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Hans Belting SEMELHANCA E PRESENCA A histéria da imagem antes da era da arte ARS URBE io be Janet 20. RELIGiho & ARTE: A CRISE DA IMAGEM NO INICIO DA IpADE MODERNA Em sua argumentacao sobre a proibicao de imagens no Antigo Testamento, Lutero resiste aos iconoclastas, dizendo: *Hé dois tipos de imagens”. Deus nao estava falando de todas as imagens, apenas daquelas “colocadas em Seu lugar”. Portanto, no Antigo Testa mento, Ele teria proibido somente aquelas usadas para fins de culto. Elas devem continua proibidas, argumenta Lutero ~ ou, melhor ainda, devem ser despojadas de sua fungto. ‘final, aliberdade de usar ou nao a imagem é de quem a vé (texto 39B). Assim, ele incita seus contemporiineos a se libertarem do alegado poder das imagens (cap. 1c). Existiam, de fato, “dois tipos de imagens” na era de Lutero. As paredes vazias das igrcjas reformadas eram prova vietvel da auséncia das imagens “de idolatria” dos papistas. Simbolizavam a religiio purificada, desmaterializada, que agora depositava sua confianca ra Palavra, Mas as paredes apinhadas das colegSes particulares das residéncias, que nfo interessavam a Lutero, evidenciavam a presenga de pinturas, as principais das quais (em género e por artistas), comecavam a ser colecionadas. As colegées resultantes nao foram atingidas pelo veredito contra as imagens em igrejas. Tendo perdido sua fungio na Igreja, as imagens foram investidas de um novo papel: o de representar a arte. Essa coexisténcia de dois tipos de imagens parece nfo ter ficado confinada a0 mundo da pritica religiosa, como achava Lutero. Os tedlogos 0s connaisseuss de arte nao falavam sobre as mesinas imagens. Qs primeiros desejavam eliminar a aura sagrada das imagens antigas; os segundos buscavam uma definiglo de arte que estivesse em consonfncia com aquele novo tipo de imagem, Cada um & sua maneira, contudo, contribu para a crise que a antiga imagem enfrentow na época. Fora das igrejas reformadas, a linha diviséria nao se localizava mais entre a imagem religiosa e a secular. Ela agora separava um antigo conceito de imagem de um novo. Na Isilia, onde as igrejas mantinham suas imagens, 0 que se viu Jos. As pessoas ndo vivenciavam dois tipos de imagens, mas sim dois modos de ver a imagem, dependendo se foi um esforco, no de escolher entre os dois tipos, mas de sinteti ram vistas como receptéculos do sagrado ou como expressbes artisticas. Essa dupla visio dda imagem persistiu, até mesmo quando aplicada a uma Unica obra. E embora o mundo 580 » SEMELKANGA € PRESENCA catdlico néo tenha pronunciado nenhum veredito contra a veneracéo de imagens, mesmo rele 2 imagem santa nfo podia escapar de ser metamorfoseada em obra de arte, Lutero, que meramente defendia um menor controle da vida pela religido, certamente € mais testemunha do que causa do que foi chamado de “nascimento da era moderna a partir do espitito da religiio”."A religiio, nfo importa 0 grau de beligerdncia usado para se afirmar, no era mais a mesma, Lutou para preservat 0 espago que ocupava antes, mas acabou sendo designada para a area segregada da sociedade etn que a conhecemos agora, A arte ou passou a set aceita nessa drea ou permaneceu exclutda dela, mas certamente deixou de ser um fendmeno religioso em si mesmo. No mundo da arte, as imagens sitnbolizamn as novas demandas secularizadas da cultura e da experiéneia estética. Desta maneira, abriuse mo do conceito unificado da imagem, sendo a perda, contudo, ofuscada pelo rotulo “arte”, que passou a ser aplicado genericamente. O valor geral da imagem independence da idéia de arte tornouse inadequado para a mente moderna, Sua abolicgo abriu caminho para uma redefinigao estética, em termo das “regras da arte”. Imagens artisticas ¢ nao artisticas passaram a aparecer lado a lado, sendo dirigidas a pessoas de diferentes niveis de cultura O processo que aqui descrevo nada tem a ver com a “perda do centro” proposta por Hans Sedllmayr, em seu livro sobre as deficiéncias da era moderna? Ele vé em rettospecto uma definigdo humanista da arte, que estava apenas comecando a ser formada a época de Lutero ¢ Darer. A comparagio entre poesia e pintura como meios de expressio jd é evi- dencia suficiente de uma outra discussao ocorrida na época (texto 42). © pintot se tornava tum poeta e, como tal, reivindicava a liberdade poétics, incluindo o direito de interpretar verdades religiosas. O tema religioso, afinal, s6 poderia ser inventado pelo artista, ja que nio podia ser visto em tealidade, como 0 sio os objetos de uma natureza morta ou de uma paisagem. Essa nova presenca da obra em si sucede a presenga anterior do sagrado na obra Porém, o que poderia significar essa presenca? Ea presenca de uma idéia que se torna visivel na obra: a idéia da arte, conforme concebida pelo artista, Ennesse ponto que chega ao fim a histéria descrita neste livro. A partir daqui, limitar- | mei a destacar um contraste. Olhando em retrospectiva, a imagem, tema deste livro, se destaca de maneira mais proeminente. Com a nova distancia, a nossa percepcio da antiga situagao fica mais agucada. As fontes que nos informam sobre a teoria e pratica das imagens so em si testemunhas do novo estado de coisas. O significado de arte passa a ter de ser explicado, ja que nao existiam justficativas prontas (& parte os textos da Antiguidade), e nem poderia haver. A nova pintura clama por uma hermeneutica da arte do tipo que ja havia sido aplicado antes literatura. Jé no basta contar as historias das imagens, como foi feito até mesmo aqui, neste livro. As imagens encontram seu lugar no templo da arte e seu verdadeiro tempo na histéria da arte. Uma pintura nfo deve mais ser compreendida em termos de sua temitica, mas sim como uma contribuigio para 0 desenvolvimento artistico AcHISEDA MAGI. 5BL a. Critica e Destruigao de Imagens Durante a Reforma ‘Acctitica as imagens nfo foi um fendmeno novo durante a Reforma, muito embora os teformadores se esforgassem ao maximo para sustentar que foram eles 03 primeiros a conde- nat o abuso das imagens, No catolicismo do fim da era medieval, ouvisse com frequéncia 0 clamor ¢ os alertas contra os excess0s do culto as imagens ¢ de seu mau uso como meio de acumular capital’ A novidade ea 0 contexto em que as velhas criticas se achavam. Com @ Reforma geral da Igreja, a questio da imagem se tornou central. Os abusos cometidos pela Igreja papal com as imagens e também com as indulgéncias foram um meio bemvindo de riscar uma linha divisoria visivel, onde todos a pudessem reconhecer. Os reformadores, portanto, nio poderiam se contentar somente em criticar as ima- gens. Como a situagao exigia uma nova pritica, a nova fé teria de se apresentar como uma Tereja sem imagens. A purificagao do templo, com a retirada de todos os comerciantes € imagens, servitia para levar a Igreja de volta ao seu estado original, antes do seu descami nho. Neste sentido, a iconoclastia foi a critica aplicada as imagens. Porém, a iconoclastia € uum fendmeno de muitas facetas e também muitas contradigbes.