative play seems to be the essential
feature in productive thought”. Acessível na internet, http://quoteinvestigator.com/2014/08/21/play-
research/#note-9611-2 (acesso, 15 de outubro de 2016). A tradução é minha.

6
Recomendo ler também Borgdorff, Henk, 2006, “The debate on research in the arts”, disponível na
internet.

21
Ao relacionarmos isto com a música, partimos de um jogo associativo para
pensar produtivamente a partir do material sonoro, material existente em fontes de
natureza diversa, que Juan Pablo González (2013, p.14) sintetiza em três eixos que às
vezes dialogam ou às vezes colidem: os eixos da escritura, da midialidade e da
oralidade.

Desta forma, a pesquisa musical é um fenômeno ou processo de ampliação do


conhecimento que possui pelo menos caráter emocional, artístico, acadêmico e político,
seja em nível individual ou social e no campo específico que abrange. Entende-se que,
do mesmo modo que a educação se faz presente em diversos espaços sociais de
formação –que inclui a escolarização-, a pesquisa musical trabalha (não de forma
excludente) com material de arquivo escrito ou sonoro –se faz referência à práticas do
passado, e em várias esferas do tecido social onde se desenvolvem práticas musicais
atuais.

Podem-se desenvolver registros, conceitos, teorias e linhas de ação a partir da


pesquisa musical em relação a sua especificidade: desde os aspectos criativos, técnicos,
até os aspectos de socialização, entre outros. Toda investigação tem a sua política,
denota um compromisso explícito ou implícito com aquilo que estuda (objeto de estudo)
e com as pessoas envolvidas, o que é bem frequente na etnomusicologia pelas
características da própria disciplina. Na América Latina, estas características políticas e
compromissos são muito singulares e os debates a respeito têm sido ricos e eloquentes7.

Na pesquisa musical também se trabalha com uma variedade de objetos de


estudo e heterogeneidades justapostas: nesse sentido, cabe distinguir (o que exige uma
opção política) entre reconhecer e construir multidisciplinas (disciplinas não
interatuantes), ou reconhecer e construir interdisciplina (disciplinas interatuantes).8

Cabe perguntar então o que é que motiva as pessoas que pesquisam a procurar e
buscar pensamento produtivo a partir das práticas musicais. E, continuando, uma série
de perguntas possíveis: Quem pesquisa os fenômenos sonoros? O que é escolhido para
pesquisar? Para quem? Por quê? Que visões de mundo pretende brindar e de fato

7
Existe abundante bibliografia sobre o assunto, citada y abordada, por exemplo, em Aharonián, Hacer
música en América Latina, Montevideo: Tacuabé, 2012; e Juan Pablo González, Op. Cit.
8
Cabe lembrar que o multiculturalismo, como ideia, reconhece a juxtaposição e diversidade de culturas
ou características culturais, enquanto que o interculturalismo vai além e trabalha as diferenças,
desigualdades, relações de poder, históricas, econômicas, etc.

22
consegue oferecer? Qual a relação entre quem produz os fenômenos sonoro-musicais e
as elaborações (sincrônica ou posterior) sobre eles? Como se materializa a pesquisa
musical? e, finalmente, o mais delicado e difícil a meu ver, e que gostaria de enfatizar:
Como se expõem, visualizam, e –acima de tudo- se valorizam e utilizam os resultados
dessas pesquisas em pleno século XXI, e nas condições políticas, sociais, culturais e
artísticas que vivemos?9 Voltarei a estas questões mais a frente no texto.

Sabemos que o pesquisador e o objeto de estudo às vezes conformam diferentes


sujeitos ou grupos; outras vezes, o pesquisador forma parte – com as devidas
particularidades- do próprio objeto de estudo. Em outros casos, o investigador e então o
resultado da pesquisa potencialmente também tem novos papeis na esfera pública. Na
América Latina existe uma rica história de pesquisadores e músicos (que podemos bem
chamar de intelectuais orgânicos, seguindo o pensamento Gramsciano) ocupando
posições de responsabilidade na gestão pública e/ou preenchendo espaços de ação em
áreas como: no jornalismo escrito, radiofônico ou audiovisual, colocando em diálogo
permanente músicos, pesquisadores, e os resultados de pesquisas. Esta realidade tem
gerado uma série de particularidades em relação às políticas da esfera pública relevantes
para a histórica cultural latino-americana, mas que vão além das possibilidades deste
trabalho (seja na relevância ou na análise).10

Se nos limitamos a um conceito mais tradicionalista de pesquisa musical,


pensamos então na pesquisa acadêmica, principalmente na (etno)musicologia, com os
desdobramentos recentes e potenciais que propõem os novos modelos da interdisciplina,
do qual há eloquentes exemplos e bibliografias, a etnomusicologia é paradigmática
nesse sentido.

É verdade que estamos acostumados a reconhecer a pesquisa musical em


formatos que podemos entender como “tradicionais”: artigos acadêmicos, dissertações e
9
Estes questionamentos foram debatidos especificamente em relação à música durante as Jornadas de
Posgrados, realizadas pela Comisión Académica de Posgrados, UdelaR, em Montevideo, em 2014. Parte
dessas inquietudes foi exposta pelo Mtro. Roberto Kolb (UNAM, Mexico) e a Dra. Prof. Catarina
Domenici (UFRGS, Brasil).
10
No Uruguai, posso citar exemplos tanto do passado como na atualidade (em ordem alfabética): Coriún
Aharonián (Centro de Documentación Musical CDM-MEC), Lauro Ayestarán (Radio do SODRE,
Instituo de Estudios Superiores, Museo Histórico Nacional), Rubén Olivera (Radialista, colaborador na
área de música e cultura em vários jornais semanais e revistas), Jorge Risi (ex Diretor do SODRE, Diretor
do projeto de extensão universitária Grupos Sonantes), Apolo Romano (trabalha na Dirección Nacional
de Cultura e no Fondo Nacional de la Música-FONAM), Héctor Tosar (ex Director do SODRE), entre
outros.

23
teses (mestrado e doutorado), monografias, “trabalhos de fim de curso”, comunicações
(colóquios, eventos, congressos, etc), livros, textos com formato acadêmico na internet,
verbetes em enciclopédias, edições críticas de partituras, etc. Em outros casos – em que
se consiga identificar rigorosidade no processo e no resultado - se chega a reconhecer
elementos de pesquisa, mas talvez não se reconheça necessariamente como centrais ou
como “pesquisa materializada”, como acontece eventualmente em parte da produção
audiovisual, resenhas de livros e edições fonográficas, encartes de fonogramas, algumas
propostas de programas de rádio, livros ou artigos de perfil jornalístico, relatórios
técnicos11, preparação de avaliação de mérito e propostas de trabalho, performances,
improvisações, gestão cultural, e outros.

Nesse sentido, gostaria de enfatizar a necessidade de reconhecer a pesquisa


musical do próprio músico, do sujeito produtor do evento (ou processo) sonoro, de
quem realiza a criação sonora, a prática sonora; da pesquisa que realiza o intérprete, o
compositor. Graciela Parasekevaídis (1999) propõe e sintetiza este ponto de vista (em
referência ao caso latino-americano) quando afirma que:

La creación desafía a la investigación y sus métodos, exige escribir de nuevo


la historia de la música latinoamericana en todos sus múltiples y ricos
ámbitos, géneros y expresiones. Escribirla y estudiarla, no con las teorías y
normas para otras músicas, sino generando las propias y adecuadas desde
dentro.

Paraskevaídis propõe reconhecer as particularidades da realidade da América


Latina e ao músico como gestor da ampliação do conhecimento já mencionada
anteriormente: o músico como compositor, instrumentista, arranjador, aquele que cria e
experimenta técnicas e caminhos estéticos através de um processo de pesquisa
profundo; um novo olhar sobre a busca, sobre o processo de ampliação do
conhecimento e do que se torna e reconhece materializado.

Paralelamente, caberia questionar por que falamos tão naturalmente de pesquisa


musical e não, por exemplo, da pesquisa sobre o “material sonoro”, “pesquisa acústica”,
ou “pesquisa sônica”. Ao pensar em processos apenas como “musicais” poderíamos
estar nos restringindo a uma visão etnocêntrica do uso do material sonoro, o qual faz um

11
Por exemplo, em caso de precisar demonstrar a “origem” de uma canção por razões de direitos autorais.

24
tempo já vem sendo questionado e ampliado através da própria etnomusicologia e dos
Sounds Studies.12

Além disso, a partir desse conhecimento ampliado, dessa reflexão reconhecida e


em diferentes formatos, também poderão ser entendidas e construídas políticas culturais
de/ em acordo às realidades específicas e próprias da cultura de uma comunidade, de um
grupo social, de um país.

Algumas realidades no Uruguai

Coriún Aharonián e Rubén Olivera publicaram recentemente um volume


(Aharonián e Olivera, 2013/2014)13 onde oferecem uma genealogia abrangente da
música (erudita e popular) da música uruguaia, incluindo implicitamente e
explicitamente um panorama da pesquisa musical, sendo um ponto de referência para
conhecer as principais orientações de pesquisa e criação artística no país. Tentarei
resumir não a parte histórica da música uruguaia mas os dados referentes a pesquisa
musical, que é o que nos interessa nesta abordagem.

No Uruguai, há duas figuras precursoras muito importantes em relação à


pesquisa musical: Francisco Curt Lange e Lauro Ayestarán, os dois com um vínculo
relevante para a etnomusicologia latino-americana. Lange criou a Sección de
Investigaciones Musicales do Instituto de Estudios Superiores (IES) no ano de 1934,
impulsionando como pesquisador o campo de estudo da música erudita (particularmente
a música colonial da América do Sul). Lange foi o primeiro gestor de um “pan-
americanismo” no âmbito acadêmico e da pesquisa musical. Em 1938 criou, também em
Montevidéu, o Instituto Interamericano de Musicología, onde continua desenvolvendo
aquilo que gerou no IES, organizando congressos, publicações (algumas delas seminais,
como o Boletín Latinoamericano de Música), e outras propostas.

12
No universo anglo-saxão, o pioneiro R. Murray Schafer e outros, como Steven Feld, Veit Erlmann,
Jonathan Sterne, entre muitos; na América Latina podemos citar o trabalho de Ana María Ochoa e de
Miguel Ángel García, embora Lauro Ayestarán já propunha pesquisar, muitas décadas atrás, abordando
apenas o material sonoro em vez de considera-lo apenas “música”.
13
Disponível em: http://www.bibliotecadelbicentenario.gub.uy/innovaportal/file/62959/1/nuestro-
tiempo-05.pdf

25
Ayestarán participa da gestação da Sección Musicología del Museo Histórico
Nacional em 1946, integrando o grupo de recursos humanos daquele momento junto ao
compositor Carlos Giucci e ao professor Antonio Álvarez Varela, no mesmo ano que
assume a cátedra de Musicologia no Instituto de Musicología de la Facultad de
Humanidades y Ciencias de la Universidad de la República (UdelaR). Se por um lado
Ayestarán estudou a música erudita (uruguaia e latino-americana), trabalhou as músicas
em termos mais abrangentes, reconhecendo e documentando uma importante
diversidade musical. A contribuição de Ayestarán é um extenso e metódico (ainda que
não completo) estudo de fontes e investigações em campo de práticas musicais
tradicionais, com métodos próprios da etnomusicologia,14 propondo ainda em meados
do século XX a ideia de um “mapa musical” do Uruguai (que foi pensado em termos
regionais e não em função das fronteiras políticas). As músicas identificadas foram
estudadas de forma parcial e até os dias de hoje, permanecem pouco revisitadas
sistemática e criticamente.

Desde a metade do século XX até os dias de hoje, a pesquisa musical no Uruguai


tem crescido – através de um processo não linear e assistemático- em quantidade, em
diferentes pontos de vista, desde diferentes disciplinas e ao abordar uma maior
quantidade de autores, gêneros e fenômenos sócio-musicais. Essas pesquisas refletem a
quantidade crescente de livros, monografias, artigos acadêmicos, artigos jornalísticos,
etc. A maior parte da bibliografia em relação à música popular focaliza a música afro-
uruguaia, a murga, o carnaval, o movimento da canção popular (cantautores); em
relação à música erudita pode-se observar trabalhos biográficos sobre compositores e
também sobre gêneros compositivos.

O fato de ter problematizado o conceito de pesquisa musical nos leva a pensar na


existência de um panorama mais amplo e complexo, multidisciplinar e existente em
diversos suportes e formas de materialização da própria pesquisa. Desta forma é a
minha intenção sugerir o reconhecimento de âmbitos de pesquisa que irão precisar ser
examinados em futuras abordagens para poder oferecer um panorama mais geral e
abrangente da pesquisa musical no Uruguai, amplo e inclusivo de e em cada um desses
âmbitos. Cabe também problematizar a própria etnomusicologia e o papel do
etnomusicólogo assim como o diálogo com as instituições, manejando conceitos mais

14
Ayestarán não se limitou a isto; documentou e refletiu sobre folclore, mesomúsica, e música erudita,
além de fazer levantamentos de arcquivos, escrever sobre cinema e até trabalhar com fotografia.

26
amplos e inclusivos, mas problematizando também as formas de reconhecer a
rigorosidade nas abordagens: é certo também que nem tudo é pesquisa musical.

Podemos distinguir abordagens a partir de disciplinas e âmbitos: musicologia,


etnomusicologia, música e tecnologia, folclore, sociologia, antropologia, composição
musical, teoria musical, interpretação musical, performance, educação e pedagogia
musical, crítica musical, edição de fonogramas, edição de partituras e cancioneros,
publicações em formato de histórias em quadrinhos, reportagem fotográfica, música e
iconografia, lutheria, filosofia da música, gestão cultural, estudos culturais e outros
estudos interdisciplinares, paisagem sonora, arte sonora, economia da música, literatura
e música, linguagens audiovisuais, pesquisa jornalística, e outros.

É importante repetir que a produção no Uruguai tem sido assistemática,


fragmentada, e às vezes sem diálogo fluido entre os diferentes autores e os diferentes
pontos de vista (mesmo sendo um país pequeno). Existem também trabalhos de final de
curso ou disciplinas curriculares, algumas das quais têm sido apresentadas em
congressos ou eventos públicos; outros não tem tido circulação alguma.

Um panorama atual mais alentador (embora insuficiente) em relação às políticas


culturais e apoio à pesquisa musical indica que há e haverá um crescimento quantitativo
e qualitativo da pesquisa musical, e que circulará e será reconhecida de forma mais
abrangente e transversal. Na última década, diferentes instituições e instâncias têm
possibilitado, seja em estruturas a médio e longo prazo, seja através de dinheiros
concursáveis de curto e médio prazo, o aumento de projetos e realizações de pesquisa.
Sendo otimistas, haverá também mudanças nas bases dos oferecimentos e dos espaços
abertos à pesquisa gerando dialogismos muito relevantes.

Considerações finais

O pesquisador é um sujeito que visa entender a problemática criativa das


práticas musicais, dos músicos, dos sons de uma comunidade, de um conjunto de
manifestações sonoras. O pesquisador poder responder desde diferentes disciplinas e/ou
pode ser o próprio músico.

27
No Uruguai, desde os anos 1920, promoveu-se o estudo e levantamento de
diferentes manifestações musicais. Por volta de meados do século passado eram
consideradas como objeto de estudo a maior parte das práticas musicais passadas e
presentes até então. Apesar da possibilidade de situar-se dentro de instituições, a ação
de indivíduos, muitas vezes por vontade, decisão e até recursos econômicos próprios,
tem sido e segue sendo fundamental para o desenvolvimento da pesquisa musical no
país.

Além do reconhecimento tradicional ou academicista, identificar formas de


materialização dos processos de pesquisa musical é muito importante, ainda mais
quando as práticas sonoras são mediatizadas, socializadas de formas flexíveis e onde o
mundo acadêmico se vincula com a sociedade de diversas formas, como já foi exposto
na América Latina. Em síntese, desde um livro acadêmico até uma resenha de um CD,
desde um espaço de performance ou o desenvolvimento de construção de instrumentos,
até conceber uma edição crítica de uma partitura ou um arranjo, podemos pensa-los
como a materialização da própria pesquisa. Cabe observar que no Uruguai ainda existe
uma grande desconexão entre indivíduos e grupos de pesquisa, formas de reconhecer e
sistematizar a pesquisa e relacionar as instituições (públicas, privadas, formais e
informais). Para a música, nesse sentido, não existe uma instituição ou associação
aglutinadora.

Por que estamos colocando tudo isso? Como sair do âmbito e da “cultura do
conforto acadêmico” (como indivíduos, como etnomusicólogos, e em diálogo com
outras disciplinas e posicionamentos)? Como podemos ampliar o cânone, as formas e
processos de produção de sentido com esta ideia de abrangência?

Alejo Carpentier dizia que a música na América Latina tem que ser considerada
como um todo, prevendo que a originalidade surge ou pode surgir a partir de qualquer
setor da sociedade ou área de conhecimento. De forma análoga, desde e através da
pesquisa musical, pode-se refletir em relação à música (nos mais variados formatos)
“como um todo”, o que também pode ser identificado na própria criação ou prática
musical. O desafio encontra-se então em visualizar a pesquisa musical como um âmbito
de reflexão e questionamento nas mais variadas possibilidades de materialização da
mesma, sempre que seja rigorosa, sistemática e reconhecível. Indivíduos, coletivos e
instituições estarão, nesse contexto, percorrendo lentamente a busca de um ouvido

28
pensante, sensível, conhecedor, que já colocava ao seu modo como necessidade Lauro
Ayestarán, e que nos compete ampliar como seres humanos etnomusicólogos.

Referências

BORG ORFF, Henk. 2011. “The production of knowledge in artistic research”.


Disponível em: http://www.artun.ee/wp-content/uploads/2013/11/Borgdorff-2011.pdf

GONZÁLEZ, Juan Pablo. Pensar la Música desde América Latina. Buenos Aires:
Gourmet Musical, 2013.

OLIVERA, Rubén e Coriún AHARONIÁN. Música. Colección Nuestro Tiempo -


Libro de los Bicentenarios. Montevideo: IMPO, 2013/2014.

PARASKEVAÍDIS, Graciela. “La investigación musical en su laberinto”. Conferencia


de clausura del Primer Foro de Investigación, Universidad de los Andes, Santa Fe de
Bogotá, 22 de outubro de 1999. Disponível em: http://www.gpmagma.net/pdf/txt_e/sitio-
lainvestensulaberinto.pdf

SCARFE, Neville. “Play is education”. Childhood Education 39 (3), Washington D.C.,


1962.

29
COMUNICAÇÕES

Funk

30
Trampos, montagens e patifagens: uma etnografia musical no Campo da Tuca,
Porto Alegre15

Pedro Fernando Acosta da Rosa16

Resumo

O presente artigo visa, de maneira resumida, mostrar um pouco da etnografia musical realizada na
Comunidade do Campo da Tuca, zona leste de Porto Alegre, entre julho de 2014 e dezembro de 2015. A
tentativa é de compreender os processos e os procedimentos estéticos e sonoro-musicais envolvidos nas
musicalidades Funk no Sul do país e sua relação com a luta da diáspora Negra no combate ao racismo.
Para tal, baseio-me nas noções de espaço banal (Milton Santos), diáspora (Stuart Hall), evento musical
(Anthony Seeger) e quilombismo (Abdias Nascimento).
Palavras-chave: Funk, Porto Alegre; Etnomusicologia; Performance e Identidade.

Quem pode adivinhar se essa


iniciativa, aparentemente
equivocada, não se transformará
num movimento de tomada de
consciência e de uma afirmação
original? (NASCIMENTO, 1977,
p.131)

Aquecimento

Viver em uma região do Brasil onde mais de 80 por cento da população é


branca e, ao mesmo tempo, viver em um país em que mais da metade da população
considera-se negra, é viver de maneira quase esquizofrênica. Para o sujeito negro(a) que
vive no Rio Grande do Sul, existem muitas maneiras de ser negro; pode-se ser
consciente de suas condições históricas e participar da luta política ou apenas viver o

15
Este texto trata-se de uma versão da dissertação de mestrado Bailes, festas, reuniões dançantes,
trampos, montagens e patifagens: uma etnografia musical no Campo da Tuca, “a apital do Funk no sul
do país”, PPGMUS UFRGS, 2016.

16Mestre em Etnomusicologia/Musicologia UFRGS. Doutorando em Etnomusicologia/ Musicologia da


UFRGS; professor de música da rede Estadual e Municipal de Porto Alegre e produtor musical do Ponto
de Cultura Campo da Tuca.

31
racismo, sem ter, em razão das condições impostas pelo racismo, sexismo e pelas
condições materiais e educacionais, força para enfrentá-lo e para atuar politicamente
dentro das organizações formais de luta, como os sindicatos, as universidades e os
diferentes movimentos sociais.

O que há de comum entre todos é o fato de seus antepassados terem sido


arrancados da África, chegando aqui na condição de escravizados, de terem sofrido com
as desumanizações que relegaram ao negro uma condição de subalternidade e de terem
o seu corpo e sua cultura considerados como de menor valor, em razão do sistema
colonial que perdura até hoje.

Para um acadêmico como eu, viver na condição subalterna é viver,


primeiramente, em constante processo de tensão e de luta por reconhecimento, para
depois disto galgar outras lutas em outros campos. Persiste ainda na mentalidade de
negros e não negros os estigmas da cor e do racismo. O negro carrega ainda o fardo de
viver em uma sociedade em que os valores, em todos os sentidos, muito mais do que em
outras regiões do Brasil, são eurocêntricos. Mesmo assim, o negro do Rio Grande do
Sul mantém-se na luta, e o cenário Funk no Sul do país é um exemplo disto.

Mesmo diante de toda a força dos movimentos sociais negros e de toda a


produção universitária, entre elas etnomusicológica, em relação à participação ativa
dos(as) negros(as) na produção cultural, como mostram os trabalhos dos grupos de
pesquisas do PPGMUS UFRGS: GEM (Grupos de Estudos Musicais da UFRGS) e
ETNOMUS UFRGS (Núcleo de Estudos em Música do Brasil e América Latina), ainda
persiste o lugar subalterno, de maneira muito contraditório na própria universidade.

As cotas deram-nos um fôlego e uma esperança, mas, em virtude de possíveis


cortes, todas as conquistas estão ameaçadas, e essa condição subalterna de que tratei no
início irá refletir-se em mortes da juventude negra, em cortes para produção e incentivo
artísticos, em diminuição no número de bolsas de estudos para as ações afirmativas, no
rebaixamento da qualidade ainda precária da educação, em falta de recursos para
segurança, transporte, um desmonte do estado brasileiro e das conquistas dos negros na
última década, que acabarão restritas à legislação e garantidas apenas na constituição.
Na prática, não sairão do papel, e tampouco terão efeito prático imediato.

Talvez esse quadro desanimador e pessimista possa ser repensado através do


movimento Funk, o qual pode ensinar e servir de exemplo a todos os acadêmicos, bem

32
como às lideranças dos movimentos sociais negros, aos estudantes de graduação e
negros e não negros inconformados, revoltados com as desigualdades sociais e que se
enquadram na agenda de luta antirracista como parte de um movimento da diáspora
negra. A experiência do trabalho etnográfico no campo da Tuca talvez possa nos ajudar
a pensar novas estratégias que partem dos de baixo, dos excluídos, dos sem voz, mas
que, nas brechas do sistema, negociam, articulam e atuam politicamente, realizam sua
agencia e vão à luta, e atuam de maneira silenciosa a partir do não lugar que ocupam na
música e na cultura dita gaúcha, e de seus modos de ver o mundo.

A epígrafe acima, de Abdias Nascimento (1977) sobre o genocídio do negro


brasileiro, nos interpela e nos leva a pensar que uma música considerada alienada, de
massa, comercial, vulgar, baixa, pobre, de uma cultura pobre, feita por pobres favelados
e de vila, pode transformar-se em um movimento nacional e internacional de
consciência de seu lugar em uma sociedade racista, em que as principais vítimas são
jovens, homens e negros, que têm buscado alternativas e enfrentado à sua maneira, seja
ela consciente ou não, o legado deixado pela escravidão e pelo racismo.

Começa o jogo

Realizei trabalho de Campo de setembro de 2014 a dezembro de 2015 na vila


Campo da Tuca, situada na Região Partenon, Bairro João Pessoa, zona leste de Porto
Alegre. A comunidade tem aproximadamente 10 mil habitantes e teve um aumento
significativo em sua população a partir da década de 70, em virtude do êxodo rural e do
processo de reurbanização do centro da cidade.

Esta etnografia musical surge a partir do meu convívio com adolescentes e


jovens funkeiros em espaços formais e informais de educação em Porto Alegre e da
minha curiosidade em conhecer a cena Funk do Campo da Tuca. Tive como problemas
de pesquisa a relação do Funk como prática sonora e musical da diáspora negra, o(s)
discurso(s) político(s) em torno do Funk, a circulação e produção musical Funk pelos
meios virtuais e comunicacionais e a formação dos primeiros bailes na comunidade do
Campo da Tuca. Busquei, ainda, desvendar como, no Campo da Tuca, espaço cultural
periférico da cidade de Porto Alegre, a música Funk se conecta a cena musical local e

33
global e como o futebol pode nos ajudar a entender melhor esse “campo de forças e de
lutas” (BOURDIEU, 1996).

Construí este trabalho a partir das contribuições teórico-metodológicas de


Nascimento (1980) - Quilombismo um conceito emergente do processo histórico-
cultural da população afro-brasileira; Seeger (1992) - Etnografia da música; Bourdieu
(1996) - Razões Práticas: Sobre a teoria da ação; Santos (2001) - Por uma outra
globalização. Do pensamento único a consciência universal; Hall (2003) - Pensando a
Diáspora; e da coletânea de estudos recentes em etnomusicologia organizada por Lucas
(2013) - Mixagens em campo: etnomusicologia, performance e diversidade musical.

A história do Campo da Tuca demonstra a saída encontrada por moradores que


foram despejados de seus espaços existenciais, seja pelo êxodo rural, seja pela migração
forçada, e se tornaram os principais promotores de festas de aniversários, bailes e
reuniões dançantes. Além disso, através do trabalho formal e informal, criaram grupos,
associações e times de futebol, vivendo e convivendo em meio às tensões e disputas por
espaço e poder. Para Bourdieu:

[...] podemos compreender uma trajetória […] a menos que tenhamos


previamente construído os estados sucessivos do campo no qual ela se
desenrolou; logo, o conjunto de relações objetivas que vincularam o agente
considerado - pelo menos em certo número de estados pertinentes do campo -
ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e que se
defrontaram no mesmo espaço de possíveis. (BOURDIEU, 1996, p. 82).

Foi neste espaço possível, considerado de menor valor na época, que o


exercício do debate e da política foram fatores fundamentais para a transformação da
comunidade. Neste sentido, Milton Santos aponta que

[…] nos espaços banais se recria a ideia e o fato da Política, cujo exercício se
torna indispensável, para providenciar os ajustamentos necessários ao
funcionamento do conjunto, dentro de uma área específica. Por meio de
encontros e desencontros e do exercício do debate e dos acordos, busca-se
explícita ou tacitamente a readaptação às novas formas de existência (Ibidem,
p. 54).

Eu sou fruto do trabalho político e da política pública realizada na comunidade,


pois passei por todos os programas que a Associação Comunitária do Campo da Tuca

34
(ACCAT) desenvolveu, tais como a Escola Infantil, programas no turno inverso ao da
escola e, quando adolescente, dos projetos em parcerias com a prefeitura. Tornei-me
educador social neste espaço, oficineiro de música e pesquisador, sempre tendo a
música e a cultura popular negra como ferramenta de intervenção social. Para Stuart
Hall:

[...] na cultura popular negra, estritamente falando, em termos etnográficos,


não existem formas puras. Todas essas formas são sempre o produto de
sincronizações parciais, de engajamentos que atravessam fronteiras culturais,
de confluências de mais de uma tradição cultural. Essas formas são sempre
impuras, até certo ponto hibridizadas a partir de uma base vernácula (p. 343).

Após finalizar esta etnografia, mas continuar em contato com os funkeiros e


com os moradores da Tuca, como nativo e ex-morador da vila, as palavras de Debora
Wong começaram a ecoar em meus ouvidos quando esta disse que a música era um
agente de transformação social. Dei-me por conta de que essa frase resume bem o papel
central que a música tem tido na Tuca. Desde o momento em que as principais
lideranças assumiram a música como plataforma política importante - consciente ou
inconscientemente -, ela tem transformado a vida das pessoas; assim como mudou a
minha, mudou a de vários de meus colaboradores.

As lideranças dos times de futebol Flamenguinho, 12 Horas, Azulão e União


da Tuca, bem como a ACCAT, promoveram na comunidade formas de sociabilidade, de
convivência e de articulação política. Segundo Abdias do Nascimento:

Essa rede de associações, irmandades, confrarias, clubes, grêmios, terreiros,


centros, tendas, afoxés, escolas de samba, gafieiras foram e são os quilombos
legalizados pela sociedade dominante; do outro lado da lei se erguem os
quilombos revelados que conhecemos. Porém tanto os permitidos quanto os
"ilegais" foram uma unidade, uma única afirmação humana, étnica e cultural,
a um tempo integrando uma prática de libertação e assumindo o comando da
própria história (p.4)

Os jovens como eu, descontentes, com dificuldades econômicas e sem dinheiro


para comprar instrumentos, começaram a promover eventos musicais na comunidade.
Anthony Seeger, aponta que: “Um evento musical local é também parte de um amplo
processo econômico, político e social que pode contestá-lo mesmo quando o reproduz

35
[...] Muitas vezes, a música é também parte de um processo político, de censura ou
promoção do Estado” (p. 26). Por conta desta tradição de bailes, este encontro culminou
no surgimento de uma nova cena musical na Vila: o Funk.

Neste sentido, preocupado com as pessoas que fizeram a cena musical na


comunidade no tempo e neste espaço, fui observando que o Funk, tratado como
marginal nas décadas de 90 e 2000, foi se fortalecendo, trazendo jovens de diferentes
estratos sociais para a comunidade a partir de suas relações com as redes sociais, tais
como Orkut, MSN e Facebook. MC Betinho do Camarote é um dos artistas que faz
parte da primeira geração de MCs de Funk do Campo da Tuca.

MC Betinho, entre outros artistas da nova geração, como MC Jamai, MC Jean


Paul e DJ Cassiá, darão continuidade à tradição de bailes e festas com música eletrônica
iniciada nos anos 70 por Mano Delcio DJ, Jara Musisom, Brodher Nenê e outras
equipes que surgiram no bairro Restinga e espalharam-se pela cidade. Uma pratica
musical restrita aos negros e presente tão somente nos bairros populares vai mudando
aos poucos o mapa cultural da cidade. Em vez de CTGs, de boates, dos chamados
“inferninhos” do centro de Porto Alegre ou da zona tradicionalmente boêmia (bairro
Cidade Baixa), agora a periferia e a Tuca eram os principais pontos de encontro de
jovens de classe média e alta conectados ao Funk.

A partir de sua valorização nacional como expressão da juventude, na onda de


uma maior aceitação em relação às políticas de cotas e em virtude de o racismo ganhar
agenda nos debates públicos e por parte do Governo Federal nas gestões de Lula e
Dilma, o Funk passa a ser reconhecido como patrimônio da cultura popular no Rio de
Janeiro em 2009. As lideranças locais de Porto Alegre irão buscar o mesmo
reconhecimento público, exigindo do estado uma política cultural adequada. A 1º
Semana do Funk de Porto Alegre, realizada em agosto de 2015, foi resultado desta
conquista dos funkeiros do Sul do país.

Isso deu-se em razão do capital cultural acumulado pelas lideranças locais e


pela juventude, que foi atualizando suas músicas de acordo com as mudanças que
ocorriam no Funk do Rio de Janeiro, com o Funk melody e o Funk proibidão, e com a
fase dos Bondes em 2010, formados por jovens do campo da Tuca e dos principais
bairros negros e populares, como Lomba do Pinheiro, São José, Morro da Cruz,
Cruzeiro e Bom Jesus. MC Filipinho registrou no Facebook uma das músicas dos

36
Malvados, que improvisavam suas canções batendo na palma da mão. MC Eloy e MC
Ding ensinaram MC Filipinho a cantar e este é hoje um dos principais artistas de Funk
reconhecido nacionalmente. Enfim, o Funk elevou o capital simbólico da comunidade
do Campo da Tuca.

Este trabalho etnográfico aponta para um fato central, e que vejo de


importância vital para professores de escolas públicas, para ativistas dos movimentos
sociais, para gestores públicos e professores universitários, a partir do momento em que
escolhi ser pesquisador-educador fui revendo meus (pré)conceitos durante o percurso da
pesquisa em relação ao Funk. Em alguns momentos, fui acusado de, através do meu
trabalho, estar fazendo propaganda do Funk da Tuca, como disse um aluno da UFRGS.
Talvez a sua fala demonstre o quanto a relação econômica está imbricada na cultura
Funk, também. Neste caso, as vinhetas montadas por DJ Keke são uma forma de
propaganda e um convite ao baile.

A representação da comunidade, ou pelo menos de uma parte dela, está bem


ilustrada nas músicas dos funkeiros. Tudo dois, de MC Ton, por exemplo, representa
bem o que era vivido pelos moradores da Tuca como um “território de paz”, em meio a
conflitos cada vez maiores entre grupos e bondes ligados ao comércio varejista de
drogas ilícitas, popularmente conhecido como tráfico de drogas, na cidade de Porto
Alegre. Além disso, através de eventos musicais como o baile da Tuka, a Roda de Funk
e a Semana do Funk, seria impossível não ver a “Tuca” como protagonista desta cena. A
classe política percebeu isso, e os organizadores do Funk também.

No entanto, mesmo com essa força, mesmo com toda essa expectativa, alguns
funkeiros que chegavam à Escola de MC tentavam obter espaço para tocar no baile da
Tuka e para fazer parte do Sindicato MC. Outros artistas mais experientes, como MC
Ding - principal compositor de Funk no Campo da Tuca -, percebiam, entretanto, uma
desvalorização da sua música em relação aos MCs do Rio de Janeiro e de São Paulo no
que diz respeito aos cachês, mesmo sendo influenciados por eles. MC Kinho mostra
essa constante atualização do Funk do sul, ao acompanhar as mudanças no Rio de
Janeiro, terra do Funk Carioca.

Os MCs do Rio de Janeiro que vinham duelavam em cima do palco, faziam


batalha de rima em cima do palco aqui. Aí começou a rapaziada que era mais
nova começou a se inspirar nas mesmas ideias. Assim as mesmas ideias
continuou mais pra frente, aí eles mudaram o jeito de cantar e nos mudamo
também (MC Kinho).

37
Além disso, no âmbito da Escola de MCs, alguns funkeiros não concordavam
com o fato de ter que frequentar a escola formal como um pré-requisito para fazer parte
do projeto. Alguns, porém, afirmavam que essa exigência deveria permanecer, e que a
educação era uma dimensão importante que precisava ser cobrada.

Outra discussão foi a respeito de como selecionar quem era e quem não era
bom em Funk a partir das performances. A maneira encontrada foi testar a versatilidade
ao cantar não só Funk putaria, principal referência do momento, mas também outros
tipos de Funk, como o Funk Consciente, Funk do Bem e o Funk Ostentação.

