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OS MOVIMENTOS ARTISTICOS A PARTIR DE 1945 Edward Lucie-Smith 288 ilustragdes, 90 em cores Tradugdo: Céssia Maria Nasser Revisdo da traducdo: Marcelo Brandao Cipolla Martins Fontes Sao Paulo 2006 12. A MELANCOLIA POS-POP Quando se analisam os tipos de arte mais em voga na déca- da de 1990, vé-se ainda a influéncia predominante da arte pop. Trata-se, contudo, de uma arte pop que sofreu notaveis transfor- magoes —j4 nao usa as formas populares com o forte entusiasmo que caracterizou grande parte da arte na década de 1960, quan- do o movimento supostamente estava no auge da transgressao, mas aborda 0 imagindrio da moderna sociedade urbana com um azedume combinado 4 frivolidade melancélica. Isso, em parte, relaciona-se a uma fusdo entre o pop e outros movimentos de arte — por exemplo, a Arte Povera. Mike Kelley (1954-), influente artista da Costa Oeste dos Estados Unidos, é um exemplo. Feitas com brinquedos de segunda mao sujos e manchados, as instala- gies de Kelley foram comparadas, as vezes, aos oratorios popu- lares criados pela gente do povo depois de alguma morte violen- ta, digna de figurar no noticidrio ~ 0 caso mais evidente foi o da princesa Diana. Contudo, seu criador nao as vé nesse contexto quase religioso. Em Eindhoven, na Holanda, o Van Abbemu- seum fez circular um documento na internet vinculado a exposi- cdo de Kelley, em 1997, citando 0 préprio artista: Kelley nao quer produzir sua obra com a atitude racional de um ar- tista adulto que apresenta um problema ¢ depois o soluciona em seu trabalho. A seu ver, o ponto de partida mais produtivo para sua 269 RTIR DE 1945 270, Kaen Kink, OU0Y 4997. obra éaatituce do adolescente, 0 individuo que ainda nao é adul t agride a vida adulta.“Considero a atitude do adotescente do humorista, alguém que conhece as regras mas nao vé m para envolver-se com elas. A adolescéncia € o que mais Em geral, o modernismo valoriza a infancia, a infantilidade o nidade~ algo supostamente anterior a vida adulta. Por ot arte adulta tem que se envolver em questdes de fé e cr tenho fé nem crenga. Por isso, ndo quero criar arte a criar arte adolescente.” Pode-se observar essa rentincia deliberada a respor de adulta na obra de varios artistas que estiveram década de 1990. Karen Kilimnik (1955-), outra a ranean mais discutidas da década na imp Wa-iorquina, apesar de ndo ter nenhuma 1 reconhecivel. Seu sucesso foi conseqiiéncia do f que os criticos descreveram como “abjegao” = ba, ie a lutar por qualquer valor moral ou est tnudos pet8mentos do glamour, ao apresent an Kine fantasias com um grau n we me ae @ mesma via expressa pa i 1g Kulik, Deep into oes profundezes da a IN2S PO sia, 1993 ines, je to ave a Pe A MELANCOLIA POS-POP 255 Por mais diferentes que possam parecer & primeira vista, € Possivel detectar uma ligagao entre o niilismo de Kilimnik e as atitudes de Oleg Kulik (1961-), famoso artista russo pos-peres- troika, ainda que Kulik substitua a fragilidade petulante de Ki- limnik por outras qualidades, fazendo performances violentas e agressivas — numa delas, ficou nu e fingiu ser um cio selvagem e incontrolavel, Além disso, faz fotos e videos que brincam com a idéia do inaceitavel. Em Deep into Russia [Nas profundezas da Riissia] (1993), uma série de fotografias, ele dé a impressao de cometer atos de bestialidade com diversos animais, Sua mulher, a critica Mila Bredikhina, escreve uma justificativa para o que ele faz As atividades de Kulik revelam, ao mesmo tempo, dois vetores opostos, ambos igualmente contemporaneos na Rissia atual. Hoje, sua agressiva imprevisibilidade externa coexiste com a contempls so densa e atormentada das profundezas obscuras e sufocantes, ‘nao metafisicas, do individuo. O entusiasmadissimo explorador das entranhas da vaca revela os dois cédigos coexistentes de duas reali dades russas: ansiedade e agressividade. Na verdade, ao latir e morder, o homem nu, rastejante e agressivo esta completamente