* Nem mesmo os préprios reformadores chegaram a um acordo sobre como lidariam com ele. Karlstadt o via como uma oportunidade paca o ativismo; Lutero a ele se opunha, alegando que seria uma ameaca de convulsio geral; ¢ Zwingli defendia, com a retirada ordenada das imagens, uma posigio intermediéria entre os seus protetores ¢ 05 iconoclastas. O debate entre os tedélogos aparece ‘em seus respectivos escritos. (texto 59). Contudo, a iconoclastia nfo foi apenas um caso para os tedlogos. Abarcou toda uma insurreigio contra o capital e a autoridade, fossem os inimigos 0s odiados senhorios, ou (8 ricos mosteiros isentos de pagar impostos, ot o exército de ocupagao da Espana. A iconoclastia foi iniciada, as vezes, pelas massas, outras pelos oficiais de uma cidade em conflito com o dominio de uma igreja, mas raramente pelos tedlogos. O ato da purificagio simbélica do templo se transformou em uma arma potente para muitos, podendo ser usado tanto contra. Igreja, os magistrados locais, ou os ricos senhorios, que erigiam monumentos «si proprios (simulacra, na linguagem de Erasmo de Rotterdam) dentro das igreja (texto 391). Neste ponto, porém, esbarramos em controvérsias na histéria politica e social que nto podemos investigar adequadamente. Na primavera de 1522, em Wittenberg, os tedlogos, na luta pela Reforma da Igreja, precisavam do apoio dos governantes saxOnicos. Para tanto, Lutero queria evitar qual- quer perturbagio que colocasse em risco a sua causa, preparandose até mesmo para permitir ao eleitor 0 uso antigo das imagens. “Existem pessoas que ainda nao chegaram a essa [correta] opinido [sobre as imagens]”, dizia, e que 86 serio convencidas de seu erro por meio da pregasio’ Em Maunster, ao contrario, os anabatistas provocaram a queda do regime, em 1534. ‘Como movimento, jé eram politizados havia muito tempo, sendo até mesmo rotulados ACHISE DA MAGER «581 a. Critica e Destruicao de Imagens Durante a Reforma A.ctitica és imagens nao foi um fendmeno novo durante a Reforma, muito embora os reformadores se esforcassem ao maximo para sustentar que foram eles os primeiros a conde- -om frequencia 0 clamor ¢ 0s alertas contra os excessos do culto as imagens e de seu mau uso como meio de nar o abuso das imagens. No catolicismo do fim da era medieval, ouvi: acumular capital A novidade era 0 contexto em que as velhas eriticas se achavam. Com a Reforma geral da [greja, a questio da imagem se tornou central. Os abusos cometidos pela Tgteja papal com as imagens e também com as indulgéncias foram um meio bemvindo de riscat uma linha diviséria visivel, onde todos a pudessem reconhecer. Os reformadores, portanto, nao poderiam se contentar somente em criticar as ima- gens, Como a situagdo exigia uma nova pritica, a nova fé teria de se apresentar como uma Tateja sem imagens. A putificagio do templo, com a retirada de todos os comerciantes € imagens, servitia para levar a Igreja de volta ao seu estado original, antes do seu descami- nnho. Neste sentido, a iconoclastia oi a critica aplicada as imagens. Porém, a iconoclastia & ‘um fenémeno de muitas facetas ¢ também muitas contradig6es.* Nem mesmo os proprios teformadores chegaram a um acordo sobre como lidariam com ele. Karlstadt o via como ‘uma oportunidade pata oativismo; Lurero a ele se opunha, alegando que seria uma ameaga de convulsio geral; ¢ Zwingli defendia, com a retirada ordenada das imagens, uma posiglo intermedisria entre os seus protetores ¢ 0s iconoclastas. © debate entre os tedlogos aparece em seus respectivos escritos. (texto 3Y). Contudo, a iconoclastia nao foi apenas um caso para os tedlogos. Abarcou toda uma insurreigo contra o capital ¢ a autoridade, fossem os inimigos os odiados senhorios, ott 65 ricos mosteiros isentos de pagar impostos, ou 0 exército de ocupacio da Espanha. A iconoclastia foi iniciada, as vezes, pelas massas, outras pelos oficiais de uma cidade em conflito com o dominio de uma igreja, mas raramente pelos tedlogos. O ato da purificagao simbélica do templo se transformou em uma arma potente para muitos, podendo ser usado tanto contrac Igreja, os magistrados locais, ou os ricos senhorios, que erigiam monumentos 2 si proprios (simulacra, na linguagem de Erasmo de Rotterdam) dentro das igrejas (texto 39D). Neste ponto, porém, esbarramos em controvérsias na histéria politica e social que no podemos investigar adequadamente Na primavera de 1522, em Wittenberg, os te6logos, na luta pela Reforma da Igreja, precisavam do apoio dos governantes saxdnicos. Para tanto, Lutero queria evitar qual quer perturbagéo que colocasse em risco a sua causa, preparandose até mesmo para permitir ao eleitor o uso antigo das imagens. “Existem pessoas que ainda nao chegaram 4 essa [correta] opinido [sobre as imagens]", diria, e que s6 sero convencidas de seu erro por meio da pregagio’ Em Manster, a0 contrario, os anabatistas provocaram a queda do regime, em 1534. Como movimento, jé eram politizados havia muito tempo, sendo até mesmo rotulados SBT . SENELHANCA E PRESENGA como rebeldes por um édito imperial. Expulsaram o bispo de sua posigéo de governante de Manster ¢ langaram um ataque generalizado sobre o dinheiro (visto por eles como um ‘dolo), retirando capital de circulagio e reunindo todas as j6ias no prédio administrative da ‘cidade, Sua expectativa milenstia de salvagdo estava para ser tealizada na nova encarnagao da “Palavra” que, como sugerem as s 1s moedas memoriais, era identificada por eles como so de paz. A partir dali, Deus seria honrado “somente no templo vivo ¢ nos co- ragées dos homens", ¢ no na imagem do sacramento, como colocott um de seus lideres. | © novo movimento, em Manster, dssipou todo e qualquer simbolo e memoria perpetuados pelas imagens, guardifs tio visiveis da tradigio, que se impunham como obsticulo para | um novo comeco. A revolugio em Minster foi um curto episédio ocorrido a beira da via prineipal da Reforma, que foi levada adiante pelas alas luterana ¢ calvinista, chegando aos Paises Baixos, em 1566. Também em outros lugares, a autodeterminagao religiosa foi acoplada & autode- terminagio politica; uma forma de emancipacio raramente se encetrava com a chegada de a outra. Com a remogio das imagens, desenvolveuse uma crise na maneira como a ordem antiga - dominada pela Igreja e os proprietérios de terras ~ apresentavase. Buscavamse a novas formas de manifestacdo ptiblica. Quanto mais problematica ficava a esfera publica, 1 mais rapidamente se desenvolvia a esfera privada, entio apenas um fendmeno recente. Em Genebra, a quebra de imagens, realizada no dia 8 de agosto de 1535, foi o evento culminante para a consolidagio da Reforma. Os novos pregadores tomaiam ov eunuule assim que 0 bispo foi deposto de sua posicio de governante da cidade. Calvino se juntou | a cles, em 1536, embora sé tenha conseguido fundar um regime teocrético na cidade em 1541, depois da derrubada das antigas fronteiras entre a vida secular e a vida eclesiastica. A nova era, tendo seu inicio marcado pela purificagio das igrejas, foi celebrada com uma 279 placa quadrada de bronze (medindo 99cm?), que permaneceu afixada 4 parede do prédio da prefeitura até 1798: No ano de 1535, foi derrubada a tirania do Anticristo Romano. Repudiamos a superstigio e restituimos a religito sacrossanta de Cristo a seu estado original, © sua Igreja a uma melhor ordem. Nao foi sem um milagre do céu que a cidade, ccujos inimigos expulsamos, teve restaurada a sua liberdade. O Senado e 0 povo de Genebra erigiram este monumento neste local para a meméria eterna. Que sirva de testemunho perante seus descendentes da gratidéo demonstrada a Deus. Omonumento, uma inscrigao em latim cléssico, no estilo da Antiguidade, é uma espécie ‘one da Palavra”, traz uma meméria verbal, em oposigo.