Para diferenciar-se do Funk do Rio de Janeiro e de São Paulo, e assim


encontrar o seu próprio lugar naquilo que chamaram os idealizadores da Roda de Funk
de um “Funk mais swingado”, realizado no sul do país, surgiu o chamado Funk do bem,
que dialogava com a proposta da Escola de MC, do Sindicato MC e dos lideres políticos
da cidade. As músicas “ iga Racismo não”, de MC Mano Beto, MC ing e MC Prince,
“Se Beber não dirija” e “Mulher que chega e para” de MC Kinho, “Mulheres
Guerreiras”, das ivas do Funk da Escola de MC, MC Moreninha, MC Marrentinha,
MC Branquinha, MC Mily, bem como “Nascido na Favela”, de MC Senna, e “Perdeu”,
de MC Barbie, enquadram-se nesta proposta.

Neste sentido, as discussões e atuações do Funk do Sul têm inspirado artistas


de outras localidades, como do Rio de Janeiro, que já estão pensando e criticando as
letras que estão sendo produzidas lá, conforme consta no site do baile Funk da Tuka um
comentário de MC Alexandre. Sendo assim, ao juntar o “dialeto” do Funk Carioca e o
Sonho do Funk Ostentação de São Paulo, localmente produz-se uma geração de músicos
funkeiros conectados à produção musical de Funk nacional e às novas tendências, como
a equipe Boca-Braba, Kinho, MC Eloy e Ding. Este último é conhecido na capital do
Funk como o “caneta de ouro”, autor do Hino da Escola de MC e autor da música “Nóis
é louco da cabeça”.

Terceiro tempo

38
Na perspectiva dos estudos da diáspora, esta etnografia musical contribui para
a história musical dos funkeiros da capital do funk sul-brasileiro em seis pontos.
Primeiro, demonstra o quanto a política faz parte da luta por reconhecimento e
por melhores condições de vida, e o quanto ela afeta, principalmente, a população negra
no curso da história do Brasil. Entender seu funcionamento é muito importante.
Segundo, o aspecto social que possibilitou o encontro entre pessoas de estratos sociais
diferentes a partir do funk e da tradição dos bailes, festas e reuniões dançantes em Porto
Alegre desde os anos 70. Terceiro, que a cultura expressada aqui através do Funk
demonstra a centralidade da música ao lado do futebol, elementos importantes no
aumento do capital simbólico da comunidade. Quarto, pensar a partir das categorias
nativas: trampo, montagens e patifagens, entendendo não apenas o Funk no Sul do país,
mas o Funk nacional e os trânsitos transnacionais. Quinto, que através da reflexividade
que apresento, os próprios agentes possam repensar as suas práticas no passado, no
presente e projetar o futuro do Funk. Sexto, repensar a responsabilidade social que os
acadêmicos devem ter com as comunidades nas quais pesquisam.

No meu caso, a proposta do Ponto de Cultura para o Funk buscava reparar as


injustiças e preconceitos contra o Funk. Foi o que tentei fazer durante o trabalho de
Campo, pois de nada adianta ter status de acadêmico, reconhecimento, bem como
aumento de poder aquisitivo, se eu “virar as costas pra comunidade”, como diz a música
de MC Senna.

Este trabalho foi pensado como uma metáfora futebolística para compreender e
entender melhor a música Funk. Pensar nos tempos - treino, aquecimento, primeiro
tempo, intervalo, segundo tempo, prorrogação, pênaltis e terceiro tempo - é dar sentido
ao jogo, à disputa e à relação da música com o futebol, pois, como diz o Antropólogo
Roberto Da Matta (2013), a vida é uma bola que corre mais que nós, e assim também é
o Funk: quanto mais corremos para tentar entendê-lo, mais percebemos que ele corre
mais que nós, em razão de ser um fenômeno musical dinâmico, múltiplo e heterogêneo.

Referências

BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: Sobre a teoria da ação. Tradução de Mariza


Corrêa. Campinas, SP: Papirus, 1996.

39
HALL, Stuart. Pensando a Diáspora (Reflexões Sobre a Terra no Exterior). In: Da
Diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Liv Sovik (org.); Trad. Adelaine La
Guardia Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da Unesco
no Brasil, 2003.
MC Kinho. Entrevista sobre sua trajetória musical no Funk. Porto Alegre. 07 Mai.
2015. Entrevista concedida a Pedro Fernando Acosta da Rosa.
MOORE, Carlos. Racismo e Sociedade: Novas bases epistemológicas para entender o
racismo. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007.
NASCIMENTO, Abdias. Quilombismo um conceito emergente do processo histórico-
cultural da população afro-brasileira: Uma proposta do autor aos seus irmãos e irmãs
afrodescendentes no Brasil e nas Américas. In: II CONGRESSO DE CULTURAS
NEGRAS DAS AMÉRICAS, Panamá, 1980.
_______. O Genocídio do Negro Brasileiro. Petrópolis/RJ: Editora Paz e Terra, 1977.
ROBERTO DAMATTA (São Paulo). O Estadão. O Futebol como filosofia. 2013.
Disponível em: <http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,o-futebol-como-filosofia-
imp-,1039014>. Acesso em: 12 dez. 2015.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Do pensamento único a consciência
universal. Editora Record, São Paulo, 2001.
SEEGER, Anthony. Etnografia da música. In: MYERS, Helen. Ethnomusicology: an
introduction. Londres: The MacMillan Press, 1992.

40
O Semba Angolano e o “paradigma do Ngola ritmos” 17

Mateus Berger Kuschick18

Resumo

Semba é um gênero musical conhecido popularmente como a música-símbolo de Angola, país


situado na costa ocidental do continente africano, elevada à condição de República em 1975, após
mais de quatro séculos de colonização portuguesa. O presente artigo pretende apresentar ao público
leitor o semba produzido em Angola da 2ª metade do século XX em diante, através do grupo Ngola
Ritmos e de sua produção musical em diálogo com outras expressões musicais do atlântico negro,
revelando o contato cultural estreito entre comunidades negras situadas na diáspora africana e a
comunidade musical angolana. A pesquisa de doutorado valeu-se de pesquisa etnográfica realizada
em 2015 nas cidades de Luanda, Uige e Benguela (Angola).

Palavras-Chave: semba; música angolana; etnomusicologia

Em pesquisa de doutorado realizada de 2012 a 2015 no PPGMUS da Unicamp –


Universidade Estadual de Campinas-SP, com cooperação internacional da Unikivi –
Universidade Kimpa Vita – Uige-AO, foi realizada pesquisa etnográfica envolvendo
entrevistas com músicos, jornalistas e acesso a material fonográfico, bibliográfico e
filmográfico relacionado às músicas angolanas, em especial o semba. Desde o processo
de seleção para o curso de doutorado o principal combustível para o desenvolvimento
da pesquisa era o interesse e a curiosidade antigos por trazer ao âmbito da pesquisa
acadêmica em música do Brasil, mais estudos sobre a produção musical dos países
africanos de língua oficial portuguesa, como Angola por exemplo. Foi realizada viagem
às cidades de Luanda, Uige e Benguela no segundo semestre de 2015 para pesquisa de
campo. Tal período recebeu apoio acadêmico e financeiro da CAPES e permitiu que
fosse colocado em prática princípios do método etnográfico, presente, dentre outras
fontes, em Guber (2001). Para essa autora, “o chamado pós-moderno à reflexividade
supõe que o etnógrafo deve submeter à crítica sua própria posição no texto e no relato
que faz da população com a qual está em contato, sob o pressuposto de que aquilo que

17
Texto baseado na tese de doutorado Kotas, Mamás, Mais Velhos, Pais Grandes do Semba: a música
angolana nas ondas sonoras do atlântico negro, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em
Artes – Música da UNICAMP, 2016.
18
Doutor em Música, UNICAMP, 2016 e Mestre em Musicologia/ Etnomusicologia com a dissertação
Suingueiros do Sul do Brasil: uma etnografia musi al nos “be os, guetos, bibo as” e bares de dondo as
de Porto Alegre, PPGMUS UFRGS, 2011, publicada em livro como Suingue, Samba-rock e Balanço:
músicos, desafios e cenários (Porto Alegre, Medianiz, 2013).

41
estamos capacitados a ver nos outros depende em boa medida daquilo que está em nós
mesmos” (GUBER, 2001, p.121). Um exercício constante de alteridade para que o
conhecimento se construa dialogicamente, em permanente negociação e pluralidade de
vozes, como defende James Clifford (1986), reconhecendo ‘cultura’ como resultante de
um processo intersubjetivo, convergente, divergente e paralelo, e não como um fato
dado e exterior.

Angola mantém laços profundos com a história do Brasil, em função do


contingente de em torno de 4 milhões de habitantes do território hoje conhecido como
Angola ter sido deslocado para o Brasil pelo tráfico escravo ao longo de três séculos e
meio (SETAS, 2007). A presença de culturas africanas no dia-a-dia brasileiro é
inegável, apesar de nem sempre tão mencionada ou destacada, mas no âmbito da música
popular brasileira alguns aspectos se projetam de maneira que não se pode ignorá-los,
como na sonoridade do berimbau (hungo), da cuíca (puita) e na divisão rítmica de
gêneros musicais brasileiros como o samba e o jongo, para apenas citar alguns.

Nesse texto trataremos brevemente sobre o contexto de formação do semba


angolano enquanto gênero musical que veio a ser elevado a música símbolo de Angola
da segunda metade do século XX em diante, quando os conflitos por independência
foram se tornando cada vez mais organizados e também violentos no país. Angola
vivenciou a guerra anticolonial oficialmente de 1961 a 1974, contra Portugal, mas com
uma participação importante de EUA e URSS apoiando diferentes correntes políticas de
Angola: os EUA apoiando a FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola) e mais
tarde a UNITA (União Nacional para a Independência de Angola), e a URSS apoiando
o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), que acabou assumindo o poder
político do país em 1975, com a posse do primeiro presidente da República de Angola,
Agostinho Neto. Nesse cenário desenvolvia-se principalmente na capital, Luanda, mas
também com expressões em outros centros urbanos do país como Benguela, uma prática
musical urbana denominada Semba, que fazia resistência à dominação portuguesa e
apresentava em canções os maiores anseios do povo angolano, indicando que aquele
era, em música, seu principal brado de independência e soberania cultural. Mas, afinal,
como poderíamos definir o semba angolano produzido a partir da segunda metade do
século XX?

A história para ser contada costuma se apoiar em marcos temporais e quando o


semba angolano é o tema, a história documentada em filmes, livros, artigos acadêmicos

42
e depoimentos define o ano de fundação do grupo Ngola Ritmos, 1947, como marco do
surgimento do gênero musical semba, da maneira como o conhecemos pelos
fonogramas e vídeos acessados. A formação do Ngola Ritmos que ficou mais
conhecida, vigente até 1959, teve ‘Liceu’19 (voz, violão-ritmo e piano), tido como o
principal mentor do projeto musical-estético do grupo, Nino Ndongo20 (ngomas21 e
voz), Amadeu Amorim22 (ngomas e voz), Zé Maria (violão-solo e voz), Euclides de
Fontes Pereira23, o Fontinhas (dikanza24 e voz), Belita Palma25 (voz) e Lourdes Van
Dunem26 (voz).

Figura 8 – Da esq. para a dir.: Liceu Vieira Dias, Nino Ndongo, Belita Palma, Amadeu Amorim, Lourdes
Van Dunem e Zé Maria. Para completar a formação clássica do grupo falta o percussionista Fontinhas.
Fonte: Coleção música de Angola – FENACULT, 2014, p.21.

Ariel de Bigault, cineasta, produtora, conhecedora tanto da música angolana


quanto da música brasileira, revela, em entrevista que realizamos com ela por e-mail,
suas posições sobre o que vem a ser o Semba:

o semba tem suas raízes nas músicas tradicionais da região kimbundu 27, da
cidade de Luanda e da ilha de Luanda e [...] não tem uma definição clara,

19
Carlos do Aniceto ‘Liceu’ Vieira ias (1919-1994).
20
Manuel Antonio Rodrigues Junior – Nino Ndongo (____-2005)
21
“Ngoma” são tambores com peles dos dois lados, tocados com as mãos. Redinha assim define:
“designação em kimbundu para tambor: quando cilíndrico tem dois tímpanos; quando cônico, um só”
(REDINHA, 1972, p.164).
22
Nascido em Luanda a 03.08.1937.
23
Luanda, (1925-2013).
24
Dikanza é um instrumento de percussão semelhante ao reco-reco do Brasil, ao guero da América
Central e Caribe. Da família dos ideofones (instrumento percussivo cujo som é produzido por raspagem
sobre o corpo do instrumento), feito com bambu, no qual é friccionada ou percutida uma baqueta de
espessura fina sobre talhos transversais. A dikanza é mais comprida que seus equivalentes nas Américas
e tem características peculiares de interpretação, muito presente em estilos de música angolana, como o
semba.
25
Isabel Salomé Benedito de Palma (1932-1988).
26
Maria de Lourdes Pereira dos Santos Van-Dunem (1935-2006).
27
Segundo Menezes, “Angola tem população predominantemente de origem bantu, que abrange o grupo
de povos em cujas línguas a desinência ‘-ntu’ significa homem” (2000, p.101). A população de Angola

43
única, unívoca: é um movimento e uma estrutura musical que começa a
desenhar-se nos anos 1960, tem tido muitas formas, e tem muitos sembas
diversos. Até hoje parece que designa quase todas as músicas de Luanda, e
nem todas são sembas (BIGAULT, depoimento via e-mail, 15.12.2014).

Figura 1 – Em destaque, a região do país em que predominou a produção e práticas musicais associadas
ao semba. O idioma local nessa região é o kimbundu. Fonte: www.movv.org. Acesso em 20.02.2015.

Em algumas particularidades estilísticas, que Bigault alega estarem


generalizadas no discurso sobre a música de Luanda, encontramos, ao longo dos quatro
anos de trabalho, pontos de diferenciação do semba com outros gêneros musicais e,
assim, construímos a pesquisa sobre o semba angolano de 1950 em diante. Produções
musicais posteriores à independência de 1975 também são importantes para a pesquisa,
pois trazem o semba com outras combinações estético-sonoras, dialogando com gêneros
como o zouk das Antilhas nos anos 1980, o fenômeno da kizomba angolana no final dos
anos 1980 em diante e os mais recentes rap e kuduro, de enorme aceitação e difusão no
país. Nessa publicação, entretanto, estaremos restritos ao período em que a primeira
formação do grupo Ngola Ritmos esteve ativa, de 1947 ao final da década de 1950,
quando alguns de seus integrantes foram presos, e outros transferidos pelo governo
colonial para outras regiões da colônia, visto que eram funcionários públicos.

O Ngola Ritmos não encerrou suas atividades em 1959: foi reformulado e se


manteve até 1970, desempenhando papel de embaixador da música angolana em
Portugal. Exibiu-se em teatros e na televisão portuguesa com as roupas angolanas
típicas, as danças, os instrumentos, o idioma kimbundu consoantes a um projeto
português de ações que incentivavam a expressão da cultura das províncias do ultramar
“para que, em contato com a cultura portuguesa, originassem a cultura lusotropical”,

compreende cerca de 100 grupos etnolinguísticos de origem bantu, que podem ser divididos em nove
grandes grupos. Os principais são: Ambundu (+/- 20% da população) – falam kimbundu; Ovimbundu
(+/- 36% da população) – falam umbundu; Bakongos (+/- 15% da população) – falam kikongo.

44
apoiados em uma interpretação às teses de Gilberto Freyre. Ou, como consta nas Bases
Gerais para a Ação Psicossocial, programa do governo português, “era preciso distraí-
los” (ALVES, 2015, p.99).

Jorge Macedo (1941-2009), etnomusicólogo e poeta angolano, relata o


testemunho que recebera de Liceu Vieira Dias, líder do Ngola Ritmos, a respeito da
decisão de “nos anos cacimbosos de 1940 se mergulhar, cabeça e alma, nas ‘sembas’,
tomando aqui semba como nome englobalizante de tudo o que faz dar massemba
(umbigadas) no folclore angolano” (MACE O, 1989, p.21). a música que embalava
“tudo o que fazia dar massemba” até onde chegou o Semba: esse percurso mostrou-se
para nós extenso e resistente, diverso e de amplo alcance. Extenso e resistente, pois
são quase 70 anos, dos quais em pelo menos 37 deles o país esteve em guerra; diverso
porque identificamos em nossa pesquisa pelo menos 10 outros gêneros musicais
interagindo com o semba; e de amplo alcance pelo fato de os criadores do semba
sempre usufruírem da tecnologia disponível em cada época para alcançar um público
maior (via rádios, compactos, LPs, CDs, internet)

A escuta sistemática e continuada nos permitiu destacar elementos recorrentes


que caracterizam o gênero musical semba e o aproximam ou diferenciam de outras
expressões musicais: da kabetula, kazukuta, kizomba, kuduro e rebita (angolanos), da
kilapanga, da rumba congolaise e da coladera caboverdiana (africanos), da música afro-
latina de rumbas, mambos e sambas (Cuba, Caribe e Brasil), e da aqui denominada
canção europeia28. Temos convicção de que é da junção de unidades mínimas de
significação partilhadas pelos músicos, pelo público, pelos produtores, pelo mercado
fonográfico que desponta e fixa-se um gênero ou estilo musical, qualquer seja ele. O
semba, semelhante aos outros gêneros mencionados, é feito de “uma pluralidade de
experiências estéticas, uma pluralidade de modos de fazer e usar socialmente a arte”
(MARTIN-BARBERO, 2001, p.82), a partir de elementos dispersos de outros gêneros
musicais que, reunidos em um contexto (Angola), em um período histórico (anos 1950
em diante) e com um determinado grupo humano formam um novo e único gênero
musical.

A inserção de outros gêneros musicais como orbitantes em torno do semba, para,


em diálogo entre seus artífices, ressaltar aspectos próprios do semba surgiu a partir dos

28
Sabemos que não atingimos, com este estudo, a totalidade de interações com outras manifestações
expressivas que o semba estabelece(u) ao longo do tempo.

45
depoimentos dos músicos entrevistados e da escuta dos fonogramas. No caso específico
e paradigmático do Ngola Ritmos é muito presente a relação direta com ritmos do
carnaval angolano, como a kazukuta, a kabetula e a rebita: a kazukuta e a kabetula

principalmente pela célula rítmica mais recorrente 1) kazukuta ; 2) kabetula


; 3) a rebita por ser na dança desse específico gênero de música e dança
de salão angolano que se dá a semba, ou umbigada entre os casais. Portanto, os
integrantes do Ngola Ritmo também mergulharam nas expressões do carnaval angolano
para forjar um gênero que pudesse dialogar com outras expressões do atlântico negro,
incorporando violões, harmonizações, como por exemplo aquelas vindas das músicas da
população afro-latina.

A esse respeito, é importante trazer os depoimentos de dois músicos de enorme


respaldo em Angola, pois trazem elementos que revelam uma proximidade entre semba
angolano e música das populações afrodescendentes de Brasil e Cuba, principalmente.
Um deles, Carlitos Vieira Dias, guitarrista, baixista, compositor, filho do lendário kota29
Liceu Vieira Dias:

o semba que se tocava naquela altura foi uma mistura de ritmos da kazukuta,
aquela música tocada com os instrumentos tradicionais, e em tons maiores.
Então, o meu pai agarrou nesses ritmos, passou pra guitarra [violão] as
batidas, mas tocando em tons menores. E é a isso que se chamou já o semba
urbano. Porque o semba não é mais do que o kazukuta tocado em menor,
com violão (Depoimento em 16.10.2015).

O contato com a música brasileira e da América Latina em geral é mencionado


nas entrevistas e percebido na sonoridade de algumas canções do Ngola Ritmos,
revelando, muito mais do que raízes ou origens, as conexões e interações entre fazeres
musicais, semelhantes, porém distintos. Carlitos Vieira Dias relembra algumas
influências de seu pai:

o meu pai, pra além do Ngola Ritmos, criou o Grupo dos Sambas, e ele
compunha uns sambas à moda angolana. [...] Porque aqueles anos do tempo
do meu pai eles tocavam muitos sambas; o samba era uma música muito
ouvida aqui. Sobretudo na classe urbana de Luanda.
M - chegava através de discos?
CVD - Sim. Vinham muitos barcos comerciais pra cá; então nós ouvíamos
aqui o Ataulfo Alves, a Carmélia Alves e seus Cangaceiros – estiveram cá!
Vieram cantar cá! O Noite Ilustrada, o Jackson do Pandeiro! A malta aqui
gostava do Jackson. Depois começamos a ouvir o Ivon Cury, que também
chegou a cantar aqui; mandava um vozeirão incrível. (Depoimento em
16.10.2015).

29
Kota é uma gíria angolana para se referir, com respeito e reverência, a alguma pessoa de mais idade.

46
Outro músico com quem tivemos contato foi Marito Furtado, baterista da Banda
Maravilha, agrupamento fundado em 1992 auto-denominado como Os Embaixadores do
Semba. Marito mencionou as ligações do Ngola Ritmos com a música afro-latina em
função de uma canção específica, Muxima, canção de tradição popular, rearranjada e
interpretada pelo Ngola Ritmos, considerada um hino informal de Angola. Diz Marito:

MF - A leitura que eu faço é que o Ngola Ritmos era muito influenciado pela
música latina – porque, o que o kota Liceu fez? Ele juntou a harmonia
àqueles tambores, das turmas. Foi o primeiro a juntar instrumentos
harmônicos aos batuques. E essas cordas ele foi buscar aonde? Na música
brasileira, que ele ouvia muito, na época. Ele próprio assumiu isso. [...] Eles
ouviam muita música latina. Isto que eles estão a tocar aqui, para mim é
BOLERO. Aquele bolero tocado com bongôs...
M - Eu já vi chamarem de LAMENTO... BALADAS... a coletânea Angola
60´s coloca essa definição. A Marissa Moorman também.
MF - Mas lamento o que é? Lamento é o que ele está a cantar. Ele tá a cantar
um lamento, tá a falar de muxima, que é coração... deus... isso é um lamento.
Agora, ritmicamente, não há nenhum ritmo chamado lamento. Se formos
falar de ritmo, isto é um bolero. Aquilo que fazem os bongôs nos boleros, o
Fontinhas fez na dikanza. E é engraçado ver como ele tocava, ele tocava a
dikanza com aquelas dedeiras; ele nem riscava aqui [nas ranhuras]. No bolero
só fazia isso. Mas isso é tirado tudo da música latina: Brasil, Cuba, das
Caraíbas... (Depoimento em 28.10.2015).

A partir desse paradigma proposto pelo Ngola Ritmos para o semba angolano,
alguns aspectos foram ao longo de décadas se consolidando através do processo criativo
de dezenas ou centenas de artistas envolvidos com o semba em Angola, e que podemos
agora enfatizar:

- O timbre agudo da percussão — o uso sistemático da dikanza marcou esse registro


tímbrico nos anos 1960, que, mais tarde, foi substituído/adaptado pela pandeirola (ou
pandeiro meia-lua) e o hi-hat da bateria, mas sempre enfatizando essa textura tímbrica
aguda e um comportamento improvisativo.

- A presença do baixo (inicialmente a guitarra-baixo e depois o baixo elétrico),


ocupando a região grave, marcando as cabeças de tempo com padrões, ou grooves, de
pouca variação.

- O idioma kimbundu predominante nas canções é outra marca inegável dos sembas,
principalmente, dos 1960’s aos 1980’s.

- São elementos recorrentes do semba as células rítmicas padrão e


, nos instrumentos percussivos de timbre agudo já mencionados.
47
- Os coros de resposta, com aberturas de vozes em acordes, principalmente nos refrões,
imprimem uma coletividade que também caracteriza o semba.

-A ‘malha percussiva’ de ngomas, pares de tumbas, bongôs e timbales preenchendo


todas as semicolcheias dos tempos, variando em acentuações, mantendo, às vezes, uma
suspensão dos tempos fortes.

- A ausência de um registro percussivo mais grave nas ‘cabeças de tempo’, é outra


marca diferencial do semba em relação ao samba, por exemplo. O semba caracteriza-se
mais por suas frequências agudas na sessão rítmica.

- A guitarra solista, protagonista, com ares da maneira congolesa de usar a guitarra,


também pode ser identificada como recorrente no semba.

- A abordagem política, de denúncia de injustiças, de afirmação de um orgulho


angolano, é marcante nos textos dos sembas.

- Outros temas presentes nas letras de sembas são a exaltação ao país, a esperança, a
saudade, situações de feitiçaria, de relações pessoais.

- Os instrumentos de sopro (trompete, sax tenor e trombone), tomados emprestado de


tradições dos vizinhos da RDC, do zouk antilhano ou do afrobeat nigeriano foram
incorporados em uma segunda fase do semba urbano.

- A postura, majoritariamente festiva, de convite à dança, é outra marca forte do semba.

- O bpm (batidas por minuto) do semba, registra oscilação entre 108 e 145bpm, sendo
128bpm a média.

Enfim, uma ampla gama de características que reúne os principais elementos


constituintes do semba de Luanda e arredores, formalizados pelos integrantes do Ngola
Ritmos, a partir de 1947, e perpetuados, renovados, ressemantizados por músicos
contemporâneos e sucessores.

Referências

ALVES, Amanda Palomo. Angolano segue em Frente: um panorama do cenário


musical urbano de Angola entre as décadas de 1940 e 1970. Rio de Janeiro: UFF, 2015.
Tese (Doutorado em História), Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade
Federal Fluminense, 2015.

48
CLIFFORD, James & GEORGE E. Marcus. Writing Culture: the Poetics and Politics of
Ethnography. Berkeley: University of California Press, 1986
GUBER, Rosana. La Etnografia: método, campo y reflexividad. Bogotá: Norma, 2001.
KUSCHICK, Mateus Berger. Kotas, Mamás, Mais Velhos, Pais Grandes do Semba: a
música angolana nas ondas sonoras do Atlântico negro. Campinas: UNICAMP, 2016.
Tese (Doutorado em Música), Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas,
2016.
MACEDO, Jorge. A Dimensão Africana da Cultura Angolana. Luanda: INIC, 2006.
(1989).
MARTIN-BARBERO, Jesus. Dos Meios às Mediações: comunicação, cultura e
hegemonia. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2001.
MENEZES, Solival. Mamma Angola: sociedade e economia de um país nascente. São
Paulo: FAPESP, 2000.
REDINHA, José. Instrumentos Musicais de Angola. Coimbra: Editora da Universidade
de Coimbra, 1972.
SETAS, Antonio. História do Reino do Kongo. Luanda: Ed.Mayamba, 2007/2011.

49
Alupandê o povo da rua: performance, identidade e novas escutas na Quimbanda
de Porto Alegre e Conesul

Felipe Cemim30

Resumo
O presente trabalho propôs-se entender a partir da observação participante, da etnografia musical e do
estudo de trajetórias, os processos e procedimentos técnico-estéticos que fundamentam a construção da
performance das musicalidades e liturgias performatizadas nas sessões e festividades da Quimbanda do
Sr. Exu Rei das Sete Encruzilhadas, através da médium e mãe de Santo Ieda Viana da Silva, conhecida
como Mãe Ieda do Ogum, residente na cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Este ser espiritual
apresenta-se nos ritos da modalidade religiosa denominada Quimbanda ou Linha Cruzada, que faz parte
do campo religioso afro-gaúcho.
Palavras-chave: Quimbanda; Porto Alegre e Conesul; Etnografia musical

Introdução

Este artigo tem como objetivo expor algumas reflexões que são resultado da
produção de minha dissertação de mestrado desenvolvida no Programa de Pós-
Graduação em Música da UFRGS, defendida no ano de 2013 e intitulada Alupandê o
povo da rua: performances e identidades músico-religiosas entre os quimbandeiros do
Sr. Exu Rei das Sete Encruzilhadas em Porto Alegre, desenvolvida através do trabalho
etnomusicológico realizado no Ilê Nação Oyó, centro afro-religioso liderado por Mãe
Ieda do Ogum, localizado no bairro Cidade Baixa em Porto Alegre. No espaço
mencionado são praticadas em diferentes momentos, três modalidades religiosas
distintas: a Umbanda, o Batuque (também conhecido como culto de Nação) e a
Quimbanda, cujas práticas músico-religiosas são o enfoque deste trabalho. Durante
meados de 2011 e todo o ano de 2012 acompanhei as chamadas sessões de Exu no
terreiro de Mãe Ieda, nome dado ao ritual religioso semanal relacionado à Quimbanda.
Durante as sessões pude obter alguns esclarecimentos pertinentes às interações musicais
entre tamboreiros (categoria êmica de músicos rituais), assistência (nome dado aos
consulentes que buscam atendimento espiritual) e Exus e Pombagiras (entidades
cultuadas nesta prática religiosa).
Através dos chamados pontos cantados, os Exus e Pomba-Giras realizam as
curas e negociam com os consulentes a resolução de problemas de ordem material,

30
Mestre em Musicologia/ Etnomusicologia, UFRGS.

50
espiritual e afetiva. No decorrer das sessões é entoada uma variada gama de cantigas
rituais que visam narrar passagens dos tempos em que as entidades viviam na Terra
como seres humanos encarnados ou para exaltar os talentos e eficácia mística desses
espíritos para vencer os mencionados problemas, também chamados de demanda.
Considerando esse dado, o objetivo deste artigo foi entender os processos de
fundamentação e criação de um repertório musical pertinente a essas novas práticas
religiosas e suas relações com processos identitários e de territorialização. Também foi
objetivo do presente trabalho entender como a Quimbanda ou Linha Cruzada atua como
agente de resistência da comunidade afrodescendente de Porto Alegre.
.
Quimbanda, performance e os territórios de Exu

No campo religioso afro-gaúcho, as práticas da Quimbanda e seus agentes,


sejam eles desse ou de outros mundos estão na convergência entre os espaços de
atuação e suas eficácias simbólicas. Não há uma fronteira delineada, sendo, a
imperfeição do ser humano, parte do caráter da entidade e suas práticas mágicas. Assim
é possível para o Exu cantar as músicas do mundo, aprender novos repertórios e
solicitar a seus compadres repertórios de música popular não litúrgica sem prejudicar a
credibilidade dos médiuns ou sua eficácia simbólica. Seu gosto musical e aptidão para
performances são construídas além dos limites do terreiro. Assim como aponta a teoria
de Bhabha (1994, p. 2), Exu busca espaços de enunciação que não definidos por uma
polaridade dentro/fora, mas situados entre as divisões, no entremeio das fronteiras que
definem qualquer identidade coletiva:

Termos do engajamento cultural, sejam eles


antagonistas ou de filiação, são produzidos
performativamente. A representação da diferença
não tem de ser interpretada apressadamente como
um conjunto pré-fornecido de caracteres étnicos ou
culturais no âmbito de um corpo fixo da tradição.
Da perspectiva da minoria, a articulação social da
diferença representa uma complexa negociação em
curso que busca autorizar os hibridismos que
aparecem nos momentos de transformação
histórica. O ‘direito’ de significar a partir da
periferia do poder autorizado e privilegiado não
depende da persistência da tradição de ser reinscrita
através das condições de contingência e contradição
que respondem às vidas daqueles que ‘estão em
minoria’. O reconhecimento que a tradição louva é
uma forma parcial de identificação. Retomando o
passado, esse conhecimento introduz outras

51
temporalidades culturais na invenção da tradição.
Este processo torna estranho qualquer acesso
imediato a uma identidade original ou tradição
‘Recebida’.

Transformação histórica, assim como as mudanças na maneira em que Exu era


visto na religiosidade afro-gaúcha, após a chegada de Seu Sete e o estabelecimento da
Quimbanda como prática independente. Retomando o passado, referente à sua vida
como rei na Terra, ele pede cartola, coroa, música com referenciais renascentistas, ergue
a sua bandeira e aponta para uma nova forma de religiosidade. Por aceitar referenciais
de todos os espaços, Seu Sete construiu, juntamente de sua corte de músicos, a prática
músico-religiosa quimbandeira. Junto da prática trouxe ao mundo sua magia, que para
Mãe Ieda traduz-se na sua frase de saudação “viva a vida”.
Sendo um amante da noite e da boemia, muitos músicos passaram a buscar os
axés de Seu Sete: amigos de Mãe Ieda, ou então, músicos que atualmente tocam nas
casas noturnas do bairro Cidade Baixa, onde está localizado o terreiro de Mãe Ieda. Ao
consultar alguns amigos que frequentam e tocam nos espaços do bairro, foi grande a
minha surpresa ao deparar-me com um número significativo de músicos que já haviam
tomado passe numa sessão de Seu Sete, ou então frequentado o Ilê de Mãe Ieda para
tomar banhos de ervas ou jogar búzios.
Dando liberdade aos seus afilhados músicos de expressarem suas musicalidades,
a identidade musical da Quimbanda de Seu Sete foi sendo emoldurada no passar dos
anos, e ainda está em transformação. Com o passar dos anos a paisagem ao redor do
terreiro de Mãe Ieda passou por mudanças significativas. O bairro Cidade Baixa, antes
parte do Areal da Baronesa, que juntamente à Ilhota e a Colônia africana eram os
principais espaços onde havia quantidades significativas de população afrodescendente
no início do século XX. Segundo De Bem, foram:

Nesses territórios de intensa sociabilidade negra –


em um momento de intensa exclusão em relação à
sociedade branca, o que reforçava os laços étnicos –
é que se gestaram as principais linhagens
batuqueiras da cidade. (De Bem, 2012, p. 54)

Estes territórios negros do período pós-abolição, por serem localizados próximos


às áreas centrais despertaram o interesse das classes privilegiadas, que passaram a
ocupar o território mediante políticas higienistas, o que deslocou as populações negras
regiões periféricas. Como afirma Oro, dialogando com Kersting, o projeto de

52
higienização, na realidade escondia interesses imobiliários, vinculados a uma política de
branqueamento da população:

Kersting, mostra como, sobre essas áreas, foram


criadas representações que as associavam à
criminalidade, vícios, perigo, e seus habitantes tidos
como membros de ‘classes perigosas’. Por isto
mesmo, essas áreas foram deixadas a um relativo
isolamento por parte das autoridades públicas e, ao
longo das décadas do século passado, foram
dissolvidas mediante um processo de ‘higienização
urbana’. Evidentemente que por trás desta atitude
existiam interesses imobiliários de ocupação dessas
áreas da cidade para ‘modernizá-las’, o que
começou a ocorrer ainda nas primeiras décadas do
século XX com o processo de branqueamento da
população, simultaneamente à abertura de ruas e de
construções em padrões arquitetônicos não
populares (Oro, 2002, p. 350).

