Você está na página 1de 16

GOVERNANÇA E AJUSTE EDUCATIVO NA AMÉRICA

LATINA NOS ANOS DE 1990


José Eudes Baima Bezerra

1. A Governança na agenda educacional da ONU


No entrelaçamento entre as noções de descentralização e de democratização, o
aspecto da participação, na virada da década de 1980 para a de 1990, emerge como
noção chave das políticas, presente em praticamente todas as diretrizes sugeridas e/ou
adotadas no campo administrativo e educacional no Brasil ao longo dos anos de 1990.
Esse movimento dizia respeito à orientação mundial das agências multilaterais
que passaram a predicar o credo subsidiarista por meio de fóruns internacionais que
enquadraram em grande parte o que se chama de “reforma” educacional dos anos de
1990.
As políticas apresentadas como diktat pelo Banco Mundial para os países ditos
emergentes a partir da década de 1970 estiveram na base do amplo movimento
ideológico que se denominou Educação para Todos e que, num terreno político
supranacional, sob o impulso da ONU, tem buscado integrar governos e a onipresente
“sociedade civil” numa ilusória “frente única” pela universalização da educação, num
exemplo patente da aplicação da noção de governança mundial que expusemos
anteriormente. Um apelo aparentemente irrecusável e que tem como pedra de toque a
“participação popular” na gestão educacional.
A partir da leitura de documentos emanados do Banco Mundial e dos fóruns do
Movimento de Educação para Todos (MEPT), buscamos identificar os elementos que
apontam os mecanismos destinados a integrar os trabalhadores e a juventude na
aplicação das políticas em tela.
A primeira e fundamental consideração a fazer é que vivemos sob a égide da
decomposição do mercado capitalista. Assim, venha dos governos, das multinacionais
ou dos organismos internacionais (ONU, UNESCO, FMI, Banco Mundial, OMC,
OCDE) tudo tem um único e mesmo objetivo: reduzir o custo do trabalho seja pelo
rebaixamento dos salários e a retirada das garantias e direitos trabalhistas, seja
indiretamente, pela redução dos gastos sociais nos orçamentos governamentais
(orçamentos que vêm dos impostos, parte da mais-valia que o capital cede para a
manutenção dos aparatos estatais).
Os novos modelos de gestão que emergem no âmbito da “reforma” do Estado
iniciada nos anos de 1990, enfatizando a participação da sociedade civil, se apresentam
inseparáveis das estratégias de transferência da responsabilização para as populações
beneficiárias dos serviços públicos. As medidas de descentralização, de democratização
na escolhas dos dirigentes e de incorporação participativa das organizações e lideranças
nos núcleos gestores articulam medidas como a otimização dos recursos, a
flexibilização dos direitos, o autofinanciamento das instituições e a privatização com a
co-responsabilização das populações na aplicação destes planos1.
Isto porque tais políticas, no que têm de confisco de direitos, não poderiam ser
aplicadas sem o envolvimento direto e ativo das organizações construídas pelos próprios
trabalhadores, colaboração que, levada a termo, implica a destruição dessas
organizações por sua integração às instituições da dita globalização. O enfeudamento
das direções tradicionais do movimento operário e popular à agenda da participação,
como expusemos no capítulo anterior potencializa, o processo de desnaturação e
destruição de suas próprias organizações.
Nesse contexto, as agências multilaterais foram chamadas a ocupar um lugar
novo. Em particular, o Banco Mundial - BM modifica o padrão de sua atuação.2
Os anos de 1990 assistiram ao alargamento progressivo da influência do BM nas
formulações de política interna dos países devedores, e mesmo na formulação de
reformas legislativas de cunho desregulamentador. Esta influência se dará, menos pelo
volume de empréstimos concedidos pelo Banco do que pelo lugar de gestor
internacional das reformas estruturais que lhe atribuíram as grandes corporações
internacionais3. O caráter normativo que vem adquirindo as diretrizes do Banco no
1 Este aspecto merece um desenvolvimento especial, tanto no plano teórico, como no da experiência
política concreta visto a importância que teve, nos últimos anos, políticas “participacionistas” tais como o
Orçamento Participativo, enfatizado por governos de todas as colorações e visto pelas instituições
multilaterais como “política exitosa” no campo da gestão pública. Teoricamente, esta questão suscita um
problema mais largo que é o da suposta passagem da democracia representativa à “democracia
participativa”.
2 Na verdade, o BM já operava esta mudança desde os anos de 1970, sob direção de Robert McNamara.
Surgido como Fundo de reconstrução econômica, o BM passará a intervir, desde então, como formulador
de diretrizes de natureza geral para o desenvolvimento econômico, lugar ocupado historicamente pelo
FMI. De outro lado, como formulador de políticas de conjunto, o BM passará a integrar, em suas
propostas de políticas setoriais, diretrizes para as políticas sociais, inclusive, educacionais.
3 Em 1995, os empréstimos concedidos pelo BM para projetos na área de educação não ultrapassavam
0,5% do PIB dos países em desenvolvimento (TORRES, 1996, p. 126). Este fato não esconde que, mesmo
assim, entre 1987 e 1994, a participação da educação nos empréstimos concedidos ao Brasil tenha
Brasil, nos últimos 20 anos, se explica pelo esquema de “condicionalidades cruzadas”
posta em prática pelo “pool” de organizações multilaterais que aqui atuam4.
Coerente com a linha geral do Banco Mundial, isto é, do capital financeiro
internacional, nos documentos gerados nos fóruns do Movimento de Educação para
Todos (MEPT), a democratização da gestão figura como item essencial.
O elemento articulador de um conjunto de diretrizes que reproduzem grosso
modo aquelas anunciadas pelo Banco Mundial é a idéia de responsabilizar todos pela
sua aplicação, pressupostas como de interesse comum. Como diz a Declaração de
Jomtien em seu artigo 7º:
As autoridades responsáveis pela educação (...) têm a obrigação de
proporcionar educação básica para todos. Não se pode, todavia,
esperar que elas supram a totalidade dos requisitos humanos,
financeiros e organizacionais necessários a esta tarefa. Novas e
crescentes articulações e alianças serão necessárias em todos os
níveis (...); entre as organizações governamentais e não-
governamentais, com o setor privado, com as comunidades locais,
com os grupos religiosos, com as famílias (UNESCO, 1990, p. sem
numeração).