& meméria investida de ima- de gens. E também, ao mesmo tempo, um manifesto da culrara humanista, em quea mente, re- presentada pela palavra, triunfaria sobre a matéria ea “imagem exterior”. A inscrigdo exprimia avitéria do “iluminismo” ¢ o desejo de autodeterminagio religiosa, em formato de proclama- io eem tom de lei, obrigando a todos ~ pregadores, pardquia e cidade ~ a palavra de Deus. ARIE DA MCE . 583 A teligiao era presente e visivel por meio da palavra da Biblia, tanto na vida publica como era proibida na “teligio calvinista”, como € denominada em uma gravura origindria dos Paises Baixos. A inscrico civica fixa na privada, Toda e qualquer representagio por image a inauguragio de uma nova era na memoria coletiva, A destrnigfo das imagens (¢ nfo a introducio da Reforma, trés anos antes) marcou a data oficial As formas assumidas pela iconoclasta, és vezes, revelam os motivos por tris desses atos. O cronista Fizion de Reutlingen descreve como a principal igreja da cidade foi “inteiramente purificada de sua substincia supersticiosa eda idolatria papista”, em 1531. Também os altares foram destruidos, ¢ “as imagens derrubadas com escatnio”.* Dois motivos sobressaiam: 0 primeito, demonstrar a impoténcia das imagens, a que antes se atribuira muito podex; 0 segundo, expor as antigas instituicdes, em particular a Igreja Romana, que tentara exercer seu poder sobre o povo por intermédio de tais imagens ineficazes ‘Além da simples remogii das imagens, outro recurso foi deixitlas onde estavam e que- brar seus rostos e mos, destituindo-as das caracteristicas fisicas que tanto impressionavam as pessoas. Se as imagens deixavam passar tal sacrilégio impunemente, ento ficava com- provada de modo claro a sua impoténcia. Zombar delas era, is vezes, mais importante do que removélas. A exposigo das instituigBes que haviam administrado as imagens, as vezes, tomavaa forma de punigdo por procuracio, ineffigie. Se os culpados nao eram encontrados, transferia-se o ressentimento para as imagens por eles deixadas. A antiga Igreja passou.a ser castigada por meio das imagens de culto. Vor vezes, realizavam-se atos ritualisticos, empre- gando métodos de puniggo comuns na época. Se uma imagem era deixada de pé mutilada e escarnecida, como uma caricatura de si mesma, todos que haviam crescido respeitandoa podiam lembrarse de forma bastante vivida de sua liberdade recémadquirida. A Iereja Romana, alvo da iconoclastia, recebeu mais ataques por meio de panfletos satiricos. A melhor maneira de desmascarar o “erro” de Roma era denunciar o culto is imagens ¢ relfquias como uma recaida no paganismo. Este ataque era particularmente eficaz quando os supostos paralelos eram tirados do judaismo, para o qual todo e qualquer culto | a imagens era uma aberragio da fé verdadeira, sendo imediatamente punida por Jeova. AA idolatria a que Salomao foi seduzido pelas mulheres estrangeiras era um exemplo muito | ilustrativo.” Vista sob esta luz, a Reforma foi um retorno A verdadeira fe, como aquela que se seguira a todos os castigos lancados por Jeova aos judeus no Antigo Testamento. O que acontecia com a Igreja de Roma nas maos dos iconoclastas, a se seguir a logica dos panfletos, ra apenas mais uma ligio da historia, | Lutero tinha ainda outras reservas com respeito is imagens, vendoas como simbolos da falsa doutrina da justificagio pelas obras. Considerava “mau uso” colocar uma imagem em uma igreja e alegar que, com isso, se estivesse “oferecendo um bom servigo e uma boa cobra a Deus, o que é verdadeiramente uma idolatria”. Mas Lutero também guatdava re- servas sabre a violenta remogio das imagens. Era, a seu ver, comparével a uma semelhante 584 . sewetaanca € RESENGA Din-ubr-Gekat. vilencanbre cite om cee ng nas aa E >a COG soe Payer cee Us 280, Altar, 1537. Dinkelsbohl, Congregacio Evangelica Lurerana ACRISE DA DADAM. 585 justificagdo pelas obras, como se a destruigio de imagens fosse em si uma boa acao. Nao seria mais esclarecido deixar as imagens onde estavarn, mas nfo mais tezar diante delas? “Devemnos persuadir as pessoas pela palavra a ndo mais confiarem nelas. Pois o coracio deve saber que nada poderd ajudélo (..) exceto a graca e a bondade de Deus”. Era sobretudo o moralista que se agitava agora dentro de Lutero, que via a iconodlastia com suspeita, como um desvio da tarefa de renovagio moral. “Seguindo tais leis, eles eliminam as imagens ‘externas enquanto, a0 mesmo tempo, preenchem seus corages com idolos” (texto 39B). ‘Os verdadeiros idolos sio 0s vicios dos homens e mulheres. ‘Um panfleto ilustrado com uma xilogravura de Ethard Schoen e publicado em torne 281 de 1530, alguns anos apés os sermdes de Lutero, leva adiante o argumento desse moralista Lamento da Perseguicdo dos Pobres [dolos e Imagens do Templo 6 um longo texto com 383 versos seis colunas em que as imagens rejeitam a sua punicao, porque os mesmos seres huma- ‘nos que agora as punem, antes as tinham erigido ¢ venerado." A xilogravura destaca um contraste, como é comum nas imagens polémicas da época, entre a remogio das imagens das igrejas e a arrogincia dos iconoclastas, cercados de vinho, mulheres ¢ dinheito, que go véem a viga em seus préprios olhos (Mat. 7:3). Apés a queima dos supostos idolos, os verdadeiros idolos passam a ser venerados com uma consciéncia maiot ainda. No texto do panfleto, as imagens fazem uma confissio que também desnuda os seres humanos que as denunciam. Como imagens, teriam “um aspecto tio belo” que poderiam ser consideradas vumo “o proprio Deus", dando ouvidos ao clamor e as stiplicas de todos. Mas af segue a acusacdo dos acusados: “Vocés, que agora riem de nés, fizeram-nos idolos Nao poderemos jamais ser curados, enquanto voces continuam com suas farsas”. Os “tantos ¢ incontiveis” verdadeiros idolos que tegem as pessoas sAo os jt bem conhecidos pecados ‘mortais, que continuam a existir sob a nova doutrina. Essa critica & iconoclastia ¢ mais radical do que a iconoclastia em si. A perda de poder das imagens, que nao mais poderiam oferecera selvagio, devolveu as pessoasa si mesmas. As imagens ¢eram sua obra eo culto a elas, eu erro. As pessoas permianeciam as mesmas, caso se desfisessem ‘ou néo das imagens, que forneciam apenas a aparéncia externa de suas imagens interiores. A ‘moral é dbvia, como o virmsoso que se torna a tiica verdadeira imagem de Deus que pode existir na Terra. O argumento teolégico, entretanto, aponta para além das esferas religiosa e ética. Na era moderna, os sujeitos permanecem a.s6s consigo mesmos, Podem inventar uma imagem, mas la no contém nenhuma verdade além da que the é investida por eles mesmos. b, Imagem e Palavra na Nova Doutrina Em 1525, osartistas de Estrasburgo enviaram uma petigfo ao governo da cidade, pedindo ajuda para alterar a sua profissio, a que ficaram sem trabalho desde que “o respeito pelas imagens fora relegado pela palavra de Deus” A Reforma ensinou o dominio da Palavra, que suprimia todos 0s outros signos religiosos. O cristianismo sempre fora a Revelacio por meio ete dda Palavra, mas agora esta era investida de um monopélio ¢ de uma aura sem precedentes. ‘final, os novos pregadores s6 tinham a palavra das Sagradas Escricuras e nenhuma outra azutoridade para praticar uma religito sem a instituiglo da Igreja Eles queriam, por assim dizer, redescobrir 0 som primal da Palavra, livre de toda a escéria e ertos do papismo, e pregéla as suas congregacdes. “Pois na Palavra esta toda a nossa base, protegio e defesa contra todos os errose tenta es”, como afirma Lutero em seu Grande Catecismo .