As intenções de modernização descritas por Oro além de possuírem caráter


financeiro, transparecem uma construção identitária racista, que buscava esconder o fato
de que existia população negra no Rio Grande do Sul. Deslocando as populações negras
para as periferias, o negro torna-se não visível aos olhos da população branca de classe
média, o que contribui para essa invisibilidade planejada. No início da década de 60,
quando Seu Sete estava chegando na terra pela primeira vez, é que se iniciou, essa
verdadeira diáspora urbana, com a criação do bairro Restinga e o deslocamento das
populações dos territórios negros para a região.
O deslocamento das populações negras para as regiões periféricas resultou na
transformação dos espaços próximos das regiões centrais da cidade. Os antigos
territórios negros, hoje consistem nos bairros mais nobres da capital gaúcha. No entanto,
alguns espaços negros ainda persistem no mesmo espaço a custo de muita resistência. É
o caso do Quilombo do Areal da Baronesa, que apesar de cartograficamente estar
localizado no bairro Menino Deus, localiza-se apenas a cinco quadras do terreiro de
Mãe Ieda, outro espaço remanescente dos antigos tempos do areal da baronesa.
Muitas lideranças religiosas e os terreiros foram desabitados com a
desapropriação promovida pela prefeitura da cidade e justamente nesse momento de
transformação que a Quimbanda começa a tomar forma em Porto Alegre. Na casa de
Mãe Ieda, a partir do axé de Seu Sete, que territorializa seu fundamento religioso com
as reconfigurações da prática musical do espaço, trazendo pra dentro do sagrado afro-

53
religioso, a música carnavalesca, seja através das pancadas do tambor, ou com a
entoação de suas melodias do povo da rua que remetem às marchinhas, ou a sambas de
partido alto. O cruzeiro, entre a Rua Luís Afonso e João Alfredo torna-se um espaço de
boemia na cidade. Prass (2006, p. 284), citando Anjos (2004, p. 115), afirma que cantar
repetidamente é se territorializar, no caso de Seu Sete, trazendo o axé da boemia pra
dentro do terreiro, e com o passar dos anos para o seu bairro. Como diz o ponto de
subida do referido Exu: “Quem samba fica, quem não samba vai embora”. No caso de
Seu Sete e o terreiro de Mãe Ieda, sambaram e ficaram. A territorialização de Seu Sete
passa por suas múltiplas identidades, construídas por passagens da sua vida como rei na
Terra, da sua presença atual como Exu e padroeiro dos músicos, mediada pela relação
estreita de Mãe Ieda com a comunidade artística. O que faz da prática musical da
Quimbanda de Seu Sete uma encruzilhada de sons, épocas e espaços.
Este processo de territorialização mediado pelas práticas musicais diversas pode
ser analisado com o que Gilroy (1993, p. 35) categoriza como “formas culturais
estereofônicas, bilíngues ou bifocais” dos “negros dispersos nas estruturas de
sentimento, produção, comunicação e memória” que heuristicamente chama “mundo
atlântico negro”. Estas configurações levam o autor sempre a pensar a diáspora como
um fenômeno continental, o que de certa forma poderia esclarecer algumas
performances musicais, como a da Quimbanda de Seu Sete. É preciso entender a
questão de identidade e território sempre relacionada aos contextos culturais, nacionais
e étnicos. A questão de etnicidade transcende o fator biológico apontando para a questão
de raça, assim como de identidade em uma construção sociocultural. Podemos pensar
neste contexto de diáspora conforme a metáfora de Gilroy, de imaginar o Atlântico
negro como um navio em movimento, pensando a cultura como um fenômeno
descentralizado e plural. Pluralidade esta que pode servir como ponto de vista para os
diversos fenômenos de interações transnacionais nos mais distintos lugares. Essa
encruzilhada identitária entre monarquia, fundamento e cultura musical afro-religiosa
recategoriza e reinscreve Exu no campo religioso afro-gaúcho, em um momento
histórico em que a comunidade negra necessitava de novos recursos para enfrentar as
novas demandas apresentadas pelo cotidiano.

O processo de reinscrição e negociação – a inserção


ou intervenção de algo que assume novo sentido –
acontece no intervalo temporal entre o signo
privado de subjetividade e no escopo da
intersubjetividade. Através deste intervalo de tempo

54
– a quebra temporal na representação – emerge o
processo da agência. (Bhabha,1994 p. 191)

O Exu, que antes era um escurecido, torna-se um rei. Ao invés de comer a vela,
passa a usá-la para iluminar os cruzeiros, a cachaça, que antes era bebida no chão, agora
é servida em taças, e a magia de Exu ganha novas funcionalidades. O que antes era pura
descarga de energia torna-se abertura de caminhos, defesa de demandas e prosperidade
material aos consulentes com a coroação da entidade: “A coroa de Exu não se compra,
se tem. A coroa de Exu lá na encruzilhada”. A partir da magia de Seu Sete, o terreiro
recebe um novo axé, nova proteção e novo trato com a linha de Exu através da sua
gradual evolução, no plano espiritual, material e musical que os mundos do rei, da
entidade e do espaço terreiro convergem:

‘(...) outros com significação’, os quais transmitem


ao sujeito valores, significados e símbolos – a
cultura – dos mundos que ela/ele habita. (...) O
sujeito continua tendo uma essência interna nuclear,
qual seja um ‘eu verdadeiro’, mas este é formado e
modificado em contínuo diálogo com mundos
culturais ‘externos’ e com as identidades que tais
mundo oferecem (Hall, 2006[1992], p. 275)

No caso da Quimbanda de Seu Sete são muitos os mundos culturais que


continuamente, modificam sua religiosidade e musicalidade, seja a partir desses
contatos com os músicos de quem é padroeiro, ou então com a grande rede de filhos,
netos e bisnetos-de-santo, residentes principalmente no Rio Grande do Sul e Argentina.
Existe um constante trânsito de práticas musicais entre os mundos culturais habitados
por Mãe Ieda e Seu Sete, sendo os Exus também aprendizes das novas práticas musicais
das quais aqueles que estão em contato com a entidade estão inseridos.

Discussão Final

Das três modalidades religiosas afro-gaúchas (Umbanda, Quimbanda e Nação)


praticadas nos países do Conesul, a Quimbanda tem se mostrado como a mais popular
entre os adeptos, conforme os trabalhos de Frigerio (2000) e De Bem (2012). Este fato
pode ser entendido através das práticas musicais, tendo em vista que a Quimbanda,
proporciona uma liberdade criativa aos músicos rituais, o que permite a criação de

55
novos repertórios, que transitam entre casas do Conesul e popularizam-se também nas
casas brasileiras. De certa forma essa contribuição na produção de novos territórios à
Quimbanda brasileira, legitima as práticas religiosas de músicos, sacerdotes, e de
sacerdotisas afro-religiosos dos países do Prata. Ao contrário do Batuque, onde o
trânsito ocorre apenas através da transmissão dos conhecimentos e fundamentos
músico-religiosos a partir de um agente brasileiro para os iniciados de língua espanhola
(conforme Braga, 2013), a Quimbanda não somente permite, como propõe uma
autonomia criativa de seus músicos, o que contribui para a transnacionalização de
repertórios a partir de práticas e musicalidades propostas por ambas as partes.
De certa forma a territorialização de Exu discutida no presente texto inclui
diferentes sons, agentes e espaços. A flexibilidade performática da Linha Cruzada
propõe configurações sonoras e litúrgicas híbridas, o que contribui para a interação de
diferentes agentes, práticas e saberes musicais durante os seus ritos e festividades.

Referências

ANJOS, José Carlos Gomes dos. No territ rio da lin a ru ada: A osmopolíti a afro-
brasileira. Porto Alegre: UFRGS, 2006.

BHABHA, H. K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001.

BRAGA, Reginaldo Gil. Batuque e-i e em orto Alegre: A m si a no ulto aos


ori s. Porto Alegre: Prefeitura Municipal: Fumproarte, 1998.

. Música e Modernidade religiosa entre tamboreiros de Nação:


em torno de uma tradição musical moderna. In: Em Pauta v. 14 no. 23. 2003. Porto alegre

___________________. O Batuque do Rio Grande do Sul, Brasil, e a


transnacionalização das suas expressões sonoras na região do Rio da Prata. In: La musica entre
Africa y America. CDM, Montevideo. 2013.

CORR A, N. F. Sob o signo da amea a: onflito, poder e feiti o nas religi es afro-
brasileiras. São Paulo, Tese de Doutoramento em Antropologia, PUC/SP, 1998.

DE BEM, Daniel Francisco. Tecendo o axé: uma abordagem antropológica da atual

56
transnacionalização afro-religiosa nos países do Cone Sul. Tese de Doutoramento,PPGAS –
UFRGS. Porto Alegre, 2012.

GILROY, Paul. O Atl nti o negro: odernidade e dupla ons i n ia. São Paulo: Ed.
34, 2001.

HALL, Stuart. a di spora: dentidades e media es ulturais. Belo Horizonte:


Editora UFMG, 2003.

PRASS, Luciana. Maçambiques, Quicumbis e ensaios de promessa : um re-estudo


etnomusicológico entre quilombolas do sul do Brasil. Tese de doutoramento, PPGMUS,
UFRGS. 2009

SEEGER, Anthony. Ethnography of Music. In: Myers, Helen. Ethnomusicology - an


intro- duction. Londres, The MacMillan Press, 1992

57
Percorrendo nexos entre política e memória em um fazer musical no sul do Brasil:
os Tápes (1970/1980) e outros agentes na canção popular/regional politizada31

Daniel Stringini32

A partir de etnografia realizada entre músicos populares/ regionais no estado do Rio Grande do Sul,
problematizo determinado fazer musical como indicando nexos entre memória e política. Tendo como
interlocutores os agentes em torno do grupo Os Tápes - que no passado performatizaram uma
música/sonoridade que se pretendia política, tendo como background o período de ditadura civil militar
no Brasil – e atores sociais que, posteriormente, construíram/constroem suas performances musicais em
torno de narrativas que recuperam aquele passado e atualizam posicionamentos estéticos, sonoros e
sociais, teço interpretações desses nexos entre memória e política nessas práticas sonoro-musicais,
escutas, memórias.
Palavras-chave: Etnografia da música popular; etnomusicologia; memória e política

A partir de etnografia realizada entre músicos populares/regionais no estado


do Rio Grande do Sul, problematizo o fazer musical como indicando nexos (inspirado
no entendimento do etnomusicólogo ganense Kwabena Nketia sobre tal categoria) entre
memória e política, a fim de adensar minhas interpretações dos encontros com esses
músicos, suas narrativas musicais e narrativas sobre o sonoro. No contexto da sociedade
Dagbamba, norte de Gana, Chernoff (2008, p.29), em diálogo com a proposta de Nketia,
afirma que no agbon (ritual agbamba) “os eventos musicais são o nexo do sentido
social da história, da política, da família e da comunidade; a música é uma presença
permeadora das formas simbólicas e estéticas […], em que este complexo de
relacionamentos é levado ao nível da ação social”. No contexto dos músicos populares,
discuto um fazer musical que mobiliza posicionamentos políticos - desde uma cultura
de esquerda (SPENER, 2015) e em um processo de politização de determinados
gêneros, estilos, instrumentações e repertórios musicais (TRAVASSOS, 1997, 2002;
RIOS, 2008,2009) – e memória, a partir do que sugere Kay Shelemay (1998, p.11
tradução minha) ao se referir à memória como podendo ser “mapeada em níveis
distintos (sobre as canções e nas canções) e em diferentes modos de representação
(através da fala e através da canção)”.
Teço tais interpretações a partir dos encontros intersubjetivos com os
agentes em torno do grupo Os Tápes - que no passado (1971-1986/8) performatizavam

31
Este artigo trata-se de uma versão da dissertação de mestrado em Etnomusicologia, Do Canto da Gente
(os Tápes, 1971) ao atual canto politizado: memória e política na constituição de uma música popular do
Sul, PPGMUS, UFRGS, 2016.
32
Mestre em Etnomusicologia/Musicologia – UFRGS.

58
uma sonoridade que se pretendia política, e tendo como background o período de
ditadura civil militar no Brasil - e atores sociais que, posteriormente,
construíram/constroem suas trajetórias musicais em discursos que recuperam aquele
passado e atualizam posições estéticas, sonoras, sociais. Entre estes músicos posteriores
à trajetória dos Tápes, mantive interlocuções, principalmente, com Pedro Munhoz e
Giancarlo Borba. Ambos os músicos vivem nos interior do Estado (respectivamente nas
cidades de Barra do Ribeiro e Terra de Areia) e durante o trabalho de campo
apresentaram-se em uma série de lugares do Brasil e de outros países da América
Latina.
Discuto as narrativas musicais e os discursos sobre o sonoro na constituição
de uma qualidade de música popular no sul, e situo tais práticas enquanto espaços de
negociações e agenciamentos. Problematizo como as narrativas politizadas são
acionadas nas performances dessa música local, especificamente, ou na rememoração de
tais performances (memórias politizadas). Nesse sentido, inspiro-me em Eileen Heyes
(2010, p.2) quando, ao abordar a presença de mulheres negras e lésbicas na chamada
women's music, afirma que essa categoria, como observada pela autora em campo, se
configurava menos como um tipo de música do que um lugar de pensamento (no caso,
feminista) sobre o sonoro. Procuro, assim, pensar em que medida as práticas sonoras
aqui focalizadas apontam (ou estabelecem nexos) para questões em torno de memória e
agências políticas.
Em uma das interlocuções com Claudio Garcia, compositor e instrumentista
dos Tápes, o músico me disse que o grupo foi criado com a intenção de propor um
“blefe contra o sistema”, em um momento posterior à sua prisão política. O ano era
1971 e a cidade de Tapes, localizada a cerca de cem quilômetros de Porto Alegre,
naquele momento era composta por menos de 10 mil habitantes. O estudo da trajetória
dos Tápes, enquanto ferramenta metodológica possibilitou complexificar o objeto de
estudo, melhor compreender aquele passado e o impacto, no presente, desse modo de
fazer música, e problematizar a construção de um fazer musical local sob o signo da
politização. Através da recomposição de tal trajetória, e desse passado sonoro, foi
possível desvendar os processos de constituição de uma música popular no sul e
percorrer redes de sociabilidades e significados em torno desses fazeres musicais
(BOURDIEU, 1998)
Dos diálogos em campo, sublinho os acervos pessoais como um espaço
significativo na narração desse tempo histórico. Uma vez que foi sendo possível

59
estabelecer relações de proximidade com os interlocutores, fui tendo acesso à periódicos
da época, gravações de ensaios e de shows em fitas K7 (tais registros sugeriram
digitalizações junto a alguns músicos), cartas, fotografias, cartazes de espetáculos,
instrumentos musicais e vestimentas das performances, e uma série de objetos com os
quais me mostraram relações de afetividade e que se tornaram relevantes na
rememoração desse passado. No que se refere às gravações acessadas nesse percurso,
sigo Mark Clague (2014) na proposta de entender o músico enquanto crítico social,
enfatizando a agência dos atores frente sua trajetória.
Tendo, assim, o período de ditadura civil militar, entre 1964 e 1985, como
um dos sinalizadores históricos, e na intenção de explorar os nexos entre os projetos
artísticos/ musicais nesse período situo, como emblemática, a figura do produtor
paulista Marcus Pereira, responsável pela projeção dos Tápes no cenário nacional33.
José Miguel Sautchuk (2005, p.23), em estudo antropológico com a gravadora Marcus
Pereira Discos, atuante entre 1974 e 1981, aponta o interesse nos chamados discos
culturais: “essa opção era motivada por um ideal [...] de colocar no mercado discos de
música ‘autenticamente’ brasileira [...] para fazer frente aos modismos fabricados pela
indústria do entretenimento, que ele [Marcus Pereira] considerava de mau gosto e
perigosos para a sobrevivência da cultura nacional”. Na busca por adensar tais relações
interpretativas, aponto, portanto, a junção não fortuita entre o projeto Marcus Pereira,
Tápes, outros músicos locais e agentes atuantes em um cenário nacional e latino
americano. Entre os músicos do presente (como denominei os músicos em atuação
hoje), observei também o alinhamento à determinada música latino-americana
(combativa, de resistência, desde uma perspectiva insider) e um diálogo com artistas de
outras regiões do país: Pedro Munhoz apresenta-se com frequência ao lado de músicos
das regiões Norte, Nordeste, Centro Oeste, e tanto Pedro quanto Giancarlo Borba,
movimentam-se em um circuito Latino Americano, tocando em países como Colômbia,
Bolívia, Argentina e Uruguai.
Um dos momentos significativos de meu trabalho de campo, foi como,
através de tais músicos do presente, aproximei-me daqueles músicos do passado. Ao
buscar referências aos Tápes, cheguei até um texto de Pedro que apontava articulações
entre seu trabalho e o daquele grupo. Em retrospecto, é como se a partir de minha leitura

33
O primeiro e o segundo disco dos Tápes, de 1975 e 1980, são lançados pela Marcus Pereira Discos. O
grupo também está presente nos quatro volumes da coleção Música Popular do Sul, também de 1975 e
parte de um projeto maior (Música Popular do Brasil) idealizado por Marcus Pereira.

60
desse texto de Pedro, incluísse-o enquanto agente/colaborador na construção do objeto
de pesquisa e como sujeito do trabalho de campo. Através dele pude acessar aqueles
músicos do passado (Pedro, na ocasião, me passou uma série de contatos telefônicos de
músicos que estavam morando em Tapes e Porto Alegre) e uma rede de músicos
gaúchos em atuação hoje.
A partir disso, passei a reconfigurar o objeto de estudo e a reconstruir o
campo, procurando uma perspectiva que cruzasse passado e presente. Não somente por
explorar um objeto de pesquisa localizado no passado (narrativas históricas/memória
social dos agentes em torno dessa música politizada), mas por dialogar com atores que
constroem seus trabalhos artísticos, no presente, também em torno de um passado
sonoro, procurei ficar atento às formas de escutar os passados etnomusicológicos
apontados por Philip Bohlman (2008).
Enfatizo a prática de uma memória contextual em que as rememorações
individuais, como observadas em campo, transformavam-se em memórias históricas.
Suzel Reily relaciona a memória social a uma consciência histórica: “há quem defenda
a visão de que toda forma de consciência histórica pode ser entendida como memória
social, posto que, mesmo em relatos de fatos históricos comprováveis, os aspectos
realçados derivam dos interesses do relator e da época em que a narração é feita”
(REILY, 2014, p.13). Situo, portanto, esse fazer musical (e sua rememoração) como um
dispositivo através do qual esse passado é (re) construído e ouvido com significado
(BITHELL, 2006).
Parafraseando Kay Shelemay (2006), reflito em que medida a performance
de uma canção dos Tápes ou a “lembrança de uma escuta”, no meu diálogo com os
músicos do passado e do presente, configuram-se como memória musical (memória
político-musical) que se transforma em memória histórica. Em Music, Memory and
History, Shelemay (2006) afirma que os etnomusicólogos poderiam explorar em que
medida o sonoro é concebido como depósito de memórias. No contexto de seu trabalho
de campo, a autora afirma: “in the diasporic settings of modern Syrian Jewish life, far
from the historic homeland of Aleppo, Syria, each performance of a song – or just the
faintest recollection of a hearing – constitutes a crossroad at which the memory of music
is transformed into the scaffolding of history” (SHELEMAY, 2006, p.31).
Inspiro-me na etnografia de David McDonald (2013), realizada entre
músicos populares palestinos, na medida em que seu trabalho evidencia a emergência de
categorizações, tais como: “resistência”, articuladas a processos político-musicais. Ao

61
reconstituir a trajetória da canção popular palestina, McDonald põe em relevo as
variadas “formas de resistência” (desnaturalizando-as) e suas ressignificações e
reapropriações pelos atores sociais em diferentes temporalidades.
Interessa-me compreender como ocorriam os processos de construção
sonoro-musical e de escuta desse fazer que me era enunciado - seja através das canções,
seja através da memória sobre as canções (retomando Shelemay) - através de noções
que sugeriam uma música politicamente engajada. Interessa-me, a partir de David
McDonald, entendê-las não como algo estático, mas como algo mobilizado a partir de
determinadas posições que, transversalizadas (passado/presente), apontam tensões e
negociações. Resistências ao período de ditadura, mas também ao discurso do
Movimento Tradicionalista Gaúcho34 (MTG), ou, ainda, ao modus operandi de uma
música comercial naquele período das décadas de 1970/89 e hoje. Sugiro que a
presença de uma ideia de política nos discursos sonoros/sobre o sonoro, balizem os
entendimentos em torno desse fazer musical. Samuel Araújo e Gaspar Paz (2011)
propõem uma compreensão mais ampla do sentido de político, “tomado não apenas
como campo de disputas em torno do controle do Estado, mas também envolvendo lutas
micropolíticas que se desdobram em modalidades de ação humana, como a música e as
artes em geral (ARAUJO; PAZ, 2011, p.221)”.
Através da noção de nexo, assim, procurei problematizar, principalmente a
partir de Kay Shelemay e David McDonald, o presente fazer musical como indicando
questões em torno de memória e política. Quando Shelemay (2006) se refere à memória
acessada através de dois modos de representação, ponderei a reconstrução desse fazer
musical do passado através do que os músicos me contavam e por vezes cantavam.
Shelemay afirma que os etnomusicólogos poderiam explorar em que medida o sonoro é
concebido como depósito de memórias. Sublinho a canção Olegário35 dos Tápes
(presente no disco de 198236) que os músicos Martin Coplas (músico de uma das
formações do grupo) e Pedro Munhoz exemplificavam como uma das canções políticas:
Otacílio Meirelles (compositor também integrante dos Tápes), rememorando o processo

34
O Movimento Tradicionalista Gaúcho é responsável pela ideia de tradicionalismo enquanto forma
“oficial” de “ser gaúcho”
35
Vai Olegário, arquejando pela sombra / vem de rotas perdidas, sem forças, remos e vela / lá vai
Olegário / malhas e redes no rosto, escamas e barbatanas nas mãos / tranças e amarras no andar / fisgadas
de anzóis no coração / ondas e morte no corpo / marés de angústia abordando o leito junto […] quem há
de um dia chegar por onde esses braços pescaram? / Quem haverá de olhar o peixe que esses olhos
olharam? (trecho da letra da canção Olegário)
36
Terceiro e último disco do grupo, lançado de forma independente pelo selo gaúcho Cantares, do
músico Martin Coplas.

62
de composição de algumas músicas, disse-me que, em Olegário, sua intenção foi
“cantar a vida” de um pescador da Lagoa dos Patos, na cidade de Tapes. Na fala do
músico, percebi um cuidado em tentar “traduzir” histórias locais/individuais alinhadas à
sonoridades específicas. Otacílio se referiu a um “modo aberto” de tocar seu violão que
desse conta de “representar” aquele espaço: os movimentos das águas – arpejos no
violão são constantes do começo ao fim, e a melodia (tanto na voz quanto no violão)
que privilegia graus conjuntos ascendentes e descendentes parecem apontar para o ritmo
contínuo das marés; os silêncios – pausas entre os acordes arpejados parecem sugerir
respirações entre um movimento e outro do pescador; e uma certa vagueza daquela
paisagem (sonora) – notas que se alongam no canto. Ao mesmo tempo, é interessante
que tal canção seja enunciada como uma das canções políticas do grupo, uma vez que,
ainda que o compositor não tenha se referido a ela como tal, outros agentes,
principalmente de gerações posteriores ao grupo, estabelecem uma escuta em que a
qualidade metafórica da canção apontaria para o momento de ditadura no Brasil e no
restante da América Latina (Martin Coplas se referia a uma “estrutura sonora contra a
ditadura”).
Sugiro o papel dos instrumentos musicais na presentificação de um outro
sonoro, e os lugares da memória por eles indicados. Vozes e instrumentos musicais
como nexos da memória: como se a presença de flautas e maracás indígenas, puíta,
berimbau, quena, “cavaquinho executado como charango”, segundo os músicos,
presentificassem uma gente cantada. Faço alusão ao Canto da Gente dos Tápes
(espetáculo de 1972, disco e canção de 1975). Sugiro a dimensão acústica pensada em
termos políticos: a busca por um “soar da terra” era recorrente na fala dos
interlocutores. Observei os instrumentos imersos no que Eliot Bates (2012) define como
uma rede de relações complexas naquilo que o autor denomina a vida social dos
instrumentos musicais. Ainda, quando Regula Qreshi (2000, p.811) diz que os
instrumentos musicais são lugares privilegiados na manutenção de memórias culturais e
sociais, proponho que a escuta e rememoração, no presente, daquele grupo do passado,
seja atravessada por um instrumental (latino americano) e uma sonoridade (imaginário
indígena) que os conecta a episódios políticos, de luta, de contestação.
No que se refere a colocar o grupo em perspectiva à “MPB”,
contextualizada por Marcos Napolitano (2010), as interlocuções foram dando pistas
dessas articulações possíveis. Otacílio me disse que pensavam em um “intercâmbio
entre a música gaúcha, latino-americana, e popular brasileira... sem desprezar nenhuma

63
delas”. Cabe lembrar a comparação tecida por José Ramos Tinhorão ao descrever
algumas músicas do grupo como “toadas a la Vandré”, no periódico Folha da Manhã,
em 1975, em alusão a uma das figuras icônicas da canção popular brasileira durante o
período de ditadura militar. Situo os Tápes e os músicos do presente em uma rede mais
ampla, frente a outras experiências sonoras no contexto brasileiro. Problematizo o que
aquele grupo do passado representou/representa nesse cenário: o diálogo deles com, por
exemplo, Rogério Duprat, compositor do vanguardista Música Nova e arranjador da
Tropicália (ambos movimentos da década de 1960, no Brasil), ou com o produtor
Marcus Pereira. Reflito em que medida se poderia pensar o lugar do grupo na chamada
música política, no país, ou, então, se, como “canção engajada, em todas as suas
variantes, não apenas dialogou com o contexto autoritário e as lutas da sociedade civil,
mas ajudou, poética e musicalmente falando, a construir um sentido para a experiência
social da resistência ao regime militar” (NAPOLITANO, 2010, p.390).
Pondero o quanto esse fazer nos possibilita articular outros contextos, outras
problemáticas para além dos localismos. Creio que, em última análise, o grupo seja
protagonista nesse processo de constituição de uma música popular politizada no sul37,
processo este que observei ressoar entre alguns músicos do presente. O projeto Música
Popular do Sul, e, como um todo, o Música Popular do Brasil, foram condicionantes
para os desdobramentos da carreira dos Tápes e demais continuadores e simpatizantes
de um modo de entender a performatividade dessas músicas.
Por fim, entre sons e vozes do presente e do passado – como na fala de
Hector Rojas38 ao me dizer, após um de seus shows, que “não há como ser diferente”,
em referência a certo modo politizado de entender a performance de suas canções; ou na
fala de Claudio Garcia, músico dos Tápes que, em uma das interlocuções, disse-me que
caso houvesse outra ditadura ainda haveria outras formas de compor. Encerro
referenciando o etnomusicólogo Thomas Turino (2008, p.223, tradução nossa), quando
diz que a música continua a ser compreendida enquanto meio potente para imaginar e
realizar o possível, e que as pessoas continuam a utilizar as canções “para criar ícones
do que pode ser, e dizer coisas que seriam difíceis de serem ditas de outra maneira”.

37
Com frequência os interlocutores situavam o grupo como o primeiro no Estado a construir uma
sonoridade nestes termos políticos
38
Músico chileno em atuação no Rio Grande do Sul e integrante dessa rede atual de performers de uma
música politizada

64
Referências
ARAUJO, Samuel; PAZ, Gaspar. Música, linguagem e política: repensando o papel de
uma práxis sonora. Terceira Margem: Rio de Janeiro, n.25, jul./dez. 2011, p. 211-
231.

BATES, Eliot. The social life of musical instruments. Ethnomusicology, v.56, n.3, 2012,
pp.363-395.

BITHELL, Caroline. The past in music: introduction. Ethnomusicology Forum, v.15,


n.1, jun. 2006, pp. 3-16.

BOHLMAN, Philip V. 1997. Fieldwork in the ethnomusicological past. In: Shadows in


the field: New perspectives for fieldwork in ethnomusicology, edited by Gregory F. Barz
and Timothy J.Cooley. New York and Oxford: Oxford University Press, pp. 139-62.

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Morais; AMADO,


Janaina. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1998. p. 183-
191.

CHERNOFF, J.M. The relevance of ethnomusicology to anthropology: strategies of


inquiry and interpretation. Tradução: Grupo de Estudos Musicais (GEM). In: Dje Dje,
Jacqueline (ed.). African Musicology: current trends. Los Angeles: University of
California Press, 1989. vol. 1. p. 59-92.

CLAGUE, Mark. “This is America”: Jimi Hendrix's Star Spangle Banner Journey as
Psychedelic Citizenchip. Journal of the Society for American Music, 2014, n.8, pp.435-
478.

HAYES, Eileen. Songs in Black and Lavender: Race, Sexual Politics and Women's
Music. University of Illinois Press. 2010.

MCDONALD, David A. My Voice is my Weapon: Music, Nationalism, and the Poetics


of Palestinian Resistance. Durham and London: Duke University Press, 2013.

NAPOLITANO, Marcos. MPB: a trilha sonora da abertura política (1975/1982).


Estudos Avançados 24 (69), 2010.

QRESHI, Regula. How does music mean? Embodied memories and the politics of
affect in the Indian sarangi. American Ethnologist, v.27, n.4, 2000, pp. 805-838.

REILY, Suzel Ana. A música e a prática da memória: uma abordagem


etnomusicológica. Revista Música e Cultura, v.9, 2014.

RIOS, Fernando. La Flûte Indienne: The Early History of Andean Folkloric-Popular


Music in France and Its Impact on Nueva Canción. Latin American Music Review /
Revista de Música Latinoamericana, Vol. 29, No. 2 (Fall - Winter, 2008), pp. 145-18.

_____________ Andean Music, the Left, and Pan-Latin Americanism: the early history.
Diagonal: Journal of the Center for Iberian and Latin American Music, v.2, 2009.

65
http://www.cilam.ucr.edu/diagonal/index.html

SAUTCHUK, José Miguel. O Brasil em discos: nação, povo e música na produção da


gravadora Marcus Pereira. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social, UNB, Brasília, 2005.

SHELEMAY, Kay Kaufman. Músic, memory and history: in memory of Stuart Feder.
Ethnomusicology Forum, v.15, n.1, jun. 2006, pp.17-37.

SPENER, David. Un canto em movimiento: “No nos moverán” en Estados Unidos,


España y Chile en los siglos XIX y XX. Hist. Crit. n. 57, 2015, pp 55-74.

TRAVASSOS, Elizabeth. Música Folclórica e Movimentos Culturais. Debates.


Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Música. n.6. Centro de Artes e Letras,
UNIRIO, Rio de Janeiro, 2002.

____________________ Os mandarins milagrosos: arte e etnografia em Mário de


Andrade e Béla Bartók. Rio de Janeiro: Funarte / Jorge Zahar Editor, 1997.

TURINO, Thomas. Music as social life: the politics of participation. Chicago: The
University of Chicago Press, 2008.

Periódicos

JORNAL FOLHA DA MANHÃ, José Ramos Tinhorão, SP, 01/10/ 1975

66
Fuelles en la Frontera: narrativas de acordeonistas y bandoneonistas del interior
de Uruguay

José A. Curbelo39

Resumen
A través de trabajo de campo etnográfico reciente sobre música de acordeón y
bandoneón en ciudades de frontera en el Uruguay se detectaron distintos variantes de
narrativas de intérpretes de aquellos instrumentos. Primero, el concepto de "músico
fronterizo" flexible y adepto en varios géneros de la región. Segundo, la reivindicación
de una identidad musical localizada y diferenciada, tanto de los países vecinos que del
Sur de Uruguay. Tercero, una actitud de defensa de una determinada identidad músico-
cultural frente al "otro" y también frente a los cambios y transformaciones de un mundo
cada vez más globalizado.
Palabras-claves: acordeón; Argentina; bandoneón; Brasil; frontera; Uruguay.

Abstract
As a result of recent ethnographic fieldwork regarding accordion and bandoneón music
in Uruguayan border cities, three different themes were identified in the narratives of
players of those instruments. Firstly, the concept of "border musician" adept in various
regional musical genres. Secondly, the revindication of a localized musical identity
differentiated from the neighboring countries as well as the south of Uruguay. Thirdly,
the defense of a determined musical and cultural identity vis-á-vis the "other" as well as
in defiance of changes and transformations brought about by globalization.
Key words: accordion; Argentina; bandoneón; border; Brasil; Uruguay.

Desde 2001 el autor viene realizando un proyecto de investigación sobre el


acordeón y bandoneón en el norte y litoral del Uruguay40. Este artículo sintetiza algunos
resultados obtenidos de nuevo trabajo de campo etnográfico realizado a través de la
Universidad Federal de Pelotas en 201641. Algunos de los informantes fueron
entrevistados anteriormente por el autor en los años 2002 y 2003.