Enfatize-se nessa passagem a articulação direta entre a participação de todos


como corresponsáveis e a transferência dos serviços educacionais para a esfera das
ONGs e do setor privado, devidamente aliançados com as “comunidades locais”. O que
é enfatizado no Art. 9º:
1-(...) mobilizar atuais e novos recursos financeiros e humanos,
públicos, privados ou voluntários. Todos os membros da sociedade
têm uma contribuição a dar (...) (Idem, ibidem, p. sem numeração).

É a mesma ideia que se repete no Compromisso Nacional de Educação Para


Todos, de maio de 1993, durante o Governo de Itamar Franco, em atendimento aos
compromissos internacionais firmados pelo país em Jomtiem:
4-Atribuir às unidades escolares, nos sistemas de ensino, crescente
autonomia organizativa e didático-pedagógica, propiciando
inovações e sua integração no contexto local.
6-Definir as competências e responsabilidades das diferentes
instâncias e setores do Poder Público, em regime de colaboração,
incorporando a participação de entidades, grupos sociais

passado de 2% para 29% o que, por si só, já indica um giro no padrão de intervenção do BM.
4 Por exemplo, a “reforma” do Estado brasileiro, posta em prática com consultoria e financiamento do
BM, se torna uma imposição pois sua realização passa a ser condição para a negociação com o FMI e
com outras instituições credoras multilaterais ou privadas, embora estas instituições neguem este
cruzamento de condicionalidades (SOARES, op. cit., p. 21).
organizados e da família no processo de gestão das políticas
educacionais e da escola.

Note-se nesse artigo a ampla identidade com as indicações do Banco Mundial


quanto à autonomia da unidade escolar, à participação de “entidades e grupos sociais
organizados” e da família, que quedam diretamente implicados na “gestão das políticas
educacionais e da escola”.
Na Declaração de Nova Delhi, de dezembro de 1993, a mesma insistência:
2.8 - a educação é -e tem que ser - responsabilidade da
sociedade, englobando igualmente os governos, as famílias,
as comunidades e as organizações não-governamentais, exige
o compromisso e a participação de todos numa grande
aliança que transcenda a diversidade de opiniões e posições
políticas (UNESCO, 1993, p. sem numeração, itálicos
nossos).