“O reino de Deus éum reino para se ouvir, nfo para ver”, anuncia ele em outro ponto. “A palavra de Deus, corretamente compreendida”, como diz ele em suas Conversas a Mesa, “6 a base da fé(..) Aquele que a tem pura ¢ nfo filsificada pode (..) triunfar sobre todas as portas do inferno”. Na época de Gutenberg, a palavra estava presente em todo lugar. A nova cultura huma: rita luctou com isso, pois defendeu o reino do espitito por meio do espelho da palavra. A nova filologia concentrou seus esforcos no trabalho de decifrar os verdadeiros textos dos autores da Antiguidade, Os humanistas queriam entender sua verdade, da mesma forma como os tedlogos buscavam a verdade da Biblia. Como ferramenta de argumentasa0 racional, a palavra era o reftgio do sujeito pensante, que nfo mais confiava na aparéncia superficial do mundo visual, mas queria captar a verdade somente em conceitos abstraros Esses intelectuais enfatizavam que um pintor s6 pode representar 0 seu corpo, mas que “a melhor imagem [dessas pessoas] & expressa nos livros” que elas escrevern. Assim escreveu Erasmo para o eleitor de Brandenburg a0 enviardhe o medalhao con- feccionado por Quentin Massys com seu retrato." A inscrigo na pritneira gravura feita por Cranach representando Lutero, naquele mesmo ano, contrasta as “caracteristicas mortais", sgravadas por Cranach, com a “imagem eterna de sua mente”, que somente o proprio Lu: tero poderia exprimir. Em 1526, Durer encontrou uma formula clés palavra-corpo (escrita) e imagem-corpo (retrato) em sua famosa gravura de Erasmo! que para o dualismo contém, na verdade, dois retcatos diferentes do mesmo académico. © painel com a inscris 0 rranscende a “semelhanca corporal da vida", usando a “melhor {imagem} na escrita”. E este painel que Datrer assina, como também foi sua a idéia de representar a petsonalidade espi também os pintores tinham de praticar uma espécie de “discurso indireto” ao usar o sujeito itual ou intelectual do erudito mediante uma metéfora pictorica adequada. Agora, Jhumano como tema de uma pintura ou ao dirigirse ao sujeito (o contemplador). A palavra cescrita tinha mais peso do que qualquer imagem pintada ou esculpida. Na teologia, a palavra tem o mais alto status, como palavra de Deus. Qualquer discussio em torno disso traz a questio de seu papel na Revelacio ~ a questao se Deus estabeleceu outro meio que nao a palavra para © encontrarmos. A resposta a essa questo necessaria- ‘mente incluitia ou excluiria a imagem pintada tanto quanto a “imagem” dos sacramento A controvérsia sobte a Ultima Ceia trouxe a0 primeiro plano esta questio fundamental. Lutero permanecen fiel a Sto. Agostinho, acreditando que a Palavra tem poder suficiente para “transformar o elemento em sacramento”, 0 pio em Corpo de Cristo. Em contraste, 282 ser 588 . SeMELHANGA & PRESENCA 1 para Calvino, o pao € apenas um signo, que, como todos os outros signos, jamais poder transformarse naquilo que meramente significa, Portanto, o Corpo de Cristo é apenas uma | “figura de discurso” (textos 40, ll e 41, ID. Essa divergéncia é de fundamental importincia Calvino nao permitia @ qualquer simbolo uma autoridade equiparavel a da Palavra. Lutero | reconhecia somente os “signos corpéreos" nos quais Deus se manifestava, além da “palavra de boca do Evangelho”, incluindo entre os signos corpéreos o “batismo e 0 sacramento” | (ibid), A palavra era um dentre varios meios de se vivenciar a fé, 0 que nos leva de volta 4 imagem pintada j Calvino, em contraste, nao permitia nenhuma infsagio do monopélio da palavra. Somente ela nos permite ver “Deus como em um espelho”. © tinico problema era como se dava a unio entre espirito e Palavra. Para Calvino, a promessa de Deus eta suficiente para crer que o espirito estava presente em Sua palavra. Ele rejeitava as imagens de Deus de forma radical, considerandoas criminosas, por usurparem de maneira voluntatiosa € disparatada o diteito da Palavra de incorporar o espirito. Para ele, a separacio entre Deus 0 mundo, entre espirito € matéria, era irreversivel, sendo o espirito insensivel a toda e qualquer experiéncia sensorial ou pessoal. As imagens poderiam ser usadas fora da religiéo, ou para instrugio, quando adotassem um modo didtico e narrativo, ou ainda para deleite, quando representassemn a naturesa visivel (texto 4, Le V). Lutero, entretanto, nao via nenhum problema filoséfico nas imagens. Para ele, uma imagem era um meio para wm fim, que os contempladores iluminados poderiam escolher por si mesmos. As imagens eram “desnecessérias, porém livres” (texto 40, I). Boccaccio, | no epilogo de seu Decameron, refletira que suas historias poderiam “ser prejudiciais ou pro- veitosas, conforme a qualidade do leitor”, mas que ndo eram boas ou ruins ern si mesmas, Lutero aplicou essa aboragem pragmitica as imagens religiosas, apesar de ter sido logo forgado a apresentar exemplos de seus efeitos benéficos. Ao representatem eventos da Biblia, as imagens trazem uma fungdo narrativa ¢ instru tiva, da mesma maneira que um texto biblico. A imagem narrativa é, assim, uma alternativa accitivel a imagem de culto proibida. “Considero mesmo que as imagens das Sagradas Escrituras ou as que representam boas hist6rias sejam quase titeis”, disse, uma vez que nos Jembram, como os textos biblicos, da salvacio divina. No entanto, crucifixos e imagens de santos estavam também entre as imagens permitidas, que Lutero chamava de imagens da “meméria ou de testemunho”. Ele permitia as imagens em que “apenas a historia passada € 08 objetos podern ser vistos como em um espelho”, tanto como os “signos nas moedas”, 20 passo que Calvino permitia somente um espelho de Deus: a Palavra A pintura biblica permitida por Lutero nao se tratava de um fen6meno recente; ja fora | usada até mesmo na Igreja Romana, sem exageros. Lutero, entretanto, introduziu distingdes sutis, que tinham de ser observadas com cautela. Para comecar, ele nao permitia que esse género de imagens fosse visto em igrejas, apenas em “salas ¢ cdmaras” ptivadas, Também | AcRwe pa macRa «589 queria que fossem acrescentadas “legendas” as imagens ~ isto é citagées biblicas, de forma que, por intermédio de suas palaveas auténticas, “a obra e a palavra de Deus pudessem ser vistas sempre e & nossa frente” (texto 40, Le Il). Assim, alegava, a imagem pintada acuatia como ilustragio da palavra ou dos feitos de Deus, registrados pela palavra, Na pritica, como nas pinturas produzidas na oficina de Cranach, as parabolas de Cristo e os incidentes de sia vida eram os principais motives das pinturas, A historia da mulher adiltera, por exemplo, iluserava a misericordia que Deus oferece aos que créem n’Ele. A fé na Palavra manteve a sua