39
Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de
Pelotas, Maestría.
40
Etnomusicólogo uruguayo Lauro Ayestarán afirma que 1852 fue la fecha en que el acordeón de botón
fue introducido al Uruguay (1968, p.65-66). Estaba compuesto de una hilera de botones. Más tarde llegó
la versión de dos hileras de botones y ocho bajos, que se convirtió en el modelo preferido por los músicos
rurales de Uruguay. A principios del siglo XX el bandoneón empezó a difundirse y brindaba más
posibilidades armónicas y melódicas, con setenta y un botones bisonoros, que como con el acordeón de
botón, cada botón individual produce dos tonos distintos según si el músico esté cerrando o abriendo el
fuelle. Más tarde en el siglo XX se popularizó el acordeón a piano. (DUNKEL, 1993)
41
El nombre del proyecto es "La música tradicional rural de acordeón y bandoneón del norte del
Uruguay" y está siendo realizado por el autor como tesis de maestría dentro del Programa de Pós-
Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural de la Universidade Federal de Pelotas. La
orientadora del proyecto es Leticia Mazzucchi Ferreira (UFPel) y la co-orientadora es Marita Fornaro

67
Un componente clave de la investigación es intentar identificar los elementos
que distinguen a la tradición de acordeón y bandoneón del norte y litoral uruguayo y
también encontrar las maneras en que los entrevistados definen a su propia música. Una
característica importante del interior uruguayo en general es que la gran mayoría de su
densidad poblacional se concentra en una suerte de "faixa de fronteira"42 limítrofe con
los países vecinos Brasil y Argentina. Esta dinámica produce que mucha gente del norte
y litoral uruguayo, acordeonistas y bandoneonistas incluidos, están constantemente en
yuxtaposición y contacto con las sociedades y/o productos culturales de los países
vecinos.
El último trabajo de campo del autor se realizó en las siguientes ciudades de
región de frontera43: Paysandú, Quebracho, Salto, Bella Unión, Artigas, Rivera,
Tacuarembó, Aceguá, Río Branco, y San Miguel. Entre los más de 20 entrevistados
figuran intérpretes de acordeón de botón, bandoneón y acordeón a piano,
guitarristas/vocalistas, y también locutores de radio.
Analizando las diversas narrativas de los informantes sobre sus relaciones socio-
culturales con los países vecinos, se pudo identificar diversos significados del concepto
"frontera" en relación a la música de acordeón y bandoneón del interior uruguayo.
"Frontera" figura como un lugar de intercambio material y comercial, de colaboración
musical y aprendizaje, de mestizaje, de buscar "lo ajeno", de performance de
identidades, de marcar diferencia con "lo otro", y también de imponer discursos
identitarios.
La República Oriental del Uruguay comparte más de 1,100 km de frontera
terrestre, fluvial y lacustre con el estado brasileño de Rio Grande do Sul44. Su frontera
oeste está delimitada por el Río Uruguay sobre el cual comparte 500 km de frontera

(UDELAR – Uruguay). En el segundo semestre de 2015 el autor cursó la materia "Leituras Monográficas
em Musicologia/ Etnomusicologia" dictada por el Prof. Reginaldo Gil Braga, como alumno especial en el
Programa de Pós-Graduação em Música de la UFRGS. Participación en esa materia aportó
contribuciones importantes a la metodología y base teórica del proyecto actual.
42
"Faixa de fronteira" es un concepto de la legislación nacional brasileña que la define como la "faixa
interna de 150 km de largura, paralela à linha divisória terrestre do território nacional" y se considera
de interés estratégico. Fuente: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
43
En este artículo se utiliza el término "frontera" de la forma propuesta por Dominzain, et al. (2011, p.5)
quien escribe:"[…] la inclusión del término "frontera" ha sido pensada, no en el sentido estricto del límite
geográfico sino en el entendido de áreas de influencia que exceden al ámbito territorial fronterizo y cuya
incidencia atraviesa notoriamente el entramado social."
44
Servicio Geográfico Militar del Uruguay

68
fluvial con la República Argentina, más específicamente con las provincias litoraleñas
de Corrientes y Entre Ríos45.
Según la Oficina de Planeamiento y Presupuesto (OPP) de la Presidencia de la
República la nación uruguaya está dividida en siete regiones46. Las que nos interesa en
esta investigación son las regiones Norte (abarcando los departamentos de Artigas,
Tacuarembó, Rivera y Cerro Largo) y Litoral (Salto, Paysandú y también Río Negro)
que comprenden la grande mayoría del área fronterizo con Brasil y la Argentina
(AROCENA, 2011, p.31)
La Región Norte se caracteriza por su matriz productivo de latifundios
agropecuarios y la influencia histórica del Brasil. Padrón Favre (2011, p.116) escribe
que, "a lo largo del siglo XIX los brasileños obtuvieron un neto predominio sobre ese
extenso espacio norteño que consideraron parte del Imperio". Agrega que, "la influencia
de origen brasileño en la población era casi absoluta en todos los órdenes de la vida,
incluyendo los aspectos policiales, judiciales, y educativos" (Ibid. p.66).
La Región Litoral, con las ciudades ribereñas de Salto y Paysandú como sus
polos más relevantes, fue escenario de varios de los más importantes conflictos de la
época artiguista. La importancia estratégica del Río Uruguay ayudó a formar profundos
lazos con la Argentina y su gran capital Buenos Aires, y la región pudo traer:

[…] inmigrantes de las más diversas nacionalidades europeas, muchos de


ellos movidos por un fuerte espíritu empresarial que transformó a esas tierras
en un escenario privilegiado de un progreso material y cultural desconocido
en el resto del país. (PADRÓN FAVRE, 2011, p.122)

Las dos regiones, Norte y Litoral, se mostraron resistentes al proceso


nacionalizador promovido por el centralismo montevideano en las últimas décadas del
siglo XIX (PADRÓN FAVRE, 2011, p.81-82). Esta nacionalización se expresó a través
de ampliación de infraestructura, expansión de poder administrativo-militar, y también
se expresó en el ámbito educativo-cultural. Padrón Favre contextualiza que:

[…] muchas de estas medidas tenían también como objetivo ejercer una
verdadera nacionalización del territorio ante la gran influencia que la
población de origen brasileño poseía sobre una vasta porción del país […]
fueron muchas las voces que durante varias décadas se levantaron para
señalar esa amenaza a la soberanía nacional. (PADRÓN FAVRE, 2011, p.66

45
Comisión Administradora del Río Uruguay
46
Uruguay está conformado por 19 departamentos: Montevideo, Canelones, Flores, Durazno, Florida,
San José, Colonia, Soriano, Salto, Paysandú, Río Negro, Artigas, Tacuarembó, Rivera, Cerro Largo,
Maldonado, Lavalleja, Rocha y Treinta y Tres.

69
Como la historia demuestra, además de las fronteras políticas compartidas con
los países vecinos, para las regiones Norte y Litoral existe una cierta "tercera frontera"
que: "[…] no […] refiere al país vecino sino a Montevideo, ciudad a la cual se la ve
distinta y distante, de la que permanentemente se tratan de diferenciar"
(RADAKOVICH, 2011, p.33). Inserido en (y producto de) este contexto histórico-
cultural está la música de acordeón y bandoneón del norte y litoral uruguayo. Las
experiencias y perspectivas de sus intérpretes en distintas localidades de la región de
frontera, lejos de ser estáticas y uniformes, son diversas y divergentes y reflejan las
realidades múltiples de la frontera uruguaya.
A través de las entrevistas con los informantes sobre su música se percataron
distintas temáticas importantes. La primera es el concepto de "músico fronterizo",
flexible y adepto en varios géneros de la región. La segunda es la reivindicación de una
identidad musical localizada y diferenciada, tanto de los países vecinos que del Sur de
Uruguay. La tercera es una actitud de defensa de una determinada identidad músico-
cultural frente al "otro" y también frente a los cambios y transformaciones de un mundo
cada vez más globalizado.
En cuanto a las relaciones músico-culturales fronterizos entre
Argentina/Uruguay o Brasil/Uruguay (o en el caso de Bella Unión y su ubicación en la
Triple Frontera: Argentina/Uruguay/Brasil) los entrevistados destacaron el papel
preponderante de los medios de comunicación, como la radio, en la mediación de esas
relaciones. Los lazos familiares transfronterizos también figuraron como factores
importantes en las narrativas. Muchos de los informantes contrastaron elocuentemente
las diferencias percibidas en los gustos y comportamiento de los públicos uruguayos,
argentinos, y brasileños. Al final, todos los entrevistados tenían reflexiones interesantes
sobre la adaptación y sobrevivencia de la música de acordeón y bandoneón en el norte y
litoral uruguayo para asegurar su transmisión a las próximas generaciones.
Dominzain et al. (2011, p.5) descubrieron en su estudio del consumo cultural en
la frontera uruguaya en 2011 que, "Especialmente se notó en las ciudades de frontera
[…] que lo local/global interactúa visiblemente en el consumo de música […] Estas
zonas fronterizas dan cuenta de peculiares entramados socioculturales donde los países
entran en contacto." La narrativa de Washington Montes de la ciudad de Artigas,
frontera con Quaraí (RS) Brasil, ilustra claramente esta dinámica. Montes toca
acordeón a piano y teclado y se autodefina como "músico fronterizo". Él cuenta que:

[…] acá no se dedica a un género sólo […] son varios géneros porque somos
músicos fronterizos […] El músico siempre tiene que adaptarse a las dos

70
cosas, tiene que ser internacional […] el músico va adquiriendo conocimiento
porque la situación te obliga […] y uno naturalmente lo va asimilando. […]
Hacemos folklore, como vivimos en la frontera hacemos música brasilera,
hacemos música argentina, chamamé, cumbia, el vanerão brasileño, el
samba, entonces podemos tocar en diferentes fiestas, por eso no hay
problema, y siempre intentar actualizándonos de lo que la gente consume.
(MONTES, 2011)

En cambio, Walter Roldán, intérprete de acordeón diatónico de botón y oriundo


de Tacuarembó, a un poco más de 100 km de la frontera con Brasil, reivindica una
identidad musical localizada y diferenciada tanto de Argentina y Brasil que del Sur de
Uruguay.

[…] lo considero un folklore esa música […] los chotis, las polcas son
foráneos pero se arraigaron acá y se transformaron acá en la región. […] Es
una música regionalista de acá porque se transformaron los ritmos. No es lo
mismo una polca del Sur, traída por los inmigrantes, que una polca de acá del
Norte del Río Negro. Los chotis son distintos a los chotis de Brasil […]
Tenemos mucha influencia de los ritmos de ahí, pero el criollo de antes, […]
vamos a decir, del principio del siglo XX o fines de XIX, ya tenía un
concepto distinto de esa música […] Él la escuchaba pero la adaptaba a su
manera de ser […] Nosotros tenemos la polca con un ritmo totalmente
distinto al que se toca en el Brasil y […] en el Sur de Uruguay están todavía
con la influencia de la polca europea. […] el Norte del Río Negro, las
regiones de Salto, parte de Paysandú, esas zonas, y Artigas, parte de Artigas
esa música, ahí se escuchaba mucho de esa forma […] porque acordeonistas
de acá de Tacuarembó, acordeonistas de Salto, recorrían toda esa zona
tocando y se tocaba de esa manera […] Escuchar una maxixa acá y escuchar
una maxixa en el Brasil no son iguales. […] la polca apuradita esa del Sur,
acá no se hace […] acá los acordeonistas tocaban de esa forma […] (la)
polca, yo digo que es un ritmo regional, no abarca todo el Uruguay. Es esta
parte. (ROLDÁN, 2016)

Varios informantes, particularmente los bandoneonistas, demostraron posiciones


de defensa de su propia identidad músico-cultural frente a un "otro" y también frente a
las transformaciones provocadas por la globalización. Julián Dutra, bandoneonista y
lutier de Rivera relata que:

[…] hay mucha gente que toca hasta la cumbia en el bandoneón. Yo no,
porque yo soy tanguero de alma, yo soy Troilista47, me gusta el tango, me
gusta la música rioplatense […] hemos recorrido casi todo el Uruguay
tocando, parte de Rio Grande do Sul, siempre con la típica rioplatense, el
tango para adelante. (DUTRA, 2016)

Ernesto Farias, bandoneonista y tornero mecánico era oriundo de Montevideo


pero se radicó por décadas en Río Branco. Él contó que:

47
Referencia al gran bandoneonista argentino Aníbal Troilo (1914-1975)

71
[…] yo pasé por todo. Toqué todo, pero yo quiero […] mantener mi cultura,
tocar el bandoneón y tocar tango. Hago folklore obligado. […] lo hago el
folklore pero trato de afirmar la música típica: el bandoneón, el tango. […]
donde quiera que estuviera yo iría a pelear por el tango. (FARIAS, 2016)

Una dinámica parecida se encuentra en la narrativa de Reovaldo Rodrigues,


locutor del programa "O de Casa" en Radio FM 101.5 Integración en Aceguá, Cerro
Largo, Uruguay, que llega a una amplia audiencia binacional de la región fronteriza
lindante. Rodrigues, brasileño, afirma que, "na verdade a acordeona aqui na região é
fundamental, é mais fundamental que o bandoneão e que só guitarra, só violão. A
acordeona tem que ter, é uma mistura que engrandeça a música para nossos ouvintes
aqui". Admite que en su programa semanal casi nunca pasa música cantada en
castellano. "Pedem mais música do Brasil", Rodrigues relata sobre sus oyentes:

[…] eles querem essa m si a que ten a o eiro da terra, eiro da região
que ele te fala do cavalo, que fala do gauchismo, tradicionalismo, das coisas
originais, que ainda fronteira Uruguai, Brasil, Rio Grande do Sul e Uruguai,
eles vivem uma pátria antiga, a mesma pátria antiga, pouco há mudado.
[…]a maioria do pessoal é do interior. aioria do pessoal é do interior e
das fazendas, as estâncias são os que mais ligam, ligam muito. Porque é
fronteira, a fronteira ainda cultua isso aí, cultua as raízes. Temos jovens ali
que não deixam as raízes fugir do controle que foi o que aconteceu Rio
Grande para afora, muitas raízes nossas fugiram do controle, se foi para o
ga o fantasiado, bomba a estreita e aí foi. […] Os ouvintes uruguaios
aqui da fronteira […] muitas ve es me ligam mais do lado uruguaio do que o
Brasil. (RODRIGUES, 2016)

Respecto a la gran importancia de los medios de comunicación, como la


radiodifusión, en el desarrollo de la música popular uruguaya, etnomusicóloga Marita
Fornaro resalta que:

[…] la radio, el disco, y la casete se perfilan […] como formidables agentes


en la constitución de una identidad musical local, a la vez que vehículos de
conexión con países y modas musicales que, sucesivamente, fueron
integrando el imaginario de los uruguayos. (FORNARO, 2005, p.152)

Como clara ejemplo de esta afirmación, varios informantes, particularmente los


que están en la frontera con Argentina, destacaron el papel preponderante de los medios
de comunicación, particularmente la radio, en sus relaciones músico-culturales con los
países vecinos. Muchas veces este contacto mediado por la radio es en lugar de
interactuación física que frecuentemente se ve dificultada por razones logísticas y
geográficas. Desde el comienzo de la investigación del autor en 2001 varios

72
informantes afirman que el chamamé48, género musical proveniente del litoral
argentino49 , llegó y se popularizó en la región Litoral del Uruguay a través de la radio,
comenzando en los mediados del siglo XX.
Marcelo Fagúndez, intérprete de acordeón de botón radicado en Paysandú, relató
en 2002 que:

[…] siempre me gustó el chamamé […] escuchaba en las radios porque


nunca vi una persona que dijera que "se toca así" un maestro, porque
realmente nunca lo vi en vivo […] Grabamos en casete, chamamés que
pasaban (en las radios argentinas), estábamos atentos. Cuando pasaban el
chamamé que nos gustamos, lo grabamos y después escuchamos. Era la
manera de sacar […] Pero especialmente chamamé lo sacábamos de ahí, de la
radio. (FAGÚNDEZ, 2002)

Guitarrista y vocalista Carlos María Silva y acordeonista, Armando Antúnez,


entrevistados en Bella Unión en la triple frontera fluvial entre
50
Uruguay/Argentina/Brasil , afirman la misma situación. Antúnez (2016) aclara que " la
influencia chamamecera es por medio de la radio" y Silva describe que:

La influencia llega a ser o radial, o televisiva […] porque directa es más


difícil […] depende de que el río esté crecido o no, y si no está crecido, si hay
traslado de lancha, porque a veces no hay. […] Somos triple frontera ¿no?
Tenemos mucha más comunicación con Brasil y la Barra de Quaraí, en este
caso, que con Monte Caseros, que la falta de puente es una tranca real […]
tanto para nosotros difundir nuestra cultura allá, como ellos venir para acá.
Como hablábamos antes, sí, escuchamos radio, miramos televisión, todo eso,
pero a veces el intercambio verbal y directo tiene mucha más validez
(ANTÚNEZ et al., 2016)

Algunos de los informantes poseen, y destacaron la importancia, de la incidencia


de lazos familiares transfronterizos en su arte musical. Varios son hijos o nietos de
argentinos (correntinos y santafecinos) o brasileños. Radakovich (2011, p.21) destaca la
centralidad del ámbito familiar en la transmisión de música tradicional en las ciudades

48
El chamamé es una expresión cultural popular de raíz tradicional rural que involucra música y danza, y
proviene del litoral argentino, con la provincia de Corrientes como su epicentro. Los orígenes del
chamamé son debatidos por varios expertos, pero se entiende que tiene cientos de años de historia y posee
elementos de cultura guaraní, española, afro-criolla, y de culturas provenientes de la ola inmigratoria que
experimentó Argentina en los siglos XIX y XX. Ya en las últimas décadas del siglo XX logró la
consolidación como una expresión cultural musical y dancística bastante difundida por toda Argentina.
Los principales instrumentos utilizados en este género musical son guitarra criolla, instrumentos de fuelle
(acordeón diatónico, bandoneón, etc.), a los cuales muchas veces se incorporan otros instrumentos como
contrabajo. Se baila en pareja enlazada y los pasos involucran zapateo por parte del hombre.
49
Conformado por las provincias argentinas de: Chaco, Corrientes, Misiones, Entre Ríos, Santa Fe, y
Formosa.
50
Más específicamente la triple frontera entre las ciudades de Bella Unión en el departamento uruguayo
de Artigas, Barra do Quaraí del estado brasileño de Rio Grande do Sul, y Monte Caseros de la provincia
argentina de Corrientes.

73
de la frontera y sostiene que el lazo familiar es, "uno de los vínculos más fuertes […] en
que la tradición folclórica continúe". Acordeonista Silvio Previale, hijo de un
inmigrante santefecino de ascendencia italiana que vino a radicarse en la ciudad de
Salto, continua la tradición heredada de su padre de dirigir una academia de enseñanza
de acordeón a piano, además de organizar uno de los más grandes festivales de
acordeón del Río de la Plata. Él relata que:

[…] las clases medias, que ya empezaron a aparecer en esa época (mediados
de siglo XX) […] acá en Salto, prefería(n) el acordeón (a piano), pero sobre
todo la búsqueda de tocar el acordeón era el entretenimiento para las fiestas
familiares. El alumno iba a estudiar para tocar en su casa. […] Porque era
justamente el nexo cultural […] el padre compraba el acordeón para que el
hijo tocara como tocaba el abuelo, […] el que había nacido allá, que venía de
Italia […] Era para que tocara las canciones que ellos habían escuchado. No
había […] mp3 […] ningún tipo de reproducción de música. La música se
tocaba […] Aprendés a tocar tu música para interpretarla, para poder
escucharla, para tenerla en tu casa, para sentirte ligado con tus raíces. […]
Era un centro de socialización muy importante, el contacto con el acordeón.
(PREVIALE, 2016)

Por más que existan lazos importantes en la frontera entre uruguayos y sus
vecinos, los informantes también ofrecieron observaciones interesantes sobre las
grandes diferencias que ellos perciben entre los públicos y sociedades de los tres países.
Era casi unánime la percepción que el Brasil y la Argentina defiende más a sus
expresiones musicales y artistas nacionales que el Uruguay, y que el público uruguayo
en general tiende a ser menos entusiasta respecto a música de acordeón y bandoneón.
Bandoneonista octogenaria Ada Mena, de San Miguel, Rocha comenta que:

En Santa Vitoria, ahí hemos ido a tocar, y la gente impresionante lo que


aplaude y lo que baila […] y el otro lado acá no quieren bailar nada. Eso no
lo puedo entender […] Los brasileros aprecian más que los uruguayos […]
porque les enloquece el tango, porque ellos no ven, no ven el bandoneón, no
ven el violín. (MENA, 2016)

En Paysandú el bandoneonista Jorge Medina, hijo de padre correntino, también


observa que:

Vos, acá […] entre radios FM y AM, hay como 15 emisoras de radio y vos
no escuchás una emisora que te pase un tango […] Acá cruzás el puente y ya
estamos en Entre Ríos, ahí sí. Lo que pasa es que el argentino es diferente, el
argentino ama al tango […] Ahí escuchás cualquier emisora y te pasa tango
(MEDINA, 2016)

Artiguense Washington Montes reflexiona sobre la poca cantidad de jóvenes en


su ciudad que se deciden por tocar el acordeón:

74
Acá en Artigas no tanto, pero en Quaraí sí, por ahí ellos mantienen más la
llama porque son muy tradicionales […] y lo que predomina es el acordeón, y
ellos mantienen esa tradición. […] ellos mantienen más la cultura de ellos, la
música gaucha (MONTES et al., 2016)

Las reflexiones de muchos de los informantes sobre la representatividad de una


identidad uruguaya vis-à-vis los países vecinos fueron relevantes. Un ejemplo es el
testimonio de guitarrista Carlo María Silva de Bella Unión quien explica:

Si nosotros fuéramos, por ejemplo, a Monte Caseros, ya en el ensayo que


hacemos, ya incluimos prácticamente todos los temas que representan a
nuestro país […] Algunas polcas, milongas, cosas que, con la misma letra
también, diciéndoles "nosotros somos orientales". (ANTÚNEZ et al., 2016)

Las ideas de los informantes sobre perspectivas de adaptación y sobrevivencia


de la música de acordeón y bandoneón en el norte y litoral uruguayo también fueron
interesantes. Muchos, especialmente los bandoneonistas e intérpretes de acordeón de
botón, expresaron preocupación por lo que ellos perciben ser la inminente desaparición
de su arte musical por carecer de generaciones de relevo debido a diversos factores.
Tornero mecánico de maquinaria arrocera y bandoneonista Ernesto Farias, quien
desafortunadamente falleció en setiembre 2016, describió como sus dos profesiones
fueron afectadas por cambios económicos y tecnológicos en las últimas décadas:

Antiguamente era mejor, ahora con todo el modernismo que hay […] con la
música esta, mecánica […] está extinguido el bandoneón acá. Ya no le dan
importancia. En los bailes no se toca. […] Siempre trabajé en el taller, nací
adentro de un taller. Mi padre tenía tornería, entonces siempre me crie dentro
de la tornería, después que me vine para la frontera, sí: bandoneón y trabajo.
[…] Treinta años atrás, música y trabajo sobraba […] los arroceros ya […]
tienen mejores maquinarias que yo, tienen torno, tienen soldadura, tienen
maquinaria de agujerear […] todo cambió todo porque antiguamente en una
arrocera trabajaban treinta personas ahora trabajan cinco […] hoy se plantan
cien hectáreas por día o más, porque hay cosechadoras que en pocas horas te
hacen cien hectáreas […] Ahora son inmensas sembradoras que hay […] lo
que cambió fue el modernismo, la música electrónica, porque antiguamente
no existía y precisaban de bandoneón, un acordeón, batería para hacer un
baile. Hoy va una persona con un órgano, con un teclado, ya tiene el ritmo,
[…] canta, se acompaña, entonces eso vino a terminar con la música en vivo
(FARIAS, 2016)

En conclusión, este nuevo trabajo de campo realizado en 2016 ha demostrado un


panorama diverso en cuanto a perspectivas y condiciones actuales de intérpretes de
instrumentos de fuelle en la frontera uruguaya. Estos resultados conforman un aporte

75
clave a la investigación del autor que culminará en la defensa de su tesis de maestría en
marzo, 2017 en la Universidade Federal de Pelotas.

Referencias

ANTÚNEZ, Armando, et al.: depoimento [mar. 2016] Entrevistador: J. Curbelo. Bella Unión, Artigas,
Uruguai: UFPEL, 1 arquivo digital. Entrevista concedida ao projeto Paraformal na Fronteira do LabUrb
da UFPel.

AROCENA, F.; GAMBOA, M. Marco conceptual e hipótesis de trabajo para la regionalización cultural.
In: AROCENA, F. (Org.). Regionalización Cultural del Uruguay. Montevideo: Universidad de la
República, 2011. p. 17-77.

AYESTARÁN, L. El folklore musical uruguayo. Montevideo: Arca Editorial, 1997.

DOMINZAIN, S., et al. Música y audiovisuales en ciudades de fronteras. Montevideo: FHUCE-MEC-


AECID, 2011. p. 19-41.

DUNKEL, M. Liner Notes. Bandoneón Pure: René Marino Rivero. Washington, D.C.: Smithsonian
Folkways Recordings. 1993.

DUTRA, Julián: depoimento [mar. 2016] Entrevistador: J. Curbelo. Rivera, Uruguai: UFPEL, 1 arquivo
digital. Entrevista concedida ao projeto Paraformal na Fronteira do Laboratório de Urbanismo da UFPel.

FAGÚNDEZ, Marcelo: depoimento [mai. 2002] Entrevistador: J. Curbelo. Paysandú, Uruguai. 1 arquivo
digital. Entrevista concedida a projeto de pesquisa independente.

FAGÚNDEZ, Marcelo: depoimento [jul. 2016] Entrevistador: J. Curbelo. Paysandú, Uruguai: UFPEL, 1
arquivo digital. Entrevista concedida à pesquisa para Dissertação de Mestrado do PPGMP da UFPel.

FARIAS, E. et al.: depoimento [mar. 2016] Entrevistador: J. Curbelo. Río Branco, Cerro Largo, Uruguai:
UFPEL, 1 arquivo digital. Entrevista concedida ao projeto Paraformal na Fronteira do Laboratório de
Urbanismo da UFPel.

FORNARO, M. El "Cancionero Norteño": Música Tradicional Y Popular De Influencia Brasileña En El


Uruguay. Montevideo: Instituto Nacional Del Libro, Ministerio De Educación Y Cultura, 1994.

FORNARO, Bordolli Marita. La radiodifusión y el disco: un análisis de la recepción y adquisición de


música popular en Uruguay entre 1920 y 1985. In: CONGRESO INTL. DE LA SOCIEDAD IBÉRICA
DE ETNOMUSICOLOGÍA, 8, 2004, Zaragoza. Revista Aragonesa de Musicología. XXI. Zaragoza:
Institución Fernando el Católico Excma. Diputación de Zaragoza, 2005.p. 143-155

MEDINA, Jorge: depoimento [jul. 2016] Entrevistador: J. Curbelo. Paysandú, Uruguai: UFPEL, 1
arquivo digital. Entrevista concedida à pesquisa para Dissertação de Mestrado do PPGMP da UFPel.

MENA, Ada et al.: depoimento [mar. 2016] Entrevistador: J. Curbelo. San Miguel, Rocha, Uruguai:
UFPEL, 1 arquivo digital. Entrevista concedida ao projeto Paraformal na Fronteira do Laboratório de
Urbanismo da UFPel.

MONTES, Washington, et al.: depoimento [mar. 2016] Entrevistador: J. Curbelo. Artigas, Uruguai:
UFPEL, 1 arquivo digital. Entrevista concedida ao projeto Paraformal na Fronteira do Laboratório de
Urbanismo da UFPel.

PADRÓN FAVRE, Oscar. El proceso de creación de los departamentos/ Historia cultural de las regiones.
In: AROCENA, F. (Org.). Regionalización Cultural del Uruguay. Montevideo: Universidad de la
República, 2011. p. 45-130.

76
PREVIALE, Silvio: depoimento [jul. 2016] Entrevistador: J. Curbelo. Salto, Salto, Uruguai: UFPEL, 1
arquivo digital. Entrevista concedida à pesquisa para Dissertação de Mestrado do PPGMP da UFPel.

RADAKOVICH, Rosario. Lo nuestro, lo local, en los gustos musicales de frontera. In: DOMINZAIN, S.,
et al. Música y audiovisuales en ciudades de fronteras. Montevideo: FHUCE-MEC-AECID, 2011. p. 19-
41.

RODRIGUES, Reovaldo: depoimento [mar. 2016] Entrevistador: J. Curbelo. Aceguá, Cerro Largo,
Uruguai: UFPEL, 1 arquivo digital. Entrevista concedida ao projeto Paraformal na Fronteira do
Laboratório de Urbanismo da UFPel.

ROLDÁN, Walter: depoimento [jul. 2016] Entrevistador: J. Curbelo. Tacuarembó, Tacuarembó, Uruguai:
UFPEL, 1 arquivo digital. Entrevista concedida à pesquisa para Dissertação de Mestrado do Programa de
Pós-Graduação de Memória Social y Patrimônio Cultural da UFPel.

77
Um estudo etnomusicológico sobre “identidade gaúcha” e indústria cultural:
aportes teórico-metodológicos para a pesquisa
Clarissa Figueiró Ferreira51

Resumo
Produto do processo de novas conjunturas mercadológicas, a música regional gaúcha passou por diversas
fases de transformação na indústria cultural. Para buscar a compreensão deste processo que envolve
questões ideológicas do entendimento de identidade e autenticidade, juntamente com sua relação com o
mercado de bens materiais e da chamada indústria cultural, a pesquisa em andamento objetiva
compreender em que medida a música regional gaúcha em foco no mercado musical serve para
estabelecer e sustentar a identidade nos contextos sociais em que é produzida, transmitida e recebida. Este
artigo busca refletir sobre aportes teórico-metodológicos que podem servir e ajudar a refletir sobre essas
questões, a partir dos paradigmas da Etnomusicologia contemporânea e suas reflexões sobre etnografia e
método.
Palavras-chave: indústria cultural, identidade gaúcha, música e ideologia

Em uma época de deslocamentos fluidos, e distâncias aparentemente mais


curtas, devido à conjuntura da pós-modernidade, se acentua a busca em compreender as
identidades dos agentes sociais. Este fato foi uma das conclusões que cheguei sobre a
cultura gauchesca ao pesquisar no curso de mestrado52 (2012-2015) o segmento da
música regional gaúcha, onde pude constatar um reavivamento e recriação do
entendimento de “gaúcho autêntico” a partir da década de noventa, em discordância
com o surgimento da nomeada “tchêmusic” que hibridizava ritmos regionais (vanerão,
chamamé) com ritmos nacionais (axé, pagode, funk). Nesta pesquisa a questão de
mercado era seguidamente evidenciada por parte dos interlocutores, explicitando uma
demanda para compreender como se estruturava as condições e agenciamentos do
mercado de indústria cultural.
Quando falamos em manifestações artísticas, devemos pensar que as agências
destas identidades sociais, na atualidade, são apresentadas por um mercado de bens
simbólicos e materiais, envolvidos nos densos entremeios da indústria cultural. Segundo
Bourdieu (2003), as características mais específicas da arte resultam das condições
sociais que presidem à produção desta espécie de bem simbólico, além da conjunção de
vários processos, como a procura pela rentabilidade dos investimentos, da extensão

51
Doutoranda em Etnografia das Práticas Musicais, UNIRIO. Mestra em Etnomusicologia, UFRGS,
2015.
52
FERREIRA, Clarissa. Campeirismo musical e os festivais de música nativista do sul do Brasil: a (pós)
modernidade (re) onstruindo o “ga o de verdade. Dissertação de mestrado, Musicologia/
Etnomusicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Disponível em:
https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/101270/000930704.pdf?sequence=1. 2015.

78
máxima do público, e do resultado de transações entre as diferentes categorias de
agentes envolvidos em um campo de produção técnica e socialmente diferenciados. Para
ele, em todas as esferas da vida artística constata-se a oposição entre modos de
produção, separados tanto pela natureza das obras produzidas, pelas ideologias políticas
e pelas teorias estéticas, como pela composição social dos diversos públicos aos quais
tais obras são oferecidas.
Os motivadores do interesse por essa investigação partem primeiramente do
evidenciamento do tema na atualidade, a partir da questão da indústria cultural, e da
música como um produto de comercialização. Este é um ponto relevante, visto que,
como conclui George Yúdice (2004) atualmente o entendimento da cultura resignificou-
se e passou a ser interpretada como um recurso político e social:

Eu gostaria de frisar desde já que a cultura está sendo crescentemente dirigida


como um recurso para a melhoria sociopolítica e econômica, ou seja, para
aumentar sua participação nessa era de envolvimento político decadente, de
conflitos acerca da cidadania (Young, 2000, p. 81-120), e do surgimento
daquilo que Jeremy Rifkin (2000) chamou de “capitalismo cultural”.
(YÚDICE, 2004, p. 25)

Também, como justificativa, a importância em trabalhar questões de identidade


na pós-modernidade, estando esta problemática diretamente ligada a entendimentos
ideológicos e comerciais. Identifica-se como característica da contemporaneidade não
apenas a mobilidade espacial, mas, sobretudo, a simbólica que se expressa pela
capacidade do indivíduo de mover-se entre vários universos culturais em diferentes
escalas espaço-temporais, e de lidar com um amplo repertório de material simbólico,
matéria prima para a construção ou redefinição de identidades sociais.
Para buscar a compreensão deste processo que envolve questões ideológicas do
entendimento de identidade e autenticidade, juntamente com sua relação com o mercado
de bens materiais e da chamada indústria cultural, como objetivo geral da pesquisa em
andamento pretendo compreender: em que medida a música regional gaúcha em foco no
mercado musical serve para estabelecer e sustentar a identidade nos contextos sociais
em que é produzida, transmitida e recebida? Como objetivos específicos, busco
abranger: Como é produzida esta música regional gaúcha? Como se dá sua
comercialização? O que é transmitido por esses grupos musicais e seus repertórios?
Como se dá o consumo desse gênero? A partir das possibilidades de recepção, como
pensar o estabelecimento de relações de dominação em determinados contextos

79
empíricos? Como e/ ou em que medida uma pesquisa etnográfica pode contribuir ao
estudo de tais questões?

Histórico midiático da música gauchesca

Nas últimas três décadas a discussão acerca da cultura regional rio-grandense,


ligada aos entendimentos de representar o “gauchismo”, foi motivada pelas
transformações ocorrentes na indústria cultural. Hoje esta se intensifica devido às
inúmeras mudanças advindas dos meios digitais e da internet, configurando um novo
cenário de mercado. Produto deste processo, a música regional gaúcha, passou por
diversas fases de transformação na indústria cultural, inicialmente através do rádio,
posteriormente à época das gravadoras de discos e atualmente na era digital, onde o
produto musical é divulgado e consumido através da internet.
Atualmente, além das gravadoras de discos, formou-se outro nicho de mercado e
difusão das músicas regionais, através das rádios web. Nos últimos quatro anos, surgiu
em torno de cinco rádios web especializadas, criando através dela um público muitas
vezes diferenciado dos espaços onde se consumia esta música, como o caso dos Centros
de Tradições Gaúchas, bailes gaúchos e os festivais nativistas. Isto ocorre pela
característica destas rádios, onde existe uma interatividade entre os ouvintes, através de
salas de bate-papo. Também através da internet, muitos artistas gaúchos tornam-se
conhecidos localmente por seus videoclipes e filmagens, bem como através dos sites
onde expõem seus trabalhos musicais, como youtube, soundcloud, etc. e até a utilização
de projetos de financiamento coletivo para poderem realizar seus trabalhos de produção
de discos e dvds. Do mesmo modo, além das vendas de discos pela internet, surgiram
espaços especializados para produtos deste segmento, como roupas e acessórios, criando
toda uma rede de bens de consumo ligados ao gauchismo.
Desta forma, se consolidou um forte mercado de música regional que
dificilmente atravessa as fronteiras do estado, causando inúmeras indagações por parte
da classe artística por não ver perspectiva de seus trabalhos serem reconhecidos em
nível nacional, tanto que para os nativos deste campo virou senso comum dizer que “a
música gaúcha não sobe”. No campo de estudo a que esta pesquisa se desenvolverá, a
questão da identidade cultural como preservação de um passado mítico é fortemente
presente, e envolve a criação de bens materiais e simbólicos, a partir do entendimento
do que é “verdadeiramente” representado como gaúcho. Assim, os conflitos existentes

80
entre a renovação de práticas consideradas tradicionais no universo da “música gaúcha”,
e a manutenção de padrões musicais, tidos como “autênticos” a essa cultura, ou seja, o
conflituoso binômio: tradição X modernidade, expresso pelo senso comum e
reconhecido pelos agentes do meio musical gauchesco é o que esta pesquisa pretende
abordar, a partir do entendimento dos significados simbólicos assumidos pelo grupo de
pessoas atuantes como criadores e consumidores deste universo musical.