Nova Delhi vai mais longe: agrega à ideias da gestão compartilhada por todos, a
emersão da ideias de bem comum, expressa no apelo a que a aliança sugerida
“transcenda as opiniões e posições políticas”. Explicita, portanto, a natureza corporativa
da gestão democrática e da participação, onde desaparecem os interesses exclusivos de
cada classe e, por essa via, se pode deduzir, numa situação limite, a própria dissolução
das organizações construídas na luta de classe, no interesse da aplicação em comum das
diretrizes das agências multilaterais e dos governos.
No crepúsculo do milênio, em abril do ano 2000, ao cabo de várias conferências
temáticas havidas ao longos da década que terminava, e antecedida de uma Conferência
Regional de Educação para Todos nas Américas, celebrada em fevereiro do mesmo ano,
em Santo Domingo, República Dominicana, se reuniu em Dakar o Fórum Mundial de
Educação, mais uma vez no marco da governança mundial estabelecido pelas
organizações da ONU e pelas agências financiadoras multilaterais.
Depois de constatar um certo progresso na universalização da educação
fundamental no mundo, o Fórum diagnostica que os compromisso centrais assumidos
desde Jomtien não foram cumpridos nos patamares então estabelecidos. A estratégia,
todavia, não muda, trata-se de dissolver as fronteiras entre Estado e sociedade civil,
entendida no sentido que lhe dá a Terceira Via, como vimos anteriormente, de forma a
deslocar a responsabilização – e o financiamento - para um terreno público não-estatal.
Ao fixar objetivos para cumprir aqueles que malograram ao longo da década de
1990, o documento reintroduz a ladainha do deslocamento da gestão para a ponta do
serviço, da diversificação no financiamento, do controle social dos serviços, entendidos
como gestão não-estatal, isto é, participativa da educação pública. Afirma a Declaração
de Dakar no item “Cumprindo nossos Compromissos Coletivos”, ponto 8, alínea III
(UNESCO/CONSED, 2001, p. 9):
III. Assegurar o engajamento e a participação da sociedade civil na
formulação, implementação e monitoramento de estratégias para o
desenvolvimento da educação;

Para completar, na alínea IV está dito, indicando que os mecanismo de


participação devem ser assimilados nas próprias normas institucionais da administração
pública, ou seja no arcabouço jurídico de cada Estado: IV. Desenvolver sistemas de
administração e de gestão educacional que sejam participativos e capazes de dar
respostas e prestar contas (Idem, ibidem, p. 9).
No Item 9 do mesmo documento, ao recomendar a confecção de planos
nacionais de educação, as organizações da ONU, as agências multilaterais e os Estados
associados não descuram de lembrar que os mesmos devem ser elaborados
(...) através de processos que envolvam todos os interessados e
parceiros, especialmente representantes do povo, líderes
comunitários, pais, educandos, Organizações Não-Governamentais
(ONGs) e a sociedade civil (Idem, ibidem, p. 9).

Trata-se claramente de uma ofensiva na linha da governança, ou seja da inclusão


corporativa de todos os segmentos sociais na gestão de programas supra-nacionais, sob
a direção das agências multilaterais. Tal direção é assegurada pela adoção de sistemas
que descentralizam a gestão do serviço, mas que garantem uma rígida fidelidade ao
plano subsidiário – bem comum, cujo conteúdo é dado pelos órgãos da globalização -
através dos mecanismos de avaliação dos produtos. Por isso, a exemplo dos programas
de financiamento do Banco Mundial e dos próprios pilares da “reforma” do aparelho de
Estado dos anos de 1990, o conjunto dos documentos do MEPT insistem no controle
central dos programas por meio de sistemas de avaliação standardizados, ao tempo em
que depositam sobre as gestões locais a responsabilidade pelos resultados obtidos. Aqui
se introduz mais uma categoria da gestão privada, o acompanhamento ou gestão por
resultados, que apreciaremos ao tratar do modelo gestionário adotado no Ceará.
O tema da constituição de sistemas administrativos participativos e
descentralizados é recolocado no ano de 2004, quando ocorreu em Brasília a Quarta
Reunião do Grupo de Alto Nível de Educação para Todos. O evento avaliou os passos
dados nos anos de 1990 com o fim de universalizar o ensino fundamental nos países
pobres. Na ocasião foram repisados os cânones do movimento, eixados na linha
corporativista das parcerias e da integração de todos os “atores” na responsabilização
pela oferta educacional. Ao mesmo tempo em que se constatava o não atingimento dos
compromisso firmados quatro anos antes em Dakar.
Expressão disso, é a insistência, como base da ação do MEPT, da chamada
“diversificação” das fontes financiadoras, com o fim evidente de desonerar os Estados,
como se explicita no Item 9 da Declaração de Brasília:
10. Recursos financeiros:
Com o objetivo de construir uma parceria clara, forte e sustentável
entre nações desenvolvidas e em desenvolvimento para acelerar os
progresso em direção às metas do EPT, os Governos devem:
- Aumentar e diversificar recursos locais e fortalecer o uso eficaz e
eficiente de ambos os recursos locais e externos (BRASIL, 2004,
p. 3).

Nessa direção se recomenda o aprofundamento das “parcerias” com entes não


estatais, não apenas para o financiamento, como também para a gestão, o controle e a
avaliação da educação:
Os governos e os organismos internacionais deveriam trabalhar
mais estreitamente com a sociedade civil inclusive com as
organizações não-governamentais, visando melhorar a
transparência e a responsabilidade nos processos políticos, na
gestão dos orçamentos e da educação (Idem, ibidem, p. 5).