prioridade, pois ela nao deixava qualquer divida, sendo controlar se algo era verdadeiro ou falso. As imagens, pelo contritio, eram terreno poss incerto até que a Igreja protestante viesse a explorar uma arte que fosse sua prépria. Na corte saxénica, que continuava a encomendar as antigas imagens devocionais, o eleitor, de inicio, empregava uma afirmacao da palavra de Deus como legenda de suas moedas. Demonstrou visivel apoio & Reforma ao utilizar o monograma VDMIE (Verbum Domini ‘manet in etemnum) do texto em latim da Primeira Epistola de Sao Pedro: “A palavra do Senhor perdura para sempre”. Em 1522, foi introduzida a “xima” (.e. acrOnimo) nos bordados das vestimentas de inverno, “Hla cinco anos,” escreve o cronista, “o venerdvel doutor Martinho Lutero de Wittenberg comecou a eserever e pregar, tendo restaurado a luz do dia a santa palavra de Deus”. O acrdnimo VDMIE, que mais tarde passou a adornar o portal do castelo de Dresden, era uma {6rmula que invocava a palavra como tilcimo reftigio em uma época de incertezas, Em 1537, foi encomendado um simples painel contendo escritos como uma das primeiras pecas destinadas para o altar servindo & nova doutrina, para a Spitalskirche, em Dinkelsbithl.® Um retébulo sem pinturas, sem imagens? O formato do triptico vem da 280 tradigfo da imagem pintada, sendo sua auséncia sublinhada de modo polémico, substituida pelo texto escrito. Textos antes lidos em livros passam a ser exibidos no lugar previamente cocupado pela imagem, o altar, e demandam.o mesmo tipo de veneracio. O triptico é fechado ro seu topo por um pedimento semicircular omamentado com conchas. Altares como este ddevern ter sido bastante comuns. Karel van Mander relatou dos Paises Baixos que um tiptico feito por Hugo van der Goes, representando a Crucificacko, teve pintados sobre ele os Dez Mandamentos." © ato em si é a demonstragio grifica da antitese entre texto e imagem. A Palavra divina, como ensinou Lutero, foi entregue na “let” do Antigo Testamento ena “graca” do Novo Testamento, dat o texto contendo as palavras da Ultima Ceia estar ladeado, no altar de DinkelsbUhl, pelo texto do Decélogo de Moisés. A doutrina de Lucero, da lei e do Evangelho, pretendia distinguir a dupla natureza da palavra erelacionar os dois aspectos um para com o outro: um ameaga, enquanto o outro conforta. Nao podemos cumprit as cexigéncias da lei, Portanto, somos incapazes de nos justificar perante Deus usando nossos préptios recursos; assim, somos levados até o ponto da morte. Somente quando nos dermos conta de que nossos proprios recursos nao sio suficientes, poderemos entender, por meio 590 SEMELHANCA & PRESEIICA 283 283 da fe, que ja temos justificagio em Cristo. Depois da lei, a graga se encarrega. A doutrina de justificagao de Lutero deu origem a uma nova maneira de representar a palavra de Deus em Dinkelsbahl,” maneira esta que encontra eco nos dois painéis do Decilogo Desde 1529, a oficina de Cranach tratava o mesmo tema da lei e da graca nas pintu- ras, mas estas ndo eram feitas para igrejas. Nessa perspectiva, o altar de Dinkelsbuhl é um cortetivo aplicado pela palavra pura imagem duvidosa e no confisvel. Em Wittenberg, Lutero 0 pintor, amigos, comecaram a desenvolver uma imagem diditica da lei e da graca. As inumeras verses do tema, em que 0 “texto visual” & reescrito diversas vezes, revelam ‘um dilogo continuo entre os dois amigos, buscando persistentemente a solugio ideal. © painel contendo imagens ¢ tratado como um texto - emendado, editado ¢ burilado. A empreitada é nitidamente uma tentativa de elaboragio de um modelo para 0 novo género da imagem didatica protestante ‘Vou me restringir aqui a versio de Gotha, que existe em uma xilogravura ¢ em varies pinturas,” embora estas tragam relevantes vatiagdes de detalhes. A propria forma da imagem convida a uma abordagem pela leitura, E dividida no centro, como as paginas de um livro aberto, por uma érvore, com folhagens somente no lado da graga. A estrutura bipartida da imagem € usada para mostrar a antitese entre lei e graca. E, na realidade, constiruida de duas imagens conflitantes, que o contemplador deve comparar ¢ contrastar, sendo levado altemar seu olhar de uma imagem para a outra, como se fossem textos apresentando dife- rentes propostas, ¢ fazer a associaciio entre os dois aspectos da palavra de Deus. A esquerda, co pecador Adio, sob a nuvem ameacadora do Juizo Final, ¢ levado para a morte e 0 inferno. A diteita, guiado por Joao Batista, Ado se volta, pleno de fé, para o Redentor na cruz, que 8.0 terd livrado do pecado e da morte. utero via Jodo Batista como um “mediador entre Moisés e Cristo” que, em sua pre- gacio, “infundiu 2 letra com o espitito e reuniu a lei e o Evangelho”. Assim, “na lei esté a morte, em Cristo, a vida. A lei langa ao inferno ¢ mata. Cristo eleva ao céu e faz viver” Essa teologia ¢ estabelecida na pintura. O contemplador vé, nao uma figura natural, que atrai a sua empatia, mas sim uma tese pictdrica que apela a razio. O espago nio é trabalhado para ctiar a ilusio de realidade; a composicéo em duas partes € composta sinteticamente dos “conceitos pictéricos” comuns as alegorias. As legendas, na patte inferior, so um complemento do argumento do quadro. Nos grandes altares produzidos na Saxénia, apds 1539, a alegoria diditica foi adotada somente com uma certa hesitacéo, em um papel subsidiatio, Neles, os sacramentos atraem 0 olhar com sua simplicidade robusta. Em Schneeberg (1539) ¢ Weimar (1555), a Crucificagao aponta para a Eucaristia que, em Wittenberg (1547), forma a peca central, juntamente com tema da Ultima Ceia, sendo emoldurada nas laterais pelo batismo e a confisséo.® Crana- ch, portanto, retratou precisamente os sacramentos que Luteto, como jé vimos, considerava come “signos corporeos” da presenga de Deus na Igreja. A presenga das imagens no altar exis pa MATE «591 284, Lucas Cranach, Senior, altarmot, rela, 1547, Wirtenberg, gris municipal S92. SEMELHANGA & PRESENGA 284 é justificada pelo fato de que s6 vepresentam o que Deus estabeleceu como as transagbes visiveis da {6 Melanchthon e Bugenhagen, que ministram o batismo e a confissio na pin- tura, atuavam na época na mesma pardquia que havia encomendado o altar. O retibulo deveria, portanto, ser compreendido como uma demonstragio doutrindria, As pessoas da 4p0ca nao teriam encontrado um uso para uma imagem de culto. Na predella, que em Wittenberg ¢ unida ao altar, Lutero aparece em pessoa perante a congregacio, No lugar que era ocupado, na tradicao catélica, por retratos de doadores, que, assim, alegavam estar justificando suas obras, vemos agora tipos ou exemplos ilustra- tivos do officio do pregador. Isto também se aplica ao crucifixo no centro, a frente do qual Lutero se posiciona para fazer a sua pregacao. A cruz é 0 contetido da mensagem proclamada pela Palavra, o meio mediante o qual podese alcangar a fé genuina. Somen- te a crenga no Redentor na cruz pode justificar o cristio. O crucifixo é, portanto, uma cespécie de signo pictérico ou contetide visivel da palavra do sermao. A subordinagéo da imagem 20 texto ¢ & Palavra no poderia ter melhor expressio grifica. A imagem é uma entidade a ser lida como um texto, investida de uma autoridade de segunda mio que lhe € repassada pela Palavra, Trés anos antes, em 5 de outubro de 1544, Lutero, pessoalmente, consagrara a capela de ‘Schloss Hartenfels, em Torgau, a primeira igreja com interior genuinamente protestante; ¢ foo proprio Lutero quem decidiu sobre todas as imagens e o arranjo litirgico. Ele pregou de um pulpito que guardava impressionante semelhanca com o do altar de Wittenberg, com a excecio de que este trazia trés relevos mostrando Jesus no templo aos 12 anos, a adultera perante Cristo e a expulsio dos comerciantes do templo - representando os temas dda doutrina, graca ¢ justica, que eram os temas de seus sermées. O pregador expressou também o desejo de que na nova capela “nada acontecesse, que nfo fosse 0 nosso amado Senhor falando a nés por meio de Sua santa Palavra”.