Tradição X modernidade ou... entre-lugar

É tema constante quanto às composições musicais a discussão sobre a inclusão


de novas propriedades sonoras, como as questões das temáticas nas letras das
composições, arranjos, instrumentações, ou ampliação dos “horizontes musicais”,
abrindo a possibilidades diferentes das anteriormente citadas, estando sempre em
questão a “autenticidade” de tais obras como sendo genuinamente gaúchas. Atualmente
vemos um mercado musical que busca a autenticidade e a partir dela o evidenciamento
de qualidades de valorização do Rio Grande do Sul, assim como um segmento
alicerçado na mudança e no aceite de novas tendências nas práticas musicais.
Segundo Benedict Anderson (2008), todos os grupos sociais, por serem
construídos, apresentam o impasse entre “falsidade” e “autenticidade”, porém a forma
como são “imaginadas” é que seria o diferencial. Para Bhabha (1998) cria-se o “entre-
lugar”:

O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com ‘o novo’ que não


seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo
como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o
passado como causa social ou precedente estético; ela renova o passado,
reconfigurando como um ‘entre-lugar’ contingente, que inova e interrompe a
atuação do presente. O ‘passado-presente’ torna-se parte da necessidade, e
não da nostalgia, de viver. (BHABHA, p.27)

Isso constatei na pesquisa realizada em nível de mestrado, mencionada


anteriormente, através das falas de interlocutores que afirmavam fazer “música gaúcha”,
mas apresentavam discordância com o discurso hegemônico que preza pela
autenticidade. Estes localizam-se numa espécie de “limbo” por não comungarem do
mesmo discurso musical ideológico da indústria e de artistas considerados gauchescos,
por não serem considerados regionais. Este caso pode ser visto como “situação de

81
desvio”. Segundo Merriam (1979), o conceito de desvio tem sido desenvolvido nos
Estados Unidos principalmente por sociólogos, e duas principais abordagens têm sido
utilizadas. Ambas, no entanto, começam com a suposição básica de que membros da
sociedade estabelecem normas que são em sua maior parte, seguidas e obedecidas pelos
indivíduos na sociedade. A forma que estas “quebras das normas” operam no universo
da cultura gauchesca, relaciona-se diretamente ao espaço dado ou não dado pelos meios
de comunicação aos “desviantes” até a aceitação do público. ar atenção ao conflito
existente faz-se necessário a fim de compreender a estruturação de redes, suas
modificações e permanências, legitimações e relações de poder.

A partir destes entendimentos busco desenvolver a pesquisa a partir de três


“mundos musicais”53. Estes diferentes segmentos organizam-se seguindo ou criando
representações da cultura gauchesca, são eles: músicos nativistas, categoria estabelecida
a partir da década de 1970 com a criação dos festivais de música inédita gauchesca;
músicos de baile, segmento de artistas atuantes em eventos cuja finalidade principal é a
dança; e músicos compositores de canções tendo relativa ligação com as representações
gauchescas, mas não totalmente integrados ao segmento que objetiva autenticidade.

É importante ressaltar o diálogo e conexão entre estes grupos, seus “caminhos


musicais” (Finnegan, 1993), que corroboram suas identificações e a construção de suas
identidades musicais. A coexistência desses diferentes códigos simbólicos, em um
mesmo grupo, indivíduo ou localidade, distingue o cenário social das sociedades
contemporâneas. Os indivíduos não pertencem mais a um só grupo ou localidade e,
portanto, não têm mais uma única identidade distintiva e coerente. As identidades
construídas e permeadas pela lógica cultural pós-moderna são híbridas, maleáveis e
multiculturais (CANCLINI, 1995).

Referencial Teórico

Para Thompson (2002, p. 18) “[...] formas simbólicas servem para estabelecer e
sustentar relações de dominação nos contextos sociais em que elas são produzidas,

53
O conceito “mundos musicais”, cunhado pela antropóloga britânica Ruth Finnegan (1989), proposto a
partir do conceito “art worlds” de Howard Becker (1982) se refere às convenções sociais das atividades
de diversificados grupos musicais. Tal conceito é ainda complementado pelo termo “caminhos musicais”,
pois, para a autora, esses mundos são flexíveis “(...) se interpenetram e têm ligações externas à
localidade” (Finnegan, 1989, p. 131).

82
transmitidas e recebidas”. esta forma, partindo da compreensão dos pesquisadores que
desconstroem o mito do gaúcho como uma forma de submissão de classes, estas ideias
trazem o entendimento que as formas de representação refletem outras significações
implícitas e se relacionam diretamente com o conceito de ideologia.
Para Terry Eagleton (1997, p. 19) “estudar ideologia significa estudar os modos
pelos quais o significado contribui para manter as relações de dominação”. Trata-se
provavelmente da definição mais amplamente aceita para o conceito de ideologia,
apesar de, todavia, não ser algo consensual. Essas questões não podem, grosso modo,
serem simplesmente respondidas considerando apenas as formas de produção da
indústria cultural, nem tampouco apenas os textos midiáticos. É preciso, no dizer de
Johnson (2000), entrar no circuito da produção, dos textos (produtos), das leituras
(recepção) e das culturas vividas. Para tanto, visando esse intento johnsoniano e, de
quebra, revigorar parte do projeto crítico adorniano, recorrer-se-á sistematicamente às
contribuições sociológicas de Pierre Bourdieu objetivando uma melhor compreensão
desse chamado “circuito de capital/circuito de cultura” (JOHNSON, 2000).
Vale lembrar, nas palavras de Albuquerque Júnior (1999, p. 23), que as
linguagens (música, cinema, teatro, pintura, etc.) “não apenas representam o real, mas
instituem reais”. Procura-se, desta forma, apreender o fenômeno musical para além de
seu efeito lúdico, buscando entendê-lo também como elemento de (re) produção de
realidades sociais (conservando ou modificando-as). Muito similarmente ao estudo de
Nilda Jacks (2003) sobre a cultura regional gaúcha sob o domínio da indústria cultural,
a questão em análise não é classificar ou diagnosticar. Trata-se, pois, de um
levantamento das possibilidades desta produção simbólica estar ligada a representação
de uma realidade que oculta às contradições mais profundas de sua estruturação, ao
invés de elucidá-las. Nesse tipo de pesquisa não está em disputa a questões de gosto
musical, mas sim, segundo David Harvey (1994), a análise de uma produção cultural
que consequentemente, cria a formação de juízos estéticos mediante um sistema
organizado pela reprodução do capital.

Sobre o fazer etnográfico

Para Pelinski (1997), a etnomusicologia atual, longe de temer um diálogo com


outras disciplinas, nutre-se delas para articular novos problemas, na qual, além de
buscar as identidades através do som, simboliza pensamentos e práticas políticas,

83
sociais e culturais do nosso tempo. Dessa forma, a principal característica das teorias
pós-modernas, é assumir uma posição relativista, desafiando culturalmente as posições
etnocêntricas em nome do pluralismo e que “toda representação cognitiva do mundo se
reduz a construções linguísticas e ideológicas” (p.2).
Como observa Timothy J. Cooley (1997), passar do estudo da música como
objeto ao estudo da música como cultura, leva a praticar uma etnomusicologia reflexiva
na qual o investigador não pode situar-se fora da cultura como observador de uma
cultura objetivamente observável. Dado que a subjetividade do investigador interfere no
processo de sua experiência da cultura estudada (vivida), é necessário que explicite sua
posição epistemológica e sua relação com a cultura estudada. (COOLEY, 1997, p. 16-
17). Ao optar por pesquisar a música gauchesca, por ser frequentadora destes universos
artísticos há cerca de dez anos como instrumentista, talvez não apresente o
distanciamento necessário. Todavia, busco construir um “olhar estrangeiro” a fatos que
vivenciei rotineiramente, por mais difícil e paradoxal que seja. Para tal apliquei às
experiências o conceito de desterritorialização, o qual me apoiei nos pressupostos de
Ianni (1996, p.169): “(…) o sujeito do conhecimento não permanece no mesmo lugar,
deixando que seu olhar flutue por muitos lugares, próximos e remotos, presentes e
pretéritos, reais e imaginários”.
Para Ingold (2014), é necessário para o fazer etnográfico o que ele chama de
correspondência. Diferentemente da mera representação ou descrição, a observação
participante é a prática da correspondência, onde se responde aos acontecimentos com
intervenções, perguntas e respostas juntamente com a intersubjetividade, “são tópicos
entrelaçados em correspondência”. Pensando desta forma, objetivo fazer uso de espaço
virtual para incitar o diálogo com meus interlocutores. Para isto criei em 2014 o blog
Gauchismo Líquido, com o objetivo de trazer reflexões e fomentar discussões sobre as
construções identitárias musicais do sul do Brasil. O termo líquido faz alusão ao
sociólogo Bauman, quando refere-se ao momento em que presenciamos, no qual tudo
muda muito rapidamente, nada é feito para durar, para ser “sólido”. esta forma, neste
espaço o gauchismo é tratado em meio ao processo de globalização com o entendimento
de que há uma fragmentação nas identidades modernas, e que, o conceito de identidade
não pode ser tido como acabado e incontestável. O uso deste espaço virtual como
ferramenta metodológica serve para manter o contato com os interlocutores e o público
interessado.

84
Considerações finais

Como pudemos ver, a pesquisa em andamento traz a importância de serem


discutidas as construções das identidades na (pós)modernidade ligadas a entendimentos
ideológicos e comerciais. Identifica-se, como característica da contemporaneidade, não
apenas à mobilidade espacial, mas, sobretudo, à simbólica, que se expressa pela
capacidade do indivíduo de mover-se entre vários universos culturais em diferentes
escalas espaço temporais e de lidar com um amplo repertório de material simbólico,
matéria prima para a construção ou redefinição de identidades sociais.
Também, podemos refletir a escolha do método etnográfico para a pesquisa
como forma de compreender as particularidades e formas de entendimentos dos nativos
em campo, através de seus agenciamentos e relações com as questões de identidade,
ideologia e mercado fonográfico. A partir da observação participante e,
consequentemente, uma descrição densa e reflexiva dos fatos podemos avançar nas
problemáticas estabelecidas pela pesquisa.

Referências

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes.


Recife: Fundação Joaquim Nabuco/ Massangana. São Paulo: Cortez, 1999.

ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras.


2008.

BECKER, Howard S. Métodos de Pesquisa em Ciências Sociais. São Paulo: Ed.


Pioneira. 1999.

_________. Art worlds. Berkeley: University of Califonia Press. 1982

BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. 6ª Ed. Rio de


Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos. Conflitos multiculturais da


globalização. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995. 272 p.

_____________. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. 4ª


Ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.

COOLEY, Timothy J. Casting shadows in the field: an introduction. In: BARZ,


Gregory F.; COOLEY, Timothy J. Shadows in the Field: new perspectives for fieldwork
in ethnomusicology. Nova York: Oxford University Pres, 1997.

85
EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução. Tradução de Luís Carlos Borges e
Silvana Vieira. São Paulo: UNESP; Boitempo, 1997.

FERREIRA, Clarissa. Campeirismo musical e os festivais de música nativista do sul do


Brasil: a (p s) modernidade (re) onstruindo o “ga o de verdade”. Dissertação de
mestrado, Musicologia/ Etnomusicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Disponível em:
https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/101270/000930704.pdf?sequ
ence=1. 2015.

HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu (org. e trad.).
Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. p.
103-133.

_____________. A identidade cultural na pós-modernidade. 1992. Tradução Tomás


Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro. 11. ed. , 1. reimp. – Rio de Janeiro: DP&A, 2011.
INGOL , Tim. That’s enough about ethnography! Journal of Ethnographic Theory 4
(1): 383–395, 2014.

JACKS, Nilda. Mídia nativa: indústria cultural e cultura regional. 3. ed, Porto
Alegre,Ed.Universidade/UFGRS, 2003.

PELINSKI, Ramón. Etnomusicología em La edad pos moderna. 1997. Disponível em


http://www.candela.scd.cl/docs/pelinski.htm (acesso em 02/05/2014)

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Mercado
Aberto, 1980.

YUDICE, George. A Conveniência da Cultura: usos da cultura na era global. Trad.:


Marie-Anne Kremer. Belo Horizonte, UFMG, 2004.

86
Irmãos Bertussi e o baile gaúcho: (re)criações e agenciamentos na música regional
de baile no Rio Grande do Sul54

Fernando Henrique Machado Ávila55

Resumo
O objetivo geral deste artigo visa apresentar os agenciamentos e (re)criações da dupla
Irmãos Bertussi no cenário da música regional de baile no Rio Grande do Sul a partir
da década de 1950, configurando-se como importantes alicerces na edificação do gênero
musical, e, bem como, a assimilação e condução deste segmento pelas novas gerações
de músicos. Aspectos referentes à discografia e a prática dos bailes; o envolvimento
deles com outros músicos, como é o caso de Tio Bilia e Virgílio Pinheiro; a relação
mútua com o Movimento Tradicionalista Gaúcho e os Centros de Tradições Gaúchas;
são temáticas abordadas neste trabalho, realizado através de uma pesquisa qualitativa de
caráter etnográfico aplicado em música. Para tanto, foram empreendidas buscas por
material referente à música de baile regional no RS em livros, jornais e revistas, além de
pesquisa de campo, valendo-se de observações de bailes e shows, além da realização de
entrevistas com Adelar Bertussi, único dos irmãos vivo, e personalidades relevantes
envolvidas com o segmento musical em questão.
Palavras-chave: Irmãos Bertussi; Música Popular do Rio Grande do Sul; Música
Regional de Baile;

1. Trajetória musical dos Irmãos Bertussi

Construção teórica

O presente artigo visa apresentar uma síntese do trabalho realizado como requisito
para a conclusão do curso de Bacharelado em Música Popular na Universidade Federal
do Rio Grande do Sul – UFRGS, sob a orientação do Professor Doutor Reginaldo Gil
Braga. Considerando o percurso musical da dupla Irmãos Bertussi, inserida no cenário
da música regional do RS, este trabalho pretende investigar os agenciamentos sociais e
estético-musicais dos Irmãos Bertussi no processo de construção da prática da música
regional de baile no RS a partir da segunda metade do século XX. Como construção
teórica eu tomo como diretrizes os escritos de Pierre Bourdieu (1997) nos quais analisa
as trajetórias das subjetividades individuais expressas através do trabalho empírico em

54
Este texto trata-se de versão da monografia Os irmãos Bertussi e a música regional de baile no Rio
Grande do Sul apresentada ao Departamento de Música da UFRGS para obtenção do título de Bacharel
em Música Popular, 2015.
55
Mestrando em Musicologia/ Etnomusicologia PPGMUS UFRGS.

87
materiais biográficos e autobiográficos. Para ele, as noções de trajetória e história de
vida compreendem significados diferentes:

Falar de história de vida é pelo menos pressupor, e é muito, que a vida é uma
história e que uma vida é inseparavelmente o conjunto de acontecimentos de
uma existência individual, concebida como uma história e a narrativa dessa
história (Bourdieu, 1997, p. 74).

Por sua vez, a noção de trajetória

(...) descreve a série de posições sucessivamente ocupadas pelo mesmo


escritor em estados sucessivos do campo literário, tendo ficado claro que é
apenas na estrutura de um campo, isto é, repetindo, relacionalmente, que se
define o sentido dessas posições sucessivas (Bourdieu, 1997, p. 71-72).

Sendo assim, considero importante a aplicação da noção de trajetória para o


estudo dos Irmãos Bertussi, de forma a compreender as posições ocupadas por eles no
campo da música regional de baile no RS, tomadas através de seus habitus (Bourdieu,
1997), que diz respeito às disposições incorporadas e engendradas pelos sujeitos,
integrando experiências passadas atuando como matriz de ações. Outra contribuição
importante vem de Ruth Finnegan (1989), através das noções de “mundos musicais”,
calcado no anterior conceito de “mundos artísticos” de Howard Becker, que interpreto
como o mundo da música regional de baile, entre outros, e “caminhos musicais” que
considero a circulação dos agentes envolvidos em diversos caminhos deste contexto.
Estas noções, alinhadas ao que Bourdieu (1997) classifica como “campos sociais”
específicos, “habitus”, “capitais” e “trajetórias”, fornecerão elementos para entender,
através das fontes empíricas e escritas, o fenômeno musical que pretendo estudar.

“Vocês não sabem aquelas musiquinhas do campo, aqueles era boi... era
boi....?”

Em 1955, a Gravadora Copacabana lançava no mercado fonográfico nacional


uma dupla de acordeonistas do Sul do país, formação esta até então pouco comum nos
grupos de música regional. Os irmãos Honeyde e Adelar Bertussi rumaram para o Rio
de Janeiro em busca de trabalho, estudo e oportunidades para apresentarem a sua
música. Tecendo relações com Mario Mascarenhas, importante figura no meio musical

88
carioca, dono de uma grande escola de acordeon, eles conseguiram atuar em rádios e
encontraram o caminho para chegarem à indústria do disco.

(...) O Emílio disse: ‘ avid, os gaúchos vão gravar, na Copacabana, só que tu


me dá licença que eu quero falar com eles em particular, vai pra lá que eu
quero falar com eles’. Contou pra nós: ‘Vocês não sabem aquelas
musiquinhas do campo, aqueles era boi... era boi....?’ O Honeyde disse:
‘Sabemos, é o nosso forte, é isso aí’. ‘Mas não me diga! Lá em São Paulo tão
gravando com o conjunto vocal Farroupilha, lançamento nacional. Eu preciso
fazer um aqui no Rio de Janeiro, também assim. Vamos arrumar isso aí’. Aí
diz o Honeyde: ‘Então podemos cantar uma música pro senhor aqui, senhor
Emílio, tocar de pé, aqui?’ Aí o Honeyde começou a assobiar, era boi....eu
comecei tá, tá, ti, ti, ti. E aí o Honeyde começou a declamar uns versos
bonitos. Ora, quando terminamos, o Emílio disse assim: ‘ avid, o teu disco
fica pra depois, primeiro eu quero mostrar os moços gaúchos para o Brasil,
depois mais adiante quando o Brasil conhecer eles, aí eu vou gravar o disco
que tu quer’. (Adelar Bertussi, 13/07/2014)56

E assim, com a pontual escolha do dirigente da gravadora Copacabana, Emílio


Vitale, os Irmãos Bertussi foram inseridos no mercado fonográfico da música regional,
tendo em vista o sucesso que Pedro Raymundo e o Conjunto Farroupilha já vinham
fazendo neste meio.

Após Pedro Raymundo e Conjunto Farroupilha, os Irmãos Bertussi foram um


marco no processo de edificação e divulgação, em âmbito nacional, da música regional
do RS e, durante sua trajetória musical animando festas e bailes desenvolveram uma
performance de cantar e tocar acordeon em duo, pouco comum na época, no Rio Grande
do Sul. Cantavam com voz solo ou em duas vozes, geralmente com intervalos de terças
paralelas. Além disso, provavelmente tenham sido os primeiros a registrar em disco esta
formação na fonografia da música regional do RS, conforme se pode constatar em
gravações anteriores à década de 1950, como, por exemplo, as gravações da Casa A
Elétrica. Dentre estas, o acordeonista Moysés Mondadori realizou a primeira gravação
do tema folclórico Boi Barroso somente com um acordeon, em 1914 (Vedana, 2006).

Naturais da região serrana do RS, a qual recebeu muitos imigrantes italianos no


final do século XIX, dos quais Honeyde e Adelar descendem, eles cresceram em meio
ao ambiente musical das festas de comunidades da zona rural, festividades religiosas, e

56
Entrevista realizada por mim como parte do subprojeto: “Samba gaúcho” ou “Samba campeiro”:
descontinuidades entre as gravações comerciais dos Irmãos Bertussi e “espontâneas” de Luiz Heitor
Corrêa de Azevedo, em 2014; projeto de pesquisa: Memória Musical do Rio Grande do Sul: estudo das
gravações históricas da Missão de Pesquisas Folclóricas (1946) de Luiz Heitor Corrêa de Azevedo,
PROPESQ, UFRGS, coordenação Professor Reginaldo Gil Braga.

89
no ambiente musical familiar, tendo na figura paterna um mestre de banda de sopros.
Conforme Honeyde registra:

Naquela época, como papai dirigia a banda e fazia seus ensaios, eu, muito
metido a querer ser gente, me dispunha a segurar-lhe a livreta com as
partituras contendo o repertório já com os arranjos feitos. Com isto, desde
muito pequeno fui apurando o sentido auditivo para os sons musicais.
(BERTUSSI, 2014, p.29.)

Honeyde, 10 anos mais velho que Adelar iniciou o percurso na música tocando
acordeon acompanhando bandas de sopro e orquestras típicas de tango, bem como em
bailes de clubes tocando marchinhas de carnaval e boleros, e as já citadas festas de
interior. Os gaiteiros de gaita ponto foram uma grande inspiração para a música que
Honeyde viria a compor e interpretar, marcadamente pelos ritmos e fraseados
executados por eles, assim como, inspirado pela música caipira veiculada pelo rádio,
importante veículo de comunicação da época. Adelar une-se ao irmão, a dupla constitui
um repertório baseado na temática rural e permeado pelos ritmos executados pelos
gaiteiros interioranos, entoando canções como Cancioneiro das Coxilhas e
incorporando no repertório muita música instrumental, músicas estas que também
configurariam a dupla como importantes instrumentistas.

Quando eu saio a cavalo,


montado no meu baio,
cortando as coxilhas,
eu não acho atrapalho,
com a gaita na garupa,
pois eu a sempre tenho,
vou dizendo que saio,
só não sei é quando venho.
Cancioneiro das Coxilhas (Honeyde e Adelar Bertussi)

A chegada ao centro do país foi marcada pelo contato com diversos músicos que
estavam ali também buscando o seu espaço, ainda mais se tratando do centro
econômico, político e cultural que a cidade do Rio de Janeiro representava na década de
1950 e ainda representa. Perpassando o mundo do samba, do choro, do baião, os Irmãos
Bertussi adquiriram um importante diálogo com múltiplos artistas através de vários
caminhos musicais. A Churrascaria Gaúcha foi um dos primeiros espaços de atuação
dos Irmãos Bertussi no Rio de Janeiro, onde receberam remuneração para tocarem e

90
cantarem músicas de caráter regional do Rio Grande do Sul, as músicas do folclore da
serra gaúcha, as quais Honeyde aprendeu com os gaiteiros de gaita ponto, bem como as
composições próprias. Lá eles conheceram o Rei do Baião, Luiz Gonzaga. O contato
com Gonzagão não se dava somente na churrascaria, mas também através de visitas do
sanfoneiro na pensão onde Honeyde e Adelar moravam. Além dele, também recebiam a
visita de Sivuca.

Nós, lá ficamos amigo primeiro do maestro Chiquinho da Gaita, aquele aqui


de Santa Cruz. Ficamos amigo dele porque nós éramos conterrâneos. E logo
em seguida com o Sivuca, porque o Sivuca não enxergava dia de sol, então
ele passava dia de sol, porque lá no Rio de Janeiro tem muito sol, ele passava
sempre fechado de dia, saia de noite, e de noite a mulher levava ele num
lugar e no outro ou os amigos iam buscar ele, porque ele não tinha confiança
de atravessar uma rua, não tinha movimento nenhum de carro nas ruas, mas
ele, não, era perigoso, né. Tinha bonde, naquele tempo tinha bonde nas ruas
do Rio de Janeiro. Consequentemente, a nossa amizade com o Sivuca, pra
ele, pra ele foi um sucesso, porque nós íamos buscar ele nos domingos,
levava lá pra uma pensão que nós tínhamos. (Adelar Bertussi, 13/07/2014)

As redes de sociabilidade que os irmãos teceram foram fundamentais para a sua


ampliação do campo musical e afirmação dentro deste. Desde o apoio inicial de Mario
Mascarenhas, o contato com Luiz Gonzaga, Sivuca, Jararaca e Ratinho, Dalva de
Oliveira, David Nasser, Regional do Canhoto, e tantos outros, até o próximo
envolvimento com os CTGs57, local onde encontraram espaço e mercado para
reprodução de sua música, e o Movimento Tradicionalista Gaúcho, movimento
ideológico de culto e valorização dos costumes de um gaúcho imaginado que
regulamenta as atividades dos CTGs. Portanto, eles configuraram um emaranhado de
ligações que ajudaram a projetar a música Bertussi no mapa da música de baile regional
no RS.

2. Surge um baile gaúcho

“Toca um sambinha pra nós”

Foi através da pontual contribuição dos Irmãos Bertussi que se tornou possível a
gravação de um disco intitulado Baile Gaúcho, com as participações de Tio Bilia e
Virgílio Pinheiro, dois gaiteiros de gaita ponto de distintas regiões do RS. O papel
57
Centros de Tradições Gaúchas.

91
agenciador da dupla deu-se desde a escolha dos músicos, apresentando-os para a
Copacabana, até a concepção dos arranjos, pois no caso de Tio Bilia, Honeyde e Adelar
tiveram de ajuda-lo a diminuir o tamanho das músicas, e nomeá-las interpelando-o
sobre a história da música e, assim, atribuindo um título. O disco, lançado em 1964, traz
um dos primeiros registros do gênero vanera ou vanerão com a música: Missioneiro, de
autoria de Tio Bilia. A vanera e o vanerão são, atualmente, os gêneros mais executados
nos bailes com temática regional do RS, e com grande grau de acerto, isto se deve a
implementação do gênero no repertório por parte dos Irmãos Bertussi e dos
grupos/conjuntos de baile subsequentes a eles.

Outros dois gêneros chamam a atenção nessa construção da música regional de


baile. O samba campeiro, presente desde os primeiros discos dos Irmãos Bertussi, era o
que viria a ser chamado depois de vanera. Sob a alcunha de “samba” ou “sambinha” são
encontradas muitas gravações realizadas na missão de pesquisas folclóricas de Luiz
Heitor Correa de Azevedo no RS, em 1946 (BRAGA, 2011), conforme o catálogo de
Dulce Lamas (1959), no entanto, Honeyde e Adelar renomearam.

O samba campeiro é uma coisa que existia, já existia pelos gaiteiros de gaita
ponto. Eles não diziam campeiro, eles diziam samba, sambinha. Os pais
chegavam e diziam: ‘Toca um sambinha pra nós’. Sambinha. Aí, nós Irmãos
Bertussi que resolvemos dar uma incrementação aí e botamos samba
campeiro. (Adelar Bertussi, 13/07/2014)

A criação ou recriação de novos gêneros, ou ainda, talvez, o aproveitamento de


gêneros já existentes, mas que ainda não constavam nas contracapas dos discos da
nascente música regional do RS consignou aos Irmãos Bertussi o pioneirismo no
registro destes na fonografia brasileira. Outro exemplo disto é a gravação da música
Casamento da Doralícia, em 1956, sendo ela o primeiro bugio gravado. Bugio trate-se
de um gênero que visa imitar o som produzido pelo macaco bugio que habita as matas
do RS através do som grave produzido pelos baixos do acordeon, valendo-se do jogo de
fole, bem como através da dança, que tenta copiar os passos do bugio caminhando. A
performance de tal dança resultou em grande sucesso na apresentação que a dupla
realizou em um programa na TV Tupy apresentado pela dupla caipira Alvarenga e
Ranchinho.

92
E eu sei que chegamos no tal programa lá, aí diz o Honeyde: ‘O quê que
fazemos?’ igo: ‘Eu canto a Égua Branca’. Tinha uma égua branca que a
malvada não cresceu, Deus o livre, a égua mais ruim do mundo. Ah, a moça
explicou: ‘Todas as quintas-feira ele traz um colégio aqui. Um colégio que, a
princípio participa de 1 hora aí’. E até era mais de 1 hora, acho que era quase
2 horas viu. E aí o Honeyde disse: ‘Tá, então tu canta essa aí, cantamos Mané
Romão...’. Eu sei que preparamos um repertório e aí o Honeyde usava a
dançar os passos do bugio. iz o Honeyde assim: ‘Quem sabe gravamos
aquele Casamento da Doralícia? Eu conto aquelas besteiras da Doralícia ali e
aí eu começo a tocar o bugio e tu firma e eu fico dançando só eu e a gaita pra
mostrar pra gurizada como é que se dança bugio’. E aí cantamos lá, a Égua
Branca foi um sucesso e Mané Romão também e de repente lá tocamos umas
outras e aí o Honeyde disse: ‘Agora nós vamos contar uma história de uma,
Doralícia, uma moça gorda que pesava 80 quilos’. E a gurizada dava risada.
‘Aí de noite, no casamento só queriam dançar bugio, sabe o quê que é bugio?
A dança do bugio, é o bugio que dança, eles copiaram lá no Rio Grande o
bugio dançando. Aí o Adelar toca um bugio que eu vou mostrar pra essa
gurizada como se dança o bugio, é 2 pulinho pra cá e 2 pulinho pra lá’. Mas
foi um sucesso que quando terminamos o programa lá, o Alvarenga disse:
‘Olha gaúchos, a semana que vem aqui, hein! Semana que vem de novo. Esse
casamento que tu falou aí não pode faltar’. A música já nasceu com sucesso,
né. Aí depois gravamos naquele ano ainda, nós tava lá no Rio de Janeiro,
naquele ano, ainda. Foi o segundo... (Adelar Bertussi, 13/07/14)

Considerações finais

Os gêneros citados, somados a outros, moldam o repertório que, paulatinamente,


foi crescendo e hoje é composto por estas (re)criações agenciadas pelos Irmãos Bertussi,
além de incorporações operadas por demais artistas vigentes no âmbito da música
regional. Considerando o conteúdo exposto neste trabalho, me parece evidente a
importância que os Irmãos Bertussi significam para a construção de uma representação
da música regional do RS por meio da música de baile, consolidando-a através da sua
profissionalização, abrindo portas na indústria fonográfica e no seio do Movimento
Tradicionalista Gaúcho, grande mercado de consumo da sua música através dos CTGs,
além de resgatarem inúmeros temas folclóricos. Aliado a (re)criação de gêneros
musicais, os Irmãos Bertussi formataram o arranjo com dois acordeons, bateria, violão,
guitarra, baixo, voz solo e em dueto, muito presente nos conjuntos de baile atuais, que
foi paulatinamente sendo implementado por eles no decorrer dos anos, e hoje é
característico deste segmento. Apresentei aqui apenas alguns vieses dentre os tantos que
podem ser vislumbrados neste objeto de estudo, ficando em aberto outras abordagens
omitidas no presente estudo.

93
Referências

BERTUSSI, Honeyde. Músicas festas e bailes. Organizadoras: Guadalupe Teresinha


Bertussi & Neura Cecília Todeschini. Porto Alegre: Edigal, EDUCS, Renascença, 2014.
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína e FERREIRA, Marieta
de Moraes. Usos e abusos da história oral. (8ª edição) Rio de Janeiro: Editora FGV,
2006, p. 183-191.
______. Razões práticas – sobre a teoria da ação. Campinas/SP: Papirus, 1997.
BRAGA, Reginaldo Gil. Missão de Pesquisa Folclórica de Luiz Heitor Corrêa de
Azevedo ao Rio Grande do Sul (1946): Motivações, Tratativas e Negociações
Institucionais e Individuais. In: V ENABET – Encontro Nacional da Associação de
Etnomusicologia. Modos de pensar, modos de fazer Etnomusicologia, 2011, Belém.
Revista dos Anais do V Encontro Nacional da Associação Brasileira de
Etnomusicologia – ABET. Belém: UFPA – ABET, 2011. p. 617 - 630.
CENTRO DE PESQUISAS FOLCLÓRICAS. Publicação n° 5. Relação dos Discos
Gravados no Estado do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro, Escola Nacional de Música,
1959.
FINNEGAN, Ruth. The hidden musicians: making music in an English town.
Cambridge: Cambridge University Press, 1989.
VEDANA, Hardy. A Elétrica e os Discos Gaúcho. Porto Alegre: scp, 2006.

Entrevista
Adelar Bertussi, em São Jorge da Mulada, Caxias do Sul /RS (14/07/2014);

94
Ritual a la venta: la capitalización de lo inmaterial en el rito del palo volador de
Veracruz, México58

Héctor López de Llano59

Resumen
Este artículo se centra en la ceremonia ritual de los voladores, concretamente la
expresión del Totonacapan veracruzano de la costa, en México. Actualmente, dicho
ritual forma parte de los gestos devocionales de la sociedad indígena totonaca, no
obstante, los voladores también han otorgado nuevos usos a esta práctica. Hoy día, el
ritual transita desde el polo de la religiosidad hasta el de la capitalización económica en
algunos de sus aspectos que se incluyen en la oferta de la industria del turismo cultural.
Se esbozarán algunas de las variables que han permitido el consumo de dicha práctica
en el mercado turístico.
Palabras clave: Ceremonia ritual de los voladores, turismo cultural, políticas culturales.

El rito de los voladores o del palo volador es una ceremonia de origen


prehispánico que llamó la atención de los cronistas, frailes y viajeros desde principios
de la Colonia. Se encuentra ampliamente distribuida en diversas zonas de origen
mesoamericano. Existen registros de su práctica en diversas comunidades totonacas,
nahuas, huastecas, tepehuas, cuicatecas y otomíes de México; quiché, kaqchiquel, achí y
zutujil de Guatemala; y pipiles de Nicaragua (NÁJERA, 2008, p. 51).
Hoy día, la expresión ritual de los voladores de la llanura costera del Golfo es
uno de los gestos devocionales de la sociedad indígena totonaca de Veracruz en torno a
las celebraciones de culto a los santos católicos. He caracterizado dicho ritual como una
práctica músico dancística, ya que por sencillo que parezca sin música ni danza, no hay
rito. Sin embargo, de acuerdo con los datos obtenidos en campo, aproximadamente
desde la década de 1940, algunos elementos de la práctica ritual han sido ofertados
como una mercancía en el mercado del turismo cultural.

58
Este artículo forma parte de una investigación doctoral en curso bajo la tutoría del Dr. Reginaldo Gil
Braga (UFRGS-Etnomus), Dra. Marina Alonso Bolaños (INAH-Fonoteca) y Mtro. Jesús Antonio
Machuca Ramírez (INAH-DEAS).
59
Doctorando en Etnomusicología, Universidad Nacional Autónoma de México, Facultad de Música.
Autor del libro Los voladores de Papantla. Una mirada desde la etnomusicología, México, D.F.:
UNAM, Coordinación de Estudios de Posgrado, 2015.

95
El ritual

De acuerdo con las entrevistas que realicé en mis estancias de campo en la


región del Totonacapan veracruzano de la costa, también conocida como región de
Papantla, el rito de los voladores debe llevarse a cabo en un contexto religioso,
puntualmente en torno a las fiestas patronales. Algunas veces son las festividades de las
propias comunidades de los danzantes y otras, son de comunidades vecinas o incluso de
comunidades de otros estados de la república mexicana.
Según los danzantes, en el contexto religioso, el corte del palo volador es una de
las partes más importantes y significativas de todo el proceso ritual, así como el vuelo.
Antes y después del corte se realizan actos rituales que evidencian la importancia de
esta etapa del proceso ceremonial. En la Figura 1 podemos observar de forma
esquematizada la reconstrucción del proceso ritual en contexto religioso de acuerdo a la
tradición oral.