Observe-se nessa passagem que fica explícita referência a uma mudança no


padrão da administração do sistema que, do plano do Estado nacional, passa à cogestão
com a “sociedade civil”, identificada, ainda uma vez, com as ONGs. O objetivo é
sempre fiscal, o de melhorar a gestão dos orçamentos, isto é, de, por um lado, envolver
a população na gestão do orçamento público que, como mostraremos a seguir, se
mantém, como mínimo, estagnado ao longo dos anos 2000, obedecendo a uma lógica
mundial que remonta aos últimos 40 anos, e, de outro, consagrar a identidade entre
participação na gestão com “diversificação” público-privada das verbas.
É nesse sentido que os documentos do MEPT, com destaque para o anexo à
Declaração de Dakar, intitulado Marco de Dakar, insistem no fato de que o que chamam
de perdão da dívida externa não é uma alternativa razoável para desafogar o orçamento
educacional, acenando para um mecanismo de “troca” de ativos da dívida por
investimento dos Estados nacionais em educação, um mecanismos que mantém o
ferrolho do endividamento, com a vantagem de criar mais uma condicionalidade para
que os países devedores obtenham ajuda internacional. O mecanismo da “troca”,
recentemente acolhido por organizações de professores, como a Confederação
Nacioanal dos Trabalhadores em Educação – CNTE, em suas plataformas, constitui,
nesse sentido, mais um laço de subordinação dos países devedores ao capital
internacional.
Da mesma forma, et pour cause, os documentos do MEPT apresentam o
processo de globalização como inevitável, de forma que as iniciativas educacionais só
podem se desenvolver segundo seus critérios. Assim, desde Jomtien, os documentos do
MEPT procuram “dourar a pílula” da globalização, apresentada como uma era em que
(...) testemunhamos um autêntico progresso rumo à distensão
pacífica e uma maior cooperação entre as nações (...) o volume das
informações (...) continua crescendo num ritmo acelerado. Estes
conhecimentos incluem informações sobre como melhorar a
qualidade de vida ou como aprender a aprender. Um efeito
multiplicador ocorre quando informações importantes estão
vinculadas com outro grande avanço: nossa nova capacidade em
comunicar (UNESCO, 1990, p. sem numeração).

Isso num mundo convulsionado por um número inaudito de guerras localizadas


que só se agravaram desde 1990, particularmente depois dos acontecimentos de 11 de
setembro de 2001. Mas a governança para ser crível enquanto locus da gestão comum
do interesse público tem de ser apresentada no cenário de um mundo pacífico e onde a
concórdia, se não reina, é uma possibilidade real.
O apelo ao recurso da governança, no quadro de um arranjo corporativo
desenvolvido em escala internacional, só pode ser desvelado pela sua localização no
mapa do ajuste capitalista, fruto da crise sem precedentes que abala o modo de produção
vigente no planeta. A integração participativa, na verdade corporativa, de todos os
seguimentos na gestão das políticas impostas pelo imperialismo é um problema maior,
não só do ponto de vista do sucesso destas medidas (da perspectiva do imperialismo),
como da sobrevivência da classe trabalhadora e de sua juventude como classe para si,
para o que é fundamental a preservação de suas organizações, hoje ameaçadas de total
integração às instituições da globalização e, portanto, de desnaturação.
Esta orientação de cunho internacional encontra a América Latina, na última
vintena do século XX, o ambiente adequado a sua aplicação, posto que os países do
continente estão na linha de frente da crise da dívida, com impactos não desprezíveis
sobre a vigência da administração pública praticada nos “Trinta Gloriosos”, que se
amparava num endividamento que, como explicamos, chegou ao paroxismo em 1982.