™ c. Imagem e Arte na Pintura Renascentista A casa de Lucas Cranach estava de luto, apés a chegada da noticia da morte de seu filho Hans, na Ieélia. © pintor enviara o filho para o sul a fim de aprender a nova arte da piotura agora se repreendia por ter atraido a si mesmo o castigo de Deus (a Ttilia era o lar dos papistas). Neste ponto, Lutero entrou na casa ¢ consolou o velho amigo. Se Cranach carregava a culpa pela morte do filho, “entio eu seria tao culpado quanto voeé, pois tam- bérm o aconselhel firmemente a fazer a viagem” 2 Vemos que o grande reformador sabia distinguir muito bem questées ligadas a religio daquelas ligadas & arte. As artes da Antiguidade “voltaram a luz por meio dos italianos, como afirma Direr em seu Manual do pintor (ou Tratado sobre a medigdo). © artista de Nuremberg fora duas ‘vezes 8 Ica; I aprendera que a pintura podia ser ensinada seguindose regras, como uma cigncia. Em 7 de fevereiro de 1506, ele escreveu de Veneza a Willibald Pirckheimer con- tando que estava cercado de “connaisseurs da pintura”. Também havia os colegas invejosos, criticos de seu trabalho, os quais argumentavam que “néo seguia o estilo antigo, logo néo era bom? Jacopo de’ Barbari, pintor veneziano que se encontrava em Nuremberg, na época, candidatouse a um cargo na corte do eleitor da Sax6nia com um tratado em que estabelecia uma teoria da arte da pintura (texto 42A). A medida que caiam em desgraga, as imagens passavam a ser justificadas como obras, de arte, Nao padendo mais ust las da forma antiga, ce uma maneira mais direta, as pes- 008 p profi Manual, Diiret argumentava que “a pintura por si s6 provoca o prazer € nfo 0 rormento ou savam a querer apreciélas com os olhos do pintor, testando seu préprio gosto. A jonalizacio da pintura eo novo mercado resultante mudarain a situagao. Em seu a opresstio", desde que seja pintada de acordo com as regras da arte (texto 42C). Ble passara 1 comercializar suas obras, que agora as pessoas colecionavam ni apenas as suas imagens devocionais, mas também outras pinturas suas. A temitica dos antigos fcones ainda tinha demanda, caso fossem produtidos com profissionalismo, como podemos inferir de uma nota de seu ditio nos Pafses Baixos: “Pintei uma boa Verdnica a dleo, que vale 12 florins. ‘Deiaa Francisco, o agente de Portugal. Em seguida, pintei outra Verénica, também a dleo, mas melhor do que a primeira e a dei ao agente Brandan, de Portugal?.” A teoria da pincura comecou a ser desenvolvida na Itélia. Leon Battista Alberti, enci- clopedista cosmopolita, escreveu sobre tudo o que se possa conceber, mas nada teve tanto suicesso quanto a pintura, j4 que nada de grande relevancia fora eserito sobre o tema desde a Antiguidade. A diferenca entre seu compéndio sobre pintura (1435) eos livros produzidos na oficina de Cennino Cennini (por volta de 1390) é otvia. Embora Alberti nfo tenha Inaugurado a teoria da pintura, ofereceu aos artistas e connaisseurs um texto de referénecia © contetido do liveo era menos importante que o fato mesmo de existir, pois elevava a pintura ao status de uma ciéncia entre as “artes liberais” ‘Anteriormente, a imagem fora designada como uma realidade especial e tomada literal: ‘mente, como uma manifestacio visivel da pessoa sagrada, Agora, ela estava, sobretudo, sujeita as leis gerais da natureza, incluindo a ética, sendo, portanto, inteiramente designada para o mundo da percepgio dos sentidos ~ as mesmas leis se aplicariam tanto & imagem quanto & percepsio natural do mundo exterior. Blase tomou uma janela simulada, na qual ow um santo ou um membro da familia poderiam aparecer como num retrato. Além disso, a nova imagem estava entregue a artistas, de quem se esperava que criassem a partir de sua “fantasia”. Nessa perspectiva, uma obra era a idéia ou invencio de um artista, que também fornecia 0 padsio pata sua avaliagio. Com sua referéncia dupla & imitagio (da natureza) ¢ & imaginagio (do artista), a nova imagem exigia uma compreensio da arte, Como os poetas, os artistas tinbam licenga para controlar o tema de seu trabalho; entretanto, em stia representacio, estavam pesos is regras da natureza. Savonarola, que conhecia mais sobre arte do que geralmente se acredita, resumiu tudo isso a0 dizer em um sermio: “Poclemos dizer que todo pintor pinta, 593 594. SEMELHANGA & FRESENCA na verdade, a si préprio. Enquanto pintor, ele pinta de acordo com sua propria idéia”. Quando Rafael morreu, Vasari declarou: “a pintura pode também ter morrido. Quando le fechou os olhos, ela ficou cega”. A tltima obra de Rafael, a maravithosa Transfiguragao ; de Cristo, foi montada atrés de seu ataide, “e a imagem parecia viva, embora seu criador 7 estivesse agora morto”. Nada poderia expressar com maior clareza o quanto a imagem. passara a ser a obra do artista e uma manifestacio da arte. No tratado sobre pintura deixado por Leonardo ao morrer, ele reclamava que os 4 pintores escreviam muito pouco sobre a pintura e que os escritores nada sabiam sobre ela 3 Seu primeiro objetivo com essa observacio foi ver a pintura aceita como scientia entre as “aztes que podem ser aprendidas”.” Nenhum argument era de dificil compreensio, desde que servisse a esse fim. A antiga imagem de culto fora usada como evidéncia de que Deus escolhera a pintura para representé-Lo perante a humanidade (texto 42E). Em sua obra Vidas, sobre biografias de artistas, Vasari usou com entusiasmo uma lenda sobre a pintura dde Rafael em que Jesus carrega a cruz, o Spasimo, atualmente em Madri, para explicar a fama e o culto as antigas imagens miraculosas em termos da arte. A pintura, que néo gora de grande prestigio hoje em dia, afundou junto com o navio que a transportava na traves- sia para Palermo, mas, levada pela maré, chegou A margem intacta em sua embalagem, a “unica pesa de carga a sobreviver a0 naufiigio. “Foi pescada da égua [na costa de Génoval ¢ identificada como obra divina, dai ter escapado ilesa. Até mesmo os ventos enfurecidos ¢ 0 mar bravio demonstraram respeito pela beleza de tal obra”. A partir de entio, a obra ficou tio famosa que, em Palermo, “obscurecia até mesmo 0 vuleao”, Savonarola, que via a arte como simbolo de superficialidade, em contradigio com a © apelo cristio por simplicidade, deplorava o novo interesse por ela como um desvio do caminho da verdade. “Darlhesei um conselho. Evitem as obras de arte, consideradas riquezas mundanas. Hoje elas sio forjadas para igrejas, com tal arte e a um prego to alto, que eclipsam a luz de Deus”, tentando-nos “a