Figura 1. Proceso ritual en contexto religioso

96
En relación a la significación de la práctica, Jesús Jáuregui sintetiza cinco
efectos principales:
1) La colocación de los voladores en el cuadro de la cima del palo volador es
una representación de los cuatro puntos cardinales. El mismo palo volador, donde se
para el caporal, simboliza la quinta dirección, el centro de la tierra.
2) La acción de clavar un poste arbóreo en un agujero cavado en la tierra,
simboliza la cópula de un elemento masculino, "de arriba", con otro femenino, "de
abajo". Es un acto metafórico de fecundación.
3) El ritual de los voladores escenifica la unión de las fuerzas luminosas y
calientes del mundo superior con las fuerzas oscuras y frías del mundo inferior
(inframundo) a través del palo volador (axis mundi). Al mezclar estas fuerzas opuestas
se logra la fecundidad y la renovación de la vida en el mundo intermedio, donde viven
los seres humanos, las plantas y animales.
4) El rito del vuelo expresa un movimiento en sentido antihorario del
cosmograma cuadrangular (representado por el cuadro), mientras que los voladores
realizan un movimiento circular levógiro del cosmograma circular. De esta manera se
escenifica el dinamismo original y permanente del cosmos.
5) La acción del vuelo simboliza principalmente el descenso de las lluvias,
indispensables para el cultivo del maíz de temporal; aunque en una situación de sequía,
también puede representar un pedimento por las aguas, logrado por la práctica mágica
homeopática.
La mecánica del palo volador constituye una exhibición técnica que logra
transformar la gravedad en un movimiento giratorio levógiro que representa los
remolinos de aire y agua en el hemisferio norte (JÁUREGUI, MAGRIÑA, 2003. pp. 38-
47).

Es interesante observar en campo que aunque la mayoría de los danzantes con


los que pude trabajar están consientes del largo proceso ritual, en términos reales, sólo
se lleva a cabo la etapa correspondiente a la fiesta patronal. 60 Esto se debe a la
deforestación de la Zuelania guidonia, especie utilizada en la práctica (CHENAUT,
1995, p. 283); el cambio del régimen de propiedad de la tierra de ejidos a propiedad

60
En el siguiente video se puede observar gran parte del proceso ritual y una imagen audiovisual global
de la práctica, desde la búsqueda del palo volador hasta el vuelo. Las escenas de este video y el siguiente,
son de autoría personal y forman parte del material etnográfico levantado en el trabajo de campo que
sustenta esta investigación. https://youtu.be/_xA119zuPws

97
privada, es decir, ahora se tiene que pagar entre 15 y 20 mil pesos al propietario del
predio por un árbol que durará un año en óptimas condiciones para ser utilizado en el
ritual; y por lo tanto, la paulatina sustitución de dicho árbol por un mástil metálico que
puede prolongar su durabilidad por más de diez años con los debidos cuidados.

La capitalización de lo inmaterial.

En términos generales, los voladores de la región de Papantla coexisten en un


espacio de estratificación dual. Esto es, dos sociedades fundadas en prácticas y
principios económicos diferentes: una sociedad “moderna” de tipo industrial que
constituye la parte gobernante y una sociedad “tradicional” representada por la
comunidad indígena. La primera habita en un centro regional urbano donde están
centralizados el gobierno y los servicios; la segunda, habita en lo que Gonzalo Aguirre
Beltrán llama “regiones de refugio” (AGUIRRE BELTRÁN, 1967, p. 11).

Apesar del esfuerzo del estado por integrar a las comunidades indígenas al
proyecto de estado-nación, proveyéndolos de condiciones de ciudadanía y
“modernidad”, estas regiones básicamente continúan siendo economías de subsistencia
de origen agrícola en las cuales la unidad económica principal es la familia.
Las sociedades indígenas contemporáneas se han transformado y adaptado a los
nuevos retos económicos y realidades que enfrentamos hoy en día, ahora se han
incorporado al sector de los servicios. Los danzantes también son jornaleros en campos
de cultivo particulares, albañiles, comerciantes y/o artesanos. Para las comunidades
de la región de Papantla, la actividad dancística en el contexto del turismo se ha
configurado como una actividad económica alterna relativamente reciente.
Como pudimos observar en la reconstrucción del proceso ritual en contexto
religioso, se trata de un proceso ceremonial largo y complejo. Sin embargo, la etapa que
se ha ofertado al turismo es una representación del rito del vuelo el cual ha tenido lugar
principalmente en ferias o festivales culturales, zonas turísticas, zonas arqueológicas y
museos.
En cuanto a ferias o festivales culturales tenemos el ejemplo emblemático de
Cumbre Tajín o la Feria Nacional de la Cultura Rural en México, pero también hay
eventos similares en el extranjero como el “Indian Summer Festival” en Estados Unidos

98
o el “White Nights Festival” en Rusia, en los cuales es requerida la participación de
prácticas culturales "tradicionales" para enriquecer su programación.
Estas ferias o festivales culturales son las que han dado proyección internacional
a la práctica de los voladores. De acuerdo a los datos obtenidos a través de las
entrevistas realizadas en campo, dichas actividades son realizadas a través de contratos.
Las peticiones llegan al gobierno federal, éste las envía al del estado de Veracruz y
posteriormente al del ayuntamiento de Papantla. Anteriormente, los funcionarios del
ayuntamiento tenían contacto con algunos grupos de danzantes y eran estos a quienes se
les asignaban dichos contratos. Actualmente, el gobierno de Veracruz y el
Ayuntamiento de Papantla deben canalizar estas peticiones al Consejo de Voladores,
organismo que se declara autónomo y se encargará de repartir las peticiones entre las
distintas organizaciones de danzantes que se agrupan en dicho Consejo. Tengo
conocimiento de algunos grupos de danzantes que han sido contratados directamente, ya
sea por un agente extranjero que ha conocido a determinado grupo de voladores o por
un agente nacional que ha servido de enlace con la instancia extranjera. Tal vez, ésta sea
una de las razones por la cual hay grupos de danzantes completamente independientes al
Consejo de Voladores, pues ya tienen sus propios contactos.
Dichos contratos estipulan el periodo por el cual será contratado el grupo, las
presentaciones que son requeridas durante un día regular, los horarios de las mismas y
el sueldo que será percibido. De igual manera, los danzantes especifican las
características que deberá tener el palo volador, que generalmente será de metal, o en el
caso de que el organismo contratante desee el mástil de un árbol, los danzantes
especifican las características que éste debe tener y el equipo técnico y humano que
necesitarán para realizar la ceremonia de corte, arrastre y levantamiento. El resto del
equipo de vuelo (cuadro, tecomate y lazos), generalmente es llevado por el grupo de
voladores, pues estos acostumbran tener cuando menos un equipo disponible para
dichas contrataciones.
Los contratos van desde algunos días, un par de semanas cuando se trata de
ferias o festivales culturales, hasta estancias de algunos meses cuando se trata de zonas
turísticas en el extranjero. Generalmente los gastos de transportación aérea, hospedaje y
alimentación son cubiertos por el organismo que ha ofrecido el contrato. En estos casos,
no les es permitido a los danzantes pedir propina a los espectadores.
En cuanto a las zonas turísticas en el interior de la república, sucede algo
parecido, las peticiones se hacen llegar al Consejo de Voladores quien turna la petición

99
a una organización y ésta última a uno de los grupos que congrega. En estos casos
encontramos dos situaciones: se firma un contrato que sólo estipula un sueldo sin la
oportunidad de pedir propina a los espectadores o un acuerdo en el cual la zona turística
les permite realizar la representación del rito del vuelo en un palo volador metálico y
recolectar aportaciones voluntarias, pero sin percibir un sueldo. Cabe mencionar que en
ambos casos, son los danzantes quienes deben cubrir sus gastos de transportación,
hospedaje y alimentación en sus estancias de trabajo. Dichas estancias llegan a ser de
periodos prolongados o casi permanentes, en los cuales el Consejo de Voladores o el
grupo de danzantes que ha conseguido el contrato, desarrollan un mecanismo de
rotación para regresar itinerantemente a sus comunidades y dar la oportunidad a otros
compañeros danzantes, generalmente del mismo grupo, de participar en esta actividad
económica alterna. Estos espacios son generalmente en las playas del pacífico, el golfo
y el Caribe mexicano.
En cuanto a las zonas arqueológicas y museos, prácticamente son espacios en los
que desde hace algunos años se han generado acuerdos entre autoridades y grupos que
solicitaron el espacio para realizar la representación del rito del vuelo. Estos acuerdos se
han consolidado con el tiempo y dichos grupos han ganado una “permanencia” que ha
sido respetada por los demás grupos y organizaciones de danzantes. Así por ejemplo las
plazas de volador en las zonas arqueológicas de El Tajín y Tulum, y la del Museo
Nacional de Antropología, en la Ciudad de México.61
Inicialmente, esta capitalización fue llevada a cabo por los mismos danzantes
pero con el devenir del tiempo se han adherido diversos actores sociales que persiguen
capital económico, simbólico y hasta político, complejizando así el escenario. Desde mi
punto de vista, además de esos nuevos actores, instituciones y organismos nacionales e
internacionales han favorecido dicha capitalización con la implementación de políticas
públicas en materia cultural.
Un ejemplo de ello es la inclusión de la Ceremonia ritual de los voladores en la
Lista Representativa del Patrimonio Cultural Inmaterial de la Humanidad de la
UNESCO en el año 2009. Esta declaratoria responde a las medidas de salvaguardia de
dicho patrimonio en el plano internacional, tales medidas son establecidas en la
Convención para la Salvaguardia del Patrimonio Cultural Inmaterial promulgada en

61
Representación del rito del Vuelo en contextos turísticos. https://youtu.be/Sc2V9WcS-wY

100
2003 por dicha organización, misma que a su vez forma parte del sistema de Naciones
Unidas.
Las políticas patrimoniales han traído consigo un doble efecto. Por un lado, la
dinamización y proyección de ciertas prácticas culturales, aunque esto implica una
mayor explotación por parte de terceros en comparación a la explotación que llevan a
cabo los mismos portadores de la cultura. Y por otro lado, el ensombrecimiento de las
otras prácticas culturales que no han sido patrimonializadas por aquellas que sí. Este
fenómeno ocurre incluso en la misma región de Papantla, ya que los nuevos aspirantes a
danzantes, en mayor medida prefieren aprender la danza-ritual del volador en
comparación a las otras danzas del Totonacapan.
En relación a estos aspectos, George Yúdice argumenta que el papel de la
cultura se ha expandido al ámbito político-económico y es considerada un recurso. El
autor destaca el uso de la cultura para el progreso sociopolítico y el crecimiento
económico. El sector del arte y la cultura florece dentro de una enorme red de
administradores y gestores, quienes median entre las diversas fuentes de financiamiento,
los artistas y comunidades. Cuando la Unión Europea, el Banco Mundial, el Banco
Interamericano de Desarrollo y las principales fundaciones internacionales percibieron
que la cultura constituía una esfera importante para la inversión, se le trató como
cualquier otro recurso. El arte y la cultura son un sector que tiene un alto coeficiente de
mano de obra, por lo tanto, contribuye a disminuir el desempleo (YÚDICE, 2002, p. 23-
27).

Para James . Wolfensohn, presidente del Banco Mundial, “la cultura material y
expresiva son recursos desestimados en los países en vías de desarrollo. Pero pueden
generar ingresos mediante el turismo, las artesanías y otras actividades culturales”
(WOLFENSOHN, Apud YÚDICE, 2002, p.27). Recurrir a la “creatividad económica”
favorece a la clase profesional-gerencial sacando provecho de la retórica de la inclusión
multicultural. En este esquema, los grupos subordinados ocupan un lugar en calidad de
obreros no calificados que aportan servicios y también son proveedores de “vida étnica”
y otras experiencias culturales (YÚDICE, 2002, p.35). La cultura es útil en tanto recurso
para alcanzar un fin (IBI EM, p. 45). La explotación del trabajo “inmaterial”, por
ejemplo, la vida étnica que las poblaciones subalternas aportan a la clase profesional-
gerencial y a los turistas en las ciudades globalizadas de hoy, y además, la

101
transformación de artistas e intelectuales en los gerentes de esa expropiación, es llevada
a cabo bajo el disfraz del trabajo “centrado en la comunidad” (IBIDEM, p. 51).
La administración de este recurso cultural ha generado diversas relaciones de
poder entre los actores sociales involucrados y como consecuencia se han marcado aún
más las asimetrías entre dichos actores. De acuerdo con los relatos de los danzantes,
anteriormente era habitual conseguir contratos directos con los agentes interesados en la
danza del volador, en cambio ahora, prácticamente no se consiguen contrataciones
directas, la gran mayoría son gestionadas a través de uno o más intermediarios.
En general, las políticas patrimoniales han generado nuevos espacios que ahora
se disputan no sólo los danzantes, sino también otros actores sociales tales como
gestores culturales, organizaciones no gubernamentales e incluso instituciones del
Estado. El capital cultural que es explotado no sólo se refleja en capital económico, sino
también en capital simbólico y político.
Entonces, ¿qué es lo que ofertan los grupos de voladores en los contextos
turísticos en los que se representa el rito del Vuelo? Varios elementos del saber-hacer
que sustentan la práctica: 1) los conocimientos relativos a la mecánica del vuelo; 2) los
conocimientos coreográficos y dancísticos; 3) propiamente el saber-hacer musical; y 4)
un imaginario materializado en las artesanías que ellos comercializan como es la diada
flauta y tambor que, desde mi punto de vista, condensa el imaginario que gira en torno
al rito de los voladores.

Referencias

AGUIRRE BELTRÁN, Gonzalo. Regiones de Refugio. México: Instituto


Indigenista Interamericano, 1967, p. 11.

CHENAUT, Victoria. Aquéllos que vuelan. Los totonacos en el siglo XIX.


México: CIESAS/INI, 1995, p. 283.

JÁUREGUI, Jesús y MAGRIÑA, Laura. El ritual del volador en las doctrinas de


Xochimilco durante el siglo XVIII, Antropología Nueva Época, núm. 70, abril-junio,
México: INAH, 2003. pp. 38-47.

NÁJERA, Martha. El rito del palo volador: encuentro de significados. Revista


Española de Antropología Americana. Vol. 38, núm. 1, 2008.

102
YÚDICE, George. El recurso de la cultura. Usos de la cultura en la era global.
Barcelona: Gedisa, 2002.

103
Por que estudar imigração, migração e música? Lacunas, problemas e perspectivas
do estudo etnomusicológico62

Suelen Scholl Matter63

Resumo
Neste artigo apresento um compêndio dos estudos sobre a prática musical de imigrantes
no Brasil e evidencio que, sob a perspectiva etnomusicológica, este tema, embora ainda
pouco abordado, tem apresentado avanços em sua perspectiva histórica. Já, a
etnomusicologia internacional tem dado um enfoque maior ao eixo dos estudos de
migração e música em sua relação com problemas sociais e com a necessidade de
readaptação que o deslocamento (i) migratório ocasiona. Através desse trabalho tenho
como objetivo apresentar ao leitor as diferentes perspectivas de estudo realizadas sobre
o tema a fim de apontar a necessidade da etnomusicologia brasileira discutir os
problemas prementes, uma vez que o Brasil é terreno de imigrantes e de migrantes.
Palavras-chave: etnomusicologia – (i) migração – música

1. Um panorama dos estudos etnomusicológicos brasileiros entre imigrantes

O etnomusicólogo Bruno Nettl, em Defining Ethnomusicology (2005), apresenta


os diferentes caminhos que definiram o termo etnomusicologia no decorrer da história.
Nesse livro ele defende que existem certas crenças e entendimentos que são aceitos e
compartilhados por parte dos etnomusicólogos e considera que podem ser consideradas
um tipo de credo64. Dentre tais possibilidades, é compartilhada a crença de que a
etnomusicologia é “o estudo de todas as manifestações musicais de uma sociedade”
(Ibidem, p.13). Contudo, etnomusicólogos brasileiros têm constatado que a prática
musical de teuto-brasileiros e de outros grupos de imigrantes tem sido pouco estudada.
Ora, se a América Latina é um terreno de imigrantes, e estes compõem uma parte da
diversidade musical do território (OLSEN, 2000, xvi), tal lacuna carece ser preenchida

62
Este artigo é resultado de reflexões posteriores à dissertação de mestrado intitulada A encantadora
tradição germânica: uma etnografia da m si a entre ‘ oralistas at li os’ e ‘des endentes de alemães’
na encosta da serra gaúcha, defendida no ano de 2014 no Programa de Pós-Graduação em Música da
UFRGS.
63
Professora da Universidade de Caxias do Sul/UCS, Caxias do Sul, RS.
64 No livro, o autor apresenta as crenças e os entendimentos aceitos e compartilhados por alguns
etnomusicólogos (enquanto, por outro lado, ele evidencia que há outros que não aceitam essas doutrinas).
Estas crenças são: 1) a etnomusicologia é o estudo da música na cultura; 2) a etnomusicologia é o estudo
das músicas do mundo desde uma perspectiva comparativa e relativista; 3) a etnomusicologia é o estudo
com o uso do fieldwork (trabalho de campo); 4) a etnomusicologia é o estudo de todas as manifestações
musicais de uma sociedade (Ibidem, p. 12-13).

104
para que possam ser desvelados muitos dos caminhos em que estas práticas musicais
foram e continuam sendo expressas no passado e no presente.
Os estudiosos são categóricos na afirmação da existência dessa lacuna e na
necessidade da reconstrução desse mosaico, o qual consideram que, nos últimos anos,
vem sendo preenchido65. A constatação dessa lacuna pode ser observada na tese de
Alice Lumi Satomi (2004) e na tese de Werner Ewald (2004) publicada em livro no ano
de 2011.
Alice Lumi Satomi, que em 2004 estudou a música para koto66 na cidade de São
Paulo (Brasil), com imigrantes japoneses no Brasil, elucida que a literatura brasileira
etnomusicológica sobre imigrantes e sua música é incipiente, principalmente no tocante
ao seu tema de pesquisa. Para completar a argumentação, a autora descreveu a escassez
de trabalhos apresentados no 36º Congresso Internacional de Música Tradicional
(ICTM), realizado no Rio de Janeiro no ano de 2001, com a temática da imigração.

[...] embora um dos cinco temas propostos pelo Congresso fosse “Música e
ança dos Imigrantes”, apenas três trabalhos brasileiros foram apresentados:
um sobre os judeus no Rio de Janeiro (Spitalnik, 2001), e os demais sobre os
japoneses em São Paulo (Tsuzuki 2001 e Satomi 2001). (SATOMI, 2004, p.
6-7).

Ainda no eixo dos estudos de imigração, o etnomusicólogo Werner Ewald, que


em 2011 publicou em livro a sua tese sobre a prática musical de teuto-brasileiros no sul
do Brasil, também expôs a lacuna de estudos com a abordagem etnomusicológica no
tocante ao tema da prática musical de teuto-brasileiros e de imigrantes em geral, no
Brasil. Ele argumenta que “o passado e a atividade musical contemporânea dos teuto-
brasileiros67, bem como de muitos outros grupos de imigrantes no Brasil, quase não
receberam atenção nos estudos”68 (Ibidem, p. 43). Seu livro (2011) e seu artigo (2007)
apontam que o estudo a partir da música pode contribuir para mais pesquisas sobre a
imigração alemã em outras áreas de conhecimento.

65 No 8º Encontro de Música e Mídia, Musimid, realizado em São Paulo, observou-se um crescente de


estudos com o tema (i) migração e música.
66Segundo Satomi (2004, p. 1) koto é uma cítara tradicional japonesa transterritorializada para o Brasil”.
A partir de um glossário de termos a autora também complementa: “cordofone da família das cítaras
longas, tocado com três dedais tsume que envolvem a ponta do polegar, indicador e médio da mão direita.
Usualmente possui treze cordas, estendidas sobre a caixa de ressonância mediando 1,80 x 0,08 m,
afinadas através de cavaletes móveis. O koto é classificado em 4 tipos de acordo com o repertório: gakusô
no Gagaku; tsukushisô no Tsukushi-goto, zokusô na Yatsuhashi-ryû, Ikuta-ryû e Yamada-ryû; e shinsô,
gênero moderno ou ocidentalizado” (Ibidem, xviii).
67 Utilizo o conceito de teuto-brasileiros como tradução para o conceito “German Bra ilians” de Werner
Ewald (2011).
68 “The past and contemporary active musical culture of German Brazilians, as well as that of many other
immigrants groups in Brazil, barely receives attention in scholarship” (EWAL , 2011, p. 43).

105
2. O panorama histórico dos estudos sobre a história da música brasileira e
sobre etnicidade e identidade étnica no Brasil

A questão da escassez de estudos da etnomusicologia brasileira sobre a


(i)migração pode ser entendida a partir do panorama, traçado por Ewald, sobre os
estudos da música no Brasil. Tal panorama compreende dois eixos, são eles: 1–estudos
sobre a história da música brasileira; 2– estudos sobre etnicidade e identidade étnica.
No tocante aos estudos sobre a história da música brasileira, o autor elucida três
modelos dentro dos quais a história é narrada: o modelo da música ocidental, o modelo
etnomusicológico e o modelo oficial ou nacionalista.
No modelo da música ocidental eram examinados os músicos famosos e a
universalidade de seus trabalhos. Esta abordagem foi “estendida para variados gêneros
de música popular nos quais os mega-shows e as estrelas da mídia estão no centro dos
escritos sobre a história da música” 69(EWALD, 2011, p. 45).
O segundo modelo descrito pelo autor é o etnomusicológico, que, ao contrário
do modelo de estudo da música ocidental, estuda a música das mais variadas culturas. A
questão é que, apesar da etnomusicologia ser definida como o estudo de todas as
manifestações musicais de uma sociedade (NETTL, 2005, p. 13), Ewald (2011, p. 45)
observa que os estudos etnomusicológicos sobre música brasileira têm sido divididos
tradicionalmente em três áreas principais: “[...] tradição de povos nativos, tradição afro-
brasileira e tradição europeia brasileira geralmente centralizada na tradição Lusa”70.
Mediante tais dados, mais uma vez, se observa a lacuna nos estudos da música de
imigrantes alemães.
O terceiro modelo abordado por Ewald é o oficial ou nacionalista. Este modelo
está relacionado com o projeto nacionalista ditatorial de Vargas no Brasil, que buscava
representar o país a partir de uma única identidade, a brasileira. O projeto de Vargas
(1930) buscava uma unidade de representação para o Brasil, uma forma de representar e
diferenciar o brasileiro em relação a outras nações. Para isso, foram escolhidos dois
símbolos: o samba e o carnaval. A questão é que os escritos sobre a história da música
brasileira estiveram centrados na questão da construção da nação. Apesar de a música
desempenhar um papel importante na construção da identidade nacional, a diversidade

69“[...]
has also been extended to the most varied genre of popular music, where the mega shows and
mass media stars are made the center for writing music history” (EWALD, 2011, p. 45).
70 “Native people tradition, Afro-Brazilian traditions, and European Brazilian tradition usually centering
in Luso tradition” (EWALD, 2011, p. 45).

106
de imigrantes e de práticas musicais que compõem o país não foi considerada, dentre
elas a prática musical de grupos étnicos como alemães, japoneses, italianos e outros.
Assim, tal forma de representar o Brasil acabou por ocultar uma face da diversidade
cultural interna, especialmente aquela formada por imigrantes (Ibidem, p. 47).
Essa tendência defendida pelo regime ditatorial de Vargas, no poder de 1930 até
1945, teve impacto na nascente produção acadêmica ou mesmo folclórica no Brasil,
criando uma lacuna de informação e reflexão sobre esses grupos e, consequentemente,
suas práticas musicais.
Outra questão atual, hoje, dentro dos estudos sobre as pesquisas em etnicidade e
identidade étnica e suas relações com as pesquisas sobre a música de imigrantes no
Brasil, é a alteridade. Os teuto-brasileiros, por exemplo, não representavam a
brasilidade que o projeto nacionalista de Vargas buscava para representar a cultura
musical brasileira, ou seja, não faziam parte do cânone de brasilidade (Ibidem, p. 51).
Esse projeto buscava mascarar as “tradições culturais alienígenas”, dentre elas, a
tradição de imigrantes e descendentes no país. Naquele período, os indivíduos que
portavam etnicidades e culturas diferenciadas eram considerados “alienígenas” e,
portanto, deveriam ser assimilados (SEYFERTH, 1997, p.131).
Algumas das medidas aplicadas pelos militares na condução da campanha foram
suprimir a alteridade, o pluralismo e mascarar as diferenças internas “[...] prevaleceu
uma concepção de Estado-nação que negou legitimidade a quaisquer formas de
pertencimento étnico” (Ibidem, p. 131). A campanha de nacionalização instituída
durante o Estado Novo exigiu o “abrasileiramento”71 dos diversos grupos de imigrados
e de seus descendentes no Brasil (Ibidem, p. 97), o que colidiu de forma violenta com as
diversas associações étnicas das quais os grupos musicais faziam parte.

Assim, progressivamente, desapareceram as publicações em língua


estrangeira, principalmente a imprensa étnica, e algumas sociedades
recreativas, esportivas e culturais que não aceitaram as mudanças; foi
proibido o uso de línguas estrangeiras em público, inclusive nas atividades
religiosas; e a ação direta do Exército impôs normas de civismo, o uso da
língua portuguesa e o recrutamento dos jovens para o serviço militar num
contexto genuinamente brasileiro (Ibidem, p. 97).

Esta iniciativa nacionalista para representar o Brasil como ele “verdadeiramente


é”, mascarou a riqueza de suas diferenças internas e contribuiu para condenar as práticas

71 Termo utilizado por Seyferth (1997). Os imigrantes e descendentes estabelecidos no Brasil


deveriam adotar os parâmetros da ideologia nacionalista brasileira (Ibidem, p. 131).

107
musicais diferentes e seus praticantes na direção da invisibilidade (EWALD, 2011, p.
53). Segundo Ewald, tais circunstâncias contribuíram para a ausência de estudos sobre a
prática musical dos teuto-brasileiros.

3. Da “invisibilidade musical” às discussões contemporâneas

É importante notar que há discussões prementes que podem ser contempladas


principalmente a partir do estudo de (i)migrantes: a atribuição de novos significados às
suas práticas musicais em novos contextos; as questões relacionadas aos significados de
ser (i)migrante – a qual pode acarretar prejuízos sociais para esses atores, tal como os
etnomusicólogos McAlister (2002) e Coplan (1994) têm constatado a partir do estudo
entre migrantes-; a atribuição categorial pela qual os grupos se identificam e são
identificados pelo outro; a questão das fronteiras72 dos grupos que servem de base para
a dicotomização nós x eles e o problema da saliência73 que recobre o conjunto dos
processos pelos quais os traços étnicos são realçados na interação social (POUTIGNAT;
STREIFF-FENART, 2011, p. 141).
O deslocamento (i)migratório ocasiona a transformação e a necessidade de
readaptação às novas necessidades (TURINO, 1993; MCALISTAR, 2002; COPLAN,
1994, SHELEMAY, 1998). Os estudos com o tema da (i) migração, desde a perspectiva
da etnomusicologia internacional, tratados a seguir, têm priorizado o estudo da
formação de identidades através/ a partir do fazer musical, problematizando a
construção de identidades étnicas e de outros tipos de pertença em contextos marcados
por relações de poder, de busca pela reterritorialização de suas práticas e de suas
identidades, pela readaptação e pela manutenção de vínculos com uma tradição,
discussões de gênero, sexualidade e de problemas sociais mais amplos, além da
atribuição e geração de novos significados à prática musical, tema comum a todos os

72 Fronteiras/limites (boundary) foi um termo cunhado por Barth (1969) para qualificar grupo
étnico. Segundo ele, é o limite social que define o grupo e não o conteúdo cultural que ele engloba. Ele
aparece quando um grupo mantém suas identidades enquanto seus membros se relacionam com outros e
isso cria critérios para assinalar quem é e quem não é membro. Ele ainda complementa que “as fronteiras
persistem apesar do fluxo de pessoas que as atravessam”. Em outras palavras, as distinções de categorias
étnicas não dependem de uma ausência de mobilidade, contato e informação (BARTH, 2011, p. 188).
73 A noção de saliência (saliency) exprime a ideia de que a etnicidade é um modelo de
identificação em meio a possíveis outros, ela não remete à uma essência que se possua, mas a um
conjunto de recursos disponíveis para a ação social. De acordo com as situações nas quais ele se localiza e
as pessoas com quem interage, um indivíduo poderá assumir uma ou outra das identidades que lhes são
disponíveis, pois o contexto particular no qual ele se encontra determina as identidades e as fidelidades
apropriadas num dado momento (BARTH, 2011, p. 166).

108
estudos sobre migração e música apresentados aqui. Estas questões potencializam e
justificam a entrada desde esta perspectiva de estudo.
A etnomusicologia internacional tem contribuído para as discussões sobre o
tema através de etnografias musicais. Estas etnografias têm apresentado as experiências
dos (i)migrantes e a formação de identidades em contextos marcados por relações de
poder, além de confirmar a música como uma via de acesso ao estudo da experiência de
populações (i)migrantes em cidades multiculturais, são eles: Haitianos em Nova York,
McAlister (2002); migrantes de Lesotho para a África do Sul, Coplan (1994); migrantes
das montanhas do Peru para a cidade de Lima (capital), Turino (1993); gravações de
música curda e turca, Lundberg (2010); e imigrantes em Viena, Hemetek (2010).
A etnografia musical de Elizabeth McAlister (2002) intitulada Rara! Vodou,
power, and performance in Haiti and its diaspora é sobre Rara, um festival anual de rua
no Haiti, e a migração de alguns de seus integrantes, de classes sociais mais baixas, para
o contexto de Nova York, na década de 1980. Segundo a autora, houve uma migração
significante da população haitiana integrante das bandas Rara do Haiti para Nova York.
No novo contexto, o trabalho místico e os textos das músicas relacionados a um
trabalho religioso no Haiti passaram a ser utilizados em Nova York (contexto de
migração) com significados políticos: a busca pela reterritorialização de suas práticas e
de suas identidades. Assim, a prática, que no Haiti era ritual e religiosa, passa a
incorporar elementos de reivindicação e exposição das experiências dos migrantes em
Nova York.
A prática musical Rara está relacionada às negociações de poder, de espaço, ao
mesmo tempo em que revela uma realidade. Um exemplo desta realidade é descrita
quando a autora trata sobre gênero e sexualidade. Segundo ela, a prática musical
chamada “Betiz” (trabalho cultural de afirmação da existência e da vida criativa das
mulheres migrantes em Nova York) revela o trabalho cultural de afirmação da sua
existência, a falta de liberdade feminina e o controle econômico a que são submetidas
nesse novo contexto.
Ao desenvolver o estudo da formação da identidade étnica dessa comunidade
nos Estados Unidos, a autora revela questões tangentes aos problemas sociais mais
amplos relacionados ao que significa ser migrante, o que é ter uma vida de migrante e as
dificuldades que isso engloba.
Outra etnografia musical é a de David B. Coplan (1994). Ele desenvolveu sua
etnografia entre os trabalhadores que migraram de Lesotho para as minas e cidades da

109
África do Sul. Neste novo contexto, o gênero “Word Music” passa a ser experienciado
dando sentido às experiências de vida dos migrantes.
Coplan (1994) problematiza a condição histórica, as dinâmicas políticas e as
forças sociais que existem na ocasião de performance. Assim como McAlister (2002),
ele também elucida que na música desenvolvida pelos migrantes está presente a
expressão das suas dificuldades. Segundo o autor, a “Word Music” é a “música das
palavras”, ou seja, a música da experiência, onde, através das palavras, os migrantes
contam as suas experiências.
A etnografia de Thomas Turino, Moving Away From Silence (1993), tem como
tema central a prática musical dos migrantes internos do Peru, quem migraram da região
Andina para a capital do país, Lima. Na cidade de Lima “no que diz respeito aos
processos específicos, instituições e significado envolvendo a performance musical
andina em Lima, algo novo está sendo criado” (Ibidem, p. 3). Segundo o
etnomusicólogo, os migrantes aprenderam ideias e estilos de comportamento de
fontes/origens que foram desde seus pais e vizinhos nas montanhas, até Limenhos,
Norte Americanos, novelas argentinas, migrantes de outras regiões e anúncios de rádio.
Neste processo, eles adaptaram, alteraram, combinaram e criaram a sua representação
étnico-musical a partir de uma multiplicidade de fontes. Desta forma, apesar dos grupos
se utilizarem de instrumentos musicais semelhantes, como a flauta, por exemplo, as
práticas musicais e os significados das músicas em Lima são diferentes.
Esta questão da atribuição e geração de novos significados à prática musical é
comum a todos os estudos sobre (i) migração e música apresentados aqui. O
deslocamento (i) migratório ocasiona a transformação e a necessidade de readaptação às
novas necessidades (TURINO, 1993; MCALISTER, 2002; COPLAN, 1994,
SHELEMAY, 1998).

Conclusão

A partir desse panorama, concluo que a etnomusicologia internacional, ao


estudar migrantes, tem priorizado o estudo de grupos que têm relação com problemas
sociais e que estão, não por acaso, representados na prática musical. Se, no Brasil, ainda
estamos nos atualizando e buscando a história de grupos que compartilham e/ou
compartilharam a experiência do deslocamento - questão relevante -; em demais países
a história tem sido o primeiro patamar para o avanço em direção aos problemas de

110
inserção e ao reconhecimento dessas novas identidades, as quais, muitas vezes, são
estigmatizadas. Precisamos completar esse mosaico histórico e avançar!

Referências
BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, Philippe;
STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade seguido de Grupos étnicos e suas
fronteiras de Fredrik Barth. Traduzido por Elcio Fernandes. São Paulo: UNESP, 2011.

COPLAN, David B. In the Time of cannibals: The Word Music of South Africa´s
Basotho Migrants. Chicago: University of Chicago Press, 1994.

EWALD, Werner. Walking and Singing and Following the Song: Musical Practice in
the Acculturation of German Brazilians in South Brazil. 2004. 294f. Tese (Doutorado
em Música), LSTC e University of Chicago. Chicago, 2004.

______. Walking and Singing and Following the Song: Musical Practice in the
Acculturation of German Brazilians in South Brazil- Etnomusicological and Historical
Perspectives. Saarbrücken: VDM Verlag Dr. Müller GmbH & Co. KG, 2011.

. “… e seguindo as canções”. Cantos de diáspora de imigrantes europeus no


Brasil. Em Pauta, Porto Alegre, v.18, n. 30, jan. a jun. 2007.

MCALISTER, Elizabeth. Rara! Vodou, power, and performance in Haiti and its
diaspora. Berkeley: University of California press, 2002.

NETTL, Bruno. The Harmless Drudge: Defining Ethnomusicology. In: ______. The
study of Ethnomusicology: thirty-one issues and concepts. 2 ed. Chicago: University of
Illinois Press, 2005. p. 3-15, cap. I.

OLSEN, Dale. Music of immigrant groups. In: OLSEN, Dale; SHEEHY, Daniel. The
Garland Handbook of Latin American Music. 2 ed. New York: Garland, 2008, p. 90-99.
Disponível em: http://www.slideshare.net/JossueAcevedo/latin-american-music-
14655626#btnNext. Acesso: 10 jul. 2013.
POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade seguido
de Grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. Traduzido por Elcio Fernandes.
São Paulo: UNESP, 2011. Tradução de: Teorie dell'etnicità.
SATOMI, Alice. Dragão confabulando: Etnicidade, ideologia e herança cultural
através da música para Koto no Brasil. 2004. Tese de doutorado, Programa de Pós-
Graduação em Música, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2004.

SEYFERTH. Giralda. Nacionalismo e identidade étnica: A ideologia germanista e o


grupo étnico teuto-brasileiro numa comunidade do Vale do Itajaí. Florianópolis:
Fundação Catarinense de Cultura, 1981.