2. Crise da Dívida e “Reformas” na América Latina: a questão


educacional
As “reformas” desenvolvidas no quadro fixado pelas agências multilaterais,
encontravam um cenário econômico de crise que as justificava (Reimers, 1990).
Tratava-se, do ponto de vista do capital, de medidas ajustadoras, em face da brusca
interrupção da remuneração do capital financeiro em razão da inadimplência reinante a
partir do princípio da década de 1980.
Fernando Reimers, pesquisador do Harvard Institute for International
Development, sustenta que a decadência dos investimentos em educação na América
Latina está ligada intimamente ao pagamento da Dívida Externa dos países da Região.
Reimers observa que a América Latina viveu, dos anos de 1950 até a primeira
metade da década de 1970, um poderoso surto de expansão da educação o que
corresponde ao período de industrialização.
Esta elevação quantitativa, como anota com cuidado Reimers, proporciona a
confecção de metas educacionais otimistas pelas sucessivas conferências da UNESCO
para a América Latina nos anos de 1960 e de 1970. Efetivamente, entre 1960 e 1970 a
escolarização latino-americana cresceu num ritmo anual de 6,2%. Este ritmo foi
sustentado por um crescimento na parcela do PIB do continente dedicado à educação.
Em 1960, esta percentagem era de 2,8%, tendo passado a 3,4%, em 1970. Estas
ampliações quantitativas autorizaram à Conferência da UNESCO de 1979, celebrada em
Caracas, a fixar objetivos do crescimento quantitativo. Estas metas se enfrentariam com
a deterioração das economias latino-americana (REIMERS, op.cit., p. 08)
O “Nixon round “, isto é, a não conversibilidade do dólar em ouro, decretado por
aquele presidente americano em 1972, a crise do petróleo e, na América Latina, o
modelo de acumulação baseada no endividamento estatal e nas pautas de exportação, se
expressaram na aceleração das crises econômicas e coincidiram com a oscilação dos
edifícios estatais de cunho ditatorial por toda a América Latina: Somoza cai em 1979,
em 1980 o regime policial salvadorenho sente visivelmente os golpes da guerrilha, a
Ditadura brasileira se defronta com sucessivas derrotas eleitorais e com o início da
época das greves da massa; no Peru, a Assembléia Constituinte se instala em 1978, etc.
É neste ambiente conturbado que emergirá a chamada “crise da dívida”. A
América Latina é, naquele momento, a região mais endividada do mundo. Onze dos
dezessete maiores devedores do mundo são latino-americanos. A partir de 1980, os
níveis de comprometimento das exportações com o pagamento do serviço da dívida
continental cresceu numa taxa de 4% ao ano, enquanto o crescimento médio da dívida
de 2% ao ano entre 1970 e 1975 para 5% entre 1975 e 1980 e, afinal, para 6,5% entre
1980 e 1987. Com efeito,
És de esperar que la deuda externa influja en la financiación de la
enseñanza a causa de los programas de ajuste apreendidos para
afrontar los problemas de la balanza de pigos. El ajuste estructural
entraña reducciones del gasto público como médio de disminuir la
demanda global interna. Los gobiernos predon aplicar programas
de ajuste voluntariamente o sometidos a la pression de las
instituiciones financieras internacionais que en casi contrário,
dejam de de conceder-les préstimos (REIMERS, 1990, p. 9).

Assim, o autor relaciona diretamente os dispositivos de pressão da banca


internacional sobre as nações endividadas e a definição de prioridades de investimentos
empreendidos pelos governos nacionais.
Exemplo disto é o México onde, entre 1982 e 1983, o gasto com educação caiu
de 5.5% para 3,9% do PIB. Já no Brasil, entre 1970 e 1989, ou seja, no umbral dos anos
em que se operariam as “reformas”, seja nas regulações econômicas, seja no aparelho de
Estado, o crescimento do gasto médio com educação caiu em cerca de 90% (FMI apud
REIMERS, op. cit., p. 11).
Segundo dados do Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID (Apud
REIMERS, op. cit., p. 13), o gasto com educação “per capita” aumentou num ritmo
anual de 3,38% nos anos de 1970 diminuiu ao ritmo de 2,39% após 1980.
Vale, para encerrar este aspecto, citar a relação que Reimers faz entre pressão do
endividamento, redução das verbas para a educação e impacto sobre a quantidade e a
qualidade do serviço oferecido desde 1979:
La consequência imediata del aumento de la deuda sobre la
educación es el haberse frenado en todos los países el desarrollo de
le enseñanza. Como la población ha seguido aumentado y como la
expansion cuantitativa de los 20 años últimos dure um contrapeso
en plano de la calidade de la ensenãnza, topamos com una misma
consecuencia: sin variar ninguna de la demás circunstancias, la
deuda externa ha “congelado” el ámbito dele conseñanzo, tanto en
términos cuantitativos como qualitativos (Idem, ibidem, p. 21).