contemplar nelas, nao Deus, ¢ sim a arte” Deverfase admirar Deus, que criow as belezas do mundo, e nao o artista, que meramente 28 copia. Foi um erro, afirma ele, procurar a imagem do artista na obra, em vez de ver nela a imagem de Deus. Ocasionalmente, ¢ contanto que seu tema fosse suficientemente devoto, uma grande obra de arte tinha 0 mesmo sucesso de piblico da antiga imagem cultuada, muitas vezes com considerivel lucro econémico. Vasari comenta, nao sem ume itonia velada, que a pintura iconica de meio-corpo de Cristo carregando a cruz na igreja de Sie Rocco foi “a imagem mais venerada de Veneza até os dias de hoje. Tirou mais dinheiro em oferendas dos figis do que Ticiano e Giorgione ganharam em suas vidas inteiras” > Todos esses exemplos iluminam aspectos de um processo em grande escala, dificil de redusir a uma formula facil, Para fazer um uso diferente da frase de Lutero ha, agora, “dois tipos de imagens” ou imagens com duas faces diferentes. Ha também dois tipos de temas ~ Acre Da maNTIO « 595; 6s velhos temas das imagens devacionais ¢ os novos, de mitologia e alegoria, que se alegava serem obras de arte desde os primérdios. O fato de Venus e Cupido serem mostrados num tipo de painel que anteriormente fora monopélio dos santos s6 podia ser justificado dando ‘arte a mesma liberdade que & poesia para criar ficgio e belas ihusSes. Uma imagem de ‘Venus que nao fosse uma obra de arte seria uma absoluta tolice. Os novos temas, que nao tinham realidade propria, no sentido literal, agora afetavam ‘© modo como as imagens eram vistas. Se 0 que eles descreviam se baseava em ficeio, os temas mais antigos (imagens de santos e retratos), que eram interpretados literalmente, nfo \ podiam continuar livres da ambiguidade. Artista e contemplador concordavam duplamente quando a pintura representava tanto 2s leis da percepcéo quanto uma idéia original - isto 6 quando era igualmente bela e profunda, Os historiadores de arte costumam softer de cegueira profissional a respeito desse processo. Ou eles ignoram a crise da imagem aqui delineada, ou véem o surgimento da nova imagem como o real inicio da historia da arte. A partir de agora, buscaremos, por uma via de estudos ainda nfo trithada e com a ajuda de exemplos vigorosos, a mudanga no conceito da imagem. Os artistas se viam levados por novos argumentos quando tentavam, apresentar suas obras como resultantes de um coneeito estético. A imagem se tornou um objeto de reflexao t20 logo convidou 0 contemplador a nao considerar literalmente seu ‘tema, mas sim a procurar a idéia artistica por tris da obra. primeiro exemplo data aproximadamente do tempo da segunda estada de Darer, “6 muito velho, embora ainda o melhor pintor”. © painel de Bellini da Virgem sentada 285 ‘em um gramado ou prado (em italiano, prato) representa o tipo de obra que deu forma a0 | | em Veneza. La, ele encontra Giovanni Bellini, que, como Dairer registrou em uma carta, | julgamento de Darer. Em oposicio a uma arte dominada por Giorgione ea “nova” geracéo, | esta obra tenta a sintese entre o velho icone e o novo tipo de “poesia pintada”.** A Madona, mesmo mostrada de corpo inteiro, é vista em um closeup caracteristico do | icone de meio-corpo. O Menino Jesus, adormecido, é uma excecéo na tradicao do icone 1 matiano, pois ele nao fala a0 contemplador ¢ este também nao pode a ele se dirigir. O i sono é uma metifora da Paixao e da morte, da qual o Filho de Deus ressuscitara. © sono do Menino Jesus se relaciona com o ciclo da natureza, que desperta para uma nova vida na | ugem, €a época eclesiéstica da Paixio ¢ da Ressurreicéo, Assim, a paisagem na pintura é mais do que um meto pano de fundo: primavera. O infcio da primavera, que domina a pai contém o argumento de que o mistério cristio esta em harmonia com o ciclo da natureza A interrelacdo entre figuras e paisagens provoca o tipo de resposta que é fundamental para 8 compreensio da pintura, o tema duplo do qual se prova ser uma idéia singular quando vista em um nivel metaférico © contemplador instruido poderia rapidamente reconhecer que os temas de paisagens € : agricultura foram todos retirados da celebracio de Virgilio da vida rural em Geérgicase, portanto, 596 « SEMELEANGA © PRESENCA 285. Giovanni Bellini, Madonna del Prato, ea. 1505. Londres, National Gallery Acase pi nace . 597 ceram caracteristicos da arte poética. Bellini, na realidade, ndo tinh necessidade de citar poesia, pois era capas de descrever uma paisagem sem ajuda. Mas a experiéncia de Virglio com a natu- reza no continente veneziano, também sua terra natal, era ainda tio vilida e disponivel quanto no presente, Seus temas integram a tivalidade entre pintura e poesia, jd que a natureza é 0 tema comurn das duas. Tl ivalidade envolvia a retrospectiva da Antiguidade que, por sua vez, também estabeleceu um padrdo para a poesia, A pintura, portanto, antecipa um argumento, revelando seu cardter como obra de arte, O que era um tema piedoso e ndo ambfguo para um observador superficial, para um bem informado provava set uma definigo pintada da pintura. | Os pintores holandeses e flamengos, que retornavam da Itélia por volta da mesma época, seguiam um caminho semelhante, mas podiam, além disso, apresentar a arte de pintar como tuma importacio do Sul. Hi um exemplo revelador no Metropolitan Museum, de Nova York, da autoria de Joos van Cleve, que trabalhava em Antuérpia desde 1511." 286 A naturera morta que chama a atengio na borda da pintura nio é s6 um motivo novo para | tum fcone, mas & também um simbolo de uma pintura radicalmente diferente que procura | enganar o olho, duplicando objetos reais. Os motivos individuais ainda sio relacionados & Paixio, mas o significado artistico do arranjo, como um todo, recai sobre a correspondéncia do objeto natural com a imagem pintada. Muitos desses motivos jé existiam na antiga pintura neerlandesa, mas nela eles ocortiam isolados, dispersos pelo interior. Sé agora tornamse naturezas mortas que passam, com todo direito, para o primeiro plano como tema per se. Onde essa equagdo mimética é verossimel, a imagem tradicional ~ nesse caso, a figura da Virgem ~ nao mais poderia sustentar a impressio familiar de simples visibilidade, A na- tureza morta é a imagem espelhada de objetos naturais no mesmo sentido que a aequalitas agostiniana, mas a figura da Virgem, como uma imago, é uma semelhanga em um sentido diferente ¢ simbélico: 6 uma imagem préexistente, nao uma cdpia de algo da natureza.