111
______. A identidade étnica teuto-brasileira numa perspectiva histórica. In: MAUCH,
Claudia; VASCONCELLOS, Nara. Os alemães no Sul do Brasil. Cultura- etnicidade-
história, Canoas: Editora da ULBRA, 1994.

______. Identidade étnica, assimilação e cidadania: A imigração alemã e o estado


brasileiro. In: XVII ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 1993, Caxambu. Anais.
Disponível em: <www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_26/rbcs26_08.htm>
Acesso: 20 ago. 2013.

______. A assimilação dos imigrantes como questão nacional. Mana, vol. 3, n. 1, p. 95-
131, abr. 1997. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/mana/v3n1/2457> Acesso 15
ago. 2013.

TURINO, Thomas. Moving Away from Silence: Music of the Peruvian Altiplano and
the Experience of Urban Migration, Chicago: University of Chicago Press, 1993.

112
“Quédate con mi voz": una reflexión metaperformática sobre personajes musicales
de una cantante cubana en la escena urbana de trova y canción de autor mexicana.

Cássio Dalbem Barth74

Resumen
En esta comunicación sugiero que el relato etnográfico de performances de músicos
populares puede ser entendido como un tipo de metaperformance, ya que este
re/presenta e instaura nuevos sentidos sobre lo que describe e interpreta. Para demostrar
mi punto, desde la perspectiva de los estudios de performance y del interaccionismo
simbólico, me centraré en la meta-performance del personaje musical construido por
Niurka Curbelo y en el uso de sus estrategias identitarias actuados en la intersección de
distintos marcos sociomusicales.
Palabras clave: performance, etnografía, trova y canción de autor

“Si muero antes de ti, permíteme, mi amor, besarte las pupilas, darte mi bendición. Quédate con mi
voz, los disco de Bosé, mis cartas mi desvelos y hasta los sueños que tejía para ti con toda
devoción” (“Quédate con mi voz”, Niurka Curbelo, 2001).

Si bien la expresión que nombra este artículo, “quédate con mi voz”, es una
referencia a una de las canciones de la cantautora Niurka Curbelo Ballester de su álbum
Todo podría cambiar (Warner Music México, 2001), esta también es parte del nombre
de una investigación que realicé con el apoyo del programa de Maestría en
Etnomusicología del posgrado de la Facultad de Música de la UNAM sobre las
estrategias de performance identitarias de la cantautora en entrevistas y conciertos
dentro de la escena urbana de trova y canción de autor contemporánea en México. En
esta balada romántica pop, el yo lírico de la canción le suplica al ser amado que, en una
posible muerte, este se quede con su voz, con sus discos del cantautor español Miguel
Bosé, con sus cartas, sus desvelos y sus sueños. Interpelado menos por el romanticismo
que por la imagen de la expresión, rescaté el título de la canción para nombrar la
investigación –y este escrito– porque me llamó la atención la súplica del yo lírico del
personaje de la canción a un interlocutor para que, en su ausencia, guarde consigo no
solo su voz, sino todos aquellos objetos que representan sus memorias: una demanda
que coincide con lo que se requiere de la labor investigativa etnomusicológica.

74
Alumno Del Programa de Maestría en Etnomusicología del Posgrado de la Facultad de Música,
Universidad Nacional Autonoma de México (UNAM ).

113
Así, en un primer momento, pretendí hacer una alusión a la idea de que el texto
etnográfico registraría la voz de Niurka Curbelo, es decir, que se quedaría con sus
actuaciones musicales tanto en el sentido performático –referente a los aspectos
escénicos e interpretativos–, como en el sentido performativo –referente a lo discursivo,
a la capacidad de instaurar significados y maneras de percibir el mundo–. No obstante,
al reflexionar posteriormente sobre el título de la etnografía, entendí que al enunciar la
expresión “quédate con mi voz”, ambiguamente le estaba diciendo al lector que se
quedara con otra voz: la mía, la del etnomusicólogo, una voz que ha estado buscando
articularse para poder, en la escritura, dialogar analíticamente tanto con los datos
registrados y recolectados durante el trabajo de campo junto a Niurka y a otros
colaboradores, como con las voces de maestros y de autores de diversas disciplinas y
áreas del conocimiento que fueron imprescindibles para diseñar los marcos de la
investigación que llevé a cabo.
Percibir la ambigüedad de las voces que surgen en el texto me llevó a sugerir que
los relatos etnográficos sobre performances de músicos populares (sus obras, conciertos,
entrevistas, etc.) también pueden ser consideradas performances etnográficas, lo que les
confiere un status de metaperformances. Como observa el musicólogo Nicholas Cook
(Cook, 2014, p. 17), la principal lección de los estudios interdisciplinarios de
performance es que el significado de la performance es emergente al ser generado
crucialmente en la propia performance, término que, más allá de significar actuación,
representación o interpretación, “(…) alude simultáneamente a proceso, práctica, acto,
episteme, evento, modo de transmisión, desempeño, realización y medio de
intervención en el mundo” (Salomón, 2014, p. 2).
En ese sentido, describir e interpretar en el relato los datos generados y
recolectados en el campo a partir de una problematización específica también significa
traducir, inaugurar y reinstaurar sentidos sobre las actuaciones. En nuestro caso, el
relato de la investigación etnográfica y etnomusicológica sobre músicas y músicos
populares se enuncia performativamente a través de una trama argumental fijada en
nuestro sistema de escritura e ilustrada con la selección de las eventos mediados en
formatos de audios, fotografías, gráficos y videos que consideramos más relevantes para
nuestra problematización, igualmente articuladas dentro de marcos teóricos-
conceptuales apropiados para contestar nuestros interrogantes. Así, no es difícil concluir
que al construir nuestro objeto de estudio y contextualizar, armamos nuestro guión y al

114
dar el resultado de la etnografía realizamos nuestras meta-performances en los
escenarios propiamente académicos.
Tomando lo anterior en consideración, en este breve espacio de meta-actuación,
conduzco a la audiencia a descubrir quién es el personaje musical Niurka Curbelo.
Procuro mostrar cómo Niurka, en fragmentos de actuaciones, afirma y desplaza o
vuelve ambiguos ciertos marcos identitarios sociomusicales que rigen la escena de trova
y canción de autor mexicana en las urbes mexicanas.

Niurka Curbelo en tres tiempos: de trovadora a Tracy Chapman latina y


Santamorena

No es mi propósito montar aquí la biografía de Niurka Curbelo, ya que esta


puede ser vista en su página personal75 y en la propia página wiki editada por la artista76.
Sin embargo quiero sí mostrar como Niurka construye de manera discursiva y
performática la historia de su personaje musical, esa entidad escénica musical que,
según Auslander (2006a, p. 102) es actuada dentro del dominio discursivo de la música,
entidad que difiere en muchos casos del “yo” cotidiano, del “sí mismo” construido en
nuestras relaciones privadas, lejos de la audiencia, y del “yo” lírico interpretado en las
canciones. En el caso de los trovadores o cantautores de determinadas escenas, sus
personajes musicales se intersecan con estas otras dos entidades durante la actuación77.
Introduzco a Niurka Curbelo a partir de un fragmento de una biografía de los años
noventa:

Nascida en La Habana, Cuba, 2 de junio, NIURKA comienza a los ocho años


de edad su carrera musical, tocando la guitarra con los viejitos del barrio. En
la medida en que va creciendo, NIURKA va nutriéndose de los más
importantes exponentes cubanos, como Sindo Garay, María Teresa Vera,
Silvio Rodríguez y Pablo Milanés, entre otros. A la edad de 9 años NIURKA
compone su primera canción titulada “Palmera” y a los 11 años comienza a
estudiar guitarra clásica en el Conservatorio de Música Alejandro García
Caturla. En 1982 ingresa en el Movimiento de la Nueva Trova y participa en
festivales nacionales estudiantiles, donde obtiene varios premios.
Paralelamente, continúa sus estudios en la universidad, los cuales más tarde
abandona para dedicarse completamente a la música (fragmento de biografía
encontrada en los archivos personales de Niurka Curbelo).

75
Disponible en <niurkacurbelo.com>. Acceso en 02/06/2016.
76
Disponible en <es.wikipedia.org/wiki/Niurka_Curbelo>. Acceso en 02/09/2016.
77
Ya que la actuación del cantautor/trovador está enmarcada por la autenticidad y la intimidad, relatos del
“yo real” también son objeto de performance en el palco escénico. El público necesita ser convencido de
que el personaje musical con el que interactúan es verdadero y cercano. Igualmente, el yo lírico de la
canción puede (y en algunos casos debe) confundirse con el personaje para que el “teatro de la canción”,
como lo nombró Joni Mitchell.

115
Su selección sobre influencias y experiencias en la formación de su personaje
está relacionada a un momento donde la artista llegaba a México y empezaba su carrera
musical fuera de Cuba. Niurka es parte de una generación de cubanos que fue educada
dentro del régimen revolucionario durante los años setenta y creció influenciada por el
Movimiento de la Nueva Trova, movimiento local que influyó y fue influido por los
movimientos de canción surgidos en los años sesenta y setenta en el mundo y en países
“latinos” e Iberoamérica.

Figura 1: Concierto en la Sala José Vasconcelos, Instituto Oaxaqueño de las Culturas, 1993.
Fuente: archivo personal de Niurka Curbelo.

La fachada personal de Niurka en este momento está estratégicamente


influenciada por la fachada del trovador, una cita78 (Butler, 1997; Derrida, 1971) de
contemporáneos como Silvio Rodríguez y Pablo Milanés79 que ha ganado palcos en
escenas transnacionales, así como de Marta Campos, su maestra en el conservatorio. En
la figura 1 se puede observar los lentes redondos y transparentes y un atuendo ligero y

78
Una cita, observando el trabajo de Butler (1997) sobre Derrida y Austin, es la invocación de
convenciones y normas a través de signos que pueden o no ser linguísticos. Trasladando la idea de que el
género (hombre, mujer) es una cita de performances previas (y no un hecho natural), es razonable
entender también el trovador como un personaje citable o iterable.
79
Silvio Rodríguez y Pablo Milanés, estos también con sus modulaciones propias de los personaje
trovadorescos que los antecedieron, como Sindo Garay, por ejemplo, han sido influyentes no solo en
Cuba, pero son referencia canónica en toda la escena transnacional de trova urbana y canción de autor,
incluida la escena mexicana. Interesante notar que Rodríguez y su generación fueron fanáticos de los
Beatles y de Bob Dylan.
Niurka comentó en nuestras entrevistas que Milanés la ha influenciado más por su estilo de canción
menos críptica y por su estilo de actuación.

116
discreto, lo que le confiere la expresión intelectual y formal, mientras el medio es
absolutamente económico: Niurka está sola, sentada en una silla sencilla frente a una
estante musical y con dos micrófonos externos captando la guitarra acústica de nailon y
la voz. Esas opciones en el escenario están inspiradas en el formato del recital de música
de conservatorio –que se encuentra en el marco de performance presentacional (Turino,
2008)- que favorecen la atención del público para una escucha más atenta al contenido
sonoro que a la gestualidad del cuerpo, que se esconde atrás de la guitarra, de los
micrófonos y de la estante musical. Niurka en ese instante interpretaba las canciones
que posteriormente agrupó en el álbum independiente Reflejos (no oficial), grabado
todo con voz y guitarra, con temáticas enunciadas desde un yo lírico que mezclaba
erotismo y romanticismo con aires de protesta.
Gradualmente su personaje trovadora cubana haría una movida lateral en su
personaje musical (Auslander, 2006), movimiento que se da cuando un performer
alterna entre dos posiciones identitarias dentro de un mismo marco de referencia, como
es el caso de la trova y de la canción de autor. Así, la trovadora se vuelve
progresivamente una cantautora pop, iterando un modelo que conocemos a través de la
colombiana Shakira (en su personaje de finales de 1990), de la canaria Rosana Arbelo y
de la española Sole Giménez80. Al firmar contratos con la editora Peer Music y con la
disquera Warner Music, Niurka empieza su producción discográfica y graba dos
álbumes oficiales en principios del siglo XXI: Quiero vivir (Warner Music, 2000),
producido por Luis Fernando Ochoa (productor y guitarrista de los primeros discos de
Shakira), el ya mencionado Todo podría cambiar (Warner Music, 2001) producido por
Ignacio “Nacho” Mañó (productor y músico de Presuntos Implicados) y Mala Manía
(2003), álbum que fue grabado pero no llegó a ser lanzado, bajo la producción de
Ramón Arias y Hal S. Batt (productor de Julio Iglesias, entre otros).
El contacto con la estética pop influye tanto en su música grabada como en su
fachada personal. El cambio hace que el periodista Rafael Molina, en una materia para
la revista Pulse!Latino en junio de 2000, le da la etiqueta de “Tracy Chapman cubana”,
expresión que ha adaptado para “Tracy Chapman latina” en sus campañas
promocionales81. Su personaje musical empieza a volverse menos una cita del personaje

80
Niurka, a través del contacto de la disquera Warner, ha compartido escenario con Sole Giménez y el
grupo pop español Presuntos Implicados -en el Auditorio Nacional de la Ciudad de México en el año
2000. La actuación puede ser vista en el canal de la artista en Youtube
(www.youtube.com/user/niurkacurbelo).
81
Disponible en <youtu.be/8HHxSsbNo_I?t=28s>. Acceso en 01/10/2016.

117
trovador forjado en La Habana y más la cita de un cantautor (singer-songwritter) dentro
de un marco cosmopolita “latino”, aunque, tanto a través de un cambio de estilo en las
canciones, arreglos y temáticas (con predominancia de baladas románticas), como en la
fachada del personaje, que lleva pelo corto y pintado de rubio, trae tatuajes en los brazos
y un atuendo marcadamente “urbano”.

Figura 2: Carátula del álbum “Todo podría cambiar” (WEA, 2001), producido por Ignacio Mañó.

En 2003, al terminar su contrato con Warner, proyecta su carrera a partir de


Estados Unidos, afincándose en Miami, donde conforma un dúo femenino con la
también cubana Alma Rosa Castellanos: la primera formación del dúo Santamorena,
que transitará entre centros nocturnos de Miami y Nueva York en un primer momento y
después hará giras por algunos países de Europa. Para el público europeo, los personajes
musicales de Niurka Curbelo y Alma Rosa adoptarían la estrategia de explorar su
“cubanidad”, complaciendo el público que esperaba escuchar “world musi ”, además de
salseros y admiradores del fenómeno “Buena Vista Social Club”, proyecto encabezado
por Ry Cooder y popularizado por película documental homónima del director Wim
Wenders en 1999. En la participación de Santamorena en el festival Village Tropical, en
Ginebra, Suíza82, entre 2005 y 2007, las vemos hablando y cantando en español,
bailando y tocando, mientras actúan un repertorio que intercala canciones con tintes de
blues/funk/rock con guarachas y sones (incluida la popularísima “Guantanamera”).
Después del término del dúo con Alma Rosa en 2010, Niurka regresó a México y
en 2011 y armó nuevamente el dúo Santamorena con la roquera mexicana Ivette
Guadarrama, con quien lanzó el álbum “Abre la puerta” (independiente, 2011),

82
Disponible en <www.youtube.com/watch?v=D-QTLkH_DDQ >. Acceso en 1/10/2016.

118
producido por el cantautor baladista Edgar Oceransky, con quien realizó giras por
algunas ciudades de México. Fue entre 2011 y 2014 que realicé mi trabajo de campo
con Niurka que, afincada en la capital mexicana, se reinsertó durante este periodo en el
circuito mexicano de trova urbana y canción de autor, ahora definiéndose como popera
y enmarcada en la trova-pop, una de las etiquetas que los propios fans de ese mundo
musical utilizan para identificar los músicos que se distancian del personaje
trovadoresco más cronista (como el mexicano Fernando Delgadillo, por ejemplo).
Niurka e Ivette resumirían, en una entrevista a un programa de radio en línea en 2014,
con bastante precisión, los elementos más importantes de las performances de sus
personajes musicales, bien como sus estrategias de diferenciación e identidad:

NIURKA: Santamorena es un proyecto de dos chicas que tratan de una u


otra manera de dar una imagen de la mujer en la música y hemos
intentado de alguna otra forma utilizar diferentes tipos de elementos
musicales, el hecho de ser de diferentes lugares o países, nacionalidades. Nos
da esta forma de sonar de una manera completamente diferente.(…)
IVETTE: La propuesta musical yo creo que es una amalgama de muchas
experiencias y de muchas vivencias y de muchos géneros y de muchas
influencias musicales. Yo creo que este tema cubano con Niurka, con las
influencias que tiene de la música brasileña, con las influencias que tiene
de la música pop, (…)incluso con la música pop en España. Y yo que
vengo de una historia más bien roquerona, como británica, como
norteamericana, bueno, pues esa es la propuesta que queremos lanzar, lo
que somos en realidad. (…) Que no sea nada complicado, nada
contradictorio, ni nada que presta polémica. Más bien tratamos de
hablar de lo que sienten las mujeres actualmente pero con todo este ropaje
musical versátil que hay (Curbelo & Guadarrama, 2014, subrayado mío).

En un “breve espacio” con Santamorena

En mi primero concierto de Santamorena, tal vez lo más desconcertante para mí


no haya sido la utilización del refuerzo del binarismo “hombres” x “mujeres” como
estrategia de conducción del concierto, pero los constantes desplazamientos provocados
por Niurka en la definición de los roles masculinos y femeninos a través del discurso
hablado y también del uso de coreografías. En un lugar donde cantar y componer es un
lugar predominantemente ocupado por hombres cisgénero, me impresionó el dominio
del escenario y la manera como Niurka e Ivette dividían sus papeles al conducir la
situación del concierto. Y me impresionó más aún el dominio completo sobre los
hombres en la región frontal de la performance (en oposición a los bastidores de la
performance). La invitación intercalada de cantautores y poetas no dejaba dudas de

119
quienes comandaban aquél espacio y los personajes generalmente destinados a los
hombres. La afirmación e inversión de códigos coreográficos supuestamente
naturalizados también me pareció un punto saliente de las actividades del concierto.
Si el lector aún me sigue hasta acá, considere que llego al concierto intentando
enmarcarlo del punto de vista académico (“observación participante”), pero es
imposible escapar de los marcos predefinidos, aún más actuando una identidad
masculina (perceptible por como uso mi fachada personal), y por más que uno no se
identifique con los marcos que estaban siendo delimitados por las cantautoras y
públicos, estos inmediatamente son aplicados por los participantes del evento. Y aunque
intentara esconderme detrás de mi cámara de video y de la grabadora, Niurka controlaba
a todos los participantes en su mira, y llamaba la atención de los que no estaban
participando activamente.

Figura 3: Secuencia de actividades en el palco escénico (a partir de la izquierda): Niurka e Ivette; Niurka
solo; Niurka y un poeta; cantautor invitado; Niurka, Ivette, cantautores invitados y público masculino.

Mientras actuaban, observaba las estrategias de diferenciación de las fachadas


personales: el personaje de Niurka, con su guitarra de nylon, su baile, la negritud, los
modales coquetos y el uso constante de “en mi tierra es así” imprimía para mí una
estrategia de evidenciar un aspecto foráneo, internacional, de su personaje, mientras
contrastaba con la actuación del personaje roquero de Ivette, casi siempre con modales
retraídos aunque reaccionando abruptamente en sus solos de guitarra eléctrica. Los
duetos de voces afinados y el tránsito estilístico diverso de las canciones entre balada
romántica, blues, rock, funk, bossa nova, cumbia y son cubano parecían ser parte de sus
estrategias de diversificación para agradar a griegos y troyanos. En la medida en que la
noche avanzaba, la actividad y el clima se intensificaban, mi “observación participante”
se volvía una “participación observante”, tal era la fuerza emanada por las dos
cantautoras en el escenario que, en algún punto de la noche se transformó en un ritual
colectivo en que el público participó activamente, bailando, actuando coreografías,

120
cantando coros y compartiendo el espacio escénico propio de los músicos, en un ritual
que mezclaba performance participativa con presentacional. No solo el evento fue en
parte distinto de los rituales performáticos con los que empezaba a acostumbrarme, sino
también porque desdibujaban por un lado y reforzaban por otro ciertos marcos
identitarios del mundo de la trova, incluidos marcos propiamente musicales, marcos de
identidades de género/sexo, marcos de pertenencia regional/nacional/cosmopolita y
étnica, lo que solo pude comprender después de mucho tiempo, después de un largo
camino de reflexión.

Quédate con nuestras voces

Los personajes musicales puede ser performados en distintas ocasiones y


mediado a través de los más variados soportes de información y tipos de texto, entre los
cuales, el relato etnográfico, que le rinde a las performances bastidores y escenarios
secundarios o mismo terciarios. Por otro lado, la metaperformance se completa
solamente en la recepción del relato, cuando un interlocutor reinterpreta una vez más los
argumentos del texto y los materiales imagéticos y sonoros que lo ilustran. Y si el
escenario frontal se encuentra en el propio acto de lectura, escucha y visualización del
relato, no importa si el medio son las páginas de un libro, la pantalla de una
computadora o el medio que esté por inventarse. Solamente ahí es cuando la
performance mediada sobre los personajes musicalesse materializa: cuando, en el palco
escénico del relato etnográfico, el etnomusicólogo ou etnógrafo consigue generar una
impresión doble para su audiencia, preferencialmente enriqueciendo las posibilidades
interpretativas de las performances que analiza y colocando en el horizonte nuevas
interrogantes sobre las experiencias descritas e interpretadas.

Referencias
AUSLANDER, Philip. "Musical personae". En: The Drama Review, n.50, 2006, pp.
100–119,

BUTLER, Judith. Excitable speech: a politics of the performative. Routledge: New


York, 1997.

COOK, Nicholas. "Beyond reproduction: Semiotic perspectives on musical


performance". En: Muzikologija, 2014, pp.15–30.

121
CURBELO B., Niurka; GUADARRAMA, Ivette. Aquí Entre Nos. Radio en línea.
Entrevista concedida a Mariana González y Teresita de los Ángeles. Disponible en
<www.spreaker.com/user/voicealive/aqui-entre-nos-capitulo-03>. Acceso en
15/07/2014.
DERRIDA, Jacques. "Firma, Acontecimiento, Contexto". En: Márgenes de la
filosofía, Madrid, Cátedra, 1971, pp. 347-372.
GOFFMAN, Erwing, 1971. La presentación de la persona en la vida cotidiana.
Amorrortu: Buenos Aires, 1971.
SALOMÓN, Sabrina. "La traducción como performance: lenguajes, creatividad y
construcción". En: RECIAL, n.5-6, 2014. Disponible en
TURINO, Thomas. Music as social life: the politics of participation. University of
Chicago Press: Chicago, 2008.

Discografía

CURBELO B., Niurka. Quiero Vivir (CD audio). Warner Music México: México D.F.,
2000.
CURBELO B., Niurka. Todo podría cambiar (CD audio). México D.F.: Warner Music
México: México D.F., 2001.
CURBELO B., Niurka; GUADARRAMA, Ivette. Santamorena: Abre la puerta.
Independiente: México D.F., 2001

122
Sobre vikings, donzelas, bardos e gaiteiros: alguns apontamentos sobre as relações
entre festivais "medievais" e música "celta" no Brasil83

Caetano Maschio Santos84

Resumo

Este artigo tem o objetivo geral de, através da observação etnográfica, averiguar as relações entre a
globalização da música tradicional irlandesa, sua consequente transformação em música "celta" como
commodity na economia cultural global e a entrada da mesma no contexto brasileiro, focando em sua
presença nos eventos comumente classificados como festivais "medievais". Baseado em trabalho de
campo realizado no RS, RJ e PR, e em netnografia através de rede social, busco explorar de que forma
esses eventos que encenam uma concepção eclética de medievalismo e misticismo pagão constituem um
contexto de atuação frequente para músicos brasileiros especializados em música "celta".

Palavras-chave: música celta; festivais medievais; globalização.

Nos últimos quinze anos um significativo número de pesquisadores


(principalmente anglófonos) tem escrito sobre o fenômeno da celtic music. Episódio de
relevante impacto na indústria fonográfica a partir do final do século XX, sua existência
como categoria musical global é considerada amplamente evidente (REISS, 2003, p.
145-146) e sua difusão mostra sinais de crescimento ao longo de uma complexa
(conquanto breve) trajetória. Seu surgimento pode ser relacionado a dois processos não
inteiramente distintos: a emergência ou ressurgência de movimentos culturais
neocélticos (resgatando ideais do romantismo oitocentista ancorado em premissas de
parentesco linguístico) (O'FLYNN, 2014, p. 239) e a globalização da música tradicional
irlandesa (impulsionada pelo sucesso da economia do país na transição do milênio e
pelo mercado da world music).

Minha trajetória profissional como músico está consideravelmente ligada à


entrada da música "celta"85 no contexto brasileiro. Através de pesquisa autônoma e
formação autodidata, no ano de 2010 formei um conjunto musical dedicado à prática de

83
Este texto trata-se de recorte temático específico a partir da pesquisa monográfica em andamento para
obtenção do grau de Bacharel em Música Popular da UFRGS e com previsão de conclusão em dezembro
de 2016.
84
Aluno do Programa de Pós-Graduação em Música da UFRGS - Mestrando; área:
Etnomusicologia/Musicologia.
85
A partir de agora abandonarei as aspas, que buscavam evidenciar a dimensão construída do termo.

123
música tradicional irlandesa ("Irish Fellas") que tem desenvolvido atividade
profissional regularmente desde então. Esse envolvimento possibilitou o encontro
(virtual e real) com um cenário nacional de aficionados e despertou curiosidade para
estudar o fenômeno, igualmente um fruto de minha formação prévia como historiador e
do ethos desconstrucionista de tal métier.

Nos últimos anos, uma das atividades profissionais desempenhadas pelo


conjunto em que atuo tem sido o de executar música tradicional irlandesa (repertório
majoritariamente formado por peças de autoria anônima a partir do séc. XVIII, mas em
constante expansão/renovação) em eventos normalmente caracterizados como festivais
"medievais". Da mesma forma, minha pesquisa etnográfica entre as pessoas envolvidas
com música celta no Brasil tem apontado a frequência crescente desses eventos, como
contexto de atuação profissional, de participação voluntária ou mesmo de atuação como
produtores culturais. Nesse texto procurarei tecer comentários iniciais sobre esse
contexto, partindo da observação etnográfica realizada diretamente em dois eventos
("Feira medieval de Porto Alegre" e "III Encontro Folk & Metal - PR"), das impressões
como músico participante em três edições do festival "Epic!", de entrevistas e conversas
informais realizadas com músicos envolvidos e de netnografia através de redes sociais e
sítios de conteúdo digital para sugerir relações com a discussão sobre a globalização da
celtic music e sua materialização como uma paisagem imaginária (REISS, 2003, p. 163)
que encena e negocia concepções sobre Idade Média, paganismo, misticismo, folk,
autenticidade e ancestralidade.

Celtic music, turismo e comunidades virtuais: a construção da celticidade

A música celta constitui um nicho popular dentro do mercado da world music


(SYMON, 2002, p. 192). Formada com base nas músicas tradicionais e/ou folclóricas
da Irlanda, Escócia, País de Gales, Bretanha e Galícia (alguns dos países e regiões
modernamente designados como "nações celtas"), é caracterizada como uma categoria
musical híbrida, permeável e comodificada (Idem), mas dentre as fontes que a compõem
o peso maior parece estar na contribuição da música tradicional irlandesa (SYMON,
2002, p. 196; KNEAFSEY, 2002, p. 133; MCCOY, 2014, p. 184). Entretanto, o

124
etnomusicólogo Scott Reiss, sugerindo uma relação quase contraditória existente entre a
música celta e a música tradicional irlandesa, argumenta que a música celta

existe em um lugar inteiramente diferente; não em uma comunidade social, mas


totalmente no domínio do som e da imagem. A música celta não é compartilhada,
mas intercambiada. Seu espaço não é pessoal e acústico, mas público e mediado. A
música celta só existe após sua produção e divulgação; não tem existência fora de
sua forma comodificada (grifo meu). (...) A comunidade em que a música celta
reside é a comunidade virtual. (REISS, 2003, p. 158-159)

É possível afirmar, portanto, que embora amplamente tributária da denominada


música tradicional irlandesa, a música celta nasce desligada de um contexto territorial
específico, e se afirma como categoria musical globalizada, mediatizada e
comodificada. Essa leitura está de acordo com a análise de Moya Kneafsey da
construção de uma "celticidade" nas referências imagéticas do turismo na Irlanda e na
Bretanha. Segundo Kneafsey, a comodificação de imagens e narrativas celtas realizadas
pelo turismo oficial acaba por disseminar essa produção da celticidade, cada vez mais
geograficamente difusa (KNEAFSEY, 2002, p.123). Interessa-me para a análise em
questão os ingredientes utilizados na formação de tal celticidade mediatizada pela
indústria do turismo (e aproveitados pela indústria fonográfica), em que alguns traços
constitutivos são continuamente reforçados:

Mágica, mistério, música e risadas: esses são alguns dos ingredientes


essenciais de uma viagem à Irlanda de acordo com a literatura de turismo do
Bord Fáilte em 1999. Esses ingredientes poderiam também ser interpretados
como parte de uma experiência essencialmente "Céltica" dentro do contexto
da percepção popular que tende a ligar ideias sobre algo Celta a fatos
espirituais, antigos, "alternativos" e naturais. (KNEAFSEY, 2002, p. 123)

Esse repertório de signos e símbolos se encontra atualmente disperso em uma


pluralidade de sítios reais e virtuais, como páginas na web que promovem diversos tipos
de associações, sociedades, atividades, troca de informações e compartilhamento de
mídias ao redor da ideia de identidade celta e de religiosidades pagãs. Em estudo sobre a
influência do movimento New Age em comunidades pagãs na internet na disseminação
da Celtic music, McCoy identifica o que chama de "ciber-diáspora" celta, uma
comunidade virtual onde temas como druidismo, rituais Wicca, bruxaria celta e
caminhos bárdicos são o ponto comum de interesse e propicia sociabilidade virtual e

125
real, algo que pode ser caracterizado como o "fenômeno de pessoas que se consideram
Celtas em espírito" (BOWMAN apud MCCOY, 2014, p. 183-184), independentemente
de procedência. Adensando a trama, o etnomusicólogo irlandês John O'Flynn chama
atenção para a necessidade de perceber os diversos usos do vocábulo celta junto à
distintas manifestações musicais, derivadas em maior ou menor grau da globalização e
hibridização da música tradicional irlandesa (e/ou da música galega, bretã, etc.) com
músicas populares ocidentais como o rock e o pop, e de simultaneamente avançar a
discussão para incluir a disseminação global desse movimento neo-céltico no espaço
real, virtual e imaginário (2014, p. 239):

No caso da música tradicional Irlandesa e suas derivações contemporâneas,


podemos pensar primeiramente em termos da Irlanda em si, depois imaginar
uma "Conexão Celta" mais ampla (...), extendê-la para diásporas irlandesas e
celtas maiores ao redor do mundo e, em última instância, considerar todos
indivíduos que compartilham uma "intercultura de afinidade" com essa
música, quer sejam produtores, mediadores culturais ou consumidores.

Assim, busco evidenciar a convivência e permeabilidade entre diversos


conceitos, ideias e símbolos presentes na elaboração de uma "celticidade" oficial e que
perpassa as comunidades virtuais da ciber-diáspora celta (MCCOY, 2014, p. 176). Esse
repertório eclético de conceitos, amarrados pela agência de atores sociais engajados,
manifesta-se também em uma confusa elisão de práticas e discursos que são
performatizados nos festivais medievais através de signos sonoros e visuais como as
gaitas de foles, aproximando imaginário medieval, espiritualidade pagã e música celta.

Festivais medievais e música celta no Brasil: observando três eventos,


conversando com três gaiteiros

Para poder sugerir ligações entre esse contexto difundido mundialmente e o


contexto brasileiro, me baseio na observação-participante (presencial e virtual) de três
eventos e em entrevistas e conversas informais com três gaiteiros de foles participantes
da cena de música celta no Brasil. Os eventos em questão são: a "Feira Medieval de
Porto Alegre" (organizada pelo conjunto Bando Celta, da mesma cidade, doravante

126
FMPOA), o "III Encontro Folk & Metal - PR" (em Curitiba, doravante EFM), o
"Festival Epic!" (em Charqueadas - RS, doravante FE) onde por três anos participei
como músico contratado. Os músicos colaboradores, todos com experiência de
participação e/ou organização em tais festas, são Tales Melati (Bando Celta/POA), Luis
Felipe de la Cerda Fitzpatrick (Gaiteiros de Lume/Curitiba) e Alex Navar (Navar &
Friends/Rio de Janeiro). Passo agora a apontar semelhanças estruturais entre os eventos,
que possibilitam evidenciar uma estrutura comum à tais festas medievais.

Inicialmente, é claramente perceptível que tais eventos parecem modelar-se a


partir da experiência mais antiga das festas medievais de verão na Europa, parte integral
de um neomedievalismo característico do final do século XX. Essa percepção foi
posteriormente confirmada no caso da FMPOA em conversa com Tales, que me
comunicou a inspiração inicial do evento no Mercado Medieval de Óbidos, pequena
cidade murada portuguesa que realiza evento do tipo desde 2002. Sugiro que os três
eventos procuram criar uma atmosfera não urbana, dando importância a uma
ambientação próxima do "natural" ou do "histórico", procurando afastar-se
espacialmente das cidades e criando assim uma fuga que é também temporal. O FE, em
sua terceira edição no ano de 2016, elege como sede o Parque Municipal de Eventos de
Charqueadas, local fora da cidade, aberto e arborizado que possui uma estrutura
arquitetônica de madeira ao estilo "CTG", embora nesse caso o cenário remeta a um
passado recriado e mais distante temporal e geograficamente. O EFM em 2016 também
escolheu para sua locação um ambiente "natural" na cidade de Curitiba, o Parque São
Lourenço, e deu-se em meio à zona muito arborizada próxima a um lago, em que cada
árvore servia de ponto para as tendas de produtos que participavam do evento. A
FMPOA, ao contrário dos precedentes, foi realizada dentro da cidade, em local
identificado com programações culturais "alternativas", o complexo arquitetônico Vila
Flores, no bairro Floresta. Todavia, em conversa com Tales, informei-me do desejo do
Bando Celta de transferir edições futuras do evento para uma locação mais "natural" nos
arredores de POA, e da dificuldade em achar esse local. Alex Navar relatou ter
participado de eventos realizados em centros de eventos em forma de castelos
medievais, como o "Mundo Medieval", realizado em julho na cidade de Mauá (SP),
assim como comentou sobre a agência da banda carioca Tailten, que participa da
organização do evento "Oenach na Tailtiu". Realizado em um camping na cidade de
Magé (RJ), o evento é descrito em resenha pelo site brasileiro Cena Medieval: "trata-se

127
de uma festa temática celta com o intuito de 'reviver antigos costumes e as famosas
feiras de Lughnasah na Irlanda', e é o evento mais imersivo que temos hoje na cena"86.