Esta queda nos gastos educativos nos países latino-americanos, brusca para um
período pequeno na escala histórica, cerca de 30 anos, espelhava uma curva descendente
nos gastos oficiais com educação em todo o mundo. Este decréscimo começa nos anos
de 1960, ainda dentro dos Trinta Gloriosos, e segue se aprofundando pelas três décadas
seguintes, atingindo os patamares mais baixos no momento em que se impõe as
“reformas” educativas da década de 1990, cujo paradigma segue dominando as políticas
educacionais deste início de século (BEZERRA, 2009, p. 230-231). De fato, a marca da
“reformas” do aparelho de Estado, incluindo a educacional, será um permanente arrocho
fiscal que prosseguiu para além do Governo Cardoso, no Governo Lula da Silva, a partir
de 2003, conforme podemos ver a seguir.
Com efeito, em 1965, os gastos mundiais com educação estiveram em torno de
345 bilhões de dólares, ou 4,9% do PNB mundial. Esse percentual sofre uma
desaceleração, mas evolui modestamente, numa alta de cerca de 1% em 10 anos, até
1975, quando atingiu 5,9% do PNB mundial. Desde então, coincidindo com a crise
internacional que marcou o fim do período conhecido como os Trinta Gloriosos, a
participação dos gastos educacionais no PNB mundial tem diminuído sistematicamente,
até chegar a 5% em 1990, conforme dados de Castro (Apud RAMOS, 2003, p. 206).
Quer dizer, a participação dos gastos educacionais no PNB mundial recuou ao patamar
de 1965, no que pese o crescimento da população mundial, o deslanche da urbanização,
com a explosão demográfica nas cidades, ou seja, apesar de um presumível aumento da
demanda por educação.
No Brasil, a decadência dos gastos mundiais com educação, que atinge o
patamar mais baixo, em 30 anos, na década de 1990, teve seu reflexo. Ao longo do
Governo Cardoso, se registrou uma diminuição regular dos gastos com as políticas
sociais e com a educação, em especial.
Detendo-nos apenas nas despesas autorizadas5, visto que as previsões
orçamentárias num país em que o orçamento não é imperativo guardam um traço
5 Os gastos previstos no orçamento efetivamente empenhados pelo Governo.
enganoso, veremos que o montante autorizado, por exemplo, para a saúde decaíram de
R$ 19,9 bilhões para R$ 19,1 bilhões, em 1999. Os gastos autorizados para a educação
chegava a R$ 14 bilhões em 1995, caindo para R$ 12 bilhões em 1996, e se mantendo
nesse patamar em 1997 (NETTO apud RAMOS, op. cit., p. 185). Entre 1995 e 1998,
assiste-se um despencar dos gastos autorizados com educação e cultura da ordem de
19,57%, o que retem os gastos brasileiros nessa área na esfera de 3,7% do PIB, no
período (FOLHA DE S. PAULO, Caderno 1, p. 3 apud ROSAR, 2003, p. 71).
Já durante o governo Lula da Silva, Pochmann (2005) aponta para um recuo no
chamado orçamento social entre 2001 e 2004, ainda que seja necessário ressalvar que
Lula operava em 2003 ainda com o orçamento adotado em 2002, último ano da
Administração Cardoso.
Entre 2001 e 2004, por exemplo, houve uma involução do
orçamento social do Governo Federal, quando considerado seu
valor em termos reais (deflacionado pelo IGP-DI/FGV) e o
comportamento populacional. Para o mesmo período de tempo, o
orçamento social do Governo Federal acumulou uma redução real
por habitante de quase 8,5% (Idem, ibidem).

No marco dessa involução dos gastos sociais, nos dois primeiros anos do
Governo Lula, 2003 e 2004, os investimentos diretos 6 em educação, calculados em
relação ao PIB, se mantiveram em 3,9%, abaixo dos gastos de 2002, que ficaram no
patamar dos 4,1%. Em 2005, depois de 2 anos de mandato de Lula da Silva, a Lei
Orçamentária previa um investimento de R$ 79,92 bilhões, o que elevaria o gasto em
relação ao PIB para 4,32%, mas, a execução orçamentária correspondeu aos mesmos
3,9% de 2002. Entre 2006 e 2008 experimentou-se, em dois anos, um aumento discreto
de cerca de 0,4% dos gastos, em relação ao PIB, indo de 4,3% em 2006 e chegando, em
2008, ao patamar dos 4,7%, o melhor resultado em 6 anos de governo (BRASIL, MEC-
INEP, 2009).
Este indícios apontam para a manutenção de um padrão descendente nos gastos
sociais e educacionais, mesmo depois do período mais ostensivo da “reforma” do
aparelho de Estado, o que indica uma continuidade do viés de redução do Estado aos
seus traços essenciais.