** Joos van Cleve distinguia a “imagem” da Madona da natureza morta, colocando-a distance | ¢ citando a figura de uma velha pintura que, simbolicamente, representa o verdadeiro | protétipo: nesse caso, a Lucoa Madonna, de Jan van Eyck, em Frankfurt. O pintor nfo era 287 fo tinico naquela época a teproduzir os temas de velhos modelos neerlandeses. A Madona, agora podemos notar, é de fato uma imagem de uma Madona, repetida na nova obra como se a pintura estivesse citando sua propria histéria ‘Ohomem velho que aparece no fundo, diante de uma janela aberta, assimila uma idéia pictérica de Direr, que incorpora uma experiéncia veneziana.” Porém nfo é mais, como na obra anterior, José, da “Sagrada Familia”, mas sim o cliente que encomendow a pintura, que cesta segurando 0 pergaminho de oragées, deixando ver 86 0 final da Ave Maria e 0 comeso | do Magnificat. A figura da Virgem na pineura é aquela que aparece perante seu olho interior, sendo por essa razio que ele tira seus dculos de eitura. Iso finalmente ajuda a excluir qualquer sentido literério da imagem. © duplo enquadramento da figura principal na frente eno fundo no corresponde as leis de espago, como um espectador inexperiente pode supor, mas nos 598 288 289 convida a distinguir entre dois diferentes niveis de percepgio e de realidade, justapostos na pintura, A crise da imagem antiga pode ser constatada na estrutura de miltiplas camadas da pintura, © icone antecessor aparece como uma citagio dentro da eriago modeina do artista; essa aparéncia do passado apresenta qualidades perdidas do “icone piedoso” ¢ evoca a brilhante historia da arte neerlandesa. Na época de van Eyck, 0 arcaismo era a marca que dlistinguia a imagem cultuada (cap. 19d). Em van Cleve, a citagio era parte da justificativa da imagem religiosa como tal. Os “romanistas” dos Paises Baixos herdaram uma dupla tradigio de pintura, j que 0 modelos nativos do legado de van Eyck ¢ Rogier se contrapunham a novos modelos da arte antiga do Sul. Isto também esti expresso no didrio de Daret, quando descreve sua visita a Bruges, em 7 de abril de 152: “Mais tarde, levaram-me a Séo Jacé ¢ me mostraram as deliciosas pinturas de Rogier e Hugo, dois grandes mestres, E entio me mostraram a imagem em alabastro da Virgem na igreja de Nossa Senhora, feita por Michelangelo em Roma’.*® Os pintores muitas vezes tinham dificuldade em coneiliar o estilo italiano com seus modelos nativos. A dualidade que permeia todas as imagens da época surge de forma particularmente dramética nos Paises Baixos. ‘Um icone de Cristo de Jan van Scorel, atualmente em Madei, estemunha vividamente 6 tipo de conflito que os artistas enfrentavam & luz da dupla tradicao.*" A figura em si re- pete o “retrato santo” de van Eyck (cap. 19¢), masa amplia para uma figura de meio-corpo. A face frontal Imovel agora adota um aspecto arcaico, pois van Eyck preservara a qualidade sacra de um icone, ou melhor, de uma reliquia-imagem, de Roma, O novo cendiio é um hibtido de nicho ¢ templo. Na parte inferior, um nicho retangular sustenta a figura como se fosse uma estétua, mas éraso demais para enwolvéla, No topo, o nicho ¢ estendido para dentro de uma estrutura de cornijas ¢ pilares, com varias fileiras com todos os lados aber tos, exibindo o “grotesco” em voga na arte italiana. Um duplo anel de putti cerca 0 Verbo Encarnado com gestos de familiar admiragio, originalmente presentes nos tabernaculos sactamentais de marmore dos primérdios da arte renascentista. A arquitetura, portanto, parece sugerir a idéia de uma casa do sacramento que acomoda, mas néo pode confinar, 0 Corpus Domini. Essa ideia, enquanto trabalha para contrapor 0 abismo entre o antigo icone, agora uma imagem dentro de uma imagem, ¢ a nova criago no espirito da arte “estrangeira” (italiana), a0 mesmo tempo confirma o duplo aspecto de tais imagens. Uma geracio mais tarde, no final de sua vida, Maarten van Heemskerk pintow uma imagem com a qual proclamou a vitoria da teoria italiana de arte na pintura maneirista como um fait accompli. Nenkum outro tema era mais apropriado para esse fim do que Sio Lucas pintando a Madona, pois a lenda de Sio Lucas sempre fora utilizada para demons- tar a aprovacio divina do uso de imagens (cap. 4b). Nos Paises Baixos, desde Rogier van der Weyden, esse tema tinha sido a marca registrada da guilda de pintores. Era, portanto, uma escolha dbvia para Heemstreck promovélo a um programa que explicasse a arte de Aouse pa NAGI. 599 286. Joos van Cleve, Madona com Menino, apés ISLI. Nova York, Meeropolitan Museum of Art 600. SEMELHANGA E PHESENCA 287, Jan van Eye, Lucea Madonna, ca. 1435 (deta the). Frankfurt am Main, Stidelsches Kunstinssicut 288, Jan van Score, Salator Mund, ca. 1520/1530. Madri, Museu do Prado ¥ i ACHE DK MACE. 601 289. Maarten van Heemskerck, Madona de S. Lucas, ca. 1550. Rennes, Muste des Beawe Arte 602 SEAELHADICA E PRESENGA 290 pintar bascada num fundamento tedrico. Em seu grande painel no museu de Rennes, que ficava em exposigio no saguao da prefeitura de Nuremberg até a era napolednica, o artista argumenta que Sio Lucas foi um pintor da Antiguidade que dominara todas as regras da arte. O pintor contemporaneo identificavase com o protétipo do pintordo cristianismo, ‘So Lucas sendo estilisado em um Apeles universal. Os muitos livros espalhados pela sua biblioteca, atributos notaveis de um homem de letras, completam o autoretrato de um artista instruido. A imagem, de fato um tratado pintado sobre a teoria e a pratica da pintura, coloca pintor santo em meio as estétuas antigas no patio da colecio Sassi, em Roma, as quais 0 pré- prio Heemskerck desenhara 20 anos antes, mas que agora repete a partir de uma gravura. No fando, ateés da paleta do pintor, vése Michelangelo esculpindo sozinho uma estitua, perto de uma outra, antiga, que se acreditava, na époc, ser uma Roma. No primeiro plano, a figura ideal de Roma é repetida na Madona, cujo retrato Sio Lucas aparece pintando. A comparacio entre as artes irmis, que Leonardo jé demonstrara ter terminado com a vitoria da pineura sobre a esculeura, nio podia ser levada a termo sem a referéncia @ arte antiga, que fornecia o ideal do disegno.® Mas 0 argumento padecia com o fato de que a arte antiga era conhecida somente por meio da escultura, Mesmo assim, a pintura triunfou, nio sé sobre a escultura, mas sobre a Antiguidade também, Na Madona, que niio posa para Sao Lucas, e sim para nés, a imagem primordial do {cone ¢ igualada com ousadia & imagem ideal da arte. d. A Controvérsia a Respeito da Madona Sistina de Rafael O debate sobre religito ¢ arte, que tomara outro curso nos varios credos durante & époce da Reforma, foi retomado por volta de 1800, quando o Classicismo estava sendo destronado pelo Romantismo. Dessa ver, ele estava focado no significado verdadeiro da pintura renascentista, que tinha um significado diferente para classicistas e romanticos, uma vez que cada qual tinha sua propria idéia de exceléncia artistica. A pintura renascentista no era nada além de clissica, com certera pagi, ou seria também devota? A questi era confusa, ji que as pinturas de igreja pareciam sustentar somente os ideais da arte antiga, como se 0s deuses antigos tivessem sido vestidos com roupas cristis. A controveérsia estava focada na aare de Rafael e em nenhum outro ponto isso se dava ‘com maior veeméncia do que em torno da Madona Sistina. A pintura tivera uma exist8ncia muito obscura até que o tei Augusto IIL, da Saxdnia, adquiriua para as colegGes de Dres den, em 1745. Quando Winckelmann relatou que “connaisseurs ¢ amantes de arte” faciar peregrinagdes a Piacenza para ver a obra, ele provavelmente exagerou, A mais importante dedlaragio foi a sucina observacio de Vasari de que Rafael “pintou o painel do altarmor de Sio Sisto, em Piacenza, que é realmente uma obra sem paralelo”, Para alemies instruidos, que tinham crescido sem a arte catdlica das igrejas, a pineura logo se tornou obraprima definitiva. Winckelmann teve seu quinhio nessa reputagio

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