O público de tais eventos e os códigos de vestimenta apresentam poucas


variações entre os três casos examinados. No caso do FE, um evento fechado com
cobrança de ingresso, há a norma de utilizar trajes compatíveis (medievais, vikings,
celtas) e quase todas as pessoas presentes no evento estão trajadas (segundo Alex Navar,
em depoimento sobre experiência própria, o termo traje é preferido à fantasia,
considerado pejorativo) de guerreiros, clérigos, vikings, donzelas, etc. No EFM, em um
local público sem cobrança de ingresso, pessoas caracterizadas se misturavam aos
frequentadores do parque, que usavam trajes "normais". Na FMPOA, que reuniu em sua
primeira edição (2016) milhares de pessoas e cobrava entrada, o público continha uma
minoria de fantasiados entre maioria de pessoas em vestes cotidianas. De forma geral,
havia uma predominância de público jovem (entre 18 e 35 anos), caucasiano e grosso
modo aparentemente de classe média.

Em todos os eventos observados, a presença de estandes de diversos tipos de


produtos e uma diversidade de atividades como oficinas, atividades, palestras e shows
era regra e atração fundamental do evento para os participantes. O simples registro de
alguns produtos e serviços oferecidos aponta as associações do imaginário
compartilhado e performatizado pelos participantes e organizadores destes eventos,
perpassando tópicos como Idade Média, vikings, música celta e folk, danças circulares,
Wicca, paganismo, misticismo e conhecimentos esotéricos: produtores de hidromel,
cutelaria, cerveja artesanal, falcoaria, arqueirismo, swordplay, dançarinas tribais, dança
celta, tarô celta, leitura de runas e apresentações musicais de grupos variados, cujas
descrições, repertórios e performances se relacionam de diversas formas à difusão da
ideia de música celta, assunto ao qual me dirijo agora.

Pela participação como pesquisador e músico nesses eventos, pude observar a


flagrante importância da música celta para recriar uma atmosfera percebida pelos
participantes como de autenticidade nessa experiência de alteridade histórica, de
reatuação de uma determinada visão de Idade Média. Todos os eventos contavam com
diversos momentos de performance musical, contando entre três e seis grupos diferentes
(e também um ou dois grupos de dança celta, circular ou medieval). O FE realiza desde

86
Disponível em: http://www.cenamedieval.com.br/2016/07/resenha-da-oenach-na-tailtiu-2016.html
(Acesso: 12/10/2016)

128
sua primeira edição um "concurso de bardos", onde os participantes podem medir seu
desempenho musical e/ou poético entre si, atividade que ocasionou o surgimento do
conjunto MoonGuard em 2015, convertido em atração oficial do evento na edição de
2016. Outro exemplo aconteceu ao chegar no EFM com Luis Fitzpatrick, quando ele foi
imediatamente convidado a tocar suas gaitas de foles por um dos organizadores, que
alegou que faltava música para alegrar a atmosfera do evento.

Nesse sentido, a noção difusa de celticidade, e de centralidade da música


tradicional irlandesa na construção da mesma transparecem frequentemente. Muitas das
bandas carregam em seus nomes termos representativos da ideia difusa de celticidade,
ou mesmo consistem em palavras de línguas celtas ou gaélico irlandês (Taberna Folk,
Beoir, Bando Celta, 4-Leaf Clover, Gaiteiros de Lume, Taílten, Mandala Folk, Jornada
Ancestral). A presença de tunes (pequenas peças instrumentais ligadas à dança) e
canções da música tradicional irlandesa amplamente divulgadas através do cinema e de
expoentes do boom da celtic music também é uma constante no repertório. Peças como
"John Ryan's polka" e canções como "Whiskey in the jar" são constantes nas
performances (inclusive quando de minha participação), e são percebidas por músicos
com ethos mais "tradicional" como Alex Navar, como "exigências" do público ou do
evento, itens "boi de piranha" do repertório, como as chamou em conversa informal. Tal
noção denota a circulação de itens do repertório tradicional irlandês na forma
"comodificada" da música celta, cruzada com gêneros populares como o rock e o metal
(como o cover de "Whisky in the jar" pela banda Metallica), ou difundidas pelo cinema
(como a presença de "John Ryan's polka" no filme "Titanic").

Conclusão

A percepção disseminada no senso comum que associa celticidade à


espiritualidade, ancestralidade, magia, natureza, incentivada pela indústria do turismo
na Irlanda e outras regiões/nações "celtas" e representada no domínio da música pela
transformação do produto local irlandês (irish traditional music) em produto global
(celtic music) no contexto da world music e encontra-se amplamente difundida no
contexto brasileiro. Para além de celebrações como o St. Patrick's Day, os festivais
medievais constituem uma das principais arenas onde essa paisagem imaginária é

129
performatizada, negociada e vivida, e constituem um fenômeno em proliferação onde
diversos grupos de interesse mútuo e segmentos profissionais (artesãos, produtores de
bebidas, grupos de dança, conjuntos musicais) participam ativamente.

Para músicos da cena brasileira de música celta/irlandesa, esse contexto de


atuação tem grande relevância. Aqueles cuja identificação se aproxima mais ao ethos
"tradicional" apontam conscientemente a confusão do caldeirão de símbolos existentes
nos festivais medieval (vikings, celtas, medievais, pagãos, esotéricos), e uma visão
"simplista" de grande parte do público da música irlandesa, representada como música
celta, por vezes se sentindo pouco à vontade nesse ambiente, mas reconhecendo a
importância profissional de tais eventos para eles. Outros, representados, por exemplo
pelo Bando Celta e pela banda Tailten, participam ativamente desse contexto,
envolvendo-se na produção de eventos que buscam essa experiência de alteridade
histórica e cultural, e integram alguns desses elementos em sua performance, prática e
representação. Como resume Slobin:

os Celtas imaginários ocupam um território muito mais amplo na mente de


milhões de pessoas que apreciam e remodelam música que creem ser
proveniente de uma herança antiga. A "celticidade", com seu conteúdo e
formas de fazer musical em perpétua transformação, continua a prosperar e
evoluir por todo tipo de razões. (SLOBIN, 2011, p. 89)

Referências

KNEAFSEY, Moya. Tourism images and the construction of celticity in Ireland and
Brittany. In: David C. Harvey, Rhys Jones, Neil McInroy and Christine Milligan (eds),
Celtic Geographies: Old Cultures, New Times. Londres (RU), Routledge, 2002, (p. 123-
137)

MCCOY, Narelle. The rise of the Celtic-cyber diaspora: the influence of the "new age"
on internet pagan communities and the dissemination of "Celtic" music. In: WESTON,
Donna; BENNETT, Andy (eds.). Pop pagans: paganism and popular music. Londres
(RU), Routledge, 2014, (p. 176-188).

130
O'FLYNN, John. Kalfou Danjere? Interpreting Irish-Celtic music. In: FITZGERALD,
Mark; O'FLYNN, John (eds.). Music and Identity in Ireland and beyond. Surrey (RU),
Ashgate, 2014, (p. 233-257).

REISS, Scott. Tradition and imaginary: irish traditional music and the celtic
phenomenon. IN: STOKES, Martin; BOHLMAN, Philip (orgs.). Celtic modern: music
at the global fringe. Maryland (EUA), The Scarecrow Press, 2003, (p. 145-166)

SLOBIN, Mark. Folk music: a very short introduction. Nova Iorque, Oxford University
Press, 2011.

SYMON, Peter. From Blas to Bothy culture: the musical re-making of Celtic culture in
a Hebridean festival. In: David C. Harvey, Rhys Jones, Neil McInroy and Christine
Milligan (eds), Celtic Geographies: Old Cultures, New Times. Londres (RU),
Routledge, 2002, (p. 192-206).

131
Etnomusicologia aplicada e pesquisa-ação: Tocando para o Acervo Plauto Cruz,
Regional Plauto Cruz e Ação Musical87
Paulo F. Parada88
Resumo:
Esse texto apresenta um relato de experiência sobre o momento após publicação de um artigo
etnomusicológico, levantando a pergunta: que fazer para estabelecer perspectivas e relações entre uma
abordagem prática e teórico-metodológica da etnomusicologia aplicada e pesquisa-ação? Após a
publicação do artigo O Universo Sonoro de Plauto Cruz, considerando minha prática musical e papel de
educador em um projeto social conhecido como Ação Musical, acredito que essa interação entre contextos
diferentes resultou em relações pedagógicas. Tenho como objetivo geral apresentar possibilidades de
ações e levantar perguntas sobre a experiência vivida após a publicação da pesquisa: é possível aproximar
um projeto social e os saberes proporcionados por uma pesquisa etnomusicológica, no contexto da música
urbana de Porto Alegre? Considerando que sim, divulgo alguns resultados dessa experiência com um
olhar crítico, atento para o papel político na atuação do pesquisador/educador/músico em ações sociais.

Palavras-chave: Etnomusicologia aplicada; Pesquisa-ação; Música e projetos sociais.

Introdução

De 2014 até 2015, realizei a pesquisa O Universo Sonoro de Plauto Cruz89,


reconstituição da trajetória e obra compositiva de Plauto sob orientação de Reginaldo
Gil Braga e, resultando na publicação de um artigo em coautoria com o professor
(PARADA; BRAGA, 2016).
Paralelamente à construção dessa pesquisa, idealizei o projeto social de
educação popular chamado Ação Musical, onde procurei colocar em ação algumas
ideias de Paulo Freire, principalmente suas reflexões sobre educação dialógica como
prática de liberdade (FREIRE, 2014, p. 107) e a práxis de uma pedagogia da autonomia
(FREIRE, 1996).

87
Este texto trata-se de reflexões posteriores à conclusão da pesquisa que deu luz ao artigo científico
financiado pela Secretaria da Cultura da Prefeitura de Porto Alegre, através do edital FUMPROARTE
Décio Freitas e publicado como PARADA, Paulo; BRAGA, Reginaldo Gil. O universo sonoro de Plauto
Cruz: obra e trajetória artística em diálogo com a cidade de Porto Alegre. Revista Vortex, Curitiba, v.4,
n.1, 2016, 1-20.
88
Paulo F. Parada gravou seu primeiro disco de canções brasileiras em 2007, Minhas Águas com Plauto
Cruz. Em 2010 ingressa na graduação em música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(bacharelado em composição) e em 2014 inicia seu trabalho de pesquisador investigando a obra e a
trajetória artística de Plauto Cruz com orientação de Reginaldo Gil Braga. Atualmente, é mestrando em
etnomusicologia pela UFRGS e realiza pesquisa sobre memória e esquecimento social em Porto Alegre,
uma etnografia sobre a “velha guarda” musical da cidade.
89
Nascido na cidade de São Jerônimo, Rio Grande do Sul em 1929, Plauto Cruz é um flautista e
compositor que atuou, principalmente, na segunda metade do século XX em Porto Alegre, gravando
diversos fonogramas e esteve presente em múltiplos meios artísticos. Compôs aproximadamente 81
músicas, muitas delas em manuscritos recuperadas através de nossa pesquisa em colaboração com sua
família. Atualmente, possui idade avançada e, devido às doenças de sua condição, está resguardado em
sua residência sob os cuidados de seus filhos.

132
Quando ocorreu a publicação da pesquisa de Plauto Cruz e, considerando que
escrevi um relato de experiência sobre etnomusicologia e processos educativos no
projeto Ação Musical90 (PARADA, 2014), me fiz as seguintes perguntas, uma vez que
no momento atual desenvolvo minha pesquisa de mestrado e pretendo etnografar outros
sujeitos que são músicos na cidade de Porto Alegre e, assim como Plauto Cruz, também
possuem idade avançada: que fazer com as experiências e relatos que ainda não
publiquei? Essas pesquisas já estavam encerradas? Acreditando que as pesquisas não
estavam encerradas, pois eu também não quero esgotar minhas relações e estudos com
esses sujeitos, como poderia relacionar essa rede de campos e mundos musicais
(FINNEGAN, 2002) tão diferentes e, ao mesmo tempo, próximos?
Através desta comunicação, reflito sobre meu papel como pesquisador, educador
e músico: tomando como pressuposto nossa disciplina/campo de estudos
(etnomusicologia), que contribuições um etnomusicólogo pode proporcionar aos
sujeitos da pesquisa por meio de ações sociais? Enquanto etnomusicólogo, como posso
relacionar essas ações sociais com minha prática de pesquisador? O que Plauto Cruz
tem a ver com minha prática musical e com o projeto social em que sou educador?
Procurando costurar essa rede complexa com que se relacionam práticas e pessoas,
tenho como objetivo geral apresentar algumas perspectivas que apontam caminhos e
possibilidades para as práticas da etnomusicologia aplicada e pesquisa-ação,
compreensões que poderão permear as relações pedagógicas entre essas pesquisas e
projetos/ações sociais, servindo como contribuição prática e teórico-metodológica para
futuras pesquisas que queiram tratar do assunto.

Após a publicação da pesquisa: que fazer? Tocando para o acervo Plauto


Cruz

Após a publicação do artigo O Universo Sonoro de Plauto Cruz, me senti


motivado para tocar (no violão) as composições de Plauto Cruz que, se considerarmos

90
O projeto social Ação Musical começou em Porto Alegre no mês de agosto de 2014. Desde então, já
ministramos aulas para mais de 1500 alunos de diversas idades (crianças, adolescentes, adultos e idosos)
em espaços diversos: escolas públicas, praças, centros culturais, bares, etc. O projeto começou no espaço
cultural chamado Comitê Latino Americano e, até o presente momento, as aulas continuam nesse espaço
da zona central de Porto Alegre nas tardes de sábado.

133
as músicas catalogadas pela sociedade arrecadadora de direitos do flautista 91, depois de
nossa pesquisa, são 81 peças. Também fiquei curioso para ouvir a sonoridade de suas
músicas que estavam inéditas e que achamos em seus manuscritos cedidos pelos
familiares de Plauto: fui motivado para iniciar uma espécie de difusão de sua obra e
divulgação dos resultados da pesquisa.
Para isso, encontrei alguns desafios: os manuscritos de Plauto recuperados
através da pesquisa, em sua maioria, não tinham a harmonia escrita. Então, fui
procurar um grupo de músicos familiarizados com a linguagem do choro para que
pudéssemos tocar as músicas de Plauto. Foi um desafio, pois apesar dos artistas locais
considerarem Plauto um importante nome para a música local e para a flauta no choro
brasileiro, encaravam o convite como um trabalho profissional importante e desafiador
e que, por isso, deveria ser muito bem pago. De certa forma, acredito que esses
músicos tinham razão, porque o fazer musical se trata de seus trabalhos e é uma forma
de ganhar a vida e, em alguns casos, de sobreviver. Mas, também me encontrava em
um papel difícil: ao final da pesquisa apoiada pelo FUMPROARTE92, ganhei
incentivo para fazer a pesquisa e não para difundi-la através de performances musicais
ou publicações impressas. Assim, temia que esses resultados da pesquisa e as próprias
músicas inéditas de Plauto que foram recuperadas ficassem no anonimato. Então,
percebi a necessidade de recorrer às propostas colaborativas: os músicos que se
engajassem no projeto teriam que correr certo risco de não conseguir grande retorno
financeiro, pois não havia orçamento previsto. Assim, convidei os amigos e
companheiros de profissão Elias Barboza (bandolinista) e Thaís Nascimento
(violonista). Juntos, montamos um grupo com formação típica de um regional de
choro: Camila Kramer na flauta, Thayan “Vento Rítmico” no pandeiro, Ju Rosenthal
no cavaco, enquanto Elias harmonizava as músicas de Plauto e Thaís e eu tocávamos
os acompanhamentos no violão 6 cordas. Elias Barboza harmonizou as músicas de
Plauto e o professor Luiz Machado93 fez os “arranjos” para os dois violões nas
composições inéditas de Plauto.
O trabalho colaborativo consistiu em fazermos um show que tinha o título de
Tocando para o Acervo Plauto Cruz e que teve como principais propostas: 1) Iniciar a

91
Trata-se da SBACEM, Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música, fundada
em abril de 1946.
92
Fundo de Apoio Municipal de Apoio à Produção Artística e Cultural,
93
Luiz Machado é professor e músico que forma instrumentistas profissionais e amadores em Porto
Alegre, referenciado por ter ensinado jovens músicos virtuoses. Trabalha com choro desde 1981, nasceu
em Rio Grande e vive em Porto Alegre desde 1975.

134
arrecadação de fundos para começarmos a montagem de um acervo com as músicas e
documentos que recompunham a trajetória de Plauto. O objetivo não era somente
arrecadar verba, mas sim dialogar com o público e músicos interessados: como
poderíamos fazer esse acervo? Ele seria online no ciberespaço? Seria físico em algum
ponto cultural, bar, espaço público ou privado? Se sim, onde? Quem pagaria pela
manutenção do acervo? Uma série de shows poderia pagar os custos da manutenção?
Foram perguntas que, como veremos, não foram respondidas de forma satisfatória e,
tampouco, resolvidas (até o presente momento, o estabelecimento do acervo não foi
realizado). Não obstante, levantamos outras perspectivas que motivaram meios
alternativos de difusão da obra de Plauto. 2) Divulgar para a comunidade de Porto
Alegre as composições recuperadas de Plauto, bem como o artigo que escrevi em
coautoria com Reginaldo Gil Braga, no qual a obra de Plauto é discutida e, com ela,
parte da memória e histórias de outros sujeitos que fazem parte da vida musical de
Porto Alegre. 3) Iniciar a difusão das músicas inéditas de Plauto e da releitura de suas
obras, motivando que outros músicos também fizessem o mesmo. Por consequência,
essa ação poderia provocar uma melhor arrecadação dos direitos das músicas de
Plauto, tendo como beneficiários principalmente ele e seus familiares. Os músicos
ganhariam seus cachês de forma coerente com a venda de ingressos no local do show.
O show ocorreu numa terça-feira, dia 17 de novembro de 2015, no Centro
Cultural Lupicínio Rodrigues, Sala Álvaro Moreyra, Avenida Érico Veríssimo em Porto
Alegre às 20h. O show não teve lotação máxima de lugares como esperávamos e,
portanto, não tivemos o retorno financeiro que acreditamos que teríamos, somente
conseguimos pagar nossas despesas mínimas. No entanto, através desse fazer musical,
motivamos uma reaproximação de parte da comunidade musical de Porto Alegre com a
obra de Plauto Cruz: tocamos as músicas até então inéditas intituladas Choro prô João,
Para Sabrina, Minha São Jerônimo, Para João Vitor, São Lucas, Tema prô Altamiro,
Prô Nilton e as já gravadas ou tocadas pelo flautista para seu público: Engenho e Arte,
Nora, Choro Clássico e Força Atraente94. As músicas inéditas que tocamos foram

94
Algumas músicas foram gravadas durante um ensaio do grupo, dentre elas Choro prô João, Para João
Vitor, Para Sabrina e Tema prô Altamiro. Alguns erros de execução e gravação podem ser percebidos
durante a audição, porém temos como objetivo apresentar um pouco da sonoridade construída a partir dos
ensaios (momento em que estávamos processando e conhecendo as músicas). Para ilustrar as músicas do
ensaio, inseri as fotos feitas por Alexandre Alves do show que fizemos: é uma amostra do caráter
colaborativo de nossa parceria, uma vez que Alexandre é pai de um aluno do projeto Ação Musical e,
posteriormente, assumiu a coordenação do projeto na Vila Santa Isabel
em Viamão. O link para a playlist desse ensaio no youtube, pode ser assistido através de

135
arranjadas por Luiz Machado: aí podemos verificar outras perspectivas inesperadas na
pesquisa. Luiz Machado, por sua vez, tem diversos alunos e ministrou a Oficina de
Samba e Choro do Santander Cultural, atualmente coordenada pelo violonista Mathias
Pinto. Assim, algumas das músicas que foram arranjadas por Luiz Machado, hoje fazem
parte do repertório da Oficina de Samba e Choro do Santander Cultural e do repertório
da rede de alguns músicos da velha e da nova geração do choro em Porto Alegre.
Acredito que a difusão dessas músicas, que eu acreditava que se daria, principalmente,
por meios da performance e da divulgação da pesquisa no meio acadêmico e no cenário
musical porto-alegrense, aconteceu – pelo menos como posso verificar até o presente
momento – de forma mais intensa e eficaz por meio das relações pedagógicas, como
veremos no próximo tópico.

Relações pedagógicas entre pesquisa e projeto social: sendo músico,


pesquisador e educador

Aproveitando o questionamento que Reginaldo Gil Braga apontou em um texto


de sua autoria sobre “uma experiência de pesquisa e ação pedagógica participativa na
Oficina de Choro do Colégio de Aplicação da UFRGS” somos Pesquisadores
Educadores ou Educadores Pesquisadores (BRAGA, 2008)? E, ainda, dentro desse
questionamento, somos músicos? Pretendo não entrar em maiores detalhes sobre outras
experiências de performance que tive tocando as músicas de Plauto Cruz para difundir
os resultados da pesquisa e suas composições até então inéditas como, por exemplo,
quando formei o grupo Regional Plauto Cruz, com os músicos Maicon Ouriques no
pandeiro, João Pedro Pagliosa na flauta e Eduardo Rukat no cavaco e nos apresentamos
no Teatro Renascença95, Átrio do Santander Cultural96 e outros bares no primeiro
semestre de 2016. Talvez, seja mais interessante apresentar aqui a experiência que tive

https://www.youtube.com/watch?v=kMrtrNhlx20&index=1&list=PLqlTHD12ZydrzC0y04XhsWra7QPh68
HBl, acessado em 10-09-2016 às 09h07.
95
Diferente do show que fiz com o outro grupo (Tocando para o Acervo Plauto Cruz), nessas
apresentações em espaços de Porto Alegre, tocamos uma valsa inédita de Plauto, uma de suas primeiras
composições: Eva. O link para um trecho dessa música na apresentação do Teatro Renascença, pode ser
assistido através do link: https://www.youtube.com/watch?v=egxmAJ30Th0, acessado em 10-09-2016 às
08h20.
96
Aqui está o registro do programa de televisão Estação Cultura (em 08-06-2016) da emissora TVE, onde
o grupo foi convidado para divulgar uma apresentação e as músicas de Plauto. Esse programa pode ser
assistido na íntegra através do link https://www.youtube.com/watch?v=iuRg4sIZcTk, acessado em 09-09-
2016 às 16h10.

136
ao conhecer Fernanda Rosmaniño97, que cantou uma canção de Plauto Cruz chamada
Força Atraente98, no Teatro Renascença, acompanhada por esse grupo que citei.
Fiquei instigado por orientar Fernanda, pois percebi seu desejo de construir uma
carreira como cantora e educadora musical em Porto Alegre. Acreditando no potencial
de Fernanda para desenvolver seus saberes (e quereres) musicais, tive a ideia de orientá-
la em algumas aulas para que ela pudesse ter uma preparação para a prova específica em
música na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em permuta faríamos alguns
trabalhos colaborativos juntos, ela seria uma das educadoras do projeto social Ação
Musical, pois estava desenvolvendo sua formação musical já há alguns anos em outros
cursos de formação, como a Oficina de Samba e Choro do Santander Cultural e Oficina
de Teoria e Percepção da UFRGS. Assim, convidei-a para cantar uma canção de Plauto
Cruz em uma apresentação no Teatro Renascença e, relacionando sua performance às
possíveis relações pedagógicas que viriam a ser desenvolvidas, entramos em acordo
(Fernanda e eu) para que ela ministrasse aulas no Ação Musical, ensinando também para
os alunos a música de Plauto Cruz (Força Atraente), cantada por ela.
Através dessa experiência, podemos refletir sobre algumas perspectivas da
pesquisa-ação e etnomusicologia aplicada. Sobre pesquisa-ação, Michel Thiollent
afirma que (ARAÚJO; CAMBRIA; PAZ, 2008, p. 192):

O dispositivo de pesquisa-ação propriamente dito requer uma inserção e


cooperação mais profunda e duradoura. Trata-se de construir grupos mistos
(pesquisadores/músicos e outros atores) para um trabalho investigativo e
propositivo conjunto. A formação de um dispositivo de pesquisa-ação junto a
comunidade e um grupo de músicos expressivos dessa comunidade é um
processo lento que supõe muita interação, participação e profundo
entendimento entre as partes. Concretiza-se no trabalho de um grupo
conjunto, com interação de parceiros externos (membros da comunidade,
divulgadores, etc.).

Podemos inferir que as atividades de pesquisa, bem como as práticas musicais e


relações pedagógicas aqui descritas, contemplam os pressupostos da pesquisa-ação:
participaram da contribuição com a pesquisa, de forma densa, os músicos da
comunidade (os dois grupos com que toquei, dentre outros que tocaram as músicas do
Plauto que foram difundidas após a pesquisa), professores do projeto social Ação
Musical (Fernanda Rosmaniño, Thaís Nascimento, Maicon Paquetá e eu), Oficina de

97
Fernanda Rodrigues da Costa, nasceu em Porto Alegre em 19 de setembro de 1995, atualmente tem 21
anos.
98
O link para a apresentação de Força Atraente (autoria de Plauto Cruz), por Fernanda Rosmaniño, pode
ser assistido através do link https://www.youtube.com/watch?v=jJoxIIfewD4, acessado em 10-09-2016.

137
Samba e Choro do Santander Cultural (Luiz Machado, Mathias Pinto e seus alunos), a
comunidade porto-alegrense composta por ouvintes locais e agentes dos meios de
comunicação de massa (por exemplo, a apresentação que fizemos no programa de
televisão da TVE em 08 de junho de 2016, dentre outros).
E qual meu papel, enquanto etnomusicólogo, procurando aplicar esses saberes,
como pesquisador/educador, em um projeto social? Ao etnografar os participantes do
projeto Ação Musical, perguntei sobre a música de Plauto Cruz e a importância de
conhecerem esse saber e universo sonoro. Para relatar melhor essa experiência,
transcrevo um depoimento de Fernanda Rosmaniño sobre ensinar e aprender a música
do Plauto no contexto de projeto social:

Foi diferente do que eu tava acostumada... porque eu acho que pra eles
também foi diferente, porque eles estavam acostumados com músicas bem
mais populares. Enfim... estavam fazendo Que país é este? Do Legião
Urbana, Asa Branca do Luiz Gonzaga, são músicas mais populares, né?
Então acho que foi desafiador também pra eles: em aprender uma música que
eles não conheciam... (comunicação pessoal feita em 08-09-2016, no Instituto
de Artes da UFRGS)

Nas aulas do projeto, as músicas trabalhadas individualmente são indicadas


espontaneamente pelos alunos. As músicas coletivas são sugeridas pelos professores ou
alunos, como foi o caso da música de Plauto. Através de uma dinâmica feita por meio
do psicodrama (conhecido também como teatro terapêutico), apresentamos
coletivamente – através da corporalidade e vivência dos diversos papeis presentes no
universo sonoro de Plauto – a história de vida de Plauto Cruz, desde sua infância até os
dias de hoje. Sobre essa dinâmica, Fernanda afirma que:

Foi fundamental, porque no momento que eles [alunos do projeto]


conheceram um pouco a história do autor e, como era a relação dele com a
música e viveram aquilo, dentro da forma que foi proposto no psicodrama,
foi o que fez com que eles se interessassem. Entraram dentro do universo
dessa música e cantaram com muito mais propriedade do que se a gente só
tivesse largado a partitura na frente deles e [dito] vamos tocar essa música.
(comunicação pessoal feita em 08-09-2016, no Instituto de Artes da UFRGS)

138
Aula do projeto Ação Musical em 2016, créditos da foto: Alexandre Alves

Dialogando com um aluno do projeto, Miguel Rodrigues Alves de 9 anos de


idade, que viveu Plauto Cruz na infância durante o psicodrama feito na aula do Ação
Musical, perguntei o que ele aprendeu sobre Plauto: “eu aprendi que ele é famoso, mas
eu não conhecia ele...”. É possível refletir que, através de uma etnomusicologia aplicada
pode-se engendrar desconstruções de certos estereótipos e, provocar indagações nos
alunos e professores: o que é ser famoso? Por que no senso comum, para ser um músico
bem sucedido é necessário ser famoso? O pai de Miguel, Alexandre Alves, que
cooperou com a pesquisa e as apresentações, filmando registros audiovisuais de Plauto
Cruz e fotografando o show Tocando para o Acervo Plauto Cruz, dentre outras
colaborações necessárias, afirma que:

Eu acho importante essa coisa da valorização dos artistas gaúchos, porque a


gente tem aquela visão que a televisão nos passa que o cenário musical é Rio,
São Paulo, Bahia... mas aqui a gente não tem muita notícia e as pessoas não
conhecem os artistas. Eu acho que foi importante, dentro de um projeto social
voltado pra música, incentivar a conhecerem os artistas locais (comunicação
pessoal em 03-09-2016).

Um dos professores do Ação Musical, Maicon Paquetá afirma que o aprendizado


sobre Plauto Cruz em um projeto social “trouxe um lado diferente do Plauto. Não só a
parte musical do Plauto, mas a parte de vida: a estrada dele, a história de vida dele [...]”.
Ao final do primeiro semestre de 2016, os alunos do projeto apresentaram a música

139
Força Atraente do flautista, dentre outras canções de diversos compositores, em um
sarau aberto99.

Considerações finais

Acredito que esse movimento reflexivo através de ações sociais cooperativas, da


própria pesquisa-ação e etnomusicologia aplicada, possibilitam a aproximação, através
das relações pedagógicas, de pessoas e saberes que, até então, permaneciam
desconhecidos por uma espécie de esquecimento social/musical.
Para Vicenzo Cambria (2004, p. 2): “dentro da etnomusicologia, o trabalho
‘aplicado’ é ainda visto como pertencente a uma área secundária, geralmente extra-
acadêmica”. Seria papel do pesquisador e de seus orientadores (corpo docente e discente
das instituições) transformar essa condição? Atualmente desenvolvo pesquisa de
mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul sobre músicos profissionais
atuantes na segunda metade do século XX em Porto Alegre e que frequentam o
Sindicato dos Músicos do estado do Rio Grande do Sul e Casa do Artista Rio-
Grandense. Acredito que meu trabalho aplicado em um projeto social contempla minha
pesquisa etnomusicológica: essa construção dialógica que permeia a instituição de pós-
graduação do qual faço parte como estudante e as pessoas envolvidas na pesquisa.
Pretendo continuar ensinando e aprendendo as composições desses sujeitos de
idade avançada com quem estou convivendo. Para Eclea Bosi, em nossa sociedade de
competição e do lucro, “a mulher, o negro, combatem pelos seus direitos, mas o velho
não tem armas. Nós é que temos de lutar por ele” (1994, p. 81). No momento acredito
que Porto Alegre sofre uma séria repressão do poder público em relação à música ao
vivo nos bares, nas ruas, casas noturnas e outros ambientes: assim, essas formas de
resistências se fazem mais que necessárias em múltiplos espaços. É urgente a
consideração do caráter político das pesquisas, em direção à memória, fazendo emergir
esquecimentos sociais/musicais, possibilitando uma melhor visibilidade e novos olhares
para o trabalho de artistas que estão afastados – muitas vezes por impossibilidade e

99
Trecho da apresentação de Força Atraente de Plauto Cruz no sarau do projeto social de educação
popular Ação Musical, em julho de 2016. Audiovisual através do link:
https://www.youtube.com/watch?v=_Tlt9zRdYtU&feature=youtu.be em 11-09-2016 às 20h02.

140
autopreservação física devido à idade avançada e saúde frágil – de suas atividades
profissionais e de seu público.

Referências

ARAÚJO, Samuel; PAZ, Gaspar; CAMBRIA, Vincenzo (orgs.). Música em Debate:


perspectivas interdisciplinares. Rio de Janeiro: Mauad X/FAPERJ, 2008.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade - lembranças de velhos. 3ed. São Paulo: Cia das
Letras, 1994.
BRAGA, Reginaldo; BARTH, Cássio D. Encontro Nacional da ABET. Pesquisadores
Educadores ou Educadores Pesquisadores? Uma experiência de pesquisa e ação
pedagógica participativa na Oficina de Choro do Colégio de Aplicação da UFRGS In:
Congresso da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Música, 2008,
Salvador. XVIII Congresso da ANPPOM. , 2008.
CAMBRIA, Vincenzo. tnomusi ologia apli ada e ‘pesquisa a ão parti ipativa’.
Reflexões teóricasiniciais para uma experiência de pesquisa comunitária no Rio de
Janeiro. Anais do V Congresso Latinoamericano da Associação Internacional para o
Estudo da Música Popular, 2004.
FINNEGAN, Ruth. ¿Por qué estudiar la música? Reflexiones de una antropóloga desde
el campo. In: Revista Transcultural de Música. Open University: Gran Bretaña #6,
2002.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Paz e Terra: São Paulo, 1996.
__________. Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra: São Paulo, 2014.
PARADA, Paulo F; BRAGA, Reginaldo Gil. O universo sonoro de Plauto Cruz:
obra e trajetória artística em diálogo com a cidade de Porto Alegre. In: Revista
Vortex, v. 4, n.1. Universidade Federal do Paraná: 2016.

PARADA, Paulo F. Etnomusicologia e Processos Educativos: Memórias e Histórias


do Projeto Ação Musical. UFSCAR, São Paulo. Jornada de estudos em Educação
Musical: junho de 2015. Disponível em: http://anaisjeem.blogspot.com.br/p/edicao-
atual.html> Acesso em 12-06-2016.

Audiovisuais
Ensaio para o show Tocando para o Acervo Plauto Cruz, músicas Choro prô João, Para
João Vitor, Para Sabrina e Tema prô Altamiro. CRUZ, Plauto. Porto Alegre, 2015.
Composições de Plauto Cruz.
https://www.youtube.com/watch?v=kMrtrNhlx20&index=1&list=PLqlTHD12ZydrzC0y04XhsWr
a7QPh68HBl, acessado em 10-09-2016 às 09h07.
Eva. CRUZ, Plauto. Porto Alegre: 2016. Composição de Plauto Cruz, trecho de
apresentação no Teatro Renascença. Acessado através do site:
https://www.youtube.com/watch?v=egxmAJ30Th0 em 06-09-2016 às 08h05.

141
Força Atraente. CRUZ, Plauto. Porto Alegre: 2016. Composição de Plauto Cruz,
trecho de apresentação no Teatro Renascença. Acessado através do site:
https://www.youtube.com/watch?v=jJoxIIfewD4 em 06-09-2016 às 08h15.
Força Atraente. CRUZ, Plauto. Porto Alegre: 2016. Composição de Plauto Cruz, trecho
de apresentação do projeto social de educação popular Ação Musical. Acessado através
do site: https://www.youtube.com/watch?v=_Tlt9zRdYtU&feature=youtu.be em 11-09-2016
às 19h59.
Regional Plauto Cruz. CRUZ, Plauto. Porto Alegre: 2016. Composições de Plauto Cruz,
programa estação cultura da TVE, Rio Grande do Sul.
https://www.youtube.com/watch?v=iuRg4sIZcTk, acessado em 09-09-2016 às 16h10.

Entrevistas
Alexandre Alves, Maicon Paquetá e Miguel Alves, em 3 de setembro de 2016, no
projeto Ação Musical na quadra da escola de samba da Vila (Santa) Isabel, em Viamão,
município vizinho de Porto Alegre.
Fernanda Rosmaniño, em 8 de setembro de 2016, no Instituto de Artes da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

142

Você também pode gostar