6 Entende-se por investimentos diretos aqueles que excluem despesas que não se dirigem às instituições
de ensino, tais como aposentadorias, bolsas de estudos e financiamento estudantil, amortizações e
encargos da dívida publica..
O ajuste administrativo – a “reforma” do Estado – respondia à situação
sumariada acima, marcada pela “disciplina” orçamentária estrita. Ele deve ser, portanto,
entendido como aspecto de um ajuste fiscal sem precedentes, na América Latina e no
Brasil das décadas de 1990 e 2000, realizado conforme diretrizes internacionais, na
forma de enxugamento do aparelho de Estado, racionalização de meios, ênfase na
eficiência, na equidade, mas também como “transferência de poder” - deslocamento da
responsabilização - para os entes da sociedade civil, numa articulação entre
descentralização, democratização e participação, no âmbito de uma gestão
compartilhada por todos, e de um consenso assentado na aceitação tácita e prévia dos
limites orçamentários e do modelo administrativo estabelecido.
Para dar vida a esse programa, se abre um processo de descentralização nos
países latino-americanos, como resposta ao colapso da política de endividamento que
expressa um movimento de conjunto das agências multilaterais para o continente pois
funciona como um elemento de “coesão do conjunto das políticas educacionais nas
últimas duas décadas”(KRAWCZYK, 2002, p. 59). Assim a descentralização da gestão
educacional, vertebrará o conjunto de medidas “reformistas” aplicadas nos países do
continente neste período. Vejamos alguns exemplos no campo das “reformas”
educativas.
Os processos de descentralização se expandiram pelo continente num passo
desigual, mas concentrados no interregno histórico entre os anos de 1970 e 1990. O
Brasil, onde já havia uma tradição descentralizadora no que diz respeito à oferta,
incrementou essa tendência nos anos de 1970, com o PROMUNICÍPIO, e o encaixou,
como veremos mais tarde, no pacote “reformista” do fim do século, através da
instituição do FUNDEF, em 1996.
Já o México, iniciou a descentralização do ensino público nos anos de 1970, mas
só no início da década de 1980 o Governo central firmou acordos com os 31 estados da
Federação com vistas a desconcentrar a responsabilidade educacional, por meio da
constituição dos Comitês Municipais de Educação. O processo, todavia, só se firmou
quando assumiu o caráter de instrumento de transferência das funções estatais para os
entes menores da Federação e para a sociedade civil, como parte da “reforma” do
aparelho de Estado mexicano, no começo da década de 1990, movimento consagrado na
Ley General de la Educación, que adotou como um de seus fundamentos a transferência
de responsabilidade do vértice para a base municipal do Estado mexicano, criando um
modelo semelhante ao regime de colaboração da Constituição brasileira de 1988. Com
isso, o processo descentralizador engendrou o quadro subsidiarista e corporativista com
a criação dos Conselho de Participação Social, no âmbito municipal. (RODRIGUEZ,
2004, p. 21-27).
Enquanto, na Argentina, a adaptação da política nacional de educação ao Projeto
Principal levou a uma provincialização da escola fundamental, acompanhado de uma
estrutura semelhante à brasileira de integração das organizações de classe na gestão do
sistema por meio do Congresso Nacional Pedagógico, seccionado nos anos de 1990 para
abarcar um maior número de segmentos sociais, no Chile a descentralização foi mais
violenta e abertamente privatista. Neste país, o processo foi encaminhado pela Ditadura
Militar do General Pinochet, na virada da década de 1970 para a de 1980, sob a batuta
dos economistas da “Escola de Chicago”, discípulos de Milton Friedman. Assim, o
processo descentralizador se deu, não só pela transferência da responsabilização para a
esfera municipal, mas pela transferência das escolas públicas diretamente para os
“usuários”, isto é, para a iniciativa privada. Em 10 anos, entre 1980 e 1990, o
atendimento público-estatal em educação caiu de 78% do total de matrículas para 58%.
De outra parte, a municipalização quebrou o estatuto profissional nacional dos docentes
chilenos, fragmentando a carreira num sem número de dependências administrativas e
liquidando o sindicato nacional (Idem, ibidem, p. 26-30).
O Chile em vários sentidos, graças ao regime ditatorial que bloqueava qualquer
reação, prefigurou em vários anos as diretrizes do Banco Mundial.
Para KRAWCZYK (Op. cit., p. 60) se recoloca aqui a relação
globalização/comunitarismo. Para a autora, esta relação se consolida como uma
substituição do que ela chama de Estado social por um Estado fiscalizador. Trata-se,
como se pode notar, de um arranjo onde o comunitarismo é a forma de integração das
comunidades nos pressupostos da globalização, sob monitoramento do “Estado
avaliador”. Eis como, com propriedade, nossa autora sintetiza a questão
(...) o processo de globalização , ao mesmo tempo que invalida a
necessidade de uma base territorial e de estratégias nacionais frente
às regras do mercado internacional, (...) apresenta a gestão local
como a forma mais adequada para veicular os custos e vantagens
de seus serviços públicos e privados, (...) impondo a
descentralização e privatização da gestão pública como condição
sine qua non na conjuntura atual (Idem, ibidem, p. 61)..
Para a autora, este movimento provoca, ademais, uma perda do “sentido
político” da vinculação dos serviços ao Estado nacional em favor de uma ideologia da
eficiência a ser alcançada pelos meios disponíveis localmente, o que, adendamos nós,
sublinha os aspectos de desresponsabilização do Estado.
A autora enxerga dois movimentos de descentralização, um das instâncias
superiores para as instâncias inferiores do aparelho de Estado, outro, do Estado
propriamente dito para a unidade escolar, como nas experiências chilena, argentina e,
desde o fim da década de 1990, brasileira. Em ambas as modalidades, ao lado da ênfase
no controle dos serviços pelos usuários, despontam as diretrizes de racionalização dos
gastos e das “possibilidades de interação, no nível local, dos recursos públicos, dos não-
governamentais e dos privados (...)” (Idem, ibidem, p. 64). Krawczyk percebe uma
mudança de significado entre a idéia de gestão democrática ou colegiada, tal como
surgiu nos movimentos docentes da década de 1980 e a forma como ela reaparece, no
marco da “reforma”, visto que, anteriormente, esta noção não prescindia do papel do
“Estado social”, enquanto na versão emersa na década de 1990, ela expressa uma
“preocupação dos órgãos centrais por redefinir quem deve assumir a responsabilidade
pela educação pública (...)”, inclusive no que diz respeito ao seu financiamento (Idem,
ibidem, p. 65).
Em toda a América Latina, então, como parte de um programa comum, ditado
pelas agências internacionais, o deslocamento da administração para a gestão local se
reveste de um caráter de “liberalização”, que visa a elevar a responsabilização das
comunidades locais pela oferta do serviço e desregulamentar os mecanismos de
funcionamento e financiamento, isto é, trata-se de uma marcha à autonomia das
unidades que corresponde à supressão das ações governamentais. Não é estranho, nessa
lógica, que se introduzam mecanismos de recompensa e premiação para as gestões mais
eficazes em viabilizar a desresponsabilização do Estado que, “de quebra”, ameaçam os
sistemas de remuneração baseados nas lutas e contratos coletivos firmados pelos
sindicatos, introduzindo um sistema de competição entre as unidades escolares e entre
os trabalhadores em educação.