indefeso diante de qualquer establishment so- ial. A agressividade de Kulik nao ¢ diferente das invectivas morais desesperadas de um ser humano decepcionado pelos valores da moderma cultura antropocéntrica, com suas perspectivas e comuni- cacao verbal. Para Kulik, o grande moralista e escritor Leon Tolstéi, com sua critica do establishment social e da linguagem literdria, con tinua sendo uma figura de fortes prinefpios, Contudo, as referéncias & moralidade e aos prinefpios, em- bora aparentemente grotescas, também denotam a distancia entre Kulik e o territério ocupado por artistas americanos como doula Bredikhina, em Flesh and Felifout Cru/Met Huid en Haar, portfolio lanca- do por Artkiosk, Bruxelas, .d. [c. 1997], sem paginacgo. 272 nee van Lamsweerde, Final Lamsweerde (1963-), fotdgrafa holandesa, fez alusdes mais su- 272 ats on tis a esse medo na série Final Fantasy, que leva o nome de um on videogame e usa modelos de 3 anos posando como se fossem adultos sexualmente conscientes. Por meio de manipulagéo computadorizada, substituem-se entao os labios das garotas por bocas adultas e maliciosas. Como um comentarista obser- s vou: “Aquelas criangas, com dentes enormes e poses provocan- ; tes, despertam em nés a necessidade de reconhecermos a se- xualidade infantil e o medo de nos aproximarmos dela.”* A obra da jovem pintora sul-africana Nicky Hoberman (1967-) apre- senta outra versdo dessas imagens, menos prontamente trans- gressora porque traduzida em termos mais tradicionais. Suas criangas irradiam a mesma conscientizagao sexual associada as fotografias de rainhas de beleza americanas pré-piberes, como JonBennet Ramsey, misteriosamente assassinada. Tanto Ofili quanto Harvey pertenceram ao grupo de artis britanicos que mais atrairam o interesse da midia na década. Suas atitudes langam raizes na cultura britanica vigente apés Segunda Guerra Mundial. O ponto de partida parece ter sido o movimento britanico de Punk Rock dos anos 70. Os Sex Pis- tols, o mais importante grupo de punk rock, apresentaram-se em fas 5. Collier Schoor, “Openings: Inez van Lamsweerde”, Art Forum, outubro de 1994, p. 96. > | 273.Damien Hirst, Away from the Flock [Longe do rebanho], | 1994, A MELANCOLIA POS-POP 259 foram preservados como um memorial tempordrio A vida da- queles que a habitaram. Whiteread e Hirst diferem da maioria dos outros artistas que se juntaram a eles sob a denominagao YI uu Jovens Ar- tistas Briténicos ~ denominagao essa que inevitavelmente ficara obsoleta — porque abordam temas sérios e abrangentes como morte e meméria. Além disso, Hirst tem uma producao consi- deravel de trabalhos mais triviais que parecem, sobretudo, cria- dos para transformar sua fama em vantagem comercial: por exemplo, grandes edigdes de gravuras a venda na internet. O problema de ambos é a inflexibilidade de método, isto é, depois que Whiteread tiver trabalhado todos os espacos negativos pos- siveis, desde a parte inferior de cadeiras e bancos ao interior de um saco de Agua quente, 0 que ela buscara entao? A obra de Hirst mais recente e importante na época da criacao deste livro 6 Hino (2000), uma ampliacao literal de 6 m de um modelo ana- FSmico feito para criangas. hee i RE RG ANE IE eT BIS Sp ad — ‘eDinos Chapman, me Jairo. 1996 A MELANCOLIA POS-POP 261 Outros artistas do Grupo YBA empenham-se em tentar ex- pressar a miséria da vida boémia, Sarah Lucas (1962-) ridicula- rizou 0s jornals sensacionalistas britdnicos ¢ as atitudes machistas em relagio a mulher, e Tracey Emin conseguiu muita publicida- de com My Bed [Minha cama] (1999), uma instalagao que con- sistia na reconstrugao do desmazelo de seu quarto. Ela nao ga- nhou o Turner Prize; o prémio de maior prestigio na Inglaterra para um artista de vanguarda, mas roubou a cena, saindo em todas as manchetes ligadas ao evento. Além de Hirst e Whiteread, os artistas desse grupo que pare- cem ter maior probabilidade de conquistar fama duradoura so 0s irmaos Jake (1966-) e Dinos Chapman (1962-). Originalmen- te, eles causaram impacto ao abordar 0 medo da pedofilia, como outros artistas mencionados acima, Suas marcas registradas cram esculturas de garotinhas nuas com 6rgaos sexuais fora do lugar — por exemplo, um pénis ereto no lugar do nariz. £ interes- sante observar que os irmaos exploram agora um tema ainda mais polémico - 0 Holocausto, O caminho que percorrem passa pelo fascinio que fem por Disasters of War [Desastres da guerra], de Goya. Eles reconstruiram uma das imagens mais famosas de Goya na forma de uma escultura em tamanho natural (Great _Deed's Against the Dead [Grandes feitos contra os mortos], 1994), depois criaram uma série prdpria de gravuras inspiradas nesse mesmo artista. Isso, por sua vez, resultou naquele que é, na épo- ca da criagao deste livro, seu projeto artistico mais ambicioso, Hell [Inferno] (1997-2000). Trata-se de uma multidao de figuras “em miniatura com paisagem e fundo arquiteténico adequados, colocadas em grandes caixas de vidro dispostas na forma de uma sudstica. Assim como aconteceu com o tubarao-tigre de Damien Hirst, tem-se a impressao de que ha referéncias as exposiges que se viam antigamente nos museus. Se Hirst faz alusdo a anti- quados museus de hist6ria natural, os irmaos Chapman pare- cem ter se inspirado em panoramas de campos de batalha, uma caracteristica outrora popular de museus militares. Inferno nao é simplesmente uma representagao literal do Holocausto, Muitas vezes, os préprios nazistas sao representa- dos como os torturados, pagando por seus crimes em outro mundo, condenados a passar pelo mesmo sofrimento que im- Pingiram aos demais. Os Chapman diferem dos artistas de van- guarda mais recentes porque usam uma ampla faixa de alusdes historicas e artisticas — as gravuras de Goya e Callot e as cenas de martirio do cristianismo, sobretudo as representagdes ma- neiristas e barrocas de The Martyrdom of the Ten Thousand [O martitio dos dez mil]. Além disso, hé referéncias ds imagens de- moniacas inventadas por Hieronymus Bosch e Pieter Bruegel, 0 velho. Isso confere a iniciativa dos irmaos Chapman uma di- mensao muito maior que a da obra de outros artistas que recen- 74 A MELANCOLIA POS-POP 263 Em todas essas obras, como em tantas outras citadas neste se a influéncia persistente do pop, pela pre- capitulo, percebe: vfluén senga de meios de representagao associados a cultura de massa, endo a de elite. Contudo, a atmosfera dominante é de azedume € desilusao. Por tras dos atos repetidos de provocacao, ha um niilismo que se pode plausivelmente descrever como fin-de-sié cle,.Os ataques as convengdes, empreendidos por uma vanguar- da oficialmente sancionada, parecem ter ficado sujeitos a lei dos retornos decrescentes. Na era pés-pop, as pouquissimas excecdes a essa regra pa- recem vir do Oriente distante, e a japonesa Mariko Mori (1967-) 6 uma das mais notaveis. Os motivos de Mori sao uma mistura obretudo as crengas da chamada escola Terra Pura, cujos seguidores de cultura popular japonesa e doutrina budista, téma certeza de que, apés a morte, renascerdo no Paraiso Ocidental ou Terra Pura e aleangarao 0 nirvana. A obra mais ambiciosa e bem-sucedida de Mori é 0 video Nirvana (1997), no qual a pré: pria artista aparece como a deusa Kichijoten, cercada por seis misicos multicoloridos chamados“Tunes”, que lembram perso- nagens de Disney. O video langa mao de notaveis efeitos tridi- mensionais que exigem 0 uso de dculos especiais. Faz parte de uma instalagao que usa quatro imagens fotograficas do tama nho de murais submetidas & manipulacao digital, representan tes simbdlicas dos quatro elementos da cosmologia budista ~ ar, ‘276: Mariko Mori, Ninan2, 4997. ‘A MELANCOLIA POS-POP 265 fogo, agua e terra -, e, teoricamente, uma lagrima de plastico transparente, a“CApsula da iluminacao”, contendo uma flor de lotus plastica suspensa no ar por imas. Futuramente, quando a tecnologia estiver aperfeicoada, a intengao é convidar o espec tador a sentar-se sobre essa