Elementos para uma conclusão: governança, descentralização e


participação como pedras-de-toque do ajuste universal
Embora Krawczyk hesite, em seu artigo, em caracterizar as diversas dimensões
da descentralização como partes combinadas de um mesmo processo que aponta para a
descentralização para o mercado (a autora, no artigo aqui referido, apresenta o
deslocamento para o município, para a escola e para o mercado como tipificações da
descentralização), não parece ilícito ver no conjunto dos movimentos descentralizadores
que, como mostra a autora, dão unidade às “reformas” implantadas nos distintos países
latino-americanos, uma marcha comum em direção ao mercado.
Afinal, a desresponsabilização que empurra as unidades descentralizadas a uma
espécie de autonomia compulsória coloca quase que automaticamente a necessidade,
neste cenário, de que elas se dotem dos meios, inclusive jurídico-institucionais, de
proverem seu sustento. Dessa forma, o processo de descentralização, ele mesmo, abre a
via da conversão das unidades descentralizadas em órgãos juridicamente aptos a operar
na esfera do mercado. Não se pode esquecer aqui que na configuração do Estado
“reformado” de Bresser Pereira, as instituições sanitárias, educacionais, científicas e
culturais são vistas como serviços não-exclusivos do Estado que podem e devem operar
no âmbito da competição no mercado, ou, para sermos fieis ao autor, em condições de
“quase-mercado”.
É nesse cenário que se deve analisar propostas que parecem remeter a fórmulas
usadas em outros contextos pelos movimentos operário e popular, como, por exemplo, o
slogan da auto-gestão ou da auto-gestão comunitária. No período em tela, tais slogans
serviram como expressão dos modelos gestionários em que a oferta de educação passa a
ser provida por entidades públicas de direito privado, sob direção da comunidade, na
base de contratos de desempenho, ou, como ficaram mais conhecidos no Brasil, de
contratos de gestão. É a fórmula das Organizações Sociais (OSs) experimentadas no
movimento das escolas “charter”, no mundo anglo-saxão, mas também vivenciadas em
países latino-americanos, como na Argentina, no Chile, extensamente, e, brevemente,
em Maringá, no Paraná, na década de 1990.
Esse modelo, vamos dizer, mais radical de afastamento do Estado, em nome da
auto-gestão, ganha contornos mais familiares a nós se lembrarmos das legislações que,
eliminando o financiamento exclusivamente estatal, instituem formas “alternativas” de
financiamento, por meio dos convênios, parcerias e, por que não, do voluntariado.
Em todos os casos em que, guardadas as variações sobre o mesmo tema, se
operaram processos de “reforma” no nosso continente, ressalta o apelo à participação
“de todos” na responsabilidade pelo serviço público, em detrimento da presença do
Estado.
Essa realidade nos alertam para a natureza essencial, como momentos da
governança, noção subjacente a todos os processos de ajuste que temos vivenciado, da
descentralização e da participação que parecem configurar o aspecto “doce” dos
remédios amargos que nos tem sido receitados nesses 30 anos de ajuste universal.

Você também pode gostar