cdpsula. Mori demonstra habilidade ao misturar a fantasia acucarada ea timidez consciente de grande parte da cultura japonesa ur- bana contemporanea com referéncias a verdades eternas que Ihe renderam um grande némero de admiradores ocidentais. Contudo, sua abordagem denota um simplismo desconcertan- te. Segundo as observagdes de um critico:"Mori visualiza o cor- po como um conjunto de energias radiantes que sublimam a carne num espirito feito de luz (em celuldide).”” Quanto mais se analisa essa descricdo, menos lisonjeira ela parece. A obra de Mori faz um contraponto interessante com a de Yayoi Kusama, artista japonesa muito mais velha. Kusama viveu em Nova York de 1958 a 1972 e conquistou fama com pinturas e obras am- bientais inspiradas na criacéo obsessiva de motivos repetidos, dando a impress de combinar idéias do pop com outras vin- culadas a arte minimalista. Depois de voltar ao Japao na década de 1970, procurou uma instituicao psiquidtrica, onde ainda vive, e foi esquecida no Ocidente. Em 1998 seu nome veio a tona com uma retrospectiva de seus primeiros trabalhos, apresenta- da no Museu de Arte Moderna de Nova York; outra ocorreu na Galeria Serpentine, em Londres, em 2000. Kusama preocupa-se com a identidade cultural, mas de um modo muito mais espon- téneo e genuinamente contestador que Mori. Os motives insis- tentes de Kusama influenciam profundamente o espectador; sua simplicidade contundente faz com que os efeitos visuais tecnol6gicos usados por Mori parecam frageis e superficiais. A arte chinesa recente também faz alusdes ocasionais as crencas € aos costumes religiosos tradicionais; porém, para constranger e nao para tranqiiilizar, sendo este tltimo 0 objeti- vo primordial de Mori, A obra do artista pequinés Sun Yuan (1972-) 6 um bom exemplo disso. Formado pela Academia de Pequim, ele comegou a carreira como pintor, mas no final da dé- cada de 1990 passou a fazer instalagdes, quase sempre em cola- boracao com 0 parceiro Pen Yu (1974-). Ainda que sua opiniao Seja que “nao existe fronteira explicita entre a cultura ocidental €a chinesa”*, essas instalagdes costumam cruzar fronteiras que, embora frdgeis, ainda sao respeitadas na arte ocidental. Por exemplo, muitas delas usam fetos — quase a termo ou natimor- tos. Na China, onde hé limitagées rigidas quanto ao ntimero de filhos que cada casal pode ter, é facil obter esses pequenos ca- 7. Norman Bryson, “Cute Futures: Mariko Mori's Techno-Enlightenment”, Par- ket, 54, 1998-99, p. 80, 8. Deciaragao do artista na pagina da internet “Artscene China” 133 277. Sun Yuan e Pen Yu, Soul Killing {Assassinato da alma, 2000. A R DE 1945 NTOS ARTISTICOS A PARTIR DE 266 0S MOVIME! daveres. Sun Yuan diz que os compra, legalmente, de hospitais’, Soul Killing [Assassinato da alma] (fevereiro de 2000) foi uma 277 colaboragao entre ele e Pen Yu. A obra nao mostrava uma crian- a, mas sim um cao morto — sem pele, talvez comprado num mercado de alimentos em Pequim — usado para ilustrar a crenga popular chinesa de que o espirito com intencdes maldosas pode persistir dentro do cadaver ou perto dele e precisa ser expulso por meios violentos. Um forte projetor de luz destruiu o cérebro do animal. A manifestagio durou apenas uma hora, mas por pouco nao foi proibida. Além disso, suscitou violentos debates no mundo artistico de Pequim. Nesse caso, o elemento chocante nao foi apenas a imagem apresentada na instalago em si, mas a percepgao de que a tao alardeada globalizacdo da arte contempordnea, ocorrida nas décadas de 1980 e 1990, ainda deixou espago para enormes di- ferencas cult lturais. Contudo, essa percepcao parece ser igual- ae forte na propria cidade de Pequim e entre aqueles qué rac Conhecimento da obra no Ocidente, por meio de ilus- ctigao e ndo pela experiéncia di forma lireta. De certa forma, : roe = exemplo demonstre diferencas culturais, também em que a estéti iti a anon a fética e a politica de choque passaral

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